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    DOIS GUAXOS

    REFRESCARA UM POUCO, brisas da noite se espojavamentre os cinamomos e do matinho atrs das casasvinha o chiado baixo da folharada sacudindo. Pas-sava da meia-noite. Sentado no costado do ran-cho, na terra, Maninho no cessava de apalpar opunhal que desde cedo trazia ao alcance da mo.Cabeceava, mas no queria dormir: se fechava osolhos, via o parreiral, o pelego branco, Ana, e obugre naquele assanho de cavalo. Que tormento.

    Frestas de luz no galpo de barro, zunzum deconversa e risos, era seu pai que estava l, com oCacho, carteando truco* de mano e naquelas charlasmisteriosas, atiadas pela canha, que s termina-vam quando o braseiro se desmanchava em p decheiro ardido. De que falavam? Maninho ouvia avoz do pai e o punhal machucava a mo, tanto oapertava. O velho nunca prestara e tinha pioradodepois da morte da mulher, embebedando-se atem dia de semana e maltratando os filhos por qual-

    * Jogo de cartas muito comum no interior do Rio Grande doSul, sobretudo nas zonas fronteirias da campanha. (N. do E.)

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    quer nonada. Agora se acolherara com aquele tras-te inditico, aquele bugre calavera e muito alcaide,que viera do Boror para ajudar na lida e era dia enoite mamando num gargalo e ensebando o bara-lho espanhol.

    Da mana, ai, da mana no sentia raiva algu-ma, s uma dor no peito, s um caroo na gargan-ta. J abeirante aos dezessete, morrendo a me elatomara seu lugar, cozinhando, remendando otraperio, ensinando-lhe a ler umas poucas palavri-nhas. E at mais do que isso... Viva na sua lem-brana estava a noite em que o temporal arreben-tara o zinco, destapando metade do ranchinho. Mo-lhada, louca de frio, ela viera se deitar no catre dele.As chicotadas do aguaceiro na parede e aquele ven-to roncador, os mugidos soluantes de terneirosextraviados e aquele medo enorme de que o mun-do se acabasse, e no meio da noite, do vento, dachuva que vinha molhar o xergo com que cobri-am os ps, ela quisera que lhe chupasse o seiopequenino. A mornura e o cheiro do corpo dela, eseu prprio corao num galope estreito, umaemoo assim pensava no era coisa de se es-quecer jamais. Que noite! E na doura do recuerdovinha se enxerir o ndio Cacho, dando sota e bastocomo um rei. Desde o primeiro dia, vendo Ani-nha, no disfarara suas miradas de cobia, suateno de abuso grosso, e o descaro era tamanhoque at se apalpava em presena dela. Tivera a cer-

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    * Lance do jogo do truco. (N. do E.)

    teza, ento, de que o pai no zelava pela filha epouco se importava que um bugre tumbeiro e mal-intencionado tomasse adiantos com a menina.Quem sabe at no a perdera nalgum real-envido!*Tivera a certeza de que, no sendo o bugre, ia seroutro qualquer, algum bombachudo que apeassepor ali e depois se fosse, deixando-a tristonha,solita... solita como se queda uma novilha prenha.E depois, ah, isso j se sabia, depois ia virar puta derancho, puta de bolicho e no fim uma daquelasreinas que vira algumas vezes na carreteira, aba-nando em desespero para caminho de gado.

    Ora, no era bem uma surpresa.E na tarde daquele dia que se terminara, en-

    quanto o velho gamb se emborrachava no galpoe a chacrinha toda era um silncio, tinha visto olha-res, sinais, Cacho a rondar o quartinho, at urinan-do por ali para se mostrar e Maninho sabia que elaestava olhando, que ela estava espiando, nervosa,agitada, e que j era hora de aquentar o caf e omingau de farinha e ela nada, s janeleando e aqueletremor nas mos, nos lbios, aqueles olhos ariscose assustados.

