Dos usos da palavra‘lógica individualizante’, ela própria, movida por uma ética de mercado....

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10 Macaé, n.7, p.10-21, jul./dez. 2009. http://www.fsma.edu.br/visoes/principal.html Dos usos da palavra: dos signos à Proxemia e Parresia como Tecnologias na Educação Resumo - O presente artigo vem trazer como campo problemático os usos da palavra e suas ressonâncias no campo da educação. Metodologicamente, o artigo se divide em dois eixos: o primeiro apresentando algumas condições históricas que utilizaram como tecnologia os usos da palavra, com objetivos bem demarcados. Apresentam-se os usos da palavra como mnemotécnica a serviço das culturas orais, os usos da palavra como tecnologia cosmológica para a construção de uma visão racional do mundo, os usos da palavra como experiência política e coletiva, os usos da palavra como forma de se dizer a verdade. O segundo eixo apresenta as relações entre os usos da palavra para a produção do discurso competente e suas ressonâncias na cotidianidade da educação. Por sua vez, problematiza-se sobre os usos da palavra como a possibilidade de uma política de vínculos para além das aprendizagens das competências curriculares. Ao final, analisam-se possibilidades de entrelaçamentos entre a produção de uma razão sensível, movida pelos conceitos de proxemia e parresia. Conclui-se que as políticas educacionais, que privilegiam as aprendizagens de competências técnicas, ligam-se ao projeto de uma ‘lógica individualizante’, ela própria, movida por uma ética de mercado. Palavras-Chave: Palavra, Discurso, Competência, Parresia, Proxemia. Abstract - This paper brings to discussion the troublesome field of word use and its resonances in education. It is divided into two parts: the first one presents historical contexts in which word use was employed as technology, having well traced objectives. The word used as a technique that favored oral cultures, the word used as a cosmologic technology for building a rational view of the world, the word used as collective and political experience, and the word used as a way of telling the truth. The second part presents the relationship between the different uses of the word in order to produce competent discourse and its resonances in everyday education. The uses of word are also brought up as possible ways of creating bonds that go beyond the learning of curricular competences. We also analyze the possibility of connections in the creation of sensible reasoning, supported by the concepts of proxemia and parresia. We have concluded that educational policies which prime for the learning of technical competences are related to an individualizing logic which is pushed forward by a market ethics. Keywords: Words, Speech, Competence, Parresia, Proxemia. 1. INTRODUÇÃO alavras. Através das palavras um mundo desconhecido vai se fazendo „corpo‟. As experiências, na relação com o mundo, vão se traduzindo em signos escritos, falados, cantados, poetizados. Fazer a leitura do mundo, expressar desejos, idéias e emoções mediados pela experiência expressiva das palavras será produzir sentidos: sempre provisórios e em estado de „gestação‟. Por vezes, o sentido de um estado emocional virá num momento mais adiante. Nem sempre conseguiremos fazer o „parto‟ dos nossos sentidos num tempo imediato. Cabe destacar que há 5.000 anos se produzia na Mesopotâmia um acontecimento maior para a história do mundo: os homens escreviam suas experiências (MANIACZYK, 2009). Essa nova técnica irá movimentar a humanidade numa aventura que vem contribuir para a consistência comunicacional humana. Experiência que, depois dos 60.000 anos de origem da linguagem, vem propiciar a „complexificação‟ das experiências sonoras humanas, evoluindo na direção dos signos escritos como forma expressiva de comunicação. Novos sistemas de signos, P PAULO DE TARSO DE CASTRO PEIXOTO Professor da Pós-graduação em Práticas Transdisciplinares, Educação, Saúde e Violência FUNEMAC - Macaé (RJ) Professor Convidado do Curso de Especialização em Saúde Mental ENSP/FIOCRUZ Rio de Janeiro (RJ).

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Macaé, n.7, p.10-21, jul./dez. 2009.

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Dos usos da palavra: dos signos à Proxemia e Parresia como

Tecnologias na Educação

PAULO DE TARSO DE CASTRO PEIXOTO

Resumo - O presente artigo vem trazer como

campo problemático os usos da palavra e suas

ressonâncias no campo da educação.

Metodologicamente, o artigo se divide em dois

eixos: o primeiro apresentando algumas condições

históricas que utilizaram como tecnologia os usos

da palavra, com objetivos bem demarcados.

Apresentam-se os usos da palavra como

mnemotécnica a serviço das culturas orais, os usos

da palavra como tecnologia cosmológica para a

construção de uma visão racional do mundo, os

usos da palavra como experiência política e

coletiva, os usos da palavra como forma de se

dizer a verdade. O segundo eixo apresenta as

relações entre os usos da palavra para a produção

do discurso competente e suas ressonâncias na

cotidianidade da educação. Por sua vez,

problematiza-se sobre os usos da palavra como a

possibilidade de uma política de vínculos para

além das aprendizagens das competências

curriculares. Ao final, analisam-se possibilidades

de entrelaçamentos entre a produção de uma

razão sensível, movida pelos conceitos de proxemia

e parresia. Conclui-se que as políticas

educacionais, que privilegiam as aprendizagens de

competências técnicas, ligam-se ao projeto de uma

‘lógica individualizante’, ela própria, movida por

uma ética de mercado.

Palavras-Chave: Palavra, Discurso, Competência,

Parresia, Proxemia.

Abstract - This paper brings to discussion the

troublesome field of word use and its resonances

in education. It is divided into two parts: the first

one presents historical contexts in which word use

was employed as technology, having well traced

objectives. The word used as a technique that

favored oral cultures, the word used as a

cosmologic technology for building a rational view

of the world, the word used as collective and

political experience, and the word used as a way of

telling the truth. The second part presents the

relationship between the different uses of the word

in order to produce competent discourse and its

resonances in everyday education. The uses of

word are also brought up as possible ways of

creating bonds that go beyond the learning of

curricular competences. We also analyze the

possibility of connections in the creation of

sensible reasoning, supported by the concepts of

proxemia and parresia. We have concluded that

educational policies which prime for the learning

of technical competences are related to an

individualizing logic which is pushed forward by a

market ethics.

Keywords: Words, Speech, Competence, Parresia,

Proxemia.

1. INTRODUÇÃO

alavras. Através das palavras um mundo

desconhecido vai se fazendo „corpo‟. As experiências, na relação com o mundo,

vão se traduzindo em signos escritos, falados,

cantados, poetizados. Fazer a leitura do mundo,

expressar desejos, idéias e emoções mediados

pela experiência expressiva das palavras será

produzir sentidos: sempre provisórios e em

estado de „gestação‟. Por vezes, o sentido de um

estado emocional virá num momento mais

adiante. Nem sempre conseguiremos fazer o

„parto‟ dos nossos sentidos num tempo

imediato. Cabe destacar que há 5.000 anos se

produzia na Mesopotâmia um acontecimento

maior para a história do mundo: os homens

escreviam suas experiências (MANIACZYK,

2009). Essa nova técnica irá movimentar a

humanidade numa aventura que vem contribuir

para a consistência comunicacional humana.

