Dossier Pedagogico a Cacatua Verde

download Dossier Pedagogico a Cacatua Verde

of 84

Transcript of Dossier Pedagogico a Cacatua Verde

co-produo

DOSSIER PEDAGGICOSALA GARRETT 17 de Fev a 27 de Mar 2011 4. a Sb. s 21h30 Dom. s 16h

A Cacatua Verde. Ensaio de Leitura. Dezembro 2010 Lus Santos

FICHA ARTSTICA de ARTHUR SCHNITZLER (1899) traduo FREDERICO LOURENO encenao LUIS MIGUEL CINTRA cenrio e figurinos CRISTINA REIS desenho de luz DANIEL WORM DASSUMPO colaborao para a dramaturgia e encenao CHRISTINE LAURENT assistente de encenao MANUEL ROMANO assistentes para o cenrio e figurinos LINDA GOMES TEIXEIRA e LUS MIGUEL SANTOS director tcnico JORGE ESTEVES construo e montagem de cenrio JOO PAULO ARAJO, ABEL FERNANDO com TOMS CALDEIRA montagem e operao de luz RUI SEABRA guarda-roupa EMLIA LIMA e MARIA DO SAMEIRO VILELA costureiras MARIA DO SAMEIRO VILELA com TERESA BALBI assistente de produo TNIA TRIGUEIROS secretria do teatro da cornucpia AMLIA BARRIGA acompanhamento vocal LUS MADUREIRA direco de cena PEDRO LEITE ponto JOO COELHO auxiliares de camarim PAULA MIRANDA / PATRCIA ANDR apoio operao de som SRGIO HENRIQUES apoio operao de luz FELICIANO BRANCO maquinaria PAULO BRITO / RUI CARVALHEIRA msica LE TEMPS DES CERISES (BERTRAND CANTAT E NOIR DSIR) co-produo TNDM II e TEATRO DA CORNUCPIA com mile, duque de Cadignan JOO GROSSO (Teatro Nacional D. Maria II) Franois, visconde de Nogeant DUARTE GUIMARES Albin, cavaleiro de la T remouille VTOR DANDRADE Marqus de Lansac JOS MANUEL MENDES Rollin, poeta DINIS GOMES Prospre, taberneiro, antigo director de teatro LUIS MIGUEL CINTRA Henri RICARDO AIBO Baltasar/Guillaume TIAGO MATIAS Jules JOO VILLAS-BOAS (estagirio) Scaevola GONALO AMORIM Maurice MIGUEL MELO Grasset, filsofo ANTNIO FONSECA Grain, vagabundo MIGUEL LOUREIRO O Comissrio LUS LIMA BARRETO Sverine, a mulher do Marqus RITA BLANCO Georgette SOFIA MARQUES Michette CATARINA LACERDA Flipotte CLEIA ALMEIDA Locadie, actriz, mulher de Henri RITA LOUREIRO Lebret, alfaiate MIGUEL MELO tienne TIAGO MANAIA (estagirio) Dois jovens nobres TOBIAS MONTEIRO (estagirio mestrado ESTC) e NUNO CASANOVAS (estagirio) T rs mulheres populares ALICE MEDEIROS (estagiria), NEUSA DIAS (estagiria mestrado ESTC) e JOANA DE VERONA (estagiria ESTC) M/12Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

2

A Cacatua Verde de SchnitzlerA Cacatua Verde no um espectculo preparado com intenes pedaggicas. um espectculo para todos os pblicos a partir de uma pequena obra-prima do repertrio dramtico mundial. O autor chama-lhe um grotesco em um acto. Parece um conto moral aparentemente simples. E no entanto levanta tantas questes com pertinncia para a nossa poca e referncias histricas fundamentais que, que facilmente se pode tornar em ponto de cruzamento de muitas temticas e trampolim para muitos campos pedaggicos. No fundo, atravs de um hbil artifcio dramatrgico que retoma a ideia do aprendiz de feiticeiro, lugar comum da cultura ocidental que reproduz o erro de Ado, o Homem querer saber tanto como Deus, ter o seu poder, e por isso ser castigado, o autor representa a Humanidade como uma estranha taberna que uma espcie de pequeno teatro de marionetas vivas dirigidas por um taberneiro-encenador numa situao que o ultrapassa, quando o Mundo tenta deixar de ser esttico, quando numa situao revolucionria a marcha da Histria se cruza com o Teatro. Teatro e Revoluo o eixo temtico da pea. Mas esta interpretao simblica que j anuncia o teatro expressionista, no seu primeiro nvel de leitura uma histria simples que envolve outra temtica cara filosofia, psicologia e ao teatro: a distncia que vai ou no do ser ao parecer. E as marionetas de Schnitzler so verdadeiras personagens com comportamentos humanos tpicos e facilmente expostos pela pea com a lucidez crtica de um analista. O autor, Arthur Schnitzler, austraco, por sinal mdico, como Tchekov, outro grande dramaturgo mais conhecido e da mesma poca, a transio do sculo XIX para o sculo XX, imaginou que um antigo director de teatro, Prospre (bvia brincadeira com o nome do protagonista de uma pea to fundamental para a Histria da Cultura como A Tempestade de Shakespeare, Prospero) numa situao histrica de crise social e econmica, a Frana do fim do sculo XVIII, para sobreviver resolve transformar a sua antiga companhia de teatro cada em desgraa, numa taberna em que os actores fingem que so marginais e criminosos, para que os clientes nobres sintam a excitao de serem atacados e insultados, esconjurando assim o medo da bvia extino da sua classe social, ou seja, o medo de uma revoluo. No fundo, o medo de morrer. E imaginou o que com essa situao base se poderia passar quando a realidade se mistura com a fico e tudo acontece mesmo: a noite da tomada da Bastilha, o 14 de Julho de 1789. A realidade ultrapassa a iluso de Prospre e a prpria mentira revela a verdade que o fingimento j continha: quando um dos actores est a fazer uma representao construda sobre a sua prpria histria, a da sua rivalidade amorosa com um Duque, amante da sua mulher, e inventa que o matou, o prprio Duque entra na taberna e o actor mata-o de verdade. A situao torna-o num heri da Revoluo tornando o crime passional num acto revolucionrio de dio de classe. Mas a realidade revolucionria acaba com a possibilidade de prosseguir o jogo de iluses, acaba com o teatro-taberna, a chamada CACATUA VERDE, e torna-se ela prpria em mentira: aquilo que no passava de uma histria de amor, passou a ser uma histria poltica. Que afinal nunca deixara de ser. S que aquele taberneiro e director de Teatro pensou que, com o seu teatro,Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

3

alm de sobreviver e de isso ser possvel graas explorao dos clientes e aos roubos que efectivamente os seus actores faziam, podia organizar o mundo para seu prprio proveito, podia substituir-se a Deus, ou ao Destino, ou Marcha da Histria, como se queira, e o processo que inventou acaba por incendiar-se e queimar a sua oficina de iluses. Voltou-se o Feitio contra o feiticeiro. Brincava com o Fogo. A anedota pode ser interpretada luz de muitos pontos de vista. Mas afinal um cruel realismo na anlise dos seres humanos e um gosto de revelar os motores dos seus comportamentos aquilo em que assenta a escrita teatral. Esse um dos pontos em que Schnitzler um inovador, coincidindo alis com o trabalho do fundador da psicanlise que co-habitava a mesma cidade, a elegante Viena de ustria dessa fervilhante viragem de sculo: Sigmund Freud. Esta escrita teatral traa retratos de personagens atravs de um novo tipo de dilogos. Tal como em Tchekov, o texto, as palavras que as pessoas proferem em cena, deixa de ser a exposio da prpria personagem para passar a ser o sintoma de personagens que, como na vida, vivem antes de falarem, e que existem tanto quando calam como quando falam e falam coisas que no querem dizer, ou dizem contradies que desconhecem, uma escrita dramtica que conta com um novo conhecimento da linguagem, e uma nova descoberta dos diferentes nveis da conscincia humana, uma escrita que, em suma, conhece por dentro a cabea das pessoas e das personagens que inventa e pe em cena. O autor pe em cena cerca de 25 personagens e com esse grupo que ele naquela noite junta na taberna A Cacatua Verde constri uma pequena imagem de uma sociedade em crise. E nessa taberna que afinal como uma espcie de Caverna de Plato, se revela como uma sociedade a soma de muitos indivduos contraditrios, todos diferentes nas diferentes combinatrias das suas personalidades, como difcil e errado reduzir e classificar uma realidade to complexa como o comportamento dos seres humanos. E como tudo contraditrio, frgil, pouco sublime, grotesco. Como a Histria acaba por apagar as vidas individuais mas como contraditoriamente tambm as constri. Com o processo dramtico de fazer chegar taberna, quase uma por uma, essas diferentes personagens, Schnitzler traa um breve retrato de cada uma, artifcio de escrita que j no permitir olhar como multido a multido que no fim se junta ali. Nunca mais deixaro de ser pessoas. Ao contrrio da multido annima a que a poltica costuma reduzir as multides. At neste ponto a pea pertinente para os dias de hoje e para a sua descrena no sistema democrtico e a consequente desresponsabilizao poltica individual. Mas de um ponto de vista estritamente histrico, de facto da Revoluo Francesa, fundamental para a Histria do Mundo, que se trata. A abordagem da pea por esse ponto de vista tambm ser interessante. H referncias concretas ao que nesses dias se passou. E subtilmente at a evoluo dos acontecimentos se prev. Em ponto pequeno e em dois ou trs traos, percebe-se como ao momento revolucionrio se suceder um perodo de terror com Robespierre no poder e como finalmente chegar a inevitvel normalizao napolenica que, sabemos ns, se desenvolver em ambio imperial. Como dizia Jean Renoir, autor de um dos mais belos filmes sobre a Revoluo, La Marseillaise, as revolues no so a vitria dos revolucionrios, so a derrota dos reaccionrios. Mas com uma habilssima e to perfeita como evidentemente teatral estrutura cnica que tudo isto se consegue, com um sabor a um leve divertimento e com a proverbial leveza do chamado esprito vienense que disto tudo se fala em A Cacatua Verde. E por vezes quase de uma pea de boulevard parece tratar-se. Uma taa de champanhe. Mas j se sabe como a arma da lucidez o humor. Luis Miguel CintraTeatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

4

Miserere. Maquette do cenrio de C. Reis

Miserere. Teatro Nacional D. Maria II/Teatro da Cornucpia. Abril e Maio/2010 Cristina Reis

A Cacatua Verde. Ensaio, Fevereiro/2011 Teatro da Cornucpia /Teatro Nacional D. Maria II Lus Santos A Cacatua Verde. Maquette do cenrio de C. Reis

Assassinato de Le Pelletier, 20 de Janeiro de 1793 Assassinato de Le Pelletier, 20 de Janeiro de 1793

Assassinato de Le Pelletier, 20 de Janeiro de 1793

Assassinato de Le Pelletier, 20 de Janeiro de 1793 Desenho de Swebach-Desfontaines

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

5

ARTHUR SCHNITZLER assim; as histrias tornam-se frequentemente mais sombrias enquanto penso nelas, as personagens que quero descrever parece no terem fora para resistirem sua sorte. preciso estar-se investido de uma serenidade miraculosa ou de uma melancolia soberana, ou ento de um dio grande e nobre contra toda a gentalha, um dio que no teme a solido, para poder escrever comdias. Eu sou. demasiadamente egosta para escrever uma verdadeira tragdia, e demasiadamente irritadio para uma comdia a srio. A Schnitzler, carta a O. Brahm, 1807

Arthur Schnitzler

Pequena cronologia1862 - 15 de Maio: nasce em Viena, filho de um mdico otorrinolaringologista, Dr Johann Schnitzler e de Louise Schnitzler.

