Dou Te Meus Olhos Uma Analise Da Violencia
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Pró-Reitoria de GraduaçãoCurso de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso
“DOU-TE MEUS OLHOS”: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIADOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIA
E DO CUIDADO
Brasília - DF2012
Autor: Enercílio de Almeida NetoOrientadora: Msc. Mariana Martins Juras
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ENERCÍLIO DE ALMEIDA NETO
“DOU-TE MEUS OLHOS”: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIADOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIAE DO CUIDADO
Artigo apresentado como requisito para aconclusão do curso de Graduação em Psicologiada Universidade Católica de Brasília, comorequisito parcial para obtenção do Título deBacharel em Psicologia.
Orientadora: Professora Msc. Mariana MartinsJuras.
Brasília - DF2012
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À minha esposa Divany Xavier da Silva Almeida,pelos anos de cuidados que desperta em mim a
consciência do amor e sentido de ser.
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AGRADECIMENTOS
À Profa. Mariana Martins Juras pela diligente orientação deste trabalho. Ao Prof.
Marcos Aurélio Fernandes que além de compor gentilmente a banca se tornou para
mim um mestre nessa pesquisa através das suas obras. À minha esposa Divany a
quem dedico com todo esmero esse trabalho. Ao Prof. Dr. José Lisboa Moreira de
Oliveira, gestor do Centro de Reflexão de Ética e Antropologia da Religião (Crear), e
sua esposa Ana Márcia Guilhermina de Jesus, pelos incentivos e companheirismo.
Aos demais colegas Docentes, Discentes e amigos que compartilham esse
momento e me deram apoio nessa nova etapa da minha vida.
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“O Ser humano é a um só tempo, físico, biológico,psíquico, cultural, social e histórico. Esta unidadefundamental complexa é fundamentalmentedesintegrada na educação por meio das disciplinas,tendo se tornado impossível apreender o quesignifica ser humano. É preciso restaurá-la, de modoque cada um, onde quer que se encontre, tomeconhecimento e consciência, ao mesmo tempo, desua identidade complexa, e de sua identidadecomum a todos os outros humanos”1.
1 , . , 2002, . 15.
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“DOU-TE MEUS OLHOS”: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NAPERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIA E DO CUIDADO
ENERCÍLIO DE ALMEIDA NETO
RESUMO:
A violência doméstica se apresenta sempre como um grande desafio para apsicologia em qualquer perspectiva teórica. Esta pesquisa investiga aspossibilidades de contribuição dos conceitos filosóficos de consciência e cuidadoarticulando-os com algumas considerações da teoria sistêmica para uma análise daviolência no âmbito conjugal e familiar. O estudo emprega uma metodologia
qualitativa através da pesquisa teórica e da análise do filme espanhol “Dou-te meusolhos” produzido pela cineasta Icíar Bollaín, indicando uma submissão da mulherfrente à possessão do marido. A proposta visa uma compreensão das vivências decasais e famílias em situação de violência. Ao analisar esse problema, estamospreocupados com o processo de expansão da consciência nas relações, muitasvezes “neutralizadas” pela violência, e da formação do eu e suas complexidades,evitando a dicotomia das concepções materialistas e espiritualistas, ou do olharlimitado e estigmatizante da qualificação de vitima-agressor, embora não ignoramossuas implicações. A proposta pressupõe a visão da dimensão ontológica do serhumano evocando a perspectiva do “cuidado”, seu modo de ser e suas vivências, dapercepção mais clara do ser, da existência e de suas capacidades de compreender
o mundo, a si mesmo e o outro. Os estados de “cegueira” e significados dasvivências requerem um olhar mais amplo para o fenômeno da violência além dasquestões sociais, de gênero, da cultura e dos estados patológicos e sintomáticosreclusos na psique humana. São reflexões desse estudo para futuras análises epossibilidades terapêuticas de casais e famílias que vivenciam as emoções de dor, ovazio, e o ódio contrastados com afirmações de amor.
Palavras-chave: Violência doméstica. Consciência. Cuidado. Teoria Sistêmica.
1. INTRODUÇÃO
A violência nas famílias é um fenômeno que tem uma magnitude alarmante,
ela perpassa diferentes classes sociais e ocorre em todos os países e culturas.
Conforme Ravazola, (2007) entre 30 e 50% das famílias passam por problemas
dessa natureza, envolvendo não somente a violência física, mas, sobretudo,
psicológica. Não são poucos os esforços na compreensão e análise psicológica no
intuito de combater e prevenir os episódios de violência ocorridos no ambiente
familiar. É uma situação que requer consciência, cuidado e um olhar sistêmico que
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nos permita ampliar tais problemas em todas as dimensões, para melhor
compreendê-los.
O nosso objetivo não foi o de buscar causalidades, embora estas possam ter
sido apresentadas no primeiro momento ao identificar as regras e os padrões rígidos
de funcionamento das relações familiares. Mudamos o foco, ao invés das
preocupações lineares, de perguntar “por que” a violência acontece, como se
houvesse alguma justificativa que valide o ato de violência, buscou-se a
compreensão do problema perguntando na perspectiva dos conceitos de
consciência e cuidado sobre o “como” ocorre a violência, no intuito de despertar
percepções e possibilidades de ajuda psicoterapêutica que, quando não estão
claras, muitas vezes reduzem a agressão, simplificando-a e distorcendo seus efeitos
levando a pessoa a situações de impotência e de vitimização.
Trazendo para o âmbito da terapia familiar e mais propriamente sobre a
violência doméstica, estudamos autoras como Maria Cristina Ravazzola, Hirigoyen,
Mônica McGoldricki, Rosana Papizo, entre outras, que fazem menção sobre a
importância da consciência e do cuidado nas relações familiares, sobretudo na
abordagem construcionista social, mas em nossa investigação não foi encontrado
nenhum estudo específico sobre o assunto.As questões que nos motivaram para esse estudo foram algumas
interrogações: se seria possível expandir a consciência e pensar o cuidado através
das psicoterapias de casais e famílias em situação de violência doméstica.
Perguntamos-nos como a consciência se manifesta em um homem que afirma amar
a esposa, mas a agride de forma violenta, e embora procure ajuda terapêutica
desejando mudar seu comportamento e evitar as agressões, se vê impotente para ir
além de seus impulsos? Ou na mulher, que não suportando mais esse tipo detratamento decide sair de casa, recomeçar sua vida, e lida com os sentimentos
como: o vazio, o preconceito social, o medo, a culpa e a ansiedade? São cenas
apresentadas no filme analisado nesse artigo, muito próximas da vida real.
Em sua complexidade, a consciência abrange todas as instâncias humanas,
todas as áreas da ciência, ela perpassa os diferentes ângulos da cultura e das
relações sociais, etnias, regras e comportamentos definidos socialmente, envolve a
formação do “Eu”, o pensar, o querer, a dor, e o amor, entre outros aspectos. Sendo
um dos mais importantes, senão o principal objeto de estudo da psicologia, têm sido
pouco indagada pelos estudiosos dessa ciência, provavelmente devido a sua
complexidade, ou por ser denominada uma questão introspectiva e pouco
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experimental, embora tenha sido muito debatida ao longo da história entre filósofos
idealistas e materialistas após a concepção dualista de Descartes (1596-1650) entre
mente e corpo. No início da psicologia como ciência experimental as pesquisas de
Wundt (1832-1920), conhecido como o pai da psicologia moderna, seguiram o
modelo das ciências naturais, que culminaram em duas psicologias com enfoques
metodológicos diferentes: a fisiológica e a experimental. Juntar as duas unidades
psicofísicas foi o desafio encontrado por seus discípulos e abandonado por acharem
soluções menos complicadas, porém, talvez, mais pobres, negando a experiência
subjetiva (FIGUEIREDO, 1991, p. 36).
Em relação ao cuidado, Heidegger em suas obras nos mostrou que em meio
às nossas ocupações e preocupações nos encontramos na profundidade da vida,
que é em sua essência, cuidado. No cuidado existimos “com o outro”, ou seja, não
estamos sozinhos, isolados. Isso significa que somos enquanto nos relacionamos
com tudo o que existe. Deixar de “cuidar”, ou “descuido” é um modo de ser disperso,
ou “perder-se” da possibilidade mais própria de “ser”, ou “existir”, enquanto que
“cuidar” é resgatar ou “curar”, “desvelar o ser”, cultivar, construir, habitar
(FERNANDES, 201, p. 279).
O estudo não teve a pretensão de esgotar o tema investigado ao analisar aviolência doméstica por um ângulo bem específico. Também não se quer apresentar
uma definição fechada do conceito de consciência, o que equivaleria a “desvendar”
um mistério que envolve o ser humano na busca de si mesmo. Da mesma forma,
não nos foi possível dentro de uma breve análise do cuidado, aprofundar todo o seu
sentido epistemológico delineado por Heidegger e pelos grandes expositores dessa
temática. Longe de tal empreendimento, limitamo-nos primeiramente à compreensão
das abordagens filosóficas de algumas epistemologias da consciência, priorizando aontológica, investigando uma possível equivalência com o conceito de cuidado para
analisar a violência doméstica e seus grandes desafios, no intuito de ampliar nosso
olhar, buscando identificar novas possibilidades de ajuda terapêutica para esses
casos.
