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www.criticaeconomica.net

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ÍNDICE

“CRÍTICA económica e social” será um meio de análise das questões europeias, das medidas de políticas públicas, da evolução não só da economia mas também da sociedade portuguesa e dos seus grandes debates.

A revista dirige-se a um público mais alargado do que o dos especialistas ou universitários, por-que entendemos que, agora como nos tempos vindouros, é ainda mais necessária uma contri-buição esclarecida (e plural) para a análise das opções económicas e sociais. Pretendemos que as participações sejam, por um lado, qualificadas e, por outro lado, suficientemente abrangentes de forma a constituir uma alternativa ao pensamento económico e social dominante nomeada-mente nos media. Pretendemos ainda divulgar estudos não só de economistas, mas também de sociólogos, historiadores, juristas, antropólogos, geógrafos ou de outras ciências sociais.

A revista será online, sem custos, e terá essencialmente um repositório de trabalhos já publicados em diversos âmbitos (blogs, revistas, jornais, relatórios para movimentos sociais, etc.) e que se tornariam assim mais facilmente acessíveis a diversos públicos, divulgando o pensamento crítico e informação para muito mais redes de pessoas.

A revista também pode ter mais e queremos que tenha mais: recensões, notas, artigos e estudos. Por exemplo, os estudos e propostas sobre reestruturação da dívida, análises dos números da po-breza, do desemprego, das desigualdades e concentração da riqueza, da crescente exclusão social, dos planos Juncker e Draghi, etc., etc., seriam temas úteis para uma edição actual. Se nesse sentido se envolverem jovens investigadores, a revista deve garantir-lhes um meio de publicação.

Finalmente, queremos ainda incluir textos de informação e debate em línguas acessíveis (p ex, inglês e castelhano) sobre temas de actualidade, como as opções na Grécia, os debates sobre programa económico em Espanha, França e Itália, ou textos clássicos.

Ana CostaEugénia PiresEugénio RosaFrancisco LouçãJoão Ferreira do AmaralJoaquim DionísioJosé Luís AlbuquerqueJosé Maria Brandão de BritoManuela ArcanjoPedro Adão e Silva

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1. DESTAQUE: EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

2. NOTAS VÁRIAS

3. DOSSIER: GRÉCIA

4. DOCUMENTOS

1.DESTAQUE: EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

Introdução: José Luís Albuquerque 05

António Bagão Félix De novo a TSU 07

António Bagão Félix A morte anunciada do sistema previdencial 09

Maria da Paz Campos Lima O que nos devem? Mudanças no regime de emprego e regressão social em Portugal no quadro da austeridade neoliberal 10

Manuel Carvalho da Silva TSU e luta de classes 21

Vítor Junqueira Que países reduziram a TSU? 23

Francisco Louçã Alguém no governo sabe fazer as contas da TSU? 26

Hugo Mendes Ousar arriscar 27

Maria Clara Murteira As pensões no colete-de-forças neoliberal da União Europeia 28

João Ramos de Almeida Três razões para perceber Passos Coelho 38

João Ramos de Almeida Teimoso e estúpido? 41

Eugénio Rosa O mito da redução da “TSU” como fator de competitividade 43

2. NOTAS VÁRIAS

Alexandre Abreu Tratados, leituras e subterfúgios 49

Alexandre Abreu O bom, o mau e o ausente 51

José M. Castro Caldas Vamos fazer o que ainda não foi feito? 54

Pedro Adão e Silva O Estado Predador 56

índice

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ÍNDICE

Pedro Adão e Silva Mudar de Vida 57

Francisco Louçã Passar o Rubicão, ou o programa do PS 58

João Ramos de Almeida Dúvidas sobre as propostas dos peritos do PS 67

João Ferreira do Amaral Austeridade e Protectorado 71

João Mineiro Desigualdade na Europa: Cinco Problemas do Problema Europeu 72

Viriato Soromenho-Marques O Advento de Behemoth 83

Fado O Fado da Austeridade 84

3. DOSSIER: GRÉCIA

Introdução: Ana Costa 86

Alexandre Abreu Tempo para quê? 87

Yanis Varoufakis Confissões de um marxista irregular no contexto de uma repugnante crise europeia 90

Stathis Kouvelakis A alternativa na Grécia 110

Costas Lapavitsas Para derrotar a austeridade, a Grécia deve-se libertar do euro 116

4. DOCUMENTOS

António Carlos dos Santos Recensão livro A Dívida Pública Portuguesa. O Manifesto dos 74 e as propostas europeias para a reestruturação 119

Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Crise e mercado de trabalho: Menos desemprego sem mais emprego? 124

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JOSÉ LUÍS ALBUQUERQUE

Entre as reformas ditas estruturais, são as do mercado de trabalho e do sistema de pensões que estão mais presentes nos artigos de opinião e nos comentários nos meios de comunicação social, nas redes sociais, no discurso político-partidário e nas declarações de instituições internacionais, nas referências a estudos académicos e trabalhos de investigação técnica.

Não podia por isso, especialmente depois da generalização do debate alargado à sociedade em Abril e que se prolonga em Maio, deixar de ter no 1º número de revista especial destaque a alguns contributos para as questões do emprego e da segurança social, e que não se ficam/ficarão por aqui.

Nos últimos anos as políticas implementadas baixaram salários, aumentaram e flexibilizaram o tempo de trabalho, redefiniram o quadro institucional da negociação coletiva, flexibilizaram despedimentos, reduziram o montante e a duração do subsídio de desemprego e aumentaram os impostos sobre o trabalho. (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/o-que-nos-devem-mudancas-no-regime-de-emprego-regressao-social-e-desigualdade-em-portugal-no-quadro-da-austeridade-neoliberal/)

Com uma elevada taxa de desemprego que não contempla o fenómeno crescente de desempregados ocupados, inactivos desencorajados e outros, subemprego (http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/documentos/barometro/13BarometroCrises_Crise%20mercadotrabalho.pdf) e fluxos migratórios dos últimos 3 anos de dimensão dos da década de 60 do século passado (e a emigração permanente representa mais de 40% da emigração), acentuando-se no quadro europeu o processo político de reforma das pensões (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/as-pensoes-no-colete-de-forcas-neoliberal-da-uniao-europeia/), a sigla TSU tornou-se em Portugal uma referência para as reflexões em torno do crescimento económico e do emprego e da sustentabilidade do sistema de pensões, ainda que os gastos salariais incluindo as contribuições das entidades patronais para a Segurança Social representem pouco mais de 1 euro em cada 5 euros dos custos de produção (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/tres-razoes-para-perceber-passos-coelho/) e seja necessário equacionar a diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/o-mito-da-reducao-da-tsu/).

emprego e segurança social

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EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

Sendo 1 ponto percentual da TSU cerca de 400 milhões de euros (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/teimoso-e-estupido/), uma descida significativa parece ser dificilmente compensada com receitas através do aumento do IVA (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/de-novo-a-tsu/) ou da criação de emprego (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/alguem-no-governo-sabe-fazer-as-contas-da-tsu/), tendo em conta os actuais níveis de fiscalidade e de perspectivas de evolução do emprego, e nem tem sido essa a solução preconizada pelos Estados-Membros da União Europeia (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/que-paises-reduziram-a-tsu/).

Resultará a baixa da TSU num efectivo plafonamento vertical (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/a-morte-anunciada-do-sistema-previdencial/), será um novo instrumento para aumentar o rendimento dos trabalhadores (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/ousar-arriscar/) ou é a revisitação da eterna luta de classes (http://www.criticaeconomica.net/2015/05/tsu-e-a-luta-de-classes/)?

O debate está (re)lançado.

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De novo a TSU

ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX

Volto ao tema da TSU e da proclamada intenção da descida da TSU das empresas.

Abandonada a tese abstrusa dos vasos comunicantes entre a TSU da empresa e a TSU dos tra-balhadores, o Primeiro-ministro lança de novo a ideia de reduzir aquela, ainda que de uma ma-neira absolutamente vaga e enigmaticamente ambígua. A seguir, Marco António Costa vem dizer que a contrapartida da descida da TSU (quantos pontos percentuais, muito ou pouco, gradualmente ou de uma só vez?) seria a criação de empregos que originariam mais receita global de TSU.

Como nestas coisas é sempre bom fazer umas simples contas, vejamos o seguinte quadro:

DESCIDA TSU PATRONA SUBIDA DO IVA TAXA NORMAL DO IVA Nº EMPREGOS A CRIAR AUMENTO DO VOLUME DE PARA COMPENSAR EMPREGO TOTAL DESCIDA DA TSU

1 p.p. 0,66 p.p. 23,66% 141.000 3,2%

2 p.p. 1,33 p.p. 24,33% 282.000 6,4%

4 p.p. 2,66 p.p. 25,66% 564.000 12,8%

5,75 p.p. 3,83 p.p. 26,83% 810.750 18,4%

[para a elaboração deste quadro, considerei 1) a redução da TSU patronal de 5,75% corresponde à anunciada pelo Governo em

Setembro de 2012; 2) o valor total da TSU e do IVA previstos no OE 2015; 3) o aumento no IVA nas taxas normal, intermédia e redu-

zida; 4) a criação de novos empregos com base num salário médio de 600 € por 14 meses, já referido por Francisco Louçã no post

“Alguém no governo sabe fazer as contas da TSU?”(clicar para ver) ; 5) a comparação do volume de emprego feita com o valor de

emprego total da última informação do INE (Fev. 2015) incluindo trabalho por conta de outrem e por conta própria].

Os números falam por si. Partamos da hipótese que a “desvalorização fiscal” que Passos Coelho e Marco António têm na cabeça é equivalente à de 2012 e que está, obviamente, afastada a hipótese de aumentar a TSU dos trabalhadores. (não esquecendo que, em média, os custos salariais são apenas cerca de 30% do custo total, o que significa que estamos a falar de uma redução global de 1,72%!) Então das duas, uma: ou o IVA passaria para perto de 27% (!) ou o milagre da multiplicação dos empregos seria de tal monta que a população empregada teria

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EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

que aumentar 18,4% (mais 810.000 postos de trabalho!) em simultaneidade com a redução da TSU, para não se perder receita…

Como a memória é curta vale a pena recordar o que afirmou, em 2012, o então ministro Vítor Gaspar ao explicar a medida depois abandonada. Disse esperar que a redução da TSU resulte num aumento de um por cento no emprego (o equivalente a cerca de 40 mil empregos), cer-tamente com a concordância do mesmo PM e, quem sabe, de Marco António Costa. Sem mais comentários…

UMAS NOTAS FINAIS, NESTA MINHA BREVE REFLEXÃO.

A primeira, para relembrar que a redução dos custos de trabalho nos últimos anos tem sido constante por força da estagnação salarial e da entrada ou reentrada no mercado de trabalho com um salário inferior (no conjunto dos anos de 2010,2011 e 2012, os custos unitários do trabalho diminuíram 6,1%, segundo o Banco de Portugal).

A segunda, sobre a substituição de parte da TSU por impostos (e só vale a pena falar do IVA, dada a sua magnitude), que, para além das consequências fortemente negativas e regressivas do ponto de vista económico e social, implicaria também o perigo de desvirtuar a relação contributiva sinalagmática que está subjacente ao modo de financiamento do sistema público de pensões, provocando um aumento de desresponsabilização contributiva e colocando o sistema contributivo refém do ministério das Finanças.

A terceira, para referir que teríamos uma situação de ineficiência porque em mercados imper-feitos e menos sujeitos à concorrência (designadamente externa), a redução da TSU poderia não ser repercutida para a frente (diminuição do preço final), mas para trás (aumento dos lu-cros). Ou seja, uma alteração da TSU, em parte revertendo para lucro de empresas (sobretudo rentistas), seria compensada aumentando o IVA sobre toda a gente…

É que a hipotética descida da TSU não poderia sequer ser selectiva, por razões comunitárias e técnicas. E, se pudesse, o que é uma empresa exportadora? A que exporta 100%, 50% ou outra percentagem? Num ano ou vários anos? E as empresas que operam no mercado nacional e que evitam importações (ou seja, com o mesmo resultado na balança comercial)?

Em poucas palavras: deixemo-nos de fantasia.

texto publicado inicialmente De novo a TSU, http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/04/21/de-novo-a-tsu/,

blogue do jornal Público ‘Tudo Menos Economia’ de 21 de Abril de 2015)

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A morte anunciada do sistema previdencial

ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX

Foi agora a vez de o PS apresentar o seu quase-programa eleitoral. Continuamos, assim, na onda dos “quase”. Uma quase-bíblia de 12 quase-apóstolos (ou quase-ministros?), para quase parafrasear António Costa.

Muito haverá a dizer sobre o extenso documento. Tem, aliás, a vantagem de colocar a análise e discussão dos principais desafios do País em campos bem diferenciados do ponto de vista ideológico. De um lado, uma doutrina liberal, apostando no crescimento pelo lado da oferta, do tecido empresarial e das exportações, com preocupações sociais qb; de outro lado, uma visão neo-keynesiana, centrada no estímulo da procura por via do aumento do rendimento disponível, do investimento público e com um pendor social mais visível. De um lado pague já, receba depois (receita certa, fé na redução da despesa), do outro lado, receba já, pague depois (despesa certa, receita logo se vê).

Mas, por agora, apenas quero salientar um ponto, que reputo de muito preocupante. Refiro-me à instrumentalização do sistema contributivo da Segurança Social (SS), que tem sofrido, nos últimos anos, uma descaracterização por via de alterações pontuais sem consistência sistémica. Mas, agora, estamos perante seu uso e abuso para outros fins, por mais defensáveis que aparentem ser. Sobre a redução da TSU relativa à parte das empresas já, há dias, escrevi neste blogue. Mas o PS vai mais longe: quer uma redução gradual e transitória da TSU dos trabalhadores de 4 p.p. Somada à da en-tidade patronal atinge 8 p.p. (ou seja no total 23% das receitas totais da TSU, qualquer coisa à volta de 3.000 milhões por ano (muito mais do que a estimativa do documento do PS).

E ironia das ironias: esta redução da TSU dos trabalhadores acaba por ter o mesmo efeito (para a SS) do chamado “plafonamento vertical” sempre repudiado pelo Partido Socialista! Ou seja: dos actuais 11 % dos salários descontados, 7% continuam a sê-lo e 4% vão para poupança ou consumo. Hélas!

A maioria e também o PS, ainda que com matizes diferentes, têm falado e alimentado a ideia sen-tenciadora da insustentabilidade a prazo do sistema da SS. E, perante tal, o que propõem? Diminuir as suas receitas próprias drasticamente, assim contribuindo para aquela ideia, em vez de a contrariar. Paradoxal, não é? Em troca, embora de diferentes modos, propõem-se substituir as receitas próprias e consignadas da SS por intenções, mais ou menos vagas ou miríficas. O Governo fala em mais empre-go para colmatar menos taxa (ver números no meu post ”De novo a TSU”) O PS fala numa macedónia de novos impostos ou eliminação de reduções de taxas como no IRC (como se uma não redução do IRC fosse uma receita efectiva!) e numa fezada no ritmo de crescimento. Isto não é a diversificação das fontes de financiamento da SS, é a usurpação da base contributiva e a diluição da lógica previdencial trocando o certo pelo incerto e discricionário.

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EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

Com isto fazem gato-sapato do sistema da Segurança Social e dá-se uma machadada no con-trato social que o enforma. O chamado regime previdencial ou seguro social fica completa-mente descaracterizado, perde uma parte importante da sua lógica sinalagmática ou comu-tativa de relação entre o desconto feito e o benefício atribuído, fica completamente refém da pura lógica orçamental global do ministério das Finanças. Aliás, é curioso constatar a contra-dição da proposta socialista: dão um golpe na lógica contributiva das pensões com a forte redução da taxa que as financia, introduzindo uma acrescida componente fiscal, mas depois apelam à enfraquecida lógica contributiva para a futura redução das pensões!

Em suma, nesta matéria o documento entregue ao PS não deve ser levado muito a sério. Espe-ro que as pessoas competentes do partido nesta área façam o seu trabalho…

O que nos devem? Mudanças no regime de emprego, regressão social e desigualdade em Portugal no quadro da austeridade neoliberalMARIA DA PAZ CAMPOS LIMA

No contexto da crise financeira e económica internacional iniciada em 2008, a resposta europeia à chamada crise das dívidas soberanas de 2010, provocada, em primeiro lugar, pelo financiamento público à recapitalização da banca, consistiu numa dupla estratégia combinando uma política agressiva de austeridade e disciplina fiscal com uma política ancorada no conceito de ‘desvalorização interna’ visando reformas estruturais do mercado de mercado de trabalho, da proteção social e da negociação coletiva.

Com a Nova Governação Europeia, iniciada em 2011, o modelo social europeu torna-se variável de ajustamento da União Económica e Monetária. Nos últimos quatro anos, as recomendações do Semestre Europeu à generalidade dos estados membros, embora com ligeiras variações, orientaram-se no sentido da desvalorização salarial competitiva e da desregulação competitiva da legislação social (Pochet e Degryse, 2013). As políticas requeridas incluem como objetivos: indexar ou reduzir os custos com pensões e cuidados de saúde, em nome da sustentabilidade e da racionalização; alterar os sistemas de formação dos salários, mudando substancialmente os regimes de negociação coletiva na perspectiva da sua subordinação aos imperativos do mercado

texto publicado inicialmente A morte anunciada do sistema previdencial, http://blogues.publico.pt/

tudomenoseconomia/2015/04/23/a-morte-anunciada-do-sistema-previdencial/, blogue do jornal Público ‘Tudo Menos

Economia’ de 23 de Abril de 2015

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e da competição; baixar os custos salariais, através de vários tipos de intervenções, em nome da promoção do emprego; flexibilizar os despedimentos coletivos e individuais em nome da redução da segmentação do mercado de trabalho e do crescimento do emprego; e limitar os benefícios sociais, incluindo o subsidio de desemprego social, entendendo-os como desincentivo à participação no mercado de trabalho (Schulten and Müller, 2013; Schömann, 2014 ).

Estas recomendações ocorreram em paralelo não só com a imposição dos critérios do Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, mas também com a intensificação da coordenação europeia das políticas dos estados membros (Semestre Europeu e Euro-Plus Pact) e com a implementação de procedimentos impondo sanções financeiras (Six Pact), tendo como consequência a redução da margem de autonomia de decisão dos estados nacionais incluindo em matérias que anteriormente eram da sua exclusiva competência. Contudo, a intensidade do ‘novo intervencionismo europeu’ (Schulten and Müller, 2013, 2014) tornou-se mais evidente nos países em crise forçados a recorrer à assistência financeira da UE e/ou do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em troca de tal assistência, esses países tiveram de introduzir profundas reformas políticas, as quais foram estabelecidas tanto nos chamados ‘Memorandos de Entendimento’ (MoUs) com a Troika (UE, BCE e FMI), no caso da Grécia, Irlanda e Portugal, como nos ‘acordos stand-by’ com o FMI, no caso da Hungria, Letónia e Roménia. Por outro lado, países como a Espanha e a Itália foram sujeitos não só á pressão do semestre europeu, mas também à pressão do BCE no sentido de introduzir profundas reformas politicas.

QUADRO 1 – RECOMENDAÇÕES NO CAMPO DOS SALÁRIOS E DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA (2011 -2013)

Recomendações no campo dos

salários e da negociação coletiva

Semestre Europeu

(CNRs)

Troika - MoUs/ FMI -SBAs

Moderação salarial Bulgária, Finlândia, Itália, Eslovénia

Restrições aumento salário

mínimo

França, Eslovénia

Congelamento/ cortes salário

mínimo

Grécia, Irlanda, Letónia, Portugal,

Roménia

Congelamento/ cortes sector

público

Grécia, Irlanda, Hungria, Letónia,

Portugal, Roménia

Congelamento salários sector

privado

Grécia

Aumentos salariais com base na

produtividade

Alemanha

Descentralização negociação

coletiva

Bélgica, Espanha, Itália Grécia, Portugal, Roménia

Reforma/eliminação indexação

salarial

Bélgica, Chipre, Luxemburgo,

Malta

Fonte: Schulten e Müller (2013:299)

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A implementação das políticas de austeridade neoliberais nestes quatro anos representa uma divida colossal para com os povos da Europa e em particular do Sul da Europa. Não só porque estas políticas contribuíram para o retrocesso económico dos países, para a escalada do desemprego e precariedade do emprego, para a diminuição dramática de rendimentos e aumento da pobreza, para a crescente desigualdade e transferência de rendimentos do trabalho para o capital, mas também porque o seu resultado se traduziu num aumento exponencial da dívida incomportável com qualquer perspectiva séria de progresso económico e social. Além do que, no processo, estas politicas visando a desvalorização interna transformaram radicalmente instituições e/ou comprometeram profundamente a sua eficácia, reconfigurando os regimes de emprego (Gallie, 2013) na perspectiva liberal e as relações de poder em prejuízo dos trabalhadores.

AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE NEOLIBERAIS EM PORTUGAL: O QUE NOS DEVEM?

Nos últimos quatro anos, em Portugal, durante a governação da coligação PSD/CDS, não houve nenhum domínio de política com incidência no trabalho que tivesse escapado à deriva austeritária neoliberal, quer através das medidas requeridas pelo MoU, quer através das medidas não explicitadas no MoU, mas em linha com as suas exigências e sancionadas pela Troika, quer através das mais recentes medidas pós-Troika, enquadradas no semestre europeu. Com efeito, as políticas implementadas baixaram salários nominais e reais, aumentaram e flexibilizaram o tempo de trabalho, redefiniram o quadro institucional da negociação coletiva no sentido da sua erosão, flexibilizaram os despedimentos individuais e coletivos e promoveram o trabalho temporário, reduziram o montante e a duração do subsídio de desemprego e aumentaram os impostos sobre o trabalho. Deste modo assistiu-se a uma reconfiguração do regime de emprego (Gallie, 2013) em Portugal no sentido do modelo anglo-saxónico liberal eliminando ou reduzindo as componentes do regime de emprego que asseguravam alguma inclusividade (Campos Lima e Fernandes, 2014).

1. A REDUÇÃO DOS CUSTOS SALARIAIS E A NEGOCIAÇÃO COLETIVA

No campo da política salarial há que distinguir as medidas com incidência na redução do rendimento ilíquido salarial, quer dos trabalhadores do sector público, quer dos trabalhadores do sector privado. Apesar dos trabalhadores do sector público terem sido muito mais penalizados (Rosa, 2014), em ambos os casos tratou-se de um programa intensivo de desvalorização interna.

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IALQUADRO 2 - MEDIDAS COM INCIDÊNCIA NA REDUÇÃO DAS REMUNERAÇÕES (2011-2015)

Incidência Setorial Medidas

Medidas com incidência na redução do rendimento ilíquido salarial dos trabalhadores do sector público e do sector privado

Congelamento do salário mínimo no valor de 2011 (2012, 2013,2014) - MoUAumento do salário mínimo limitado a 20 Euros com redução da contribuição patronal em 0.75% (4º trimestre 2014/2015)

Cortes nos feriados e férias sem compensação remuneratória (a partir de 2012)

Redução para metade do valor das horas extraordinárias (a partir de 2012) - MoU

Medidas com incidência no rendimento salarial ilíquido dos trabalhadores da função pública

Cortes dos subsídios de 50% no subsídio de Natal (2011); Suspensão do subsídio de Natal e de Férias (2012);Cortes dos salários nominais acima de 1500 Euros (2011, 2012, 2013, 2014). Os mesmos cortes com redução de 20% (2015). Congelamento dos salários abaixo daquele montante. Bloqueio das carreiras.Aumento do horário de trabalho de 35 para 40 horas sem compensação equivalente (a partir de 2012).

A estas medidas acrescem as medidas tomadas relativas ao regime de negociação coletiva na lógica da ‘descentralização desorganizada’, as quais tiveram efeitos no dramático declínio do número de convenções setoriais e da cobertura das convenções coletivas negociadas, enquanto se reduziu também o número de convenções de empresa. Note-se, que além do impacto quantitativo, estas medidas visaram alterar a qualidade dos resultados da negociação coletiva setorial, encorajando atitudes patronais de pressão para a redução dos direitos laborais uma vez que não estava garantida a extensão das normas negociadas e pressionando os sindicatos a aceitar normas mais desfavoráveis à mesa das negociações, designadamente sob a ameaça de caducidade das convenções, intensificada pelas medidas tomadas já no período pós Troika.

QUADRO 3 - MEDIDAS INCIDINDO SOBRE O REGIME DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA – SECTOR PRIVADO (2011-2014)

Bloqueio da emissão das portarias de extensão (2012, 2013 e 2014) - MoU

Revisão dos critérios de extensão das convenções coletivas introduzindo restrições baseadas na representatividade das organizações patronais (50% do emprego no sector) – (2012, 2013 e 2014) – MoU; Revisão dos critérios, adicionando como critério de representatividade patronal a proporção de pequenas e médias empresas (a partir do 4º trimestre 2014)

Medidas visando a descentralização da negociação coletiva (a partir de 2012) - MoU: Possibilidade de celebração de acordos de empresa (AEs) por estruturas representativas dos trabalhadores em empresas com 150 trabalhadores ou mais; Possibilidade das convenções coletivas estabelecerem que as normas nos domínios da flexibilidade geográfica e funcional, gestão dos horários de trabalho e remunerações possam ser definidas por convenção coletiva de outro nível (por exemplo de empresa) - MoU

Normas imperativas no domínio do trabalho extraordinário e feriados

Instituição do Banco de Horas individual não regulado por convenções coletivas (a partir de 2012) – MoU.

Redução do período de vigência das convenções coletivas (de 5 para 3 anos) e de sobrevigência (de 18 para 12 meses) - (Iniciada no 4º trimestre 2014) – MoU/Semestre Europeu

Possibilidade de suspensão das convenções coletivas em situação de crise empresarial (Iniciada no 4º trimestre 2014) – MoU/Semestre Europeu.

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As consequências destas medidas foram desastrosas. Em três anos consecutivos a cobertura das convenções coletivas negociadas declinou drasticamente variando entre um quinto e um sétimo do número de trabalhadores cobertos por convenções coletivas em 2008. O número de convenções coletivas de âmbito setorial (CCTs e ACTs) nesses três anos consecutivos declinou também drasticamente variando entre um terço e um quarto do número de convenções negociadas em 2008. E finalmente os acordos de empresas também sofreram uma redução embora não tão significativa e o aumento observado em 2014 não atingiu os valores de 2008 (Quadro 4 e Gráficos 1 e 2).

QUADRO 4 – EVOLUÇÃO DA CONTRATAÇÃO COLETIVA 2008 -2014

  2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

CCT e ACT 199 164 146 115 46 46 72

AE 97 87 64 55 39 48 80

Total convenções 296 251 230 170 85 94 152

Portarias extensão 137 102 116 17 12 9 7

Nº Trabalhadores/cobertura 1894788 1397225 1407066 1236919 327662 242239 246388

Fonte: Gabinete de Estratégia e Estudos – GEE.

GRÁFICO 1 - EVOLUÇÃO NEGOCIAÇÃO COLETIVA - 2008-2014

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GRÁFICO 2 - Nº TRABALHADORES/COBERTURA DAS CONVENÇÕES COLETIVAS NEGOCIADAS

No sector público a negociação coletiva foi praticamente bloqueada pela ação unilateral do governo. Em primeiro lugar, pelas medidas já descritas com incidência nos salários. Em segundo lugar pelo bloqueio do governo às convenções negociadas entre os sindicatos e a administração local, recusando publicar cerca de 540 convenções coletivas incluindo o retorno ao horário semanal de 35 horas.

2. A FLEX(IN)SEGURANÇA

A estratégia de flex (in)segurança prosseguida, definida no essencial pelo MoU, baseou-se na redução, em simultâneo, da proteção no emprego através da facilitação dos despedimentos e trabalho temporário (de vários tipos) e na redução da proteção no desemprego. Esta estratégia concorre também para a ‘desvalorização interna’ facilitando a substituição de trabalhadores com contratos permanentes por trabalhadores com contratos temporários, cujos custos de trabalho são tendencialmente mais reduzidos e pressiona os desempregados a aceitar qualquer tipo de emprego. A combinação destas medidas tende a provocar a redução da qualidade de emprego no plano remuneratório e de outros direitos laborais.

No que se refere à facilitação dos despedimentos, o Código do Trabalho 2012 e as suas revisões posteriores acolheram no essencial as exigências do MoU ou respeitaram a sua filosofia isto é a ideia de que os motivos para os despedimentos individuais deveriam basear-se no desempenho dos trabalhadores (produtividade e realização de objetivos). Assim, de acordo com as exigências explícitas do MoU, alargou-se a possibilidade de despedimento por inadaptação às situações em que mesmo sem a introdução de mudanças (tecnológicas ou organizacionais) haja uma modificação substancial da prestação do trabalhador, nomeadamente, uma redução continuada de produtividade ou de qualidade. E também em linha com a filosofia subjacente ao MoU, a revisão posterior do Código de Trabalho de 2012,

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através da lei n.º 27/2014 introduziu a avaliação do desempenho como critério prioritário para a seleção dos trabalhadores a despedir. Ao abrigo desta lei, passam a existir cinco critérios ‘?objetivos?’ para despedir trabalhadores no caso da extinção do posto de trabalho, por ordem de importância: pior avaliação de desempenho, com parâmetros previamente conhecidos pelo trabalhador, menores habilitações académicas e profissionais, maior onerosidade pela manutenção do vínculo laboral do trabalhador para a empresa, menor experiência na função e menor antiguidade na empresa.

Contudo, uma das exigências do MoU vertida no Código do Trabalho 2012, isto é, a de eliminação das normas que previam a obrigação da tentativa de transferência do trabalhador para outro posto de trabalho disponível ou uma função mais apropriada no caso dos despedimentos individuais (por inadaptação e por eliminação do posto de trabalho) seria chumbada pelo Tribunal Constitucional, um ano depois da sua entrada em vigor.

O governo introduziu ainda, em várias etapas (Lei 53/2011, Lei 23/2012 e Lei 69/2013), na linha das exigências do MoU, a redução da compensação por despedimento afetando despedimentos individuais e coletivos: eliminou a compensação mínima antes em vigor, equivalente a três anos de antiguidade; introduziu dois limites máximos no montante da compensação, não podendo ser superior a 12 vezes a retribuição mensal e diuturnidades, nem superior a 240 salários mínimos; e reduziu, num primeiro tempo, a compensação por despedimento de 30 para 20 dias por ano de antiguidade e, num segundo tempo, de 20 para 12 dias.

No Plano Nacional de Reformas 2014, “Caminho para o crescimento: uma estratégia de reforma de médio prazo para Portugal“, iniciando a participação de Portugal no Semestre Europeu, o governo vangloriava-se com aquele conjunto de medidas considerando que permitiram reduzir significativamente a ‘rigidez excessiva do mercado de trabalho português e combater a sua forte segmentação’. No seu entender as medidas contribuíram para uma melhoria assinalável do índice Employment Protection Legislation (EPL) da OCDE, no que diz respeito aos despedimentos individuais e coletivos, que passou de 3,5 em 2008 para 2,7 em 2013, um valor inferior ao registado por países como a Alemanha, a Bélgica e a França.

Não obstante o discurso sobre a segmentação do mercado de trabalho, o governo não deixou de promover as formas precárias de emprego através de medidas legislativas, permitindo a renovação dos contratos a termo por mais um ano além do previsto (Lei 3/2012 e Lei 76/2013), entre outras medidas. De resto, a ideia de reduzir a segmentação do mercado de trabalho através da generalização da insegurança aos contratos de trabalho permanentes constitui uma falácia. Visto que não evita a continuação de outras formas de segmentação não visíveis nas estatísticas oficiais sobre contratos permanentes e contratos temporários, como se sabe da experiência dos países do regime de emprego liberal como é o caso do Reino Unido.

Ao mesmo tempo em que reclamava a flexibilização dos despedimentos, o MoU exigia a revisão do regime do subsidio de emprego no sentido da redução da sua proteção, consumando uma estratégia de flex(in)segurança: redução do montante do subsídio de desemprego e introdução de um perfil decrescente de prestações; e a redução da sua duração para 18 meses. Estas medidas

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de redução da proteção social no desemprego não são suficientemente compensadas pelas medidas também propostas pelo MoU de extensão da cobertura do subsídio de desemprego através da redução do período contributivo necessário para aceder ao subsídio de desemprego para 12 meses, nem pelo seu alargamento ao trabalho independente (com características especificas), dada a persistência e aumento do desemprego e do desemprego de longa duração.

O Decreto-Lei 64/2012 alinhou as mudanças legislativas pelo MoU. Com esta legislação o montante máximo do subsidio de desemprego diminuiu de 1.258 euros para 1.048 euros, sendo reduzido de 10% após um período de seis meses. Quanto à duração do subsidio de desemprego passou-se a exigir um período de dois anos de contribuições para se adquirir o direito ao subsidio de desemprego durante 18 meses. Enquanto anteriormente o período de atribuição variava entre um mínimo de nove meses e um máximo de 38 meses (dependendo da idade e tempo de contribuição), com a nova lei a sua duração passa a variar entre um mínimo de cinco meses e um máximo de 26 meses. Com o novo sistema a duração máxima do subsídio de desemprego que se aplica apenas para aqueles com um período mínimo de dois anos de contribuição varia entre 11 meses para pessoas com idade inferior a 30 anos; 14 meses para aqueles com idade entre 30 e 40 anos; e 18 meses para aqueles com idade superior a 40 anos. A extensão adicional destas durações depende da duração do período de trabalho anterior, e o máximo previsto, ou seja, até 26 meses aplica-se apenas a pessoas com mais de 50 anos, com um mínimo de 20 anos de contribuições. Finalmente, embora a lei tenha incluído uma medida positiva para alargar a cobertura do subsídio de desemprego através da redução do período contributivo necessário para aceder a prestações de desemprego de 450 dias para 360 dias, a redução da sua duração combinada com o aumento do desemprego e do desemprego de longa duração agravou na prática a exclusão do subsídio de desemprego de um grande número de pessoas desempregadas (ver Gráficos 3 e 4).

GRÁFICO 3 - % DESEMPREGADOS/AS SEM SUBSÍDIO DE DESEMPREGO (ESTIMATIVAS OFICIAIS)

Fonte: Campos Lima e fernandes (2014); Estatísticas da Segurança Social/beneficiários subsídio desemprego:INE e Eurostst/número de desempregados

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GRÁFICO 4 - DESEMPREGO DE LONGA DURAÇÃO EM % DO DESEMPREGO TOTAL (2004 - 2013)

Fonte: Eurostat(LFS).

3. OUTRAS CONSEQUÊNCIAS NO PLANO DA REGRESSÃO SOCIAL E DA DESIGUALDADE

A ligeira queda na taxa de desemprego oficial em 2014 não permite qualquer otimismo, uma vez que não reflete na sua totalidade o problema do desemprego no país. O aumento do número de pessoas em programas ocupacionais não contabilizadas oficialmente como desempregadas; o desemprego desencorajado (pessoas desempregadas que não procuram emprego) que não é contabilizado como desemprego e é contabilizado na população inativa; a persistência e aumento do subemprego (trabalho a tempo parcial de muito curta duração) que conta como emprego; e por último, mas não menos importante, o aumento da migração em massa, incluindo de jovens altamente qualificados, documentam a extensão do desastre provocado pelas politicas de austeridade neoliberal. O estudo recente do Observatório sobre as Crises e as Alternativas (Barómetro das Crises, nº13) estima que, se considerarmos estes esses fenómenos (sem contar o subemprego) como desemprego oculto, a taxa de desemprego ‘real’ em Portugal teria sido em 2011 à volta de 15,7%, atingindo 24,7% em 2014; e somando o subemprego atingiria perto de 30% da população cativa. (Gráfico 5).

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GRÁFICO 5 - DESEMPREGO OCULTO E SUBEMPREGO 2011-2014

Fonte: Barómetro das Crises nº 13, Observatório sobre as Crises e as Alternativas, http://www.ces.uc.pt/observatorios/

crisalt/documentos/barometro/13BarometroCrises_Crise%20mercadotrabalho.pdf

Paralelamente, a desigualdade de rendimentos aumentou em resultado do aumento do desemprego, do declínio dos salários, da redução das prestações sociais e da transferência de rendimentos do trabalho para o capital (Leite et al, 2013; Rosa, 2014). Enquanto entre 2005 e 2009 a tendência observada foi a de declínio progressivo da desigualdade, estagnando em 2009 e 2010, a partir de 2011 a dinâmica de desigualdade aprofundou-se, em particular no respeitante aos indicadores de desigualdade S90/S10 e coeficiente de Gini (Quadro 5, Gráfico 6).

GRÁFICO 6 - DESIGUALDADE NA DISTRIBUIÇÃO DO RENDIMENTO (2005-2013)

Fonte: Eurostat, SILC e INE, Inquérito às Condições de Vida e Rendimento.

QUADRO 5 – INDICADORES DA DESIGUALDADE DE RENDIMENTO (2005-2014)

Indicadores de desigualdade 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Gini Coeficiente 37,7 36,8 35,8 35,4 33,7 34,2 34,5 34,2 34,5

S90/S10 11,9 10,8 10,0 10,3 9,2 9,4 10,0 10,7 11,1

S80/S20 7,0 6,7 6,5 6,1 6,0 5,6 5,7 5,8 6,0

Fonte: Eurostat, SILC e INE, Inquérito às Condições de Vida e Rendimento.

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CONCLUSÕES

Nos últimos quatro anos, em Portugal, durante a governação da coligação PSD/CDS, a deriva austeritária neoliberal traduziu-se no aumento do desemprego e da pobreza, no declínio de salários reais e nominais, no aumento da desigualdade de rendimentos, e numa regressão económica e social sem precedentes, quer através das medidas implementadas no período de intervenção da Troika, quer através das recentes medidas pós-Troika enquadradas no semestre europeu. No percurso desmantelaram-se as instituições que distinguiam o regime de emprego em Portugal do regime de emprego anglo-saxónico liberal, em particular no que se refere à negociação coletiva e à proteção no emprego. E reduziu-se substancialmente a eficácia de instituições como o salário mínimo nacional e o regime de subsídio de desemprego. A discussão das alternativas em curso não o pode ignorar e qualquer agenda séria deve, pelo menos, pôr na ordem do dia a eliminação do conjunto de medidas aqui apreciadas, sob pena de transformar em norma a política de emergência e de exceção. A mensagem que tem sido passada é que tal propósito é radical. Radical seria que exigíssemos a anulação de tais medidas com efeitos retroativos, o pagamento integral de tal divida para com o povo português, o que convenhamos, seria da mais elementar justiça. A mensagem que tem sido passada, e que o caso das ‘negociações’ em curso com a Grécia tem vindo a demonstrar, do lado da EU e do FMI, é que não há alternativa, repetindo à exaustão como um mantra a frase de Margaret Thatcher que inaugurou a entrada no neoliberalismo na Europa dos anos 80. Contra tal inevitabilidade urge mobilizar esforços e conjugar solidariedades em Portugal, nos países do Sul da Europa e em toda a Europa pela proteção no emprego, pela negociação coletiva, pelo aumento dos salários compatível com uma vida digna, pela melhoria da proteção social, e pela recuperação e aprofundamento do modelo social europeu. E, paralelamente, colocar na agenda do dia a mobilização pela revisão do Tratado orçamental que esmaga os países da periferia europeia e a mobilização por uma reestruturação das dívidas que permita responder às necessidades das gerações presentes e futuras e abrir caminho para o progresso económico e social.

BIBLIOGRAFA E REFERÊNCIAS

Campos Lima, Maria da Paz e Lídia Fernandes. 2014. “A austeridade, a Flex(in)segurança e as mudanças do regime

de emprego em Portugal”, comunicação apresentada na conferência internacional 40 anos depois do 25 de Abril. A

crise dos sistemas demoliberais do ocidente. Lisboa / ISCTE-IUL, IHC-FCSH-UNL e CES Lisboa.

