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CONGRESSO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO 2016 Educação e Diversidade ISSN 2179-068X Universidade Federal de Mato Grosso – Câmpus Universitário de Rondonópolis - MT 13 a 16 de setembro de 2016 DO SILENCIAMENTO À INTERAÇÃO SOCIAL: UMA SÍNTESE DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS Maria do Socorro Castro Soares SEDUC-MT Resumo O ser humano enquanto ser social materializa uma interação com seus pares a partir de um código comunicacional. É comum se compreender que a oralidade se constitui, a partir dessa premissa como elemento de fundamental importância no processo das relações sociais. Assim, em um sociedade de pessoas ouvintes, se faz necessário uma reflexão no sentido da participação ativa d pessoas não ouvintes, que integram e convivem cotidianamente nesse universo social. Ness perspectiva, esse trabalho, baseia-se na análise bibliográfica de caráter qualitativo e tem com objetivo conhecer as condições socioeducativas da pessoa surda em período anterior à efetivaçã da Língua Brasileira de Sinais. Justifica-se pela necessidade de fazer emergir os meandros de luta e reivindicações que permearam os caminhos da população não ouvinte na construção do process de reconhecimento institucional da língua de sinais no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Surdez, Educação, História Introdução Este trabalho que trás como título “Do silenciamento à interação social: uma síntese d Língua Brasileira de Sinais” busca percorrer os caminhos que conduziram à evolução histórica d processo que culminou com o estabelecimento oficial da Língua Brasileira de Sinais e as fase metodológicas que conduziram esse processo. Sem a pretensão de grande aprofundamento cronológico, procura-se trazer à tona a condiçã social da pessoa surda em períodos anteriores à criação das primeiras escolas específicas par surdos, passando pelo estabelecimento da Língua de Sinais, chegando à educação para pessoa surdas no Brasil e a efetivação metodológica da Língua Brasileira de Sinais. Contudo, em razão d natureza dessa comunicação, essas considerações não devem ser vistas como uma delimitaçã cronológica rígida, uma vez que, os períodos históricos percorridos serão visitados de forma mai aligeiradas. O problema que se coloca está pautado na busca de respostas que atendam à curiosidad leiga, no sentido de conhecer qual a trajetória percorrida pela educação para oportunizar à pesso surda a interatividade social, em uma sociedade majoritariamente ouvinte. Assim, pretende-s compreender: Qual o lugar social destinado à pessoa surda antes do estabelecimento da Língua d

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13 a 16 de setembro de 2016

DO SILENCIAMENTO À INTERAÇÃO SOCIAL: UMA SÍNTESE DA LÍNGUA BRASILEIRA

DE SINAIS

Maria do Socorro Castro Soares

SEDUC-MT

Resumo O ser humano enquanto ser social materializa uma interação com seus pares a partir de um código comunicacional. É comum se compreender que a oralidade se constitui, a partir dessa premissa, como elemento de fundamental importância no processo das relações sociais. Assim, em uma sociedade de pessoas ouvintes, se faz necessário uma reflexão no sentido da participação ativa de pessoas não ouvintes, que integram e convivem cotidianamente nesse universo social. Nessa perspectiva, esse trabalho, baseia-se na análise bibliográfica de caráter qualitativo e tem como objetivo conhecer as condições socioeducativas da pessoa surda em período anterior à efetivação da Língua Brasileira de Sinais. Justifica-se pela necessidade de fazer emergir os meandros de lutas e reivindicações que permearam os caminhos da população não ouvinte na construção do processo de reconhecimento institucional da língua de sinais no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Surdez, Educação, História

Introdução

Este trabalho que trás como título “Do silenciamento à interação social: uma síntese da

Língua Brasileira de Sinais” busca percorrer os caminhos que conduziram à evolução histórica do

processo que culminou com o estabelecimento oficial da Língua Brasileira de Sinais e as fases

metodológicas que conduziram esse processo.