2. MATERIAIS E MÉTODOS
De acordo com a natureza deste estudo, optou-se pela pesquisa qualitativa
através da análise de processos argumentativos. Os recursos metodológicos
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buscam primeiramente um levantamento epistemológico dos conceitos filosóficos de
consciência e cuidado no intuito de agregá-los à teoria sistêmica familiar e em
seguida realizar uma análise do problema. Após a investigação dos fenômenos
filosóficos os procedimentos técnicos buscam uma interpretação de um material
filmográfico partindo da base teórica estudada. Dessa forma, busca-se uma
compreensão das vivências de casais e famílias em situação de violência doméstica,
evidenciadas à luz da teoria e do filme espanhol que na tradução para o português
traz o título: “Pelos meus olhos”.
Observamos que a tradução do título em português perde-se o sentido
original pretendido pela autora, a cineasta Icíar Bollaín, que, ao discutir o tema da
violência doméstica, do espanhol “Te Doy Mis Ojos”, traz o significado literal “Te dou
meus olhos”, indicando a submissão da mulher frente à possessão do marido. O
filme foi produzido em 2003, na cidade de Toledo, Espanha, retratando cenas de
violência e mostrando um quadro de violência intrafamiliar onde os protagonistas
vivem cenas de amor, entrelaçadas de sentimentos de dor e medo. No ano de seu
lançamento o filme foi campeão de bilheterias, ganhador de Sete prêmios Goyas, o
Oscar espanhol, tornando-se naquele país referência nos debates sobre esse tema.
A análise dos sistemas familiares que envolvem a violência doméstica nospermite conhecer como ocorrem as interações entre pai, mãe, filhos (as) e as
diferentes formações contidas nas famílias. A abordagem tradicional da teoria
sistêmica procura conhecer a história psicossocial da família dentro de seu contexto
histórico-cultural na sociedade, e em seguida as suas relações de poder para
explicar a situação de violência contida na família (RIBEIRO e BAREICHA, 2008,
apud GONÇALVES, 2009). Nesta investigação faremos um estudo diferenciado
desse fenômeno no que tange à vivência da significação da violência, através daconsciência dos elementos que produzem efeitos nas relações, como as emoções, a
neutralização da dor, a falta de defesa, etc.
Serão analisadas cinco cenas do filme procurando sua correspondência aos
conceitos desta investigação. As cenas selecionadas trazem os relatos que
correspondem aos objetivos da pesquisa. Os episódios apresentam a realidade
entre os diferentes ângulos da cultura, das relações sociais, das regras e
comportamentos definidos socialmente conforme McGoldriki (2003). São cenas que
também envolvem a formação do “eu”, o pensar, o querer, a dor, o amor, e a
proteção, descritos por Hebeche (2002) mostrando o modo de ser das famílias e das
relações do casal envolvido nesse caso de violência doméstica.
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3. FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA E EPISTEMOLÓGICA
3.1 Epistemologia da consciência
A palavra “consciência” como é conhecida atualmente foi usada
primeiramente na filosofia moderna por Descartes para designar o que se
convencionou chamar de “consciência de si mesmo”, cujo objetivo era expressar o
sentido de existência: “eu existo”, termo que passou a ser conhecido como forma de
colocar “algo como evidente” (HEIDEGGER, 2009, p. 265).
Para Descartes, apud Fernandes (2011), o cogito é o modo de acesso pelo
qual o homem é capaz de estar consciente: compreende “tudo aquilo que é em mim
e do qual eu sou imediatamente consciente (p. 109)” . O método cartesiano coloca
tudo o que é possível ser cogitado dentro de uma evidência imediata, para o ego,
(cogito ergo sum) e o que eu sou (ego sum res cogitans): duvidando, pensando,
negando, afirmando, querendo, sentindo, imaginando, etc. para chegar ao substrato
de tudo o que é cogitado, pelo “ego”, colocando em evidência a consciência do
mundo que se diferencia da consciência de si mesmo.A concepção cartesiana resultou em uma separação radical entre corpo e
espírito dando origem às discussões filosófica sobre a consciência. Hoje, a maioria
dos teóricos contesta a proposição de que o ser humano teria duas realidades
separadas: mente (alma, espírito) e corpo; a mente consciente seria uma substância
pensante, capaz de produzir imagens, idéias e representações; e o corpo seria uma
matéria cujas propriedades físicas dão origem ao comportamento, incluindo o
cérebro (HILL, 2011).Posteriormente, com o idealismo Kantiano, o conceito recebeu um significado
relacionado aos objetos experienciáveis de natureza sensorial, ou seja, na sua
objetividade, em que o “ser” dos entes é orientado para a consciência. Para
Brentano, seguido por Husserl, a consciência é ato, ela “se orienta para algo”,
referindo-se à “intencionalidade da consciência”. Nesse sentido, a consciência “re”-
presenta algo, ou seja, torna algo presente para mim, numa relação comigo, da qual
eu sou representante. Assim, a consciência se torna “consciência de si”, ou
“autoconsciência” (HEIDEGGER, 2009, p. 187).
Na contemporaneidade alguns filósofos fizeram o caminho contrário ao
cartesiano, retirando a consciência do reduto metafísico em que se encontra, saindo
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da redução dos fenômenos da consciência do que é “ôntico”, trazendo-a para o
âmbito ontológico, um caminho mais difícil, porém, mais originário do ponto de vista
filosófico.
Em Heidegger (2011), o fenômeno da consciência não é um conceito
necessariamente isolado. Em Ser e tempo, embora tenha dedicado um capítulo de
sua magna obra sobre a consciência, não a apresenta como um conceito à parte, ou
seja, ela está situada no “modo de ser próprio” do Dasein. A consciência é um
“apelo” da “cura” (cuidado) para um “poder-ser-si-mesmo”, como uma voz que
impele o homem para seu sentido mais próprio de ser, o Dasein.
Para Wittgenstein, (apud Hebeche, 2002), o problema da consciência é um
problema de conceito. Wittgenstein rejeita as duas formas interpretativas da
psicologia: mentalista e fisicalista, ou seja, os fundamentos da psicologia não são
alcançados pelo método empírico, nem experimental, mas pressupõe uma
compreensão do conceito através da linguagem. Para esse autor, a psicologia
realiza uma confusão conceitual quando se dirige para objetos, tratando em terceira
pessoa, vivências que dizem respeito o uso lingüístico da primeira pessoa, ou vice
versa.
A partir do pressuposto acima, percebe-se que na psicologia existemdiferentes formas de abordar a consciência, mas em geral, as investigações sobre a
consciência estão basicamente centradas em três principais formas, e entre elas
outras diversas subdivisões (HILL 2011), mas vamos concentrá-las da seguinte
maneira: a consciência introspectiva; a consciência perceptual; e a consciência
fenomênica. O foco do nosso estudo é esta última, portanto, será feito uma
exposição breve sobre as outras, dando preferência ao estudo da consciência
fenomênica.a) A consciência introspectiva: Os estados de consciência introspectiva
foram discutidos com a maior relevância científica por autores consagrados, entre
eles destacam-se Wundt e Freud. Embora sejam em muitos aspectos questionados,
a consciência introspectiva tem sua importância. Em geral, os estados mentais são
descritos pela fala, evidenciados pela capacidade lingüística do sujeito, pois
envolvem conceituação e são geralmente assumidos em forma de juízos, como por
exemplo: “os sentimentos de uma pessoa em relação à sua irmã, podem ser
conscientes, mas em relação a seu irmão podem estar reprimidos”. São informações
da consciência, que independente do mundo exterior também está ligada à
experiência imediata, no sentido de que não derivam de raciocínio (HILL 2011).
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Em Leipzig, na Alemanha, Wundt criou seu laboratório tendo em sua
companhia vários estudantes que se tornaram pioneiros de seu trabalho, entre eles
diversos americanos, mas, seu trabalho foi difundido em maior escala entre os
russos. Além do método introspectivo trabalhado em laboratório, Wundt dedicou-se
às questões filosóficas, políticas e culturais, de onde surgiram as duas vertentes da
chamada “nova ciência”: a experimental e a social. O projeto de Wundt consistia em
adequar a psicologia ao método das ciências naturais, sobretudo através das
técnicas utilizadas pelos fisiologistas. Utilizando o método da análise ou redução, o
interlocutor teria de ser capaz de definir o objeto em uma palavra, na consciência. As
informações tinham de ser relatadas através da experiência imediata, para não
sofrer nenhuma influência de interpretações pessoais, para uma descrição mais
próxima da realidade. Dessa forma, a introspecção refere-se ao método de auto-
análise da mente, através da percepção interna, onde o sujeito relata os
pensamentos ou sentimentos pessoais, pretendendo ser uma experiência objetiva,
através do método positivista conforme o modelo das ciências naturais (SCHULTZ &
S. CHULTZ, 2005). Para Wundt, apud Schultz (2005), a experiência consciente teria
de apresentar as partes elementares dos processos mentais de forma unificada,
onde formaria uma unidade como uma “síntese criativa”, denominada apercepção,uma estrutura com leis e propriedades própria, tradicionalmente conhecida como: “a
totalidade não é igual à soma das partes”, uma expressão que fora disseminada pela
Gestalt.
b) A consciência perceptual: Essa abordagem hoje tem vários pontos de
vista, o conceito aos poucos foi assumindo diferentes formas, e sua análise nos
permitirá investigar a consciência fenomênica.
Partindo da lingüística, a consciência perceptual é compreendida a partir dasidéias de “saber”, “conhecer”, ou “pôr algo como evidente”. Quando afirmamos que
alguém é “consciente” de algo significa que ele tem uma orientação para aquele
objeto. Como sabemos, esse ponto de vista partiu do método cartesiano, já exposto
acima, seguido por vários teóricos, a partir da dualidade entre mente e corpo;
espírito e matéria, de onde surgiu posteriormente, na psicologia, a dicotomia entre a
psique e o comportamento, e diferentes concepções entre espiritualistas e
materialistas.