Gallie, Duncan. 2013. “Economic crisis, the Quality of Work, and Social integration” in Duncan Gallie (ed.) Economic

crisis, Quality of Work, and Social Integration: the European experience. Oxford University Press. 2013.

Leite, Jorge, Hermes Augusto Costa, Manuel Carvalho da Silva e João Ramos Almeida (2013), “Austeridade, reformas

laborais e desvalorização do trabalho”, in Anatomia da Crise: identificar os problemas e construir alternativas,

Observatório das Crises e das Alternativas.

Observatório sobre as crises e as alternativas. 2015. “Crise e mercado de trabalho: Menos desemprego sem

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mais emprego?”, Barómetro das Crises e das Alternativas nº 13, http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/

documentos/barometro/13BarometroCrises_Crise%20mercadotrabalho.pdf

Pochet, Philippe e Christophe Degryse.2013. “Monetary Union and the stakes for democracy and Social Policy”,

Transfer 19(1). 103-116. 2013.

Rosa, Eugénio. 2014., “A transferência do rendimento do trabalho para o capital na administração pública”. http://

www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2014/29-2014-rendimentos.pdf

Schömann, Isabelle. 2014. “Labour Law Reforms in Europe: adjusting employment protection legislation for the

worse? Working Paper 2014.02, ETUI (European Trade Union Institute), Brussels.

Schulten, Torsten e Torsten Müller. 2013. “A new European interventionism? The impact of the new European

economic governance on wages and collective bargaining”, in David Natali e Bart Vanhercke (eds.) Social

developments in the European Union 2012, Brussels: ETUI/OSE, 181-213.

Schulten, Torsten e Torsten Müller. 2014. “European economic governance and its intervention in national wage

development and collective bargaining” in Steffen Lehndorff (ed.), Divisive integration: The triumph of failed ideas

in Europe – revisited, Brussels: ETUI, 331-363.

TSU e a luta de classesMANUEL CARVALHO DA SILVA

A intenção do Governo reduzir a contribuição patronal para a taxa social única (TSU) e o que se conhece sobre os conteúdos do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) a apresentar à Comissão Europeia não deixam quaisquer dúvidas: a luta de classes está aí bem viva. Uma pequena minoria apropria-se de mais e mais riqueza e o povo é convidado à permanência na pobreza.

O Governo pretende fazer mais cortes nas pensões de reforma no próximo ano, com a promessa de algum alívio nos anos seguintes, manter a sobretaxa do IRS (3,5%) e a contribuição extraordinária até 2019, repor apenas em 2019 o valor dos salários auferidos pelos trabalhadores da Administração Pública em 2010, o que face à evolução da inflação significará consolidar uma significativa redução. Estas medidas surgem no contexto de uma campanha cheia de manipulações sobre as virtudes da redução dos custos do trabalho. Entretanto é garantida a descida do IRC e o fim da contribuição extraordinária do setor energético, ou seja, o Governo prepara-se, mais uma vez, para meter a mão no pote dos rendimentos dos trabalhadores, ao mesmo tempo que reforça os lucros do capital, com preocupações especiais com os acionistas de grupos como a Petrogal ou a EDP, cujos lucros já têm sido chorudos.

Passos Coelho e seus pares, criminosamente, querem vincular o país à continuação e

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aprofundamento da austeridade e apresentam os seus propósitos com tal arrogância que nos obriga a refletir e a agir com clareza e determinação. Passos Coelho faz-de-conta, ou toma como adquirido que o povo já está vencido, que o PS irá, no imediato, condescender perante o fundamental das suas propostas e a prazo se pode anular em posições de meias-tintas, que após as eleições legislativas os partidos do atual Governo estarão no “novo”, sozinhos ou acompanhados, que Cavaco Silva continuará, até fevereiro, a dar total cobertura às suas manobras e que o presidente seguinte se submeterá às “inevitabilidades” do neoliberalismo dominante na União Europeia.

Quando este ou qualquer outro governo reduzir a parte patronal na TSU, independentemente dos argumentos apresentados, há algo que é certo: a transferência de rendimentos. Os defensores dessa redução dizem que é para diminuir os custos do trabalho, criar emprego, atrair investimento e aumentar a competitividade. Mas será assim? Por outro lado, interroguemo-nos: o Governo corta nas pensões e nas despesas da Segurança Social em nome da sustentabilidade do sistema, mas já não se preocupa quando lhe retira uma grande fatia de receitas para a depositar nas mãos dos patrões?!

Segundo vários especialistas da Segurança Social é preciso reduzir 6 pontos percentuais na TSU para se reduzir em 1% os custos de trabalho, custos que em termos médios, a nível nacional, representam apenas 21% dos custos globais de produção. Porquê, senão por opção de classe, esta obsessão com os cortes nos custos do trabalho, quando o nosso custo de hora trabalhada é de 13,1 euros/hora e a média da Zona Euro é de 29,2 euros/hora, quando o peso das remunerações no PIB tem tido uma acentuada queda e, acima de tudo, quando todos sabem que a melhoria da nossa produtividade não está prisioneira do valor dos salários, mas de outros fatores sobejamente conhecidos.

Não há qualquer garantia de que os patrões venham a usar o dinheiro que lhes é oferecido para criar emprego. E, por cada ponto percentual retirado à contribuição para a Segurança Social (que vale aproximadamente 400 milhões de euros) era preciso, para compensar as receitas, criar 165 mil empregos, remunerados ao nível do salário mínimo nacional.

Se, como alguns setores patronais já começaram a reclamar, a parte patronal da TSU fosse reduzida em 8 pontos percentuais, era preciso desencantar uma nova receita para a Segurança Social superior a 3 mil milhões de euros por ano, ou criar mais de um milhão e trezentos mil novos empregos. É claro que precisamos de emprego, mas o que nos estão a propor é mentiroso e terá como únicos efeitos garantidos o aumento das desigualdades, a instabilização e o descrédito do sistema da Segurança Social.

Pela dignidade, pelo direito a salário e a pensões de reforma justas, pelo direito ao desenvolvimento da sociedade, vamos à luta.

(TSU e luta de classes, http://www.jn.pt/opiniao/default.aspx?content_id=4519302, Jornal de Notícias de 19 de Abril de

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Que países reduziram a TSU?VÍTOR JUNQUEIRA

Tem-se ouvido e lido ao longo da última semana que as taxas das contribuições para a Segurança Social -- generalizando para a famosa TSU -- têm servido de instrumento de política económica a vários estados-membros da União Europeia. Mais concretamente, fala-se de reduções da TSU como ferramenta comum, quase banal, na oficina social europeia.

Mas será mesmo assim? Houve assim tantas reduções? E com a envergadura que os partidos do arco da governação parecem querer pretender introduzir? Quais foram afinal os países que procederam a tais reduções? Uma pesquisa pela informação disponível revela-nos muito sobre esta matéria.

Neste exercício foi feita uma consulta ao MISSOC (ver Caixa 1). Numa primeira fase, comparou-se a situação a 1 de julho de 2009 com a de 1 de julho de 2014, para cada um dos estados-membros, a partir da informação disponível na secção de financiamento da Segurança Social por via de contribuições sobre rendimentos de trabalho. Depois, e já que é informação que está também publicamente disponível, validou-se o exercício com informação consultável nos relatórios nacionais do projeto de microssimulação EUROMOD (ver Caixa 2), os quais, entre outros assuntos, fazem referência às taxas contributivas em vigor nestes países ao longo do período acima indicado (ou de grande parte dele).

Advertências importantes:

• As percentagens apresentadas (taxa total = parte do trabalhador + parte da entidade empregadora) são meras referências obtidas a partir das relações contributivas aparentemente mais comuns (por analogia com a “nossa” TSU), nas proporções que cubram os riscos igualmente mais comuns (essencialmente, velhice, invalidez, sobrevivência/morte, desemprego, parentalidade e prestações familiares). Dado que alguns dos sistemas podem ser bastante complexos, esta contabilização nem sempre será a mais correta, não prejudicando contudo a avaliação da evolução entre 2009 e 2014.

• Por outro lado, as diferentes taxas não são imediatamente comparáveis entre estados-membros, pois dizem respeito a sistemas que podem ser muito diferentes em virtude da natureza das respetivas abrangência, adequabilidade e diversificação de fontes de financiamento. Todos estes fatores contribuem para diferenças de monta entre os sistemas, que podem explicar (ou não) as próprias diferenças entre as “TSUs”.

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Assim sendo, através deste exercício constatou-se que em apenas dois estados-membros houve reduções nas respetivas TSUs. Ou talvez nem sequer isso. É que num destes, a Alemanha, é abusivo dizer que 0,1pp de diferença na taxa contributiva global representam uma redução digna de nota (em 2014: 39,45% = 20,176% + 19,275%).

Assim sendo, apenas na Suécia se verificou uma redução significativa da TSU, mais precisamente em cerca de 2pp (taxa em 2014: 25,64% = 7% + 18,64%).

Em 11 dos estados-membros a TSU não se manteve, mas foi… aumentada:

Taxa total Trab. Ent. Emp. Evolução 09-14

Bulgária 30,3% 12,9% 17,4% <1pp

Chipre 15,6% 7,8% 7,8% 1pp

Finlândia Grande diversidade aprox. 1pp

França 40,75% 10% 30,8% 4,5pp

Grécia 32,1% 11,05% 21,05% <1pp

Hungria 46,5% 18,5% 28% <1pp a 2,5pp (*)

Letónia 34,09% 10,5% 23,59% 1pp

Lituânia 30,8% 3% 27,08% 0,1pp

Luxemburgo 23,8% 11,05% 12,75% 0,2pp

Polónia 41,42% 22,71% 18,71% 2pp

Reino Unido 25,8% 12% 13,8% 2pp

(*) MISSOC APONTA PARA 2,5PP, AO PASSO QUE EUROMOD APONTA MENOS DE 1PP.

Em outros 11 casos, a TSU permaneceu inalterada:

Taxa total

Trab. Ent. Emp.

Áustria 37,7% 17,2% 20,5%

Bélgica 45,32% 13,07% 32,25%

Dinamarca 8% + valores fixos e recurso generalizado a impostos

Eslováquia 42,8% 13,4% 29,4%

Eslovénia 37,67% 22,1% 15,57%

Espanha 35,35% 6,25% 29,1%

Estónia >36% 35% 1% + impostos sociais

Irlanda 12,5% 4% 8,5%

Itália 37,97% 9,19% 28,78%

Rep. Checa 45% 11% 34%

Roménia 43,85% 17,05% 26,8%

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Fora destas contas ficaram Malta, que tem um sistema contributivo assente numa lógica diferente, e Países Baixos, um sistema complexo onde houve evoluções em sentidos divergentes, não sendo claro o resultado final (mas onde não é abusivo concluir por uma manutenção do nível contributivo geral).

Onde reside então o significado para a ideia de que muitos países europeus têm reduzido a TSU para fins de política económica? Será que o alcance temporal deste exercício (cinco anos, ainda que sejam precisamente os cinco anos que coincidem com o ciclo terrível de austeridade e de políticas anti-crise, onde seria portanto expectável esta redução da TSU por quem a defenda nestes termos) é reduzido demais? Um olhar adicional ao MISSOC revela que mesmo que se esticasse o alcance temporal por outros cinco anos, os resultados seriam semelhantes. A única exceção cabe à Polónia, que nesse período terá reduzido as contribuições por conta dos riscos invalidez e sobrevivência, tanto por conta dos trabalhadores como das entidades empregadoras. É pouco.

Já que estamos em tempos de perguntas, repita-se uma vez mais esta: quais foram então esses outros países que reduziram a TSU para fins de política económica?

Curiosamente, já dizia Vítor Gaspar, em 2011 -- e tal serviu para pôr em causa a sua própria intenção de transposição para a realidade das intenções do FMI, um ano mais tarde, como sabemos -- que “A redução da TSU (...) ainda não foi usada deliberadamente por nenhum país para ganhar competitividade. É algo não testado”.

(Vítor Junqueira, revisto e adaptado de texto originalmente publicado em buracosnaestrada.blogspot.com, http://

buracosnaestrada.blogspot.pt/2015/04/reduziu-se-tsu-em-muitos-outros-paises.html)

CAIXA 1 - MISSOC: MUTUAL INFORMATION SYSTEM ON SOCIAL PROTECTION (HTTP://WWW.MISSOC.ORG/)

Em atividade desde 1990, o projeto MISSOC, da Comissão Europeia, constitui-se hoje como uma central de

conhecimento na área da proteção social (quadros legislativos, obrigações, prestações, regras, etc.) no espaço

europeu. Autoridades públicas, investigadores e cidadãos em geral têm ao dispor uma base de informação

descritiva, significativamente extensa e atualizada (ou retrospetiva), a respeito dos sistemas de proteção social de

cada Estado-membro, a qual pode ser consultada de forma isolada ou integrada, oferecendo uma gama diversa e

robusta de recursos para qualquer estudos comparativo nestes temas. Esta base de informação é alimentada pelas

próprias autoridades públicas que em cada país tutelam a área social.

CAIXA 2 - EUROMOD (HTTPS://WWW.ISER.ESSEX.AC.UK/EUROMOD)

Desenvolvido na Universidade de Essex, por encomenda da Comissão Europeia e em colaboração com equipas

nacionais de todos os estados-membros da União, o EUROMOD é um modelo de microssimulação de políticas

sociais e fiscais. Para o efeito deste exercício em redor das taxas contributivas, recorreu-se apenas a informação

relativa às mesmas que se encontra disponível no modelo, e em particular nos relatórios nacionais produzidos no

âmbito do EUROMOD, tão só como meio adicional de validação da informação obtida via MISSOC.

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Alguém no governo sabe fazer as contas da TSU?FRANCISCO LOUÇÃ

Anunciando a redução dos pagamentos patronais em TSU, o governo de Passos Coelho volta a uma das suas obsessões ideológicas. Não está sozinho nessa campanha. De facto, está sim-plesmente a repetir uma velha fórmula do FMI, que o anterior governo do PS aceitou incluir no primeiro memorando com a troika, mas que nunca foi aplicada porque a divisão da coligação e a oposição popular forçaram o governo a recuar, há dois anos.

A proposta, em si, é insignificante. É insignificante porque não altera em nada de substancial o custo de produção das empresas: como os salários nas empresas privadas são cerca de 25% dos custos totais, mesmo reduzir em 2% a TSU implicaria somente um abatimento dos custos para a empresa na ordem dos 0,5%.

E é inviável porque significa um aumento do défice orçamental, dado que a redução dos pagamen-tos à Segurança Social é défice (mais 400 milhões de défice por cada ponto percentual de redução da TSU). Claro que Marco António Costa, contabilista perito em respostas categóricas, nos diz que vão ser criados muitos empregos, que vão pagar esse défice com as suas novas contribuições.

Pois por isso mesmo, um investigador do Observatório sobre as Crises e Alternativas (do CES, Lisboa) fez as contas e determinou quantos empregos teriam que ser criados para garantir essa prestação (gráfico ao lado). Ao salário médio das contratações actuais, 600 euros, são necessários 141 mil novos empregos para compensar o abatimento de 1% e 291 mil para compensar 2%.

Estão a ver o outdoor da coligação PSD-CDS: “vamos criar 300 mil novos empregos para pagar o défice que criámos na segurança social”?

(Nota, 13h: diz-me agora pessoa ligada à preparação desta medida que o objectivo é chegar a 8% de redução do pagamento patronal em TSU. Se as contas de Marco António Costa se aplicassem, então seria preciso criar mais de um milhão de novos empregos… para pagar o rombo na segurança social e evitar o agravamento do défice. Nada bate certo, pois não? Isto não será mesmo para um aumento colossal de impostos?)

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/04/17/alguem-no-governo-sabe-fazer-as-contas-da-tsu/, blogue

do jornal Público ‘Tudo Menos Economia’ de 17 de Abril de 2015)

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Ousar arriscarHUGO MENDES

Quando o Partido Socialista pediu a realização de um estudo com um cenário macroeconómi-co para os próximos 4 anos partiu da constatação de um duplo problema:

(i) o problema de credibilidade das propostas políticas: depois do que se passou nas eleições de 2011, com a fraudulenta campanha montada pelo PSD, era essencial encon-trar uma forma de credibilizar as propostas da governação para o país, e em particular, as propostas de política alternativa que o PS tem defendido. A apresentação de um do-cumento de elevada exigência técnica como este honra a discussão pública e qualifica a democracia portuguesa.

(ii) o problema da crise profunda que o país atravessa: desde 2000, Portugal viveu duas vagas de ajustamento. A primeira resultou da criação do euro, do alargamento europeu a Leste e da entrada da China na economia global; e a segunda, da Grande Recessão de 2008-9, que o programa da troika reforçou em 2011. Hoje, apesar do fim da recessão técnica, a crise social e económica ainda se mantém, e este é o ponto de partida de qualquer futuro governo que queira arriscar tirar o país da estagnação.

Porém, não há risco politico sem controvérsia. Nas medidas avançadas no relatório, por exem-plo, as alterações à TSU têm gerado amplo debate. Muitos, da esquerda à direita, discordam do uso da TSU para fins de política económica, e algumas das dúvidas serão legítimas face ao desenho concreto da proposta avançada.

Porém, a questão mais ampla a que temos de responder é esta: pode um país que não tem po-lítica monetária, não tem política cambial, não tem política aduaneira, quase não tem política industrial e cada vez tem menos espaço para política orçamental excluir definitivamente a TSU do leque de instrumentos de política económica? Pode um país dar-se ao luxo de recusar mo-bilizar a margem orçamental adicional que a TSU lhe confere para aumentar o rendimento dos trabalhadores numa economia com 14% de desemprego e que dificilmente terá aumentos salariais nos próximos anos? Ou para, no domínio laboral, combater a precariedade que marca a experiência dos mais jovens, penalizando os contratos a prazo em relação aos permanentes?

Não haverá espaço para qualquer estratégia de desenvolvimento se, face aos contrangimen-tos externos, decidirmos atar as nossas mãos. “Atar as mãos” da política é um velho projecto da direita - aliás traduzido nas novas regras orçamentais da UE. Porém, o argumento das “mãos atadas” também serve quem, à esquerda, defende que nada é possível fazer sem reestruturar a dívida e recuperar instrumentos de política, se necessário à custa de uma confrontação eu-ropeia.

Ora, a estratégia avançada neste relatório não é mais arriscada do que a proposta pelo PSD/CDS que, com cortes imediatos nas pensões a pagamento, desemprego acima dos 10% em

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2019, e o contínuo enfraquecimento do Estado e da Segurança Social, pretende apenas gerir a estagnação. E dificilmente os riscos serão maiores dos que resultariam de um choque frontal com a UE, com efeitos previsíveis (veja-se o que aconteceu à estratégia do governo grego) e outros imprevisíveis, e portanto geradores de incerteza radical.

A atual arquitectura da zona euro coloca sérios entraves ao desenvolvimento dos países do Sul da Europa, mas a obrigação do PS, ao mesmo tempo que batalha na frente europeia para construir alianças que possam alterar as regras do jogo, é procurar uma estratégia nacional para fazer face à crise. Apesar do relatório apresentado ser um contributo fundamental, essa responsabilidade recai agora sobre o documento que representa o efectivo compromisso com os portugueses: o programa eleitoral do Partido Socialista.

As pensões no colete-de-forças neoliberal da União Europeia

MARIA CLARA MURTEIRA

AS REFORMAS DAS PENSÕES NA AGENDA POLÍTICA DA UNIÃO EUROPEIA

A questão das pensões entrou na agenda política da União Europeia em meados da década de noventa, quando se iniciou o debate europeu sobre a organização dos esquemas privados de protecção complementar. Com o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e a instituição da União Económica e Monetária, o debate sobre as pensões tornou-se central. As metas estabelecidas para o défice e a dívida públicos trouxeram para o primeiro plano a discussão sobre a sustentabilidade das finanças públicas e a necessidade de promover reformas nos sistemas públicos de pensões. Os sistemas públicos de pensões passam a estar sujeitos a uma atenta vigilância por parte das autoridades europeias encarregadas dos assuntos económicos e financeiros.

O processo de integração económica e monetária tem exercido uma influência decisiva no curso das políticas sociais nacionais, porque estas últimas têm sido impelidas a acomodar-se às exigências impostas pelo Tratado de Maastricht e, mais tarde, pela adopção do euro. Phillippe Pochet é um dos muitos autores que o reconhece: “Sem risco podemos afirmar que a união económica e monetária foi um catalisador das reformas nacionais”1. Por um lado, as pressões para proceder a reformas dos sistemas públicos de pensões vieram da esfera política, pois os Estados membros foram directamente pressionados a proceder a um esforço continuado

Ousar arriscar, http://www.accaosocialista.pt/#/44/ousar-arriscar, Acção Socialista Digital de 28 de Abril de 2015

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de consolidação orçamental que deveria incluir a estabilização ou redução da despesa em pensões. Por outro lado, o modelo instituído para a condução da política macroeconómica originou pressões indirectas para a reforma das pensões, ao produzir efeitos adversos no emprego e no crescimento económico, comprometendo dessa forma as receitas dos sistemas de segurança social.

De facto, a realização da união económica e monetária reduziu significativamente os instrumentos de política ao dispor dos governos. Por um lado, as políticas monetária e cambial deixaram de ser controláveis pelos governos. Por outro lado, as regras do PEC, juntamente com a dependência dos Estados em relação aos mercados de capitais para o seu financiamento, inviabilizaram a utilização do défice como instrumento de política económica. Uma política orçamental restritiva associada a uma política monetária centrada no controlo da inflação e a um euro forte (conveniente para evitar a inflação importada), num contexto de total exposição das economias ao comércio internacional, contribuíram para deprimir o crescimento e o emprego, sobretudo nas economias da periferia da Europa com estruturas produtivas mais frágeis.

Apesar da retórica dominante nos meios de comunicação social, aceite por grande parte dos actores políticos e bem enraizada na opinião pública, que atribui ao envelhecimento demográfico a responsabilidade pelos desequilíbrios financeiros dos sistemas públicos de segurança social, a realidade é que a tendência para a elevação do encargo das pensões em muitos países europeus é fruto essencialmente do disfuncionamento das economias. É o próprio modelo de condução da política económica na União Europeia que, ao provocar o avolumar do desemprego e um crescimento débil, origina a desestabilização financeira dos sistemas de segurança social. Neste sentido, já em 2004, Jean-Paul Fitoussi afirmava ser difícil entender a defesa activa do Pacto de Estabilidade e Crescimento, por tantos, tendo em conta a sua duvidosa fundamentação teórica e empírica. Segundo a sua interpretação:

“De facto, induz a suspeitar que o Pacto não é defendido por si, mas sim como um meio de forçar uma agenda “oculta” mais alargada. Restringir as finanças públicas, por vezes contra toda a lógica, pode de facto servir o propósito de reduzir o papel do Estado na economia. Deprimir o crescimento e o emprego torna o encargo dos sistemas de segurança social mais pesado, e assim faz parecer a reforma ainda mais inevitável e fácil de engolir pelo eleitorado” 2.

Entretanto, os critérios de “disciplina orçamental” que Fitoussi criticara radicalizaram-se. O Tratado Orçamental tornou-se hard law, prevendo mecanismos automáticos de correcção dos défices excessivos e sanções para os países incumpridores.

O ENCARGO DAS PENSÕES E AS VARIÁVEIS QUE O DETERMINAM

Importa ter presente que o encargo das pensões não depende apenas da evolução da despesa em pensões, pois mede-se pelo valor da despesa em pensões em percentagem do PIB (Despesa em Pensões/PIB). Assim sendo, o crescimento económico é decisivo. Diferentes decomposições

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do encargo das pensões permitem analisar a influência das variáveis demográficas e económicas que afectam o indicador.

Sejam: R, a população idosa (com mais de 65 anos), admitindo-se, para simplificar, que equivale ao número de reformados; A, a população em idade activa (entre os 15 e os 64 anos);

, a pensão média; , o ratio de dependência dos idosos (população idosa/população em idade activa); , a relação entre o PIB e a população em idade activa que, impropriamente, se pode designar “produtividade média dos activos”.

• Uma primeira decomposição permite examinar o efeito do aumento da dimensão da população idosa no encargo das pensões:

A despesa em pensões é equivalente ao produto do número de reformados pela pensão média. A elevação do número de reformados tende a elevar a despesa em pensões. No entanto, isso não significa que seja necessário reduzir a pensão média na economia para manter constante o encargo das pensões. O crescimento do PIB (em denominador) pode ser suficiente para compensar o aumento da despesa em pensões (em numerador).

• Uma segunda decomposição revela a influência da variação do ratio de dependência dos idosos (população idosa/população em idade activa) no indicador em análise:

A elevação do ratio de dependência dos idosos também não eleva necessariamente o encargo das pensões, pois pode ser compensado pela elevação da “produtividade média dos activos” (em denominador).

• Uma terceira decomposição do encargo das pensões desagrega o termo que se encontra em denominador na expressão anterior(3). A desagregação do quociente entre o PIB e o número de pessoas em idade activa, impropriamente designado “produtividade média dos activos”, é indispensável porque a variável em denominador, A, é um indicador de-mográfico (população em idade activa). Ora, nem todas as pessoas em idade activa fazem parte da população activa e nem toda a população activa está empregada.

Em denominador encontram-se agora três termos:

• – o peso da população activa no conjunto da população em idade activa;

• – a taxa de emprego, ou seja, a parte da população activa que se encontra

empregada;

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– a produtividade média do trabalho, traduzida pela relação entre o PIB e o emprego.

Conclui-se que só é possível analisar a evolução do encargo das pensões numa sociedade a envelhecer considerando, em simultâneo, o comportamento das variáveis demográficas e das variáveis económicas (o PIB, o emprego, a produtividade do trabalho) e que os efeitos do envelhecimento demográfico podem ser compensados por um bom desempenho da economia. Em consequência, a necessidade de reformar os sistemas públicos de pensões não é a consequência inevitável do envelhecimento demográfico. Essa ideia não passa de um mito, apesar de estar muito divulgada na opinião pública, de ser reproduzida reiteradamente pelos actores políticos e nos meios de comunicação social. Na realidade, o ritmo de crescimento económico é decisivo e pode ser suficiente para evitar a elevação do encargo das pensões. Portanto, é possível preservar o nível de vida relativo dos pensionistas numa sociedade a envelhecer, desde que seja seguida uma política económica centrada no pleno emprego e no crescimento. Como Massimo Pivetti observou, o recuo dos esquemas de repartição tradicionais de prestações definidas “não é a consequência inevitável do envelhecimento populacional; mas a consequência de os actores políticos terem desistido de elevados níveis de emprego e crescimento como objectivos políticos primários”4.

O COMPORTAMENTO DAS VARIÁVEIS QUE INFLUENCIAM O ENCARGO DAS PENSÕES

Tem interesse verificar como evoluíram, num período longo, em Portugal, as variáveis demográficas e económicas que integram as duas primeiras decomposições do encargo das pensões. Na tabela seguinte estão inscritos os valores das taxas de crescimento médio anual das variáveis referidas, em diferentes subperíodos.

TABELA 1- PIB A PREÇOS DE 2011, R, (PIB A PREÇOS DE 2011/A) e (R/A) - CRESCIMENTO MÉDIO ANUAL

Fonte: Pordata.

A análise comparada do ritmo de crescimento das variáveis em numerador e em denominador, em qualquer uma das duas primeiras decomposições, permite identificar uma alteração de tendência em 2000. Entre 1960 e 2000, tendo como referência a primeira decomposição, conclui-

Período

Primeira decomposição Segunda decomposição

PIB a preços de 2011 R (PIB a preços de 2011/A) (R/A)

1960-1970 5,78% 1,63% 6,29% 2,12%

1970-1980 4,91% 2,87% 3,42% 1,41%

1980-1990 3,63% 1,94% 2,88% 1,20%

1990-2000 2,99% 2,21% 2,49% 1,70%

2000-2010 0,74% 1,61% 0,63% 1,50%

2010-2013 -2,17% 1,64% -1,49% 2,34%

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se que o crescimento do PIB real ultrapassou significativamente o crescimento da população idosa, em todos os subperíodos. Em alternativa, se se considerar a segunda decomposição, verifica-se que o crescimento da “produtividade média dos activos” ultrapassou largamente o crescimento do ratio de dependência dos idosos, em todos os subperíodos. Ou seja, no período longo compreendido entre 1960 e 2000, em todos os subperíodos considerados, o ritmo de crescimento económico compensou sempre largamente o efeito do envelhecimento demográfico.

Todavia, essa tendência foi revertida a partir de 2000, deixando o ritmo de crescimento económico de ser suficiente para compensar o efeito do envelhecimento demográfico. O problema agravou-se, de 2010 para 2013, período em que se regista um crescimento médio anual negativo do PIB real, o que significa que a evolução da economia passou a contribuir, por si só, para elevar o encargo das pensões.

O envelhecimento demográfico tem vindo a ocorrer de forma lenta e gradual na sociedade portuguesa. O que se alterou, a partir de 2000, foi o ritmo do crescimento económico. Porém, os debates sobre a sustentabilidade futura dos sistemas de pensões, em geral, omitem a referência à responsabilidade do modelo de condução da política económica na zona euro pelo agravamento das dificuldades de financiamento do sistema de segurança social (os seus efeitos adversos no emprego e no crescimento) passando a constituir, desse modo, fonte de pressão indirecta para a reforma do sistema. Após a assinatura do Memorando de Entendimento com a troika, a recessão induzida pelas políticas de austeridade causou um rápido avolumar do desemprego, contribuindo para deteriorar a situação orçamental da segurança social e agravar a situação demográfica (a partir de 2010, os saldos natural e migratório passaram a ser negativos). Em paralelo, a condicionalidade associada ao plano de assistência financeira passou a ser um factor de pressão política directa para a redução da despesa social.

O debate a que se assiste hoje sobre as reformas das pensões está completamente balizado: o único objecto de discussão são as diferentes estratégias que podem ser adoptadas para cortar pensões. As reformas são equacionadas sem questionar o modelo de condução da política económica da zona euro. Todavia, aceitar este enquadramento do debate (discutir as reformas dos sistemas de pensões sem discutir o modelo de condução da política económica que mina a sua sustentabilidade financeira), significa aceitar, sem explicitar, que o disfuncionamento da economia continue a exercer uma pressão permanente para o desmantelamento do sistema público de pensões.

O PROJECTO SOMBRIO DA UNIÃO EUROPEIA PARA AS PENSÕES

A estratégia europeia para as pensões concentra-se em promover a congruência das políticas de pensões com o modelo adoptado para a condução da política económica. Num contexto em que se restringiu significativamente o conjunto dos instrumentos de política económica ao dispor dos governos nacionais, a sua capacidade de influenciar o emprego e o crescimento económico ficou drasticamente reduzida. Segundo a corrente de pensamento dominante nas

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instituições europeias, o emprego e o crescimento devem resultar de políticas do lado da oferta, como as reformas estruturais do mercado trabalho e dos mecanismos de protecção social. O mercado de trabalho deveria ser flexibilizado para reduzir o desemprego (desregulamentar e reduzir os custos do trabalho, salariais e contribuições sociais). No que se refere aos sistemas públicos de pensões, a ideia dominante pode ser assim resumida: por um lado, são acusados de contribuir para aumentar a dimensão do Estado, originando ineficiência e elevados níveis de défices públicos e dívida; por outro lado, são analisados em função dos seus efeitos no funcionamento do mercado de trabalho (os incentivos que incorporam e os custos do trabalho). Note-se que, de acordo com esta visão, as contribuições sociais – a principal fonte de financiamento do sistema – representam um obstáculo ao emprego e ao crescimento.

Apesar de as políticas sociais nacionais permanecerem na esfera de competência dos Estados-membros, a influência da União Europeia exerce-se de forma menos visível do que noutros domínios mas tem sido significativa. A influência tem sido exercida através dos novos métodos que se difundiram no domínio da política social, como o “método aberto de coordenação” (MAC) que visa influenciar as reformas nacionais estabelecendo orientações gerais não vinculativas para a política (soft law). Na área das pensões, o MAC contribuiu para o estabelecimento de princípios e objectivos comuns, bem como para a definição de um conjunto de indicadores para avaliar a situação dos países e controlar os progressos realizados no sentido dos objectivos comuns. Não impõe a mesma orientação a todos os Estados membros, mas contribui para influenciar as decisões nacionais relativas às pensões ao criar uma “visão política comum”5.

Ao contribuir para formar uma “visão política comum”, o MAC tem sido um meio de promover a congruência da política de pensões com a orientação da política económica. O relatório da Comissão Europeia intitulado Adequate and Sustainable Pensions6 traduz de forma expressiva essa visão. Aí se explicita que a política de pensões se deve subordinar aos imperativos de consolidação orçamental e de promoção do emprego e da competitividade das economias. Por um lado, defende-se a contenção da despesa em pensões, para evitar a insustentabilidade financeira dos sistemas públicos, e recomenda-se um papel crescente para a provisão privada. Por outro lado, preconiza-se que as políticas de pensões se adaptem a políticas económicas orientadas para a oferta, devendo ser “favoráveis ao emprego”, definindo adequados incentivos à oferta e à procura de trabalho: as contribuições sociais, porque são uma componente do custo do trabalho, não devem crescer para evitar a redução da procura de trabalho; as pensões, por seu turno, não devem ser demasiado generosas para não desincentivarem a oferta de trabalho dos idosos7. Além disso, a estratégia europeia atribui ênfase à permanência dos idosos no mercado de trabalho, recomendando diversas medidas de “activação”: o ajustamento da idade da reforma ao aumento da esperança de vida, os incentivos à manutenção no mercado de trabalho e os desincentivos à antecipação da reforma. No que se refere à organização dos esquemas públicos de repartição, a tónica é colocada na garantia de níveis mínimos e recomenda-se o reforço do carácter contributivo das pensões (um laço mais estreito entre contribuições e prestações).

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Esta visão comum tem orientado os programas de reforma desenvolvidos em muitos Estados membros, desde 20038. A reforma de 2007, em Portugal, inspirou-se na “visão política comum” e nas recomendações da estratégia europeia. Com a introdução de medidas graduais, encobriram-se alterações profundamente transformadoras: as prestações futuras reduziram-se de forma expressiva, abandonou-se o objectivo de garantir a manutenção do rendimento; o sistema passou a organizar-se segundo novos princípios9.

As recomendações europeias recentes insistem na redução da provisão pública e do reforço da privada. O Livro Verde sobre as pensões10, publicado em 2010, desconsiderando os efeitos devastadores da crise financeira sobre o valor dos activos dos fundos de pensões, dedica o essencial das suas propostas aos planos de capitalização privada e ao modo como se devem organizar para melhorar o seu funcionamento futuro. O Livro Branco11, publicado dois anos mais tarde, apesar de reconhecer que as reformas recentes dos regimes públicos de pensões causaram a redução das taxas de substituição, insiste na necessidade de prosseguir a política de cortes na despesa para promover a sustentabilidade financeira. De forma aparentemente contraditória, o discurso oficial continua a afirmar o objectivo da adequação das pensões. De facto, a realização deste objectivo é relegada para a esfera dos mercados. As alternativas recomendadas para compensar a perda de rendimento causada pelos cortes nas pensões passam, ou pela permanência dos idosos no mercado de trabalho (o aumento da idade da reforma), ou pelo recurso aos mercados financeiros (adesão a esquemas de poupança-reforma complementar privada cujo desenvolvimento deveria ser apoiado). Em relação às alternativas que podem ser utilizadas para manter os níveis de vida, para além de “pensões profissionais e individuais, seguros de vida e outras formas de acumulação de activos”, o documento menciona: “existem instrumentos (por exemplo contra-hipotecas) que permitem às pessoas converter activos (em geral, a sua casa) em rendimentos de reforma adicionais”12. O projecto de desmantelamento dos sistemas públicos de pensões não podia ser mais explícito!

Não é possível “salvar a segurança social” no colete-de-forças imposto pelas políticas neoliberais vigentes na União Europeia. Neste quadro, o desmantelamento dos sistemas públicos de pensões será inevitável, pois estes estão a ser pressionados por vários lados: por políticas macroeconómicas que desistiram dos objectivos do pleno emprego e do crescimento, aquelas que poderiam contribuir para aumentar as receitas do sistema e reduzir o encargo das pensões; pela visão da eficiência no mercado de trabalho que preconiza contribuições baixas, para não elevar os custos do trabalho, e pensões pouco generosas, para não desincentivar a oferta de trabalho; por uma agenda política favorável ao comércio livre e à perfeita mobilidade de capitais, exigindo que os sistemas de pensões se coloquem ao serviço da competitividade externa das economias; por uma ideologia que pretende reduzir a provisão pública ao mínimo para alargar a esfera dos mercados.

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UM DEBATE JÁ DELIMITADO

No quadro das políticas neoliberais vigentes na União Europeia, o debate sobre as reformas das pensões já está delimitado: discutem-se tão-somente as vias de reduzir a provisão pública.

A estratégia de substituição dos esquemas públicos de pensões por esquemas privados de contas individuais financiados por capitalização – que esteve no centro da anterior campanha do Banco Mundial a favor da privatização – não está hoje em causa. A transição para esquemas privados de capitalização origina elevados encargos para os orçamentos públicos, exigindo um aumento substancial da dívida pública a curto prazo. Como não é possível sujeitar os trabalhadores a um “duplo pagamento” – contribuir para financiar as pensões dos actuais reformados e contribuir para acumular activos nas suas contas individuais – nos processos de transição, os Estados assumem o pagamento das pensões correntes, para que os trabalhadores passem a contribuir para acumular activos nas suas contas individuais. Num tempo em que os orçamentos públicos se encontram sob grande pressão, a transição não é viável.

A redução da provisão pública tende a ocorrer através de duas estratégias principais: as reformas paramétricas ou a transição para um esquema de contas virtuais de contribuições definidas. Qualquer delas favorece o desenvolvimento da provisão privada. A redução da provisão pública associa-se, geralmente, à criação de esquemas complementares privados de capitalização. A imposição de cortes nas pensões motiva também a procura espontânea de fontes adicionais de rendimento na reforma (como a poupança individual ou os esquemas de pensões de adesão voluntária), a qual é muitas vezes favorecida através de benefícios fiscais.

A estratégia das “reformas paramétricas” concretiza a redução das pensões de diversas formas: alterando os parâmetros da fórmula de cálculo, os métodos de indexação, as condições de elegibilidade, etc.

A estratégia da conversão do esquema público de repartição num modelo de contas individuais virtuais foi concebida na Suécia. É considerada por muitos uma terceira via13, entre a estratégia das reformas paramétricas e a transição para os esquemas privados de capitalização. Este modelo mantém o financiamento por repartição, evitando os custos de transição, mas estrutura-se à imagem dos esquemas de capitalização de contribuições definidas. Como o modelo é de contribuições definidas, as pensões desligam-se dos salários e o termo de referência para o cálculo da pensão passa a ser a soma das contribuições passadas. O valor da pensão não é conhecido nem garantido a priori: depende do valor das contribuições passadas, da longevidade esperada no momento da passagem reforma e da “taxa de rendimento virtual” das contribuições fixada pelo governo. A redução do valor das pensões em relação aos salários dos últimos anos tende a ser drástica. O modelo sueco inclui ainda um mecanismo de equilíbrio automático que reduz as pensões já em pagamento e os rendimentos das contas individuais, se a evolução demográfica ou a conjuntura económica forem desfavoráveis. O equilíbrio financeiro é garantido automaticamente; no reverso da medalha, encontra-se a insegurança de rendimento. Um estudo recente do Departamento de Protecção Social da

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OIT refere que a pobreza relativa dos reformados na Suécia, entre 2005 e 2012, aumentou de 10 para 18%, em resultado do mecanismo de equilíbrio automático14. Segundo Karl-Gustav Scherman, Presidente Honorário da International Social Security Association, são previsíveis reduções drásticas das taxas de substituição na Suécia, em resultado do modo de funcionamento do modelo. O autor questiona se este sistema, financeiramente sustentável, pode ser politicamente sustentável no longo prazo quando se tornarem manifestos os seus efeitos15.