Experiência que, depois dos 60.000 anos de

origem da linguagem, vem propiciar a

„complexificação‟ das experiências sonoras

humanas, evoluindo na direção dos signos

escritos como forma expressiva de comunicação. Novos sistemas de signos,

P

PAULO DE TARSO DE CASTRO PEIXOTO Professor da Pós-graduação em Práticas Transdisciplinares, Educação, Saúde e Violência

– FUNEMAC - Macaé (RJ) Professor Convidado do Curso de Especialização em Saúde Mental

– ENSP/FIOCRUZ – Rio de Janeiro (RJ).

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surgindo como tecnologias de „escrituras do mundo‟, construindo o sentido das experiências

através de signos simbólicos escritos, isto é,

pictogramas e ideogramas.

A aventura das escrituras irá ser perseguida

e reinventada por cada cultura. Inventada pela

civilização suméria, a escrita cuneiforme foi

aclimatada pelos acadianos, babilônios,

elamitas, hititas e assírios. Estas outras culturas

se servirão da escrita cuneiforme para traduzir

em signos escritos seus signos orais, no interior

de seus próprios idiomas. Vemos a íntima aliança entre a expressão simbólica que

experimenta „desenhar‟ a palavra, preocupada

em fixar os sons do discurso. Nesta esfera, todo

sistema de escrita vem representar uma íntima

aliança singular entre as expressões imagéticas

do mundo e a experiência „linguageira‟ da

palavra. E após 7.000 anos da invenção da

escrita cuneiforme, vemo-nos na complexa

experiência de traduzir os signos verbais em

outros signos, a tentativa, a um só tempo, de

comunicar, informar, compartilhar, expressar e

produzir a história do nosso presente. Estamos a „palavrear‟ as experiências a

todo instante. Mesmo em silêncio, somos

envolvidos por signos imagéticos em nossa

imaginação que nos verte à sua tradução em

signos ideativos, isto é, traduzindo-os em

palavras que proporcionem sentido. O

movimento perpétuo das mudanças no mundo

nos movimenta, por sua vez, ao encontro de

palavras mais coerentes com aquilo que

sentimos na relação com a vida. „Palavrear‟ a

vida! Signos sonoros movidos por nossas certezas e incertezas. „Palavrear‟ a vida!

Experiência ideativa e emocional, que nos

conduz sempre a novos territórios de sentido, de

significação. A criança que „palavreia‟ suas

experiências no esforço de fazer-se

compreender. A esposa que „palavreia‟ suas

experiências para o marido ocupado com outras

questões. O pai que „palavreia‟ ao filho seus

desejos. Palavração que não faz sentido para o

filho que deseja se conectar com outros signos.

O aluno que divaga e „sonha acordado‟ em meio às palavrações dos professores. Por sua vez,

encontraremos os professores, com todo o

esforço de tentar traduzir o universo científico e

técnico, numa palavração que possa acessar o

interesse dos alunos. Metodologias e práticas

pedagógicas que se empenham em transmitir

suas „palavrações‟ técnicas, relacionando-as à

vida – ou não! Alunos que „torcem‟ para chegar

ao horário do intervalo para poder

„experimentar‟ seus „dialetos‟ vividos no

interior da sua língua materna.

Experimentações da „palavração‟ acerca da vida, criadas e recriadas, cada uma ao seu jeito.

Cada uma de acordo com aquilo que convém num dado momento, num dado contexto.

Mudando o contexto, mudam-se os signos,

mudam-se sentidos, muda-se o texto. Texto que

muda seu tom, seus matizes, dependendo dos

usos da palavra.

E no desafio das experimentações dos usos

da palavra, a educação vem tentando cumprir o

seu mandato de „transmitir a cultura‟ e de

„formar cidadãos‟. Poderemos pensar sobre os

usos da palavra no interior das experiências

educacionais. Usar a palavra, não apenas para a transmissão da cultura, mas também como

forma de produção de vínculos. Usar a palavra,

não apenas para o cumprimento dos conteúdos,

mas também para a produção de encontros nos

quais os conhecimentos técnicos se „misturem‟

com as experiências de vida.

Poderemos indagar: qual é a razão de ser da

palavra na cotidianidade escolar? Qual é o

estatuto dado à experimentação da palavra nos

vínculos que circulam no interior das práticas e

discursos da educação?

Movido por essas inquietações, o presente artigo vem problematizar os usos da palavra em

algumas das suas dimensões e suas relações

com a educação. Serão apresentadas algumas

condições históricas, elas mesmas, utilizando-se

da tecnologia „linguageira‟ da palavra, com

objetivos bem delimitados, nestes contextos.

Num segundo momento, o artigo visibilizará as

relações na cotidianidade da educação,

aclimatando sobre estas, algumas ressonâncias

ou „parentescos‟ dos usos da palavra,

relacionando-as com a primeira parte do artigo. Metodologicamente o artigo se dividirá em dois

eixos:

1 – Primeiro eixo que visibilizará a tetravalência

dos usos da palavra:

1.1 - Dos usos da palavra enquanto a

tecnologia cultivadora de „textos orais‟.

1.2 – Dos usos da palavra com novos

contornos pela experiência da filosofia-

física dos milésios, contribuindo para a

construção de uma visão racional do mundo.

1.3 – Dos usos da palavra como tecnologia da

experiência política e coletiva.

1.4 – Dos usos da palavra como tecnologia de

dizer a verdade.

2 – Segundo eixo que aclimatará os usos da

palavra como tecnologia ao campo da educação:

numa primeira análise, problematizando-se

sobre os usos da palavra para a produção do

discurso competente e, em última análise,

traçando algumas direções para a construção de

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uma política do vínculo e da sensibilidade, por meio da proxemia e parresia.

2. DA CIVILIZAÇÃO ORAL:

Da palavra como tecnologia mediadora entre

o conhecido e o desconhecido.

Transmitir experiências vividas pela

força das palavras. Ao longo da história da

humanidade poderemos encontrar inúmeros

exemplos de civilizações orais. Nelas a

educação era movida pelos usos da palavra

falada. De geração em geração, a cultura era

transmitida por cânticos, por histórias

carregadas de valores e de crenças.

Pelo que precede visibiliza-se a

tentativa de não deixar declinar todos os conhecimentos e práticas de uma determinada

cultura através de tecnologias mnêmicas pelos

usos da palavra.

A este respeito, Vernant (1990, p. 478)

enunciará sobre a cultura grega antiga:

Assim é armazenado, nas vastas composições

épicas, o conjunto do saber, as narrativas

lendárias que funcionam como memória coletiva

e enciclopédia de conhecimentos comuns. É

nesses cantos que se encontra consignado tudo o

que um grego deve saber acerca do homem e do

seu passado – as façanhas dos heróis de outrora -,

acerca dos deuses, das suas famílias, das suas

genealogias acerca do mundo, da sua figura e das

suas origens. (VERNANT, 1990. p.

478)

Podemos imaginar este contexto no

qual a educação era transmitida pela cultura oral. Pessoas atentas às intensidades das

palavras que escorriam das poesias e dos

cânticos, narrados e cantados pelos mais antigos

e mais velhos. Olhares e ouvidos atentos para,

por seu turno, fixarem os conteúdos sensíveis de

uma cultura que se sustentava pelo uso dos

signos orais. As experiências sociais, as

vivências culturais eram „textualizadas‟ em

contextos orais. A experiência da „palavração‟

viria a ser o eixo sobre o qual toda uma

arquitetura de conhecimentos pudesse se estender no tempo.