Orientar-se para determinado objeto é percebê-lo conscientemente, ou seja,
estar ciente desse objeto. Esse estado perceptual, ou apercepção do que nos
rodeia, permite-nos uma verificação, ou distinção entre o que “eu sou” e o objeto que
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se apresenta; ou seja, há uma “consciência” dessa diferença. Para os defensores
dessa teoria, essa percepção é “interna”, e distinta daquela que se apresenta como
“externa”. Nessa perspectiva, a consciência me revela a presença de um “outro”,
que possibilita que “eu” me perceba como distinto, ou seja, o sujeito se torna cônscio
da sua exterioridade, e aqui estaria o sentido da autoconsciência (BESSANT, 1995).
Para melhor analisar essa concepção, colocamos uma dúvida: se a
consciência perceptual é essencialmente representacional, ou uma forma de acesso
a objetos que não envolvem representações? (HILL, 2011). Optando pela segunda
hipótese passamos do ponto de vista das investigações das “evidências” de
Descartes, por onde seguiram os empiristas, para entrarmos no fenomenológico,
que será exposto mais à frente.
A teoria de uma consciência perceptual e intencional, analisada por Husserl,
distingue duas formas de percepção: percepção imanente e transcendente
(FERNANDES, 2011, p.112). Nos atos imanentes, estão as nossas vivências:
percepções, fantasias, recordações, desejos, sentimentos, etc. enquanto que os
atos transcendentes são as vivências de outra consciência, o das essências.
Assim, Husserl desenvolve uma fenomenologia da consciência, a partir da
subjetividade transcendental, com a pretensão de fundar uma ciência psicológica emoposição ao naturalismo, ou psicologismo. Dessa forma, a análise perceptual de
Husserl pretende superar o método experimental para fazer uma análise sistemática
da consciência, que daria lugar a uma base mais segura das investigações positivas,
denominando-a de “fenomenologia pura”. A semelhança das ciências positivistas,
Husserl coloca na subjetividade, num sujeito, “eu”, a condição de conhecer,
relacionada a um objeto, através do cogito. É o cogito que cogita, sobre o que se vê,
através da percepção imanente, sobre a coisa percebida. Tais atos são vivênciasconhecidas pela consciência como algo transcendente, pois está fora da unidade
com o próprio perceber. Mas as duas realidades só podem ser separadas
abstrativamente, pois elas estão em uma estreita unidade. As primeiras vivências
foram denominadas por Husserl como “atos reflexivos”, representam grande
importância para a estrutura da consciência, e indicam uma região de fenômenos,
mas não se restringe a estes. Portanto, a consciência é vista como uma região de
fenômenos, acessados pela apercepção, ou percepção do imanente, também
conhecida como percepção interna do sujeito (IDEM, 2011).
c) A consciência fenomênica: Assim como as concepções anteriores sobre
a consciência, a fenomênica também passa por diversos pontos de vista. Ao analisar
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os fenômenos, surge uma série de teorias que indagam se o conhecimento sobre
suas propriedades são conhecidas objetivamente ou são propriedades subjetivas,
por exemplo, uma dor, perguntamos: qual seria o modo adequado de evocá-la? As
propriedades qualitativas da consciência não são fáceis de delinear, pois se trata de
uma região de fenômenos complexos, que abrem diversos caminhos para serem
explorados.
Neste estudo procuramos esclarecer o ponto de vista ontológico. O caminho
que estamos trilhando é um dos mais difíceis, muito explorado, mas que ainda se
mantém em seu mistério (IDEM, 2011).
Para a compreensão da consciência precisamos romper com um caminho
trilhado pela ciência positiva para entrarmos nas estruturas das vivências em sua
relação com a vida, e como ela se manifesta a nós, em seu sentido mais originário.
Essa proposta da fenomenologia não se trata de uma consciência transcendental,
como queria Husserl, interpretada como fenômeno psíquico, em sua relação oposta
aos eventos físicos. Nessa perspectiva, o fenomenólogo Marcos Fernandes, afirma
que a psicologia, tomando por objeto os processos psíquicos, tidos por eventos que
ocorrem com o sujeito, ou aquilo que consideramos de natureza psíquica, é
coisificada e objetificada, deixando de lado a dimensão originária das vivências. Oscomportamentos humanos regidos ou não por um “eu”, são analisados como
processos psíquicos, onde os fatos, e ocorrências se dão à semelhança das coisas
físicas, ora declaradas distintas destas, ora vistas apenas como comportamentos,
seguindo leis rígidas como as leis físicas, e são, portanto, despidos de um evento
psíquico em seu sentido originário. Exemplos da natureza desses eventos são as
sensações, as representações, as emoções, etc. assumidas como formas em que o
eu se manifesta.Na consciência, o eu não aparece como “algo” que sofre estímulos e que
provocam no sujeito reações, externas ou internas, mas como o próprio
acontecimento da vida, como evento da vida, que se dá através de uma consciência,
pela qual se manifesta em toda ocorrência da vida. Nesse sentido, a vida não é
meramente algo orgânico ou biológico, que se apresenta dentro de um
comportamento mecânico. Trata-se então de resgatar o sentido original, “natural” da
vida, muito embora se admita, ao menos a priori, que ela se apresenta “como uma
subjetividade empírica, individual, um “eu” com esta ou aquela identidade particular”
(IDEM, 2011).
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Na concepção “natural”, fenomenológica, a percepção é uma vivência
cotidiana, que não necessita de um esforço para verificar a presença de algo, de um
objeto, pois ali já está dado o seu significado. Por exemplo, quando vejo uma
cadeira, o objeto é percebido como tal, de modo imediato, como ele se mostra, mas
ao se tentar descrever tal objeto, encontramos dificuldades, perdendo a simplicidade
da percepção cotidiana, pois, se partimos da investigação técnica, mediata, o
ontológico perde seu sentido.
Somente se conseguirmos manter um olhar fenomenológico para o que se
mostra de modo natural e imediato na percepção, a partir da percepção e
como percepção, é que conseguiremos também trazer à fala, de modoapropriado, o que se dá como o fenômeno, a coisa mesma da percepção. E
o fenômeno da percepção é sempre algo concreto (FERNANDES, 2011, p.
128).
A percepção é intencional, um ato, um comportamento. Isso não significa
como já exposto, que ela seja um processo interno do sujeito, que corresponde a
algo fora dele, externo, como uma ocorrência psíquica, que corresponde a uma
coisa real e física. “Essa concepção, de onde o sujeito parte da consciência” como
vinda de dentro, para a realidade de um objeto externo, conforme o autor é uma
forma ingênua de interpretação, e também um equívoco quanto ao fenômeno da
percepção (relação entre dentro e fora, psíquico e físico, imanente e transcendente).
Por outro lado, a percepção não precisa ser algo que exista realmente, como ocorre,
por exemplo, nas alucinações, pois nesse processo psíquico não está presente
nenhum objeto real, mas há uma percepção. E quanto à percepção falaz, quando
estou “andando pela estrada e vejo um homem que me vem ao encontro; quando
chego mais perto, vejo que não era um homem, mas uma árvore”. Também nesse
caso, o percebido não é o objeto que me aparecia, mas algo ilusório. Resumindo,
não há necessidade de que o objeto seja real, para que se tenha uma percepção, e
por esse motivo é intencional, ou seja, parte do sujeito, mas não tem que ser um
objeto real:
A percepção presumida é um ato intencional: um dirigir-se a alguma coisa,
no caso, um dirigir-se a um percebido presumido. Não é assim que uma
percepção seja intencional só graças ao fato de que um elemento físico
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entre em relação com o psíquico e não seja mais intencional se este real
não existisse, mas é a percepção em si mesma, autêntica ou falaz, “normal”
ou “patológica”, a ser intencional. Com outras palavras, intencionalidade não
é uma propriedade que se acrescentaria à percepção em certos casos, masa percepção é por natureza, a priori, intencional, prescindindo do fato de o
percebido ser realiter simplesmente dado ou não. E justamente porque a
percepção como tal é um dirigir-se a alguma coisa, porque a
intencionalidade constitui a estrutura do comportamento mesmo, é que pode
se dar algo como a percepção falaz e a alucinação (FERNANDES, 2011, p.
129-130).
Passemos agora para a análise da consciência conforme Luiz Hebeche, queembora busque outro fundamento, uma “filosofia da psicologia”, devido à
semelhança das argumentações, poderia estar inclusa no conceito da consciência
fenomênica. Hebeche (2011) fez um estudo sobre a filosofia de Wittgenstein em sua
obra “Investigações Filosóficas”, que investiga o “mundo da consciência”, deixando
de lado a concepção de um sujeito transcendental ou de processos mentais
neurológicos e passa a considerar a consciência a partir da linguagem.