Postal com silhuetas de Viena Noite, 1890 Direitos reservados Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

6

1865 - 13 de Julho: nascimento do seu irmo Julius. 1867 - 20 de Dezembro: nasce a sua irm Gisela. 1879 - Arthur Schnitzler comea a estudar medicina na Universidade de Viena. 1885 - Acaba o curso na Escola Mdica de Viena; comea a trabalhar no Allgemeines Krankenhaus (Hospital Central). 1887 - Escreve na revista mdica Internationale Klinische Rundschau (Revista Clnica Internacional), fundada pelo pai. 1888 - Torna-se assistente na Allgemeine Poliklinik, dirigida pelo pai. Visita Berlim e Londres. 1889 - Publica um artigo, Sobre a afonia funcional e o seu tratamento por hipnotismo e sugesto, na Internationale Klinische Rundschau. Conhece Marie Glmer; a relao dura at 1899. 1892 - publicada em livro a srie de peas em um acto, Anantol. 1893 - 2 de Maio: morte de Johann Schnitzler. A. S. sai da Poliklinik e passa a exercer clnica privada. 14 de Julho: estreia da pea em um acto Abschiedssouper, do ciclo Anatol. 1 de Dezembro: estreia de Das Mrchen, com a famosa actriz Adele Sandrock (Dili) na protagonista; incio de uma relao entre ela e Schnitzler que se prolonga at primavera de 1895. 1894 - 12 de Julho: encontra Marie Reinhard, inicialmente uma das suas doentes; comea com ela uma relao em Maro de 1895. Com sintomas de surdez e zumbido nos ouvidos, um problema crescente para o resto da vida de Schnitzler. O conto Sterben (Morrer), o seu primeiro trabalho em prosa de grande envergadura, aparece na importante revista Neue Deutsche Rundschau, sendo publicada em livro em 1895. Outubro: termina Liebelei. 1895 - 9 de Outubro: estreia de Liebelei no Vienna Burgtheater, com Adele Sandrock no papel de Christine. 1896 - Julho e Agosto: estadia na Escandinvia. Encontra-se com Ibsen. 1897 - Fevereiro: termina Reigen (Dana de Roda). 24 de Setembro: Marie Reinhard tem um filho nado morto de A. Schnitzler. 1899 - 1 de Maro: estreia de Der Grne Cakadu (A Cacatua Verde) no Burgtheater (com duas outras peas em um acto, Paracelsus e Die Gefhrtin). 18 de Maro: morte de Marie Reinhard 11 de Julho: encontro com a actriz Olga Gussmann, inicialmente sua doente.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

7

1900 - Reigen impressa particularmente. 25 de Dezembro: publicao do conto Lieutenant Gusl, no importante jornal vienense Neue Freie Press; provoca um escndalo, como stira a um oficial do exrcito, sendo Schnitzler licenciado compulsivamente como oficial na reserva (14 de Junho de 1901). 1902 - 4 de Janeiro: estreia de Lebendige Stunden , um ciclo de peas em um acto, incluindo Die letzen Masken 9 de Agosto: nascimento do filho Heinrich, de Olga e Arthur Schnitzler 1903 - 26 de Agosto: casamento com Olga Reinhard. Primeira edio de Reigen.

1904 - Reigen proibida na Alemanha. 1908 - Publicao da novela Der Weg ins Freie, onde aborda a Questo judaica. 1909 - 5 de Janeiro: estreia de Komtess Mizzi no Deutsches Volksteater. 13 de Setembro: nascimento da sua filha Olga. 1910 - Schnitzler compra a casa, na Sternwarterstrasse, onde viver o resto da vida. 1911 - 9 de Setembro: morte de Louise Schnitzler. 14 de Outubro: estreia de Das weite Land, no Vienna Burgtheater e, simultaneamente, em Praga e vrias cidades da Alemanha. 1912 - 28 de Novembro: estreia de Professor Bernhardi, no Kleines Theater de Berlim. A pea foi proibida na ustria.

Alfred Gerasch e Else Wohlgemuth nos papeis de Medardus e Helena de Valois em Jungen Medardus numa representao de 1910

Der einsame Weg de Arthur Schnitzler. Deutsches Volkstheater, Viena, 1925

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

8

Fritz Kortner no personagem de Professor Bernhardi. Berlim, 1930

Liebelei de Arthur Schnitzler. Berlim, 1931

1914 - Estreia do filme baseado numa obra de Scnhitzler, Elskovsleg, uma verso dinamarquesa de Liebelei Agosto: o eclodir da 1 Guerra Mundial, vai encontr-lo em frias, com a famlia, na Sua. Schnitzler escreve no seu dirio: Guerra Mundial. Runa mundial. Notcia espantosa e aterradora. 1918 - 21 de Dezembro: primeira apresentao na ustria de Professor Bernhardi, no Deutsches Volkstheater. 1920 - 23 de Dezembro: estreia de Dana de Roda no Kleines Schauspielhaus de Berlim. 1921 - 1 de Fevereiro: estreia de Dana de Roda em Viena no teatro de cmara do Deutsches Volkstheater. Proibida pela polcia de Viena em 17 de Fevereiro por ameaa ordem pblica. 26 de Junho: Olga Reinhard e Schnitzler divorciam-se. 1922 - 16 de Junho: primeiro encontro alargado com Freud. 1924 - Publicao de Frulein Else (Menina Else), um conto inovador, um monlogo interior (tcnica j usada em Lieutenant Gusl). 1925- 6 - Publicao de T raumnovelle numa revista. Die Dame. 1927 - 15 de Maro: estreia do filme mudo Liebelei, em Berlim. 1928 - 26 de Julho: suicida-se a sua filha Lili, casada no ano anterior com um fascista italiano, Arnoldo Cappellini. Publicao da sua segunda novela: Therese: Chronik eines Frauenlebens. 1931 - 21 de Outubro: Schnitzler morre em Viena

in Arthur Schnitzler, Round Dance and Other Plays, Oxford Worlds Classics, University Press, 2004, Trad. LLBarreto

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

9

Do boulevard ao realismo psicolgicoNo Modern Kunst, artigo de Hermann Bahr sobre a arte austraca. Trs jovens talentos, Loris Drmann e eu. Sobre mim (ele desculpou-se h umas semanas, pois na altura no conhecia Conto de Fada): Temos portanto A.S., um conversador espirituoso, delicado, divertido, pouco e crupuloso quanto ao estilo, que faz todo o tipo de experincias. Tenho a sensao de que mais profundo do que deixa transparecer e que esconde sob a sua graciosa frivolidade uma paixo sria, ainda tmida, e pudica, porque quer comear por descobrir formas mais slidas. Dirio, 10 de Fevereiro de 1892

Arthur Schnitzler. Por si s, este nome evoca em Viena um mundo que ainda no parou de intrigar todos aqueles que se interessam por este mudar de sculo, a Jahrhundertwende, mais decisivo que um final de sculo, como uma pgina a ser virada. E Schnitzler faz parte daqueles que a viram com resoluo, sem compromisso, sem nostalgia, e no entanto sem optimismo. E nem por isso o encara como um apocalipse, e muito menos um apocalipse alegre. Contenta-se em assistir inevitvel desumanizao do ser, incapaz de a prever, reduzido a constatar, nos recantos mais recnditos do seu pensamento e das suas reaces, a destruio irremedivel do homem. O mdico, grande revelador dos males que atingem o indivduo e a sociedade, recorre escrita, a um trabalho paciente de localizao, para tornar visveis e sensveis os complexos percursos que levam indiferena, muitas vezes afectada, revolta, muitas vezes desesperada, e ao abandono de si mesmo, muitas vezes mortal. Revoltado com os ataques mesquinhos, prfidos, estpidos, de que no pra de ser alvo, Schnitzler no deixa por isso de ser a testemunha lcida e to imparcial quanto possvel do seu tempo. No gosta do jornalismo, nem do folhetim de traos grosseiros; ele reconstri, com detalhes e subtilezas, a realidade que o rodeia. Ser artista, significa: saber polir as superfcies rugosas da realidade ao ponto de a tornar capaz de reflectir todo o espao infinito entre as alturas do cu e as profundezas do inferno. Deste modo, ele oscila entre duas realidades: aquela que pode apreender, e a que recria e retrabalha incansavelmente, at atingir o critrio mximo: a autenticidade das personagens e das situaes. Schnitzler viveu durante quase sessenta e nove anos; grande parte das suas personagens nasceu dos seus mltiplos conhecimentos. Se ele tenta defini-los at aos mais ntimos contornos, no por voyeurismo nem por perverso. Precisa simplesmente de pr vista aquilo que est na base de um sentimento, de uma aco que possa parecer irracional, sondar as motivaes dos seres quando confrontados com uma ou outra situao. O acontecimentoTeatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

10

em si, considera-o como trivial, para se concentrar apenas na aco ou no discurso do indivduo, aco e discurso esses que o distinguem de qualquer outro ser. E essa diferena, isso sabe-o ele, vivida pelo indivduo com angstia, com o pavor do falhano, da morte, num vazio existencial que ainda no se ousava referir. Schnitzler tambm no o refere. Foge a todo o tipo de didactismo. Escolhe para as suas demonstraes seres complexos, em situaes simples, ou que parecem s-lo. Deixar rapidamente para os autores de boulevard o tipo de dilogos agradveis que utiliza, pontualmente, em Anatole (um ciclo de sete peas em um acto, exerccio de estilo inspirado em autores franceses da poca). Ir tambm libertar-se do esquematismo ilustrativo que est na base de A Dana de Roda (ciclo de dez dilogos cuja representao probe durante vinte e cinco anos, por receio, precisamente, de utilizao em estilo de boulevard). A distncia irnica que este tipo de escrita implica perante as personagens no o satisfaz. Inverte o princpio: o acontecimento, a queda, passam a intervir muitas vezes no incio da pea, para melhor mostrar as personagens nas suas reaces. E a partir da, no se raciocina. No se trata de construir uma intriga nem de criar com pinceladas sucessivas personagens que obedeam a determinada lgica. Trata-se de lhes dar vida, e uma qualidade de vibraes que as tornar autnticas. Talvez se possa encontrar aqui a razo pela qual Freud no procurava a companhia daquele que tratava de seu duplo em termos de psicologia das profundezas (Tiefenpsychologie): Schnitzler recusa a sistematizao, a representao de casos-tipo, analisando no entanto os seus sujeitos com um rigor cientfico. As suas personagens so difusas, imprevisveis, ambguas: esse o segredo da vitalidade da sua escrita, e por isso que ainda hoje esto to prximas de ns: as situaes bem podem mudar, mas as personagens mantm-se.