OS PROCESSOS POLÍTICOS DAS REFORMAS DAS PENSÕES

As reformas das pensões têm-se caracterizado por uma imposição sistemática de políticas que não são validadas pelos eleitores. Os processos políticos das reformas tendem a violar as normas de transparência e da responsabilização. Esta questão está bem identificada na literatura de ciência política, desde que Paul Pierson desenvolveu uma tese inovadora, argumentando que os processos políticos que caracterizam o recuo do Estado de Bem-Estar seguem regras diferentes das que caracterizam a expansão16. Ao contrário do que acontece na fase de expansão, em que os actores políticos podem reclamar créditos pelas medidas que introduzem (credit claiming), o recuo do Estado de Bem-estar é um exercício de evitamento de culpa (blame avoidance), porque as reformas regressivas não reúnem o apoio popular. Pierson salientou que, para introduzir reformas impopulares, os governos que executam os cortes tendem a seguir métodos de ofuscação e estratégias de “dividir para reinar”.

Na realidade, nos processos de reformas das pensões, os meios de confundir e dividir, a que Pierson se referiu, têm-se generalizado. A finalidade é enganar ou manipular a opinião pública para reduzir a oposição às reformas. Por um lado, os métodos de ofuscação fazem parte das estratégias de evitamento de culpa; visam desresponsabilizar os actores políticos que executam os cortes. Os métodos de ofuscação usados com maior frequência nas reformas das pensões são dois: o gradualismo, que diminui o impacto dos cortes disseminando-os no tempo, e os mecanismos de equilíbrio automático, que reduzem os níveis das pensões sem intervenção dos governos e evitando o debate político (os factores de sustentabilidade, que fazem depender o valor da pensão da evolução demográfica ou económica, os esquemas de contribuições definidas, que realizam o ajustamento do lado das pensões, o mecanismo de ajustamento automático do modelo sueco). Por outro lado, a estratégia de “dividir para reinar” passa por persuadir alguns para impor custos a outros. Nas reformas das pensões tem assumido sobretudo duas facetas: a compensação, mediante acordos negociados em troca de benefícios para os trabalhadores no activo mas que penalizam os reformados, e a aplicação desfasada dos cortes, que afecta a gerações futuras sem alterar a situação da geração presente.

No entanto, o recuo do Estado de Bem-estar nem sempre é um exercício de evitamento de culpa17. A justificação atribuída às reformas regressivas permite, por vezes, reclamar créditos políticos (credit claiming). Isto acontece quando os cortes se justificam em nome de objectivos

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maiores: alegando “reformar para salvar o sistema”, para garantir a sustentabilidade financeira, para gerar emprego, etc. ou alegando “reformar para realizar aspirações de justiça social”, para reduzir os privilégios de uns, concentrar recursos nos mais desfavorecidos, etc. As reformas regressivas são, por vezes, viabilizadas por acordos políticos alargados entre partidos do governo e da oposição. O objectivo é ganhar cobertura política para legitimar as reformas; dessa forma, a oposição é silenciada.

Em síntese, os processos políticos das reformas das pensões tendem a violar a regra da transparência. Esses processos têm conduzido à imposição de políticas que, conhecidas as suas reais consequências, quando submetidas a escrutínio eleitoral, seriam certamente rejeitadas. Sem discussões públicas informadas e debates políticos abertos, não é possível mobilizar esforços no sentido da defesa do sistema público de pensões. A organização de um sistema que assegura direitos, dignidade e segurança de rendimento na reforma é demasiado importante para continuar a ser discutida e decidida em espaços fechados, por grupos de políticos e técnicos que não explicitam a sua agenda política.

1 - Phillippe Pochet, “Influence de l’Intégration Européenne sur les Reformes des Politiques Sociales dans les États

Bismarckiens”, Revue Belge de Sécurité Sociale, 2011, 3, 511-541.

2 - Jean-Paul Fitoussi, “Reform of the Stability and Growth Pact”, European Parliament, Briefing paper for the

Committee for Economic and Monetary Affairs, nº 2, Abril 2004. Disponível em: <https://halshs.archives-ouvertes.

fr/hal-00972683/document>. Acesso em 6 de Maio de 2015.

3 - Sobre esta decomposição, ver Massimo Pivetti, “The ‘principle of scarcity’, pension policy and growth”, Review of

Political Economy, 2006, 18, 379-390.

4 - Massimo Pivetti, “The ‘principle of scarcity’, pension policy and growth”, Review of Political Economy, 2006, 18, p.

387.

5 - Ver Bruno Palier, “The Europeanisation of Welfare Reforms” Inequality Summer Institute, Harvard: Kennedy

School of Government, 2006, p.8.

6 - European Commission, Adequate and sustainable pensions. Synthesis report 2006. Brussels, European

Commission, 2006.

7 - Idem, ibidem, p.18.

8 - Comissão Europeia, Joint Report from the European Commission and the Council on Adequate and Sustainable

Pensions, Brussels, Comissão Europeia, 2003.

9 - Este tema foi desenvolvido em Maria Clara Murteira, “La réforme des retraites au Portugal en 2007 : un

changement structurel”, Revue française des affaires sociales, 2013, 3, 127-147.

10 - Comissão Europeia, Livro Verde. Regimes Europeus de pensões adequados, sustentáveis e seguros, COM (2010)

365 final, Bruxelas, Comissão Europeia, 2010.

11 - Comissão Europeia, Livro Branco. Uma agenda para pensões adequadas, seguras e sustentáveis, COM (2012) 55

final, Bruxelas, Comissão Europeia, 2012.

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12 - Idem, ibidem, p.6.

13 - Sobre esta matéria, ver World Bank, “Notional Accounts. Notional Defined Contribution Plans as a pension

reform strategy”, World Bank Reform Primer, Washington D.C., 2001.

14 - International Labour Office, “Social protection for older persons: Key policy trends and statistics”, Social

Protection Policy Papers, International Labour Office, Social Protection Department, Geneva, ILO, 2014, p. 24.

15 - Karl-Gustav Scherman, “The Swedish public pension under financial stress”, Global Social Policy, 2012,

12, p.339.

16 - Paul Pierson, Dismantling the welfare state? Reagan, Thatcher, and the Politics of Retrenchment, Cambridge,

Cambridge University Press, 1994.

17 - Sobre esta matéria, ver Jonah D. Levy, “Welfare Retrenchment”, in Francis G. Castles, Stephan Leibfried, Jane

Lewis, Herbert Obinger, and Christopher Pierson (Ed.s), The Oxford Handbook of the Welfare State, 2010, p. 552-

565.

Três razões para perceber Passos Coelho JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

“Essa foi talvez a única importante reforma que não conseguimos completar neste domínio fiscal durante estes quatro anos”.

Há várias formas de entender as recentes declarações de Passos Coelho sobre a necessidade de reduzir “os custos do trabalho”.

Primeiro, Pedro Passos Coelho não percebeu que já conseguiu reduzir os “custos do traba-lho”. De acordo com os dados fornecidos pelas empresas ao INE, os quadros de pessoal re-duziram-se de 2010 a 2012 (ano mais recente das estatísticas) em 331 mil postos de trabalho (menos 9%!), em que se verificou a desaparição de 81 mil empresas. E o valor dos gastos com pessoal reduziu-se nessa dimensão (menos 9%). Mas se os gastos por trabalhador se reduzi-ram apenas em 1%, o volume de vendas caiu nesses dois anos 7% , a prestação de serviços 12% e, consequentemente, o valor criado pelas empresas 14% e o excedente bruto de explo-ração (rendimento das empresas) caiu 21%. E estamos a falar apenas até 2012. A partir desse ano, entraram em vigor as alterações à lei laboral que conseguiram reduzir substancialmente a factura salarial média individual, que redundou - segundo os dados mais recentes - numa trans-ferência de valor dos trabalhadores para as empresas superior a 3 mil milhões de euros, por ano. Dir-se-á que isso não é ainda suficiente. Mas nesse caso, quem possa dizer isso está como Pas-sos Coelho que parece que não ter entendido por que é que não conseguiu no seu mandato reduzir mais os “custos do trabalho”.

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Olhe para este gráfico:

FONTE: ESTATÍSTICAS DAS EMPRESAS, INE

Os gastos salariais - já com contribuições para a Segurança Social - pesavam em 2012 pouco mais de 21% do valor de produção, valor que pouco mudou desde 2004. Ou seja, para reduzir 1% o valor da produção (e com o preço final das mercadorias ou serviços, para os tornar mais competitivos), os salários teriam de reduzir-se 5%. Se fosse necessário realizar uma desvaloriza-ção de 16% - como queria o FMI em 2011 – os salários teriam de reduzir-se 80%! Ou seja, a úni-ca forma de o conseguir seria... introduzir robots nas empresas e exterminar os trabalhadores!

Segundo as mesmas estatísticas, os serviços fornecidos às empresas pesam cerca de 35% do valor de produção. Quase o dobro dos gastos com pessoal. Mas por que é que se insiste tanto na redução dos “custos do trabalho”?

Foi em parte por isto:

1) que o relatório que os técnicos de vários ministérios e do Banco de Portugal elabo-raram em Julho de 2011, questionaram a eficácia de uma descida das contribuições so-ciais, como forma de compensar a impossibilidade de uma desvalorização cambial. 2) ou que surgiram críticas técnicas e mesmo do patronato após o anúncio de Passos Coelho a 7 de Setembro de 2012 de que a Taxa Social Única (TSU) dos trabalhadores iria aumentar de 11 para 18%, enquanto a das empresas iria descer de 23,75 para 18% (ver minuto 10). Foi uma

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EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

ideia que Vítor Gaspar admite ter discutido com António Borges (“Vítor Gaspar por Maria João Avillez”). Disse então Passos Coelho: “Não existem curas rápidas que substituam a preparação cuidadosa e paciente do crescimento económico. Mas podemos agir com rapidez para aliviar e estancar o aumento do desemprego.” E a medida “rápida” foi adoptada com esse objectivo. Mas face à oposição generalizada - que, segundo Gaspar - teve uma “grelha de leitura” muito “simplista” e que “parecia saída de um documento socialista do século XIX” (trans-ferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas), levou o Governo a recuar e, em vez disso, a aprovar no OE 2013 o “enorme aumento de impostos”, que ainda perdura. Mas nesse caso porque insiste Passos Coelho em fazer renascer um nado morto?

Essa é a terceira razão: Passos Coelho não tem condições para reintroduzir a medida, embora apa-reça agora a defender uma descida da TSU para as empresas de forma faseada, sem que se perceba:1) quem pagará a medida - se os trabalhadores, a receita de IVA ou da própria Segurança Social; 2) qual a dimensão da descida e qual a sua eficácia, já que, se os gastos com pessoal pesam 21% da produção, as contribuições para a Segurança Social pesam 20% dos gastos de pessoal! Ou seja, para que a produção desça apenas 1%, as contribuições para a Segurança Social te-riam de descer ao redor de 25%. Ou seja, a receita das contribuições para a Segurança Social teriam de sofrer um corte de 17% para conseguir o fraco resultado de descer 1% no preço final. E quem beneficiaria mais? As grandes empresas, com grandes concentrações de massa salarial e em bens nada transacionáveis nos mercados internacionais.

Mas eu acho é que Passos Coelho não quer reintroduzir a medida. Aliás, há oito meses Passos Coelho defendia precisamente o contrário;

1) quer, sim, tomar a iniciativa do debate nas legislativas;

2) e, ao mesmo tempo, sacudir todas as culpas da má situação do país, da subida do desem-prego e do fraco crescimento económico, dando um passo em frente. Encontrar uma bóia de salvação para as eleições. Como se a culpa não estivesse na sangria provocada pela austeri-dade, mas em todos os que não o deixaram aplicar as medidas necessárias para salvar o país. Na verdade, Passos Coelho sempre soube muito bem como ganhar eleições.

Três razões para perceber Passos Coelho, http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/04/tres-razoes-para-perceber-

passos-coelho.html, blogue Ladrões de Bicicletas de 13 de Abril de 2015

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Teimoso e estúpido?

JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

Pedro Passos Coelho tem uma malapata com a questão da TSU e já o devia saber.Mas essa malapata advém da irresponsável leviandade e crassa impreparação com que a direita insiste, nos últimos quatro anos, em aprovar essa medida assassina para a Segurança Social. O objectivo oficial da medida é dar maior competitividade externa à economia portuguesa, reduzindo os custos das empresas para que se reflitam numa descida dos seus preços finais. (ver minuto 10).

1) Olhando para as estatísticas nacionais, toda esta confusão estaria a ser feita por 4% dos custos de produção das empresas nacionais (números de 2012, os mais recentes). Ou seja, para que a medida tivesse efeito sensível, seria necessário acabar com quase todos os descontos das empresas para a Segurança Social, ficando apenas os trabalhadores a cuidar da sua protecção social. É este o objectivo não declarado? Por outro lado, os custos com serviços contratados pelas empresas representam 35% dos custos de produção! Mas aí nada de concreto se faz... Faz isto sentido à luz do objectivo declarado?

2) Olhando para os descontos sociais que as empresas poupariam, a medida facilitaria a vida aos grandes empregadores nacionais como as grandes cadeias de distribuição – Pingo Doce e Sonae, os CTT (foram privatizados, não foram?), multinacionais de trabalho temporário, etc. Uma empresa com um trabalhador pouparia 680 euros ao ano. Uma com 350 trabalhadores 350 mil euros (números de 2010). Com mil empregados, é só fazer as contas... Faz isto sentido quando a maioria das empresas são pequenas e médias? Ou quando os grandes empregadores não estão em concorrência internacional?

3) Se a ideia é compensar a Segurança Social com o acréscimo de descontos vindos do crescimento do emprego - como atabalhoadamente sugeriu agora Marco António Costa, o ex-secretário de Estado da Segurança Social e coordenador Permanente da Comissão Política Nacional e Porta-Voz do PSD - então por cada ponto percentual de descida da TSU, teriam de ser criados 165 mil postos de trabalho a ganhar o SMN. Ou seja, tudo indica que nem contas foram feitas: apenas se quis enganar os jornalistas e, consequentemente, o povo;

4) E depois como é possível garantir que a descida da TSU se traduza numa descida de preços internacionais? Algo improvável ou impossível, sobretudo quando todos os ganhos de margem deverão ser usados para pagar dívidas entretanto contraídas com os pacotes de medidas recessivas que este Governo aprovou em nome dos credores internacionais. Trata-se de um ponto importante, já que, como veio a referir em Julho de 2011 a equipa inter-ministerial, se isso não se verificar, isso “limitaria o impacto desta medida na competitividade externa da economia portuguesa” e “o custo para a sociedade seria elevado, uma vez que se está a

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transferir poder de compra dos consumidores para lucro dos produtores” de exportações e “constituiria um subsídio às empresas menos eficientes”. Ou seja, transferência de rendimento; 5) Mas o que é certo é que por cada ponto percentual de descida da TSU, a Segurança Social perde 400 milhões de euros de contribuições. Faz isso sentido quando, como disse Pedro Passos Coelho na passada sexta-feira no Parlamento, “nós temos um problema estrutural de sustentabilidade das pensões”? Parecem doidos...

Mas que estudos de impacto foram feitos para se defender tamanha aventura? Que se conheça, apenas os realizados por aquela comissão técnica inter-ministerial e que, aliás, se mostrou bastante crítica. Todo o historial da medida em Portugal (contado num dos Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas, ver a partir da página 10), é um catálogo de trafulhices, confusões, pés pelas mãos, mentiras descaradas, impreparações criminosas, cumplicidades políticas e ideológicas face a algo que mexe com a vida de milhões de portugueses.

A difamação é punida como crime. Mas quem aprova ou quer aprovar medidas sem estudos de impacto, que prejudicam milhões de pessoas, sai impune ou com um eventual castigo político em eleições.

Lembram-se que, quando Passos Coelho recuou em 2012, disse que a medida tinha sido mal precepcionada e que assim não valia a pena? Mas então por que se insiste mais uma vez? E de forma tão tosca? E aparentemente sem estar em concertação nem com o seu parceiro de coligação nem com a ministra das Finanças que, na primeira oportunidade, matou a ideia na apresentação do Programa de Estabilidade e Plano Nacional de Pensões? E em vésperas das eleições? E com o porta-voz do PSD - do PSD? - a sair a terreiro em defesa de Passos Coelho?! Será que há alguma relação entre esta medida e as eleições? Será que a medida vai ao encontro de possíveis financiadores de campanha eleitoral?

Teimoso e estúpido?, http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/04/teimoso-e-estupido.html, blogue Ladrões de

Bicicletas de 20 de Abril de 2015

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O Mito da Redução da TSU como Fator de Competitividade

EUGÉNIO ROSA

A missão da Segurança Social não é de servir de instrumento para aumentar a competitividade. Apesar disso, no documento “Década para Portugal” defende-se uma redução média anual de -0,8% dos custos do trabalho no período 2015-2019 por meio da redução da “TSU” e da contenção da remuneração por trabalhador (prevê-se uma subida média de apenas 0,2% por ano). Tudo isto confirma que o mito repetido e subjacente neste tipo de propostas continua a ser que o “peso” das contribuições patronais para a Segurança Social em Portugal é muito elevado quando o comparamos com o dos outros países da U.E., afirmação esta que, de tão repetida, acaba por passar como verdadeira, e isso seria uma causa importante da falta da competitividade das empresas portuguesas. Por isso, para aumentar a competitividade das empresas seria necessário reduzir as contribuições para a Segurança Social. É a teoria da redução dos “custos do

trabalho” ou através da diminuição dos salários ou por meio da redução da TSU. Por isso vamos analisá-la utilizando dados do Eurostat e do INE

QUADRO 1 – CONTRIBUIÇÕES PAGAS PELAS EMPRESAS PARA A SEGURANÇA SOCIAL – 2001/2012

COTIZAÇÕES SOCIAIS PAGA PELOS PATRÕES - Em % do PIB de cada país

PAÍSES 2001 2005 2008 2009 2010 2011 2012

União Europeia : 10,6% 10,4% 10,9% 10,8% 10,8% 10,7%

Zona euro 11,5% 11,2% 11,2% 11,6% 11,5% 11,5% 11,6%

Grécia 9,6% 9,1% 9% 9,2% 9,4% 9,2% 10,1%

Espanha 11,3% 10,9% 11,2% 11,4% 11,2% 11,2% 10,9%

Itália 10,6% 11% 11,3% 11,5% 11,5% 11,5% 11,5%

Portugal 7,5% 7,8% 7,9% 8,4% 8,3% 8,3% 7,7%

Portugal % U.E.   73,6% 76,0% 77,1% 76,9% 76,9% 72,0%

FONTE: Eurostat

Em percentagem do PIB, as cotizações pagas pelas entidades patronais em Portugal estão muito abaixo quer da média dos países da União Europeia (em 2012, último ano disponibilizado pelo

Eurostat, as pagas pelos patrões portugueses correspondia a 7,7% do PIB, ou seja, a 72% da média europeia), quer em relação a países que se encontram mais próximos de Portugal (Grécia, Espanha e Itália). E se a comparação

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EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

for feita com os países da Zona do Euro, a distância que separa Portugal desses países, em percentagem do PIB, relativamente a cotizações patronais é ainda maior, pois a média nesses países é cerca de 50,6% superior ao valor em Portugal (nos países da Zona do Euro, as contribuições patronais

representaram em 2012, em média, 11,6% do PIB enquanto em Portugal, no mesmo ano, correspondiam a apenas 7,7% do PIB,

segundo o Eurostat). E na Zona do Euro estão os países mais desenvolvidos e competitivos da União Europeia. Face a estes números, continuar a afirmar que o peso das contribuições patronais para a Segurança Social é a razão da falta de competitividade das empresas portuguesas é procurar enganar a opinião pública.

UMA DIMINUIÇÃO DE 4 OU 8 PONTOS PERCENTUAIS DA TSU TEM REDUZIDO IMPACTO NA ESTRUTURA DE CUSTOS DAS EMPRESAS, SENDO INSIGNIFICANTE A REDUÇÃO DE PREÇOS

Mas não é apenas pelas razões anteriores que tal redução não terá qualquer impacto significativo no aumento da competitividade das empresas pela via da redução dos preços. Para concluir isso, basta analisar os efeitos de tal medida na estrutura de custos das empresas, o que é possível através do quadro 2 construído com dados disponibilizados pelo INE das empresas não financeiras existentes em Portugal.

QUADRO 2 - O EFEITO DA REDUÇÃO DE 4 PONTOS PERCENTUAIS NA ESTRUTURA DE CUSTOS

DAS EMPRESAS

Uma redução de 4 pontos percentuais na taxa contributiva paga pelas entidades patronais (passaria dos 23,75% atuais para 19,75%) determinaria uma redução média nos custos das empresas em apenas 0,41% Se a redução fosse 8 pontos percentuais – 4 p.p. na dos trabalhadores e 4 p.p. na dos

patrões – a redução nos custos não se alteraria, a não ser que servisse de pretexto para baixar ainda mais os salários. É evidente que não é com uma redução de custos desta dimensão que se aumenta a competitividade das empresas portuguesas pela via dos preços e se promove o investimento, como alguns dizem. O único resultado certo e imediato seria o aumento dos lucros das empresas à custa da descapitalização da Segurança Social. Os trabalhadores pagariam a redução com pensões e outras prestações ainda mais baixas no futuro e não só quando se reformassem.

ANO Nº empresas Custos Totais das

empresas Mil euros

Ordenados e salários (Remunerações - TSU

patrões)-Mil euros

Redução de 4 p.p. na TSU patrões

Mil euros

A redução de 4 pontos percentuais representa uma

redução de custos totais2012 1 062 782 290 225 187 29 612 141 1 184 486 0,41%2011 1 112 000 309 941 555 31 840 629 1 273 625 0,41%2010 1 144 150 313 343 748 32 763 099 1 310 524 0,42%2009 1 198 781 298 392 659 32 278 485 1 291 139 0,43%2008 1 235 093 330 561 492 32 490 160 1 299 606 0,39%2007 1 206 116 315 747 147 30 768 035 1 230 721 0,39%2006 1 143 648 293 016 041 28 624 799 1 144 992 0,39%2005 1 121 529 280 209 675 27 354 210 1 094 168 0,39%2004 1 084 928 269 228 101 26 473 960 1 058 958 0,39%

FONTE: Empresas - 2012 - INE

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O AGRAVAMENTO DAS DIFICULDADES FINANCEIRAS DA SEGURANÇA SOCIAL

A Segurança Social é vital para milhões de portugueses. Acompanha-os desde o nascimento até à morte, garantindo a subsistência, em momentos da vida quando não têm capacidade para angariar rendimento (subsidio de nascimento, abono de família, subsidio de doença, subsidio de desemprego,

RSI, pensão de invalidez e velhice, CSI, subsidio de funeral, etc., etc.), por isso deve merecer um cuidado e uma atenção muito especial, não podendo estar sujeito as experiências, sejam eles de economistas, políticos, ou quaisquer outros. Tudo isto vem também a propósito da intenção manifestada por Passos Coelho de baixar a TSU e, mais recentemente, de um grupo de economistas do PS, que defendem a redução, gradual, em 4 pontos percentuais, quer da TSU paga pelas empresas (de 23,75% para 19.75%) quer da TSU paga pelos trabalhadores (de 11% para 7%). Associando as duas, o objetivo só pode ser tornar a baixa da TSU para os patrões mais “aceitável” para os trabalhadores já que é uma forma de aumentar, sem os patrões terem de subir os salários, o rendimento disponível dos trabalhadores em 15€ por mês à custa da Segurança Social.

Tomando como base a previsão de valor das receitas da Segurança Social para 2015, a redução de um ponto percentual na taxa contributiva determina a perda de 413 milhões € de receita anual da Segurança Social, portanto a descida de 8 pontos representaria a perda 3.300 milhões € de receita anual para a Segurança Social. O grupo de economistas do PS calculou que a perda de receita anual final seria de 1.800 milhões €, sendo 420 milhões € já em 2016, pois a redução abrangeria apenas os trabalhadores dom menos de 60 anos, revertendo 210 milhões € já em 2016 para os patrões.

Os efeitos sobre a sustentabilidade financeira da Segurança Social seriam grandes e imprevisíveis. E isto porque, devido à redução do emprego e das contribuições e ao aumento das despesas sociais, atualmente as contribuições já não devem ser suficientes para pagar as pensões do regime contributivo (e já não devem ser suficientes porque o 2º volume da Conta da Segurança Social ainda

não foi publicado) . Em 2012, ano em que foi confiscado aos pensionistas o subsídio de férias e de Natal, as pensões do Regime Contributivo representaram 94,4% das contribuições do Regime Contributivo (Relatório e Contas da Segurança Social 2012- 2ª Parte). Uma perda de receita imediata com aquela dimensão provocaria um profundo desequilíbrio na situação financeira da Segurança Social com consequências imprevisíveis para milhões de portugueses. A receita que visaria compensar esta elevada perda de receita pela Segurança Social (imposto sobre as heranças de valor

superior a um milhão de euros, e consignação da receita que resultasse do congelamento da taxa de IRC) é não só insuficiente como aleatória e imprevisível. A vida de milhões de portugueses não pode estar sujeita ao imprevisível.

AS DESPESAS SOCIAIS POR HABITANTE SÃO JÁ MUITO BAIXAS EM PORTUGAL

Portugal é já o país da U.E. onde as despesas sociais por habitante são das mais baixas.

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QUADRO 3- DESPESAS SOCIAIS TOTAIS POR HABITANTE NOS PAÍSES DA UNIÃO EUROPEIA

A despesa social por habitante em Portugal (3.769€) é significativamente inferior à média dos países da U.E. (6.771€) e também bastante inferior a países como Irlanda, Grécia Espanha e Itália. Querer reduzi-la ainda mais é condenar à miséria milhões de portugueses. Não deixa de constituir uma surpresa o facto de que apesar da despesa social por habitante em Portugal ser muito inferior à média da União Europeia (mesmo em % do PIB, em 2012, Portugal era apenas 26,9%,

enquanto a média na EU-28paises era 29,5%), o grupo de economistas do PS pretenda ainda reduzi-la mais pois, como consta do documento que elaboraram, preveem que a despesa com prestações sociais diminua, entre 2015 e 2019, de 19,8% do PIB para 17,8% do PIB, portanto uma redução superior à do próprio governo (o governo PSD/CDS no seu Programa de Estabilidade prevê a sua diminuição de 19,4%

para 18,3%)

É PRECISO ALARGAR E DIVERSIFICAR A BASE DE FINANCIAMENTO DA SEGURANÇA SOCIAL

É urgente não só diversificar as fontes de financiamento da Segurança Social, mas fundamentalmente alargar a base contributiva para garantir a sustentabilidade e a estabilidade financeira da Segurança Social. O modelo atual – contribuições com base nos salários – já tem mais de meio século e não se adequa ao desenvolvimento técnico, científico e empresarial que teve lugar na 2ª metade do Séc. XX e já no Séc. XXI. No passado, as empresas que criavam mais riqueza eram as de trabalho intensivo, onde os salários representavam uma parte muito importante da riqueza criada. Atualmente as empresas que criam mais riqueza não são aquelas que necessariamente empregam mais trabalhadores e pagam maior volume de salários, mas sim as de capital e conhecimento intensivo. Fazer depender o volume de receitas da Segurança Social apenas do volume de salários pagos, por um lado, é conduzir a Segurança Social ao estrangulamento financeiro, pois é cada vez menor a parte dos salários na riqueza criada pelas empresas mais desenvolvidas e, por outro lado, agrava a concorrência desleal entre as empresas pois as que pagam maior volume de salários contribuem muito mais para a Segurança Social, em percentagem de riqueza criada, do que aquelas que pagam menor volume de salários que

PAÍSES 2001 2005 2008 2010 2011 2012 Variação 2001-2010

Variação 2010-2012

UE (28 países) : : 6.332 € 6.772 € 6.700 € 6.724 € -0,7%UE (27 pays) : 6.090 € 6.370 € 6.813 € 6.746 € 6.771 € -0,6%Zona euro (18 países) 6.451 € 6.910 € 7.178 € 7.707 € 7.621 € 7.647 € 19,5% -0,8%Irlanda 4.838 € 6.738 € 7.949 € 10.300 € 10.788 € 11.639 € 112,9% 13,0%Grécia 3.509 € 4.325 € 4.924 € 4.980 € 4.707 € 4.485 € 41,9% -10,0%Espanha 3.743 € 4.285 € 4.702 € 5.127 € 5.079 € 4.852 € 37,0% -5,4%Itália 6.050 € 6.514 € 6.867 € 7.143 € 7.006 € 6.884 € 18,1% -3,6%Portugal 3.164 € 3.598 € 3.642 € 4.069 € 3.890 € 3.769 € 28,6% -7,4%

Despesa Portugal em % da média U.E. 59,1% 57,2% 59,7% 57,7% 55,7% -6,8%

FONTE: Eurostat

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muitas vezes são as tecnicamente mais desenvolvidas e criam mais riqueza.

É por tudo isto que temos vindo a defender há já vários anos que, embora se mantendo para os trabalhadores o cálculo das suas contribuições com base nos salários, o cálculo das contribuições das empresas devia passar a ser feito com base na totalidade da riqueza líquida criada por cada uma delas (aquilo que os economistas designam por Valor Acrescentado Liquido, ou VAL) que é, em média, mais do dobro do montante de salários e ordenados pagos atualmente como provam os dados do INE constantes do quadro 4.

QUADRO 4- CONTRIBUIÇÕES POTENCIAIS DA SEGURANÇA SOCIAL CALCULADAS COM BASE NOS ORDENA-

DOS E SALÁRIOS E NO VALOR ACRESCENTADO LIQUIDO (SÓ RELATIVAS ÀS EMPRESAS)

A passagem da base contributiva atual “Ordenados e salários” para a base contributiva “Valor Acrescentado Liquido”, que é aquela que defendemos para as empresas, faria aumentar a base contributiva para a Segurança Social, em média, 119,5%%. Por outro lado, para obter a mesma receita das contribuições das empresas que se obtém atualmente bastaria uma taxa de 8,3%% sobre o VAL das empresas e de 10,8% para obter das empresas uma receita de contribuições equivalente àquilo que designamos por “Contribuições Potenciais”, que corresponde a 23,75% da totalidade de ordenados e salários pagos pelas empresas no país (tenha-se presente que tanto “VAL” como os “Ordenados e salários” que estamos a considerar já não incluem as Administrações Públicas).

A passagem da base de contribuição das empresas para a Segurança Social dos “Ordenados e

VAB a preços de base (País)

VAL (Valor Acrescen-

tado Liquido -

País)

VAL (Valor Acrescentado Liquido -

sem Administra-

ção Pública)

Ordenados e salários

(sem Administra- ção Pública)

Aumento da base

contributiva resultante de

passar de salarios para VAL (sem Ad.

Publica)

Contribuições potenciais (só

empresas): 23,75% de

Ordenados e salarios

Contribuições efetivamente cobradas pela

Segurança Social (só empresas)

Taxa sobre VAL para obter a mesma

receita de Contribuições Potenciais (só

empresas)

Taxa sobre VAL para obter a mesma

receita de Contribuições Cobradas (só

empresas)

Milhões € Milhões € Milhões € Milhões € Em % Milhões € Milhões € Em % Em %

2000 112.568 92.920 77.712 35.398 119,5% 8.407 5.993 10,8% 7,7%

2001 119.145 98.029 81.985 37.302 119,8% 8.859 6.541 10,8% 8,0%

2002 124.793 102.276 85.536 38.806 120,4% 9.216 6.949 10,8% 8,1%

2003 127.819 104.320 87.246 39.936 118,5% 9.485 7.155 10,9% 8,2%

2004 133.270 108.607 90.831 41.264 120,1% 9.800 7.134 10,8% 7,9%

2005 137.599 111.704 93.421 42.571 119,4% 10.111 7.441 10,8% 8,0%

2006 143.579 116.538 97.464 44.304 120,0% 10.522 7.934 10,8% 8,1%

2007 152.183 123.939 103.099 46.746 120,6% 11.102 8.454 10,8% 8,2%

2008 156.016 126.110 104.834 48.351 116,8% 11.483 8.941 11,0% 8,5%

2009 155.506 125.408 104.687 47.927 118,4% 11.383 8.972 10,9% 8,6%

2010 158.326 127.361 106.939 48.444 120,7% 11.505 9.215 10,8% 8,6%

2011 154.243 122.814 104.008 47.261 120,1% 11.224 9.469 10,8% 9,1%

2012 147.362 116.810 97.366 44.495 118,8% 10.568 8.935 10,9% 9,2%

SOMA 1.822.409 1.476.834 1.235.127 562.806 119,5% 133.666 103.132 10,8% 8,3%

ANO

FONTE: Contas Nacionais - INE

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EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL

Salários “ para o “Valor Acrescentado Liquido” determinaria, por um lado, que se reduzisse a taxa contributiva que incide sobre as empresas; por outro lado, que as empresas que criam mais riqueza contribuíssem mais para a Segurança Social acabando com concorrência desleal entre empresas (por ex., as empresas de eletricidade e gás contribuem para a Segurança Social com menos de 5% da riqueza liquida que

criam anualmente, enquanto as empresas do setor têxtil, porque os custos com os salários tem maior peso na sua estrutura de custos,

contribuem com mais de 15%); finalmente alargar-se-ia para mais do dobro a base de contribuição das empresas para a Segurança Social o que aumentaria a estabilidade financeira da Segurança Social, e acabava-se também com a injustiça que resulta das empresas que despedem mais recebem um prémio pois passam a contribuir com menos para a Segurança Social, enquanto as que criam emprego são penalizadas pois contribuem mais para a Segurança Social.

Para garantir o fluxo normal mensal de receitas à Segurança Social as contribuições das empresas continuariam a ser calculadas com base nos salários sendo depois no ano seguinte, à semelhança do que acontece com o IRS, feito o acerto de contas com base no “VAL” calculado a partir dos dados constantes do modelo 22 e da declaração empresarial simplificada (IES) que as empresas são obrigadas a entregar todos os anos às Finanças. Esta mudança de base contributiva apenas para as empresas, e não para os trabalhadores, permitiria garantir a sustentabilidade financeira da Segurança Social adequando-a ao desenvolvimento económico e científico atual.

Aqueles que afirmam a falta de sustentabilidade da Segurança Social estão formatados num único paradigma, recusando-se a pensar num novo paradigma de financiamento ajustado a uma realidade que mudou muito. O mesmo se pode afirmar daqueles que para mostrarem que a Segurança Social não é financeiramente sustentável comparam simplesmente a variação do numero de ativos (empregados) por pensionista quando tal comparação não tecnicamente correta, pois “esquecem-se” de considerar o aumento enorme da produtividade por trabalhador registada nos últimos 50 anos. Como refere Pedro Nogueira Santos, ex-diretor das Contas Nacionais do INE e atualmente professor catedrático na Faculdade de Economia de Coimbra, no seu livro “Torturem os números que eles confessam” basta um aumento anual “de 0,23% até 2030,

e de 0,36% até 2060 na produtividade para compensar a regressão demográfica da população entre os 25-64 anos” (pág. 154). A própria Comissão Europeia no seu “LIVRO BRANCO: Uma agenda para pensões adequadas, seguras e sustentáveis”, divulgado em 16 de Fevereiro de 2012, reconhecia o seguinte: Se fossem atingidos “os objetivos

fixados pela U.E. em matéria de emprego ou igualar o desempenho dos países com melhores resultados poderia quase neutralizar os

efeitos do envelhecimento da população sobre o peso das pensões no PIB”. (pág.7)

A nova base de cálculo das contribuições patronais para a Segurança Social que apresentamos e defendemos poderia ainda ser completada e fortalecida com a diversificação de outras fontes de financiamento, como as sugeridas pelo “grupo de economistas do PS” (imposto sobre as heranças de valor superior a um milhão de euros, consignação à Segurança Social de uma parte de receita do IRC, como já sucede com o IVA social, etc.) ”, mas seriam fontes complementares já que as receitas assim obtidas são insuficientes e aleatórias e fazem depender a Segurança Social da política orçamental (redução do défice) o que é extremamente perigoso em relação à sustentabilidade da Segurança Social, como a experiência dos últimos anos mostrou.

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Tratados, leituras e subterfúgios

ALEXANDRE ABREU

Em 2012, presumivelmente na ânsia de demostrar responsabilidade orçamental perante a opi-nião pública - e assim validando implicitamente a leitura errada das raízes da crise proposta pela direita -, o Partido Socialista votou favoravelmente o Tratado Orçamental quando este foi levado à votação na Assembleia da República. É certo que o PS não acedeu então a viabilizar a consagração constitucional que a maioria PSD/CDS pretendia que a transposição do Tratado para o ordenamento jurídico português assumisse, forçando antes a opção pela figura da lei de valor reforçado. Mas não deixou de votar favoravelmente - e validar politicamente - o Trata-do do qual já foi dito que ilegaliza o keynesianismo na Europa e que constitui, no fundo, uma versão mais restritiva e punitiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento (para além de um acto de vassalagem relativamente à Alemanha).

No essencial, o Tratado Orçamental institui a obrigação da austeridade para os países deficitá-rios, a despeito da recessão em que estes possam encontrar-se e sem que sejam estabelecidas obrigações expansionistas simétricas para os países excedentários. É uma síntese perfeita de tudo o que está errado com a zona Euro: viés recessivo, ajustamento assimétrico entre deve-dores e credores, agenda de classe, restrição da margem de escolha política e tentativa vã de ocultar a inviabilidade fundamental sob sucessivas camadas de irreversibilidade. E é também um Tratado destinado a ser constantemente quebrado, dado o irrealismo das obrigações que impõe aos países deficitários (veja-se o historial de incumprimento desde a sua entrada em vigor) - ainda que isso não o torne inofensivo, dada a forma como constrange os parâmetros do debate e das decisões políticas.

Desde então, porém, não têm sido poucas as ocasiões em que numerosos dirigentes socialis-tas têm procurado distanciar-se deste mesmo Tratado, apelando à chamada “leitura inteligen-te” do mesmo. Basicamente, o PS reconhece a iniquidade e inaplicabilidade do Tratado, mas faltou-lhe a coragem política para o assumir frontalmente no momento em que mais importa-

notas várias

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NOTAS VÁRIAS

va. Em alternativa, tem optado antes por refugiar-se numa posição que, para todos os efeitos, consiste em apelar a que se empregue e institucionalize excepções e subterfúgios diversos de modo a escapar o mais possível a aplicar um tratado... que o próprio PS votou favoravelmente.

A inconsistência e, diga-se com franqueza, tibieza do PS em relação a esta matéria tem con-trastado com a dos partidos da maioria, cujo entusiasmo com o Tratado foi sempre consistente com um posicionamento pró-austeritário segundo o qual os défices são para cumprir custe o que custar mas já as vidas são para salvar, mas não custe o que custar. A posição dos partidos da maioria - a insistência na imposição de uma política fiscal-orçamental pro-cíclica em con-texto de recessão - é caduca em termos de teoria económica e nociva do ponto de vista social, mas ao menos é assumida de forma frontal e consistente.

Ou pelo menos era-o até agora. Pois qual não foi o meu espanto quando anteontem li que o governo português, pela pena do Secretario de Estado para os Assuntos Europeus Bruno Ma-çães, submeteu à Comissão Europeia um documento de trabalho apelando a duas coisas que, no discurso da maioria, eram até agora anátema: transferências orçamentais contra-cíclicas, que neste documento assumem a forma da proposta de uma política comum de emprego que inclua um subsídio de desemprego europeu; e o apelo a uma leitura flexível das restrições or-çamentais decorrentes dos tratados europeus. Em relação a esta última questão, na versão do documento veiculada pelo Público, propõe Maçães que na análise da situação orçamental de cada Estado-membro seja dado um “tratamento adequado” do ponto de vista orçamental aos custos e investimentos associados a reformas que esse Estado-membro tenha adoptado e que ajudem à convergência com a UE. Ou seja, excepções e subterfúgios que permitam escapar à aplicação de um tratado... que a maioria aprovou entusiasticamente.