Em meio às imagens que sobrevêm à

mente, surge uma indagação: quais processos

ocorriam para que aquelas pessoas ficassem ali,

atentas, com tanto desejo de ver, de escutar

aquela paisagem de informações? Colocando-

nos naquele lugar, meio como num sobrevôo no

qual podemos ver de cima o que ocorre,

passando por perto de cada olhar e de cada

semblante atento, compreendemos que a „liga‟

produtora deste acontecimento é complexa.

Palavras que se encadeiam com as imagens das histórias de outrora movidas por

intensas emoções. Paisagem tecida em conjunto

pela força da curiosidade que o jogo das

palavras fazia escorrer a cultura, produzindo a

liga coletiva através das emoções e das imagens

a elas associadas. Paisagem complexa que

produz a composição social, a comunhão, a

sensação de tornar-se um: comum, isto é, Como

Um!

Nesta esfera, vemos que os usos da

palavra farão parte de uma liturgia que proporciona a ligação entre as experiências

terrestres e as forças sagradas. Cultura, tradição,

religião, experiências sociais e emoções se

entrecruzando, encontrando na via das palavras

o caminho para que a educação de toda uma

coletividade pudesse nela mesma, se fazer.

2.1 DOS USOS DA PALAVRA E A ORDEM

RACIONAL DO MUNDO

A tradição filosófica milésia produzirá

um diferente modo de inteligibilidade,

utilizando-se da palavra não mais para a

transmissão da cultura mítica. A palavra

ganhará um novo estatuto com Tales de Mileto

e Anaximandro de Mileto. Os usos da palavra

estarão vertidos à compreensão da phýsis, do real, da natureza, ordenada pela compreensão

racional do mundo.

A filosofia dos milésios produzirá uma

física que narrará uma nova história do mundo.

Edificam a lógica cosmológica que busca

ordenar o desconhecido através de princípios

primordiais que explicariam a vida e todo o real.

Princípios primordiais „físicos‟, nos quais

repousam as explicações „materiais‟ que

fundamentam a vida.

Para Tales, a água será o princípio

primordial. Para Anaximandro, o apeíron, o infinito, o indeterminado. Outros filósofos se

inspirarão nesta outra forma de apreender o real,

utilizando-se da palavra não mais para se falar

de uma cultura ou dos mitos, mas para buscar

os „conceitos físicos‟ que fundamentam a vida.

A palavra ganha um novo „tom‟. Um

„tom‟ científico aparecerá já no século VI a. C.,

produzindo, por conseguinte, uma distinta

maneira de se ver a vida, para uma nova

compreensão dos processos de produção do mundo e sua gênese. Para além das

cosmogonias, pelas quais explicavam a gênese

do mundo pelas narrativas divinas, a construção

da lógica cosmológica dos milésios modulará,

de certa maneira, o olhar sobre a vida e, com

efeito, a relação com a própria vida. Jogos de

composição das palavras movidos pela

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composição de uma outra maneira de olhar os processos viventes. Vernant (1990), a este

respeito afirmará:

O mito narrava a gênese do mundo ao cantar a

glória do príncipe cujo reino fundamenta e

mantém uma ordem hierárquica entre forças

sagradas. Os milésios buscam, por detrás do

fluxo aparente das coisas, os princípios

permanentes sobre os quais repousa o justo

equilíbrio dos diversos elementos de que é

composto o universo. Mesmo se eles

conservam certos termos fundamentais dos

velhos mitos, como o de um estado primordial

de indistinção a partir do qual se desenvolve o

mundo, mesmo que eles continuem a afirmar,

com Tales, que “tudo está pleno de deuses”, os

milésios não deixam nenhum ser sobrenatural

intervir em seus esquemas explicativos. Com

eles, em sua positividade, a natureza invadiu

todo o campo do real; nada existe, nada se

produziu e nunca se produzirá que não

encontre na phýsis, tal como podemos observá-

la a cada dia, seu fundamento e sua razão. É a

força da phýsis, em sua permanência e na

diversidade de suas manifestações, que toma o

lugar dos antigos deuses; pelo poder de vida e

princípio de ordem que encobre, ela própria

assume todos os caracteres do

divino.(VERNANT, 1990. p.479)

No entanto, o novo estatuto da palavra

- não sendo reduzida à transmissão da cultura e da tradição através dos cânticos poéticos e

míticos – precisará tocar a curiosidade da

comunidade de uma nova maneira para que as

explicações cosmológicas ganhem „corpo‟ no

seio da então sociedade grega. Vernant (1990. p.

481) dirá:

Essa mudança de atitude ocasiona toda uma série

de consequências. Para atingir o seu objetivo, um

discurso explicativo deve ser exposto, não

somente enunciado sob uma forma e nos termos

que permitem compreendê-lo bem, mas ainda

entregue a uma publicidade inteira, colocado aos

olhos de todos, do mesmo modo que a redação

das leis, na cidade, torna-se um bem comum para

cada cidadão, distribuído com igualdade.

Despojada do secreto, a theoria do físico

transforma-se assim no objeto de um debate

contraditório, o confronto das argumentações

contrárias – impõem-se desde então como regras

do jogo intelectual. Ao lado da revelação

religiosa que, na forma do mistério, permanece o

apanágio de um círculo restrito de iniciados, ao

lado também da profusão de crenças comuns de

que todo o mundo participa sem que ninguém se

interrogue a seu respeito, define-se e afirma-se

uma nova noção da verdade: verdade aberta,

acessível a todos e que fundamenta em sua

própria força demonstrativa os seus critérios de

validade. (VERNANT, 1990. p. 481)

Pelo que precede, vemos que os novos

usos da palavra pelos milésios vêm dar novos

tons às experiências sociais. A palavra sendo

movida pela curiosidade e pela admiração,

produzindo um jogo no qual a força do

pensamento se alia à força das emoções e da imaginação. O efeito, desta combinação das

instâncias demasiadamente humanas (potência

de pensar, de se emocionar e de imaginar), será

o de produzir maneiras de ordenar e regular a

vida, normatizar a vida, explicando o mundo,

modificando, por sua vez, o próprio mundo e o

modo de se viver a vida. Novas modulações nos

usos da palavra se darão, movendo a vida social

em novas direções.

1.3 – DO GOSTO PELA PALAVRA: DA

PALAVRA COMO TECNOLOGIA

POLÍTICA Continuemos o nosso percurso pela era

grega ancestral, no sentido de podermos

aclimatar, no momento devido, algumas das

suas práticas e saberes à questão dos usos da

palavra como tecnologia no campo da educação.

Imaginemos, neste instante, o momento

histórico do século V a. C. A Grécia dividida em inúmeras cidades Estado. Estas guerreiam

entre si. Cada uma produzindo maneiras de

regular a vida, de proteger-se das invasões

bárbaras. Châtelet (1994, p. 16) nos dirá:

Essas cidades criaram

colônias que logo conquistaram a independência

e fazem agora circular um espírito novo. É

preciso elaborar todo um urbanismo, construir

cidades, instituir constituições, e o pensamento

tradicional está sendo submetido a duras provas.