    Entardecia, o lusco-fusco cheirando a fruta, aestrume fresco, a terra mijada. Eles se esconderamno parreiral e Maninho os seguiu entre ramadas,pastiais. Um pelego branco e o corpo de Aninhatambm branqueava debaixo do couro zaino do

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    alarife. Podia no ser uma surpresa, mas, ainda as-sim, o que parecia ter levado mesmo, ai-cuna, eraum mangao ao p do ouvido. Mo crispada nopunhal, um-dois-trs e finava o homem, mas nose movia, apresilhado ao cho, vendo os dois rola-rem na terra e se esfregando um nas partes do outro.As pernas de Aninha se afastaram, o bugre se ajoe-lhou, cuspiu nos dedos, um suspiro, um gemidofundo e ele comeou a galopear, atochado nela.

    Essa tarde anoitecera, a noite j envelhecia,entrava a madrugada nos mangueires do cu e oguri cabeceava... Ia esfriando agora, a brisa quasevento e o chiado da folharada aumentava no matoatrs das casas. Ele trazia os joelhos de encontro aopeito para se aquecer, pensava na me, que as mesno deviam morrer to cedo, na falta delas todomundo parecia mais solito, espremido no seu cadaqual como rato em guampa. Vida miserenta, por-caria, dava de ver como a famlia ia bichando, iaficando podre, ia virando p.

    No galpo, o velho e Cacho se entretinhamnuma prosa enrolada e esquisita, bulindo com di-nheiro.

    Vai te deit, guri disse o velho, vendoManinho entrar, e voltou-se para o bugre: E a...

    A... fez o outro, e no continuou.Maninho agarrou o freio e um pelego. O ve-

    lho viu, deu uma risada frouxa. Se mal-pergunto, vai dar algum volteio?

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    O bugre no riu. No candeeiro de azeite, pen-durado no jirau, a chama ia mermando, cedendoespao s sombras.

    Maninho enfrenou um tordilho, que porviejo e lunanco no ia fazer falta a ningum. De-pois entrou em casa, foi direto ao quartinho dairm.

    Aninha dormia de lado, parte dos cabelos es-condendo o rosto. A tnue claridade da noite,debruada na janela, fazia do corpo dela um vultoacinzentado, mas gracioso. Maninho no conheciamuitas mulheres e nunca dormira com nenhuma,mas com qualquer que pudesse comparar, Aninhaparecia mais bonita, bagualazinha jeitosa que dia adia ia se cascudeando naquelas lidas caseiras. E di-zer que aquela pitanga fresca e saborosa tinha ceva-do sua polpa para um chiru desdentado como oCacho... Quanto desperdcio, quanta falta de al-guma coisa que no sabia o que era e j se pergun-tava, afinal, se no era o tal de amor. Seus olhos seencheram de lgrimas e ele se ajoelhou, aproximouo rosto do ventre da irm. Um beijo, e o sexo delatinha um cheiro delicado, profundo.

    Aninha moveu-se e ele se ergueu, resoluto.Foi at o puxado onde dormia e meteu algumaroupa nos peuelos, carregando tambm suatropilha de gado de osso. Na sada, cortou do ara-me um naco de charque de vento. Montou, partiudespacito, no tranco. Ao cruzar pelo galpo viu que

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    o velho e Cacho j dormiam, tinham debulhadoduas garrafas de cachaa.

    Um tiro at Itaqui, e depois... quem sabe-ria?

    Depois ia cruzar o Rio Uruguai, ou no cru-zar, ou ia para Uruguaiana, Alegrete, ou para a Bar-ra, Bella Unin, lugares dos quais ouvira um diaalgum falar. Queria conhecer outras gentes almde um gamb e de um bugre, queria conhecer ou-tras mulheres, mamar noutras tetas e, enfim, saberde que trastes se compunha o mundaru que co-meava ms all das canchas de osso e dos bolichosda Vila do Boror. Um dia, um dia distante quem saberia? , talvez at voltasse. No pelovelho gamb, que aquele no valia um caracoles emerecia era bater de uma vez com a alcatra em choprofundo. No pela chacrinha, que nem era deles,nem mesmo por Ana: que fosse a pobre mana en-frentar seu destino. Voltar para subir o cerrito depedra nos fundos do campinho, para atirar umaflor na cruz da velha morta, de quem, agora maisdo que nunca, sentia tanta saudade.