Sem a pretensão de grande aprofundamento cronológico, procura-se trazer à tona a condição

social da pessoa surda em períodos anteriores à criação das primeiras escolas específicas para

surdos, passando pelo estabelecimento da Língua de Sinais, chegando à educação para pessoas

surdas no Brasil e a efetivação metodológica da Língua Brasileira de Sinais. Contudo, em razão da

natureza dessa comunicação, essas considerações não devem ser vistas como uma delimitação

cronológica rígida, uma vez que, os períodos históricos percorridos serão visitados de forma mais

aligeiradas.

O problema que se coloca está pautado na busca de respostas que atendam à curiosidade

leiga, no sentido de conhecer qual a trajetória percorrida pela educação para oportunizar à pessoa

surda a interatividade social, em uma sociedade majoritariamente ouvinte. Assim, pretende-se

compreender: Qual o lugar social destinado à pessoa surda antes do estabelecimento da Língua de

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Sinais? Quais caminhos foram percorridos e quais expectativas se guardavam na construção do

processo que levou à educação escolarizada das pessoas surdas? Qual o nível de envolvimento

social e educacional na escolarização de pessoas surdas no Brasil com a utilização da Língua

Brasileira de Sinais?

Nessa perspectiva tem-se como objetivo geral compreender a dinâmica histórica e social que

fundamentou o processo evolutivo para o estabelecimento legal da Língua Brasileira de Sinais.

Enquanto objetivos específicos espera-se conhecer as condições socioeducativas da pessoa surda

em período anterior ao estabelecimento da Língua de Sinais, compreender o processo que levou à

educação escolarizada das pessoas surdas e entender o processo de reconhecimento legal da

Língua Brasileira de Sinais.

Metodologicamente, este trabalho se apoia na pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo e

fundamenta-se em autores como: Inácio (2009); Berthier (1984); Perlin, Strobel (2008); Neves

(1981); Sacks (1998), entre outros. Apoia-se também em fontes como: artigos científicos, livros,

revistas e materiais acadêmicos.

O trabalho está sistematicamente disposto em dois tópicos. O primeiro intitulado “Linguagens

Silenciadas”, disserta a respeito da invisibilidade dada às pessoas não ouvintes, anterior à

sistematização da Língua de Sinais e o estereótipo de incapaz.

O segundo “Língua Brasileira de Sinais: um percurso histórico” discorre a respeito do

processo educativo brasileiro, que fundamentou a Língua Brasileira de Sinais como linguagem de

pessoas surdas.

LINGUAGENS SILENCIADAS

As transformações econômicas e sociais impostas pelo mundo capitalista têm implicado numa

constante atualização do modus vivendi da população mundial. A celeridade dessas mudanças,

embora se constitua em resultados coletivos, exige, a priori, uma qualificação que, antes de chegar

ao coletivo, perpassa a esfera individual. Em relação à educação, em que pese a legislação garantir

a acessibilidade às pessoas com deficiência auditiva, percebe-se algumas lacunas de caráter

didático-pedagógicos e, principalmente, logísticos no que tange ao processo educacional, seja

direcionado para a escolarização ou profissionalização.

O ser humano enquanto ser social materializa sua interação com seus pares a partir de um

código comunicacional. É comum compreender-se que a oralidade constitui-se, a partir dessa

premissa, como elemento de fundamental importância no processo das relações sociais. Assim, em

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uma sociedade de pessoas ouvintes, se faz necessário uma reflexão no sentido da participação

ativa de pessoas não ouvintes que integram e convivem cotidianamente nesse universo social.

Convém compreendermos que as formas de comunicação se dão de variadas formas, sem que isso

exclua ou deixe fora da dinâmica social aquelas pessoas que utilizam uma forma diferenciada de

comunicação.