Ninguém está impedido de mudar de opinião - particularmente quando a mudança é em sentido positivo. Mas há responsabilidades políticas que têm de ser assacadas a todos aqueles que, contra o bom senso económico e contra o interesse dos cidadãos portugueses e euro-peus, aprovaram e transpuseram para o ordenamento jurídico português um tratado que é fundamentalmente iníquo, para além de em grande medida inaplicável. Mais grave, um trata-do que eles próprios sabem, como têm vindo a demonstrar, que é fundamentalmente iníquo e inaplicável.

A maioria PSD-CDS e o PS fizeram-no apesar de terem sido na altura abundamentemente aler-tados para essa mesma iniquidade quer pelos partidos que votaram contra, quer por um vasto conjunto de analistas nacionais e europeus. E neste momento histórico em que a frontalidade e a coragem são tão necessárias, continuam a persistir no caminho do subterfúgio e da sub-missão.

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O bom, o mau e o ausenteALEXANDRE ABREU

Escrever uma vez por semana, dada a voragem do ciclo noticioso, tem destas coisas: nalguns casos, se não reagirmos imediatamente (ou se outros assuntos se impuserem), corremos o risco de já chegarmos tarde se apenas escrevermos sobre algum assunto uma semana depois de ele ter saltado para a ribalta.

Ao escrever agora sobre o plano elaborado pelo grupo de economistas próximos do PS coor-denado por Mário Centeno que foi apresentado na semana passada, tenho a clara sensação que é esse o caso - e no entanto o assunto é demasiado importante para que não o retome aqui. É fortíssima a probabilidade do PS vir a formar governo daqui a alguns meses e é tam-bém elevada a probabilidade de que este documento venha a constituir a espinha dorsal do seu programa de governo para a área económica e financeira. Logo, é bastante provável que este pacote de medidas, com as alterações que o debate público e as dinâmicas políticas ve-nham a impor, comece a passar do plano à realidade daqui a alguns meses. Debatamo-lo, pois. 

O BOM

Deve começar por dizer-se que a “Agenda para a Década” é um documento abrangente, bem estruturado, com profundidade, propostas originais e uma tentativa séria de estimação dos impactos dessas propostas. Em suma, é um documento intelectualmente respeitável - o que em si mesmo poderá não parecer nada de especial até ao momento em que recordamos, por exemplo, o Guião da Reforma do Estado publicado no ano passado pelo actual governo. Há uma articulação entre diagnóstico, propostas e impactos que é feita de forma estruturada e abrangente: pode-se discutir se as propostas são consistentes com o diagnóstico e se os im-pactos esperados são plausíveis, mas é possível discuti-lo porque essa articulação é apresen-tada e sujeita a debate de forma detalhada.

Há também aspectos claramente positivos ao nível do enquadramento e diagnóstico. A sofis-ticação no entendimento das questões da inovação, da competitividade e do desenvolvimen-to territorial está a milhas da que é possível encontrar actualmente à mesa do Conselho de Ministros (embora, claro, não seja preciso muito para isso). E, neste plano do enquadramento e diagnóstico gerais, é a meu ver um documento claramente progressista, que denuncia expli-citamente a austeridade, a precariedade, a desigualdade, a perda de progressividade do IRS, a promoção da competitividade assente nos salários baixos e a criação de quasi-monopólios privados através das privatizações. A este nível - e apesar das cedências ocasionais à novilín-gua neoliberal (como os despedimentos que passam a “separações entre empresas e traba-lhadores”) - sou menos crítico do que outros que antes de mim comentaram este documento (como Francisco Louçã ou João Rodrigues). Na minha opinião, e como explicarei em baixo, o

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NOTAS VÁRIAS

problema não está tanto neste enquadramento e diagnóstico como na inconsistência entre esse mesmo enquadramento e diagnóstico e o pacote de medidas que é proposto.

E há também muitas propostas concretas que devem ser saudadas. A reintrodução do imposto sucessório, medida óbvia de mitigação da injustiça decorrente da lotaria do berço. A redução do IVA da restauração, cuja aumento pelo actual governo penalizou de forma despropositada um sector de actividade fortemente gerador de emprego, central para o turismo e em que pre-dominam as micro-empresas. A penalização fiscal dos imóveis sem utilização. A penalização das empresas que mais despedem. O reforço do acesso e montantes do RSI, do Complemento Solidário para Idosos e do abono de família. E muitas das medidas propostas nos domínios da educação, da qualificação da administração pública, da simplificação administrativa ou da promoção do sistema cientifico e tecnológico nacional.

O MAU

Já muitos o disseram, mas deve ser dito mais uma vez. A mais funesta e perigosa proposta deste documento - realmente má por acção, que não apenas por omissão - é a proposta de redução das contribuições de empregadores e trabalhadores para a Segurança Social. É uma proposta profundamente inconsistente: reduzir receitas não é, seguramente, uma boa forma de enfrentar os problemas de sustentabilidade que o mesmo documento identifica, mesmo que venha a ser parcialmente compensada por um aumento da base de incidência decorrente de uma expansão do emprego que é do plano dos desejos mas seguramente não das certezas. É socialmente regressiva, constituindo uma forma de plafonamento (mal) encapotado. É perigosa, pois põe em causa um dos alicerces fundamentais do contrato social. E assenta num entendi-mento completamente errado da natureza dos problemas de procura que a economia portu-guesa enfrenta, pois estes não são temporários, do foro da liquidez, mas sim estruturais, do foro da solvabilidade - algo que, no entanto, os economistas da área do PS não poderiam reconhecer abertamente sem se verem obrigados a enfrentar os elefantes no meio da sala que o documento não trata mas que sobre ele pairam com uma sombra esmagadora: as dívidas pública e externa e a sangria permanente de recursos que representam para a economia portuguesa.

O AUSENTE

E assim chegamos àquilo que, a meu ver, é realmente o aspecto mais preocupante deste do-cumento: aquilo que dele está ausente. Não estou a falar de medidas que, por um ou outro motivo, gostaríamos eventualmente que o PS perfilhasse sem que seja esse o caso; estou a falar, isso sim, de medidas que permitissem enfrentar de forma consistente os problemas que o próprio documento identifica.

O documento denuncia a redução da progressividade do IRS como um problema, mas o que propõe como resposta a este problema é, tão somente, a eliminação da sobretaxa. Nem se-quer, por exemplo, a reposição dos escalões que o actual governo eliminou, reduzindo a pro-

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gressividade de forma desprezível. Ou o englobamento das mais-valias bolsistas no cálculo da taxa de imposto, que seria da mais elementar justiça fiscal mas continua à espera de um governo que a ponha em prática.

Identifica a penalização a que são sujeitos os falsos recibos verdes, mas pouco ou nada propõe para os erradicar ou para desagravar as imposições contributivas absurdas a que estes traba-lhadores são sujeitos.

Critica as privatizações que deram origem a quasi-monopólios privados, mas em momento algum admite reverter as privatizações que possam ter prejudicado o interesse nacional - ape-nas se promete vagamente reavaliar as privatizações adicionais futuras.

Denuncia a promoção da competitividade assente nos baixos salários, mas em nenhum lado encontramos vestígios de medidas de valorização do trabalho e dos salários, nem sequer no sentido da reposição do que foi retirado pelo governo actual: nem nos feriados, nem no sa-lário mínimo, nem na contratação colectiva, nem nos horários de trabalho. Pelo contrário: a aposta, tal como ressalta do cenário macroeconómico, é na manutenção dos salários baixos com o objectivo de permitir o aumento do emprego. As propostas socialistas para corrigir o desequilíbrio sem precedentes na repartição funcional do rendimento que o actual governo introduziu consistem, basicamente, em deixar tudo como está.

Defende uma maior segurança laboral e critica a precariedade, mas nem sequer propõe repor as indemnizações por despedimento nos níveis em vigor antes da actual legislatiura.

Critica a austeridade e os sacrifícios pro-cíclicos, mas propõe-se alcançar saldos primários en-tre 1,8% e os 3,2% do PIB entre 2016 e 2019. Claro está, não poderia deixar de fazê-lo sem pôr em causa o adesão incondicional aos dogmas da intocabilidade da dívida e do Tratado Orçamental. Esses são sacrossantos, mesmo que a conciliação de tais dogmas com a exequibi-lidade do cenário macroeconómico final que é proposto exija uma combinação de desenvol-vimentos macroeconómicos que nunca foi alcançado na história da economia portuguesa, a par de uma fé pouco fundamentada na capacidade dos fundos europeus gerarem, por si só, a inversão da dinâmica do investimento privado. A este respeito, vale aliás a pena assinalar que é errada a ideia que neste documento os socialistas se proponham recuperar a economia pelo lado da procura, por contraste com as propostas do lado da oferta do PSD/CDS: na Agenda para a Década, a putativa recuperação do investimento e do produto advém maioritariamente - no plano da fé, pelo menos - da alteração das condições do lado da oferta, não da procura.

E depois há as outras ausências gritantes: a ausência de propostas para a regulação da banca. A dívida pública e a sangria que os juros representam. Uma das maiores dívidas externas do mundo. Ou a dependência dos cenários - inicial e final - face a uma baixa das taxas de juro que mais cedo ou mais tarde terá um fim. 

Poder-se-á dizer que não é justo criticar este documento pelo que lá não está, visto que algu-mas omissões poderão vir a ser colmatadas. Se assim for, tanto melhor - mas pelo menos para já, é o próprio documento que convida a que o façamos quando afirma que deve ser avaliado e julgado pelo conjunto e não pelas medidas individualmente consideradas.

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NOTAS VÁRIAS

O POLÍCIA BOM DO NEOLIBERALISMO

O grande problema do pacote de medidas proposto pelo PS não é que o diagnóstico, em ter-mos gerais, esteja fundamentalmente errado, nem que as medidas propostas, individualmen-te consideradas, sejam funestas como quase invariavelmente o têm sido na actual legislatura. O grande problema é que as medidas propostas são profundamente insuficientes para enfren-tar, com um mínimo de eficácia, os problemas que o próprio documento identifica - quer ao nível da justiça social, quer ao nível da dinâmica macroeconómica.

Qual “polícia bom” do neoliberalismo português, o PS propõe-se repor ou restaurar uma parte relativamente menor do muito que foi destruído ou transformado perniciosamente pela direi-ta. E isso, claramente, é muito pouco. 

(em: http://expresso.sapo.pt/blogues/bloguet_economia/blogue_econ_alexandre_abreu/o-bom-o-mau-e-o-

ausente=f922231)

Vamos fazer o que ainda não foi feito?

JOSÉ MARIA CASTRO CALDAS

Por caminhos de certo modo diferentes o Governo (Programa de Estabilidade) e o Partido So-cialista (Uma Década de Estabilidade) chegam a um ponto semelhante: uma redução do défi-ce e do rácio da dívida pública no PIB até 2019 que cumpre os requisitos dos tratados da União Europeia (e no caso do Governo, como é hábito, os promete ultrapassar, ver gráficos 1 e 2).

Isto é conseguido à custa de cenários que exibem em simultâneo saldos orçamentais primá-rios (saldos orçamentais sem juros) e taxas de crescimento elevadas. Em ambos os casos o que

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nos é apresentado é uma aplicação da ideia de austeridade “inteligente”: austeridade porque envolve saldos orçamentais crescentes, “inteligente” porque supostamente compatível com o crescimento. Em ambos os casos esta combinação “virtuosa” de austeridade e crescimento parece fácil de conseguir e indolor. Mas será mesmo?

É certo que no contexto de incerteza que vivemos, o passado nos dá fracas indicações acerca do futuro, mas mesmo assim pode dizer-nos alguma coisa. Quantas vezes nos últimos 20 anos – em crescimento e recessão, com governos PSD/CDS e Governos PS – se obtiveram em Portu-gal combinações de crescimento e saldo primário iguais ou superiores às que são antecipadas pelo Governo e pelo PS para 2015 – 2019? Os gráficos 3 e 4, onde cada ponto representa a azul esse par de valores (saldo, crescimento) no período 1995 – 2014, e a vermelho os referidos pares, no período 2015 -2019, dá a resposta: nunca foi feito.

Será que podemos fazer o que ainda não foi feito? Certamente, mas não do modo que o Go-verno e o PS prometem. Não num país com uma das maiores dívidas externas do mundo e com uma dívida pública que consome ao orçamento 9 mil milhões de euros anuais.

Uma reestruturação, essa sim inteligente, da dívida permitiria aliviar a restrição orçamental não só para repor salários e pensões, mas para recuperar a administração pública da sangria de trabalhadores a que tem sido sujeita, estimular o investimento público e privado e criar emprego. A reestruturação permitiria respirar e crescer e até garantir um orçamento suficiente (isto é, não dependente do financiamento externo). Mas para isso era preciso um governo que não se limitasse a ir a Bruxelas, como o Governo tem feito e como o PS agora parece querer fazer, de braços caídos, conformado com o que parece ser uma armadilha de betão.

(Vamos fazer o que ainda não foi feito?, http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/04/vamos-fazer-o-que-ainda-nao-

foi-feito.html, blogue Ladrões de Bicicletas de 22 de Abril de 2015

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NOTAS VÁRIAS

O Estado predador

PEDRO ADÃO E SILVA

Nada como um momento de alguma incontinência verbal para a verdade vir ao de cima. Num Fórum da TSF, o secretário de Estado da Saúde, Leal da Costa, foi de uma clareza ímpar. Confrontado com dados do INE que confirmam que, na última década, há menos camas de internamento na rede de hospitais públicos e mais nas unidades privadas, enquanto diminuíram também os serviços de urgência, o governante foi claro. Admitiu existir de facto uma transferência para os hospitais privados, mas, esclareceu, parte dessas transferências é suportada por recursos públicos, o que mostra que não há um alívio das contas públicas na saúde (sic).

Fica assim mais uma vez demonstrado que, para onde quer que olhemos, a famigerada reforma

do Estado reduz-se sempre, em última análise, à contratualização de serviços públicos, assegurando privilégios a negócios privados, construindo, assim, um verdadeiro Estado paralelo. Não se diga, portanto, que o Governo falhou. Naquilo que era a sua verdadeira intenção, a coligação concretizou os seus verdadeiros intentos.

Claro está que na saúde o que se passa é particularmente dramático (pois acentua a desigualdade no acesso) e não resultou de uma única decisão isolada. Pelo contrário, trata-se do efeito combinado de várias medidas que incentivaram o recurso a privados, enquanto delapidaram a capacidade das respostas públicas. Enquanto se assistia a uma subida das taxas moderadoras, a uma redução das camas nos hospitais públicos e a uma fragilização generalizada do funcionamento dos serviços, através de cortes sucessivos, nada se alterou do lado da ADSE – para além, claro está, do reforço do financiamento pelos utentes. O resultado foi que para os funcionários públicos passou a compensar optar pelo privado, que se tornou mais apelativo de todos os pontos de vista. Se a isto somarmos a profusão de seguros de saúde e até a forma como, por exemplo, a banca exige seguros para conceder algum tipo de crédito, fica explicada a promoção da oferta privada e a desvalorização das resposta públicas.

Claro que nada disto seria problemático se assentasse em regras de mercado claras. O problema é que não assenta. Como bem tem explicado o economista norte-americano James Galbraith, a direita há muito que abandonou a crença nos mercados livres como instrumento racional. Em o Estado Predador, Galbraith defende que, hoje, para a direita o laissez-faire é apenas um mito, ainda que útil na medida em que tem um

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efeito de ilusão, e que o que temos hoje é um Estado predador, ou seja, uma coligação de opositores à ideia de interesse público e que tem como propósito final reconfigurar as políticas públicas, de forma a que estas sejam um instrumento de financiamento de negócios privados.

Quando ouvirem falar em sucesso da estratégia de ajustamento, não se iludam. Estão mesmo a falar verdade.

Mudar de Vida

PEDRO ADÃO E SILVA

Quando olharmos para trás, o legado positivo mais duradouro deixado pelo Memorando de Entendimento terá sido a forma como os programas eleitorais passarão a ser concebidos. Há, a este propósito, um antes e depois da intervenção da troika. Independentemente do conteúdo e das diferenças das propostas, deixará de ser possível a um partido apresentar-se a eleições artilhado com centenas de compromissos vagos, não quantificados e assentes em listagens de boas intenções. Uma maior exigência quanto aos atributos exteriores das políticas públicas, isto é, qualidades que todas as propostas devem ter para além das preferências substantivas, é um sintoma de maturidade e de exigência democráticas.

O exercício que o PS apresentou esta semana representa um ponto de viragem não apenas pelo que propõe, mas também pela forma minuciosa como é proposto. Pode-se concordar ou discordar das soluções, mas a apresentação de um conjunto de medidas articuladas e calibradas de forma a ser possível estimar o seu impacto ao longo de uma legislatura representa uma inovação radical. Esperemos, agora, que produza um efeito agregado de melhoria do debate público, substituindo o ping-pong de acusações e a fulanização que marcam grande parte do debate político por uma discussão organizada em torno de soluções contrastantes, igualmente robustas mas assentes em princípios políticos distintos.

A dimensão da mudança formal só tem paralelo nas propostas anunciadas. Quatro anos passados, o PS libertou-se finalmente da narrativa autodestrutiva do PEC IV. Em lugar de continuar preso ao dilema austeridade/investimento, o documento apresentado esta semana reconhece a natureza dos constrangimentos, mas, num verdadeiro golpe de asa, coloca o enfoque no mercado de trabalho, enquanto não fica amarrado às questões que, sendo centrais, não dependem da vontade autónoma do Governo português (à cabeça, uma solução europeia para uma dívida que é excessiva e insustentável).

Texto publicado inicialmente O Estado Predador, http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_pedro_adao_e_silva/o-esta-

do-predador=f919426, Expresso de 11 de Abril de 2015

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NOTAS VÁRIAS

Passar o Rubicão, ou o programa do PS

FRANCISCO LOUÇÃ

“Uma década para Portugal”, o relatório ontem apresentado por António Costa e Mário Centeno, é o primeiro esboço do programa eleitoral do PS. Com alguma confusão, porque o texto tanto é “um virar de página” como “não é uma Bíblia”. Em todo o caso, foi galhardamente apresentado e não é um “cenário”, nem uma mera proposta à consideração, é um plano concreto que marca mesmo o começo da campanha eleitoral do PS.

Um plano de horizonte curto e de nome equivocado: o título é “Uma década para Portugal”, mas o plano é só para cinco anos. Evita assim a projecção dos seus números para além de 2019. Mas ainda bem que foi publicado, porque era necessário desde há muitos meses. Espero que os outros partidos façam o mesmo, contribuindo para o debate público e para tornar evidentes as suas propostas, os seus custos e os seus efeitos.

O ENTUSIASMO DESLUMBRADO

O texto desencadeou um eflúvio de entusiasmos. Um jornalista bem preparado, Pedro Santos Guerreiro, normalmente mais contido, foi desta vez impositivo: “Queriam uma política

Se estamos perante uma equação distinta da que o PS apresentou até aqui, as diferenças face às propostas da maioria são colossais. Desde logo ao revelar uma preocupação com a procura interna e um reequilíbrio do esforço de consolidação, visíveis no movimento de redistribuição a favor do factor trabalho, alavancando o rendimento das famílias (descida da TSU para os trabalhadores e crédito fiscal para os working poor), com consignação dos lucros das empresas à segurança social (“IRC social”), penalização da rotatividade dos contratos de trabalho e taxação das heranças.

Podemos ter dúvidas em relação à natureza de algumas soluções, bem como à sua exequibilidade. Mas faz toda a diferença que o debate se inicie com base num trabalho sério, refletido e ligado à realidade. O PS tem agora uma alternativa concreta, mas não irrealista. Os dados estão lançados.

texto publicado inicialmente Mudar de Vida, http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_pedro_adao_e_silva/mudar-de-vida=f921612, Expresso de 25 de Abril de 2015

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de esquerda, anti-troika e centrada nos trabalhadores? Ei-la, apresentada por um grupo de economistas no Largo do Rato. Nunca o PS foi tão diferente do PSD. Depois disto, António Costa e Passos Coelho nunca poderão estar no mesmo governo”.

Um blog oficialista do PS conseguiu ser mais moderado, mas afinou pelo mesmo diapasão: “O contraste entre o documento do PS e o DEO governamental é significativo. A única coisa em comum é o respeito pelas regras europeias”.

Pedro Lains, analista qualificado, desdobrou-se em parabéns aos autores, declarando mesmo dispensar-se de conhecer o modelo: “Faltava a encomenda, que em boa hora chegou. Já li, já gostei e gostei do conteúdo eminentemente político, assim como da forma política como foi apresentado. Tão político que nem peço para ver o modelo formal, que um dia deverá ser depositado em lugar público. Parabéns, é a palavra certa”.

Lains tinha gritado uns dias antes a sua angústia a propósito do ultraje que representa a proposta do governo para a redução da TSU patronal, porque “a descida da TSU beneficia sobretudo as maiores empresas, aquelas que mais aparecem nas fotografias do Governo”. Nesse texto criticava o silêncio do PS e exigia uma alternativa ao disparate da redução da TSU patronal: “Entretanto, o PS não reage ou reage com pouca força. Um discurso aqui e outro ali não chegam. É preciso uma equipa a repetir o sentimento de ultraje relativamente à medida proposta. O tempo dos estudos, dos ‘modelos’, está a acabar. São precisas vozes. Juntem-se, falem em conjunto, repitam a mesma palavra sempre que são ouvidos, a ver se a mensagem de ultraje não passa para cá. Sem isso, o Governo não deixa de fazer a agenda. Eles têm equipa, naturalmente. Queremos uma — e só uma — no maior partido da oposição. E não é pedir muito. Afinal, trata-se de saber que governo alternativo propõem, quem são as pessoas que lá vão pôr, quais são as ideias que essas pessoas têm para o lugar que querem conquistar. A normalidade democrática é isso mesmo. É demais, esta coisa da TSU, novamente. Se não for desta que ouvimos vozes de ultraje generalizado, será quando?”.

Quando o PS rompeu o silêncio e apresentou as suas propostas, terá Lains reparado que o relatório, tão cheio de parabéns e cujo modelo nem precisa de ser lido, propõe precisamente a redução da TSU patronal, sem que isso o ultrajasse?

O facto é que, uns por terem lido e outros por não terem lido, muitos correram a felicitar o relatório e o seu relator, Mário Centeno, bem como a iniciativa patrocinada por António Costa. No Expresso, Henrique Monteiro foi talvez a única excepção e concluiu, com algum prazer, que esta escolha do PS é um corte com a esquerda, “um corte claríssimo a partir deste documento”. Em contrapartida, o DN garante que “o PS encosta à esquerda”. Em que ficamos então? “Uma política de esquerda, anti-troika e centrada nos trabalhadores”, “encosta à esquerda” ou faz um “corte com a esquerda”?

É o que vou discutir de seguida, apreciando primeiro a escancarada ideologia do documento, depois as suas medidas concretas e, finalmente, avaliando a sua viabilidade.

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NOTAS VÁRIAS

A IDEOLOGIA DO MERCADO

O relatório (com as suas propostas) é claramente ideológico. Isso pode ser bom ou mau, ideias são sempre precisas e ainda bem que são apresentadas com clareza. Mas o que escreve não é o que estamos habituados a ler ou a ouvir, nem sequer no PS. Há um deslizamento para posições que o leitor ou a leitora apreciarão por si.

Primeiro exemplo, a função do Estado. Ouviu falar do Estado regulador, do Estado estratego ou de investimento público? Esqueça tudo. O texto, logo quando apresenta os seus objectivos, afirma que se pretende “Reforçar a credibilidade e a qualificação do Estado concentrando‐o nas suas funções exclusivas de soberania (funções soberanas, regulação, salvaguarda de interesses estratégicos nacionais) bem como nas de prestação de serviços com relevância para a sociedade (educação e saúde) e no seu insubstituível papel de redistribuição de riqueza e proteção contra os riscos” (p.9). Investimento público? Nada. Porque “na actual conjuntura os meios de que se pode dispor são extremamente limitados” (p.27).

Estado estratego? Nem vê-lo. Não há no relatório nenhuma estratégia para conduzir ou influenciar a economia e, por isso, a direita que ontem o criticou não tem razão: não há qualquer regresso aos modelos de investimento em infraestruturas de José Sócrates, nem qualquer outro e diferente investimento estratégico. Esqueçam mesmo a herança do governo Sócrates ou qualquer alternativa para investimento público qualificante. De facto, o relatório propõe a continuação da redução significativa do investimento do Estado, seguindo Passos Coelho.

Segundo exemplo: ouviu falar em crítica aos despedimentos e à ignomínia da política de promoção do desemprego? Esqueça tudo. Já nem há despedimentos, há simplesmente “separações entre empresas e trabalhadores” (p.10).

Terceiro exemplo: ouviu falar de crítica à desvalorização interna, ou seja, ao corte nos salários por via da prepotência das políticas governamentais e da troika? Esqueça esse detalhe. É o mercado que se “ajusta”: “Importa ainda destacar que, ao contrário do que é frequentemente referido, o mercado de trabalho revela capacidade de ajustamento dos salários, registando-se no período mais recente reduções de remuneração nominal na ordem do 20% quer por via dos novos contratos quer dos trabalhadores que permanecem” (p.20).

Quarto exemplo: ouviu falar de recuperação dos contratos colectivos, do valor da negociação e do compromisso? Dispensável, o contrato colectivo já só deve servir para os que recebem salário mínimo (que são precisamente os que têm o salário fixado por lei e não por contrato): “Somente para os trabalhadores que auferem o salário mínimo a contratação colectiva tem algum impacto e este deve ser acautelado” (p.21.)

Quinto exemplo, os despedimentos na função pública chamam-se “racionalização de efectivos” (p.64). Onde é que já ouviu isto?

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Sexto exemplo, este de uma ideologia bizarra, porque dificilmente se entende o que quer dizer: o documento defende a “criação de um sistema de relações laborais mais justo, porque protege a rotação dos trabalhadores” (p.34), sendo que noutras páginas se critica precisamente o excesso de “rotação” dos trabalhadores. Resultado de umas páginas serem escritas por um e outras por outro, tudo passado a pente fino pela ideologia.

É o mercado, meus amigos. Nunca o PS escreveu, em particular sobre o “mercado de trabalho”, um texto tão acentuadamente liberal na ideologia e liberal na política.

O QUE LÁ NÃO ESTÁ

Dirão os leitores mais desconfiados com a inclinação política ou económica deste cronista: lá está ele a pegar por frases ou ideias, o que importa é o que o PS quer fazer e vai fazer, acabar com a austeridade. Uma beleza. Terá razão o protesto, porque importa mesmo o que se faz mais do que o que se diz. Vamos então ver a política concreta do relatório. Começo pelo que lá não está, antes de verificar o que está.

Os funcionários públicos esperavam as 35 horas? Nada. Esperavam a devolução dos dias de férias? Nada. Esperavam a restituição do valor do salário? As decisões do Tribunal Constitucional não são cumpridas, o PS limita-se a propor uma restituição em dois anos, ao contrário dos quatro do PSD e CDS.

Os desempregados esperavam a reconstituição das indemnizações por despedimento ou dos valores dos subsídios de desemprego? Não pense nisso.

Os trabalhadores esperavam os feriados de volta? Nada. Os reformados esperavam o seu nível de pensão reposto? A decisão do Tribunal Constitucional não é cumprida, esperem dois anos.

Os cidadãos esperavam a rejeição da privatização da TAP? Nada, até são prometidas mais privatizações, embora o PS se tenha dispensado de nos dizer quais.

MAS O QUE TAMBÉM NÃO ESTÁ É A REESTRUTURAÇÃO DA DÍVIDA

No entanto, o ponto essencial é a falta de qualquer ideia – e antes a confirmação da rejeição – de reestruturação da dívida pública. Com este relatório, o PS põe uma pedra sobre o assunto e corta as pontes de diálogo com a esquerda. Não haverá nenhuma iniciativa nem proposta para corrigir o peso da dívida pública e da dívida externa.

António Costa já o tinha dito, não se mete nisso porque levaria com a porta na cara em Bruxelas. Mas tinha apresentado duas alternativas: uma “leitura inteligente” do Tratado Orçamental e um pedido de financiamento europeu para um programa de recuperação. O pedido de financiamento desapareceu, nem resta sombra dele. A leitura “inteligente” ficou reduzida à

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NOTAS VÁRIAS

expectativa de uma “redução dos spreads dos países mais afectados” (p.25) e de que não seja contabilizada em défice a perda de receitas com a segurança social (p.49). Não existe qualquer proposta para uma negociação sobre interpretações ou regulamentos do Tratado Orçamental, ou normas ou o que quer que seja que permita imaginar que sejam aliviadas as imposições drásticas de um Tratado que é incumprível.

Pelo contrário, as regras do Tratado Orçamental são para aplicar à letra, para atingir “o quase equilíbrio estrutural das contas públicas e a redução do endividamento” (de acordo com o Tratado, p.11). Durante vinte anos, teremos austeridade e obediência.

Chama igualmente a atenção o facto de não haver uma palavra sobre o sistema de crédito. A banca não existe para o relatório. BCP, BPN, BPP, BES, BPI, Montepio, não existem, não se passou nada, não se passa nada. O balanço dos bancos, a sua dívida, os seus riscos, esse é um “mercado” que não é incomodado nem sequer referido pelos autores deste programa económico. Não faz nada, tudo ao molho e fé em Deus.

Depois, o relatório faz contas sobre o Orçamento mas não existe Serviço Nacional de Saúde. Não entra na conta. Não entra nas preocupações nem nas prioridades. Não se muda nada neste domínio. Ausência estranha e preocupante, considerando a orientação liberal do relatório e a importância que o tema assumiu na nossa vida colectiva.

Finalmente, nenhuma alteração da estrutura do IRS, a não ser terminar a sobretaxa (p.47). Se esperava a aplicação do princípio constitucional do englobamento dos rendimentos, de modo que as mais-valias ou rendimentos de capital paguem como os rendimentos do trabalho, não será nunca com esta proposta. Tudo igual.

Como se muda ou não muda noutros domínios, é o que se vai ver a partir daqui.

MILAGRE NO EMPREGO: TREZENTOS MIL

O texto garante uma gigantesca criação de emprego: 300 a 350 mil empregos até 2019, reduzindo o desemprego “oficial” para metade em quatro anos, mesmo que para um nível que o anterior primeiro-ministro considerava “inaceitável”. Essa criação de emprego depende de um milagre: o aumento do investimento “em 25% até ao fim da legislatura” (p.93), ou 2019. O número exacto é 31,4%, mesmo assim só conseguindo repor o nível anterior à crise. Mas porque é que o relatório presume que vai haver este entusiasmo de investimento por parte das empresas?

A primeira hipótese é que o PIB real cresça imenso: aproximadamente 12,6% até 2019. Mas isso, sendo uma expectativa manifestamente optimista, pois não há memória de a economia portuguesa ter crescido assim nos últimos vinte anos, mesmo antes do euro, e não é suficiente para induzir um tal crescimento do emprego. A projecção é irrealista, não tem precedente

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histórico nem tem instrumentos para a tornar possível.

A segunda hipótese é que a redução dos “custos do trabalho” (em 4%), conjugada com as alterações das relações laborais, favoreça a confiança das empresas e dos investidores. A minha interpretação é que o relatório considera que este é o factor decisivo.

FACILITAR OS DESPEDIMENTOS COLECTIVOS

Como já assinalei, o relatório propõe prosseguir, sem interrupção nem perturbação, a política de Passos Coelho e de Portas para o mercado de trabalho. Não há restituição de horas de trabalho, de feriados, de dias de férias, não há alteração das regras para os despedimentos, nem dos subsídios de desemprego, nem das indemnizações pela “separação entre os trabalhadores e as empresas”.

Mas o relatório apresenta uma ideia nova: facilitar os despedimentos colectivos, através de um “regime conciliatório e voluntário, em que as empresas podem iniciar um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às dos despedimento colectivo” (p.31). A troca é esta: neste caso, e só neste caso, os despedidos ficam com uma indeminização maior, aceitando um processo mais expedito e sem recurso ao tribunal.

Mário Centeno é defensor de um “contrato único” que possa responder às “dificuldades dos jovens no mercado decorrem da legislação de proteção ao emprego” (O Trabalho, Uma Visão de Mercado, p.69), pelo que, contrariando a “ilusão protecionista”, será necessária uma reforma que “reduza os custos do despedimento (monetários e processuais), avance no sentido de uniformizar as diferentes formas contratuais e universalize o seguro de desemprego”. Em consequência, propõe um “contrato único” com “períodos experimentais longos” e “mecanismos de pré-aviso de despedimento que facilitem a procura de um novo emprego” (idem, p.89 e 18). Esse “contrato único” chama-se “contrato para a equidade laboral” no relatório do PS e o seu autor acredita que esta norma é suficiente para desencadear a confiança dos empresários, o investimento e o milagre dos 300 mil novos empregos.

Como seria de esperar, o resultado desta política é a redução dos salários: a remuneração por trabalhador cresce nominalmente 0,7% durante todo o período, ou seja, reduz-se em termos reais em 7%, enquanto o PIB real cresce 12%. Para onde vai o resultado deste crescimento, não é difícil de adivinhar. Chama-se transferência de rendimento do trabalho para o capital. Com o PS, os trabalhadores vão perder o equivalente a um mês de salário.

REDUZIR AS PENSÕES E AUMENTAR A IDADE DA REFORMA

O relatório propõe depois quatro novas ideias para o sistema de segurança social.

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A primeira, aumentar a idade da reforma. Mais uma vez, é a continuidade de Passos Coelho. A coisa é apresentada de modo alegórico: “a reavaliação do fator de sustentabilidade face às alterações ocorridas, quer de contexto (quais? ) quer legislativas, nomeadamente fortalecendo a eficácia do fator e a sua articulação com a idade da reforma” (p.40). É um modo muito rebuscado, mas quer dizer exactamente isto: aumentar a idade da reforma.

A segunda, reduzir as pensões, excepto as mínimas, durante os cinco anos previstos: “congelamento dos valores nominais salvo para as pensões de valores mais baixos” (p.38). Congelar os valores nominais quer dizer que as pensões são reduzidas em termos reais pelo valor da inflação, que o relatório calcula que seja 8% durante estes cinco anos. Se é reformado ou reformada, tome nota: com esta política, perderá 8% da sua pensão no final do período.

A terceira ideia é reduzir o desconto dos trabalhadores com menos de 60 anos em 4% até 2018 (p.48–9). O efeito é que a sua pensão será mais pequena (menos 2,6%). O relatório pretende deste forma aumentar o rendimento disponível actual, a troco de menor rendimento no futuro. O sistema de segurança social perde agora 1050 milhões de euros em receitas, mas vai pagar menos no futuro.

A quarta ideia é a redução da contribuição patronal em TSU em 4%, no que incide sobre contratos permanentes. Assim, a segurança social deixa de receber 850 milhões, segundo o cálculo do relatório. Ou seja, concretiza a ideia que Passos Coelho anunciou, declamando que Portugal precisa dela “como do pão para a boca”: o governo das direitas ameaça, o PS aplica. Este défice orçamental será coberto por novas receitas: um imposto sobre heranças, a restituição do nível do IRC que o actual governo reduziu e uma taxa que pune a “rotação excessiva” de trabalhadores. Mas só será coberto parcialmente, ficará um buraco, mesmo aceitando que estas receitas hipotéticas se concretizem: o resto será pago pelo aumento das receitas fiscais porque o texto declara que vai tudo correr bem.

Sobre o efeito desta medida, já aqui escrevi, bem como Bagão Félix, e as contas são conclusivas: tem um efeito marginal nas contas das empresas e, se pensa que é assim que se estimula o investimento para a criação de emprego, a inocência não faz mal a ninguém mas também não resolve problemas.

UMA MISCELÂNEA DE IDEIAS

Há boas ideias no documento, mas com aplicações limitadas e até, em alguns casos, discriminatórias: uma (ligeiríssima) reposição de abonos de família (40 milhões de euros, p.41), reposição do Complemento Solidário para Idosos (abrangendo alguns dos que perderam o direito e com o custo de 8 milhões, p.42), um complemento salarial para os rendimentos abaixo do salário mínimo nacional (p.35), a punição dos contratos a prazo típicos, a velha ideia do agravamento do IMI para casas desabitadas (p.53), a redução do IVA da restauração (p.52).

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Noutros temas, é a visão tradicional. Não haverá mais emprego na função pública, mesmo que o PS tenha protestado contra despedimentos impostos por Passos Coelho e Portas (e os 700 trabalhadores da segurança social ficam esquecidos?). O número global de funcionários públicos fica congelado e pode mesmo haver despedimentos em algumas áreas: “Isso não significa que em certas áreas da governação não seja promovida a racionalização de efetivos, compensada com o aumento noutras áreas” (p.64). A “racionalização de efectivos”, pode adivinhar o que quer dizer.

O relatório acrescenta ainda uma nova ideia: para haver rejuvenescimento do emprego no Estado, haverá um exame de avaliação ao fim de 15 anos (p.65). Uma proposta curiosa que não é sequer explicada. Mas, como se trata de rejuvenescer os quadros, percebe-se o que quer dizer este exame. Alguns ou muitos desses trabalhadores serão substituídos, ou “racionalizados”.

Haverá mais privatizações (p.73), sujeitas ao superior critério da “clarificação do conceito de ‘setor estratégico nacional’”, que o relatório não faz o obséquio de clarificar. Sobre a TAP, a privatização que será assinada pelo próximo governo, nem uma decisão, o texto assinala só o “risco enorme”. Esperava-se um pouco mais, que determinasse se esse “risco enorme” é para cumprir ou para rejeitar.

O MISTÉRIO EUROPEU

Para um partido tão devotamente obediente em relação ao euro e à União Europeia, a discri-ção com que é tratada a questão europeia não pode deixar de revelar um incómodo.

No início do texto, são apresentados dois “cenários adicionais”: tudo corre bem na Europa e tudo corre mal na Europa (p.24–6). Para que servem estes cenários, os leitores não podem sequer adivinhar.

Mas é-nos dito que no primeiro cenário, o da “credibilidade reforçada do projecto europeu”, haverá “políticas pró-cíclicas sincronizadas” e “redução dos spreads dos países mais afectados pela crise da dívida soberana”, uma apreciação do euro da ordem dos 20% e um “cenário particularmente benigno para a economia portuguesa” (p.25).

No segundo cenário, o de uma “crise europeia profunda e prolongada”, teremos “a institucionalização da possibilidade de expulsão dos países da área do euro”, aumento dos spreads da dívida, e, “neste quadro, particularmente associado a uma eventual saída da Grécia da zona euro, com o peso da dívida pública a crescer de forma desmesurada, poria inevitavelmente em questão a permanência de Portugal na zona euro e eventualmente poria em causa a própria existência do euro tal como hoje o conhecemos” (p.26). Este cenário não é explicado. Nem muito menos, perante a hipótese sombria, é indicado o que deveria fazer o governo português – ou o que pretende fazer o PS – para o evitar ou corrigir. De facto, no resto do texto nunca mais emerge qualquer preocupação com o assunto. Assume-se tranquilamente que tudo corre bem, que a Europa não é questão, que Portugal cumpre o Tratado e que não

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NOTAS VÁRIAS

se passa nada, que a Grécia não existe e Berlim também não. Parece imprevidente, parece desconexo desta análise de riscos, mas é o que é.

E os resultados?