H. Schwartzinger, Arthur Schnitzler, Autheur Dramatique, Actes Sud Papiers, 1982 Trad. Manuel Cintra

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

11

Fotografias de ensaio A Cacatua Verde Lus Santos

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

12

Uma entrevistaEntrevista transcrita por George Sylvester Viereck, no seu livro Glimpses of the Great, 1930

- Que fazia se fosse Deus? - No sei, diz Arthur Schnitzler com um sorriso, mas tentaria fazer melhor. A minha pergunta, feita a partir de uma quadra de Omar Khayyam e de um poema de Heine, divertiu o dramaturgo. -T ransformava, como Heine no seu sonho de todo-poderoso, os rios em torrentes de champanhe, ou estilhaava a ordem triste das coisas como o poeta persa? - No estilhaava, responde o escritor, com um nome bem mais duradouro que o imprio de Francisco Jos e que se iria perpetuar muito para alm da Segunda Guerra Mundial. No, no transformava a gua em champanhe, excepto talvez naquelas zonas ridas dos Estados Unidos. No preciso de ser todo-poderoso. Tenho uma relao excelente com o universo. No sou pessimista. Aos deuses, s faria um reparo: terem feito a vida to curta. Embora tendo ultrapassado em alguns passos o limite dos sessenta anos, nem a sua tez morena, nem os olhos vivos olhos que mergulharam profundamente no corao das mulheres denunciavam a sua idade. Era depois do jantar. Estvamos na varanda da sua casa, situada num dos mais belos bairros de Viena, e contemplvamos o jardim em plena florao. A lua, sobre as nossas cabeas, reflectia a sua imagem plida nos nossos copos de vinho. - Ali, onde a natureza se repete, reconhecemos a sua infinita variedade. Quando um escritor se repete, dizemos que est gasto. Este juzo no tem qualquer fundamento. Tal como a natureza, o escritor procura tambm a perfeio, exercitando-se nos mesmos assuntos. A crtica no parece entender isso. A crtica moderna, tal como os governos modernos, feita com e segundo slogans usados. - um filsofo? - No, responde Schnitzler, acariciando a barba, no sou filsofo. Felizmente que no h um sistema de pensamento filosfico que esgote toda a variedade do universo. precisamente essa variedade, escapando a qualquer sistematizao duradoura, que me faz respirar todos os dias com prazer. A idade estimula-me a curiosidade. Quanto mais envelheo, mais vantagens tiro de qualquer experincia. Cada ano me torna mais rico. - Nunca se aborrece? - O aborrecimento uma garridice, at mesmo uma doena. Reflecte um estado psquico que abomino. Lembro-me de um colega que me disse a propsito da morte de um outro: Gostava de estar no lugar dele. Nunca mais o pude ver por causa dessa pose. Nunca gostei de me armar em blas. Os outros talvez me aborream; sozinho, no me aborreo nunca. A solido no assusta Schnitzler.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

13

- Nunca me aborreceria, mesmo que fosse o ltimo homem vivo do Plo Norte! Pode-se sempre pensar. Pensar o exerccio mais saudvel. - assim que se mantm jovem? - Escrevo sempre pelo menos duas peas ao mesmo tempo. Se me canso um pouco de uma, viro-me para a outra. E, como exerccio mental, leio sempre vrios livros ao mesmo tempo. No quero evidentemente dizer que consigo ler mais do que um livro ao mesmo tempo, mas mergulho ora num ora noutro, para manter a minha frescura de esprito. Schnitzler para toda a gente o dramaturgo do amor. As suas crnicas de amor, divertidas, de Anatole a Regresso de Casanova, fazem dele, no teatro, o intrprete mais subtil da alma feminina. E na prosa pinta o corao das mulheres com um esprito igualmente consumado. Estava espera de que Schnitzler levantasse pelo menos um bocadinho do vu que encobre as paixes humanas a palavra mulher no foi nunca mencionada. Na nossa conversa, abordando cada aspecto do saber e da experincia do escritor, s vagamente aflorou o amor. - Para ns, americanos, o senhor o mais fino dos analistas do erotismo moderno, para quem a alma feminina um instrumento de cordas que toca muito bem. - Lisonjeia-me, diz ele a sorrir, e incomoda-me. Abordo todos os problemas. No posso deixar de falar do amor, principal fonte de todos os actos humanos. Mas no sou um escritor ertico. Interesso-me muito mais pelas questes sociais e pelos problemas da famlia do que pelo erotismo. As pessoas esquecem-se muitas vezes de que escrevi uma pea inteira onde no h uma herona. Falo do Professor Bernhardi, onde o assunto principal a tica mdica. Diga-se a propsito que O Professor Bernhardi foi apresentado em Viena, quando os revolucionrios tomavam a cidade. Apesar da agitao, foi representada. Habituamo-nos a viver numa casa a arder mais fcil atravessar grandes catstrofes do que vermo-nos privados dos pequenos prazeres da vida. Lembro-me de ter percorrido em vo toda a Viena, pouco tempo depois da guerra, para encontrar um bolo de chocolate. - Concorda com aqueles que negam totalmente o livre arbtrio? - No. Afasto-me cada vez mais das minhas antigas ideias mecanicistas. Acredito no livre arbtrio. O homem responsvel pelos seus actos. No seria capaz de viver num mundo sem responsabilidades. Posso decidir em funo da minha vontade, se vou para a esquerda ou para a direita. Moral ou material, o acto auto determinado. O homem senhor da sua alma, mesmo se a liberdade da sua deciso limitada por certas circunstncias ou estorvada pela hereditariedade. E mesmo se na vida os nossos actos so at certo ponto pr-determinados, somos livres na arte; na arte podemos escolher. Posso desenvolver as minhas personagens conforme a minha vontade, posso formar os meus heris como quero. Estou convencido de que sou, tambm na vida, senhor de mim prprio. E se o no for, terei que agir de qualquer maneira como se a minha vontade fosse livre, ou ento a sociedade humana acabaria numa formidvel runa. Se me pede uma prova do livre arbtrio, confesso que no consigo dar-lha. H coisas que no se podem provar, temos que confiar na intuio. Sabe-se que assim. - Em que medida depende da sua intuio? - Na arte, na poltica, nos negcios, no amor, a intuio no tem preo. Ela determina mesmo as nossas amizades. Quando encontro algum pela primeira vez, sei logo se vou ou no gostar dessa pessoa. - Acredita que as suas intuies so determinadas por uma fora divina? - Talvez.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

14

- Pertence a alguma religio? - No. Acredito na santa trindade do esprito, da conscincia e da vontade do livre arbtrio. O esprito inspira, a conscincia guia, a vontade remata os nossos actos. O gnio e a fora so uma expresso do nosso esprito. E da nossa vontade tambm. Como que algum que tenha lido a histria de Napoleo poder duvidar do seu poder? Napoleo queria ser senhor, preparou-se duramente para isso. Chegou mesmo a contratar um actor vedeta, Talma, para aprender a caminhar como um rei. No precisava disso; Napoleo teria governado mesmo se no tivesse havido a Revoluo Francesa. Quando Napoleo perdeu o poder e vivia na Ilha de Elba, continuava a governar; melhorava coisas, dava grandes festas, deslocava-se numa carruagem de seis cavalos e mantinha o cerimonial de uma grande corte. E mesmo em Santa Helena, continuava rei at raiz dos cabelos. - No monrquico? - No sou monrquico nem republicano. Napoleo fascina-me por ser o exemplo mais perfeito de uma personalidade extraordinria. - Suponho que ento individualista. - Sou. Tanto como sou adversrio do bolchevismo. Oponho-me ao bolchevismo no por razes polticas mas porque ele nega a diversidade humana. A diversidade uma lei natural fundamental. Se os homens no fossem diferentes, o homem seria um monstro fora do quadro da natureza. Negar a personalidade negar a cultura. No gosto dos escritores que piscam o olho ao bolchevismo. - Acho que no se deve levar muito a srio esse bolchevismo de salo - O bolchevismo de salo favorece as foras de desintegrao da sociedade. Encora jar o caos um erro imperdovel, um pecado contra o esprito santo da criao. - Parece-me que um homem, graas ao seu conhecimento da alma humana, capaz de penetrar nas camadas mais recuadas do inconsciente, devia ter tendncia para tudo perdoar. - Compreender no significa de modo nenhum perdoar. A expresso que diz compreender perdoar uma inverdade perniciosa. Tudo desculpar renunciar sua prpria personalidade e, portanto, sua opinio. Eu no desculpo tudo. Pelo contrrio, tenho grandes averses. As minhas averses so mais fortes que as minhas simpatias. - Quais so as suas principais averses? - As minhas averses principais, replica Schnitzler com a velocidade de uma rajada de metralhadora, so Wilson, Poincar e Lenine. Esses trs homens foram trs acidentes, runas, catstrofes do nosso mundo. - No inclui Clemenceau? - No. Clemenceau era apenas um pequeno acidente. Mas Lenine responsvel pela desintegrao da cultura. Wilson destruiu o idealismo. A sua derrota tornou o idealismo desprezvel. Poincar incarna o esprito inflexvel do jurista que foi desde sempre uma calamidade para a humanidade. - No estar a ser muito severo para com Wilson? O seu objectivo era grande, mesmo que o no tenha atingido.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

15

- Wilson - disse Schnitzler levantando-se, agitado - era um ignorante. A ignorncia tambm um pecado. Apesar do seu papel como rbitro do mundo, no tinha os mais elementares conhecimentos geogrficos. Sabia mais sobre geografia e histria do que um aluno da escola primria austraco. Um membro do consulado americano em Viena contou-me os exemplos mais incrveis da ignorncia de Wilson. O tratado de paz no seu conjunto, e mais particularmente a sorte reservada ao meu pas, a ustria, uma prova monumental da sua incapacidade. Tenho horror aos polticos de carreira. No percebo como que se pode ser. Mas quem se quiser fazer valer na cena poltica, deve pelo menos saber o seu papel! - Como investigador da vida humana, j alguma vez tentou catalogar os homens segundo o seu tipo e profisso? - Pensei nisso, sim. Escrevi mesmo um ensaio para o explicar com dois diagramas onde tentava inscrever a tipologia humana. O primeiro traa a manifestao do esprito pela palavra; o segundo pelos actos. Cada diagrama feito por dois tringulos separados por um trao: a linha de demarcao entre o positivo e o negativo. No topo do tringulo positivo est Deus, como suprema representao humana. No topo do tringulo negativo, o diabo. Divido os homens em polticos, poetas, padres, charlates, homens de Estado, bandidos e por a adiante. Os tipos classificados ao longo dos lados correspondentes, superior e inferior, tm muito em comum, excepo do signo mais ou menos. Acima da linha, o tipo provido do signo mais, abaixo, do signo menos, o da destruio. O homem poltico, por exemplo, um homem de Estado provido do signo menos. O explorador e o aventureiro, o heri e o vigarista, o construtor e o especulador, o historiador e o jornalista, o guia e o tirano, o cientista e o impostor, o poeta e o literato so as manifestaes respectivamente positivas e negativas das mesmas qualidades. O homem de Estado pode ser forado a adoptar as prticas do homem poltico. O homem poltico pode s vezes, raramente, elevar-se sabedoria do homem de Estado. O literato pode, sob o choque de uma experiencia humanamente forte, criar uma grande obra. Isso impede que esses tipos sejam claramente desenhados. Com o tempo, ningum escapa ao seu destino, ser ele prprio. Uma pessoa pode dissimular as suas qualidades, camuflar a sua natureza verdadeira, mas acabar por se trair e a sua grandeza ou a sua franqueza ir domin-lo. ao tipo positivo que o mundo deve o seu progresso. Criam valores eternos. O tipo negativo, esse habitualmente um entrave para o homem. A sua obra destruidora ou passageira. - Essa diviso compreende tanto homens como mulheres? - No domnio do esprito no h sexo, diz-me Schnitzler, desdobrando minha frente um esboo com aquela curiosa partilha. No leve este esquema muito a srio. A natureza recusa deixar-se reduzir a regras. Ningum consegue encerrar o esprito do mundo num nico pensamento. O meu diagrama apenas uma tentativa de ver melhor, para mim, no um raciocnio definitivo. Pelo menos pode perceber a minha averso por Wilson, Poincar e Lenine, porque incarnam o triunfo do negativo; so filhos do caos e no de Deus. - As suas simpatias so to fortes como as averses? - As minhas simpatias so menos fortes, mas mais alargadas que as minhas averses. - Admira algum homem de Estado ou algum poltico da Europa? - No.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