Hebeche (2011) também propõe um estudo da consciência que se afaste do
modelo científico positivista, pelo qual se procura explicar tudo. Para esse autor, o
conceito de consciência é vago, e só pode ser apresentado dentro do que
Wittgenstein convencionou chamar de “visão panorâmica”, no entanto, não pode ser
considerado como um super conceito. A filosofia da linguagem de Wittgenstein tem a
pretensão de sair do pensamento objeto-designação, que utiliza a linguagem
partindo de informações que estejam além dela, ou seja, da metafísica, e mais
precisamente dos dados sensíveis ou estados mentais. Sua crítica à psicologia parte
da mesma hipótese da fenomenologia do Prof. Marcos Fernandes, quando eventos
psíquicos, mentais, são tratados da mesma forma que nas ciências naturais, dos
aspectos físicos, conforme o método da psicologia empírica. Luiz Hebeche afirma
que é preciso retirar a psicologia da redução metafísica em que ela se encontra, pois
ela dirige seus conceitos a objetos, tornando confusa a distinção entre primeira e
terceira pessoa, ou vice-versa:
A filosofia da psicologia tem o mesmo objetivo da gramática da consciência,
isto é, a eliminação da idéia de que a linguagem se refira a processos
internos ou processos externos. O mundo da consciência não se refere a
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eventos a que se possa ter acesso por introspecção, e tampouco pela
observação comportamental. A fonte dessa ilusão é o modelo que orienta a
linguagem para os objetos. O interesse em fazer-se uma tematização do
psicológico é o de retirar a consciência do reduto metafísico em quegeralmente se encontra, pois à medida que a psicologia se torna ciência
mental, assim como as outras ciências naturais, ela dirige seus conceitos
para os objetos, isto é, ela opera desde uma confusão central, ao tratar em
terceira pessoa vivências que dizem respeito ao uso lingüístico na primeira
pessoa. Essa confusão, aliás, origina o caráter nebuloso do conceito de
consciência, pois, nesse caso, ao se fazer essa passagem ilegítima entre a
gramática do “eu” e a do “ele”, passa-se a considerar os eventos internos
desde os eventos externos, e vice-versa (HEBECHE, 2002, p. 17 – 18)
Desse problema surge a crítica: se “explicar” é “chegar ao conhecimento das
coisas”, a visão é unilateral, então só seria legítimo um método para determinar o
que as coisas são. Para evitar esse engano, Hebeche apresenta outro modelo,
diferente da relação objeto-designação. Trata-se de uma “teoria da visão”, partindo
de uma metáfora visual do rosto. É um método que se apresenta na forma da
linguagem do “ver-como”, ou “revelação do aspecto”, e na “vivência da significação”.
Na revelação do aspecto, o conceito de “ver” se distancia da concepção
física, ver não se limita ao domínio de técnicas que se padronizam na medida em
que apresentamos sua causalidade, mas seu uso está na própria linguagem. O
exemplo dado por Wittgenstein é o do rosto que oscila, ou da figura pato-lebre:
quando eu olho para certa figura e vejo um rosto que se parece com outro, ou olho e
vejo uma imagem de um pato que se “transforma” em uma lebre, tenho figuras que
oscilam. Conforme o autor, e aqui podemos concordar com o Prof. Marcos
Fernandes, dizer que se trata de uma visão que envolve a mente ou interior é umailusão, pois ela só é possível ser notada a partir da sua exterioridade: “como
sabemos, a revelação do aspecto é a exteriorização da surpresa quando da
oscilação da figura”. Assim, a revelação do aspecto envolve o ver, o pensar, o
querer e o representar, ou seja, o “ver-como” provoca interrogações na medida em
que os “fenômenos” nos surpreendem, portanto, não está limitado apenas à
percepção. Isto é, ela se caracteriza como algo dinâmico, que não se reduz ao
simples “ver”, é uma questão que envolve o pensar, e “pensar é uma ação”.A relação do ver, nesse caso, não é causal, mas conceitual. Essa seria a
confusão da psicologia descritiva, usar o conceito de ver como termo técnico: “eu
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vejo uma árvore”, “ele vê uma árvore”. Os termos não são equivalentes, pois à
medida que tento explicar o que vejo, a minha descrição não corresponde ao que
“ele” vê, ou seja, para explicar eu apenas usaria conceitos, tão diferentes do que o
outro descreve, quanto a sua relação causal. Nesse sentido, Hebeche afirma que a
psicologia não pode nos ensinar o que é ver, pois o ver está limitado a uma ação, ou
comportamento, pois “um conceito se impõe na tessitura da vida”. Aqui temos uma
regra determinada pelo uso da palavra, mas ela se diversifica, se torna ambígua,
como por exemplo, quando observo um rosto que se modifica e se “transforma” em
outro, na verdade, a figura permanece a mesma, é o meu modo de ver que percebe
dessa ou daquela maneira, o objeto que vejo é figurado. Se assim descrevo, a
ambigüidade desaparece, resultando apenas numa percepção.
A partir dessa explanação, podemos compreender o sentido da consciência,
ela está presente quando consigo ver um aspecto, mas não designando-o como isto
ou aquilo, descrevendo-o ou explicando-o, mas apenas notando-o, sendo que
“notar” corresponde a “ver algo como algo”. A consciência é “dar-se conta” do que é
esse algo que se apresenta. Para uma pessoa que é “cega para o aspecto”, a
consciência lhe escapa, ela não tem aquela habilidade para “ver como” as coisas se
apresentam. Utilizando-se do método objeto-designação, associando uma palavra acada coisa, ele perde a apresentação panorâmica da linguagem. Analogamente
podemos compreender a cegueira comparando-a a ausência do ouvido musical de
uma pessoa que domina algumas técnicas, mas não consegue perceber as sutilezas
da música, que estão na beleza do “como” a técnica pode permitir que ele
compreenda as graduações da música, pois lhe escapa a vivência da significação.
A vivência da significação das palavras está relacionada à familiaridade como
que lidamos com os conceitos. O cego para o aspecto que não domina a técnica emque a linguagem apresenta tal coisa, não consegue compreendê-la. Ao observar o
aspecto e lidar com suas sutilezas, aquele que possui a capacidade de “ver-como”,
tem uma vivência da palavra, como a criança que ao aprender as regras da
linguagem sobre os lados de um triângulo, por ter a vivência, consegue distinguir a
convenção da base, fazendo uso correto dessa figura. Se não vivenciamos uma
palavra, ou determinada letra, ela poderá se apresentar apenas como ruído ou
riscos sem uma significação, assim como as palavras: “gordo” e “magro”. Se eu uso
a expressão de uma terça-feira “gorda”, e se torna estranha para alguém, é porque
ele não vivenciou a significação dessa palavra.
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Através dessas concepções, podemos concluir que a “ percepção intencional”
e “ver um aspecto” se assemelham enquanto posição de onde parte a consciência.
Ambas partem da crítica à psicologia apresentando um modelo de análise dos
fenômenos psicológicos que não estejam baseados na descrição, na interpretação
dos mesmos, mas na pura concreção de como eles se apresentam, em sua
naturalidade.
3.2 A Epistemologia do cuidado
Até o presente momento desse artigo, apresentamos alguns aspectosconceituais da consciência. Antes de partirmos propriamente para a análise da
violência familiar, pretendemos abordar a temática do cuidado para em seguida
realizar uma perspectiva qualitativa dos serviços terapêuticos desse espaço
doméstico.
Vale rememorar o sentido da palavra através da lenda de onde se tornou
conhecida:
Diz uma lenda que,
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Lobo teve
uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma.
Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-
lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando,
porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter
proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado
discutiam, surgiu, de repente a Terra. Quis também ela conferir o seu nome
à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da terra. Originou-se
então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno
que funcionasse com árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu
justa: “Você, Jupiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito
por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo;
receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura
morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura,
ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que, entre vocês,
há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura seráchamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil (BOFF,
2004, p. 99).
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O sentido etimológico do termo cuidado, tratados nos textos clássicos de
filosofia, é colocado por vários estudiosos na temática do pensar, como empenho
em curar, no sentido terapêutico, conforme o verbo latino: “curare”. Pensar alguma
coisa tem um significado de “agitar o pensamento”, ou “co-gitar”, um revolver no
espírito, ou tornar essa coisa pensada, “revirada”, para que ocorra nela, mudanças.
No contexto das relações, por exemplo, a cura está ligada diretamente ao amor e a
amizade, e nesse sentido implica um “tratar”, ou melhor, “cuidar” para se curar.
Conforme Duarte (2011), esse cuidado implica uma relação com o outro em
toda a dimensão humana, seja física ou emocional, que implica o pensamento em
termos de ação. Mas ao mesmo tempo, o cuidado não está limitado a uma
assistência no âmbito da saúde, seja qual for. Ele requer uma ação mais ampla, uma
atitude ética em relação à vida e a tudo que existe. Nesse sentido, implica uma
responsabilidade, mais do que um ato interventivo que possamos fazer com o uso
de técnicas. Quando eu cuido, eu me torno responsável pelo outro, e, o contrário do
cuidado seria então um descaso, ou descuido. A responsabilidade pelo outro requer
participar de seu destino, de suas buscas e sofrimentos, sucessos e insucessos, e
enfim, de sua vida. Por último, podemos afirmar que o cuidado requer dois
significados: o de solicitude, atenção para com o outro, e a preocupação, ou umainquietação por estar envolvido, ligado ao outro (FERNANDES, 2011).
Para Heidegger (2009), primeiro filósofo a retomar o sentido original da
palavra, o cuidado tem um sentido existencial, isto é, ontológico, em que “a analítica
do Dasein pergunta pela sua constituição fundamental ontológica e não quer
simplesmente descrever fenômenos ônticos do Dasein (p. 210)”, é, portanto, uma
questão própria do ser do homem, da sua origem. Sobre essa questão, Heidegger
critica a visão meramente biológica das ações humanas, que seriam mecânicas,fazendo alusão à psicanálise, quando coloca o querer, o desejar, e o ansiar como
atos psíquicos. Heidegger chega a fazer a pergunta: nessa concepção “seria mesmo
o homem que está aí”? Para ele, esses atos não seriam de um “si-mesmo”, ou seja,
de um “eu” (sujeito) em ação, mas da própria ocupação do Dasein com as coisas do
mundo, como um “ser-no-mundo”, no sentido de que há uma “abertura” para isso
como modos de ser.