Assim, o relatório indica um caminho económico. É a sua virtude. É claro nas escolhas, mesmo que algumas das suas contas sejam relativamente incipientes, indicativas ou até imaginativas (ou propagandísticas, vd. o gráfico ao lado, publicado por um blog oficialista do PS, Câmara Corporativa, tentando explicar que tudo é fácil). Onde é ideológico, mostra um entusiasmo pela soluções liberais para o “mercado de trabalho” que o PS nunca tinha expressado. Abandona a ideia do Estado estratego, reforça o primado do mercado nas escolhas sociais. Diz ao que vem. Onde é concreto, confirma essa ideologia:

• Abandona qualquer ideia de reestruturação da dívida soberana,

• Ignora as sugestões anteriores do PS sobre a “leitura inteligente” do Tratado Orçamental e recusa uma intervenção para o corrigir ou ajustar,

• Ignora a questão da estabilidade e confiança no sistema de crédito e da consistência dos balanços dos bancos,

• Garante a continuidade das políticas de trabalho do governos das direitas, rejeitando a devolução de direitos retirados,

• Recusa a decisão do Tribunal Constitucional, adiando a reconstituição de salários e pen-sões,

• Propõe a redução do valor real das pensões em 8%, excepto das pensões mínimas,

• Indica o aumento da idade da reforma, de modo não especificado,

• Conduz à redução da remuneração média por trabalhador em 7%.

• Não define uma escolha sobre a privatização da TAP.

Aqui tem o que pretende ser o governo do PS. Já passou o seu Rubicão. A direita tem todas as razões para ficar preocupada: apareceu uma alternativa que quer fazer o mesmo, mas aplicando mais eficientemente a receita, cedendo o mínimo possível aos mínimos sociais.

Passar o Rubicão, ou o programa do PS, http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/04/22/passar-o-rubicao/,

blogue do jornal Público ‘Tudo Menos Economia’ de 22 de Abril de 2015

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Dúvidas sobre as propostas dos peritos do PS

JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

As propostas do PS devem ser discutidas com muito cuidado e com toda a atenção por espe-cialistas, para que não se abram alçapões quando se estão a fechar portas. Entende-se a pre-ocupação de quadratura do círculo, de prudência de quem vai governar, mas convém olhar a eficácia das medidas, para que possam ser credíveis.

Indo por partes:

1) A importância de diagnósticos. O documento refere que “para desenhar as so-luções é necessário ter um bom diagnóstico das causas”. E é verdade. Não vou discu-tir o diagnóstico que é feito para a actual situação de Portugal. Deixo isso aos macro-economistas. Mas parece-me que há uma omissão de relevo em relação ao facto de estarmos integrados num contexto de moeda sobrevalorizada, com todos os instru-mentos de controlo orçamental de pé. Mas aceite-se esse pressuposto de omissão; 2) Equidade laboral. O documento dos peritos aponta para o facto de haver um “excesso de contratos a prazo, baixa protecção, baixa taxa de conversão dos contratos a prazo em perma-nentes”. É verdade e toda essa realidade deve ser atacada. Os contratos a prazo estão a ser usados como um subterfúgio legal, ao criar uma nova forma de contratação sem mexer nas regras de despedimento. E esse subterfúgio foi sendo aprofundado à medida que a legislação – com o PS – inclusive foi alargando os prazos de utilização dos contratos a prazo, sem o “ris-co” – veja-se o uso perverso das palavras – da contratação efectiva do trabalhador. O contrato a prazo sempre foi usado para fins que a própria lei nunca previu (carácter de excepção, ver artigo 140.º).

E nunca foi devidamente atacado pelas autoridades. Por isso, creio que a solução prevista pelos peritos – limitando o seu uso à “substituição de trabalhadores” – ajudará, mas não resol-verá o problema. Como se vai vigiar a correcta utilização do contrato a prazo? Qual o agrava-mento do “risco” de incorrecto uso do contrato a prazo? Vai apertar-se no número de renova-ções de contratos a prazo? Que reforço se dará à Autoridade para as Condições de Trabalho? 3) Despedimento. É interessante notar a ginástica que é feita para não referir a palavra “despedimento”. O novo “regime conciliatório de cessação de contrato de trabalho” visa uni-formizar as condições de despedimento colectivo – bastante célere – com as de despedi-mento individual (que obriga a um todo um processo e que - creio - não está dependente

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de condições externas à empresa, de mercado – Código do Trabalho, artigo 351º e seguin-tes). A “justa causa” não é alterada, mas - creio - alarga-se a possibilidade de despedimento individual à evolução do mercado, nunca devidamente vigiado pelas autoridades públicas; 4) Contestação ao despedimento. O documento é maldoso ao referir que “a empre-sa não fica com mais poder porque pode ser alvo de processo judicial se o despedimen-to for impugnável à luz da lei actual”. Era só o que faltava que não o fosse. Mas esquece-se que a principal arma do patronato – concedida aliás pelo PS, salvo erro em 2008, na re-visão do Código do Trabalho – foi introduzir a obrigatoriedade do trabalhador de entre-gar a indemnização por despedimento, caso queira impugnar o despedimento ilegal; 5) Aumento de indemnização por despedimento: O documento dos peritos agrava as in-demnizações por despedimento individual - de 12 dias por cada ano de “casa”, para 18 dias nos primeiros 3 anos de casa e para 15 dias nos seguintes. Dando um exemplo concreto de um trabalhador com mil euros mensais e dez anos de casa. Hoje receberia 4000 euros e 5300 eu-ros no novo regime. É um considerável aumento (32,5%, mas corresponde a apenas a mais 1,3 meses de ordenado. É suficientemente dissuasor? Não creio. E ainda por cima apenas se aplica aos novos contratos. Ou seja, terá um efeito muito limitado, na realidade. É um sinal, frágil. 6) Responsabilização das empresas por despedimento:

a) O que parece estar na calha é uma autonomização das contribuições para a eventualidade de desemprego das restantes eventualidades (pensões, doença, etc.). Essa autonomização tem vantagens e inconvenientes. Vantagens: evita o con-tágio da protecção no desemprego aos recursos das outras protecções. Desvan-tagem: permitirá a prazo o seu expurgo da Segurança Social e a passagem para a gestão do Ministério da Economia. O documento denomina já essa protecção como “utilização do seguro de desemprego”. Será um acaso? E depois, deverão as verbas de protecção do desemprego ser geridas para a promoção do emprego?

b) Penalização das empresas que mais despedem: não se entende em quanto será esse agravamento. A formulação é equívoca ainda: refere-se que a actual parcela da TSU que cobre o desemprego é de 3,42 pontos percentuais da TSU. E qual será a nova taxa? Apenas se diz que esse indicador é “calculado com uma média dos últimos 3 anos”, mas apenas será agravada se a média do rácio CUSTOS DE DESEMPREGO DOS EX-TRABALHADORES/CONTRIBUIÇÕES DA EMPRESA ultrapassar a média do sector. A lógica é apenas combater a falsa rotação de trabalhadores que conduz à precarieda-de. Mas o rácio encontrado pode não ser a melhor medida. Tudo depende dos valores sectoriais. E se houver um sector com uma enorme falsa rotação de trabalhadores, nenhuma empresa verá a sua taxa agravada. Não parece eficaz. Mais: as empresas

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com poucos despedimentos veriam reduzida a sua taxa social para o desemprego. Mas em que medida? Não será isso uma tendência para a desaparição de uma lógica de redistribuição?

7) Complemento salarial anual. A medida visa conceder um complemento aos trabalha-dores que, fruto da sua elevada rotação e outras formas de precariedade laboral, tenham rendimentos anuais significativamente inferiores ao salário mínimo. Pretende-se que seja uma medida de “promoção do emprego”. Mas se assim é, o Estado – ou a Segurança So-cial?! – estará a subsidiar empregos pobres. Não será um incentivo ao emprego, mas ao mau emprego. E à elevada rotatividade de emprego. Porque não aumentar o SMN? As con-tas mostram que o impacto geral é diminuto. No fundo, parece ser um aumento do SMN, mas pago pelo Estado, aliás em parte como fez o actual Governo, com o acordo da UGT. 8) Pensões e sustentabilidade do sistema de protecção social. O documento parece fazer um diagnóstico correcto ao sublinhar que o agravamento da sustentabilidade do sistema se deveu, sobretudo, à destruição maciça de emprego e subida exponencial do desemprego, se bem que a tendência de fundo de envelhecimento populacional - e apesar de todos os cortes - conduziu ainda assim a um aumento das despesas com pensões.E que é ainda necessário ajustar as medidas para o equilíbrio do sistema.

a) Factor de sustentabilidade: A solução defendida é uma redução a prazo das pen-sões, via “reavaliação do factor de sustentabilidade”. O factor de sustentabilidade foi introduzido em 2006 e está dependente da esperança de vida. Na prática, é como fi-xar o montante que o pensionista receberá até ao final da sua vida – em função da es-perança média de vida – como forma de determinação da pensão mensal. Ao “reava-liar” esse factor, não deverá ser para dar mais pensões, mas para as reduzir. Recorde-se que a situação é grave, já que a criação do factor de sustentabilidade levará a uma redução, segundo a OCDE, de 40% das pensões face à situação anterior à alteração.

b) “Outros instrumentos de financiamento”. O documento estabelece – agora veja-se a formulação – “a possibilidade de considerar outros instrumentos de financiamento”. Não sou jurista, mas creio que foi um advogado que sugeriu esta frase. Novas fontes de financiamento é algo que está em cima da mesa há décadas sem que alguma vez se tenha tomado uma decisão ou mesmo encarado “a possibilidade de considerar” alternativas. Não se trata de um assunto fácil. Mas escrever a “possibilidade de consi-derar” parece – no mínimo - pouco esforço face ao passado...

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c) Propostas em concreto? No ponto 4.1.6 “Diversificação do financiamento da Segu-rança Social”, cria-se um novo imposto sucessório e fixa-se a consignação da receita que se perderia com a descida da taxa de IRC de 21 para 20% em 2016 e da descida de 1,0pp da taxa por cada ano até 17% em 2019. Mas ao mesmo tempo prevê-se uma descida da TSU patronal de 1,5pp em 2016, mais 1,5pp em 2017 e de 1,0pp em 2018 sobre os salários dos trabalhadores permanentes, ficando assim caso “a avaliação da eficácia da medida na criação de emprego estável e de competitividade das empre-sas assim o recomendar”. Dúvidas: 1) Compensará? 2) Para quê descer a TSU patronal?

i. Compensará? A estimativa da receita do imposto sucessório - 100 milhões de euros - não é clara. Mas é falível. A receita de IRC em 2014 foi cerca de 4500 milhões de euros a uma taxa de 23%. Em 2015, é de 21%. E em 2016 de 20%, 19% em 2017, 18% em 2018 e 17% em 2019. Ou seja, quanto vale 1pp de IRC em 2016, 2pp em 2017, 3pp em 2018, 4pp em 2019? Essa é a questão. Sabe-se que, no total de 13,6 mil milhões de euros de contribuições em 2014, a descida de 1,5pp da TSU patronal sobre contratos permanentes corresponde a 830 milhões de euros. Portanto, seria necessário impor uma cláusula de salvaguarda, dizendo que, caso a receita do imposto sucessório e de IRC não seja suficiente, a Segurança Social nunca sairá penalizada;

ii. Para quê descer a TSU patronal? Pois, não se percebe. Nem há qualquer estudo que leve a pensar que a descida da TSU ajuda ao emprego. Claro que uma elevada TSU em função do emprego não o facilita. Mas nem a taxa pa-rece estar fora da média comunitária, como nesse caso seria melhor repensar o sistema em conjunto e o seu financiamento, caso contrário redunda numa transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas e numa descapitalização da Segurança Social. Aqui aparece - parece-me - mais como forma de compensar, sim, as empresas pelo agravamento do IRC, à custa da Segurança Social. Ou seja, uma nova e mais complexa descida da TSU, semelhante mas mais complexa do que a defendida pelo actual Governo e sempre tão criticada pela oposição, incluindo o PS.

Para já fico por aqui. Mas há ainda a outra metade do estudo.

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Austeridade e protectorado

JOÃO FERREIRA DO AMARAL

Os defensores das políticas de austeridade usam normalmente como argumento dessa defesa o seguinte:

- um país com elevados níveis de défice e de dívida pública, quando não dispõe de moeda própria – como é o caso dos estados da zona euro - não tem outro remédio senão reduzir o défice , uma vez que se não o fizer mais cedo ou mais tarde o Estado entra em bancarrota; daí que haja plena justificação para políticas de austeridade.

Posto assim, o argumento faz sentido. Pode discutir-se o ritmo óptimo de redução do défice e principalmente quem paga essa redução, ou seja quem vê os seus rendimentos baixarem para que o défice seja reduzido, mas a justificação do objectivo existe.

As políticas de redução do défice em Portugal como em outros países da zona euro têm sido mal concebidas: têm prejudicado relativamente mais os funcionários públicos, os reformados e os que vivem de apoio financeiro público. Por outro lado, o ritmo de redução pretendido para o défice foi excessivo levando, até, provavelmente a uma pior execução do pretendido, ou seja a redução foi menor do que poderia ter sido se o ritmo escolhido tivesse sido mais moderado.

Mas se é verdade que o argumento da redução do défice tem validade, não é menos verdade que não pode servir para defender as políticas de austeridade que vigoram na zona euro. Isto por uma razão simples: é que as políticas de austeridade europeias vão muito além de uma mera redução do défice público. A austeridade, segundo anunciam, pretende também melhorar a competitividade da economia através da desvalorização interna.

A desvalorização interna significa a redução do custo do trabalho - por redução de salários, diminuição da TSU ou aumento do horário do trabalho - condição supostamente essencial para melhorar a competitividade do país. Significa também, por arrasto, para manter o equilíbrio da segurança social, a redução das pensões de reforma. Para além disso, é imposta também uma alteração das leis laborais de forma a precarizar mais o emprego e portanto obter por essa via nova redução dos custos de trabalho.

É a política de desvalorização interna que torna a política de austeridade inaceitável, porque desvaloriza o trabalho, aumenta as desigualdades e nem sequer é eficiente do ponto de vista da melhoria da competitividade da estrutura produtiva. As autoridades europeias para tentar fazer passar melhor esta política de austeridade dão-lhe o nome de reformas estruturais.

No caso grego e no caso português a Troika continua a insistir no aprofundamento da política

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NOTAS VÁRIAS

Desigualdades na Europa: cinco problemas do problema

europeu

JOÃO MINEIRO

A CRISE E A CENTRALIDADE DAS DESIGUALDADES NO SÉCULO XXI

Haverá desde o século XIX poucos assuntos tão relevantes e tão estudados na generalidade das ciências sociais como seja o assunto das desigualdades sociais. E ainda assim, quando olhamos hoje para a realidade e para os dados, não haverá questão mais central na Europa e no mundo. Na verdade, o debate que hoje se trava na Europa sobre o futuro do Estado-social está irredutivelmente ligado à questão das desigualdades, porque quer os serviços públicos, quer o Estado-social, foram erguidos no quadro de um conflito social permanente contra o que Charles Tilly (2005) muito bem apelidou de mecanismos sociais explicativos das desigualdades,

de desvalorização interna. No que respeita à Grécia tal é evidente na forma como têm decorrido as atribuladas negociações actuais.

No caso português, os últimos relatórios de avaliação por parte da Troika criticaram fortemente o governo português por não prosseguir suficientemente a política de reformas estruturais ou seja por não aprofundar a desvalorização interna.

Não pode haver dúvida que, quando for nomeado novo governo depois das próximas legislativas, o programa que esse governo será obrigado a prosseguir já está traçado: avançar na desvalorização interna. E até há um instrumento poderoso para obrigar o futuro governo se este estiver renitente a realizar esse programa: é o Tratado Orçamental, que obriga os países com excesso de dívida ou de défice a fazer uma parceria económica com as autoridades comunitárias que, com base nessa parceria, irão forçar o plano de “reformas”.

Esta é uma situação que poderemos considerar de verdadeiro protectorado europeu. Isto é, uma situação em que, a pretexto da situação de excessivo endividamento, as autoridades europeias intervêm em áreas que o Tratado de Lisboa reserva aos estados nacionais, como sejam as leis laborais ou a segurança social.

Austeridade e protectorado estão hoje intimamente ligados na União Europeia.

Dúvidas sobre as propostas dos peritos do PS, http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/04/duvidas-sobre-as-pro-

postas-dos-peritos.html, blogue Ladrões de Bicicletas de 23 de Abril de 2015

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isto é, os mecanismos da exploração, os mecanismos de fechamento de oportunidades e os mecanismos de seleção-distribuição.

Na segunda metade do século XX, depois de décadas de guerras, crises e experiências autocráticas, a Europa tornou-se um espaço onde no quadro da relação de forças daquela época histórica, foi possível construir uma nova ideia de democracia política e uma moderna conceção de Estado-social. Ambos só puderam ser concretizados no quadro do aumento da escolarização, da mobilidade social, do crescimento económico e do esbatimento das desigualdades. Mas eles também só podem ser explicados à luz da relação de forças entre capital e trabalho, no quadro de organizações sindicais fortes e representativas, conflitos laborais intensos, revoluções culturais, sociais e filosóficas de grande alcance, novos movimentos sociais e culturais e uma dinâmica de mobilização geral que permitiu avanços económicos, sociais e laborais sem precedentes.

Contudo, desde os anos 80 que com o ciclo de Margaret Tatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos EUA, a Europa e o mundo vivem um momento de viragem política. Foi nesse momento que, acompanhado com o desmoronamento do chamado “socialismo real”, Fukuyama (1992), excitado com o ritmo dos acontecimentos, se apressou a anunciar que tínhamos chegado ao “fim da história”, enquanto também nos anos 90 outros vaticinavam o “fim do trabalho” (G. Aznar, K. Eder, A. Gorz), o “fim das classes” (Clark, Lipset, R. Aron, Lautman, Pakulski, M. Waters) ou a chegada à “era do vazio” (Lipovetsky).

Hoje, passadas mais de duas décadas e em plena crise capitalista, o argumento do “fim da história” é ao mesmo tempo pouco credível e estranhamente forte no senso comum, pelo simples facto de que não se desenha no horizonte, para a maioria das pessoas, uma alternativa credível ao modo de produção capitalista. Contudo, não há otimismo hoje na elite financeira, económica e política que não embata de frente com a dureza dos mais recentes dados sobre as brutais desigualdades que se aprofundam nas nossas sociedades e que nos têm feito regredir várias décadas.

Thomas Piketty (2014), por exemplo, mostra de forma extremamente bem documentada, como a liberdade se encontra hoje ameaçada pelos níveis brutais de desigualdade económica. Desigualdade essa que persiste no tempo, que se reproduz e que permite a perpetuação de privilégios sobre um conjunto reduzido da população mundial que se incrusta nos lugares de poder económico-financeiros do capitalismo moderno.

Mas a desigualdade não se manifesta apenas na sua dimensão propriamente económica. Veja-se que no que respeita às desigualdades vitais, para usar o termo de Göran Therborn (2006), como demonstram de forma muito clara Richard Wilkinson e Kate Pickett em O Espírito da Igualdade (2009), há uma relação forte entre a desigualdade e os indicadores de saúde, exemplificada no facto das sociedades mais desiguais do ponto de vista salarial e social, terem também maior incidência de doenças mentais, menor esperança média de vida, mais

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NOTAS VÁRIAS

mortalidade infantil ou maior propensão para a obesidade.

As desigualdades têm repercussões económicas e sociais, mas também políticas. Como mostra Joseph E. Stiglitz em O Preço da Desigualdade (2012), ou para o caso português Franscisco Louçã, João Teixeira Lopes e Jorge Costa em Os Burgueses (2014), as próprias instituições políticas e democráticas têm sido contaminadas e colonizadas pelos grupos de interesse e os lobbies económico-financeiros que se perpetuam com a concentração de capitais e propriedade no topo da sociedade.

De facto, desde 2008 que o mundo tem vivido uma crise económica de enorme alcance que provou que eram prematuras e apressadas as análises que se propuseram sobre a perda de relevância das desigualdades ou das classes sociais para pensar a sociedade contemporânea. A crise financeira mundial de 2007 traduziu-se logo em 2008 numa crise económica com repercussões mundiais, que deixou bem claro como as desigualdades continuam a ser um aspeto bem definidor das nossas sociedades. Nessa altura, o próprio G20, reunido em 2009 em Pitsburgo, advogava que era necessário “melhorar a regulamentação, funcionamento e transparência dos mercados financeiros”, de modo a que os “mercados promovam responsabilidade e não imprudência”. Dessa análise partiu “a responsabilidade de assegurar, por meio de normas e incentivos adequados, que os mercados financeiros e outros funcionem com base na correção, integridade e transparência”1.

Nesse encontro, os líderes mundiais declararam que se tinha estabelecido “um compromisso histórico” [Angela Merkel], tendo Gordon Brown declarado que se inaugurou “uma nova ordem mundial”. Cinco anos depois, constata-se que a crise financeira deu origem à “crise das dívidas soberanas”, e vale a pena perguntar: que “nova ordem mundial” é esta que está a emergir em consequência desta crise?

Com efeito, a efetiva resposta à crise financeira de 2007 foi a injeção de largos milhares de milhões de euros dos estados no sistema financeiro que tinha entrado em colapso, originando assim um aumento das dívidas públicas e dos défices dos países. Esse endividamento traduziu-se naquilo a que se chamou de “crise das dívidas soberanas” que associada aos ditos programas de assistência financeira aos países do Sul da Europa, tem suscitado neste continente uma enorme polémica acerca do futuro do Estado-social e dos serviços públicos que configuram uma parte substancial da arquitetura institucional europeia e que historicamente constituíram fatores de distribuição da riqueza e esbatimento das desigualdades.

É neste terreno que coloco uma interrogação de partida: estará o problema central da Europa hoje relacionado com os “custos” do Estado-social e das políticas sociais ou terá antes a ver com a distribuição de rendimento, o aprofundamento das desigualdades e os critérios políticos da condução económica? Quais são os verdadeiros problemas do problema europeu?

1 - Declaração final do G20 disponível em: http://www.g20.utoronto.ca/2009/2009communique0925-br.html

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UM PROBLEMA DE EMPREGO

Um dos problemas centrais das desigualdades na Europa tem a ver com a incapacidade dos governos da União Europeia conduzirem uma política económica que permita combater o desemprego e a recessão. Pelo contrário, a aposta na austeridade traduziu-se, como mostram os dados trabalhados pela investigadora Ana Rita Matias (2015), num brutal acréscimo do desemprego na generalidade dos países da Europa entre 2007 e 2013.

FIG 1: DESEMPREGO NA EUROPA ENTRE 2007 E 2014

Entre 2007 e 2013, verificou-se um aumento generalizado do desemprego nos vários países, com um acréscimo global de 2,4 % na OCDE. Como se percebe, na Grécia, Espanha ou Portugal esse aumento foi brutal, com respetivamente mais 19, 18 e 9 pontos percentuais de aumento. Mas o problema é ainda mais grave para o desemprego de longa duração. Vejamos:

Portugal tem uma das mais altas taxas de desemprego de longa duração, tendo aumentado 9,1 % desde 2007. Mas entre os casos mais graves encontram-se justamente países que foram alvo de planos de resgate ou similares por parte das instituições europeias e do FMI,

nomeadamente a Irlanda (aumentou 31,1 %), Espanha (29,3%) e Grécia (18 %).

FONTE: EMPLOYMENT OUTLOOK (2014); CITADO DE MATIAS (2015)

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NOTAS VÁRIAS

UM PROBLEMA DE SALÁRIOS

A política do desemprego não afeta apenas as condições de vida da população desempregada, como está intrinsecamente ligada com a redução dos salários, que são um dos elementos mais estruturantes de afirmação e reprodução das desigualdades.

FIG 3: CRESCIMENTO REAL DOS SALÁRIOS, TAXA DE CRESCIMENTO ENTRE 2007-2008, 2009-2010 E

2011-2013, NA EUROPA

´

Fonte: Employment Outlook, 2014; citado de Matias (2015)

Como nos mostram também os dados trabalhados por Ana Rita Matias (2015), na maioria dos países europeus no período temporal mais recente, entre 2011 e 2013, o crescimento dos salários foi negativo, destacando-se mais uma vez também casos como a Grécia que nesse período viram os salários ter um crescimento real negativo de - 8,8 %, Espanha com - 3,6 % ou a Irlanda com - 2,9 %. Já Portugal teve também, entre 2011 e 2013, uma crescimento negativo de - 0,7 %, a que se soma o facto de sermos também dos países em que a média salarial é das mais baixas da União Europeia.

UM PROBLEMA DE INSTABILIDADE LABORAL

À dureza da política do desemprego e dos baixos salários, acrescenta-se ainda a política da precariedade e da instabilidade na vida profissional. Desemprego, baixos salários e precariedade são o o triunvirato da recessão, da perpetuação das desigualdade e da miséria social. Vejamos:

O que estes dados trabalhados por Renato Miguel do Carmo e Frederico Cantante (2015) mostram é que quer na Europa, quer em Portugal, é elevada a percentagem de população com contratos a termo certo, mas também que em Portugal a percentagem desta população é muito superior à média da União Europeia. Além disso, verificam-se percentagens muito elevadas desta população que desejariam ter um contrato permanente. A ligeira redução em

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Portugal entre 2008 e 2013 destes contratos pode estar relacionada com a proliferação de novas situações de precariedade laboral, como sejam os estágios, os falsos recibos verdes ou os recentes contratos de emprego-inserção.

FIG 4: POPULAÇÃO EMPREGADA COM CONTRATOS A TERMO CERTO E POPULAÇÃO EMPREGADA

COM CONTRAMOS A TERMO CERTO QUE GOSTARIAM DE TER CONTRATOS PERMANENTES (%)

Fonte: EU Labour Force Survey; citado de Carmo e Cantante (2015)

Mas a dimensão da instabilidade não se fica pela modalidade precária e instável das formas de contratação. Ela é ainda mais grave para quem, estando no desemprego, já perdeu também o direito ao subsídio.

FIG 5: DESEMPREGADOS QUE NÃO RECEBEM QUALQUER SUBSÍDIO DE DESEMPREGO.

Fonte: Inquérito ao Emprego (INE); IEFP; Surança Social; citado de Carmo e Cantante (2015)

Se analisarmos a evolução dos desempregados que não recebem subsídio de desemprego, vemos como a desproteção social aumentou a um ritmo impressionante em Portugal. Vejamos que no final de 2013, o número de desempregados que não recebiam subsídio de

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desemprego já estava em cerca de 450 mil segundo o INE ou 358 mil segundo o IEFP. Como afirmam Renato Miguel do Carmo e Frederico Cantante, “comparando a evolução deste indicador entre o 4º trimestre de 2008 (início da crise) e o período homólogo de 2013, verifica-se que o número de desempregados estimados pelo INE que não recebem qualquer subsídio de desemprego aumentou cerca de 157%, enquanto os números referentes ao desemprego registado apontam para um aumento de cerca de 133%” (Carmo e Cantante, 2015: 82). São valores impressionantes.

UM PROBLEMA DE DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA

A natureza das políticas de emprego, de salário e de proteção social, isto é, a definição de políticas públicas de condução económica, podem potenciar ou mitigar as enormes distribuições assimétricas de riqueza nas sociedades contemporâneas. Olhemos para os dados de António Firmino da Costa e outros (2015), quando se referem à constituição de um espaço europeu de desigualdades.

FIG 6: DECIS EUROPEUS EM EUROS (2012), 25-65 ANOS

Fonte: ESS 2012, citado de Costa e outros (2015).

De facto, olhando para os decis europeus por escalões médios de rendimento auferido verifica-se que entre a população que faz parte dos 10% de europeus com maiores rendimentos e os 10% de europeus com menores rendimentos, o rácio é de cerca de 19, isto é, os 10 % de europeus mais ricos têm em média um rendimento que é cerca de 19 vezes superior à média dos rendimentos dos 10 % de europeus mais pobres. Estes dados ilustram uma grande desigualdade de distribuição de rendimento e que em tudo está relacionado com a deficiência

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desemprego já estava em cerca de 450 mil segundo o INE ou 358 mil segundo o IEFP. Como afirmam Renato Miguel do Carmo e Frederico Cantante, “comparando a evolução deste indicador entre o 4º trimestre de 2008 (início da crise) e o período homólogo de 2013, verifica-se que o número de desempregados estimados pelo INE que não recebem qualquer subsídio de desemprego aumentou cerca de 157%, enquanto os números referentes ao desemprego registado apontam para um aumento de cerca de 133%” (Carmo e Cantante, 2015: 82). São valores impressionantes.

UM PROBLEMA DE DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA

A natureza das políticas de emprego, de salário e de proteção social, isto é, a definição de políticas públicas de condução económica, podem potenciar ou mitigar as enormes distribuições assimétricas de riqueza nas sociedades contemporâneas. Olhemos para os dados de António Firmino da Costa e outros (2015), quando se referem à constituição de um espaço europeu de desigualdades.

FIG 6: DECIS EUROPEUS EM EUROS (2012), 25-65 ANOS

Fonte: ESS 2012, citado de Costa e outros (2015).

De facto, olhando para os decis europeus por escalões médios de rendimento auferido verifica-se que entre a população que faz parte dos 10% de europeus com maiores rendimentos e os 10% de europeus com menores rendimentos, o rácio é de cerca de 19, isto é, os 10 % de europeus mais ricos têm em média um rendimento que é cerca de 19 vezes superior à média dos rendimentos dos 10 % de europeus mais pobres. Estes dados ilustram uma grande desigualdade de distribuição de rendimento e que em tudo está relacionado com a deficiência

das políticas públicas de emprego, salários, proteção social e serviços públicos, mas também com a política fiscal que não favorece uma distribuição mais igualitária. Mas vejamos mais

especificamente o caso português:

FIG 7: PERCENTAGENS DE DIFERENÇA ENTRE OS 10% E 20% MAIS RICOS E MAIS POBRES EM PORTUGAL

Fonte: Inquérito às condições de vida, INE (2013)

Como se percebe, em 2009 as 10 % de pessoas que em Portugal tinham maiores rendimentos ganhavam 9,2 vezes mais que as 10 % que tinham rendimentos mais baixos. Já nessa altura era um número notável. Mas quem pensasse que a crise afetaria todos os grupos e todas as classes de forma transversal estava redondamente enganado. A sociedade portuguesa empobreceu mas a diferença entre os 10 % mais ricos e os 10 % mais pobres disparou, sendo que em 2012 os 10 % mais ricos ganham em média 10,7 vezes mais que os 10 % mais pobres. E se olharmos para os 20 % mais ricos e os 20 % mais pobres, vemos que os primeiros em 2009 ganhavam 5,6 vezes mais que os segundos. Em 2012 essa diferença já estava em 6 vezes mais. Os anos de austeridade foram úteis para quem beneficia da desigualdade económica.

UM PROBLEMA DE ASSIMETRIAS REGIONAIS

Por último, importa ilustrar como o problema das desigualdades na Europa não é exclusivo das assimetrias dentro dos estados nacionais, mas também das diferenças entre estados. Vejamos aqui os dados das diferenças de rendimentos por país europeu em Euros e PCC´s trazidos a

debate por António Firmino da Costa e outros (2015).

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FIG 8: RENDIMENTOS POR PAÍS EUROPEU EM 2012, POR PCC E EUROS, PARA A POPULAÇÃO ENTRE OS 25 E 64 ANOS

FONTE: ESS (2012), CITADO POR COSTA E OUTROS (2015)

De facto, também ao nível das desigualdades distributivas as assimetrias são consideráveis. Veja-se que, por exemplo, um país como a Suíça tem em média 6 a 7 vezes mais rendimento que um país como a Bulgária, já descontadas as diferenças de custo de vida através da conversão dos rendimentos em “paridades do poder de compra” (PPC). Mas se olharmos para essas diferenças em termos de rendimentos médios expressos em Euros, nos rácios extremos de rendimento em vez de uma diferença de 6 a 7 vezes mais rendimento, encontramos um rácio entre 20 e 21 vezes mais entre os rendimentos médios nacionais.

Mas estas assimetrias não se verificam apenas na distribuição de rendimento. Se olharmos aqui para dados como a despesa pública em saúde por percentagem do PIB constatamos

também diferenças muito assinaláveis.

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FIG 9: DESPESA PÚBLICA EM SAÚDE POR PERCENTAGEM DO PIB EM 2000 E 2010

Fonte: PNUD (2013), citado por Mineiro (2015)

Como se percebe, apesar do acréscimo de despesa em percentagem do PIB na primeira década do século, em 2010 os valores diferem muito na Europa entre países como a França (9,7%), a Dinamarca (9,3%), a Alemanha (9%), quando comparados a países do Sul, nomeadamente Portugal (7,5%), Espanha (6,9%) e Grécia (6,1 %).

CONCLUSÃO

Depois do mundo ter assistido novamente a uma crise global do sistema capitalista provocada pela imprudência e a ganância do sistema financeiro, a atual resposta política europeia está nos antípodas dos melhores instrumentos criados na Europa na segunda metade do século XX. Em vez de uma aposta em políticas públicas de combate à recessão, de criação de emprego e proteção social e de combate às desigualdades, é a própria ONU a denunciar que “os governos introduzem atualmente rigorosas medidas de austeridade, que reduzem o papel do Estado-providência, diminuem as despesas do Estado e os serviços públicos, conduzindo a dificuldades e exacerbando a contração das economias. Nos países desenvolvidos, regista-se, para muitos cidadãos, uma diminuição dos padrões de vida”2.

As desigualdades são hoje o centro da dinâmica económica e política europeia e elas têm sido agravadas por políticas que, como vimos, têm tido como consequência uma expansão do

2 - PNUD (2013): 21

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desemprego e do desemprego de longa duração, uma redução dos salários, um aumento da instabilidade laboral e da desproteção social, um aumento das desigualdades na distribuição da riqueza e um reforço das assimetrias regionais. Estes cinco problemas do problema europeu agravam a saúde da economia europeia, condenam milhões a níveis de vida miseráveis e só agravam todos os problemas do espaço europeu.

É nesta Europa em que se vão impondo constrangimentos e sanções fortíssimas sobre as escolhas orçamentais dos Estados através do Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Monetária (vulgo Tratado Orçamental) e em que responsáveis políticos como Wolfgang Schauble, ministro das Finanças Alemão, e Karl Lamers, deputado alemão e antigo presidente da Assembleia Parlamentar da NATO, propõem no Financial Times a 2 de Setembro de 2014, a criação de um comissário europeu não-eleito com poder para vetar os orçamentos dos Estados e, assim, se sobrepor à soberania dos governos e aos parlamentos eleitos pelos povos europeus.

Aprofundar respostas alternativas, construir pontes à escala europeia e nacional e recusar a degradação económica e social da nossa vida são hoje as missões e os deveres de quem se recusa a voltar ao passado e de quem sabe, ontem como hoje, que ainda não é tempo de desistir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Carmo, Renato Miguel do, e Frederico Cantante. “Desemprego, precariedade e proteção social”, em António Firmino da Costa e Renato Miguel do Carmo (orgs.). Desigualdades em Questão. Lisboa: Mundos Sociais, 2015

Costa, António Firmino da, e outros. “A Constituição de um Espaço Europeu de Desigualdades”. Observatório das Desigualdades e-Working Paper. Nº. 1 (2015)

Fukuyama, Francis. O fim da História e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992

Louçã, Fransico., João Teixeira Lopes e Jorge Costa. Os Burgueses. Lisboa: Bertrand Editora, 2014

Matias, Ana Rita. “Portugal no mundo dos relatórios internacionais” em António Firmino da Costa e Renato Miguel do Carmo (orgs.). Desigualdades em Questão. Lisboa: Mundos Sociais, 2015

Mineiro, João. “Desigualdades, serviços públicos e justiça social na «nova ordem mundial», em António Firmino da Costa e Renato Miguel do Carmo (orgs.). Desigualdades em Questão. Lisboa: Mundos Sociais, 2015

Piketty, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2014

Stiglitz, Joseph E. The Price of Inequality. Nova Iorque: W. W. Norton, 1992

Tilly, Charles. “Historical perspectives on inequality”, em Mary Romero e Eric Margolis (org.). The Blackwell Companion to Social Inequalities. Malden: Blackwell, 2005. 15-30.

Therborn, Göran (org.). The World. A beginner´s Guide. Cambrige: Polity, 2006

Wilkinson, R. e K. Pickett. O Espírito da Igualdade. Lisboa: Editorial Presença, 2009

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Publicado na Revista “Visão”, na edição de 9 de Outubro de 2014

Europa: O advento de Behemoth

VIRIATO SOROMENHO-MARQUES

A crise da União Europeia arrasta-se sem qualquer solução inteligente à vista. A Europa não tem nenhum actor político que a defenda. Berlim, como se vê nos ataques violentos lançados contra o BCE de Mario Draghi, ainda não percebeu que a sua defesa fanática da austeridade está a conduzir a zona euro para um colapso, que não poupará os próprios alemães. As ondas de choque de uma Europa que estagnou internalizam-se. A secessão da Escócia foi evitada, mas a crispação cresce na Catalunha. A recusa do federalismo desenterra os tribalismos. É uma constante da história, que quem manda no circo europeu parece desconhecer por completo. Por este caminho, a Frente Nacional chegará ao Eliseu em 2017, ou até antes. A extrema-direita terá numa mão o botão do poderio atómico de Paris (a force de frappe criada por De Gaulle), e na outra o machado que decepará a cabeça do euro, lançando a economia mundial no abismo.

O MONSTRO DE MUITAS CABEÇAS

O que está a ocorrer na Europa evoca as páginas dramáticas de Thomas Hobbes (1588-1679). Dominando bem a herança judaico-cristã, Hobbes procurou nela os argumentos imagéticos que considerou necessários para expressar a sua doutrina do Estado. No Livro de Job, encontrou o pensador inglês as duas figuras simbólicas que vão balizar a sua visão da experiência política. Essas figuras são dois grandes animais, de proporções monstruosas, respectivamente, o maior animal marinho, o Leviatã, e o maior animal terrestre, o Behemoth. O primeiro, Leviatã, servirá de título ao livro onde descreve um Estado bem ordenado (1651). O segundo, Behemoth, surgirá em 1666-8, quando o autor já atingira 80 anos.

Behemoth, ou o Longo Parlamento é o título completo do livro que Hobbes concluiu em 1668, dedicado à guerra civil inglesa. O Longo Parlamento designa o período de guerra civil e república, entre 1642 e 1660 (subida ao trono de Carlos II). Em Behemoth, Hobbes mostra os desastres de uma sociedade onde a multiplicidade não se consegue harmonizar em instituições capazes de construírem decisões comuns. Ao longo do livro, Hobbes descreve-nos esse “monstro de muitas cabeças” (many-headed monster), uma população de tal modo dilacerada e dividida que não conseguia transformar-se em povo, em fonte de uma soberania, de uma organização estadual capaz de garantir a paz e administrar a justiça. Nesse reino de violentas paixões e de

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NOTAS VÁRIAS

O fado da austeridade

ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS

“DANS UN SOUCI D’ÉCONOMIE, CRISE OBLIGE, LA LUMIÈRE AU BOUT DU TUNNEL SERA DÉSORMAIS ÉTEINTE »

@florenzo84, 11 mai 3013

Pensavas que eras um dos europeusVivendo num espaço sem fronteirasSaltando para além dos Pirenéus Com euros luzidios nas carteiras

paixões violentas, vemos sempre a luta pela preponderância de interesses particulares. Como Londres e outras urbes comerciais, lutando apenas pelos seus interesses mais imediatos. Os nobres arruinados, procurando a guerra pela apetência mercenária do saque e da pilhagem. Os católicos, pejorativamente designados por papistas. Os pastores presbiterianos, pregando doutrinas incendiárias. A multidão vulgar exercendo a sua força em domínios sobre os quais era completamente ignorante. Seria uma leitura precipitada. Pensar que Hobbes era hostil ao pluralismo. Hobbes sabe bem que uma sociedade é um feixe de interesses. Não, o que está em causa, para Hobbes, não é a utópica visão de uma sociedade unificada sem arestas ou fissuras. Ele não nutria qualquer simpatia por uma vontade geral que antecipasse as experiências totalitárias do século XX. O horror para Hobbes, traduzido na imagem monstruosa e telúrica de Behemoth, seria a contemplação de uma vasta sociedade onde os seus membros, indivíduos e grupos, facções de interesse e de ideologia, fossem incapazes de encontrar o denominador comum da sobrevivência e do progresso mútuos. O Behemoth era um monstro, como, aliás, o Leviatã. Só que este último garantia a vida social, que é a única habitação condigna dos homens, enquanto aquele era o sinal de um suicídio colectivo inevitável. Alguém acredita que a actual estrutura política e económica da UE estará em condições se evitar o crescimento do caos? O conflito, a teimosia, o egoísmo néscio, a surdez, são outras tantas cabeças do monstro que ameaça devorar a Europa.