Segundo Wederson Honorato Inácio:

A falta de uma linguagem, independente de como ela seja, acarreta em especial na criança, atraso em seu desenvolvimento cognitivo, de aprendizagem, dificuldades de interação com outros sujeitos no seu meio e, em consequência, sua capacidade de interação com outros pode ser comprometida. (INÁCIO, 2009, p.3)

Percebe-se, portanto que a interação entre pessoas se dá através de algum código de

linguagem, seja ela oral, gestual ou através de qualquer outro signo capaz de efetivar uma interação

social. Contudo, nem sempre, outras formas de comunicação que não fosse a oralizada foram

aceitas. Na antiguidade, por exemplo, o tratamento dado à pessoa com necessidade de audição era

o de exclusão e inutilidade social, como nos dão conta as considerações de Bethier, quando este

autor se refere à Esparta:

A infortunada criança era prontamente asfixiada ou tinha sua garganta cortada ou era lançada de um precipício para dentro das ondas. Era uma traição poupar uma criatura

de quem a nação nada poderia esperar. (BERTHIER, 1984, p.169)

Sendo a Cidade- Estado de Esparta eminentemente guerreira, onde a própria educação

passava pela preparação bélica, a condição de “incompletude humana”, era automaticamente

descartada, ou seja, aquilo que não servia ao Estado não deveria existir.

Perlin e Strobel, de forma clara pontuam uma escala cronológica da situação de pessoas

surdas no decorrer da história, e, considerando a importância e disposição didática transcreve-se

aqui. Em relação à Idade Antiga, as autoras afirmam que na Grécia:

[..] os surdos eram considerados inválidos e muito incômodo para a sociedade, por isto eram condenados à morte – lançados abaixo do topo de rochedos de Taygéte, nas águas de Barathere - e os sobreviventes viviam miseravelmente como escravos ou abandonados só. (PERLIN; STROBEL, 2008, p. 87)

Em Roma: [...] não perdoavam os surdos porque achavam que eram pessoas castigadas ou enfeitiçadas, a questão era resolvida por abandono ou com a eliminação física – jogavam os surdos em rio Tibre. Só se salvavam aqueles que do rio conseguiam sobreviver ou aqueles cujos pais os escondiam, mas era muito raro – e também faziam os surdos de escravos obrigando-os a passar toda a vida dentro do moinho de trigo empurrando a manivela. (PERLIN; STROBEL, 2008, p. 87)

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Já no Egito e na Pérsia, a imagem do surdo, no mesmo período histórico divergia de Grécia e

Roma, aqueles consideravam os surdos como:

[...] criaturas privilegiadas, enviados dos deuses, porque acreditavam que eles se comunicavam em segredo com os deuses. Havia um forte sentimento humanitário e respeito, protegiam e tributavam aos surdos a adoração, no entanto, os surdos tinham vida inativa e não eram educados. (PERLIN; STROBEL, 2008, p. 89)

Em linhas gerais, durante a antiguidade clássica, o pensamento aristotélico prevaleceu.

Ou seja, a vinculação da fala à estruturação do pensamento. Se não fala, não estrutura

pensamentos, consequentemente, segundo essa teoria, a pessoa surda não seria um ser

político, pois:

É na Política que vai ser explicada a natureza da linguagem. O animal político (zôon politikón) liga-se necessariamente à faculdade humana de falar, pois sem linguagem não haveria sociedade política. (...) A natureza não faz nada em vão e, dentre os animais, o homem é o único que ela dotou de linguagem. Sem dúvida a voz (phoné) é uma indicação de prazer ou de dor, e também se encontra nos outros animais; o lógos, porém, tem por fim dizer o que é conveniente ou inconveniente e, conseqüentemente, o que é justo ou injusto. (NEVES, 1981, p. 58).

Na Idade Média, o pensamento em relação ao surdo não mudou muito em relação à

Idade antiga “[...] Não davam tratamento digno aos surdos (...). Os surdos eram sujeitos

estranhos e objetos de curiosidades da sociedade” (PERLIN; STROBEL, 2008, p. 92).

Alguns esforços em relação à educação de pessoas surdas vinham de iniciativas

religiosas, contudo, eram restritos a um público de jovens e crianças oriundos de nobrezas

locais.