Para essas colônias, a tradição não basta mais.

Esse espírito remonta até o centro; e, já no século

VI, todas essas cidades são varridas por um vento

de renovação. Isso vale principalmente para

Atenas, onde alguns homens vão inventar o que

será chamado de „democracia‟. Na época a

democracia se define essencialmente pela

igualdade. Todos os cidadãos, quaisquer que

sejam, quaisquer que sejam sua fortuna, sua

origem, a antiguidade de sua família, todos são

iguais perante a lei. Têm o mesmo direito de

intervir diante dos tribunais e de tomar a palavra

nas assembléias em que se decide o destino

coletivo. (CHÂTELET, 1994. p. 16)

Em meio à experiência da democracia grega, a palavra torna-se a „rainha‟

(CHÂTELET, 1994). O estatuto da palavra se

amplia com a democracia ateniense. Esta

moverá as composições de desejos e de idéias

sobre os destinos da cidade. Anteriormente, as

decisões eram veladas em segredo pela

aristocracia ateniense. Quem deliberava as

decisões eram as famílias nobres, anunciando

publicamente ao conjunto da coletividade. Vale

ressaltar que a educação era em geral moral e

militar. A palavra não era considerada como um instrumento para a tomada de decisões

coletivas. A palavra, conforme vimos pela seção

1, era o instrumento de recitação dos antigos

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poemas e cânticos tradicionais que reeditavam o sentimento de glória dos heróis e das origens

misteriosas da cidade. “Na democracia, a

palavra vai impor-se, e quem dominar a palavra

dominará a cidade” (CHÂTELET, 1994, p. 16).

Na realidade, a palavra enquanto uma

arte do debate, vertida às decisões da cidade,

terá como território gestacional Atenas. Cidade

que rechaçará os bárbaros provenientes da

Pérsia em 480 e 490 a. C. em batalhas nas quais

Atenas será a grande vencedora. A partir destas

vitórias, Atenas será considerada poderosa e, com efeito, a sua democracia, servindo como

um modelo. O gosto pela palavra, doravante,

conquistará a Grécia como um todo, conforme

Châtelet (1994):

Pode-se dizer que, partindo de Atenas, o gosto

pela palavra conquista a Grécia inteira. Ao

mesmo tempo nascem técnicas e artes. Vou ser

um pouco pedante e usar a palavra grega

tekhnê. Nessa palavra, há simultaneamente a

idéia de técnica, de um saber aplicado, e a idéia

de arte, de invenção, de produção original. Vou

ter que empregar essa palavra para marcar bem

esses dois aspectos simultâneos de prática e

invenção individual. Esse desenvolvimento da

palavra acarretará o nascimento de técnicas

específicas que serão chamadas depois de

“retórica”. Para ocupar um lugar na cidade

assim, é preciso saber falar, saber convencer.

Como aconteceu muitas vezes em outras

civilizações, o aparecimento de o aparecimento

de uma tekhnê gera o nascimento de uma

profissão. (CHÂTELET, 1994. p. 17)

Decorre deste novo estatuto da palavra,

como a „técnica de colocar bons argumentos‟, a necessidade de a democracia ateniense estimular

a educação de pessoas hábeis e com „poder de

fogo verbal‟ para os debates decisórios, quer

seja para as decisões de assuntos „privados‟, nos

tribunais, quer seja para a tomada de decisões de

assuntos públicos, nas assembléias. Atenas

precisa de „professores da arte de falar bem‟.

Aos professores que dominam a linguagem será

dedicado o título, por Platão, de „Sofistas‟.

Termo que tomou um sentido pejorativo, uma

vez que se associou à condição de falar bem,

mas, uma fala com conteúdo vazio1. Para Platão,

1 No entanto, poderemos encontrar no célebre

livro de Jean Paul Dumont (2004), intitulado

„Les Présocratiques‟, a importante contribuição de Protágoras de Abdera – o primeiro „sofista‟ –

na construção de uma teoria dos valores,

encontrada em seus pensamentos, muito antes

de Nietzsche. Protágoras com o seu

perspectivismo vem fundar a teoria relativista

pela qual a educação, as leis, a moral serão

considerados como os artifícios humanos para

regular a vida individual e social. Artifícios

criados por convenção: o que funda um valor

o sofista será aquele que fala de maneira „sofisticada‟, mas com argumentos enganosos.

No entanto, „os sofistas‟ contribuíram com o

novo estatuto conferido à experiência da palavra

com suas „escolas de política‟. Conforme

Châtelet (1994), o projeto de Platão dedicou-se

essencialmente ao combate dos „sofistas‟:

O inimigo número um é, segundo ele, essa

sofística que excitou os atenienses no

sentido próprio, que os debilitou. Ela os

lançou em empreendimentos duvidosos,

tanto no plano cultural quanto no da

política externa. Entretanto o pensamento

platônico tem o mesmo ponto de partida

que a sofística: a palavra. Platão herdou

essa característica de Sócrates.

(CHÂTELET, 1994. p. 22-23)

A crítica de Platão, em certa medida,

procederá não apenas contra os „professores da

democracia‟, mas, pelos usos que a palavra

ganhará. Num debate “o número de votos não

faz a verdade” (CHÂTELET, 1994, p.23). Será preciso problematizar,

indagar, duvidar daquilo que se debate. Platão,

retomando Sócrates com a sua arte da „ironia‟,

deseja construir problemas, conduzindo-os ao

plano do conceito. A palavra ganhará novas

direções com a experiência Socrático-platônica.

Alcançar a luz, ser um „parteiro das suas

próprias idéias‟ – experiência que Sócrates

conceituará como „maiêutica‟ – será um projeto

que Platão dará sequência, inspirado no mestre.

Orientar a conduta através da experiência com as palavras, compostas de tal maneira que se

tornem indicadores para se alcançar a

construção de „idéias verdadeiras‟: o mundo das

inteligibilidades „claras e distintas‟, isto é, o

mundo das idéias. Projeto que a educação

seguiu!

1.4 – DA PALAVRA COMO MANEIRA DE DIZER A

VERDADE:

Vimos, pelas seções precedentes, sobre

os usos que a palavra foi tomando, dentro de

certas condições históricas. Não será o nosso

interesse desenhar os usos da palavra em todas

as suas dimensões, em todas as condições

históricas, uma vez que seria um projeto

gigantesco que escapa ao campo de nossa

análise.

Desejaremos neste momento investigar

os usos da palavra, ainda, tomando como

referência a experiência grega. Apoiaremo-nos em quatro modalidades de usos da palavra como

não é a sua verdade, mas o fato deste ser

desejado.

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„constructos‟ para o „dizer a verdade das coisas e da vida‟.

Pela experiência grega antiga vemos

aparecer o conceito de parresia.