16

- Quais so os autores contemporneos mais importantes na Alemanha e na ustria? - Gosto de Thomas e Heinrich Mann. Hofmannsthal um grande poeta. Wassermann um grande romancista. Atribuo a grandeza de Thomas Mann pacincia que ele tem para cultivar as vinhas do Senhor. Trabalhou mais de doze anos na sua Montanha Mgica. H um grande nmero de autores que admiro na Alemanha, na ustria e noutros pases. impossvel enumerar toda uma literatura numa entrevista. - Entre a nova gerao, h algum autor a que se possa chamar grande? Schnitzler nega com a cabea. - difcil dizer. No leio a dcima parte, provavelmente, nem mesmo a centsima do que se edita. possvel que um grande nmero do que significativo ou importante me escape. A experincia ensinou-me a desconfiar das grandes descobertas. Antigamente, as pessoas hesitavam em reconhecer um gnio, com medo de admirarem o que no merecia. Hoje aclama-se cada novo autor, com medo de perder quem for marcado pelo selo divino. Isso faz explodir uma gerao de pretendentes e de falsos deuses na literatura e na filosofia. - H muitos autores novos da Alemanha e da ustria que so reconhecidos na Amrica. - Fico contente com isso. S espero que a Amrica altere os seus direitos de autor para proteger finalmente os autores que admira. Tenho pedido muito dinheiro pelo facto da Amrica no ser membro da Conveno de Genebra para a proteco dos autores. - Gostava de visitar os Estados Unidos? - Gostava de ver a Amrica, mas no gostaria que a Amrica me visse. - A Amrica gostaria de ouvir as suas conferncias. - Poderia fazer uma ou duas se depois pudesse cair no esquecimento. - Que autores americanos gostaria de encontrar? - No estou interessado em encontrar autores, nem na Amrica nem noutro lado qualquer. No se fascinante s porque se escreveu um livro fascinante. - Quantos livros j escreveu? - Trinta e cinco, talvez. A edio das obras completas tem doze volumes. - Quando que comeou a escrever? - O meu primeiro livro foi publicado quando eu tinha trinta anos. Mas comecei a escrever com onze. Penso que todos os assuntos que um autor aborda repousam nele antes de chegar aos trinta anos. - Que que escreveu aos onze anos? - Comecei a escrever a histria da minha vida. Por outras palavras, o meu dirio. Em cada dia da minha vida, registei nele os meus pensamentos, experincias, sem nunca falhar. Numa das suas ltimas estadias em Viena, veio visitar-me. Basta abrir o meu dirio para lhe repetir todas as suas palavras. Acho que tambm falmos dos direitos de autor. - Pensa publicar o seu dirio? - Nunca antes de cinquenta anos depois da minha morte.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

17

- O seu dirio est escrito com a mesma imprudncia que a autobiografia de Frank Harris? - No preciso ultrapassar os limites do bom gosto, mesmo nas confisses. As brutalidades de expresso incomodam o autor e os outros. O esprito do homem como a inconvenincia; se ultrapassar os limites da razo e da decncia, isso to marcante que oculta partes mais importantes de um livro. O meu dirio acompanha a minha evoluo como dramaturgo e como homem. Os meus primeiros modelos eram os franceses. Durante uma visita que fiz a um tio meu em Londres, dei-me conta que tinha lido todos os seus livros em alemo e em ingls. Pus-me a ler os dramaturgos franceses que ele tinha na sua biblioteca. Estes autores marcaram-me bastante. Pode ver traos deles em Anatole e noutras obras de juventude. - Gosta das suas obras de juventude? - O meu ltimo filho sempre o mais querido. Acho que a crtica tende a sobrestimar as minhas primeiras obras em detrimento das mais recentes. Para cada talento a sua imagem. Precisei de algum tempo antes de me encontrar a mim prprio, de descobrir, por assim dizer, a minha prpria imagem. - O que que o levou a afastar-se do naturalismo? - Virei costas ao naturalismo mas no natureza. Converti-me ao ritmo e fugi de uma realidade desagradvel para atracar no pas sagrado do estilo. - Qual para si a sua melhor obra? - Gosto muito de Menina Else; e de O Regresso de Casanova; tambm de O Caminho Solitrio, e Terra Estranha. Esta ltima pea nunca foi representada em Inglaterra nem na Amrica. O teatro americano quer economizar as personagens. Eu preciso de mostrar a vida tal como eu a vejo. Se a vejo cheia de personagens no posso bani-las de uma pea ou de um livro. - Qual a sua posio perante A Dana de Roda, tantas vezes proibida? - Essa pea faz parte das minhas tentativas menos importantes. No entanto, o processo que se seguiu sua proibio em Berlim foi apaixonante. Era a censura quem estava no banco dos rus. Os depoimentos das testemunhas enchiam s por si seiscentas pginas. - Est a trabalhar agora nalguma obra que ultrapasse as precedentes? - No preciso estarmo-nos sempre a ultrapassar. Todo o trabalho criativo tem as suas mars, altas e baixas. Nenhuma mar vai no mesmo sentido. -T rabalha s vezes c fora? - No. As ideias ocorrem-me mais facilmente na minha biblioteca. Nem mesmo sombra das rvores do meu jardim consigo trabalhar. A natureza tem demasiadas vozes estranhas, quase inaudveis, que distraem a ateno. Um relgio ali perto deu meia-noite. - Falmos durante horas, diz Schnitzler, num tom quase melanclico, e no entanto no sei se consegui exprimir-me. Quando preparo um artigo, chego a redigi-lo doze vezes seguidas antes de ficar satisfeito com o resultado. A palavra, sobretudo a palavra dita, enganadora e fugidia.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

18

- Porque ser impossvel para um escritor atingir o carcter definitivo da expresso, encontrar a palavra nica e inevitvel que carregue a sua mensagem? - Porque ns no pensamos nem por palavras nem por imagens, mas por qualquer coisa que somos incapazes de aprisionar. Se consegussemos apanh-la, teramos uma lngua universal a lngua que os homens talvez falavam antes da torre de Babel, antes da confuso das lnguas. O msico, fala uma lngua universal. O sentimento universal. O pensamento pessoal e intransmissvel.

In H. Schwartzinger, Arthur Schnitzler, Autheur Dramatique, Actes Sud Papiers, 1982. Trad. LLBarreto

La Ronde de Arthur Schnitzler, filme de Max Ophls, 1950

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

19

Uma cartaA N. N. Viena, 21.6.95

Caro Senhor: fi-lo esperar muito tempo pela minha resposta queira perdoar-me! No censuro sua pea aquilo que ela pretende exprimir mas pelo contrrio o facto de no exprimir aquilo que desejaria provavelmente fazer. No censuro sua pea que ela descreva um tipo de seres que ainda no existem, mas que descreva seres que eu no vejo, que so apagados e proferem de modo misterioso discursos que no so nem dramticos nem naturais. O Desconhecido tipicamente no dramtico. Era a ele, precisamente, ele que to importante para a ideia da pea, que deveria ter dado corpo e vida. Posso at imaginar grandes artistas que no conhecem Nietzsche, assim como outros igualmente grandes que, embora o conheam, no gostam dele. No interprete mal as minhas palavras: eu conheo-o e gosto dele. O facto de no se tratar de um filsofo, no sentido da filosofia sistemtica, at o aproxima de mim. No entanto, no encontro nele nada que possa, a algum nvel, ter influenciado o meu modo de ver a arte. Vejo hoje em dia tudo o que belo e grande do mesmo modo que antes de o ter lido. O que Nietzsche criou parece-me ser uma obra de arte em si. Venero-o imenso ao nvel (se bem que a alguma distncia) de Goethe, de Beethoven, de Ibsen, de Maupassant ao nvel de Miguel ngelo tenho um prazer a mais desde Nietzsche mas no tenho um prazer diferente daquele que teria tido se no o tivesse lido. decerto provvel que a produo moderna no deixe de sofrer influncias, mesmo em obras importantes, por parte de um to grande esprito mas no reconheo que seja o dever de um poeta deixar-se influenciar por seja que esprito for, como voc parece pensar. No irei contestar a correco das opinies que a sua carta destaca, na medida em que se apoiam em Nietzsche; e nada tenho a apontar contra o facto de voc contrariar os cnones artsticos vigentes se ao menos se cingisse a alguma lei, mesmo uma lei que lhe fosse inteiramente pessoal, uma lei que s tivesse valor para si mas apenas consigo ver no Desconhecido uma incerteza mantida no interior das antigas leis. No peo nem leis antigas, nem seres antigos, nem ideias antigas apoie-se no que entender, puxe fogo s heranas do passado por todos os lados mas d-me alguma outra coisa em troca, algo que esteja vivo, e isso sobretudo se escrever uma pea de teatro. Seja obscuro mas no seja confuso. Existem certamente obras de arte dramticas que esto encerradas num certo nevoeiro mas elas so iluminadas, por lampejos, por uma ideia, e nesses momentos vemos que todas as suas linhas encontram contornos firmes. Tambm voc faz com que por vezes a sua pea seja iluminada desse modo, mas ento, nessa iluminao crua, que vejo eu? Que as linhas tremem, e que h vus poisados sobre os rostos. Com a minhas mais dedicadas saudaes,

O seu Dr. Arthur Schnitzler

In H. Schwartzinger, Arthur Schnitzler, Autheur Dramatique, Actes Sud Papiers, 1982. Trad. Manuel Cintra

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

20

Cartas de amor de juventude ( actriz Maria Glmer)

Arthur Schnitzler, 1891

A actriz Mizi Glmer, 1890

A Marie Glmer

Segunda-Feira [23 de Setembro de 1889]

Oh, se ao menos eu pudesse dizer-te de uma vez por todas, minha querida, o que eu quero dizer-te exactamente se eu conseguisse faz-lo, acabarias por no poder evitar de sentir aquilo que s para mim! Se assim fosse, o que aconteceu ontem tambm no seria possvel. De modo nenhum! Ou achas que ainda terias coragem, nesse caso, de falar em adeus? Trarias na ponta dos lbios, enquanto este outro ser estaria perante ti como um demente e um desesperado, estas tranquilas palavras: No tornaremos a ver-nos como amantes, est tudo acabado! Acabado! Acabado! Mas v se sentes em ti o efeito dessas palavras a mim, quando penso nisso, fazem-me estremecer dos ps cabea como um arrepio ao sentir aproximar-se a loucura! E muito sinceramente! Eu perguntei-te: Ser que devemos separar-nos? E tu respondeste: Sim, melhor! Tu, tu, tu que te penduravas no meu pescoo e que por entre mil beijos me juravas que nada te poderia separar de mim! Tu a quem eu disse mil vezes que representavas a minha nica felicidade!... Tu que declaravas, h algumas semanas: Sim, s agora que a minha vida faz sentido, vivo para ti, e trabalharei para ti! Tu, que descansavas nos meus braos, mergulhada num grande amor que de tudo se alheava! Recusas a mais bela, a melhor, a mais nobre coisa que possa fazer desabrocharTeatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