Portanto, falar de cuidado é antes de tudo entender seu sentido original, não
simplesmente aplicá-lo às nossas relações. Ele é o modo de ser, conforme
Heidegger (2011) em um tríplice momento, já antes mesmo de existir no mundo, em
“sendo no mundo” e em relação a outro.
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Por “ser-no-mundo” o homem frequentemente se dispersa perdendo seu
sentido próprio de ser, pois ele se ocupa com o mundo, colocando sempre metas e
objetivos a conquistar, distanciando de si mesmo, até o ponto de se alienar, isto é,
ficar longe de si mesmo, encontrando o vazio. Nessa perda do cuidado consigo, ele
se agarra a algo que lhe dê segurança, que torna mais fácil e cômodo para si. Essa
perda também ocorre nos relacionamentos com os outros (solicitude), pois ele vai da
indiferença e do ódio, por um lado, à diligência e amor por outro lado (FERNANDES,
2011).
Concluímos que nós despertamos dessa dispersão quando ouvimos a “voz da
consciência”, sugerida por Heidegger que também é para ele a voz do cuidado, que
nos solicita a cuidarmos do nosso modo mais próprio de ser. Em todas as nossas
relações com tudo o que existe, a consciência e o cuidado, nos possibilita a
compreensão do nosso sentido de ser.
4. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA À LUZ DA ANÁLISE SISTÊMICA
4.1 A violência doméstica
Marie Hirigoeyen (2006), em seu livro: “A violência no casal”, afirma que a
violência doméstica no sentido epistemológico é difícil de ser definida, devido a seus
diferentes significados, que estão relacionados a maus tratos físicos, psicológicos,
emocionais, institucionais, simbólicos e sexuais. Um dos motivos apontados refere-
se às dificuldades de se verbalizar o que ocorre. Conforme a autora, a “vítima” 2
pode ser aniquilada psicologicamente, mas não conseguir falar sobre isso. Ao tentardiferenciar a violência psicológica da violência física, encontramos dificuldades, pois
quando ocorre agressão física, ela não está separada da psicológica. Constataram-
se em algumas pesquisas, uma tomada de consciência nos relatos de vítimas em
situações que foram reavaliadas violências que não tinham sido percebidas de
imediato, no entanto elas são na maioria encobertas. O motivo principal é deflagrado
pela dominação, que não ocorre apenas pelo uso da força física, mas também
2 , ,
, , ,
() (, 2008), .
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quais se perpetuam algumas condutas que não desejamos. Também nos
habilita a buscar como podemos nos relacionar com os protagonistas dos
circuitos familiares nos quais há violência, considerando a singularidade de
cada situação e as possibilidades de mudança de cada um (a), chegar amanter diálogos frutíferos com os perpetradores de violências sem agredi-
los nem demonizá-los (RAVAZOLA, 2008, p. 16).
4.2 A influência da cultura nas relações familiares
Para ampliar nossa análise e fazer uma leitura mais clara através da
consciência e do cuidado, precisamos compreender a influência que a cultura exerce
nas relações familiares. Conforme Falicov (1995, apud LAIRD, 2003), “a cultura é
encarada como ocorrendo em muitos contextos que criam ‘fronteiras culturais’
comuns, e também diversidade; imprevisibilidade e possibilidade, assim como
regularidade e pressa (p.25)”. Segundo a autora, o terapeuta que não estiver
consciente das exigências da cultura poderá ficar “cego para o não familiar” e até
“estimular injustiça”, enquanto que o aprendizado sobre a cultura (s) pode nos
ensinar a investigar melhor os padrões existentes dos nossos clientes e seus
significados culturais. Porém, a cultura não pode ser vista como se fosse formada
por características imutáveis, mas, antes, é preciso, aprender como aprender sobre
cultura, ou seja, aprender a olhá-la de forma crítica e problemática:
Essas idéias normativas, em que estamos todos incorporados, encorajam
os estereótipos, estreita nosso campo de possibilidades e nos impede de
reconhecer a complexidade dinâmica e a natureza continuamente mutante
da identidade e da experiência étnica, de gênero, de classe social ou
orientação sexual. (LAIRD, 2003, p. 25).
Para Ravazzola (2007), nos sistemas familiares são reproduzidas algumas
idéias abusivas, rígidas afirmações mantidas culturalmente e reforçadoras dos
papéis dentro da família. Algumas situações são naturalmente aceitas e reforçadas
na sociedade, como as idéias de que as mulheres que sofrem violência sentiriam
supostamente prazer com o maltrato ou estão passando por isso porque
provocaram. Visivelmente também são as discriminações que caracterizam os
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olhares sobre os outros, de acordo com suas raças, etnias, religião, gênero, etc.
aplicando-lhes algum tipo de desqualificação: “Isso é serviço de preto”, ou “as
mulheres são emotivas, frágeis, não podem ser objetivas” (p. 19). Tais estereótipos
criam situações de desigualdades, hierarquias e discriminações, muito presentes
nas famílias, sobretudo, em situações de violência.
4.3 As relações de gênero como favorecedor da violência familiar
Conforme já afirmamos acima, normalmente quando nos referimos a “ensinar
a cultura”, entendemos que “aprender sobre cultura” é “respeitar” as diferençasculturais e não questioná-la. Essa postura por melhor que seja torna-nos inertes
para promover mudanças significativas em relação a elas, mesmo quando
inaceitáveis. Analisando as relações de gênero, estabelecidas por culturas
predominantemente patriarcais, mantenedoras da hierarquização na sociedade, de
domínio do outro, no caso mais comum a mulher, “domesticada” para ser “dócil”,
“mãe”, “companheira”, etc. para manutenção do status masculino, alimentado
também por uma moral religiosa, fator que em algumas etnias justifica a violênciacontra a mulher (LAIRD, 2003, p. 26).
Segundo o antropólogo Felipe Areda (2006), “ninguém nasce homem, nem se
é homem, empenha-se constantemente na busca de tornar-se homem (p. 1)”, ou
seja, ninguém nasce com uma identidade sexual, e nesse caso, masculina. O
indivíduo “se faz homem” e o outro “se faz mulher”.
Conforme o autor, nessa relação onde a mulher é o “outro”, de onde parte a
masculinidade, dentro de uma rede agonística de afirmação da própria virilidade,
criou-se uma hierarquia. É uma moral sustentada na figura do outro, que parte de
uma relação consigo. Esse outro se caracteriza como uma categoria tão original
quanto à própria “consciência”, ou até mais. Nessa relação é construída
culturalmente uma subjetividade, uma masculinidade distanciada do gênero
feminino. Esse processo de negação do feminino é uma forma de se sentir viril, para
a conquista do falo-narcísico, (expressão lacaniana), às vezes exibido pela figura da
mulher, sobretudo na relação sexual, para depois expurgá-la de si, para não se
confundir com o outro, e para a manutenção da construção hierárquico-violenta
como um ato político das relações de gênero.
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Percebe-se então que uma identidade é construída fundamentada na
opressão do outro, porém sem identidade comum, como afirma Clímaco (2008):
“Hipoteticamente, esse modelo não aceitaria a existência de masculinidades, mas
sim, de uma masculinidade, devidamente viril (com as mulheres), dominante,
provedora e, de preferência, branca (p.73).” Demonstrando assim que circulando
junto com a discriminação sexual, existe também um viés racista.
Essas diferenças tornam-se um dilema para terapeutas ao lidar com essa
narrativa subjugadora. Os discursos dominantes também se apresentam dentro de
uma imposição política pessoal (HOLFFMAN, 1992, apud LAIRD, 2003). Nesse ato
político, o terapeuta precisa ajudar o cliente a “desconstruir, não somente suas auto-
narrativas, mas também essas narrativas culturais dominantes e as práticas
discursivas que constituem suas vidas” (IBID, 2003, p. 26). Porém, esse “deixar” os
próprios pressupostos, para que o outro possa emergir, é uma prática do cuidado, e
só podemos fazê-lo mediante a consciência do terapeuta que somos que está ali
para ajudar o outro a “ver”, ou sair de sua “cegueira”. Ele se percebe e percebe o
outro como o “especialista”, pois adentrará no espaço do outro, não como dotado de
um saber, mas com sua “ingenuidade cultural” e a “curiosidade respeitosa” na
expressão de Laird, (2003), como habilidades importantes para desconstruir osparadigmas culturais do cliente, e ampliar suas visões.
Conforme Michael Kaufman (1999, apud Clímaco, 2008), para a manutenção
da masculinidade e sustentação da violência existe o que ele chamou de “Sete ‘P’
da violência dos homens” contra homens e mulheres:
• Poder patriarcal : sociedades dominadas por homens são estruturadas na
hierarquia e violência de homens sobre mulheres e também sobre outros
homens e na 'auto-violência', constituindo um ambiente que tem como
principal função a manutenção do poder da população masculina;
• Privilégios: as violências cometidas pelos homens não acontecem apenas
devido às desigualdades de poder, mas também, a uma crença de
merecimento de privilégios que devem ser concedidos pelas mulheres;
• Permissão: conforme Kaufman, a violência contra a mulher é abertamente
permitida e até estimulada pelos costumes sociais, códigos penais e por
algumas religiões. Do mesmo modo, a violência de homens contra outros
homens não só é permitida, como também celebrada e banalizada emfilmes, esportes e na literatura;
• Paradoxo do poder masculino: para desenvolver seus poderes individuais
e sociais, os homens constroem armaduras que os isolam do contato afetivo
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com o próximo e da arena do cuidado, seja esse cuidado para outros ou
para ele mesmo;
• Armadura psicológica da masculinidade: constituída a partir da negação e
rejeição de qualquer aspecto que possa parecer feminino;• Pressão psíquica: os homens são educados desde a infância para não
experienciar ou expressar emoções e sentimentos como medo, dor e
carinho. A raiva, por outro lado, é uma das poucas emoções permitidas e,
assim, outras emoções são canalizadas por esse canal;
• Experiências passadas: o fato de muitos homens crescerem observando
atos de violência realizados por outros homens - muitas vezes seus pais -
pode caracterizar tais situações como a norma a ser seguida (p. 76).