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Pensavas que gozavas de direitosNegados em duros tempos de breuQue amiga, solidária, sem defeitosA “Europa connosco” concedeu

Pensavas que já eras cidadão Que pertencias ao primeiro mundoQuando a financeira especulação Te arrancou de um sonho bem profundo

Tudo isto existe,Tudo isto é triste,Tudo isto é fado…

A austeridade é o remédio que curaDizem aqueles que não sentem seus efeitosMais um tempo e virá uma tal farturaQue estarás no paraíso dos eleitos

Empobrecer é a via da riquezaDesemprego é só oportunidadeUm mero estado de alma é a pobrezaEmigrar quer dizer prosperidade O que tens é de ser competitivoMais lesto que o vizinho no fazerEstares todo o tempo de olho vivoE empreender, empreender, empreender

Tudo isto existe,Tudo isto é triste,Tudo isto é fado…

Descobres com surpresa pois entãoQue eras mais um número no mercadoCortam-te no salário ou na pensãoE aguentas a sorrir, bico calado

Aumentam-te os impostos e as taxasSobem rendas e contribuições, Mais tarifas e outras sobretaxasOs spreads e o preço dos feijões

Eis a austeridade expansionistaRefulgindo em todo seu esplendorQue engorda com milhões o bêpênistaE ao povo distribui tristeza e dor

Tudo isto existe,Tudo isto é triste,Tudo isto é fado…

E enquanto resistes estoicamente À troika e aos nervosinhos do mercado E aos que pieguinhas chamam à genteE te tratam como se fosses gado

Eis que novo resgate traz o infernoPara salvar os juros onzeneirosNunca mais se premeia este governo Com o eterno repouso dos guerreiros

Termino, oh senhores do alto império Incendiários da pátria malquista Lembrando-vos que um dia pode a sérioO povo não querer ser masoquista

Tudo isto existe,Tudo isto é triste,Mas tudo isto é fado?

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DOSSIER: GRÉCIA

Dossier: Grécia

A profunda confissão de Varoufakis, ministro das finanças do governo grego do Syriza, sobre o seu marxismo errático prende-se com a natureza repugnante da crise europeia. Varoufakis co-meça por considerar existirem duas estratégias possíveis para desafiar a economia convencional: a construção de teorias alternativas, que arriscam nunca serem levadas a sério por quem pensa como um verdadeiro economista, ou a aceitação dos axiomas em que a economia convencional se fundamenta para em seguida expor as suas contradições internas. Esta foi a estratégia seguida por Marx para criticar a Economia Política dos séculos XVIII e XIX e mostrar a natureza contradi-tória do capitalismo. A analogia pode fazer-se ao nível da crise europeia. Trata-se de privilegiar uma estratégia de reforço das instituições políticas da Europa, no âmbito de um “europeísmo descentralizado”, para salvar o euro e estabilizar o capitalismo europeu enquanto se procura ga-nhar tempo e espaço para desenvolver uma alternativa verdadeiramente humanista.

Varoufakis considera ser um dever histórico e moral da esquerda, nas atuais circunstâncias, ab-dicar de uma agenda radical que tivesse como fim último a substituição do capitalismo euro-peu por um sistema diferente e melhor. A justificação é que as pessoas não podem ser tratadas como meios ao serviço de um qualquer fim, seja ele o dos interesses dos credores e do capital financeiro, ou de uma agenda política qualquer ainda que progressista. Assim o único fim em termos do qual se devem avaliar criticamente as consequências da prossecução de outros fins, e de qualquer agenda política, é o da dignidade humana. A afirmação deste princípio, deste pensamento, pode não passar de uma mera ilusão no âmbito da União Económica e Monetá-ria. É esta a razão da crise europeia ser tão repugnante. E é por isso que a Grécia, mas não só a Grécia, também a Europa, estão numa situação terrível e trágica. A proposta de que Varoufakis é co-autor, sendo modesta porque se conforma com os tratados europeus, é radical porque desafia as elites europeias, porque expõe a sua irracionalidade e estupidez.

Não parece que o bom senso desta modesta proposta vá alterar as políticas de austeridade que têm sido prosseguidas. Faz por isso sentido continuar a perguntar Tempo para quê?, como faz Alexandre Abreu, e de ler a interpretação de Stathis Kouvelakis, professor de filosofia polí-tica em Londres e membro do comité central do Syriza, sobre as negociações entre o governo grego e o Eurogrupo. Costas Lapavitsas, economista e professor da SOAS em Londres, defende que não existe qualquer possibilidade de mudança de políticas na atual arquitectura do euro e que só uma saída da União Económica e Monetária poderá travar as políticas de austeridade.

A tradução dos textos de Varoufakis, Stathis Kouvelakis e Costas Lapavitsas são da responsabilidade de Ângelo

Novo (http://www.ocomuneiro.com/), a quem agradecemos a autorização para republicação dos mesmos.

https://www.youtube.com/watch?v=A3uNIgDmqwI

introduçãoANA COSTA

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Tempo para quê*ALEXANDRE ABREU

Após os desenvolvimentos politicos em catadupa dos últimos dias, a situação parece ter fi-nalmente estabilizado com a assinatura do acordo de princípio entre o governo grego e o Eurogrupo e a aparente aceitação por este último do pacote de medidas proposto. O que para já ainda não cessou é a disputa política em torno da interpretação deste desenlace: todos, ou quase todos, reclamam algum tipo de vitória, ainda que a maior parte destas interpretações seja mutuamente contraditória.

Esta latitude de interpretações é permitida, em primeiro lugar, pela diversidade de critérios utilizada para aferir o desenlace. Do ponto de vista do governo grego, por exemplo, estamos perante uma vitória quando se alcança progressos face à situação anterior? Quando se evita um desenlace considerado catastrófico? Quando se alcança o melhor que era possível alcan-çar dadas as circunstâncias? Ou quando se alcança os objetivos propostos?

Outro elemento que permite a existência de exegeses contraditórias é a bizantina opacidade, quando não mesmo incompreensibilidade, do próprio acordo, que visa precisamente acomo-dar interpretações diversas - pelo menos até certo ponto, mas já lá iremos. Esta ambiguidade ao nivel do acordo de princípio estende-se também à lista das medidas, na qual os termos genéricos e a ausência de quantificação ou calendarização precisas permitem (mais uma vez, até certo ponto) acomodar um grande número de interpretações.

E outro ainda é o facto de não se tratar de um verdadeiro desenlace, mas apenas de um primei-ro momento num confronto que está no início e vai prosseguir - uma declaração de princípio de parte a parte, para já com um horizonte provável de quatro meses, susceptível de revoga-ção em função da evolução das circunstâncias. Nem o governo grego pode contar com mais do que navegar à vista em matéria de prolongamento do financiamento, nem o Eurogrupo e, de uma forma mais geral, as elites europeias podem ter a veleidade de considerar terem ven-cido a guerra e afirmado a inevitabilidade da austeridade.

Mas há limites para a latitude das interpretações e, na minha opinião, engana-se quem, defen-dendo o fim da austeridade e pugnando por uma alteração da relação de forças na Europa, considerar que este acordo foi uma vitória. Poder-se-á argumentar, com mais ou menos razão, que foi o melhor que era possível alcançar, que o acordo não compromete decisiva e defini-tivamente o essencial dos compromissos eleitorais do Syriza ou que, nalguns pontos, foram alcançados alguns progressos. Mas não foi, seguramente, uma vitória.

O governo grego conseguiu sobretudo ganhar tempo, no sentido de afastar temporariamente o espectro do corte do financiamento - do financiamento do roll-over da dívida pública e, mais decisivamente do que isso, do financiamento do BCE ao sistema bancário grego. Por outro

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lado, tal como referi em cima, conseguiu também a margem interpretativa dentro da qual poderá, sempre num horizonte de curto prazo, começar a implementar uma agenda gover-nativa mais progressista. Nos próximos meses, o governo grego poderá começar a passar à prática o essencial do seu programa de emergência social e poderá começar a alterar, no plano distributivo, a forma como se repartem os custos da crise em que se encontra a sociedade grega. Tudo isto será importante para os gregos, especialmente para as classes populares. Em termos de justiça social, será incomparavelmente melhor do que fariam e fazem os governos conservadores - e isso não é despiciendo, nem irrelevante do ponto de vista da transposição do debate para outros contextos nacionais. Mas não chega, porque o problema grego não é apenas distributivo e porque a esquerda, para ser alternativa, tem de ambicionar a muito mais do que o alívio humanitário.

É também verdade que o governo grego parece ter conseguido evitar a necessidade de um excedente primário, pelo menos significativo, em 2015. Com algum talento, pode conseguir renovar futuramente essa concessão - ou pode jogar ao gato e ao rato com a troika e o Eu-rogrupo, comprometendo-se com objectivos macroeconómicos de que depois fica aquém, contando para isso com o precedente dos governos pró-austeritários e com a vontade da outra parte em evitar recorrer à bomba atómica por deslizes relativamente menores. Porém, na melhor das hipóteses, este cenário implica o prolongamento do tipo de condições que o governo grego agora conseguiu: mãos atadas em relação às dimensões estruturais qualitati-vas a par de alguma flexibilidade orçamental e fiscal. E essa flexibilidade orçamental e fiscal, se permite melhorar a situação em termos de justiça social, está muito longe de ser suficiente-mente ampla para permitir relançar a economia.

Para além disso, o tempo agora ganho pelo governo grego exigiu em troca algumas cedências em matérias de princípio (reconhecimento da integralidade da dívida, aceitação dos princípios gerais da condicionalidade e da austeridade) que, não sendo definitivas, são politicamente rel-evantes e poderão ferir de morte o apoio social de que goza.

A questão fundamental que devemos colocar é, por isso, para que pretende o governo grego utilizar este tempo que agora ganhou e em troca do qual aceitou fazer tais cedências. Se for para empurrar sucessivamente o problema com a barriga, ambicionando pouco mais do que uma austeridade socialmente mais justa no contexto de um jogo do gato e do rato com a troika, receio que perderão uma oportunidade histórica e serão, mais cedo ou mais tarde, ul-trapassados pelos acontecimentos. Se for para apostar no reforço do apoio politico em função da evolução das circunstâncias, receio que estejam enganados. A nível interno, o reforço que decorrerá do programa humanitário e de justiça social não será suficiente para compensar a gradual desilusão que advirá da persistência da crise. E a nível europeu é pouco ajuizado de-positar demasiadas esperanças na vitória do Podemos nas eleições espanholas, dada a forma como o poder está nacionalmente distribuído e institucionalmente cristalizado na União Eu-ropeia.

Pelo que o único cenário que não conduz à derrota é que o tempo agora ganho sirva para pre-

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IAparar tecnica e politicamente as condições necessárias à retoma socioeconómica e à recupera-ção da soberania gregas: a reestruturação unilateral da dívida e a saída da União Económica e Monetária. Não é uma alternativa fácil, mas, como é cada vez melhor compreendido, é a única verdadeira alternativa. 

Caso contrário, não terá sido tempo ganho - mas sim tempo perdido.

Tempo para quê? http://expresso.sapo.pt/blogues/bloguet_economia/blogue_econ_alexandre_abreu/tempo-para-

que=f912299, publicado no jornal Expresso

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Confissões de um marxista irregular no contexto de uma repugnante crise europeia 

YANIS VAROUFAKIS (1*)

RESUMO

A Europa está passando por uma recessão que difere substancialmente de uma recessão ca-pitalista “normal”, do tipo que é superado através de uma compressão salarial que ajuda a res-tabelecer a rentabilidade. O presente deslizar a longo-prazo em direção a uma depressão assi-métrica e à desintegração monetária coloca os radicais perante um terrível dilema: Devemos usar esta crise capitalista de rara profundidade como uma oportunidade para fazer campanha pelo desmantelamento da União Europeia, dada a sua aquiescência entusiástica para com o credo e as políticas neoliberais? Ou devemos aceitar que a Esquerda não está pronta ainda para uma mudança radical e fazer antes campanha pela estabilização do capitalismo europeu? Este artigo argumenta que, por pouco sedutora que a última proposição possa soar aos ouvi-dos do pensador radical, é dever histórico da esquerda, nesta conjuntura particular, estabilizar o capitalismo; salvar o capitalismo europeu de si próprio e dos ineptos tratadores da inevitável crise da zona euro. Baseando-se nas suas experiências pessoais e no seu próprio percurso inte-letual, o autor explica as razões pelas quais Marx deverá continuar a estar no centro da nossa aånálise do capitalismo, mas também por que razão devemos ser “irregulares” em nosso mar-xismo. Além disso, o artigo explica porque uma análise marxista, tanto do capitalismo europeu como do atual estado da esquerda, nos obriga a trabalhar em prol de uma ampla coligação, mesmo com direitistas, cujo objectivo deverá ser a resolução da crise na Zona Euro e a estabi-lização da União Europeia. Em suma, o artigo sugere que os radicais deverão, no contexto da presente calamidade europeia, trabalhar para minimizar o sofrimento humano, reforçando as instituições públicas da Europa, e, deste modo, ganhar tempo e espaço para desenvolver uma alternativa verdadeiramente humanista.

 

1. INTRODUÇÃO: UMA PROFUNDA CONFISSÃO

O capitalismo global teve seu segundo espasmo em 2008, iniciando uma reação em cadeia que empurrou a Europa para uma espiral descendente que está ameaçando os europeus com um vórtice de depressão quase permanente, de cinismo, desintegração e misantropia.

Nos últimos três anos, tenho-me dirigido a audiências excecionalmente diversificadas sobre os

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destinos da Europa. A milhares de manifestantes anti-austeridade na Praça Syntagma de Atenas, a funcionários do Banco de Reserva Federal de Nova Iorque, a deputados verdes no Parlamento Europeu, a analistas da Bloomberg em Londres e Nova Iorque, a crianças em idade escolar em subúrbios pobres na Grécia e Estados Unidos, a ativistas do Syriza em Salónica, à Câmara dos Comuns em Londres, a gestores de fundos em Manhattan e na City de Londres, a lista é tão lon-ga como é persistente a denegação pelos nossos líderes europeus do humanismo e da razão. Apesar da diversidade dos públicos, a mensagem tem sido coerente: a crise atual na Europa não é apenas uma ameaça para os trabalhadores, para as pessoas que perderam tudo, para os banqueiros, para determinados grupos, classes sociais, ou mesmo para as nações. Não, a atual postura europeia representa uma ameaça para a civilização como a conhecemos.

Se o meu prognóstico é correto - e a crise europeia não é apenas mais uma crise cíclica, a ser superada em breve, à medida que a taxa de lucro recupera na sequência da inevitável com-pressão dos salários - a questão que se coloca aos radicais é a seguinte: devemos saudar ale-gremente este afundamento do capitalismo europeu, como uma oportunidade para substituir o capitalismo por um sistema melhor? Ou será que nos devemos preocupar com isso, a tal ponto que encetemos mesmo uma campanha para estabilizar capitalismo europeu? A minha resposta tem sido clara ao longo dos últimos três anos e a sua natureza é traído pela lista acima mencionada das diversas audiências que procurei influenciar. A presente crise na Europa está, a meu ver, grávida, não de uma alternativa progressiva, mas sim de forças radicalmente re-gressivas, com capacidade para provocar um banho de sangue, extinguindo do mesmo passo qualquer esperança em desenvolvimentos progressivos por várias gerações vindouras.

Por ter estes pontos de vista, tenho sido acusado, por vozes radicais bem intencionados, como um “derrotista”; como um menshevique do nosso tempo que incansavelmente se empenha a favor de esquemas cujo objetivo é salvar o atual sistema sócio-económico europeu insusten-tável. Um sistema que representa tudo aquilo a que um radical se deveria opor e lutar con-tra: uma União Europeia anti-democrática, irreversivelmente neoliberal, altamente irracional, transnacional, que não dispõe de capacidade praticamente nenhuma para evoluir no sentido de uma comunidade verdadeiramente humanista, dentro da qual as nações da Europa pos-sam respirar, viver e desenvolver-se. Esta crítica, confesso, dói. E dói porque ela contém bem mais do que um grão de verdade.

Na verdade, eu partilho o ponto de vista de que a União Europeia é um cartel fundamental-mente anti-democrático, irracional, que colocou os povos da Europa no caminho da misantro-pia, do conflito e da recessão permanente. E também sou sensível à crítica de que tenho feito campanha por uma agenda fundada no pressuposto de que a esquerda foi, e continua a estar, completamente derrotada. Por isso, sim, neste sentido, sinto-me compelido a reconhecer que desejaria que a minha campanha fosse de um outro género; preferiria estar promovendo uma agenda radical cuja razão de ser fosse a substituição do capitalismo europeu por um sistema diferente, mais racional – em vez de simplesmente fazer campanha pela estabilização do ca-pitalismo europeu, o qual está em contradição com a minha definição do que será uma boa sociedade.

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Neste ponto, talvez seja pertinente a emissão de uma confissão de segunda ordem: a con-fissão de que… as confissões tendem a ser auto-justificativas. De facto, as confissões estão sempre à beira do que John von Neumann disse uma vez sobre Robert Oppenheimer, ao ouvir que o seu ex-diretor do Projeto Manhattan havia se tornado militante anti-nuclear e confessou a culpa sobre a sua contribuição para as carnificinas em Hiroshima e em Nagasaki. As palavras cáusticas de Von Neumann foram estas:

“Ele está confessando o pecado a fim de reclamar a glória.”

Felizmente, não sou nenhum Oppenheimer e, portanto, não vai ser muito difícil de evitar a confissão de múltiplos pecados como meio de auto-promoção. Fá-lo-ei antes como uma jane-la a partir da qual possamos examinar o meu ponto de vista sobre o repugnante capitalismo europeu, emerso em crise, profundamente irracional, cuja implosão, apesar de seus muitos males, deve ser evitada a todo o custo. Trata-se de uma confissão para convencer os radicais de que temos uma missão contraditória: deter o capitalismo europeu na sua queda-livre, a fim de comprar o tempo de que precisamos ainda para formular a sua alternativa.

 

2. POR QUE RAZÃO MARXISTA?

Quando escolhi a minha tese de doutoramento, em 1982, escolhi propositadamente um tó-pico altamente matemático e um tema que Marx achava ser irrelevante. Quando, mais tar-de, embarquei numa carreira acadêmica, como professor em departamentos de economia convencionais, o contrato implícito entre mim e as direções universitárias que me ofereceram esses lugares foi que eu ensinasse o tipo de teoria económica que não deixava espaço para Marx. No final da década de 1980, sem que eu o soubesse, fui contratado pelo Departamento de Economia da Universidade de Sydney, por forma a excluir um candidato de esquerda. Em seguida, depois de voltar para a Grécia, no ano 2000, eu apostei em George Papandreou, na esperança de ajudar a conter o regresso ao poder de uma ressurgente direita, empenhada em empurrar a Grécia para uma posição xenófoba (tanto internamente, com a repressão sobre os trabalhadores imigrantes, como em política externa). Como todo o mundo sabe, agora, o partido do senhor Papandreou não apenas falhou na travagem da xenofobia, como, no final, acabou por presidir à mais virulenta das políticas macroeconómicas neoliberais que se promo-veram entre os chamados “resgates” na Zona Euro, desta forma, involuntariamente, fazendo com que os nazistas regressassem às ruas de Atenas. Embora eu me tenha demitido de as-sessor do senhor Papandreou, no início de 2006, transformando-me no mais feroz crítico do seu governo e da sua desastrosa gestão da implosão grega pós-2009, a minha intervenção no debate público sobre a Grécia e a Europa (por exemplo, a Modesta Proposta para resolver a Crise do Euro, de que fui co-autor e pela qual tenho feito campanha) não contém o mais leve traço de marxismo.

Tendo em vista este longo caminho feito na academia e os debates políticos na Europa em que intervim, pode parecer surpreendente ouvir assumir-me (“come out of the proverbial closet”) como

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marxista. Este tipo de declarações não surge naturalmente em mim. Eu desejaria poder evitar hetero-definições (ou seja, ser definido pela cosmogonia e método de uma outra pessoa). Marxista, hegeliano, keynesiano, humeano, eu tenho uma tendência natural para dizer que não sou nada destas coisas; que passei os meus dias tentando tornar-me a abelha de Francis Bacon: uma criatura que recolhe o néctar de um milhão de flores e o transforma, nas suas entranhas, em algo de novo, algo de próprio, algo que deve qualquer coisa a todas as plantas mas não se deixa definir por uma única flor. Infelizmente, isso seria falso e uma forma muito pouco apropriada de começar uma… confissão.

Na verdade, Karl Marx foi o responsável por elaborar a minha perspectiva do mundo em que vivemos, desde a minha infância até o dia de hoje. Não é algo que eu me voluntarie muito para abordar na “sociedade educada”, nestes dias, porque a mera menção da palavra M faz as audiências debandar. Mas eu também nunca o neguei. Na verdade, depois de alguns anos a dirigir-me a audiências com as quais eu não partilho o mesmo meio ideológico, tem surgido em mim, recentemente, a necessidade de falar abertamente sobre a influência de Marx no meu pensamento. Para explicar também a razão pela qual, ainda que um marxista impeniten-te, eu acho que é importante resistir-lhe apaixonadamente, em uma variedade de maneiras. Para sermos, por outras palavras, irregulares no nosso marxismo.

Se toda a minha carreira académica ignorou em grande parte Marx, e as minhas atuais reco-mendações políticas são impossíveis de descrever como marxistas, por que razão abordar o meu marxismo agora? A resposta é simples: Até mesmo a minha economia não-marxista foi guiada por uma mentalidade fortemente influenciada por Marx. O teórico social radical pode desafiar a economia convencional de duas maneiras diferentes, como eu sempre pensei. Uma maneira de fazer isso é através de crítica imanente. Aceitar os axiomas convencionais e, em se-guida, expor suas contradições internas. Dizer: “Não vou contestar as suas suposições, mas eis porque as suas próprias conclusões não são as que decorrem logicamente a partir delas.” Este foi, de fato, o método de Marx na neutralização da Economia Política britânica. Ele aceitou to-dos os axiomas de Adam Smith e David Ricardo, a fim de demonstrar que, no contexto de suas premissas, o capitalismo era um sistema contraditório. A segunda via que um radical teórico pode prosseguir é, naturalmente, a construção de teorias alternativas às estabelecidas, na es-perança de que possam ser levados a sério (que é o que, mais tarde, os economistas marxistas do século 20 têm vindo a fazer).

A minha opinião sobre este dilema sempre foi a de que os poderes estabelecidos nunca são perturbados pelas teorias que embarcam de pressupostos diferentes dos seus próprios. Ne-nhum economista consagrado vai sequer prestar atenção a um modelo marxista ou neo-ri-cardiano, por estes dias. A única coisa que pode desestabilizar e genuinamente desafiar os economistas convencionais neoclássicos é a demonstração da inconsistência interna de seus próprios modelos. Foi por essa razão que, desde o início, eu escolhi entrar bem nas “entranhas” da teoria neoclássica e gastar praticamente nenhuma energia a tentar desenvolver modelos alternativos, marxistas, de capitalismo. Os meus motivos para assim proceder foram, assim o sustento, bastante… marxistas (1).

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Quando instado a comentar o mundo em que vivemos, em vez de recorrer ao que diz a ideo-logia dominante sobre o seu funcionamento, eu não tinha outra alternativa senão regressar à tradição marxista que tinha moldado meu pensamento desde que o meu pai metalurgista imprimiu em mim, quando eu ainda era uma criança, o efeito das mudanças tecnológicas e da inovação no processo histórico. Como, por exemplo, a passagem da Idade do Bronze para a Idade do Ferro acelerou a história; como a descoberta do aço acelerou o tempo histórico por um fator de dez; e como as tecnologias de informação com base no silício são fator de rápidas descontinuidades sócio-económicas e históricas.

Este constante triunfo da razão humana sobre os nossos meios tecnológicos e a natureza, que também serve para expor periodicamente a situação de atraso das nossas relações e con-venções sociais, é um insubstituível lampejo que devo a Marx. A sua perspectiva materialista histórica foi reforçada pelas formas mais interessantes e inesperadas. Quem quer que já tenha assistido a um episódio de Star Trek Voyager intitulado “um piscar de olhos”, vai reconhecer uma maravilhosa representação do funcionamento do materialismo histórico em quarenta e cinco minutos; uma surpreendente narrativa sobre o processo pelo qual o desenvolvimento dos meios de produção gera os avanços tecnológicos que constantemente socavam a superstição e fornecem os impulsos históricos que, de uma forma não-linear, dão origem a novas etapas de civilização.

 O meu primeiro encontro com os textos de Marx veio muito cedo na vida, como resultado dos estranhos tempos em que cresci, com a Grécia a sair do pesadelo da ditadura neo-fascista de 1967-74. O que chamou a minha atenção foi o insuperável, hipnotizante, dom de Marx para escrever um dramático guião para a história humana, na verdade a danação humana, entrela-çado com a possibilidade muito real de salvação e de uma autêntica espiritualidade. Ao ler as linhas, como…

“a sociedade burguesa moderna, com suas relações de produção, de troca e de propriedade, uma sociedade que conjurou

um tão gigantesco conjunto de meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não é capaz de controlar os

poderes do mundo infernal que ele próprio chamou com os seus feitiços.” (Manifesto do Partido Comunista, 1848)

Foi como deparar com a reunião de, por um lado, o Dr. Fausto e o Dr. Frankenstein, e, por outro lado, de Adam Smith e David Ricardo, criando uma narrativa povoada por personagens (trabalhadores, capitalistas, funcionários, cientistas) que foram as dramatis personae da história, os agentes que se esforçaram por utilizar a razão e a ciência no contexto da capacitação da huma-nidade, enquanto, contrariamente às suas intenções, desencadearam efetivamente as forças demoníacas que foram usurpando e subvertendo a sua própria liberdade e humanidade.

Esta perspectiva dialética, em que tudo nos aparece grávido com seu oposto, e os ansiosos olhos com que Marx vislumbrou o potencial de mudança na aparentemente mais constante e imutável das estruturas sociais, ajudou-me a compreender as grandes contradições da era capitalista. Dissolveu o paradoxo de uma idade que gerou a mais notável riqueza e, no mesmo fôlego, a mais gritante pobreza. Hoje, analisando a crise europeia, a crise de realização nos

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Estados Unidos, a estagnação a longo-termo do capitalismo japonês, a maioria dos comenta-dores não consegue apreciar o processo dialético desenvolvendo-se bem sob o seu nariz. Eles reconhecem a montanha de dívidas e perdas bancárias mas negligenciam o lado oposto da mesma moeda, a sua antítese: a montanha de poupanças ociosas que estão “congeladas” pelo medo e, assim, deixam de ser convertidas em investimentos produtivos. Uma atenção tipica-mente marxista às oposições binárias poderia ter aberto os seus olhos...

Uma das principais razões por que a opinião estabelecida falha completamente a chegada a termos com a realidade contemporânea é que ela nunca compreendeu a “produção conjunta”, dialeticamente tensa, de dívidas e de excedentes de produção, de crescimento e de desem-prego, de riqueza e de pobreza, de espiritualidade e de depravação, do bem e do mal, de no-vas perspectivas de prazer e novas formas de escravidão, de liberdade e de apoderamento do outro; esta mistura de oposições binárias para as quais o guião dramático de Marx nos alertara, como sendo as fontes da astúcia da história.

Desde os meus primeiros passos a pensar como um economista, até ao presente dia, ocorreu-me que Marx tinha feito uma “descoberta”, que deve permanecer no coração de qualquer aná-lise útil do capitalismo. Foi, é claro, a descoberta de uma outra oposição binária profundamen-te entranhada no trabalho humano. A oposição entre as duas “naturezas” muito diferentes do trabalho: (i) o trabalho como atividade criadora de valor (“cuspidora de fogo”) que nunca pode ser especificada ou quantificada com antecedência (e, portanto, impossível de mercantiliza-ção), e (ii) o trabalho como uma quantidade (por exemplo: número de horas trabalhadas) que está à venda e tem um preço. É isso que distingue o trabalho de outros insumos da produção, tais como a eletricidade: a sua dupla e contraditória natureza. Uma diferenciação e contra-dição que a Economia Política negligenciou, antes de Marx aparecer, e que os economistas convencionais se recusam firmemente a reconhecer ainda hoje.

Tanto a energia elétrica como o trabalho podem ser pensados como mercadorias. Na verda-de, os empregadores usam todo o seu engenho - bem como o dos seus gestores de recursos humanos - para quantificar, medir e homogeneizar o trabalho. Entretanto, aspirantes a em-pregados passam por um espremedor, numa ansiosa tentativa para mercantilizar a sua mão-de-obra, escrevendo e re-escrevendo o seu CV, a fim de se retratarem como fornecedores de quantificáveis unidades de trabalho. E é aí que está o busílis! Pois que se os trabalhadores e os empregadores tiverem sucesso na mercantilização integral do trabalho, o capitalismo irá perecer. Esta é uma percepção sem a qual o capitalismo, na sua tendência para gerar crises, nunca pode ser totalmente entendido e, além disso, uma visão a que ninguém tem acesso sem ter tido algum grau de exposição ao pensamento de Marx.

 

3. A FICÇÃO CIENTÍFICA TORNA-SE DOCUMENTÁRIO

No clássico filme 1953 The Invasion of the Body Snatchers (2), a força alienígena não nos ataca de frente, ao contrário de, por exemplo, A Guerra dos Mundos de H. G. Wells. Em vez disso, os seres humanos

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são tomadas por dentro, até que nada resta do seu espírito e das suas emoções humanas. Os seus corpos são tudo o que resta, como carapaças que antes continham uma vontade livre e que agora trabalham, passam pelos movimentos da “vida” de todos os dias e cumprem a sua função como simulacros humanos “libertos” da inquantificável sutileza da natureza humana. Este processo é equivalente à transformação que será necessário operar para tornar o trabalho humano um insumo não muito distinto das sementes, da eletricidade, ou mesmo dos robôs. Em linguagem moderna, é o que se teria verificado se o trabalho humano se tornasse perfei-tamente redutível ao capital humano e, portanto, apto para inserção nos modelos dos econo-mistas vulgares.

Já que pensamos nisso, todas e cada uma das teorias econômicas não-marxistas que tratam dos insumos de produção humanos e não-humanos como intercambiáveis e como quantida-des qualitativamente equivalentes, assume que a desumanização do trabalho humano é com-pleta. Mas, se alguma vez esta pudesse ser concluída, o resultado seria o fim do capitalismo como um sistema capaz de criar e distribuir valor. Para começar, uma sociedade de simulacros desumanizados, da autómatos, assemelhar-se-ia a um relógio mecânico cheio de dentes e de molas, cada um com a sua própria função exclusiva, conjuntamente constituindo um úni-co “bem”: a contagem do tempo. No entanto, se essa sociedade contivesse nada mais que outros autómatos, a contagem do tempo não seria um “bem”. Seria uma “saída”, sem dúvida, mas porquê um “bem”? Sem humanos reais para experimentar a função do relógio, não pode haver uma tal coisa como um “bem” ou um “mal”. Uma “sociedade” de autómatos, tal como os relógios mecânicos ou algum circuito integrado, seria cheia de partes constitutivas, demons-trando uma funcionalidade, mas nada que possa ser utilmente descrito como “bem” ou “mal”, ou mesmo como “valor”.

Assim, em resumo, se o capital alguma vez conseguir quantificar, e posteriormente, totalmen-te mercantilizar, o trabalho, como está constantemente a tentar fazer, também espremerá do mesmo passo aquela indeterminada, recalcitrante liberdade humana dentro do trabalho que permite a geração de valor. O brilhante vislumbre de Marx na essência da crise capitalista foi justamente este: quanto maior for o sucesso do capitalismo em tornar o trabalho uma mer-cadoria, menor será o valor de cada unidade de produção que gera, menor a taxa de lucro e, em última análise, mais perto ficará a próxima desagradável recessão da economia como um sistema. A representação da liberdade humana como uma categoria econômica é única em Marx, tornando possível uma distintamente dramática e analiticamente arguta interpretação da propensão do capitalismo para arrebatar a recessão, e até mesmo a depressão, das garras de “crescimento”.

Quando Marx estava escrevendo que o trabalho é fogo vivo dador de forma; a transitoriedade das coisas; a sua temporalidade; ele estava fazendo a maior contribuição que qualquer eco-nomista já fez, desde sempre, à nossa compreensão da aguda contradição sepultada no DNA do capitalismo. Quando ele retratou o capital como “…uma força à qual nos temos que sub-meter… [ele] desenvolve uma energia muito cosmopolita, universal, que rompe com todos os limites e todas as fronteiras, colocando-se a si próprio como a única política, a única universali-

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dade, o único limite e o único vínculo” (3), ele estava a sublinhar a realidade de que o trabalho pode ser comprado por capital líquido (isto é, dinheiro), na sua forma mercadoria, mas que vai sempre carregar consigo uma vontade hostil para com o comprador capitalista. Mas Marx não estava apenas, com isso, fazendo uma observação psicológica, filosófica ou política. Ele estava, em vez disso, a fornecer uma notável análise da razão porque, no momento em que o trabalho (como uma atividade não quantificável) perde esta hostilidade, ela se torna estéril, incapaz de produzir valor.

Em um tempo em que os neoliberais aprisionaram a maioria nos seus tentáculos teóricos, ruminando incessantemente a ideologia do aumento da produtividade da mão-de-obra na tentativa de melhorar o seu nível de competitividade, a fim de criar “crescimento”, etc., a aná-lise de Marx oferece um poderoso antídoto. O capital nunca poderá triunfar na sua luta para transformar trabalho em um insumo infinitamente elástico e mecanizado sem destruir-se a si próprio. É isso que nem os neoliberais nem os keynesianos alguma vez compreenderão! “Se toda a classe dos trabalhadores assalariados fosse aniquilada por máquinas”, escreveu Marx “quão terrível que seria para o capital, que, sem o trabalho assalariado deixa de ser capital!” (4). Quanto mais o capital se aproxima da sua “vitória final” sobre o trabalho, mais a nossa socieda-de se parece com um outro filme de ficção científica. Um filme que havia sido prefigurado por, esse mesmo, Karl Marx: The Matrix.

O que é único em The Matrix é que, neste filme, a rebelião dos nossos artefatos não foi apenas um simples caso de criador-cídeo. Ao contrário da Coisa de Frankenstein, que ataca os humanos irracionalmente, fruto da sua pura angústia existencial, ou das máquinas da série O Extermina-

dor, que só querem exterminar todos os seres humanos com vista a consolidar no futuro uma posição dominante no planeta, em The Matrix, o emergente império das máquinas está empe-nhado em conservar a vida humana para os seus próprios fins; em nos manter vivos, como um recurso primário. O Homo Sapiens, não obstante ter sido quem inventou a escravidão humana, e apesar do nosso histórico sem precedentes de infligir indescritíveis horrores aos nossos semelhantes, não poderia ter sequer imaginado o desprezível papel que as máquinas lhe atribuiriam em The Matrix: amarrados em engenhocas que nos imobilizaram para economizar energia, as máquinas alimentaram-nos à força com uma mistura de nutrientes nauseabundos, adequados para a máxima geração de calor.

No entanto, as máquinas rapidamente descobriram que os humanos não duram muito tem-po quando o seu espírito está quebrado e a sua liberdade lhes é totalmente negada. A nossa curiosa necessidade de liberdade estava, deste modo, ameaçando a eficácia das suas fábricas de energia alimentadas a humanos. Assim, as máquinas proveram-nos com aquilo que Marx teria chamado de uma “falsa consciência”. Elas forçaram não apenas nutrientes para os nossos corpos, mas também ilusões nas nossas mentes, a que o nosso espírito almejava. De forma engenhosa, elas ligaram elétrodos aos nossos crânios, com os quais alimentaram diretamente em nosso cérebro, uma vida virtual, mas absolutamente realista, que, como seres humanos, poderíamos suportar. Enquanto nossos corpos continuavam brutalmente conetados a seus geradores de energia, alimentando-os com a electricidade proveniente de nosso calor corpo-

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ral, o programa de computador das máquinas conhecido como Matrix enchia as nossas men-tes com uma vida imaginária, ilusória, mas no entanto muito “real” e “normal”. Dessa forma, nossos corpos, alheios à realidade, poderiam viver durante décadas, para grande utilidade das máquinas responsáveis por gerar energia suficiente para manter o seu novo mundo. O olvido humano revelou-se um factor de produção determinante na economia de Matrix.

“As máquinas têm adquirido o poder diretor sobre o trabalho humano e seus produtos” (5). Foi desta forma que Marx descreveu a “ascenção das máquinas”, como um cruzamento entre uma tragédia shakespeariana e outra da Grécia antiga, que evoluiu contra o pano de fundo de uma nova revolução industrial, em que uns poucos eram proprietários das máquinas e os muitos trabalhavam nelas. A tese de Marx era que, no universo do capital, nós já somos trans-humanos. The Matrix não é futurologia. Ela tem sido parte de nossa realidade já há algum tempo! Trata-se de um documentário de grande qualidade sobre a nossa época ou, para ser mais preciso, da tendência da nossa época para expulsar para fora do trabalho humano todas as suas características que o impedem de se tornar totalmente flexível, perfeitamente quan-tificado, infinitamente divisível. Quanto a Marx, o seu papel foi o de nos providenciar a opção pela “pílula vermelha” (6); a possibilidade de olharmos bem em face, sem o calmante ilusório de ideologia burguesa, a feia realidade de um sistema que produz as crises e a miséria como seu rumo próprio, por desígnio, e certamente não por acaso.

Leia-se qualquer manual de gestão, qualquer artigo em alguma revista sobre a economia da educação, todos as diretivas que tenham vindo da União Europeia em matéria de formação, escolas, universidades, programas de aumento da produtividade, competitividade, etc., o que você irá reconhecer imediatamente é que já estamos vivendo em nossa própria versão da Matrix. Os esforços inexoráveis do capital com o objetivo de quantificar e usurpar o trabalho infetam todos esses documentos, que estão promovendo uma sociedade em que as pessoas são aspirantes a se tornarem autómatos. Uma ideologia cuja extensão programática é a trans-formação do trabalho humano em uma versão da energia térmica, que permite às máquinas uma maior margem de manobra para a função e para a fabricação de outras máquinas, às quais, tragicamente, falta a capacidade de gerar… valor.

Neste sentido, a nossa Matrix só pode ser provisória, uma vez que quanto mais se aproxima da sua aperfeiçoada versão em filme, o mais provável é a ocorrência de uma monumental crise, com os valores económicos a cair abaixo do chão e a chegada de uma grande recessão. A as-cenção das máquinas é revertida e o investimento nelas torna-se negativo. Nesta perspectiva marxiana, voltando ao filme uma vez mais, o bando de seres humanos libertos, nas entranhas da sociedade das máquinas (que dirigem a ressurreição humana contra as máquinas), simbo-liza a resistência humana a tornar-se capital humano; a irredutível e inerente hostilidade para com a quantificação que permanece incorporada dentro do coração e da mente, mesmo da-queles que gastam todas as suas energias tentando se tornarem mercantilizados, em nome de seus empregadores. A deliciosa ironia, nesta matéria, é que a própria hostilidade que o capital está tentando erradicar no trabalho é o que faz com que o trabalho seja capaz de produzir valor, permitindo assim ao capital que se acumule.

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4. O QUE MARX FEZ POR NÓS?

Paul Samuelson, certa vez, denegriu Karl Marx, chamando-lhe um ricardiano menor. Quase todas as escolas de pensamento, incluindo alguns economistas progressistas, gostam de alar-dear que, embora Marx seja uma figura poderosa, muito pouco, se alguma coisa, do seu con-tributo, continua relevante hoje em dia. Permitam-me que discorde.