21

dois seres e isso para - Mas talvez valha muito, aquilo por que poderias trocar - Mas que estou eu a dizer? Faz apenas parte do passado! Quero dizer, aquela noite horrvel com aquelas ideias horrveis essa noite em que compreendi vrias coisas que me eram at ento incompreensveis! Que m impresso de mim no terei podido evitar de te dar!... Mas no podia agir de outro modo! Teria sido sem dvida muito viril afirmar: Hesitas, pois bem! Sendo assim, vou-me embora! Mas eu no podia, no queria ir-me embora. No estavas a falar a srio. Era apenas a reaco aos momentos de contrariedade e eterna influncia de todos os outros. No foste tu quem disse uma parte dessas coisas! No, no possvel! No verdade! No achas, Mizi? Tu, a minha doce e fiel amiga, nunca poderias ter sado de casa com essa ideia j pronta: - Bom, vamos acabar com estas turbulncias l em casa; melhor dizer-lhe adeus a ele Estavas confusa, disseste algo diferente do que pretendias. No verdade? Mizi! E tudo est bem outra vez! Quando nos despedimos, beijaste-me com lbios to escaldantes, e havia nos teus olhos um brilho de amor eterno! Quando as moas nos querem abandonar, no nos lanam um olhar assim! E no entanto, a dor que me vem desse pensamento est para alm das palavras: fui eu que te arranquei essas ltimas frases! estavas to decidida: no foi uma vez, mas dez vezes que me disseste adeus! Se eu tivesse mesmo partido de uma vez por todas no me terias perseguido; terias voltado para casa e terias pensado com orgulho: Acabou se estou decidida. Mas fui eu quem no aceitou. Minha terna amiga tive a sensao de estar prestes a perder a razo. No posso acreditar nisso, combato essa ideia com toda a fora do meu infinito amor a ideia de ter realmente vivido o dia de ontem. Diz-me por favor que apenas o sonhei! Diz-me que s acordei nos dois ltimos minutos, quando eras de novo o terno anjo aos ps do qual eu teria querido cair de joelhos, cujas palavras me fazem feliz feliz como uma maldio! No posso imaginar uma vida depois disto, uma vida sem poder esperar as tuas palavras, os teus beijos, o teu amor. E tu amas-me! Devias ter-me dito antes que no me amavas! E se me amas, no deves acreditar que esse amor deva ceder presso de outros elementos. Tambm no podes acreditar que um amor como o nosso te diminua. Oh, minha Miza, isso no seria amor! Talvez os meus desejos sejam loucos, mas penso que se verdade que me amas como eu te amo, ento esta noo de que ns, tu e eu, somos feitos um para o outro, esta noo no pode deixar de te absolver de toda a parte m do que ests a viver. Senti uma sensao to desgraada ontem, quando aps o meu discurso que tinha demorado horas te mantiveste tal como chegada Terna amiga! Aquelas palavras: Mais vale separarmo-nos hoje faz com que as esquea, pois enlouquecem-me! No possvel que tenhas querido dizer isso. E neste mesmo instante, j ests de novo a ser pressionada! E recomeas a ceder! E pensas outra vez: - Sim, os outros tm razo; mas ele no. E pensas: Mais vale ter paz em casa, e conforto para estudar paz no corao. Mas o que eu te disse, eu que te adoro, j o esqueceste de novo. Esqueceste que s a minha felicidade, esqueceste que sacrificamos a nossa juventude perante regras decrpitas, que enxotamos como um morcego essa felicidade que nos pertence e que entrou pela janela borboleteando com as suas asas multicoloridas, em vez de permitir que ele nos venha envolver, zumbindo docemente, com as suas cores maravilhosas. Sim, fechas a janelita, encerras-te no teu quartito, e l fora, a borboleta afasta-se para muito longe. E nunca mais a poderemos apanhar!

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

22

Mais tarde.

Tentei trabalhar! Ler! Estudar! Escrever! Em vo! Os livros e os manuscritos esto espalhados minha frente como mscaras mortas, nem um sopro de vida emanam para devolver energia aos meus olhos cansados. Levantei-me e sentei-me, ali, no sof, na minha secretria, e tentei pensar. Pensar! Estou bloqueado; passo o tempo em divagaes. sempre o mesmo sentimento que me pesa no esprito e o esmaga um sofrimento perturbador, sem igual e existe uma jovem, uma terna amiga , que o pode dissipar com um s sopro, enxot-lo com um beijo, um simples olhar! Acabo de ler a tua ltima carta, que s recebi hoje ao meio-dia; diz no final: Sou tua e desejaria fic-lo eternamente E quando penso no que foste capaz de dizer, poucas horas depois de ter escrito isso! Minha querida, venho suplicar-te: faz luz dentro de ti! No te autorizes a viver nessa miservel incerteza, que vai acabar por me enlouquecer! Eu sei tens que suportar muitas, muitas coisas. Repara, minha querida: eu no sou cego; isso eu entendo. Nada quero pedir-te: deves dar livremente aquilo que deres. Mas talvez tenhas tido durante estes ltimos dias o pressentimento daquilo que s para mim. No h simplesmente palavras para o descrever. Sofres muito, mesmo muito, e isso muito me di, como bem sabes, minha doce querida. Mas aquilo que do meu lado sofri durante estes ltimos dias e estas ltimas horas, em dvidas, em desespero e em incompreenso, e tudo isso vindo de ti vai muito alm do limite daquilo que se pode aguentar conservando a razo! No posso suportar esta vida. Teria o sentimento de ser o mais feliz dos eleitos se te atirasses ao meu pescoo e me dissesses: Amo-te mesmo que eles l em casa me atormentem amo-te, apesar de tudo, e vamos ficar juntos! Acho que o teu amor no me far mal, nem a mim, nem minha profisso. Acho que o teu amor me far feliz amo-te to fervorosamente, com tanta eternidade como tu me amas. Feliz, sim! Demasiado feliz. - Ou ento, dizes-me: Amo-te, na mesma mas l em casa, eles tm razo e quando penso em ti no consigo estudar, e bem podemos tagarelar um pouco de trs em trs semanas no faz mal Minha querida, lembras-te do mendigo no Filho Prdigo (nessa noite, amavas-me muito!) que pede a Flotwell metade da sua fortuna, e no aceita menos do que isso? - Meu tesouro, apenas te direi mais uma coisa: pensa, ao ler esta carta, que te pego na mo, que te beijo a ponta dos dedos e os teus olhos. Uma s coisa te digo: amo-te! E se achares que este amor, que aquilo que j senti de mais maravilhoso, de mais intenso, est a perturbar o rumo da tua existncia, nesse caso, afastar-me hei calmamente desse caminho que o teu e que tu percorres, mas num recanto, sem sequer roar no rebordo do teu vestido, continuarei a amar-te, calado e triste, e no entanto s vezes a lembrana desse pensamento ir fazer-te tremer. Porque que nos separmos? Loucura! Loucura! Meu tesouro doce e terno, beijo-te nos lbios!

A.

Que ests a fazer? Estas ltimas linhas escritas por baixo da tua janela no te vi, estive l s seis, s sete horas, e agora. Adeus, minha bem-amada!

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

23

______________

A Marie Glmer

[18].11.90

Percorro mais uma vez a tua ltima carta, pela terceira, quarta, quinta vez verdadeiramente incrvel! Isto vindo de ti, minha cara, minha amiga sinceramente afectuosa? Minha querida, vou fiar-me intensamente nas tuas palavras; no quero submet-las a nenhum exame cruel mas o que eu agora tenho para te dizer, s tu que me obrigas a isso pois no posso suport-lo, no suporto que me faas representar esse papel. Vejamos: da tua carta conclui-se tu no o afirmas explicitamente mas conclui-se com perfeita evidncia agora preciso de ser completamente sincero, preciso de falar justamente segundo os sentimentos que tenho que consideras egosta, ou digamos deselegante e comodista o facto de eu no pedir a tua mo. Ser que eu te atribuo intenes diferentes das tuas? No transcrevo-te aqui os excertos que me levam a essa concluso: Se eu recusar um bom casamento, ser um sacrifcio etc. e mais adiante: Eu no falo nada dos meus sacrifcios, e j to disse, tu representas para mim uma confirmao suficiente das tuas reais intenes. Outro excerto: Tu, naturalmente, hs-de evitar pr ao corrente do que quer que seja as pessoas da tua famlia. Outro excerto, menos significativo: O que que vais fazer da prxima vez que a minha me te perguntar: Quer casar-se etc. Por favor! Vais esconder-lhe o que impossvel eu prpria dizer-lhe? Que fars tu? J que parece ultrapassada a poca em que o meu amor te bastava, e que a tua confiana na eternidade desse amor ignoro totalmente por que razo parece fraquejar no posso evitar de te explicar as razes do meu comportamento, embora te considere suficientemente nobre para as vires a entender sozinha. Mas tu no o fazes. No, queres ouvi-las da minha boca. Pois bem, ouve-as! Pr ao corrente de alguma coisa as pessoas da minha famlia. E de qu, posso saber? Descrevo-te os acontecimentos como no podem deixar de se desenrolar e tenho como dado adquirido que s sempre para mim a nica, a bem-amada, a cora josa amiga. A minha famlia, ento: Quem a rapariga? Faz teatro! Hum. E alm disso, leva uma vida honesta? Sim. Sempre a levou? (O que se segue no por mim, mas pelos outros que eles viro a saber) - Dois amantes; ela abandonou o primeiro, o segundo p-la a fazer teatro, e depois casou-se com outra, mas continuou a sustent-la durante algum tempo. A sua reputao? Pois bem, em geral, dizia-se que ela ia ao teatro encontrar-se com um rico proxeneta ou com um bom partido, o que afinal pode no passar de puras calnias. Certo, e desde a vossa ligao? Ela sempre foi sria e fiel, ela amava-me verdadeiramente; esteve apenas uma vez prestes a casar com outro, o que afinal de contas bem pode vir a suceder. E tu achas que essa rapariga te proporciona, como esposa, um futuro feliz? Sim. Apesar de tudo isso, por se ter transformado. sempre isso que se pensa. Mas enfim, vou cortar relaes com a minha famlia pois quando souberem do teu passado e vo sab-lo jamais daro o seu consentimento. Visto isto, caso-me contigo e apresento-te sociedade. Uma sociedade onde nos pode muito bem acontecer que, num salo em que venhas a ser apresentada como minha mulher, se encontre um homem que j te tenha tido nos braos, um homem que te tenha atirado para cima de um div e possudo,