Para Nascimento (2001, apud Clímaco, 2008) as possibilidades de se exercer
a masculinidade passa pela desvinculação do modelo hegemônico atrelado ao
patriarcado, mas de forma que se dê conta de toda a riqueza e expressão da
criatura humana, pois:
As masculinidades não são outorgadas, mas construídas enquantoexperiência subjetiva e social que são. Se elas são construídas social,
cultural e historicamente, podem ser desconstruídas e reconstruídas ao
longo da vida de um homem (p. 74).
É preciso, portanto, na perspectiva da consciência e do cuidado, pensar
estratégias que evidenciem tais práticas e as modifique. Notamos que o ser humano,
por ser dinâmico e estar em constante processo de estruturação-desestruração,inserido em um contexto histórico, precisa refletir e modificar suas percepções,
romper a alienação secular e pensar em novas formas de convívio com as
diferenças.
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5. O ENTENDIMENTO DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA ATRAVÉS DA
CONSCIÊNCIA E DO CUIDADO
Para compreender melhor essa análise, de agregar os valores dos conceitos
de consciência e cuidado aplicados à nossa temática, podemos apontar uma
experiência que se assemelha a abordagem que estamos apresentando.
Rosana Papizo (2008), fala de uma experiência de atendimento a famílias em
situação de violência, através do Instituto de Terapia Familiar do Rio de Janeiro,
baseando em alternativas de novos métodos, a partir da abordagem “poética social”
de John Shotter, inspirado em Wittgenstein, procura compreender a influência da
cultura, entre outros aspectos presentes na violência doméstica. Conforme a autora,
essa abordagem evita buscar explicações, ou descobrir questões ocultas que
desencadearam a violência, mas buscam o “como” construir novos caminhos através
da reflexão e da troca de experiências: “questiona-se menos: como posso explicar o
que acontece? E mais: como, a partir daqui, continuar coordenando nossas ações”.
Em vez de explicar o que aconteceu, ou conceitualizar, busca-se o entendimento
das situações de violência.
O que se manteve, independente das situações, foi nossa visão de que a
violência não é um episódio fortuito na vida familiar ou mesmo uma soma de
episódios, mas um processo complexo de formas de se relacionar que uma
família desenvolve, coerentemente com a cultura em que vivemos e na qual
a família está incluída de diversas maneiras. Fazem parte dos ingredientes
que culminam em episódios violentos muitas formas de relação que não
necessariamente estariam descritas como violentas, e isoladas, bem comocertas formas de falar e dúvidas a respeito de limites entre o eu e o outro
(PAPIZO, 2008, p. 480).
Assim como na experiência descrita acima, essa análise procurou investigar
formas de construir novas relações entre as famílias através de recursos ainda
pouco explorados em terapias de família. A experiência mostra que é necessário
criar nessa relação, um espaço mútuo de cuidado, que possibilite um despertar da
consciência da violência, viabilizando caminhos que possam discuti-la em umespaço de escuta e superação.
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mais apropriadamente de pantufas3, um calçado com estofo, de uso doméstico, para
agasalhar os pés. Quando Ana, sua irmã, pergunta o que está acontecendo, ela
responde: “vim de “pantufas”... Chora e abraça a irmã, dizendo: “estou desnorteada”.
Conforme o roteiro do filme, anunciado pela autora: “Ela sabe que o marido vai
procurá-la e isso a deixa apavorada”. “Ela é tudo para ele, é o seu sol”. Quando ele
a procura depois do ocorrido, insiste para que ela volte para “sua casa”, e para
tentar convencê-la entrega-lhe um presente e declara: “você é a luz dos meus olhos,
não posso viver sem você”.
Os elementos da comunicação revelam uma habilidade utilizada pelo marido
ao tentar uma reaproximação, que embora se apresente como cuidados são na
verdade, articulações inconscientes para manipular a companheira. O cuidado é
antes de tudo uma solicitude, uma atenção para com a pessoa, que se sente
responsável por ela. Os olhos que declaram afeto não tiveram a capacidade de
“enxergar” a si mesmo, ou seja, quem é o “eu”, (consciência), e perceber quem é o
“outro” que lhe dá amor (cuidado), mas se torna “vítima” da violência, dentro de um
lar onde não se percebe reciprocamente abrigada, mostrando ingredientes de
olhares de medo, sofrimentos, ameaças constante e dúvidas. Isso é identificado ao
longo do filme, as cenas mostram o modo de ser da família em suas relações e osacontecimentos que imprimem a violência em sua complexidade, intrínseca à
cultura, dentro de uma visão sistêmica e de gênero.
O entendimento da situação de violência requer uma análise da consciência
dos elementos que produzem os efeitos nas relações, conforme Ravazzola (2007).
As vivências dos fatos, as emoções, as sensações, as representações, a dor são
neutralizadas, deixando a mulher em situação de vítima. As estruturas de suas
vivências revelam seu modo de ser, inclusive familiar: desnorteada, apavorada, semsaber o que fazer e o que vai acontecer após ter deixado seu lar. “Como” ela se
manifesta, são os fatos, as vivências que pertencem à própria pessoa, em seu
sentido mais originário.
Na consciência, o eu não é “algo” que sofre estímulo e provoca reações no
sujeito, mas se manifesta como o próprio acontecimento da vida, evento da vida
(FERNANDES, 2011). Ao perceber que está sem os sapatos adequados, a
3 . .
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personagem se espanta, vendo a si mesma perdida no mundo de ameaças,
insegura, na companhia de uma criança, assustada e indefesa.
O fato de “sair de casa”, “deixar o lar”, também a deixa mais desestruturada,
pois o “lar” é um conceito representado culturalmente como o lugar das relações
estáveis, de abrigo, segurança, proteção, e de cuidados, que se transformam para
ela e para seu filho, um lugar de evasão, fuga. Sair de casa também pode
representar a vergonha social, que é o medo do preconceito, além da incerteza
quanto ao futuro, devido às necessidades básicas de sobrevivência perante as
condições da vida, a dependência financeira e a perda da estabilidade de um lugar
para morar. Esse fato é evidenciado no filme com a expressão da personagem, ao
ser interpelada pela irmã, por que não se separa: “De que eu vou viver? De ar?
Nesse contexto, a consciência da própria capacidade defensiva está obnubilada
pelas emoções de amor, e pelas normas culturais, embora a personagem tenha
percebido que naquele momento o melhor para a sua proteção e da criança seria
evadir. Tais fatos são entendidos como violência física e psicológica, deflagrando
questionamentos culturais e sociais dos direitos da família e dos conceitos
adjacentes. Não são poucos os casos em que a mulher em tal situação de violência
tem que deixar a casa, em busca de proteção.
6.2 As relações de gênero e os discursos neutralizadores
A segunda cena proposta nessa análise apresenta mais diretamente as
relações de gênero, refere-se ao momento em que a personagem, em tomdescontraído entrega-se ao marido que a assume como sua propriedade: “Te dou
meus braços, te dou minhas pernas, te dou minha boca, te dou meus olhos”. A
relação com o outro, aqui descrita, é de dominação, perpetuado pelas distinções
culturais de gênero, dos papéis definidos conforme a estrutura dos sistemas
familiares sempre rígidos, afirma Sérgio Bitencourt (2000), em que os padrões são
definidos. A mulher assume serviços domésticos, compreendida como “frágil”, dócil,
mãe, companheira, e dependente do marido. Por outro lado, o homem assume o
papel de provedor, com uma promessa de dar segurança à companheira, entre
outros papéis que reproduzem as condições de gênero alimentadas pelos discursos
dominantes, sendo constantemente reforçadas pela sociedade.
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Os efeitos da comunicação tornam-se mecanismos dissociativos, ou
manipulações inconscientes, que distorcem a realidade e provoca uma “dispersão”,
da originalidade do ser, ao assumir o outro como propriedade. Estes também são os
efeitos do condicionamento cultural comum nas relações familiares de dominação
sobre o outro, são, portanto, relações de poder, revelando não a força, mas uma
fraqueza disfarçada, pois as relações são revertidas em dependência, apego e
controle.
No condicionamento de ambos não há espaço para a reflexão, para um
“pensar juntos”, anestesiando as consciências acerca da violência, disfarçada de
amor, pois o tratamento que recebem não é de afeto, de cuidado (solicitude),
resultando em “promessas não cumpridas e esperanças não alcançadas”, na
expressão de Ravazzola (2007), restando-lhes os sentimentos de culpabilidade,
incertezas, autoestima baixa, medo, insegurança entre outras percepções.