Etimologicamente, o termo vem significar a

„atividade de tudo dizer‟. A atitude

‘parresiástica’ será aquela pela qual poderá se

dizer tudo. Falar a verdade será a atitude do

‘parresisástico’, falar o que se pensa e o que se

sente, será o movimento desta atitude de estar

no mundo. No entanto, existirá um perigo de se

dizer tudo. Platão, no interior da sua obra intitulada „A República‟, afirmará a

negatividade da postura parresiástica, conforme

Foucault:

De la même façon, dans La

République au livre VIII (...) vous

trouvez la description de la mauvaise

cité démocratique, celle qui est toute

bariolée, toute disloquée, dispersée

entre des intérêts différents, des

passions différentes, des individus

qui ne s‟entendent pas. Cette mauvaise cité démocratique pratique

la parrêsia: chacun peut dire

n‟importe quoi (FOUCAULT, 2009.

p. 11)2.

Platão fará a sua crítica ao modo de

realização parresiástico, combatendo o uso da

palavra esvaziada: a palavra como mera opinião,

vazia de sustentação conceitual. No entanto,

Foucault (2009, p. 13) nos indicará, para além

do estatuto negativo dado a experiência parresiástica, algumas características

importantes para o curso do nosso trabalho.

Primeiro, para que tenhamos o modo de se

realizar a palavra ‘parresiasticamente’ será

preciso a manifestação de uma ligação

fundamental entre a verdade dita e o

pensamento daquele que a diz. Nesta esfera,

quem fala uma „verdade‟ a expressará de acordo

com aquilo que realmente pensa e sente.

Segundo, será preciso uma certa forma de

„coragem‟ naquele que exerce a parresia. Precisará, de certa maneira, uma coragem de

poder expressar sua „verdade‟, endereçada a

2 “Da mesma maneira, na República pelo livro

VIII encontraremos a descrição da nociva

cidade democrática, confusa, toda deslocada,

dispersa entre interesses diferentes, sentimentos

diferentes, indivíduos que não se entendem.

Esta nociva cidade democrática pratica a

parresia: cada um pode dizer não importa o

quê”.

quem escuta, podendo colocar em tensão e em risco a própria relação com a pessoa a quem esta

verdade é endereçada. Dessa maneira, quando a

relação permite o movimento parresiástico,

teremos, por sua vez, a coragem de se dizer a

verdade. No entanto, os usos da palavra para se

dizer a verdade, poderão colocar em risco a

própria relação em questão, ou a própria vida,

uma vez que poderão contrariar as forças

hegemônicas de um dado momento histórico.

Veremos, a seguir, outros usos da

palavra não-parresiásticos, mas que, de certa maneira, se misturam e se confundem com

aquele. Existirá o uso da palavra, com o

objetivo de se dizer a verdade, pela figura do

profeta. O profeta é aquele que é reconhecido

como alguém que „diz uma verdade‟. A sua

verdade é dita, não em nome próprio. O profeta

é o mediador entre os deuses e a verdade que

enuncia. A sua voz enuncia as palavras divinas.

O profeta, por sua vez, fala por uma outra voz,

“sa bouche sert d‟intermédiaire à une voix qui

parle d‟ailleurs. Le prophète transmet une parole

qui est, em general, la parole de Dieu” (FOUCAULT, 2009, p. 16)3. Decorre daí que a

verdade proferida pelo profeta vem de um além,

não de si. A sua palavra será a verdade sobre um

futuro obscuro que vem colorir a subjetividade

de quem recebe esta mesma verdade.

Subjetividade que se colorirá de idéias e

imagens na tentativa de revelar os inúmeros

enigmas da vida.

Um outro uso da palavra, enquanto

modo de „veridicção‟, isto é, como modo de

expressar a verdade na Grécia antiga será aquele do sábio. Este modo de dizer a verdade será

encontrada nos filósofos, mesmo inspirando-se

nos deuses, na tradição, num ensinamento, o

filósofo estará presente naquilo que endereça

aos outros. A sabedoria que ele formula é a sua

própria sabedoria de vida. O sábio manifesta seu

modo de ser e, ao contrário do profeta, ele não é

porta voz da palavra que expressa uma verdade.

Para o nosso interesse, traremos um

modo de „veridicção‟ encontrado na escola e na

Universidade. Este é o modo de „veridicção‟ daqueles que possuem um saber como tekhnê.

Este modo de saber encontra-se naqueles que

ensinam um savoir-faire (saber-fazer). Platão

caracterizará em seus diálogos os médicos, os

músicos, os chefes de armas, os ginastas como

aqueles que detêm uma tekhnê (FOUCAULT,

2009, p. 23). Serão verdades proferidas por

aqueles que possuem a técnica e um saber sobre

3 (...) “sua boca serve de intermediária a uma

voz que fala do além. O profeta transmite uma

palavra que é, em geral, a palavra de Deus.

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esta técnica. Quem possui uma determinada técnica deverá possuir um certo dever de

transmiti-la. Teremos mais um uso da palavra,

produzindo saberes estruturados,

„cientificizados‟, ordenados de uma maneira

„técnica‟. Todo o seu saber e sua técnica estão

ligados a uma tradição. Este saber, esta técnica,

para não desaparecer após a sua própria morte,

precisará ser re-endereçada às futuras gerações.

Encontraremos aqui a função do professor.

De uma maneira esquemática e, para o

interesse do nosso trabalho, falaremos das relações entre os usos da palavra como modo de

„veridicção‟ profética, do sábio, do professor e

suas íntimas relações com a forma

„parresiástica’, dentro da perspectiva que

Foucault nos apresenta.

O „parresiasta’ não é o profeta. Este

último diz a verdade, utilizando o nome de um

outro (um deus) e de maneira enigmática. O

profeta fala de maneira enigmática sobre o

destino e sobre a vida. O „parresiasta’ não é um

sábio que diz, quando quer e muitas vezes

utilizando-se do silêncio, o ser e a natureza da vida e das coisas. O „parresiasta’ não é um

professor. Ele não ensina uma técnica, um

saber, ao nome de uma tradição. O „parresiasta’

não utiliza a palavra em nome de um deus, nem

sobre a verdade do „ser‟ e a natureza das coisas,

nem o discurso da técnica e dos saberes de uma

tradição. O „parresiasta’ expressa um modo de

ser. Este modo de ser é impulsionado pelo jogo

da parresia. Um modo de relação na qual o

dizer a verdade será utilizar as palavras e os

comportamentos e ações de acordo com aquilo que se realmente pensa e sente.

No entanto, poderemos encontrar no

interior de uma mesma experiência as quatro

modalidades de „veridicção‟ (a profética, a da

sabedoria, a da técnica e a do parresiasta) na

experiência de Sócrates (FOUCAULT, 2009, p.