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

24

na tua casa, enquanto a tua me estava na cozinha, um homem que, quando sairmos do salo, poder continuar a sorrir para si mesmo dizendo-se: - Tambm eu gozei com ela antes dele e no fui o primeiro! Minha querida menina, se entendes que dar prova de amor ao conforto tremer perante a perspectiva dessa horrorosa ignomnia, pois bem, ento no de todo possvel falar contigo sobre isso. Ignoro se ests suficientemente cega para no ver de todo o que tudo isso contm de horrvel o que significa encontrar um homem que foi amante da nossa mulher mas para acreditar que nos possamos pura e simplesmente colocar acima de uma tal coisa, preciso ser doida, nem mais nem menos. Teremos portanto que sair de Viena, muito claro. Talvez seja cobarde por ter vergonha de passear de brao dado na rua contigo, e ouvir murmurarem nas minhas costas: a mulher de S., que antes foi a amiguinha dos senhores F. e G.? Cobarde, cmodo, egosta! E j agora, se a tua me e a tua irm soubessem o que aconteceu antes, no seriam elas as primeiras a compreender, elas, que eu possa hesitar? Pois bem, me dirs tu, se me consideras murcha a um ponto de tal modo irreversvel, porqu, porque que me amas? Porque que no me abandonas? Como que eu posso servir para ti como bem-amada? Vou dizer-to: porque te amo precisamente enquanto no puder viver sem ti. Porque sinto que h em ti qualquer coisa de verdadeiramente bom e santo que se esconde e que se conservou intacto, e que fez a minha felicidade. Porque acho que um dia conseguirei vencer-me a mim prprio, e tomar conscincia de que a lembrana do teu passado pouco mais sentido tem para ti que a lembrana de uns quantos erros. Porque me estou a convencer de que, nos meus braos, um novo amor, algo de melhor, de superior, acordou verdadeiramente em ti, assim como eu senti perto de ti algo de cuja existncia no fazia a mnima ideia. Mas expor-me contigo no meio de um mundo onde h pessoas que vo e vm com as lembranas que tm de ti que te observam lembrando-se das belezas do teu corpo e do deleite da tua embriaguez no prazer que fizeram nascer em ti e do qual partilharam? isso que eu no suporto. Peo-te que penses nisso de uma vez por todas e a seguir ainda consigas ousar dizer-me que eu gosto do meu conforto. Podes perguntar a milhares, a milhes de homens qualquer um sentiria respeito pela minha dor, compreenderia os combates que se travam na minha alma. Tu no! Tu queres provar-me que me amas mais, que me amas de um modo diferente de como amaste os outros homens. No sei se por desejares que eu me case contigo que isso transparece. Oh, minha querida, no h instante em que eu receba mal esse desejo! Com o que se passa em ti agora, sentes-te to pura que para ti tudo est mesmo acabado. Mas na realidade, nada acabou, e outros para alm de mim escutaram os teus suspiros voluptuosos e embriagaram-se com os teus encantos. E quando eu penso nisso, e mesmo que eu te adore e acredite em ti como num milagre, a enorme repulsa que me invade nesses momentos insuportvel. Ainda vs nisso muitas vezes uma censura prfida que possa ter acabado de me atravessar o esprito tornas-te m, enfureces-te contra mim, que te enervo. Se tivesses a mais pequena noo da caracterstica bsica dessa raiva que desaba sobre mim como uma vertigem, como uma desgraa invencvel no ousarias ter esse comportamento de rapariga que me diz por meias palavras: Porque me fazes tantas censuras? Basta que alteres as coisas casando-te comigo. Talvez o meu suplcio fosse menos doloroso (embora seja uma estupidez pensar assim) se, ainda por cima, um desses homens no fosse uma das minhas boas relaes. Gostaria de tornar as nossas relaes mais claras. Quero saber se compreendes finalmente aquilo que a minha situao tem de atroz se ainda pensas que apenas por uma questo de amor prprio exacerbado que eu hesito com receio de te apresentar como minha mulher no seio dessa gente que sabe que te entregaste a outros homens antes do teu marido. Queres provar-me a sinceridade no interesseira do teu amor? Continua a amar-me, depois de eu te ter dito tudo isto. Sabes que eu te amo to infinitamente que esse

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

25

amor nunca poder parar. Mas se julgas poder encontrar um homem que te ame de um amor sem escrpulos se difcil para ti, nem que seja o pressentimento do sacrifcio de te manteres minha ainda por muito tempo, pelo menos at que eu possa partir para sempre, levando-te como minha bem-amada ento abandona-me. Mas nada de mentiras. O meu amor por ti inviolvel e nunca te abandonarei. Se pensas poder ser mais feliz sendo a esposa de outro e no ficar comigo ento casa-te e s feliz. Mas se algo te diz que a tua felicidade est perto de mim e apenas de mim, no sacrifiques essa felicidade. Vais querer expiar, cair aos meus ps com arrependimento mas eu no quero a tua expiao, nem o teu arrependimento, s quero o teu amor e s exijo compreender, como nica prova do teu amor infinito, que podemos ser felizes a ss; mas que encontraremos a morte lutando contra o desprezo do mundo, e o sorriso trocista de dois amantes esquecidos. [sem assinatura]

_____________

A Marie Glmer 29.3.1893

uma coisa humana parar de amar e comear a amar outro ser. humano at enganar algum que nos jurou que, se assim fosse se mataria, e no lhe dizer nada. Quanto a ns, o caso diferente. - Durante anos e anos, eu supliquei-te: S franca! Durante anos, em quase todas as conversas, em quase todas as cartas: No te peo nada, apenas a verdade! J no sou uma criana, e tambm no sou um optimista como que eu poderia exigir o amor eterno de quem quer que fosse! Mas a mim, era-me permitido exigir de ti, que no mentisses durante semanas e meses, que no me enganasses como a mais nojenta das prostitutas, com requinte, que no fingisses, com mil pequenos detalhes que no eram de todo necessrios, a alegria de me ver voltar, a nostalgia de mim, a alegria que te davam coisas que para ti j nada significavam o meu retrato, por exemplo, que est pendurado na parede do teu quarto escrevendo-me cartas de amor empolgadas e indignando-te com a vulgaridade da denunciadora que no entanto, v-se l saber porqu, escrevia mesmo a verdade e que no me tratasses de teu Arthur nem me atribusses todos esses nomezinhos ternos de sempre, enquanto pertencias a outro, enquanto me enganavas e troavas de mim e me rebaixavas com cada um dos teus olhares. Julgo tambm que eu teria aguentado isso como um homem, se me tivesses confessado tudo e se, tal como eu esperava de ti, me tivesses atirado cara um adeus honesto. Isso teria provocado uma grande dor, uma dor infinita; mas no teria desonrado nenhum de ns dois. Mas aquilo que me fizeste tremendo e jamais poder ser consertado. Atraioaste-me da mais miservel das maneiras: enquanto eu te adorava, enquanto todos os meus pensamentos te pertenciam, enquanto acreditava em ti, apesar de todas as dvidas que, diga-se de uma vez por todas, esto na minha natureza e por muitas razes! pelo menos ao ponto de te considerar, seno forte, pelo menos honesta, enquanto que eu [palavras ilegveis] toda a minha vida, todas as minhas alegrias, tudo o que eu queria, tudo aquilo a que eu aspirava julgava eu ento ter realmente encontrado a mulher que representa tudo para ns, uma camarada e uma amante e enquanto tu, nas tuas cartas quotidianas, fazias por sublinhar essa opinio conspurcaste de modo ignbil a minha f e o meu amor. Um tal comportamento deixa atrs de si um rasto de infe-

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

26

licidade para a qual no h palavras. No se trata do tipo de dores que trazem em si a reconciliao; uma infelicidade a que seramos incapazes de pr um fim, porque destruiu consigo tudo o que a vida ainda poderia trazer. No s o meu futuro que est envenenado, tambm todo o tempo que passmos juntos, esse tempo cheio das mais doces e sagradas lembranas tudo isso acabou de repente. Pois eu amei um ser que me enganava vergonhosa e imperdoavelmente como nunca um homem foi enganado uma mulher que continuava a praticar todo esse engano, mesmo numa altura em que no podia deixar de saber que tudo acabaria por vir a lume em plena luz e que no hesitava em continuar a expor-me troa de todos aqueles que o sabiam. Devo dizer-te isso, por pouco que te julgue capaz de ter conscincia da dimenso da dor que pode ficar no fundo do corao, quando um amor como aquele que tenho por ti foi forado a terminar de um modo to vergonhoso, pela mais baixa traio. E no entanto, devo faz-lo, porque a tua ltima carta contm uma censura: a de te ter deixado szinha durante sete meses. As razes pelas quais no te vi durante esse perodo, sempre as soubeste; mas mesmo que no as tivesses considerado suficientes, era-te perfeitamente possvel dizer-me adeus. Mas tu preferiste fazer exactamente aquilo que fizeste, e contar com a bondade de um acaso que nada viesse a revelar-me. E pelo que posso ver na tua penltima carta, terias regressado, tranquila, sorridente e sem vergonha como a amante de um actor quando a poca chega ao fim para os braos de um ser que te adora, e que viu em ti a sua felicidade e a sua honra! Assim melhor, pois teramos que separar-nos de novo dizes tu: no podes deixar-me alimentar nenhuma iluso. Pois bem, se mesmo melhor assim, e se mais vergonhoso aceitar uma coisa por parte de um ser que ammos e que nos ama ou pelo contrrio fazer aquilo que agora tens na conscincia tambm podemos deixar tranquilamente que seja a opinio moral, e em ltima instncia a tua opinio, quem possa decidir. E temos portanto que ficar por aqui; - eu teria pensado em ti com uma tristeza calma, se me tivesses dito h meses atrs: Agora eu amo outro. O que nem tu nem as tuas semelhantes podero jamais compreender o modo como agora penso em ti, e ficarei a pensar em ti enquanto for vivo, pois nunca poderei escapar a esta lembrana atroz.

Arthur

As ltimas informaes que recebi esta manh com provas indesmentveis fazem-me hesitar algum tempo se chegarei a enviar-te estas linhas, tu, a mais baixa das criaturas sob o sol. Pois bem, sempre verdade o que mais habitual dizer-se sobre uma meretriz! E todos os segundos da minha vida que contigo passei, e tantas doces lembranas, tornaram-se outras tantas manchas na minha vida, e terei que corar de vergonha perante todos aqueles que alguma vez encontrei na rua na tua companhia. Acho que aconteceu o que era indito e inconcebvel: a minha repulsa por ti torna-se maior do que o meu amor alguma vez o foi!

In Arthur Schnitzler, Lettres aux amis 1886-1901, Rivages poche/Petite Bibliothque, 1991 Trad. Manuel Cintra.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

27

Fotografias de ensaio A Cacatua Verde Lus Santos

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

28

A CACATUA VERDE

Josef Kaains no papel de Henri na Der grne Kakadu de Arthur Schnitzler, 1899

Der grne Kakadu de Arthur Schnitzler. Renaissance Theater. Berlim, 1945

Der grne Kakadu de Arthur Schnitzler, 1952

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

29

Der grne Kakadu de Arthur Schnitzler. Klaus Kinski no papel de Henri. Encenao de Rudolf Noelte. Freie Volksbhne. Berlim, 1957

Der grne Kakadu de Arthur Schnitzler. Encenao de Pere Planella. Teatre Lliure. Barcelona, Abril e Maio de 1977

Au Perroquet Vert de Arthur Schnitzler. Encenao de Matthias Langhoff. Thatre de la Ville. Paris, 1989

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

30

A Cacatua VerdeUma cartaA Ludwig Fulda (1) 28.11.98 XI Frankagasse 1, Viena Caro Senhor Fulda: A polcia, em Berlim, no autorizou que O Papagaio verde seja representado em pblico no Teatro Alemo. Consequentemente, e em acordo com Brahm, permito-me apresentar-lhe esta pequena pea com vista a uma eventual representao. Brahm, que vai estar de regresso a Berlim no final da semana, poder ter a amabilidade de o informar melhor sobre o assunto; por agora, apenas lhe peo que a leia bastante depressa, e caso tenha tempo, me escreva umas palavras sobre o assunto. Com as mais cordiais saudaes do seu

Arthur Schnitzler.