Além de ter capturado o drama básico da dinâmica do capitalismo (veja-se a seção anterior), Marx deu-me as ferramentas com as quais me tornei imune aos efeitos tóxicos da propaganda dos inimigos neoliberais da verdadeira liberdade e racionalidade. Por exemplo, é fácil sucum-bir à idéia de que a riqueza é produzida em privado e, em seguida, apropriada por um Estado quase-ilegítimo, através da tributação, se não tivermos sido expostos antes à argumentação pungente de Marx de que é exatamente o contrário que sucede: a riqueza é produzida coleti-vamente e, em seguida, apropriada em privado por intermédio de relações sociais de produção e direitos de propriedade que dependem, para sua reprodução, quase exclusivamente, da falsa consciência. Da mesma forma com o conceito de “autonomia”, que ressoa tão bem neste nosso mundo da “pós-modernidade”. Ele também é produzido coletivamente, por meio da dialética do reconhecimento mútuo, e, em seguida, apropriado em privado. Se Marx tivesse sido levado a sério (tanto por marxistas como pelos seus detratores, é preciso dizê-lo), muitas inanidades que se acumularam ao longo do tempo nos anais dos estudos culturais teriam sido evitadas.

Phil Mirowski apontou recentemente (7), com grande eloquência, o sucesso dos neoliberais em convencer uma grande variedade de pessoas de que os mercados não são apenas um meio útil mas também um inalienável fim em si próprios. Que enquanto a ação coletiva e as institui-ções públicas são sempre incapazes de “encontrar o caminho certo”, a desenfreada operação descentralizada de múltiplos interesses privados gera uma espécie de providência secular e divina que garantidamente produz não só os resultados certos, mas também os mais adequa-dos desejos, carácteres, até mesmo ethos. O melhor exemplo da grosseria neoliberal é, eviden-temente, o debate sobre as alterações climáticas e o que fazer a seu respeito. Os neoliberais vieram pressurosamente defender o ponto de vista de que, se há alguma coisa a ser feita, ela deve tomar a forma da criação de um quase-mercado de “males” (p. ex., um regime de comér-cio das emissões) já que somente os mercados “sabem” como atribuir preços adequadamente a bens e a males. Para entender porque razão este quase-mercado está condenado ao fracasso e, mais importante ainda, de onde vem a motivação para tais “soluções”, não faremos mal em familiarizarmo-nos com a lógica da acumulação de capital que Marx descreveu e que Michal Kalecki adaptou a um mundo dominado por oligopólios em rede.

No século 20, os dois movimentos políticos que buscaram as suas raízes no pensamento de Marx foram os partidos comunistas e social-democratas. Os dois, para além de outros erros (e, na verdade, crimes) cometidos, em seu próprio detrimento, não conseguiram seguir as indi-cações de Marx num capítulo fundamental: em vez de abraçar a liberdade e a racionalidade como suas palavras de ordem e conceitos organizativos, eles optaram pela igualdade e pela justiça, deixando a liberdade para os neoliberais. Marx foi categórico: O problema com o ca-

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pitalismo não é que seja injusto, mas que é irracional, pois que como sua prática habitual condena gerações inteiras à privação e ao desemprego, transformando os próprios capitalis-tas em autómatos angustiados, também eles escravizados pelas máquinas que supostamente possuem, vivendo em permanente medo de que, a menos que mercantilizem totalmente os outros seres humanos, para que possam servir mais eficientemente a acumulação de capital, deixarão eles próprios de ser… capitalistas.

Assim, se o capitalismo é injusto é porque escraviza toda a gente, trabalhadores e capitalistas, como em The Matrix; ele desperdiça recursos humanos e naturais; espalha a infelicidade, a iliber-dade e as crises a partir das mesmas “linhas de produção” que bombeiam artefatos notáveis e riquezas inauditas. Depois de não ter conseguido modelar uma crítica do capitalismo em termos de liberdade e racionalidade, como Marx pensava essencial, a social-democracia e a esquerda em geral permitiram aos neoliberais que usurpassem o manto da liberdade e ga-nhassem assim um espetacular triunfo no concurso das aptidões e ideologias (8).

Ainda no que respeita ao triunfo neoliberal, talvez a sua mais importante dimensão seja aquilo que veio a ser conhecido como o “défice democrático”. Rios de lágrimas de crocodilo fluiram àcerca do declínio das nossas grandes democracias durante as últimas três décadas de finan-ceirização e de globalização. Marx teria rido muito e bem alto daqueles que parecem ficar sur-preendidos, ou contrariados, pelo “défice democrático”. Qual era o grande objetivo por detrás do liberalismo do século XIX? Ele foi, como Marx não se cansou de salientar, separar a esfera económica da esfera política e confinar as decisões políticas a esta última, deixando a esfera económica para o capital. O que estamos assistindo hoje é a um esplêndido sucesso do libera-lismo na realização disto. Dê uma olhada na África do Sul, hoje, mais de duas décadas depois de Nelson Mandela ter sido libertado e de a esfera política ter, finalmente, abraçado toda a população. A situação do ANC foi que, a fim de lhe ser permitido dominar a esfera política, teve que aceitar a impotência sobre o económico. E se você pensa de outra forma, sugiro que converse com as dezenas de mineiros alvejados a tiro por guardas armados pagos por seus empregadores, após terem ousado exigir um aumento salarial.

 

5. POR QUE RAZÃO IRREGULAR? OS DOIS ERROS IMPERDOÁVEIS DE MARX

Tendo explicado a razão pela qual devo todo entendimento que possa ter do nosso mundo so-cial, em grande medida, a Karl Marx, agora quero explicar por que eu continuo extremamente zangado com ele. Por outras palavras, vou descrever brevemente porque eu sou, por escolha própria, um marxista irregular ou inconsistente. Marx cometeu dois erros espetaculares, sendo um deles um erro de omissão e o outro de comissão. Estes erros são importantes, até esta data, porque eles dificultam a eficácia da esquerda no combate à misantropia organizada, especial-mente na Europa.

O primeiro erro de Marx, que eu sugiro seja devido a omissão, foi que ele foi insuficientemente

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dialéctico, insuficientemente reflexivo. Ele não conseguiu fazer a devida reflexão, e manteve um prudente silêncio, sobre o impacto que sua própria teorização tinha sobre o mundo que estava teorizando. Sua teoria é de um poder discursivo excepcional, e Marx tinha noção do seu poder. Por que razão ele não mostrou preocupação com que seus discípulos, pessoas com uma melhor compreensão dessas ideias fortes que, em média, os trabalhadores, pudessem usar o poder que lhes era assim cometido, por via das idéias do próprio Karl Marx, a fim de abusar de outros companheiros, construir a sua própria base de poder, ganhar posições de influência, seduzir estudantes impressionáveis, etc.?

Para dar um segundo exemplo, sabemos que o sucesso da Revolução Russa levou o capitalis-mo, na devida altura, a um recuo estratégico, a conceder segurança social e serviços nacionais de saúde, até mesmo à ideia de obrigar os ricos a pagar para que massas de estudantes pobres pudessem frequentar aulas em universidades progressistas. Ao mesmo tempo, nós também vimos como a fanática hostilidade para com a União Soviética, manifestada desde a primeira hora com uma série de invasões, despertou a paranóia entre os socialistas e criou um clima de medo que se revelou particularmente fértil para figuras como José Estaline e Pol Pot. Marx nunca entreviu a chegada deste processo dialético. Ele simplesmente não considerou a pos-sibilidade de que a criação de um Estado dos trabalhadores forçasse o capitalismo a tornar-se mais civilizado, enquanto o Estado dos trabalhadores seria infetado com o vírus do totalitaris-mo à medida que a hostilidade do resto do mundo (capitalista) para com ele crescia cada vez mais.

O segundo erro de Marx, aquele que eu caraterizo como de comissão, foi pior. Foi a sua as-sunção de que a verdade sobre o capitalismo poderia ser descoberta na matemática dos seus modelos (os chamados “esquemas de reprodução”). Este foi o pior desserviço que Marx pode-ria ter prestado ao seu próprio sistema teórico. O homem que nos equipou com a liberdade humana, como sendo um conceito económico de primeira ordem; o estudioso que elevou a indeterminação radical a ocupar o seu devido lugar na economia política; foi a mesma pessoa que acabou por jogar com modelos algébricos simplistas, em que unidades de trabalho foram, naturalmente, totalmente quantificadas, esperando contra toda a esperança retirar dessas equações algumas informações adicionais sobre o capitalismo. Depois da sua morte, os eco-nomistas marxistas desperdiçaram longas carreiras entregues ao mesmo tipo de mecanismo escolástico, acabando com o que Nietzsche uma vez descreveu como “pedaços de mecanismo que chegam ao sofrimento”. Totalmente imersos em irrelevantes debates sobre o “problema da transformação” e o que fazer sobre isso, tornaram-se finalmente uma espécie quase extinta, enquanto o colosso neoliberal ia esmagando todas as dissidências no seu caminho.

Como pôde Marx iludir-se a este ponto? Por que será que ele não reconheceu que nenhuma verdade sobre o capitalismo poderia alguma vez brotar de um qualquer modelo matemático, por mais brilhante que fosse o seu criador? Não tinha ele os instrumentos intelectuais para perceber que as dinâmicas capitalistas emergem da parte não quantificável do trabalho hu-mano; ou seja, a partir de uma variável que não poderá nunca ser bem definida matematica-mente? É claro que sim, pois que ele mesmo forjou essas ferramentas! Não, a razão para o seu

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erro é um pouco mais sinistra: tal como os economistas vulgares que ele tão brilhantemente denunciou (e que continuam a dominar os departamentos de Economia hoje em dia), ele co-biçou o poder que a “prova” matemática lhe daria.

Se estou certo, Marx sabia o que estava fazendo. Ele compreendeu, ou tinha a capacidade de saber, que uma teoria compreensiva do valor não pode ser acomodada dentro de um modelo matemático de uma economia capitalista dinâmica e em crescimento. Ele estava, não tenho qualquer dúvida, ciente de que uma boa teoria económica deve respeitar a máxima de Hegel de que “as regras do indeterminado são elas próprias indeterminadas”. Em termos económi-cos, isto significa o reconhecimento de que o poder de mercado e, consequentemente, a lu-cratividade, dos capitalistas não era necessariamente redutível à sua capacidade de extrair tra-balho dos seus empregados; que alguns capitalistas podem extrair mais de um dado conjunto de trabalhadores ou de uma determinada comunidade de consumidores, por razões que são externas à sua própria teoria.

Infelizmente, esse reconhecimento seria o mesmo que aceitar que as suas “leis” não eram imu-táveis. Ele teria de conceder, perante vozes concorrentes no movimento sindical, que sua teo-ria era indeterminada e que, portanto, os seus pronunciamentos não poderia ser tidos como certos e inequívocos. Que eles seriam permanentemente provisórios. Mas Marx sentia um ir-reprimível desejo de esmagar pessoas como o cidadão Weston (9) que ousou preocupar-se com o facto de que um aumento salarial (conseguida através de uma greve) poderia revelar-se uma vitória pírrica se os capitalistas empurrassem de seguida os preços para cima. Em vez de simplesmente argumentar contra pessoas como Weston, Marx obstinou-se em provar com precisão matemática que eles estavam errados, eram não-científicos, vulgares, indignos de atenção séria.

Houve ocasiões em que Marx percebeu, e confessou, ter errado do lado do determinismo. De-pois que ele se mudou para o terceiro volume de O Capital, viu que, mesmo uma complexidade mínima (por ex., assumindo diferentes graus de intensidade de capital em diferentes setores) descarrilava o seu argumento contra Weston. Mas tão empenhado estava ele com o seu mo-nopólio sobre a verdade que cavalgou sobre o problema, de forma assombrosa mas um pouco às cegas, impondo por fiat o axioma que, no final, confirmava a sua original “prova”; prova essa com a qual ele já batera antes na cabeça do cidadão Weston. Estranhos são os rituais do vazio e tristes, também, quando conduzidos por mentes excepcionais, como a de Karl Marx e um número considerável de seus discípulos no século XX.

 Essa vontade de ter o modelo ou argumento “completo”, “fechado”, ou seja, a “palavra final”, é algo que eu não posso perdoar a Marx. Ela revelou-se, afinal de contas, responsável por uma grande parte de erro e, mais significativamente ainda, de autoritarismo. Erros e autoritarismo que são, em grande parte, responsáveis pelo estado atual de impotência da esquerda como uma força para o bem e como contraponto aos abusos da razão e da liberdade que a tripula-ção neoliberal comete nos dias de hoje.

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 6. A IDEIA RADICAL DE KEYNES

Keynes era um inimigo da esquerda. Ele gostava do sistema de classes que o gerou, não queria ter nada a ver (pessoalmente) com a gentinha “lá de baixo”, tendo trabalhado duro e inteligen-temente a fim de arranjar ideias que permitissem ao capitalismo sobreviver contra a sua pró-pria propensão para espasmos potencialmente mortais. Um pensador liberal burguês, com abertura mental e espírito livre, Keynes tinha o raro dom de não se esquivar a um desafio aos seus próprios pressupostos. No meio da grande depressão, ele não teve qualquer problema em quebrar a tradição marshalliana que havia sido o seu legado. Ao perceber que o emprego se afundava mais ainda à medida que os salários diminuiam, e que os investimentos se recusa-vam a subir mesmo após um longo período de taxas de juro a zero, ele estava preparado para rasgar os “manuais” e re-considerar o capitalismo à sua maneira.

O seu radical re-pensamento tinha de começar em algum lugar. Começou quando Keynes quebrou fileiras com os seus pares, fazendo o impensável: revisitando a briga entre David Ri-cardo e Thomas Malthus e tomando o partido do clérigo. Em termos inequívocos, no meio da grande depressão, escreveu: “Se ao menos Malthus, em vez de Ricardo, tivesse sido o tronco fundador da economia do séc. XIX, o mundo seria hoje um lugar incomparavelmente mais sábio e mais rico!” (10). Com esta declaração incendiária, Keynes não estava a subscrever a po-sição de Malthus favorável aos rentistas aristocráticos, nem as suas opiniões teológicas sobre o poder redentor do sofrimento (11). Em vez disso, Keynes sufragou o cepticismo de Malthus quanto: (a) à sabedoria daqueles que procuram uma teoria do valor que seja consistente com a complexidade e dinâmica do capitalismo e (b) à convicção de Ricardo, que Marx mais tarde herdou, de que uma persistente depressão é incompatível com o capitalismo.

Por que razão Keynes não convergiu com Marx, que foi afinal de contas o primeiro economista político a explicar as crises como elementos constitutivos da dinâmica capitalista? Porque a Grande Depressão não foi como as outras crises, do tipo que Marx tinha explicado tão bem. No Vol. I de O Capital Marx contou a história das recessões redentoras, ocorridas devido à dupla natureza do trabalho e dando origem a períodos de crescimento que estão grávidos com a próxima recessão que, por sua vez, gera a próxima retoma, e assim por diante. No entanto, não havia nada de redentor na Grande Depressão. A depressão dos anos 1930 era apenas isso: uma depressão que se comportava muito como um equilíbrio estático - um estado da economia que parecia perfeitamente capaz de se perpetuar a si próprio, com a esperada recuperação recusando-se obstinadamente a surgir ao longo do horizonte, mesmo depois de a taxa de lucro recuperar, em resposta ao colapso dos salários e das taxas de juros.

A preciosa “descoberta” de Keynes sobre o capitalismo era dupla: (A) Era um sistema inerente-mente indeterminado, apresentando o que os economistas de hoje podem referir como uma infinitude de equilíbrios múltiplos, alguns dos quais se compatibilizavam com o desemprego em massa, e (B) Ele poderá cair, de um momento para o outro, imprevisivelmente, em um desses terríveis equilíbrios sem rima ou razão, apenas porque uma parcela significativa dos capitalistas temeram que ele pudesse fazê-lo.

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Em linguagem simples, isto significa que, no que diz respeito à previsão de depressões e da sua superação pelas forças do mercado, “raios nos partam se sabemos!”; que não temos ma-neira de saber o que o capitalismo irá fazer amanhã, mesmo que ele hoje pareça ir de vento em popa; que pode muito bem cair redondo no chão e recusar voltar a erguer-se novamente. A noção keynesiana de “espíritos animais” representou uma ideia profundamente radical, cap-turando a radical indeterminação sepultada dentro do prórpio ADN do capitalismo. Uma ideia que Marx introduziu, pela primeira vez, com a sua análise da natureza dialética do trabalho, mas depois, no processo de escrita de O Capital, atrofiou, por forma a estabelecer os seus teore-mas como provas matemáticas incontestáveis. De todas as passagens na Teoria Geral de Keynes, esta ideia da natureza caprichosamente auto-destrutiva do capitalismo é aquela que precisa-mos de recuperar e usar para re-radicalizar o marxismo.

 

7. A LIÇÃO DA SENHORA THATCHER PARA OS RADICAIS EUROPEUS DE HOJE

Eu me mudei para a Inglaterra para frequentar a universidade em Setembro de 1978, seis me-ses, pouco mais ou menos, antes da vitória da Sr.ª Thatcher que mudou a Grã-Bretanha para sempre. Vendo o governo trabalhista se desintegrar, sob o peso do seu degenerado programa social-democrata, levou-me a um erro de primeira ordem: ao pensamento de que talvez a vi-tória da Sr.ª Thatcher fosse uma coisa boa, oferecendo às classes média e trabalhadora da Grã-Bretanha um choque curto e forte, necessário para revigorar a política progressiva. Para dar à esquerda a oportunidade de re-pensar a sua posição e de criar uma nova e radical agenda para um novo tipo de política, eficaz e progressiva.

Mesmo enquanto o desemprego duplicava e, em seguida, triplicava, sob as “intervenções” neoliberais radicais de Margaret Thatcher, eu continuei a albergar esperanças de que Lênin tinha razão: “As coisas têm que piorar antes de ficarem melhores”. À medida que a vida se tornou mais agreste, mais estúpida e, para muitos, mais curta, ocorreu-me que eu poderia estar tragicamente errado: as coisas poderiam piorar em perpetuidade, sem nunca chegarem a melhorar. A esperança de que a deterioração dos bens públicos, a diminuição da vida para a maioria, a propagação da privação a todos os cantos da Terra levaria, automaticamente, a um renascimento da esquerda foi apenas isso: esperança!

A realidade foi, no entanto, dolorosamente diferente. A cada volta do torniquete da recessão, a esquerda se tornou mais introvertida, menos capaz de produzir uma convincente agenda progressista e, entretanto, a classe operária estava sendo dividida entre aqueles que saíram da sociedade e os cooptados para a mentalidade neoliberal. A noção de que a deterioração das “condições objectivas” iria, de alguma forma, dar origem a “condições subjetivas” das quais uma nova revolução política iria sair, foi bem e verdadeiramente falsa. Tudo o que surgiu a partir do thatcherismo foram os vigaristas, a extrema financeirização, o triunfo do centro co-mercial sobre a loja da esquina, a fetichização do alojamento e… Tony Blair.

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Em vez de radicalizar a sociedade britânica, a recessão que o governo Thatcher tão cuidado-samente projetou, como parte da sua luta de classes contra o trabalho organizado e contra as instituições públicas da segurança social e de redistribuição que haviam sido criadas no pós-guerra, destruiu permanentemente a própria possibilidade de uma política radical e pro-gressiva na Grã-Bretanha. Na verdade, tornou impossível a própria noção de valores que trans-cendam aquilo que o mercado determinar como preços “justos”.

A lição que a Sr.ª Thatcher me ensinou, pela via dolorosa, no que se refere à aptidão de uma recessão de longa duração para minar a política progressista e enraizar a misantropia na pró-pria fibra da sociedade, é algo que transporto comigo até à crise europeia de hoje. É, de fato, a mais importante determinante da minha posição em relação à crise do Euro, que tem ocupado quase exclusivamente o meu tempo e o meu pensamento ao longo dos últimos anos. Esta é a razão pela qual tenho prazer em confessar o pecado que me é imputado por críticos radicais da minha posição “menchevique” sobre a Zona Euro: o pecado de ter optado por não propor programas políticos radicais que visem explorar a crise do Euro como uma oportunidade para derrubar o capitalismo europeu, para desmantelar a terrível Zona Euro e para minar a União Europeia dos cartéis e dos banqueiros falidos.

Sim, eu gostaria de apresentar uma agenda radical. Mas, não, não estou disposto a cometer o mesmo erro duas vezes. Que bem é que pudemos alcançar na Grã-Bretanha, no início da década de 1980, promovendo uma agenda de mudança socialista que a sociedade britânica desprezava, enquanto se precipitava de cabeça para a armadilha neoliberal da Sr.ª Thatcher? Precisamente nada. Que bem nos trará hoje o apelo ao desmantelamento da Zona Euro, da própria União Europeia, quando o capitalismo europeu está a fazer o seu melhor para pôr em causa a Zona Euro, a União Europeia e, na verdade, a si próprio?

Uma saída grega, portuguesa ou italiana da Zona Euro, em breve se transformará numa frag-mentação do capitalismo europeu, produzindo uma região excedentária em séria recessão, a leste do Reno e ao norte dos Alpes, enquanto o resto da Europa estará encerrado num círculo vicioso de estagflação. Quem você acha que vai beneficiar com isto? A esquerda progressista, que irá renascer como Fénix das cinzas das instituições públicas da Europa? Ou a Aurora Dou-rada nazi, o sortido dos neo-fascistas, os xenófobos e os vigaristas? Não tenho a menor dúvida de qual destes dois irá beneficiar de uma desintegração da Zona Euro. Eu, por mim, não estou disposto a soprar novos ventos para as velas desta versão pós-moderna dos anos 1930. Se isto significa que sejamos nós, os marxistas apropriadamente irregulares, quem deva tentar salvar o capitalismo europeu de si mesmo, pois que assim seja. Não por amor ou apreço para com o capitalismo europeu, a Zona Euro, Bruxelas, ou o Banco Central Europeu, mas apenas porque queremos minimizar o desnecessário sofrimento humano trazido por esta crise; as inúmeras vidas cujas perspetivas serão ainda mais esmagadas, sem qualquer benefício para as futuras gerações de europeus.

 

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8. CONCLUSÃO: QUE DEVEM FAZER OS MARXISTAS?

As elites da Europa estão se comportando hoje como um patético conjunto de dirigentes sem rumo, que não entendem nem a natureza da crise a que estão presidindo nem as suas impli-cações para a sua própria sorte - e muito menos para o futuro da civilização europeia. Atavis-ticamente, eles estão optando por pilhar os decrescentes recursos dos fracos e despossuídos, a fim de tapar os buracos negros escancarados dos seus banqueiros falidos, recusando-se a reconhecer a impossibilidade da tarefa. Tendo criado uma união monetária que (A) removeu todos os amortecedores de choques da macro-economia da Europa e (B) assegurou que, quando o choque viesse, seria gigantesco, eles estão agora investindo na negação, esperando, irracionalmente, por algum milagre que os deuses possam oferecer, desde que um número suficiente de vidas humanas seja sacrificado no altar da competitiva austeridade.

De cada vez que os beleguins da troika visitam Atenas, Dublin, Lisboa, Madrid; com cada pro-nunciamento do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia sobre a próxima curva do torniquete da austeridade, a efetuar em Paris ou em Roma, o verso de Berthold Brecht vem à mente: “A força bruta está fora de tempo. Para quê enviar um assassino contratado quando um oficial de justiça serve?” A pergunta é a seguinte: como é que vamos resistir-lhes?

Sempre alerta para a culpa colectiva da esquerda sobre o feudalismo industrial a que conde-namos milhões de pessoas, ao longo de décadas, em nome da… política progressista, devo fazer ainda assim um paralelo entre a União Soviética e a Europeia. Apesar das suas grandes diferenças, uma coisa elas têm em comum: a uniforme “linha de partido”, que funciona na perfeição a partir de cima (o Politburo ou Comissão) até à parte inferior (o mais insignificante ministro em cada Estado-membro, ou o último comissário, debitando as mesmas inanidades). Os apparatchiks soviéticos e europeus compartilham a determinação de uma seita cristã em re-conhecer factos somente se eles são coerentes com a profecia e os seus textos sagrados. O Sr. Olli Rehn, por exemplo, que é o comissário da União Europeia com responsabilidade sobre assuntos económicos e financeiros, recentemente teve a ousadia de reprovar ao Fundo Mo-netário Internacional ter apontado erros no cálculo dos multiplicadores fiscais da Zona Euro, porque essa revelação “( …) minava a confiança da população europeia em suas instituições”. Nem mesmo Leonid Brejnev teria ousado fazer uma tal declaração pública!

Com as elites da Europa em estado de profunda negação e desordem, com as suas cabeças enterradas na areia como avestruzes, a esquerda tem de admitir que, simplesmente, não está ainda pronta para cobrir a lacuna que um colapso do capitalismo europeu vai abrir, até ao pleno funcionamento de um sistema socialista, que seja capaz de gerar prosperidade para as massas. A nossa tarefa deve ser dupla: avançar uma análise da situação actual que europeus não-marxistas bem intencionados, até aqui atraídos pelas sirenes do neoliberalismo, achem útil. E acompanhar esta análise sólida com propostas para estabilizar a Europa - para acabar com a espiral descendente que, no final das contas, reforça apenas os fanáticos e incuba o ovo da serpente. Ironicamente, aqueles de nós que detestamos a Zona Euro têm a obrigação moral de a salvar!

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Isso é o que estamos a tentar fazer com a nossa ‘Modesta Proposta’ (12). Ao abordar diversas audiências, que vão de ativistas radicais aos gestores de fundos, a idéia é forjar alianças estra-tégicas mesmo com gente da direita, com quem possamos partilhar um simples interesse: o interesse em terminar a cadeia circular negativa entre austeridade e crise, entre Estados em bancarrota e dorsos derreados de exaustão; uma cadeia circular negativa que prejudica tanto o capitalismo como a qualquer programa progressista visando substituí-lo. É desta forma que eu defendo a minha tentativa de mobilizar para a causa da ‘Modesta Proposta’ pessoas como Bloomberg, jornalistas do New York Times, deputados conservadores ao parlamento britânico, fi-nanciadores preocupados com o estado perigoso da Europa.

O leitor vai permitir-me concluir com duas confissões finais. Ao mesmo tempo que estou feliz por defender como genuinamente radical o exercício de uma modesta agenda para a esta-bilização de um sistema que desprezo, não vou fingir estar entusiasmado com ela. Isto pode ser o que temos de fazer, nas circunstâncias atuais, mas estou triste porque, provavelmente, já não vou estar por perto para ver uma agenda mais radical ser objeto de ponderada deci-são. Por último, uma confissão de um carácter estritamente pessoal: sei que corro o risco de, sub-repticiamente, diminuir a tristeza do abandono de qualquer esperança na substituição do capitalismo em minha vida, entregando-me à sensação de me ter tornado “agradável” para os círculos da “sociedade educada”. A sensação de auto-satisfação por ser homenageado pelos fortes e poderosos começou de facto, ocasionalmente, a entrar em mim. E que sensação tão feia, corruptora e corrosivo ela é!

O meu nadir pessoal aconteceu em um aeroporto. Algum organismo endinheirado tinha-me convidado para dar uma palestra sobre a crise europeia e tinha desenbolsado a ridícula soma necessária para me comprar uma passagem de primeira classe. No meu caminho de volta a casa, cansado e já com vários voos sob o meu cinto, eu estava fazendo o meu caminho na longa fila dos passageiros da classe económica, para chegar ao meu portão. De repente notei, com consi-derável horror, como era fácil para a minha mente infetar-se com a noção de que eu tinha “direi-to” a contornar a multitude, o hoi polloi. Percebi o quão facilmente poderia esquecer o que a minha mente educada à esquerda sempre soube: que nada consegue reproduzir-se melhor do que um falso sentimento de direito. Concluir alianças com forças reacionárias, como penso que se deve fazer hoje para estabilizar a Europa, faz-nos correr o risco de sermos co-optados, de despejar o nosso radicalismo através do caloroso brilho de se ter “chegado” aos corredores do poder.

Confissões radicais, como as que eu tenho tentado esboçar aqui, são talvez o único antídoto programático para os deslizes ideológicos que ameaçam transformar-nos em peças da máqui-na. Se estamos prontos a estabelecer alianças com o diabo (por exemplo, com o FMI, com os neoliberais que, apesar disso, colocam objeções àquilo a que eu chamo “bancarrotocracia”, etc. ), devemos evitar tornarmo-nos como os socialistas que falharam a transformação do mundo, mas conseguiram muito bem melhorar… as suas particulares circunstâncias. O truque é evi-tar o maximalismo revolucionário que, no final, apenas ajuda os neoliberais a ignorar toda a oposição à sua auto-destrutiva grosseria, conservando na nossa mente a fealdade inerente do capitalismo, ao mesmo tempo que tentamos salvá-lo de si próprio, para fins estratégicos. Con-

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fissões radicais podem ser úteis para tentar este difícil equilíbrio. Afinal, o humanismo marxista é uma luta constante contra aquilo em que estamos a tornar-nos.

 

(*) Yanis Varoufakis (n. 1961) é ministro das Finanças do governo grego do Syriza. Seu pai Giorgos Varoufakis

combateu pelos comunistas (ELAS) na guerra civil de 1946-49, tornando-se depois um industrial do aço bastante

próspero. Yanis foi ativo na juventude do PASOK e estudou Economia por inspiração de Andreas Papandreou.

Licenciou-se na Universidade de Essex e, nos anos 1980, ensinou em diversas universidades inglesas, incluin-

do Cambridge. De 1989 a 2000 ensinou no Departamento de Economia da Universidade de Sidney (Austrália).

Regressou então ao seu país, sendo professor de Teoria Económica na Universidade de Atenas. Em 2013 ensinou

na Universidade de Austin (Texas, E.U.A.). É o editor grego da revista internacional WDW Review. Chegou a ser

conselheiro económico de George Papandreou, mas afastou-se em 2006, tornando-se muito crítico do seu gover-

no. Presentemente faz parte da bancada parlamentar do Syriza mas não é membro do partido. Entre as suas obras

mais conhecidas contamos: Rational Conflict.Oxford: Blackwell, 1991; Game Theory: A critical introduction. London e New York:

Routledge, 1995 (com Shaun Hargreaves-Heap); Foundations of Economics: A beginner’s companion. London e New York: Rou-

tledge, 1998; Modern Political Economics: Making sense of the post-2008 world. London e New York: Routledge, 2011 (com Joseph

Halevi and Nicholas J. Theocarakis); The Global Minotaur: America, the True Origins of the Financial Crisis and the Future of the World Economy.

Zed Books, 2011; Economic Indeterminacy: A personal encounter with the economists’ most peculiar nemesis. London e New York: Routled-

ge, 2013; Europe after the Minotaur: Greece and the Future of the Global Economy. Zed Books, 2015. Juntamente com a sua mulher, a

artista plástica Danae Stratou, produziu a instalação CUT: 7 dividing lines, escrevendo textos sobre a economia política

de sete “muros da globalização” (Palestina, Etiópia-Eritreia, Kosovo, Belfast, Chipre, Cachemira e a fronteira E.U.A.-

México). O casal fundou ainda o projeto Vital Space. A 14 de Maio de 2013 dirigiu uma comunicação ao 6º Festival

Subversivo de Zagreb que, depois de expandida, se transformou neste curioso ensaio. Com ele podemos ter um

vislumbre em profundidade dos seus propósitos políticos, expressos com uma rara franqueza, muito acessível a

marxistas. O autor representa, claramente, a facção centrista e europeísta a todo o custo no governo do Syriza. Ali-

ás, o seu projeto reformista (a nosso ver completamente utópico) só faz sentido abrangendo o conjunto da União

Europeia, como aqui se deixa bem explícito. 

A tradução e esta nota são da responsabilidade de Ângelo Novo (http://www.ocomuneiro.com/), a quem agrade-

cemos a autorização para republicação do texto, bem como dos dois seguintes.

BIBLIOGRAFIA

Keynes, J. M. (1933, 1972). “Robert Malthus: The First of the Cambridge Economists,” penned in 1933, in The Collected Works of John Maynard Keynes, Vol. X: Essays in Biography, London: Macmillan.

Marx, K, (1865, 1969). “Wages, Prices and Profit’ in Value, Price and Profit, New York: International Co.

Marx, K. (1844, 1969). Economic and Philosophical Manuscripts, in Marx/Engels Selected Works, Moscow, USSR: Progress Publishers.

Marx, K. (1849, 1902). “Wage-Labour and Capital”, publicado originalmente em Neue Rheinische Zeitung, 5-8 e 11 de Abril, 1849. [Transmitido como lições em 1847] Editado com uma Introdução por Friedrich Engels em 1891. Traduzido por Harriet E. Lothrop, New York: Labor News Company.

Marx, K. (1972). Capital: Vol. I-III. London: Lawrence and Wishart.

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Mirowski, P. (2013). Never Let a Good Crisis Go To Waste: How Neoliberalism survived the financial meltdown, London and New York: Verso.

Varoufakis Y. (2013). Economics Indeterminacy: A personal encounter with the economists’ peculiar nemesis, London and New York: Routledge.

Varoufakis, Y. (1991). Rational Conflict, Oxford: Blackwell.

Varoufakis, Y. (1998). Foundations of Economics: A beginner’s companion, London and New York: Routledge.

Varoufakis, Y., J. Halevi and N. Theocarakis (2011). Modern Political Economics: Making sense of the post-2008 world, London and New York: Routledge.

Varoufakis, S. Holland and J. K. Galbraith (2013). A Modest Proposal for Resolving the Euro Crisis, Version 4.0.

__________________

NOTAS:

(1) Para exemplos da investigação daí resultante, ver Varoufakis (2013) e Varoufakis, Halevi e Theocarakis (2011).

(2) [NOTA DO EDITOR] Este filme é, na verdade, de 1956, tendo sido exibido no Brasil sob o título “Vampiros de Al-

mas: A Terra em perigo” (em Portugal “Vampiros da Noite: A Terra em perigo”). Foi dirigido por Don Siegel com base

na novela de ficção científica The Body Snatchers, de Jack Finney, publicada em 1954.

(3) Ver Karl Marx (1844, 1969), Economic and Philosophical Manuscripts.

(4) Marx em “Wage-Labour and Capital”, publicado originalmente em Neue Rheinische Zeitung, 5-8 e 11 de Abril, 1849.

[Transmitido como lições em 1847] Editado com uma Introdução por Friedrich Engels em 1891. Traduzido por Har-

riet E. Lothrop, New York: Labor News Company.

(5) Ver Karl Marx (1844, 1969), Economic and Philosophical Manuscripts.

(6) Logo no início de Matrix, uma guerrilheira urbana que ajudara o nosso Thomas Anderson, também conhecido

como Neo, a fugir dos típicos “agentes”, oferece-lhe uma escolha difícil entre dois comprimidos. Se ele tomar a pílula

azul, será devolvido para sua cama e acordará de manhã pensando que a coisa toda foi um pesadelo antes de reto-

mar sua vida “normal”. No entanto, se ele optar pela pílula vermelha, irá aprender a verdade sobre a sua vida e sobre

a sociedade. Num triunfo da descuidada curiosidade sobre a sedução dos prazeres simples, Neo recusa a perspetiva

da venturosa ignorância oferecida pela pílula azul, optando pela cruel realidade prometida pela vermelha.

(7) Ver Mirowski (2013).

(8) Para mais informações sobre este argumento ver Varoufakis (1991) e Varoufakis (1998).

(9) Ver Marx, “Wages, Prices and Profit”, em que o debate com o cidadão Weston é narrado pelo próprio Marx.

(10) Veja-se o seu ensaio sobre Malthus, “Robert Malthus: The First of the Cambridge Economists”, escrito em 1933,

in John Maynard Keynes (1972). The Collected Works of John Maynard Keynes, Vol. X: Essays in Biography, London: Macmillan. A

citação aparece nas pp. 100-1. Originalmente publicado em Essays in Biography, 1933.

(11) Malthus fez o seu nome com o prognóstico de que o crescimento demográfico ultrapassaria sempre os recur-

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sos da Terra, maugrado os nossos melhores esforços, e que, por conseguinte, a fome era um mecanismo “equili-

brante” imperativo. Como homem de sotaina, ele explicou isto como parte do desígnio de Deus: o sofrimento das

massas, as barrigas inchadas das crianças inebriadas, as faces de esgotamento do processo de luto das mães, tudo

foram oportunidades divinamente concedidas para os seres humanos abraçarem o bem e lutarem contra o mal.

(12) Ver Y. Varoufakis, S. Holland e J. K. Galbraith (2013). A Modest Proposal for Resolving the Euro Crisis, Versão 4.0.

A alternativa na Grécia

STATHIS KOUVELAKIS (*)

A ESTRATÉGIA NEGOCIAL DA LIDERANÇA DO SYRIZA FALHOU, MAS NÃO É TARDE DE MAIS PARA EVITAR A DERROTA COMPLETA

 Vamos começar com o que deveria ser indiscutível: o acordo do Eurogrupo para que o gover-no grego foi arrastado, na sexta-feira (1), equivale a uma retirada precipitada.

O regime do memorando deverá ser prorrogado, o contrato de empréstimo e a totalidade da dívida reconhecida, a “supervisão”, outra palavra para o domínio da troika, deverá manter-se sob outro nome, havendo agora poucas hipóteses de o programa do Syriza poder ser implementado.

Um falhanço tão completo não é, não pode ser, uma questão de sorte, ou o produto de uma manobra tática mal concebida. Ela representa a derrota de uma linha política específica, em que se tem apoiado a abordagem atual do governo.

 

ACORDO DE SEXTA-FEIRA

No espírito do mandato popular para uma ruptura com o regime do memorando e a liberta-ção da dívida, o lado grego entrou nas negociações rejeitando a prorrogação do atual “progra-ma”, acordado com o governo Samaras, juntamente com a tranche de € 7 mil milhões, com a exceção dos € 1,9 mil milhões de retorno sobre títulos gregos a que tinha direito.

Não consentindo em quaisquer procedimentos de supervisão e de avaliação, pediu um “pro-grama ponte”, de quatro meses de transição, sem medidas de austeridade, para assegurar a liquidez e implementar pelo menos parte de seu programa, no âmbito de orçamentos equili-brados. Pediu também que os credores reconhecessem a inviabilidade da dívida e a necessi-dade imediato de uma nova ronda de negociações compreensivas sobre ela.

Mas o acordo final equivale a uma rejeição, ponto por ponto, de todas estas exigências. Além disso, ele implica um outro conjunto de medidas destinadas a atar as mãos do governo e frus-

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IAtrar qualquer medida que possa significar uma ruptura com as políticas do memorando.

No comunicado de sexta-feira do Eurogrupo, o programa existente é referido como um “com-promisso”, mas isso não muda absolutamente nada de essencial. A “extensão” que o lado grego está agora a solicitar (ao abrigo do “Acordo Guia Facilitador de Assistência Financeira” - AGFAF), deve ser executada “no âmbito do compromisso existente” e visa “a conclusão com sucesso da revisão com base nas condições do compromisso atual”.

E também se diz claramente que

“apenas a aprovação pelas instituições da conclusão da revisão do compromisso alarga-do (...) permitirá qualquer desembolso da parcela remanescente do Programa FEEF atual e a transferência dos lucros SMP de 2014 [estes são os tais 1,9 mil milhões de lucros com os títulos gregos a que a Grécia tem direito]. Ambos são novamente sujeitos à aprovação pelo Eurogrupo.” 

Assim, o governo grego vai receber a tranche que tinha inicialmente recusado, mas com a condição de respeitar os compromissos dos seus antecessores.

O que temos, portanto, é uma reafirmação da postura típica alemã de impor - como pré-con-dição para qualquer acordo e qualquer desembolso futuro do financiamento - a conclusão do processo de “avaliação” pelo mecanismo tripartido (seja isso chamado de “troika” ou de “insti-tuições “) para a supervisão de todos os acordos, do passado e do futuro.