26). Sócrates é um parresiasta! Mas, de onde

ele recebeu a sua função de „parresiasta’? Sua

missão de interpelar as pessoas pela cidade foi

„enviada‟ pelo deus de Delphos: “ocupe-se de si

mesmo”! E Sócrates colocará o problema, advindo da „profecia‟ délfica: “conheça-te a ti

mesmo”! Sócrates começará a sua missão

movida por indicações proferidas pelo deus de

Delphos, intuindo, através desta profecia a

indicação de conhecer-se a si mesmo como

condição de encontrar a própria verdade! Sua

postura „parresiástica’ terá relações com a sua

experiência „profética‟. Da mesma maneira,

Sócrates apresentará uma relação com a postura

do sábio: o governo das paixões, o governo das

ideias, sua abstenção em relação aos prazeres,

sua „suportabilidade‟ em relação às dores e aos sofrimentos da vida, sua capacidade de se

abstrair do mundo. Existe a história de Sócrates completamente imóvel, durante uma batalha na

qual participava, para suportar o frio,

concentrando-se em si mesmo. Outro traço do

sábio encontrado em Sócrates será o do silêncio,

não dar as respostas: Sócrates não fala a verdade

que o outro procura nele! Ele é aquele que

afirma que não sabe! Uma vez que não sabe e

afirmando-se como aquele que „sabe que não

sabe‟, se coloca na posição de levantar

perguntas, de colocar problemas, de indagar, de

duvidar! Postura do sábio que faz cada um encontrar sua própria medida, seu próprio

caminho, seu próprio destino! Mesmo que o

sábio saiba, ele se sente no direito de se calar e

não endereçar ao outro a sua verdade! As

indagações de Sócrates são traços do modo de

ser ‘parresiástico’: colocar bons problemas,

duvidar, questionar, afirmar que sabe que não

sabe!

Por sua vez, encontraremos em

Sócrates aquele que virá ensinar a virtude aos

jovens, dando-lhes conhecimentos necessários,

seja para que possam viver bem, seja para governar a si e governar a cidade, através do seu

modo de ser, do seu modo de interrogar as

questões da cidade, através do seu êthos: da sua

ética de vida. Numa só experiência vemos as

figuras do profeta, do sábio, do professor e do

‘parresiasta’ na experiência socrática.

Experiência que nos movimenta a pensar as

relações da educação, do ensino, das relações

aluno-professor, professor-professor, aluno-

aluno, escola, pais, alunos e os usos da palavra

como forma de vínculo e de produção da parresia.

2 – DOS USOS DA PALAVRA NA

EDUCAÇÃO:

Oceanos de palavras. Subjetividades

que tentam captar ao próximo jogo de palavras

que expressam um novo conceito.

Subjetividades que se adormecem pela sedação

progressiva, advinda do jorro do „dilúvio‟

informacional, mediado pela tecnologia das palavras. Outras atentas, à espreita do que virá.

Tudo isso vivido, num presente, por vezes ativo,

muitas vezes, passivo. Passividade que tenta

ligar o que é dito com a vida. Outros nem mais

se incomodam, acomodam, fatigam. Palavras,

palavras, palavras...

Nesta seção temos como projeto dar a

visibilidade sobre algumas condições dos usos

da palavra na educação. Faremos,

metodologicamente, uma aclimatação entre o

primeiro eixo do artigo com o segundo eixo.

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2.1 – DOS USOS DA PALAVRA PARA A

PRODUÇÃO DA ORDEM DO DISCURSO

COMPETENTE:

Em trabalho anterior, destacamos sobre

a construção de subjetividades mutiladas e sua

íntima relação com a mutilação dos saberes

(PEIXOTO, 2009). Neste contexto, problematizamos acerca da construção de uma

visão de mundo fragmentada que, por sua vez,

tende a produzir relações fragmentadas.

Nesta esfera, vemos que os usos da

palavra como tecnologia informacional da

cultura se filia à perspectiva de um „ensino

enciclopédico‟. Todos precisarão aprender, num

mesmo tempo e a um só tempo, conteúdos

gigantescos a serem „assimilados‟ e „fixados‟.

Compreendemos que o mandato da escola em

transmitir a cultura para a construção de indivíduos competentes tecnicamente e

eticamente, tem, na sua primeira tarefa, se

concentrado. Decorre daí que os usos da

palavra, na sua maior parte, vêm servindo à

tentativa de produzir indivíduos com uma

competência técnica que, por sua vez, será

utilizada para responder aos exames, no interior

das práticas avaliativas da escola e, doravante,

nos inúmeros exames de vestibular, dentre

outros.

A palavra vem, nesta esfera, servir

como tecnologia de transmissão de um saber-fazer. Nesta experiência, o educador cumpre o

papel de transmissor da cultura para a produção

de sujeitos tecnicamente competentes. A palavra

torna-se o instrumento que irá conceituar

tecnicamente os saberes e fazeres do nosso

tempo e de outrora. A palavra será utilizada pelo

educador, principalmente, para a transmissão de

conceitos. Conceitos que, em geral, estão

„desencarnados da vida‟, isto é, estão

dissociados de uma realidade na qual poderiam

se vincular. Os usos da palavra, nestas experiências, vêm focalizar em demasia a

tekhnê, considerando-a como técnica específica

para a construção de conhecimentos

competentes a serem utilizados numa dada

profissão.

Vale ressaltar que a experiência de um

discurso competente, no seu plano técnico, é o

mais valorizado numa sociedade de mercado

que estimula a competitividade, a lucratividade

e a exploração do homem pelo próprio homem.

A palavra, nesta experiência, vem ser tributária

da produção de indivíduos competentes em saberes técnicos! Marilena Chauí (2007), a

respeito da produção do discurso competente,

vem abrir os horizontes do nosso olhar:

O discurso competente é o discurso instituído.

É aquele no qual a linguagem sofre uma

restrição que poderia ser assim resumida: não é

qualquer um que pode dizer a qualquer outro

qualquer coisa em qualquer lugar e em

qualquer circunstância. O discurso competente

confunde-se, pois, com a linguagem

institucionalmente permitida ou autorizada,

isto é, com um discurso no qual os

interlocutores já foram previamente

reconhecidos como tendo o direito de falar e

ouvir, no qual o conteúdo e a forma já foram

autorizados segundo os cânones da esfera de

sua própria competência. (CHAUÍ, 207. p. 17)

Movidos pelas enunciações de Chauí,

compreendemos que os usos da palavra ganham

a sua dimensão, que se pretende competente,

seguindo uma „ordem do discurso‟

(FOUCAULT, 2005). Discurso ordenado, sendo

aquele que será ouvido, compreendido, sentido,

proferido como aquele verdadeiro ou

autorizado. Nesta instância, aqueles que não

utilizarem a palavra, movidos pela lógica do

„discurso competente‟, serão, por definição,

considerados os incompetentes sociais. E

Marilena Chauí (2007), por seu turno, nos dirá a respeito da apropriação de um discurso

competente, invadindo todos os setores da vida:

Como escreve Lefort, o homem passa a relacionar-se com

seu trabalho pela mediação do discurso da tecnologia, a

relacionar com o desejo pela mediação do discurso da

sexologia, a relacionar-se com a alimentação pela

mediação do discurso dietético, a relacionar-se com a

criança por meio do discurso pedagógico e pediátrico, com

o lactente por meio do discurso da puericultura , com a

natureza pela mediação do discurso ecológico, com os

demais homens por meio do discurso da psicologia e da

sociologia. Em uma palavra: o homem passa a relacionar-

se com a vida, com seu corpo, com a natureza e com os

demais seres humanos através de mil pequenos modelos

científicos nos quais a dimensão propriamente humana da

experiência desapareceu. Em seu lugar surgem linhares de

artifícios mediadores e promotores do conhecimento que

constrangem cada um e todos a se submeterem à linguagem

do especialista que detém os segredos da realidade vivida e

que, indulgentemente, permite ao não-especialista a ilusão

de participar do saber. Esse discurso competente não exige

uma submissão qualquer, mas algo profundo e sinistro:

exige a interiorização de suas regras, pois aquele que não

as interiorizar corre o risco de ver-se a si mesmo como

detrito e lixo. (CHAUÍ, 2007. p. 24 e 25)

Decorre desta relação com o discurso competente a produção de determinadas formas

de estar no mundo, de viver o mundo, de se

perceber e de se compreender. As palavras vêm

ganhar um uso especializado, no qual os

indivíduos, passivamente, interiorizam-se às

suas regras, aos seus modos de enunciação e,

com efeito, tomando-as como verdades

incontestáveis a serem vividas. A experiência na

escola, nas suas diversas manifestações, poderá

superar esse uso da palavra como tecnologia de

uma ‘ordem do discurso competente’,

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tomando a palavra, ela mesma, com outras funções, como veremos.