6.3 O funcionamento das famílias através dos rígidos padrões culturais e
transgeracionais repetitivos
Na terceira cena dessa análise, consideramos os aspectos da cultura e da
tradição familiar através dos episódios em que a matriarca da família demonstra ter
sofrido o mesmo problema, mas encontra-se presa ao passado, mesmo depois do
marido morto. A cena ocorre no terraço do prédio onde Ana mora. A mãe que havia
questionado a filha que está para se casar apenas no civil afirmando que se trata de
um casamento de “qualquer jeito”, exigindo que ela se case no religioso e propõeinclusive que use o seu vestido de casamento, já utilizado por Pilar. Ana rejeita a
sugestão da mãe. Pilar demonstra tristeza e a mãe diz: “Você tem que se acertar
com Antônio”. Dá-se início a uma discussão em torno do casamento de Pilar, Ana
diz que a irmã deveria divorciar-se e pedir à justiça uma restrição para o marido,
antes que algo pior aconteça. A mãe afirma que Ana não sabe nada do que se
passa entre Pilar e Antônio. Ana se revolta e diz “- Quem não sabe é você... Ou não
quer saber...”, e diz para a irmã: - “Por que não conta? Todos os tombos nas fichas
do hospital? Quantas vezes você já caiu da escada?" Você não olha para onde
anda?”A mãe ignora e diz simplesmente: “Deixe sua irmã em paz”. “Ela sabe o que
fazer”. Ana fica mais exaltada e fala sobre os espancamentos, as contusões
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musculares, a perda de uma vista... - “O maldito até chutou o rim dela”. Pilar se
revolta, pega o vestido e joga para fora, deixando-o preso nos cabos da fiação
elétrica.
Conforme Salvador Minuchin (2008), “as famílias são sistemas complexos
compostos de indivíduos que necessariamente vêem o mundo de suas próprias
perspectivas individuais (p. 57)”. De acordo com o autor, são muitas as interações
que promovem ou não os conflitos e o equilíbrio em suas relações. Conforme a
abordagem sistêmica, dentro dessa ordem algumas famílias também apresentam
padrões de funcionamentos, dentro dos seus subsistemas, para manter o equilíbrio,
a homeostase. Em certos momentos, quando as questões não são resolvidas
satisfatoriamente, os membros da família buscam hierarquicamente os meios de
solucionar tais problemas. Em seu funcionamento, algumas famílias mais
tradicionais tentam manter a autoridade através dos padrões rígidos, mas, conforme
afirma o autor, se essas forças vêm por imposição, elas apresentam uma má
adaptação.
Nessa análise, da cena descrita, a matriarca sustenta esse tipo de
funcionamento, mas as situações não encontram soluções. A tentativa de simplificar
o problema, e manter a ordem pela tradição e os valores culturais e religiosos emmanter o casamento da filha, ela dá sinais de ocultação da violência sofrida,
ignorando o próprio sofrimento e o da filha. Parece que Icíar Bolain, a autora do
filme, pretende revelar que existe um quadro da violência em padrões
transgeracionais repetitivos, que é naturalmente reproduzido nos sistemas
familiares.
Sabemos que esses padrões, hábitos, valores e costumes são transmitidos
de uma geração para outra, mas são também questionados por alguns de seuspares. Na personagem Pilar, a violência intrafamiliar mostra que a
transgeracionalidade pode estar relacionada a um segredo familiar, que imprime a
seus membros, ou pelo menos parte deles o olhar do silêncio, o não dito, mantido
pela lealdade familiar como regras para a sua sustentação, conforme Ribeiro e
Bareicha (2008). Essa manutenção neutralizada pela personagem Pilar e
simplificada pela mãe é inconsciente, ela se estabelece como uma forma de justiça e
a equidade de uma ética contida no sistema familiar que precisa ser reproduzida.
Analisando a partir da perspectiva de Wittgenstein, a “cegueira para o
aspecto”, na expressão de Hebeche (2008), estaria representada pelo simbolismo
do “vestido” de noiva impresso na figura da matriarca que sustenta através do seu
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próprio silêncio e tenta manter a reprodução das estruturas vivenciadas em sua
geração, sendo transmitida e até então mantida pela filha. Dessa forma, a
neutralidade e a ocultação, são aspectos que revelam o “como” a família vê,
interpretam e mantêm a sua cultura procurando permanecer vivo o seu sistema
familiar. O questionamento de Ana leva Pilar a arremessar o vestido como se tivesse
rompendo essa tradição, pondo em crise a manutenção desse sistema rígido, dando
lugar a um funcionamento mais dinâmico na família, possibilitando que Ana se case
ao seu próprio modo.
6.4 Desafios da terapia para mudar o comportamento agressivo
A quarta cena apresenta as técnicas de um grupo terapêutico do filme. Nesta
cena vamos analisar se as técnicas e as reuniões do grupo favorecem ou não a
consciência, o cuidado e a superação da violência intrafamiliar. Podemos também
analisar brevemente o papel do Estado perante o problema da violência doméstica e
os paradoxos do duplo vínculo nas relações familiares.A cena destaca a intervenção terapêutica grupal. Antônio busca a terapia com
a promessa de mudar seu comportamento agressivo. Enquanto estão separados,
envia mensagens impetrantes e presentes à mulher insistindo que o aceite de volta.
Quando acompanha a primeira sessão do grupo, ele parece assustado com as
narrativas de violência contra as mulheres. Fica em silêncio num tom reflexivo. Os
homens são convidados a evitar o comportamento violento. O terapeuta pede que
um dos participantes fale sobre como conseguiu vencer suas reações de fúria. Elenarra um acontecimento em que havia espancado a mulher a ponto de deixá-la
inconsciente, achando que a tinha matado: “Isso me fez acordar, entendem?”, diz o
participante. Diante dos assombros dos presentes, o terapeuta pergunta: “Como
controlar os impulsos?”. Um deles responde: “Sair para fora um pouco”, depois o
terapeuta afirma: “Estamos começando a reconhecer o ódio, mas ainda não
sabemos como controlá-lo”. “Quero que pensem num momento de paz, de prazer e
escrevam sobre essa sensação...”.
Após a sua adaptação, e do retorno da mulher para a casa, o filme mostra
Antônio tendo encontros freqüentes em diálogos abertos com o terapeuta após seus
“ataques de nervos”, procurando-o a cada sinal de descontrole emocional. Sua
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intenção de mudar parece sincera, mas conseguir o controle parecia um esforço
ineficaz. Recebe do terapeuta a orientação de registrar suas experiências e
sensações num caderno colorido, amarelo para alertar os perigos, vermelho para as
coisas negativas, e, verde para as positivas.
Outro fato importante para ser abordado nessa análise, são os paradoxos
vividos pelo personagem, ele quer mudar e não consegue. Conforme a teoria
sistêmica esse paradoxo é denominado por Bateson de duplo vínculo, que, aliás,
existe em quase todo o filme, por ser muito comum às relações humanas como
aspectos muito peculiares às famílias e às culturas. O duplo vínculo diz respeito às
mensagens contraditórias contidas na comunicação entre os pares, duas pessoas
ou mais. “Devido a uma adaptação inadequada, as pessoas procuram modificar a
realidade para que ela se torne menos ameaçadora, tendo com conseqüência a
alienação mental ” (VINÍCIUS, 2010). Uma das cenas que retratam mais claramente
esse paradoxo, é a cena em que Antônio ajuda o irmão em um mutirão para
construção da casa, surge um diálogo em que ele dá uma opinião e se sente
frustrado com a má resposta do irmão. No retorno para casa faz perguntas à Pilar
sobre o ocorrido deixando-a sem opções para responder, e como a esposa não
responde, ele se irrita, depois que lhe dá uma resposta para satisfazê-lo, ele se irritamais ainda, interpretando os fatos como desdenho. Descontrola-se, pára o carro,
desce e começa a dar pontapés e socos.
Olhando para a figura do personagem, sabemos que sozinho ele não
consegue controlar seus impulsos, o que seria simplificador apenas responsabilizá-
lo de seu comportamento, sem ter um olhar mais amplo do problema. Uma denúncia
colocaria o Estado para punir o agressor, quando impugnado pelas leis penais, mas
teria a sua subjetividade ignorada, conforme os autores Angelim e Diniz (2006),muito embora, isso não tenha ocorrido no filme, apenas uma tentativa da esposa de
registrar a queixa. Parece que a cineasta quer apontar a omissão do Estado (no
caso, Espanhol, mas também ocorre no Brasil), mostrando um ato de delação de
Pilar numa delegacia, onde o atendente era um homem que não consegue entender
as declarações da mulher. Mas sabemos também que o Estado não consegue
mudar o agressor, embora utilize da força, da punição (FOUCAUT, 1977, apud
ANGELIM e DINIZ, 2006). No Brasil, muitos casos são encaminhados para as
instituições representantes como os NUPS (Núcleo de intervenção Psicossocial),
para intervir nos relacionamentos violentos ou chegam ao Juizado Criminal, que
embora, muito bem assessorados não são suficientes para conter a violência. Da
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mesma forma, com as denúncias nas delegacias, a aplicação da lei Maria da Penha,
não obstante o avanço nessa área, ainda não conseguiu minimizar os efeitos dos
atos violentos cometidos contra as mulheres.
Segundo Kaufman (1999 apud Clímaco, 2008) a compreensão do indivíduo
“violento” está ligada mais diretamente às construções sociais, onde a formação do
indivíduo é machista. Os homens constroem armaduras que os isolam do contato
afetivo com o próximo e do cuidado, seja para outros ou para ele mesmo. Ele é
impedido de manifestar sentimentos de medo, dor e carinho, tendo a raiva como
uma das poucas emoções permitidas pela sociedade. No filme, a imagem projetada
pelo grupo dos homens é aquela da crença de merecimento de privilégios que
devem ser concedidos pelas mulheres. Por serem geralmente os provedores,
quando chegam em casa, querem um jantar pronto, atenção e reconhecimento das
esposas. Nesse enquadre, o personagem Antônio vivencia um comportamento
inseguro, de um homem que comete agressão, mas se apresenta com uma baixa
autoestima, desconhece suas habilidades, não têm objetivos e imputa na mulher as
mesmas impressões, impedindo-a de seguir seus sonhos. Houve um momento em
que Pilar ouvia suas queixas sobre seus fracassos e percebendo que sua ascensão
despertava ciúmes no marido, disse: “Você tem medo Antônio... De que você temmedo?”. Para Edgar Morin (2005), o medo é a fonte do ódio e da incompreensão. A
falta de amor leva a pessoa ao ciúme, que o impede de reconhecer a própria
autonomia e as qualidades do outro.