() Alegro-me de saber que As ltimas Vontades tenham tido alguma aprovao da sua parte. Quanto a mim, s gosto do primeiro acto e certas partes do ltimo. Durante todo o tempo em que a personagem principal est em cena, no gosto da pea. Julgo que ficou completamente impessoal. Durante os ensaios, vieram-me muitas ideias cabea que me teriam permitido melhor-la; - mas parece que eu no sou suficientemente honesto para interromper uma pea durante os ensaios, mesmo quando sei como poderia ser melhorada. Teve muito sucesso em Berlim e em Viena na estreia; em Berlim, saiu de cena rapidamente; aqui, parece aguentar-se. Em todo o caso, no h dvida de que no tem futuro, e isso no se deve de todo sua tristeza - ! Acabo precisamente de escrever outra coisa que me agrada mais: trs pequenas peas O Papagaio verde, a melhor das trs, est a encontrar grandes dificuldades. Em Berlim, foi proibida; e aqui, a censura imperial exige alteraes inconcebveis. A pea passa-se em Paris, na noite da tomada da Bastilha mas querem que eu faa desaparecer o cheiro a sangue. E o assassinato de um duque que nela decorre iria, segundo dizem, desagradar ao pblico. Poderei enviar-lhe tudo isso em breve com prazer, pois certamente que o vai divertir. Neste momento, estou ocupado com uma grande pea fantstica em cinco actos, com a qual julgo estar a abordar novos assuntos. Quem sabe se tudo o que a antecedeu no passava de um dirio ntimo; pelo menos, a partir de certa altura. (Pois houve uma altura, do meu nono ao meu vigsimo ano, em que eu escrevia como um pssaro canta e devo ter sido muito feliz nesses tempos; pois j no me lembro como que o fazia exactamente. Conservei muitos desses textos: dramas, peas de carnaval, e romances cmicos; tudo isso quase totalmente idiota; mas na poca em que eu escrevia essas coisas, nunca senti a necessidade de as mostrar a quem quer que fosse. assim que, de ano em ano, nos tornamos mais inoportunos, mais vis e mais infelizes.) _______1. Ludwig Fulda (1862-1939), dramaturgo alemo, e tambm tradutor. Foi co-fundador, com Otto Brahm, da Freie Bhne de Berlim. A colaborao de Schnitzler com Brahm consolidou a amizade deles. Destitudo das suas funes em 1933 por causa das suas origens judaicas, comeou por abandonar a Alemanha, onde voltou mais tarde, suicidando-se em Berlim a 30 de Maro de 1939.

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

31

A subverso do historicismo em A Cacatua VerdeA Cacatua Verde o nome de um cabar parisiense dirigido por Prospre, um antigo director de teatro reconvertido que conseguiu arranjar uma boa clientela na alta sociedade, propondo todas as noites um divertimento de gnero muito particular. Os cientes, o Duque Emile de Cadignan, o Visconde Franois de Nogeant, o Cavaleiro Albin de la Trmouille, o Marqus de Lansac, com os seus amigos, as esposas ou as amantes, mas tambm gente das letras e bomios, como o poeta Rollin ou o filsofo Grasset, encontram-se no cenrio de uma estalagem para meliantes, facnoras e prostitutas. O divertimento, para estas pessoas da alta e para estes intelectuais, consiste em estar lado a lado com actores que representam com talento os papis de marginais da ral parisiense. Deixam-se roubar por brincadeira, tm um prazer masoquista em ser maltratados por tipos insolentes, deixam-se acariciar por actrizes que fazem o papel de pegas. Pode-se imaginar que A Cacatua Verde tem como modelo alguns cabars de Monmartre do fim do sculo XIX. Por exemplo, o Chat Noir, aberto em 1881 por Rodolphe Salis, onde se encontrava a bomia literria e artstica, lado a lado com os burgueses, em busca de sensaes fortes. Rodolphe Salis recebeu o Prncipe de Gales em altos gritos: Ento meu prncipe, a sua me continua boa?: a anedota tinha ficado famosa. Havia tambm Aristide Bruant no Mirliton, que cantava canes de crimes e cadafalso sem provocar indignao, exaltando Jo lApache, Franois le Grelotteux, Lolo la Gigolette e Nini Peau de chien. Na sua crtica sobre a estreia de A Cacatua Verde, Rudolf Lothar cita tambm o cabar A la taverne ds forats de Papa Lisbonne. Estas aluses aos cabars parisienses do fim do sculo permitem compreender melhor o que Schnitzler quer dizer com a indicao do gnero, Groteske, que acrescenta ao ttulo da pea. Como os clientes dos cabars de Montmartre, os habitus de A Cacatua Verde so mundanos procura de realismo picante. Prospre, o patro, sabe a receita: preciso provocar arrepios em ligao com a actualidade. A aco passa-se em 14 de Julho de 1789. Os temas revolucionrios andam no ar. Os actores d A Cacatua Verde vo assim excitar o pblico representando os populares e cantado canes revolucionrias. No Chat noir, a Alteza britnica era chamada por bom prncipe. Mas a censura imperial de Francisco Jos no teve esse sentido de humor perante a pea de Schnitzler. O director do Burgtheater, Paul Schlenter, tinha feito passar o texto pela censura. Schnitzler tinha sido convocado para ler o texto em voz alta e responder a algumas perguntas. Pediram-lhe para mudar o nome do duque, primeiramente chamado Duque de Chartres, para suprimir alguns Viva a liberdade e corrigir o papel, francamente burlesco, do Comissrio. Schnitzler acedeu aos dois primeiros pontos, mas no suprimiu o Comissrio. A censura deu no entanto o seu consentimento oficial em 26 de Janeiro de 1899. No entanto, o autor iria conhecer os mesmos dissabores que Grillpazer com o seu Treuer Diner se ines Herm: apesar do acordo formal da censura, algumas pessoas da Corte viram com maus olhos o xito da pea. No dia 6 de Maio de 1899, Schnitzler informou Schanitzler de que o prncipe de Liechtenstein tinha pedido ao Freiherr Plappart von Leenheer, o Inspector Geral do k.k, Hoftheater para reduzir ao mnimo o nmero das representaes. Motivo oficial: o carcter licencioso dado pelo autor a uma personagem que devia representar a aristocracia, Sverine, a marquesa de Lansac. Na verdade, so os slogans revolucionrios que inquietam a corte; tanto lhes importa saber se Schnitzler os interpreta letra ou se pertencem ao repertrio dos actores de cabar da Cacatua Verde Na primeira temporada a pea s foi representada oito vezes. Em Setembro de 1899, Schnitzler espanta-se que ela no tenha sido reposta. Depois de uma troca de cartas bastante viva com Schlenther, d-se a ruptura. A pea seguinte de Schnitzler, Der Schleier der Beatrice, foi recusada por Schlenther. Foi preciso esperar por 1905, com a estreia de Zwischenspiel, para que uma nova pea de Schnitzler fosse apresentada no Burgtheater. A Cacatua Verde teve a mesma sorte em Berlim, onde a censura tinha proibido a pea em 26 de Agosto de 1898 (deciso retirada no entanto em 1899). O que no impediu que tivesse uma bela carreira em diversas cidadesTeatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

32

alems. Refira-se que A Cacatua Verde tinha sido recomendada por Georg Brandes, j em Junho de 1899, a Andr Antoine, director do Thtre Antoine, que organizou a sua primeira representao em 1903, no tendo seduzido o pblico francs. Pelo contrrio, Die Gefhrtin, uma das duas outras Einakter do ciclo de Schnitzler, teve na mesma poca um enorme xito no Thatre Antoine. Toda a pea se baseia na confuso entre a iluso e a realidade, o teatro e a vida, o simulacro e a verdade e tambm, portanto, entre a farsa de cabar e a Histria. O achado incontestvel de Schnitzler nesta obra de grande virtuosidade, consiste em comunicar ao leitor ou ao espectador a mesma hesitao, em inspirar-lhe a mesma incerteza que a que perturba as personagens da pea: um jogo ou devemos acreditar? Cada acontecimento, cada palavra relana a questo. Uma perturbao suplementar introduzida pelo processo do teatro dentro do teatro: posto em cena um cabar com os seus actores e os seus espectadores. Ora, o jogo orquestrado por Prospre, o patro d A Cacatua Verde, no tem nada de inocente, porque depressa se nota que cada um escolheu o papel que melhor desmascara a sua natureza profunda. A marquesa Sverine vem Cacatua Verde para se fazer engatar como uma costureirinha de bairro pelos actores da companhia de Prospre; cedo se percebe que, nesse papel, ela no representa um papel emprestado, traindo, sim, o seu verdadeiro carcter. Inversamente, a prostituta Georgette, que representa a mulher fiel, revela-se de facto a mais sincera das apaixonadas. O palco da Cacatua Verde, onde se divertem a representar a revoluo, vai tornar-se teatro de aces tragicamente revolucionrias. A praa da Bastilha, nesse mesmo dia 14 de Julho de 1789, no ser tambm outro palco onde se representar uma farsa gigantesca? Sabe distinguir entre o que somos e o que representamos? [] A realidade torna-se comdia e a comdia realidade, diz Rollin, o poeta. Ao ouvir o rumor crescente que chega da rua, onde a multido ululante se dirige em clera para a Bastilha, o cavaleiro Albin de la Trmouille, a quem Schnitzler d o papel de um jovem e cndido fidalgote de provncia, faz esta pergunta divertida: Que curioso!... Um autntico burburinho; como se houvesse pessoas a correr l fora. Faz tambm parte do espectculo? As autoridades do reino em crise tambm se enganam com a revoluo. Enquanto a multido se enraivece nas ruas, o Comissrio mandado para vigiar o que se passa na Cacatua Verde; quando Prospre grita no fim da pea que a Bastilha foi tomada de assalto pela insurreio, O povo de Paris venceu!, o Comissrio intervm e declara: Silncio!... Probo a continuao do espectculo!. Enquanto Albin se interroga se os acontecimentos do 14 de Julho no faziam parte da engenhosa encenao de Prospre, a Cacatua Verde torna-se subitamente cenrio de um assassinato revolucionrio: o actor Henri, que acaba de saber que o duque de Cadignan seduziu Leocdia, a sua noiva, apunhala o duque. A comdia transformou-se numa sangrenta realidade. A primeira execuo de um nobre aconteceu no palco da Cacatua Verde. Esta mistura inextrincvel de representao com realidade, de iluso com verdade, de sonho com viglia, era um dos temas essenciais de Schnitzler no mesmo ciclo que A Cacatua Verde. Toda a gente conhece os clebres versos que Paracelso diz em modo de concluso:

Was ist nicht Spiel, das w auf Erden treiben, ir Und schien es noch so groB und tief zu sein ![...] Mit Menschenseelen spiele ich. Ein Sinn Wird nur von dem gefunden, der ihn sucht. Es flieBen ineinander T raum und Wachen, Wahrheit und Lge. Sicherheit ist nirgends Uma das realidades que Scnitzler transforma em fico nesta trilogia (Paracelsus, Die Gefhrtin, Der Grne Kacadu) o casamento e o amor conjugal. N A Cacatua Verde, reencontramos o tema vivido por Henri. Estas peas esboam ainda o que poderamos designar como uma Kritik der Aufklrung. Em Paracelsus, Schnitzler mostra todo o poder da psicologia da profundidade e da hipnose, mas tambm os seus limites e perverses possveis. Paracelso, que julgava manipular sua vontade a psique das personagens que o rodeavam, encontra caracteres que lhe podem resistir, e a sesso de hipnose no tem o resultado queTeatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