2.2 – DOS USOS DA PALAVRA COMO

POLÍTICA DE VÍNCULOS: RAZÃO

SENSÍVEL, PROXEMIA E PARRESIA

“Você é quem sabe... eu estou aqui pra

aprender com você”! Esta „palavração‟ me

perseguiu durante anos como educador. O lugar

de um „suposto saber‟ me incomodara, muito

antes de escutar esta enunciação. Como aluno, sentia-me numa posição de receber

informações. E, sensivelmente, pude me

aproximar desta experiência do aluno. Meu

corpo sinalizava que existia algo em comum

entre as „palavrações‟ deste aluno com as

minhas próprias experiências na relação com a

educação! Meu corpo „palavreava‟ não com

signos representativos lingüísticos, mas, sim,

através de signos afetivos (DELEUZE, mimeo).

Estes últimos sempre presentes, mas, muitas

vezes, sem espaço, nem tempo para serem compreendidos e compartilhados!

Na minha experiência pessoal, o

professor era aquele que „sabia‟! Suas palavras,

por vezes, transformando-se num „dilúvio

informacional‟, inundava aquele instante,

produzindo algumas idéias: „nossa... como vou

saber tudo isso, somado às outras disciplinas de

tantos outros professores que também sabem

muito?!!”. A sensação nascida destes encontros

era a de considerar os professores como

profetas: eles falam em nome de um saber

superior que eu não conseguia compreender e muito menos „tocar‟ como uma experiência

material. O sentimento era de que eles

anunciavam, com seus discursos, saberes que

garantiriam o nosso futuro. Meio assim como a

experiência profética exposta pela seção 1.4. No

curso dessa experiência, misturavam-se às suas

imagens e seus jogos de „palavrações

conceituais‟ a própria imagem do sábio. A

austeridade do pensamento, uma postura

dirigida ao saber sobre as coisas, uma ascese em

nome da razão e do mundo das idéias! Parecia, por vezes, que tinham poderes de adivinhar o

que eu poderia estar pensando! Nesta esfera,

encarnavam-se em ato as experiências da

profecia, da sabedoria, e da técnica. Três

características que pude experimentar em

minhas vivências „coletivas‟ de aprendizagem.

No entanto, a estas três características,

pude viver em muitos instantes – mesmo que

fossem de relance, como um relâmpago que

passa diante de nós – a experiência que

expandia os momentos em sala de aula: as conversas francas! Experiência da parresia, do

falar francamente, que comparecia nas tiradas

de bom humor de alguns professores. Estes, por

vezes, pareciam se despreocupar com a

obrigação de transmitir a cultura, para se

entregar à experiência coletiva de falar sobre a

vida, falar sobre as experiências que, a um só

tempo, tocam cada um e, com efeito, envolvem

todos nós!

Para além do discurso competente,

alguns educadores faziam o uso das palavras num jogo no qual o vínculo se expandia,

fortalecendo, por sua vez, o desejo de estar com

os outros! Construção de outros conhecimentos,

para além dos já „pasteurizados‟ pelos livros e

pelos próprios discursos dos professores!

Para além do „mercado de

informações‟, desejavam utilizar as palavras

como ferramenta de aproximação, ou como nos

diz Maffesoli, como uma experiência de

„proxemia‟ (2000). Experiência na qual os usos

da palavra eram cultivados para além daqueles

tradicionais e habituais. Experiência que nos retirava de nós para sentirmo-nos num contexto

que nos enlaçava, colocando-nos num território

de interesses comuns! Desta experiência

„proxêmica‟ um outro tipo de razão, ali,

comparecia: uma razão sensível (MAFFESOLI,

2001)! Uma razão na qual, mesmo que de

maneira inconsciente, os conhecimentos, a

cultura nos tocava, nos „abarcava‟, nos tomava.

A „proxemia‟ enquanto experiência da

proximidade propicia a vivência „afetivo-

filogenética‟ que, por definição, é aquela produtora do sentimento de pertencermos a um

grupo, a um coletivo. Segundo Maffesoli (2000,

p. 193 – 194): “A proxemia remete,

essencialmente, ao surgimento de uma secessão

de “nós” que constituem a própria substância de

toda socialidade”. Nesta esfera, inauguram-se

encontros nos quais o ser é compreendido como

coexistência. São ocasiões nas quais

percebemo-nos como obra de arte: construindo

a nossa existência, ela mesma, contribuindo

para a construção de outras existências. Experiência política da virtude que Espinosa

(2000) enunciará como union corporum –

conexiones idearum: união de corpos e

conexões de idéias. Política da sensibilidade:

uma vez que deixamo-nos tocar pela

experiência do outro, ampliando as nossas

capacidades de ser tocados pelo mundo,

ampliando as nossas capacidades de avaliar os

valores, as crenças e as idéias a que estamos

condicionalmente habituados.

Nesta esfera, a imagem que sobrevém à

mente será aquela das culturas orais nas quais, através de cânticos e poesias, uma cultura

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resistia não declinar, não morrer! Resistência, pelos usos da palavra, pelo exercício

„linguageiro‟, atravessando memórias e

experiências cultivadas pela força poética! Vida

compreendida como obra de arte: poiésis,

criação! Vida criada pela abertura ao mundo,

pela abertura à diferença, pela abertura às outras

maneiras de estar no mundo!

E as relações de sala de aula? Quem

sabe poder superar o desejo incessante de

desejar transmitir. Desejar o desejo de, também,

com o outro, compor, construir! Compreender que a cada instante nossa realidade existencial,

na relação com o mundo, constrói-se,

construindo o mundo. Duplo jogo de uma

construção singular e coletiva. Nesta

experiência nossa realidade existencial é parte

de um jogo de construção de novos saberes:

sobre nós e sobre o mundo! Novas ordens de

saberes se expressam quando compreendemos

que estamos produzindo a cultura do presente,

através das nossas formas de estar no mundo, e

nos produzindo, através da cultura na qual

estamos imersos! Afinal, o tempo todo a cultura se faz e se refaz! Desta maneira, poderemos

afirmar que os saberes se constroem

territorialmente, a realidade se inventa e é

“construída por quem crê que a descobre e a

investiga (WATZLAWICK, 1994, p. 17).