Em termos religiosos, no mesmo período, tem-se que:

Aos surdos eram proibido receberem a comunhão porque eram incapazes de confessar seus pecados, também haviam decretos bíblicos contra o casamento de duas pessoas surdas só sendo permitido aqueles que recebiam favor do Papa. (PERLIN; STROBEL, 2008, p. 92)

Na Idade Moderna, com as transformações socioeconômicas impostas pelo momento

renascentista e a transição do pensamento teocentrista para o antropocentrista, aos poucos, o

olhar social em relação aos surdos foi tomando novos fundamentos. A negação do acesso à

salvação dada ao surdo - “...já que, segundo Paulo em sua Epístola aos Romanos, a fé provém

do ouvir a palavra de Cristo” (CAPOVILLA, 2000, p. 100) – deu lugar à possibilidade do mesmo

tornar-se objeto de evangelização e usufruir de uma educação formal.

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Diante dessa nova perspectiva, convém ressaltar, que desde o início da Alta Idade

Média algumas Ordens Monásticas (algumas beneditinas), além dos votos de castidade,

obediência e pobreza privilegiavam o voto do silêncio. Para que o silêncio não se interpusesse

à comunicação no monastério, sistemas gestuais de sinais passaram a fazer parte do dia a dia

dos monges, compreendendo-se a partir daí e, guardando-se as devidas proporções

metodológicas, um embrião da língua de sinais.

No século XVI o médico e filósofo Girolamo Cardano, através de pesquisas, percebeu

que os surdos poderiam ter acesso à língua falada por outros meios que não fossem

necessariamente a oralidade, como transcreve Oliver Sacks:

É possível dar a um surdo – mudo condições de ouvir pela leitura e de falar pela escrita [...], pois assim como diferentes sons são usados convencionalmente para significar coisas diferentes, também podem ter essa função as diversas figuras de objetos e palavras. [...] Caracteres escritos e idéias podem ser

conectados sem a intervenção de sons verdadeiros. (SACKS, 1998, p. 29)

Embora não se possa apontar grandes avanços no desenvolvimento da língua de sinais,

importa lembrar que no século XVIII, a Europa foi sacudida por uma série de transformações

socioculturais e políticas que inferiram na educação de surdos. No bojo do discurso

universalizante sobre educação, as manifestações burguesas hastearam suas bandeiras.

Desse ideário surgem educadores como Charles-Michel de l’Épée e Samuel Heinicke.

A base da abordagem oralista foi criada por Heinicke (1729-1790), conhecido como o

“pai do método alemão”, método pelo qual os surdos deveriam aprender através de exercícios

de oralidade, para que tivessem acesso ao mundo “letrado”. Entretanto, a comunicação através

de sinais não era bem-vinda, privilegiava-se o exercício da fala. Acreditava-se que o modelo

gestual implicaria prejuízo à língua oral majoritária.

Já Charles-Michel de l’Épée, em seu abrigo para surdos em Paris, apoiava-se em uma

metodologia gestual:

Sinais incorporados das linguagens usadas por surdos que ingressavam na instituição – para o ensino de várias disciplinas. Os “sinais metódicos”, como foram chamados, formavam-se a partir do entrelaçamento de itens lexicais (gestos) desses “dialetos surdos” com sinais criados e reapropriados por l’Épée. (NAKAGAWA, 2016, p. 16)

Vale ressaltar que os ensinamentos de l’Épée eram direcionados ao público das

camadas populares da sociedade parisiense. Tinha como objetivo principal a preparação

profissional e a inserção no mundo do trabalho. Essas ações didático pedagógicas se

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colocavam na contramão da instrução elitista, ministrada por preceptores ligados às ordens

monásticas nos séculos XVI e XVII. Às massas, a preparação para o trabalho, à elite a

preservação dos direitos nobiliárquicos dos herdeiros surdos-mudos. Contudo, não há como

negar a importância epistemológica promovida com tais metodologias.