Voltando à questão da terapia, podemos afirmar que ele não teria vivenciado
a significação dos efeitos da violência, e dos seus impulsos nervosos. Ele seguiu
todas as regras, mas não conseguiu expandir sua consciência para mudar seu
comportamento. Na perda do cuidado consigo e com a esposa/e filho, ele se agarraa algo que lhe dê segurança (terapia), e que torna mais fácil e cômodo para si
(anotações no caderno), interpretando o que diz Fernandes (2011), é indiferente
quanto ao ódio, e à diligência de amor para com os pares. Isso mostra que, as
técnicas do grupo terapêutico por si só não foram suficientes, embora bem aplicadas
pelo terapeuta. Nesse sentido, os atos interventivos vão além do uso das técnicas,
implicam, antes de tudo, uma responsabilidade maior e envolvimento e cuidados
com as vivências do paciente.
Nesse âmbito, a terapia encontra um grande desafio: por um lado a
necessidade de desconstruir as imagens patologizantes do indivíduo, e por outro, a
desconstrução das ideologias dominadoras presentes na sociedade, partindo das
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próprias vivências do terapeuta. Entendemos essa formação como um processo de
intersubjetividade, como um olhar das próprias vivências para compreender a do
outro. Isso nos permite reconhecer nossas próprias violências, e ampliar nossa
visão, ajudando à medida do possível a mudar esses contextos, uma vez que
estamos envolvidos e também somos responsáveis pelas mudanças das condutas
que não desejamos (RAVAZZOLA, 2008). Nesse sentido, a consciência do
terapeuta se dá através da compreensão da cultura, e como ele está nela inserido,
de tal forma que, se for ignorada pode deixá-lo “cego” para o problema da violência,
ou estimular a injustiça, se não estiver atento aos padrões e os significados culturais
(LAIRD, 2003).
Concluímos que, ao mesmo tempo em que as ferramentas técnicas
contribuem para o êxito da intervenção, o terapeuta deve estar preparado para essa
mediação apresentando todos os recursos que lhe tem em mãos. Saber que
nenhuma terapia por si só, e por melhor que seja não pode solucionar os problemas
surgidos da violência intrafamiliar. O próprio terapeuta pode indicar outros meios que
contribuem para esse processo, além da terapia tradicional e individual é indicado
associar aos sistemas de agentes de saúde e de controle, buscando a medida do
possível uma inter-relação, bem como outras modalidades de atendimento: a terapiafamiliar sem o agressor e terapias grupais, em um programa conjunto (RAVAZZOLA,
2007).
6.5 O despertar da consciência e da autonomia
Completando a análise da violência a partir do filme “Dou-te meus olhos”,
destacamos a última cena, quando a personagem demonstra ter recuperado sua
identidade, a consciência e o valor pessoal. Conforme Hebeche (2011), a psicologia
não pode nos ensinar a “ver”. Entendendo a expressão “ver” no sentido ontológico e
não físico. Mas essa é uma discussão epistemológica, que já tratamos em outro
momento. Basta evocar aqui um adendo apresentado pelo autor, que nos faz
compreender a consciência em relação à psicologia, pois “O mundo da consciência
não se refere a eventos a que se possa ter acesso por introspecção, e tampouco
pela observação comportamental (p. 17)” . Assim, a pretensão da objetividade sem
considerar como se dá a subjetividade, reduzindo o psicológico ao mental, de acordo
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com o modelo das ciências naturais, como afirma o autor, cria uma confusão das
vivências do sujeito ignorando suas próprias interpretações de mundo.
É interessante ressaltar que o despertar da consciência de Pilar não ocorre
numa terapia, mas ao longo das novas descobertas realizadas nas relações
interpessoais com a irmã e a mãe, nas novas interações no trabalho, na evolução de
seu pensamento ao refletir na mitologia e no aprendizado da arte, e, sobretudo, mas
infelizmente nos próprios atos violentos do marido. A cena que vamos analisar agora
se refere a esse último fato. Pilar está prestes a ser promovida no trabalho,
desempenhando uma atividade almejada por ela, é impedida pelo marido, que teme
ser traído, ou trocado por outro “melhor que ele”, mas também não aceita a
ascensão da esposa. Antônio cometeu um último ato violento tolerado por ela. Ele
rasga as roupas de Pilar deixando-a nua, e a expõe brutalmente na sacada do
prédio para que as pessoas na rua a vejam. Com tal humilhação sofrida, ela não só
decide deixá-lo, como também confronta as chantagens do marido que simula uma
tentativa de suicídio. No diálogo final com a irmã, Pilar diz: “Acho que agora acabou.
Não vou ficar com ele, não mesmo!”. Depois continua: “Preciso me enxergar... Não
sei quem sou... Há tanto tempo não me olho... Não consigo explicar...”.
Em meio às dores e ao sofrimento, Pilar desperta para uma consciência deseu valor pessoal, recupera sua autoestima e enfrenta o problema da violência.
Percebe que o tratamento que recebe não é amor, não confunde mais amor e
envolvimento emocional com os maus-tratos, não tem receio da dependência
financeira, pois sabe de seu potencial. Enfrenta sua vergonha social, e pode até sair
de “pantufas” em caso de emergência, como o fez ao socorrer o marido para o
hospital na tentativa de suicídio. O sofrimento a fez enxergar a si mesma e o uso da
arte expandiu sua consciência. A cegueira tinha anestesiado a sua consciênciaimpedindo-a de olhar para si e para a vida, e só após muito sofrimento descobre que
existe, mas quando olha novamente para si ao ver seu passado e seu presente,
surgem incertezas quanto ao futuro, ou seja, enfrentar seu próprio modo de existir,
ela diz: “Não sei quem sou...”.
Para Heidegger (2007), a essência do ser humano é existir. O existir, ou ek-
sistência, significa estar na verdade, na clareira do ser, isto é, a pessoa só existe
num sentido próprio, é o único capaz de perceber o seu ser, como um ser-no-
mundo, diferentemente dos outros seres. Esse sentido próprio é chamado pelo autor
de “Dasein”, uma expressão alemã do século XVIII e assumida por ele para
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expressar a realidade do existir do ser humano, significando que ele é antes de tudo
um “ser”.
A vitimização é também um fenômeno de desconexão que perpetua os atos
de violência. Não se pode associar como prazer ou masoquismo por parte das
mulheres. Compreende-se que suas emoções estão distorcidas em função da
negação dos fatos por razões culturais, ameaças sofridas, medo de confrontar-se
com o problema e outras sensações vivenciadas na violência. Inclusive, afirma
Ravazzola, que não é comum pedirem ajuda por vergonha. Tem esperança de que
aquela agressão sofrida seja a última, e geralmente prometida pelo marido. Nesse
sentido, é valiosa a descoberta da protagonista, e certamente como ela muitas
mulheres podem ser identificadas, mas com isso não queremos exaltar a atitude
isolada para tentar superar da violência. É extremamente necessário buscar ajuda e
contar com o apoio das instituições competentes, da família, amigos e outros.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa reflexão pensamos na “consciência” como objeto principal da
psicologia, tendo como peça importante nesse processo, o cuidado, como
constituição mais própria do ser humano, na concepção heideggeriana. A matriz
epistemológica evocada aqui é a fenomenológica, procuramos uma possível
integração aos conceitos e técnicas da abordagem familiar sistêmica.
Estivemos, portanto, mais preocupados com a dimensão ontológica do
sujeito, seu modo de ser e suas vivências, do que com os sintomas apresentadosem sua disfunção, não desconsiderando sua importância, mas mudando o foco da
relação objeto-designação, e do sentido biológico, de um estímulo que provoca uma
série de respostas (RILEY, 1998). Pensamos essa interação, com o intuito de
promover um processo de expansão da consciência e da transformação dessas
relações na ordem do cuidado, ou seja, da percepção mais clara de seu ser, de sua
existência, para uma compreensão de si mesmo e do outro. No entanto, essa
compreensão não é meramente subjetiva, ela engloba também os aspectos e a
estruturação objetiva da interação humana, como afirma Edgar Morin (2005),
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submission against the possession of the woman's husband. The proposal seeks anunderstanding of the experiences of couples and families in situations of violence. Inanalyzing this issue, we are concerned with the process of expanding consciousnessin relationships often "neutralized" by the violence, and the formation of the self and
its complexities, avoiding the dichotomy of spiritual and materialistic conceptions, orlook limited and the stigmatizing qualification victim-aggressor, although not ignore itsimplications. The proposal vision presupposes the ontological dimension of humanevoking the prospect of "care", his way of being and their experiences, the clearerperception of being, existence and their ability to understand the world, yourself andthe other . The states of "blindness" of meanings and experiences require a broaderperspective in the phenomenon of violence beyond social issues, gender, culture andpathological states and symptomatic inmates in the human psyche. They arereflections of this study for future analysis and therapeutic possibilities for couplesand families experiencing the emotions of pain, emptiness, anger and contrasted