Afirmar que o saber se constrói como

invenção de „realidades‟ será dizer que cada

saber deve ser uma „ferramenta‟ que tenha valor

de uso (PASSOS & RAUTER, 2009). Todo

conceito, toda idéia, expressa uma realidade e

esta deverá ter uma função! Um conceito, um saber deverá funcionar em direção aos

problemas que comparecem no presente da

nossa história, senão serão reduzidos à função

de arquivo, de memória. O risco será seu

esquecimento e „menos valia‟ pela falta de uso

coletivo.

Desenvolver as habilidades da

parresia, enquanto tecnologia do falar

francamente será, por sua vez, desenvolver a

habilidade da proxemia. Encontrar a boa forma

de se dizer ao outro aquilo que pensa! Uma ética do cuidado, uma política do respeito!

Desenvolver a habilidade de estar com os

outros, percebendo-se como produtor e produto,

como criador e como ser criado pelos encontros,

será ampliar suas possibilidades de estar no

mundo de forma ‘proxêmica’. Proxemia e

parresia (parresia), como tecnologias, elas

próprias, construindo-se e nascendo-se das

composições na cotidianidade da educação!

Não apenas os usos da palavra no seu

sentido científico, assim como tentaram os

milésios desde Tales de Mileto, não apenas utilizar a palavra como ato de decisões políticas

pela cidade, como faziam os atenieneses, não apenas usar as palavras no seu sentido mítico ou

técnico, mas também utilizar a palavra como um

ato de uma „democracia sensível‟ (FOESSEL,

2008). Experiência na qual o jogo das palavras

reenvia-nos ao mundo sensível das experiências

coletivas, nas quais temos a possibilidade de

sairmos distintos de como chegamos! Território

no qual percebemo-nos movidos por desejos,

por interesses que nos ligam e nos desligam uns

dos outros, aumentando ou diminuindo o nosso

grau de enlaçamento com os outros e conosco. Território tensional e afetivo que comparece a

cada instante e que move nossas idéias, atos e

direções!

Colocar na agenda dos encontros a

abertura ao papel dos sentimentos, dos desejos,

das experiências singulares, podendo, elas

mesmas, tocarem-se, misturarem-se àquilo que

vem sendo reinscrito cotidianamente nas

relações em sala de aula: a insistente formação

de um conhecimento e de um discurso

competente! Construir acontecimentos em sala

de aula, saindo do „negócio liberal‟ de produzir sujeitos competentes com discursos

competentes será um desafio do

contemporâneo!

Desejamos pensar quais serão as

habilidades sociais, afetivas e políticas advindas

desta política dos discursos competentes? Como

imaginar os futuros profissionais, talvez

habilitados por seus conhecimentos técnicos,

mas, incompetentes no plano ético, afetivo e

político! Quais serão os cidadãos, filhos deste

projeto de uma educação vertida ao progresso tecnológico, dirigida às „políticas

conteudísticas‟ e enciclopédicas ligadas a um

mercado que só visa a competição entre os

indivíduos?

DESFIANDO AFETOS PARA NÃO

CONCLUIR

“Gosto de vir pra escola pra conversar

com as pessoas!”. Esta enunciação nasceu de

um momento proxêmico, enquanto educador. Era um momento de entrelaçarmos nossas

idéias, afetos e experiências para pensar os

acontecimentos da educação. A „palavração‟

acima também abriu o horizonte das minhas

idéias acerca da produção de conhecimentos na

educação. A produção de conhecimentos na

educação não pode se reduzir à divinização de

conteúdos que venham servir exclusivamente às

competências técnicas! No entanto, a maior

parte do tempo, os alunos e educadores estão

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„encurralados‟ na experiência de darem conta de conteúdos dirigidos, principalmente, ao

vestibular!

Poderemos indagar: educadores,

alunos, coordenações e pais acreditam neste

modelo de educação que, na sua maior parte,

tem como télos, isto é, como fim, a construção

de um discurso e de um pensamento

competente? Em meio às tantas avaliações

existentes, em algum momento pensa-se em

avaliar o sentido deste projeto de uma educação

que tem como arte a „arte de reduzir cabeças‟ (DUFOUR, 2005) às competências técnicas?

Até que ponto todo mundo acredita, ainda, neste

projeto que tem como „inspiração‟ a Ordem e o

Progresso? Qual é a „ordem‟ que se produz com

a „progressiva‟ idéia de um projeto que se

pretende competente através da primazia de um

discurso competente tecnicamente? Até que

ponto este projeto, movido pela aquisição de

conteúdos enciclopédicos, serve mais para

ocupar crianças e adolescentes, disciplinando-

as, „docilizando-as‟ para que servilmente

obedeçam desde pequenas e não aprendam a contestar criticamente o que se mantém

instituído e decidido por alguns? Até que ponto

a violência que encontramos no interior das

escolas é parte de uma descrença neste modelo?

Estas indagações são movidas por

inúmeros afetos que se misturam às inúmeras

imagens que sobrevém à mente! Muito mais que

respondê-las, tenho a sensação de que mudanças

importantes precisam se operar na sociedade e,

não apenas no interior das relações da educação!

Uma sociedade que se permita sair da passiva „servidão voluntária‟ (LA BOÉTIÉ, 2001).

Servidão que vem servir aos interesses daqueles

que se dizem „representar interesses coletivos‟!

Servidão voluntária que deixa de exercitar um

certo tipo de experiência: a de aprender dizer a

verdade de forma pacífica, sem violência!

Aprender a arte da proxemia, da proximidade,

exercitada no interior das práticas educativas,

como forma de exercício ético-político de

compartilhamento das idéias e desejos, vertidos

aos interesses comuns! Aprender, no interior das práticas educativas, outras competências –

proxêmicas e parresiásticas – que poderão

contribuir para a construção de uma sociedade

na qual o respeito, a sensibilidade ao outro,

sejam experimentadas. No entanto, vemos que

os discursos proferidos em sala de aula, são

prioritariamente aqueles que se dirigem às

aprendizagens das competências técnicas, estão

ligados à construção individual de um discurso

dirigido, talvez, para responder às exigências do

mercado! Mas, sabemos pela experiência, que

apenas aqueles que „docilmente‟ aprenderem a „falar a língua‟ discursiva técnica, „talvez‟,

encontrarão um „lugar ao sol‟ no horizonte dinâmico do mercado! Quem não se apropriar

deste discurso estará fora! Estes serão, como

vimos, os „incompetentes sociais‟: desprovidos

da arte de falar em nome da língua

„especialística‟! No entanto, aqueles providos da

língua „especialística‟, poderão falá-la, mas

assim como um profeta: não falam em nome

próprio! Falam a língua da cultura, serva do

„divino mercado‟ (DUFOUR, 2008), falam em

nome de uma ética de mercado que só faz

dividir, separar, individualizar e competir! Lógica que vem produzir, paulatinamente,

indivíduos que utilizarão outros indivíduos para

chegarem àquilo que desejam! Lógica de

consumo entre indivíduos: não importando mais

as pessoas, importando, sim, aquilo que se

deseja para se alcançar o sucesso profissional

(individual) ou qualquer outro que seja!

Exercitar a proxemia: proximidades

entre as singulares existências! Exercitar a

parresia : aprender a compartilhar a experiência

de falar em nome próprio, respeitando-se as

diferenças. Arte do encontro, política de construir-se a si e o mundo!

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