O desenvolvimento urbano na contemporaneidade terminou por proporcionar uma

comunicação maior entre sujeitos surdos, o que fortaleceu a língua de sinais como marca

identitária dessas comunidades:

Em meados do séc. XIX havia mais de cento e cinquenta escolas na Europa e vinte e seis nos Estados Unidos que usavam a língua gestual. A educação de surdos estava em seu período de ouro. Os surdos tinham acesso à educação através da sua língua materna. Na Europa e na América cada vez mais alunos surdos completavam a educação básica. Foram lançados então os cursos secundários para surdos em Hartfort, Nova Iorque e Paris. Os alunos surdos tiveram pela primeira vez a possibilidade de continuarem os seus estudos, tornando-se muito deles professores de surdos. Em meados do século dezenove metade dos professores nas escolas americanas e francesas eram surdos. (COELHO; CABRAL; GOMES, 2004, p.168)

Em relação ao Brasil, a educação sistematizada para surdos teve início durante o

segundo Império:

Foi fundada a primeira escola para surdos no Rio de Janeiro – Brasil, o “Imperial Instituto dos Surdos-Mudos”,hoje, “Instituto Nacional de Educação de Surdos”– INES, criada pela Lei nº 939 (ou 839?) no dia 26 de setembro. Foi nesta escola que surgiu, da mistura da língua de sinais francesa com os sistemas já usados pelos surdos de várias regiões do Brasil, a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). Dezembro do mesmo ano, Eduardo Huet apresentou ao grupo de pessoas na presença do imperador D.Pedro II os resultados de seu trabalho causando boa impressão. (PERLIN; STROBEL, 2008, p. 33)

Contudo, infere-se não ser o bastante apenas comunicar-se com a pessoa surda mas,

principalmente, comunicar-se de forma a proporcionar um desenvolvimento cognitivo que

propicie uma cumplicidade no favorecimento do ensino-aprendizagem, como sugere Márcia

Goldfeld:

[...] a importância da linguagem proporciona trocas culturais, de importância especial, pois o homem está inserido num contexto evidentemente social, evidenciando então que a linguagem é um fator não apenas linguístico mas também cultural, neste dizer: o sujeito social tem que estar interagindo, em primeiro plano culturalmente e em segundo linguisticamente para que seja percebido pelo seu meio e pelos seus pares.(GOLDFELD, 1997, p. 34)

Língua Brasileira de Sinais: um percurso histórico

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As necessidades de um mundo industrializado foram refletidas em todos os setores da

sociedade e em todos os continentes do globo terrestre. Em seu rastro vieram também

mudanças de mentalidade e novos posicionamentos sociais. Nesse contexto de

transformações de cunho cultural, político, histórico e social, as pessoas com deficiências

auditivas passaram, paulatinamente, a serem pensadas como integrantes de uma mesma

sociedade produtiva e consumidora.

Embora não se possa falar de grandes avanços, em relação ao Brasil, há que se

considerar que graças à organização de grupos ligados à reivindicações inclusivas, pode-se

falar em uma história da surdez no Brasil. Segundo Widel, as organizações de comunidades

surdas no Brasil foram iniciadas levando em conta, principalmente, o apoio mútuo através de

auxílios- doença, morte, desemprego, etc., além de atividades de lazer. (WIDELL,1992, p. 97)

Importa ressaltar que a educação para surdos no Brasil teve como fundamentação as

discussões realizadas na França, que refletindo em terras brasileiras sensibilizaram o

Imperador, D. Pedro II, que fundou o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos – IISM, através da

Lei nº 839, de 26 de setembro de 1857.

Em um momento de transição histórica entre a debilidade do Império e os auspícios da

República, a educação escolarizada era vista sob a ótica do positivismo, onde o “templo de

civilização” era subentendido também como o “templo da disciplinarização” e da “ordem”.