33

ele imaginara. O mdico hipnotizador aparece como o aprendiz de feiticeiro que sabe muito bem libertar as foras do inconsciente, mas sabe muito menos bem control-las, como um burlo que pe a sua habilidade (ou meia habilidade) ao servio da sua vontade de poder e no conhece a deontologia. A ambivalncia da psicologia das profundezas posta em evidncia: muito mais penetrante que a psicologia clssica, capaz dos xitos teraputicos mais espectaculares, resulta apesar de tudo de uma viso terrivelmente redutora da personalidade humana e pode, nas mos de um cnico, transformar-se em intrujice ou em tcnica de manipulao das conscincias. Do mesmo modo, A Cacatua Verde no fim de contas uma crtica Revoluo Francesa, no fim da qual pouco fica da ideia de revoluo. Carl E. Schorske nesse aspecto muito prudente quando escreve: Schnitzler no toma partido nem a favor nem contra a Revoluo que, para ele, como para muitos dos seus contemporneos liberais, tinha perdido o seu significado histrico. Utilizava este acontecimento apenas como pretexto para a stira da sociedade austraca em crise. O que Schnitzler no pe em causa a corrupo e a injustia do Antigo Regime e a legitimidade da aspirao a uma mudana. Mas ele contesta radicalmente que a revoluo seja o bom meio para melhorar a ordem do mundo. A Revoluo Francesa apresentada n A Cacatua Verde como (para retomar as palavras de Nietzsche num dos fragmentos de Para alm do Bem e do Mal) uma farsa sinistra e suprflua. A nota de Schorske pe em todo o caso em evidncia o bom caminho: no se deve procurar na pea de Schnitzler seja que esforo for de realismo histrico. Os aristocratas franceses que ele pinta so concebidos imagem da aristocracia e da grande burguesia vienense da Jahrhundertwende . O prazer que aquele pblico d A Cacatua Verde toma com o espectculo da sua prpria decadncia e do triunfo das classes perigosas para Schnitzler o maior indcio da sua profunda corrupo moral. Atravs do poeta Rollin a jovem Viena literria que o alvo da stira. Schnitzler apresenta os aristocratas do Antigo Regime sob um ponto de vista muito pouco simptico. Mesmo o jovem Albin, apesar da sua ingenuidade e do seu bom senso provinciano, aparece como prisioneiro dos preconceitos mais conformistas, indignando-se por terem tratado o seu tio, proprietrio rural, como aambarcador. O visconde Franois de Nogeant no tem qualquer iluso sobre as injustias sociais e a misria popular, mas aproveita com cinismo a ordem estabelecida; a sua lucidez tem alis limites e acredita piamente que os actores d A Cacatua Verde so as pessoas mais honestas do mundo e que a clera do povo de Paris no ter consequncias srias. A sua cegueira muito clara quando, a propsito da mmica de Grain, o criminoso verdadeiro que se refugiou n A Cacatua Verde, faz este comentrio: Este muito fraquinho. um amador. Finalmente, confessa a sua incapacidade para compreender os acontecimentos do 14 de Julho de 1789: O povo perdeu a razo, exclama ele no meio do tumulto final. O mais brilhante dos representantes do Antigo Regime, o duque de Cadignan, cujo desembarao e inteligncia sobressaem no meio do seu squito, avilta-se em intrigas amorosas que acabaro por lhe custar a vida. Sonha com uma juventude eterna, com uma vida vivida como se fosse teatro, representando papis; um pessimista que no se cega com a realidade e que s acredita na morte. Incarna o esprito de decadncia que afecta como um veneno final a fina-flor da aristocracia francesa e sobretudo vienense. Aparecem dois intelectuais na pea de Schnitzler: Rollin, o poeta, amigo da sociedade nobre que frequenta A Cacatua Verde, e Grasset, o filsofo, que pertence ao grupo de Prospre, o dono do cabar. Rollin um esteta enftico. A Revoluo que comea no passa para ele de um pretexto para uns versos de p quebrado: v a marcha popular contra a Bastilha Tal como uma onda gigante que rebenta contra a margem, / Funda e ameaadora, a ponto de a prpria Terra, / Filha da gua, se lhe opor . As imagens picas escondem mal a grande confuso de ideias de um sonhador desarmado perante a realidade: Tudo isso me ultrapassa, so as suas ltimas palavras. Quanto ao filsofo Grasset, era uns dias antes um dos oradores mais prolixos da companhia de Prospre, n A Cacatua Verde; presentemente, encontrou um palco mais prestigioso e um novo pblico: representa o papel dos tribunos da plebe nos jardins do Palais-Royal. Em 14 de Julho de 1789 falou s massas depois de

Teatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

34

Camille Desmoulins, anuncia orgulhoso no primeiro quadro da pea. Para Grasset a iluso teatral total: d A Cacatua Verde para o Palais-Royal o mesmo espectculo que continua. Aquele histrio palrador no tem nada a ver com um militante poltico a srio. Vemos isso claramente no ltimo quadro, quando Grasset transforma ali mesmo um crime passional (o assassinato do duque) num acto revolucionrio e grita: Quem trucida um duque amigo do povo! Viva a liberdade!. Em suma, as duas personagens de Rollin e Grasset so caricaturas muito severas do papel dos intelectuais na Revoluo.Schnitzler no mais indulgente para com os sans-culottes da companhia de Prospre. Henri o melhor actor e o mais bonito, admirado pelo duque, provocando cimes nos outros (na representao de 1899, o papel de Henri foi entregue a Josef Kainz, uma estrela do Burgtheater), apaixonado de Leocdia. Mas aquele gnio do teatro um actor desastroso na comdia do amor e, se se torna num assassino revolucionrio, de facto sem o ter desejado. Adivinha-se nele um rousseauniano idealista e sentimental: para desfrutar o perfeito amor com a sua amada Leocdia, vai deixar a cidade corrupta e ir viver para o campo. Quer dar ao seu pblico de aristocratas uma sensao antecipada do fim do seu mundo, mas esse pressentimento traduz-se menos em ideias polticas do que num desejo de fugir da sociedade. O dono d A Cacatua Verde, Prospre, joga um jogo duplo perigoso. Enquanto a explorao do cabar der lucro, contenta-se com o papel de patro e chefe da companhia. Mas est atento: L vir o dia em que a brincadeira se transforma em coisa a srio e eu estou preparado para o caso de, declara ele a Grasset. Prospre um leitor atento dos artigos de Camille Desmoulins, e parece aprovar as suas ideias: Vamos pr o jugo aos que se tomam por conquistadores, vamos depurar a nao. Esta mistura de cinismo mercantil (a Revoluo para Prpsero nomen est omen um espectculo que rende), de hipocrisia sonsa para com a clientela aristocrtica d A Cacatua Verde, e de esprito de vingana pronto a estabelecer a ditadura do povo, faz de Prospre a personagem mais inquietante da pea. sua volta gravita o misterioso Grain. Para aquele verdadeiro criminoso, A Cacatua Verde, onde vem representar os vagabundos, o esconderijo ideal. Para Grain, a simpatia pelo movimento revolucionrio resulta muito naturalmente da revolta de um excludo e de um fora da lei contra a sociedade. Como pode ver-se, o grupo dos verdadeiros-falsos-revolucionrios que se do em espectculo n A Cacatua Verde no mais simptico que o dos aristocratas. O palrador Grasset, o rousseauniano sentimental Henri, o futuro comissrio do povo, Prospre, e o criminoso Grain: percebe-se que dessa gente nada de bom poder vir. A Revoluo inevitvel: quem pensaria em defender o Antigo Regime incarnado pela clientela d A Cacatua Verde? Mas a perverso da Revoluo e a instaurao de uma nova tirania so tambm inevitveis: o que revela um olhar deitado para os bastidores deste estranho cabar. A ideia de revoluo perdeu todo o prestgio, as iluses dissiparam-se, e percebe-se que ser necessrio seguir por outros caminhos para que o novo regime no conduza ao antigo. Simpatia pelas ideias de 1789, na medida em que elas trazem a primeira formulao do liberalismo moderno, e desconfiana pela aco revolucionria, onde o sublime soobra pelo grotesco e o justo no odioso: esta atitude de Schnitzler aparece como fruto de uma tradio liberal prpria dos escritores austracos. No seu drama histrico, Marie Roland, de 1867, Marie von Ebner-Eschenbach fazia uma vibrante apologia dos Girondinos, representantes a seus olhos da nobreza moral e da sbia moderao, face aos Jacobinos. Na pea Danton e Robespierre, de 1870, Robert Hamerling valorizava Danton, representado como um simptico bon vivant e como realista, contra Robespierre, o idealista dogmtico; as belas ideias rousseaunianas eram pervertidas e desacreditadas pelo Terror. Do mesmo modo Eugenie delle Grazie, na sua epopeia intitulada Robespierre (1894), mostrava que na origem da Revoluo estavam as mais nobres aspiraes de justia, mas propunha sobretudo uma viso pessimista do inelutvel extravio da aco poltica. Ferdinand von Saar interessava-se pela tragdia de Lus XVI, que apresentava como estico resignado perante a fatalidade, nos dois actos de Ludwig XVI, publicada em 1899. A leitura de A Interpretao dos Sonhos, de Freud, mostra bem que o intelectual liberal, por volta de 1900, v a Revoluo Francesa como um encadeamento de actos sangrentos: Um sonho de Maury atingiu uma grande notoriedade. Estava doente e deitado, a me sentada ao p dele. Sonhava com o Terror, intrometiam-se cenas horrveis de assassinatos e via-se por fim citado para o Tribunal revolucionrio. EncontravaTeatro Nacional D. Maria II 2011 | A Cacatua Verde - Dossier Pedaggico

35

l Robespierre, Marat, Fouquier-Tinville e todos os tristes heris daquela poca terrvel, falava com eles, era condenado [], sobe ao cadafalso, o carrasco prende-o a uma tbua, ela oscila, a lmina da guilhotina cai, sente a cabea separada do tronco, acorda numa angstia espantosa e v que o dossel do leito tinha cado e que o pescoo tinha sido de facto atingido como que por uma lmina de uma guilhotina. Um pouco mais adiante, Freud comenta no seu livro o sonho de Maury nestes termos: Quem no se teria sentido cativado [] pela descrio da poca do terror? A nobreza, homens e mulheres, a flor da nao, mostrava como se pode morrer com a alma feliz e manter, at ao apelo fatal do seu nome, a vivacidade de esprito e a elegncia de maneiras [] . Para o liberal Sigmund Freud, de que se conhece a ligao profunda aos ideais de 1848, a Revoluo Francesa antes de mais uma poca terrvel, enquanto que o Antigo Regime lhe provoca nostalgia. Podiam encontrar-se muitos outros testemunhos desta imagem, no conjunto muito negativa, da Revoluo Francesa, por entre os intelectuais vienenses de 1900. Pode citar-se uma passagem espantosa do crtico literrio Friedrich M. Fels, num artigo intitulado Die Moderne, de Novembro de 1891. O autor comea por constatar. Ns somos decadentes. E continua: Quando me esforo por interpretar a arte de hoje, parto sempre da Revoluo Francesa. Porque, para alm do facto de termos que datar a partir da o incio de uma nova histria internacional, [] ela apresenta um certo nmero de pontos comuns com o nosso assunto. Os seus fundamentos foram suficientemente sondados para que hoje se saiba que nem um s daqueles que a incendiaram fazia a mnima ideia de como apagar o incndio. A situao revelou-se insustentvel; viram-se livres disso sem reflectir sobre o que se iria construir em seu lugar, nem como. Pode chamar-se a isso inconscincia, ou sabe-se l o qu: a vida e a histria so muito ingenuamente inconscientes []. Para este crtico, a Revoluo Francesa aparece como uma fatalidade cega, inevitvel, desencadeada pela runa do mundo antigo, mas desprovida de projecto, errtica e imprevisvel, imagem da modernidade artstica e literria, tal como Friedrich M. Fels a considera. A viso da histria atinge aqui o cmulo do niilismo. Este mesmo gnero de cepticismo histrico inspira Schnitzler em A Cacatua Verde. O potencial utpico da Revoluo Francesa est a totalmente desarmadilhado. A Aufklrung deve seguir outro caminho. Mas qual? A esse respeito ele no se pronuncia. Pode dizer-se que A Cacatua Verde exprime um sentimento pos-moderno antecipado da histria. Um dos sentimentos pos-moderno que o mundo vive ao ritmo da pos-histria. A Histria parece ter perdido todo o sentido e parece reduzir-se a um espectculo, to granguinholesco como absurdo e sangrento. Nenhuma das grandes ideologias mantm o seu prestgio. O intelectual, resignado, cptico, at mesmo cnico, encara os acontecimentos como uma sequncia de catstro