Essas premissas passavam necessariamente pela preparação para o trabalho. Assim, em

relação ao currículo desenvolvido no Instituto Imperial, Stevens afirma que:

No IISM, o currículo escolar era o corrente nas escolas, ensino primário e ginasial, em sala composta por seis alunos. Destaque-se que, com os métodos especiais para obtenção da consciência da linguagem e do ritmo da fala, eram necessários, no mínimo, oito anos de educação. Havia, ainda, uma série de atividades extracurriculares, como as oficinas preparatórias para o mercado de trabalho, nas áreas de mecânica, alfaiataria, tornearia, carpintaria, artes gráficas. Algumas décadas após a fundação do IISM, quando as meninas já podiam fazer parte do alunado, havia as opções de costura, bordado, tapeçaria e trabalhos de arte. (STEVENS, 1968, p.84)

O Instituto Imperial, depois denominado de Instituto Nacional de Educação de Surdos, pode

ser considerado como elemento impulsionador no atendimento de pessoas surdas no Brasil.

Em 1825 foi instituído como estabelecimento profissionalizante; em 1951 foi criado um curso de

docência na área de surdez; em 1952 foi fundado o Jardim de Infância, seguido do

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estabelecimento do curso de Artes Plásticas; em 1957 criou-se o primeiro Centro de Logo

pedia, constituindo-se no primeiro do Brasil.

As atividades do INES foram ao longo da história contribuindo para uma melhor

qualidade de vida das pessoas surdas no Brasil. Uma das grandes contribuições que pode ser

apontada foi o de Estimulação Precoce para atendimento de crianças na faixa etária de zero a

três anos. Ou seja, o atendimento começava a pautar-se não mais apenas para crianças em

idade escolar, mas também na prevenção.

Contudo, em virtude da grande demanda, Na década de 1960, já ficava oneroso enviar

todas as crianças surdas do país ao INES, considerando-se que o Instituto atravessava

passava por uma crise econômica. Nesse aspecto, a criação do Instituto Pestalozzi e da

associação de Pais e Amigos dos excepcionais (APAE), em outros Estados da Federação,

passaram também a atender às pessoas surdas.

No início da década de 1990, o Instituto, através de Ato Ministerial, passou à condição

de Centro de Referência nacional na área de surdez, dando suporte a todo o país. Os

movimentos de mobilização de surdos no Brasil, tiveram na década de 1990 um período

marcado pelo fortalecimento de luta. O reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como

primeira língua dos surtos, constituía-se em principal reivindicação.

Não há como falar em conquistas da comunidade surda brasileira sem deixar de enfatizar a

importância das Associações promovidas pelas comunidades surdas. A primeira Associação

brasileira de surdos no Brasil foi fundada em 1930, com egressos do Instituto Nacional de

educação Surda, porém não possuía estatuto que garantisse e fundamentasse legalmente seu

funcionamento. Com a ajuda da professora Ivete Vasconcelos, foi criada a segunda associação

em 1953.

O regresso de alguns alunos as suas cidades de origem proporcionava a criação de outras

associações, como foi o caso de, em 1954, da criação da Associação de Surdos-Mudos de São

Paulo e, em 1956, a terceira Associação de Surdos de Belo Horizonte. Embora se respeitando

as devidas proporções, essas associações têm mantido a identidade e a cultura surda no

Brasil.

Essas micro agremiações deram sustentação para se pensar em órgãos representativos de

maior extensão. Nessa perspectiva, a Federação Nacional de Educação e Integração de

Surdos foi fundada em 16 de maio de 1987, e a Confederação Brasileira de Surdos (CBS),

fundada em 2004. No contexto de fortalecimento das agremiações de surdos no Brasil tem-se

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também a criação da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis),

fundada, por ouvintes, em 1987. Tem como objetivo disseminar a Libras Língua Brasileira de

Sinais pelo Brasil. A FENEIS, instituição governamental, sem fins lucrativos tem caráter

educacional, sociocultural e assistencial.

Como força agregadora, a Declaração de Salamanca1 ganhou força de implantação no ano

de 2000, trazendo como proposta, entre outros, os seguintes princípios:

- Independente das diferenças individuais, a educação é direito de todos;

-Toda criança que possui dificuldade de aprendizagem pode ser considerada com

necessidades educativas especiais;

- A escola deve adaptar–se às especificidades dos alunos, e não os alunos as especificidades

da escola;

- O ensino deve ser diversificado e realizado num espaço comum a todas as crianças

Embora permeada por um processo lento, a Língua Brasileira de Sinais foi finalmente

aprovada e reconhecida como segunda língua oficial no Brasil, através da Lei 10.436, em 24 de

abril de 2002. Os avanços não pararam por aí. O Decreto 5.626 regulamentou a LIBRAS como

disciplina curricular e, em 2007 a estrutura de língua foi aplicada à LIBRAS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entende-se que a linguagem enquanto símbolo de comunicação se coloca como elemento

fundamental de interação social. No que tange à comunidade surda há que se considerar que

os empecilhos de comunicação e reconhecimento fazem parte de uma rotina histórica na vida

das pessoas não ouvintes.

Em relação ao processo educacional as dificuldades se colocam de forma mais severas e

gritantes. Obstáculos se apresentam desde a própria comunicação entre professor e aluno até

às práticas pedagógicas que deveriam promover uma real inclusão. A facilitação de acesso à

escola, não infere na qualidade da educação que é dada ao aluno com deficiência auditiva.

1 Considerada um dos principais documentos mundiais que visam a inclusão social, ao lado da Convenção de Direitos da

Criança (1988) e da Declaração sobre Educação para Todos de 1990.

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Embora a resolução CNE/CEB n°2, de 11 de Setembro de 2001 (Conselho Nacional de

Educação, 2001) determine em seu Artigo 8º que as escolas da rede regular de ensino devem

prover na organização de suas classes comuns serviços de apoio pedagógico especializado

em educação especial; atuação de professores e intérpretes das linguagens e códigos

aplicáveis, disponibilização de outros apoios necessários à aprendizagem, à locomoção e à

comunicação, sabe-se que esses benefícios não são atendidos em sua totalidade e quando

alguns são disponibilizados, o são de forma deficitária.

Dentre aos empecilhos que se colocam na interação educacional, tem-se como

fundamental a comunicação. Sem a prática pedagógica que medie de forma compreensiva o

ensino-aprendizagem, qualquer tentativa não cumprirá o objetivo de escolarização. Isso leva a

pensar que se não houver o conhecimento e domínio da língua de sinais por parte dos

professores que atuam com alunos surdos, é muito pouco provável que o ensino-aprendizagem

se complete.

Considerando-se que a inclusão pressupõe uma convivência comum, e esse espaço

comum, no que tange à educação escolarizada, diz respeito à escola, entende-se ser

necessária uma formação específica também aos professores ouvintes que atuam em salas de

ensino regular. Nesse caso, é fundamental que os cursos de formação de professores, sem

exceção, ampliem suas cargas-horárias em suas grades curriculares e privilegiem conteúdos

mais aprofundados sobre o componente curricular de LIBRAS.

Entende-se também que a presença de um intérprete em sala de aula deve constituir-se

em condição primordial para assegurar a garantia da aprendizagem. Caso a escola não conte

com o atendimento de um profissional habilitado, cabe a qualquer membro da comunidade

escolar o empenho junto ao órgão educacional competente, no sentido de que esse direito do

aluno surdo seja respeitado. Portanto, a garantia dos direitos estabelecidos em Lei deve ser

responsabilidade de todos.

REFERÊNCIAS

BERTHIER, Ferdinand. Les Sourdes-muets avant et depuis l'abbé de l'Epée. In: LANE, Harlan

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CONGRESSO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO 2016

Educação e Diversidade

ISSN 2179-068X

Universidade Federal de Mato Grosso – Câmpus Universitário de Rondonópolis - MT

13 a 16 de setembro de 2016

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(Desenvolvimento de material didático ou instrucional - Curso de Letras - LIBRAS à distância)

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