Além disso, para deixar bem claro que o uso do termo “instituições” em vez do termo “troi-ka” é de fachada, o texto reafirma especificamente a composição tripartida do mecanismo de supervisão, enfatizando que as “instituições” incluem o BCE (“neste contexto, recordamos a independência do Banco Central Europeu”) e o Fundo Monetário Internacional (“nós também concordamos que o FMI vai continuar a desempenhar o seu papel”).

No que respeita à dívida, o texto menciona que “as autoridades gregas reiteram o seu compro-misso inequívoco de honrar as suas obrigações financeiras para com todos os seus credores, de forma plena e tempestiva”. Por outras palavras, esqueça-se qualquer discussão sobre “cortes de cabelo”, “redução da dívida”, para não falar já da “anulação da maior parte da dívida”, que é o compromisso programático do Syriza.

Qualquer futuro “alívio da dívida” só é possível com base no que foi proposto na decisão do Eu-rogrupo de novembro 2012, ou seja, uma redução nas taxas de juros e um reescalonamento, que, como é bem conhecido, faz pouca diferença para o peso do serviço da dívida, afetando apenas o pagamento de juros, que já são muito baixos.

Mas isso não é tudo, porque, para o pagamento da dívida, o lado grego está aceitando plena-mente o mesmo enquadramento decidido pelo Eurogrupo em novembro de 2012, na época do governo de três partidos de Antonis Samaras. Ele incluiu os seguintes compromissos: 4,5% de superávites primários a partir de 2016, privatizações aceleradas e a criação de uma conta especial para o serviço da dívida – para a qual o sector público grego deverá transferir todos os

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rendimentos dos privatizações, os superávites primários, e 30% dos excedentes suplementares.

Foi também por esta razão que o texto de sexta-feira menciona não apenas os excedentes, mas também “procedimentos de financiamento”. Em qualquer caso, o núcleo central da pilha-gem do memorando, nomeadamente a realização de superávites primários escandalosos e o desbaratamento de bens públicos com a exclusiva finalidadede encher os bolsos dos credores, permanece intacto. O único indício de relaxamento da pressão é uma garantia vaga de que “as instituições, para a meta de superávite primário de 2015, tomarão em conta as circunstâncias económicas especiais do ano 2015”.

Mas não foi o suficiente que os europeus rejeitassem todas as exigências gregas. Eles tinham, em todos os sentidos, que atar de pés e mãos o governo Syriza, a fim de demonstrar na prática que qualquer que seja o resultado eleitoral e o perfil político do governo que possa surgir, nenhuma reversão da austeridade é viável no âmbito europeu existente. O presidente da Co-missão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou mesmo: “não pode haver escolha democrática contra os tratados europeus.”

E as providências para isso devem ocorrer de duas maneiras. Em primeiro lugar, tal como indi-cado no texto: “As autoridades gregas se comprometem a abster-se de qualquer reversão de medidas e alterações unilaterais das políticas e reformas estruturais que impactem negativa-mente nas metas fiscais, na recuperação econômica ou na estabilidade financeira, conforme a avaliação das instituições.”

Portanto, nenhum desmantelamento do regime do memorando (“reversão de medidas”), e nenhumas “alterações unilaterais”. E isto não só no que diz respeito às medidas com um custo orçamental (tal como a abolição de impostos, a elevação do limiar de isenção de impostos, au-mentos em pensões e assistência “humanitária”), como tinha sido indicado inicialmente, mas também num sentido muito mais amplo, incluindo tudo o que poderia ter um “impacto nega-tivo” sobre “a recuperação económica ou a estabilidade financeira”, sempre de acordo com o decisivo julgamento das “instituições”.

Escusado será dizer que isso é relevante não só para a reintrodução de um salário mínimo e o restabelecimento da legislação trabalhista que foi desmantelada nos últimos anos, mas tam-bém para as mudanças no sistema bancário que pudessem reforçar o controlo público (não há uma palavra, sequer, é claro, sobre a “propriedade pública”, conforme previsto na declaração fundadora do Syriza).

Além disso, o acordo especifica que

“os fundos disponíveis até ao momento na almofada do Fundo Helénico de Estabilida-de Financeira (FHEF) devem ser detidos pelo Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), livres de direitos de terceiros durante todo o período de prorrogação AGFAF. Os fundos continuam a estar disponível para o período de prorrogação AGFAF e só podem ser utilizados para a recapitalização dos bancos e custos de resoluções. Eles só serão libertados a pedido do BCE / SSM.” 

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Esta cláusula mostra como não escapou à atenção dos europeus que o Programa de Thessa-lonica de Syriza afirmava que “o dinheiro para alimentar o setor público e um dinheiro inter-mediário para o estabelecimento de bancos de propósitos especiais, de um montante total da ordem dos € 3 mil milhões, será fornecido através de chamada “almofada” do FHEF de cerca de €11 mil milhões para os bancos”.

Em outras palavras, adeus a qualquer idéia de usar fundos FHEF para objectivos orientados para o crescimento. Quaisquer ilusões ainda subsistentes a respeito da possibilidade de utili-zar fundos europeus para fins exteriores à camisa de força para a qual foram especificamente reservados - e mais ainda que eles pudessem ser colocados sob a jurisdição do governo grego – ficaram assim dissipadas.

 

DERROTA DA ESTRATÉGIA DO “BOM EURO”

Pode o lado grego, possivelmente, acreditar ter conseguido algo mais do que a criatividade verbal impressionante do texto? Teoricamente, sim, na medida em que já não há quaisquer referências explícitas às medidas de austeridade, e as “mudanças estruturais” citadas (reformas administrativas e a repressão à evasão fiscal) não pertencem a esta categoria, uma modifi-cação que, naturalmente, precisa de uma verificação cruzada contra a lista de medidas que devem surgir nos próximos dias (2).

Mas dado que o objetivo dos escandalosos excedentes orçamentais foi mantido, juntamente com a totalidade da maquinaria de supervisão e avaliação da troika, qualquer noção de um relaxamento da austeridade parece fora de contato com a realidade. Novas medidas e, é claro, a estabilização do adquirido pelo “memorando” são uma via de sentido único, enquanto o regime atual prevaleça e se perpetue, renomeado.

Resulta claro do exposto que, no decurso das “negociações”, com o revólver do BCE apontado à cabeça e o resultante pânico nos bancos, as posições gregas sofreram um colapso quase total. Isso ajuda a explicar as inovações verbais (“instituições” em vez de “troika”, “disposições actuais” em vez de “programa atual”, “Acordo Guia Facilitador de Assistência Financeira” em vez de “Memorando”, etc.). Consolo simbólico ou mais trapaça, dependendo da maneira como você queira olhar.

A questão que surge, naturalmente, é como é que chegamos a este embaraço. Como é possí-vel que, apenas algumas semanas após o resultado histórico de 25 de janeiro, tenhamos esta contra-ordem do mandato popular para a derrubada do memorando?

A resposta é simples: o que se desmoronou nas últimas duas semanas é uma opção estraté-gica específica que tem suportado toda a abordagem do Syriza, particularmente depois de 2012: a estratégia que excluía “ações unilaterais”, como a suspensão de pagamentos e, mais ainda, a saída do euro, argumentando que:

- Sobre a questão da dívida, uma solução favorável ao devedor pode ser encontrado com a anuência do credor, seguindo o modelo dos acordos de Londres, de 1953, para as

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dívidas da Alemanha - ignorando, é claro, o facto de que as razões porque os Aliados se comportaram generosamente para com a Alemanha não se aplicam, de modo algum, aos europeus hoje com respeito à dívida grega e, mais geralmente, à dívida pública dos mais endividados Estados da UE de hoje.

- O derrube dos memorandos, a expulsão da troika, e um modelo diferente de política econômica (por outras palavras, a execução do Programa de Thessalonica) poderiam ser implementados independentemente do resultado das negociações da dívida e, acima de tudo, sem provocar nenhuma reação real dos europeus, acima e para além das amea-ças iniciais, que foram minimizadas como bluff. Na verdade, foi prevista a possibilidade de metade do financiamento para o Programa de Thessalonica ser proveniente de recursos europeus. Em outras palavras, não só os europeus não reagiriam, como acabariam por financiar generosamente políticas opostas às que tinham vindo a impor durante os úl-timos cinco anos.

- Finalmente, o cenário do “bom euro” pressupunha a existência de aliados de algum significado ao nível dos governos e/ou instituições (a referência aqui não é o apoio dos movimentos sociais ou outras forças de esquerda). Os governos da França e da Itália, os social-democratas alemães, e, finalmente, em um verdadeiro frenesim de fantasia, o próprio Mario Draghi eram, de vez em quando, invocados como tais potenciais aliados.

Tudo isso veio por água abaixo em poucos dias. A 4 de fevereiro, o BCE anunciou a suspensão da principal fonte de liquidez para os bancos gregos. A saída de capitais, que já tinha come-çado, tomou dimensões incontroláveis, enquanto as autoridades gregas, temendo que uma tal reação sinalizasse o início do Grexit (3), não tomaram a menor medida “unilateral” (como a imposição de controlos de capitais).

As expressões “redução” da dívida e até mesmo o famigerado “corte de cabelo” foram rejei-tadas da forma mais categórica possível, por credores que ficam enfurecidos só de ouvi-las (em resultado do que elas foram quase imediatamente retiradas de circulação). Em vez de sua derrubada, descobriu-se que o único elemento “inegociável” foi manter os memorandos e a supervisão da troika. Nem um único país apoiou as posições gregas, para além de algumas cortesias diplomáticas daqueles que queriam que o governo grego pudesse, apesar de tudo, marginalmente, salvar a sua face.

Temendo o Grexit (3) mais do que este assustava os seus interlocutores, totalmente impre-parado perante a contingência absolutamente previsível da desestabilização bancária (arma clássica do sistema, internacionalmente, há quase um século, quando confrontado com go-vernos de esquerda), o lado grego foi essencialmente deixado sem quaisquer ferramentas de negociação. Encontrou-se de costas contra a parede e com apenas más opções à sua disposi-ção. A derrota de sexta-feira foi inevitável e marca o fim da estratégia de “uma solução positiva dentro do euro”, ou para ser mais preciso “uma solução positiva a todo o custo dentro do euro”.

 

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IACOMO EVITAR A DERROTA TOTAL

Raramente foi uma estratégia refutada tão inequívoca e tão rapidamente. Manolis Glezos, do Syri-za, teve portanto razão em falar de “ilusão” e, elevando-se à altura da ocasião, pedir desculpas ao povo por ter contribuído para cultivá-la. Precisamente pela mesma razão, mas, inversamente, e com a ajuda de alguns meios de comunicação locais, o governo tentou representar este resultado devastador como um “sucesso negocial”, confirmando que “a Europa é uma arena para a negocia-ção”, que está “deixando para trás a troika e os memorandos” e outras afirmações semelhantes.

Com medo de fazer o que Glezos se atreveu a fazer - ou seja, reconhecer o fracasso de toda a sua estratégia - a liderança está tentando uma manobra de diversão, “tentando fazer passar carne como peixe”, para citar o provérbio popular grego.

Mas apresentar uma derrota como um sucesso é, talvez, pior do que a própria derrota. Por um lado, transforma o discurso governamental em mero palavreado, uma sequência de clichês e chavões que é simplesmente convocada para legitimar retrospetivamente qualquer decisão, vendo preto onde está branco; por outro lado, porque prepara o terreno, inevitavelmente, para as próximas, e mais definitivas, derrotas, uma vez que se dissolvem completamente os critérios pelos quais o sucesso pode ser distinguido de uma retirada.

Para realçar este argumento com recurso a um precedente histórico bem conhecido da gen-te de esquerda, se o Tratado de Brest-Litovsk, segundo o qual a União Soviética garantiu a paz com a Alemanha, aceitando perdas territoriais enormes, houvesse sido proclamado como uma “vitória”, não há dúvida alguma de que a Revolução de Outubro teria sido derrotada.

Se, portanto, queremos evitar uma segunda, e desta vez definitiva, derrota - o que poria fim à ex-periência esquerdista grega, com consequências incalculáveis para a sociedade e para a esquer-da, dentro e fora deste país - temos de olhar a realidade em face e falar a língua da honestidade. O debate sobre a estratégia deve finalmente recomeçar, sem tabus e com base nas resoluções do congresso do Syriza, que já há algum tempo se transformaram em ícones inócuos.

Se o Syriza ainda tem uma razão para existir como sujeito político, uma força para a elaboração de política emancipatória, e um contributo a dar para as lutas das classes subordinadas, deve ser uma parte neste esforço para iniciar uma análise em profundidade da situação atual e dos meios para a superar.

“A verdade é revolucionária”, para citar as palavras de um líder famoso que sabia do que estava falando. E só a verdade é revolucionária, podemos agora acrescentar, com a experiência histó-rica que temos adquirido desde então.

 

(*) Stathis Kouvelakis é doutorado em Filosofia Política pela Universidade de Paris VIII, onde foi professor. Desde

2003 ensina no King’s College de Londres. As suas áreas principais de investigação são a formação do pensamento

de Karl Marx, a tradição marxista e o pensamento crítico mais recente. É membro do comité central do Syriza. Em

França foi próximo de Daniel Bensaïd e um colaborador regular da sua revista Contretemps. Entre os seus livros publica-

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dos contam-se Dictionnaire Marx Contemporain (co-editado com Jacques Bidet) Paris, Presses Universitaires de France, 2001,

traduzido em inglês; Philosophy and Revolution: From Kant to Marx, London e New York, Verso, 2003; La France en révolte. Luttes sociales et

cycles politiques, Paris, Textuel, 2007; Lenin Reloaded: Toward a Politics of Truth (co-editado com Sebastian Budgen e Slavoj Zizek),

Durham, Duke University Press, 2007, traduzido em alemão, italiano, espanhol e turco; Y a-t-il une vie après le capitalisme?

(contribuição em livro coletivo), Paris, Le Temps des cerises, 2008; Crisis in the Eurozone (editado com Costas Lapavitsas),

London, Verso, 2012. Tradução de Ângelo Novo.

______________

NOTAS: 

(1) [Nota do Editor] 20 de fevereiro de 2015.

(2) [Nota do Autor, posterior ao texto] A lista de “reformas” enviada por Yanis Varoufakis a 25 de fevereiro aos seus

homólogos completou o quadro: o governo grego compromete-se a proseguir as privatizações, a introduzir “fle-

xissegurança” num mercado de trabalho já desregulado e a tentar melhorar a qualidade dos serviços públicos com

uma despesa absolutamente constante. Os compromissos eleitorais do Syriza parecem bem longe…

(3) [Nota do Editor] Grexit é um acrónimo anglo-saxónico (Greek Exit) inventado por analistas financeiros do Citi-

group em 2012 e muito usado na grande imprensa para significar uma saída forçada da Grécia da Zona Euro.

Para derrotar a austeridade, a Grécia deve-se libertar do euro 

COSTAS LAPAVITSAS (*)

 

O acordo assinado entre a Grécia e a União Europeia, depois de três semanas de negocia-ções animadas, é um compromisso alcançado sob coação econômica. Seu único mérito para a Grécia é que ele manteve o governo Syriza vivo e capaz de lutar num outro dia. Esse dia não está muito longe. A Grécia terá de negociar um acordo de financiamento de longo prazo, em junho, e tem pagamentos da dívida substanciais para fazer em julho e agosto. Nos próximos quatro meses, o governo terá que montar a sua estratégia para abordar esses obstáculos e implementar seu programa radical. A esquerda europeia tem muito em jogo no sucesso dos gregos, se pretender efetivamente derrotar as forças de austeridade que estão a estrangular o continente.

Em fevereiro, a equipe de negociação grega caiu numa armadilha dividida em duas partes. A primeira foi a dependência dos bancos gregos em relação ao Banco Central Europeu para a sua liquidez, sem a qual teriam de parar de funcionar. Mario Draghi, presidente do Banco Cen-tral Europeu, aumentou a pressão, apertando os termos de provisão de liquidez. Preocupa-dos com a evolução, os depositantes retiraram fundos; para o fim das negociações, os bancos

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gregos estavam perdendo mil milhões de euros de liquidez por dia.

A segunda foi a necessidade premente do Estado grego de dinheiro para pagamento de dív-idas e de salários. Enquanto as negociações prosseguiam, os fundos se tornaram mais exi-gentes. A União Europeia, liderada pela Alemanha, esperou cinicamente até que a pressão sobre os bancos gregos tivesse atingido o seu auge. Na noite de sexta-feira, 20 de fevereiro, o governo do Syriza teve que aceitar um acordo ou enfrentar condições financeiras caóticas na semana seguinte, para as quais não estava preparado de todo.

O acordo resultante prolongou o contrato de empréstimo, dando à Grécia quatro meses de financiamento garantido, sujeito a revisões periódicas pelas “instituições”, ou seja, a Comissão Europeia, o BCE e o FMI. O país foi forçado a declarar que irá satisfazer todas as obrigações para com os seus credores “plena e tempestivamente”.

Além disso, terá como objectivo atingir superávites primários “apropriados”; desistir de ações unilaterais que iriam “impactar negativamente nas metas fiscais”; e empreender “reformas” que vão contra as promessas do Syriza de baixar os impostos, aumentar o salário mínimo, reverter privatizações e aliviar a crise humanitária.

Em suma, o governo Syriza pagou um preço bem alto para permanecer vivo. As coisas vão se tornar ainda mais difíceis dado o estado precário da economia grega. O crescimento em 2014 foi um mísero 0,7%, enquanto o PIB realmente se contraíu durante o último trimestre. A produção industrial caiu ainda mais 3,8% em dezembro, e até mesmo as vendas a retalho caíram 3,7%, apesar do Natal. A indicação mais preocupante, porém, é a queda nos preços de 2,8% em janeiro. Esta é uma economia em plena espiral deflacionária, com pouca ou nenhuma energia restante. Neste contexto, insistir na austeridade e em saldos primários é uma loucura vingativa.

Os próximos quatro meses serão um período de luta constante para o Syriza. Há poucas dúvi-das de que o governo terá de enfrentar grandes dificuldades em passar a avaliação de abril conduzida pelas “instituições” para garantir a libertação de fundos tão necessários. Na ver-dade, tão grave é a situação fiscal que os eventos podem descarrilar ainda mais depressa. O imposto de renda está em colapso, em parte porque a economia está congelada e em parte porque as pessoas estão retendo o pagamento na expectativa de um alívio da carga fiscal extraordinária imposta ao longo dos últimos anos. O erário público conhecerá uma pressão considerável já em março, quando há vultuosos pagamento da dívida a serem feitos.

Mas, mesmo supondo que o governo navega com sucesso por estes estreitos, em junho a Gré-cia vai ter de voltar a entrar em negociações com a UE para um acordo de financiamento de longo prazo. A armadilha de fevereiro ainda está muito lá, e pronta para ser usada novamente.

O que devemos nós fazer, entanto partido Syriza, e como poderia a esquerda em toda a Eu-ropa ajudar? O passo mais importante é perceber que a estratégia de esperar para conseguir uma mudança radical no quadro institucional da moeda comum chegou ao fim. A estratégia deu-nos um sucesso eleitoral, com a promessa de libertar o povo grego da austeridade sem ter de suportar um grande desentendimento com a Zona Euro. Infelizmente, os eventos têm

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mostrado fora de qualquer dúvida que isso é impossível. É tempo que reconhecemos a reali-dade.

Para que o Syriza possa evitar o colapso ou a rendição total, temos de ser verdadeiramente rad-icais. A nossa força reside exclusivamente no enorme apoio popular de que ainda continuamos a desfrutar. O governo deve implementar rapidamente medidas que aliviem os trabalhadores das tremendas pressões que têm sofrido nos últimos anos: proibir despejos de casas, amortizar a dívida interna, reconectar famílias à rede de eletricidade, aumentar o salário mínimo, parar as privatizações. Este é o programa com que fomos eleitos. As metas fiscais e o acompanhamento por parte das “instituições” devem ocupar o lugar de trás em nossos cálculos, se quisermos manter o nosso apoio popular.

Ao mesmo tempo, o nosso governo deve abordar as negociações iminentes de junho, com um quadro de espírito muito diferente do que mostrou em fevereiro. A Zona Euro não pode ser reformada e não irá tornar-se uma união monetária “amigável” que apoia os trabalhadores. A Grécia deve trazer uma gama completa de opções para a mesa, e deve estar preparada para medidas de liquidez extraordinárias, sabendo que todas as eventualidades podem ser geren-ciados, se o nosso povo estiver pronto. Afinal, a UE já trouxe o desastre para o país.

O Syriza poderia ganhar socorro da esquerda europeia, mas apenas se a esquerda sacudir as suas próprias ilusões e começar a propor políticas sensatas que possam finalmente livrar a Europa do absurdo em que a moeda comum se tornou. Poderia, então, haver uma hipótese de levantar em devido curso a austeridade por todo o continente. O tempo é realmente muito curto, para todos nós.

 

(*) Costas Lapavitsas (n. 1961) graduou-se na London School of Economics e doutorou-se no Birkbeck College da Universi-

dade de Londres nos anos 1980. Desde 1999 é professor no Departamento de Economia da School of Oriental and African

Studies (SOAS) em Londres. As suas áreas privelegiadas de investigação são a estrutura dos  sistemas financeiros e

as relações entre a Finança e o Desenvolvimento. Recentemente começou a trabalhar na interação entre relações

mercantis e não-mercantis no sistema financeiro. Entre as suas obras publicadas em livro contam-se: Political Economy

of Money and Finance, Macmillan (London-Basingstoke), 1999; (com Ben Fine e Jonathan Pincus, eds.) Development policy in the

21st century: beyond the post-Washington consensus, London, Routledge, 2001; Social Foundations of Markets, Money and Credit, London, Rout-

ledge, 2003; Profiting Without Producing: How Finance Exploits Us All, London, Verso, 2013. Em 2007 fundou Research on Money

and Finance , uma rede internacional de economistas políticos marxistas que se dedica ao estudo do dinheiro, da

finança e da evolução do capitalismo contemporâneo. É habitual colunista no jornal The Guardian. Nas últimas eleições

foi eleito deputado ao Parlamento grego pelo Syriza. Tradução de Ângelo Novo.

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A Dívida Pública Portuguesa. O Manifesto dos 74 e as propostas

europeias para a reestruturação

ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS

 

“Mas haverá União Económica e Monetária que possa singrar indefinidamente, imune a tantas dinâmicas de fragmentação e desunião?” (João Cravinho)

“Vocês não podem continuar a financiar [as emissões de dívida pública portuguesa]. O risco é afundarem-se os bancos, a parte sã, e a República, que é a parte que criou o problema” (Carlos Costa)

Eis um livro de leitura imprescindível a exigir urgente debate político. A sordidez do caso BES e as suas previsíveis repercussões na vida económica, social, financeira e política portuguesa tornam esse debate inadiável. A importância do tema é, aliás, reforçada pelo facto de, quase em simultâneo, ter sido divulgado na internet (com apresentação pública no IDEFF) um outro estudo sobre o tema, o de Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos, com o título Um programa sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa, também ele a merecer discussão aberta e sem tabus.

Como é sabido, João Cravinho foi um dos principais mentores do Manifesto dos 74 (publicado como anexo ao livro agora editado) onde um grupo progressivamente alargado de cidadãos de várias tendências políticas e com percursos cívicos e profissionais muito distintos defendia a necessidade de se preparar a reestruturação da dívida para que o país pudesse crescer sustentadamente (1). O Manifesto foi recebido com grande hostilidade por parte do poder político e da imprensa apaniguada sempre pronta a tecer loas à bondade, inevitabilidade e eficácia do caminho austeritário trilhado. Alguns criticaram a sua saída extemporânea e inoportuna, forma fácil de se esquivarem ao confronto democrático. Outros procuraram mesmo deturpá-lo, de forma acintosa, fazendo-o dizer aquilo que ele não diz: reestruturar seria pedir um perdão da dívida.

Documentos

RECENSÃO DO LIVRO DE JOÃO CRAVINHO, LUA DE PAPEL, 2014

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DOCUMENTOS

Neste livro, Cravinho, num desafiante ensaio de cerca de oitenta páginas (“É imperioso reestruturar a dívida: contributos para um debate”), desenvolve, em linguagem acessível a um público não especialista, o seu próprio pensamento sobre o tema. Para além disso, colige no livro três importantes contributos para a discussão pública: o de James K. Galbraith, Stuart Holland e Yanis Varoufakis, intitulado Proposta modesta para resolver a crise do euro, o de Pierre Paris e Charles Wyplosz, conhecido por relatório PADRE – Reestruturação da dívida politicamente aceitável na zona euro e uma parte substancial de um relatório dum grupo de peritos da União Europeia (entre os quais, Vítor Bento) relativo à criação de um Fundo para a Amortização da Dívida e Eurobills.

Nesta recensão, apenas se enunciam as linhas gerais do ensaio de João Cravinho, procurando-se mostrar o porquê do autor ter prestado um relevante serviço público ao país.

O ponto de partida (implícito) é o da continuidade do euro e da aposta na permanência de Portugal na área do euro, questões que, sendo controversas entre nós e em diversos Estados-membros da União Europeia, têm sido, em regra, discutidas em termos mais emocionais que racionais. Na inexistência de referendo sobre o tema, na ausência de séria discussão e de qualquer consulta sobre o muito dificilmente exequível Tratado Orçamental, uma construção jurídica paralela (se não à margem dos Tratados da União Europeia), existem apenas alguns indícios indiretos, ainda que relevantes (posições dos partidos dominantes, alguns inquéritos), que apontam que, mau grado o manifesto desgaste do projeto europeu e progressivo desapego de muitos portugueses em relação ao euro, a maioria será ainda favorável à moeda única e à permanência de Portugal na área do euro.

Esta permanência, porém, implica exigências jurídicas e de consolidação orçamental inerentes a uma arquitetura institucional decorrente dos Tratados e de um complexo direito derivado que, se necessário fosse, a crise veio revelar, como de há muito, alguns têm vindo a assinalar, ser inadequada, desde logo por ser vulnerável à eclosão de choques assimétricos. A isto acresce a insensata política de austeridade que põe em causa a sustentabilidade de um projeto europeu decente, transformando, com cumplicidades internas notórias, muitos dos Estados membros em Estados satélites de um projeto de dominação da direita germânica.

Neste contexto, a manutenção de Portugal no euro, cumprindo os critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental e, simultaneamente, satisfazendo, no essencial, os compromissos derivados da dívida pública, sem pôr em causa o desenvolvimento económico e sem criar maior degradação do clima social e político (condições necessárias, mas não suficientes, para a satisfação daqueles compromissos) é um hercúleo desafio que espera o “pós-passismo”. Neste estreito “buraco da agulha”, a busca de uma saída da crise com permanência no euro tem de basear-se numa estratégia política e social suficientemente abrangente, na denúncia que a prossecução das políticas de austeridade não é nem solução nem alternativa para o futuro e, consequentemente, na procura de soluções económicas, jurídicas, financeiras, sociais que, possam ou não exigir ajustamentos institucionais, se mostrem operacionais e aceitáveis aos olhos dos portugueses e da comunidade internacional. Este o

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contexto que torna a leitura do livro imprescindível.

Cravinho assume um ponto de partida hoje praticamente inquestionável para quem não assuma a postura da avestruz. Assente a poeira ideológica (a mistificação, o engodo) com que os austeritários nos tentaram fazer crer que a crise era sobretudo uma crise das dívidas públicas e da “ganância” e “impaciência” dos cidadãos que tudo faziam para viverem acima das suas possibilidades, hoje é claro que a “brutal imposição da austeridade a qualquer custo insere-se, em primeiro lugar, e acima de tudo, na finalidade de salvar os bancos e o sistema bancário” (p. 15). Ou melhor, citando Mark Blyth, “a austeridade não é apenas o preço da salvação dos bancos. É o preço que os bancos querem que alguém pague.” O erário público e não os gestores, acionistas e credores arcaram assim com preço da recapitalização e dos auxílios públicos à banca. Entre nós, a investigação jornalística de Paulo Pena (Jogos de Poder, A Esfera dos Livros, 2014) demonstra bem como os bancos portugueses criaram a dívida que os nossos contribuintes, uns mais que outros, têm vindo a pagar com o “colossal” aumento de impostos e de tributos parafiscais de que foram alvo. O caso BES só vem dolorosamente confirmar este facto.

Mas a estratégia do capital financeiro e da política neoliberal não se quedou por aqui. Com a preciosa ajuda dos eurocratas, havia que aproveitar a oportunidade dada pela crise (rebatizada como crise das dívidas soberanas) não só para culpar os países do Sul (a Schuld dos PIIGS), salvaguardando os interesses dos países do Norte, como sobretudo para pôr em causa nos países do Sul o contrato social ou o compromisso histórico em que assenta o Estado Social, “sem a maçada de tentar ganhar mandato democrático” específico para tal programa político (p. 19). Assim, a atual estratégia europeia tem por consequência fatal “subordinar a democracia nos Estados-Membros aos ultimatos ideológicos de instituições supranacionais” (p. 27). E – acrescentaria – a ultimatos descarados dos nossos banqueiros “anarquistas”.

Cravinho empenha-se a seguir em demonstrar que, apesar de a dívida pública portuguesa ter algumas caraterísticas específicas (uma dívida que sempre exigiria estratégias de rigor orçamental, não confundíveis com políticas de austeridade, mas cuja explosão foi muito mais acentuada no período de 2007 a 2013 e particularmente agravada pelas políticas impostas sob a égide da troika) e de Portugal ter problemas importantes que não foram resolvidos (nomeadamente, problemas de desperdícios, corrupção, gastos excessivos, captura do Estado pela “partidarite” e pelos grandes interesses), o acréscimo do rácio da dívida pública (em grande parte justificável pelo baixo nível de desenvolvimento anterior ao 25 de Abril) foi, no período de 1980 a 2007, de 73%, inferior pois ao da Alemanha (81%) e da França (88%). No essencial, o crescimento explosivo da dívida no período posterior a 2009 deveu-se sobretudo, em Portugal e em outros Estados, europeus ou não, à crise (financeira) internacional, a impasses de decisão no plano europeu, à inação da União Europeia apanhada de surpresa com a dimensão e profundidade da crise e, the last but not the least, às desastrosas políticas de combate à crise.

Partindo de um trabalho estatístico de Paolo Moro et al. (de 2013), o autor mostra-nos que o pico da dívida pública portuguesa ocasionada pela I Guerra Mundial não voltou a ter idêntica

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expressão até à recente crise. Mostra-nos ainda que o saldo primário necessário para estabilizar a dívida pública é de tal ordem que ninguém pode ficar tranquilo para, em seguida, demonstrar que a via (quase única) seguida na zona euro e mais agudamente entre nós, para reduzir a dívida pública excessiva, a da austeridade pura e dura, é contrária às lições da História. Esta via rejeita qualquer tipo de reestruturação de dívida (com a exceção do caso da Grécia) com base na ideia (historicamente falsa, como se existisse uma “amnésia coletiva”) que as reestruturações seriam pensáveis em países subdesenvolvidos ou emergentes, mas não na Europa. As expectativas dos credores assim o exigiriam, mesmo que daí resultasse, como aliás – acrescento – o reconheceu o próprio Presidente da República, uma “forte austeridade prolongada nos próximos 20 anos” (p. 41). Daí adviria uma crescente instabilidade política, social e económica, uma compressão ou violação de direitos humanos fundamentais, um cerceamento do crescimento e do emprego, um aumento das desigualdades, muito dificilmente compatíveis com regimes e sociedades democráticas.

Outros caminhos devem ser trilhados, a exemplo do que ocorreu no passado e, desde logo, com a dívida alemã. A crise da dívida decorrente da I Guerra Mundial resolveu-se pelo incumprimento parcial das dívidas de guerra aos Estados Unidos; a crise da dívida contraída por causa da II Guerra Mundial, em especial até meados da década de cinquenta, foi resolvida por força da intervenção ou regulação pública (a impropriamente chamada “repressão financeira”) com vista a reduzir as taxas de juro nominais e a inflação; as crises nacionais ocorridas na Europa até à década de oitenta do século passado foram solucionadas por “um misto de crescimento, inflação moderada e rigor orçamental” (p. 45). Pela primeira vez, há uma crise financeira e económica que originou uma crise de “dívidas soberanas” cuja resolução é quase exclusivamente procurada mediante a imposição da austeridade a todo o custo.

A situação é tanto mais grave quanto nos próximos anos (de grande incerteza política internacional) nos aguarda – tudo o indica – uma época de baixo crescimento,  de provável elevação, a médio prazo, das taxas de juro e de baixa inflação com ameaças sérias de deflação. E, acrescente-se, de muito prováveis novas crises financeiras. É este contexto que torna mais premente uma estratégia de reestruturação da dívida, não apenas a portuguesa, sem a qual o crescimento económico será uma miragem, pois está bloqueado pelos níveis anuais de encargos com o serviço e a amortização de uma dívida que continua a crescer e que, em Portugal, se aproxima perigosamente dos 140% do PIB. Os próprios técnicos do FMI alertam, em vários estudos, para estes perigos.

Entre nós, erros sistemáticos das previsões oficiais dos saldos orçamentais primários e das taxas de crescimento, previsões otimisticamente inflacionadas para cumprir as metas programadas, retiram credibilidade à “estratégia oficial” (uma estratégia, diria, que evoca uma conhecida expressão do anedotário português: “nós fingimos que cumprimos, vocês fingem que acreditam”). O irrealismo dos pressupostos da estratégia de redução do peso da dívida levada a cabo pelo Governo e pela troika é sublinhado pelos próprios técnicos do FMI que alertam para os seus riscos e fragilidades. Cravinho é claro quanto às suas conclusões: “a Comissão Europeia, o BCE e até a Alemanha sabem bem que, tarde ou cedo, terão de enfrentar

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o problema (da dívida portuguesa). Mas ainda julgam saber que quanto mais tarde melhor. Isto é, quanto mais tarde e mais prolongada for a dose de austeridade que pudermos sofrer sem real revolta, melhor será para a Europa germânica”.

É por tudo isto que é urgente uma mudança de políticas. O Manifesto dos 74 e os vários estudos contidos neste livro, entre outros, mostram que há alternativas nos planos europeu e nacional, que, não sendo fáceis (bem pelo contrário), são urgentes, caso se pretenda defender o euro e a permanência de Portugal na área do euro.

Da leitura deste ensaio e dos restantes documentos em anexo podemos retirar uma conclusão: o caminho até hoje seguido, misto de irrealismo, voluntarismo ideológico e subserviência, não é solução: conduz-nos rapidamente para uma integração num espaço de subdesenvolvimento sem horizontes que o novo muro de Berlim vem criando entre Norte e Sul, entre centro e periferia. Na atual situação e na ausência de uma reestruturação da dívida, cresce, a passos largos, a probabilidade de uma saída controlada ou de uma exclusão forçada, temporária ou não, de Portugal (e não só) do euro, com consequências imprevisíveis para a zona euro e para a própria União Europeia.

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DOCUMENTOS

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1. Desemprego: o que mudou nos números e nas estatísticas oficiais?

Na evolução recente dos números do desemprego, há dois efeitos estatísticos relevantes, que condicionam de

modo muito significativo os cálculos da Taxa de Desemprego. Trata-se, por um lado, da divergência súbita, e

cada vez mais acentuada, entre o número de desempregados apurado pelo INE e o número de pedidos de

emprego contabilizado pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP).i Quebrando o paralelismo que

se registava entre os dois indicadores, este hiato iniciou-se em 2013 (Gráfico 1), ou seja, num momento

posterior ao ano (2011) em que o INE procedeu a uma alteração dos critérios que balizam as situações de

desemprego.ii E trata-se, por outro lado, dos níveis incomparavelmente elevados a que chega o número de

desempregados ocupados em cursos de formação profissional e em programas de emprego (Gráfico 2).

Gráfico 1

Evolução do número de Pedidos de Emprego e do número de Desempregados

Fonte: IEFP e INE (dados por trimestre).

No Boletim Económico de dezembro passado, o Banco de Portugaliii já tinha sublinhado este último aspeto: os

indivíduos que frequentam estágios profissionais e que “são classificados como empregados para efeitos do

regime contributivo da Segurança Social e também (…) como empregados para efeitos de resposta ao Inquérito

ao Emprego” constituem, em termos estatísticos, desempregados que “saíram” do universo do desemprego.

Não sendo um dado novo – este critério de contabilização não é recente – o que se torna relevante é o facto

de o contingente de desempregados ocupados ter atingido níveis absolutamente inéditos na história recente do

mercado de trabalho português. Sublinhe-se aliás que, na actual conjuntura, se trata de um conjunto relevante de

situações de preenchimento de postos efetivos de trabalho (no Estado e em IPSS, por exemplo) pela adesão a

programas de estágio temporário de desempregados (obrigatórios para muitos beneficiários de prestações de

i Entre outros aspectos, o conceito de pedidos de emprego (IEFP) diferencia-se do conceito de desempregados (INE) pelo

facto de contemplar um espectro de situações de desemprego mais amplo (e nesse sentido mais “realista”), que inclui não

só os desempregados, mas também as pessoas que, mesmo tendo emprego, pedem aos serviços dos centros de emprego

para lhes arranjar outro emprego, os desempregados ocupados e os indisponíveis temporariamente (desempregados ou

empregados que não reúnem condições imediatas para o trabalho por motivos de doença). ii A nota do INE identifica as principais alterações: 1) os familiares não remunerados deixaram de ser considerados

necessariamente empregados; 2) “”as pessoas a frequentar Planos Ocupacionais de Emprego, promovidos pelo IEFP não

eram consideradas necessariamente empregados no questionário anterior, mas passaram a ser no questionário atual”“; 3)

as pessoas ausentes do trabalho por mais de três meses eram consideradas empregados no questionário anterior se

recebessem remuneração, mas no atual só o são se receberem pelo menos metade da sua remuneração normal; 4) o

subemprego visível passou a considerar tanto as horas trabalhadas na atividade principal como na secundária e introduziu-se

um critério de disponibilidade para começar a trabalhar as horas adicionais pretendidas, ou seja, reduzindo potencialmente

o subemprego visível; 5) a procura de emprego por parte dos não empregados é limitada a quem tenha entre 15 e 74 anos,

quando antes era com mais de 15 anos, ou seja, limitando o conceito de desemprego.

(http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_estudos&ESTUDOSest_boui=221718931&ESTUDOStema=55574&E

STUDOSmodo=2). iii https://www.bportugal.pt/pt-PT/EstudosEconomicos/Publicacoes/BoletimEconomico/Publicacoes/Bol_Econ_dezembro_p.pdf.

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3

desemprego), segundo um modelo que não só quebra a noção de seguro social

inerente ao próprio subsídio de desemprego, como subverte o mercado de

trabalho, ao gerar dependência – por parte das entidades “empregadoras” – destas

formas de trabalho temporário e subsidiado.

De facto, seja em valores absolutos, seja no peso relativo que os desempregados

ocupados assumem no número total de desempregados do IEFP, a situação não

encontra qualquer paralelo em anos anteriores a 2012. Até esta data, nunca o

número de desempregados ocupados ultrapassou a barreira dos 40 mil, situando-se

a média entre 2002 e 2011 em 24 mil desempregados. Após 2012 – e até ao final

de 2014 – a média trimestral passou a situar-se nos 117 mil, tendo mesmo atingido,

no final de 2014, um total de 171 mil desempregados. Até ao início do processo de

“ajustamento”, o número de desempregados ocupados nunca foi além dos 7% do

total de desempregados. Mas em apenas três anos passou a situar-se em 30%.

Gráfico 2

Evolução do número de desempregados ocupados

Fonte: IEFP (dados por trimestre).

Que impactos têm estes dois fatores, de natureza estatística, na evolução da Taxa

de Desemprego? Que valores de Taxa de Desemprego se obteriam, caso fosse

adotado o número de “Pedidos de Emprego” do IEFP como referência para os

cálculos (anulando portanto as alterações ocorridas no Inquérito do INE) ou caso

os “desempregados ocupados” fossem contabilizados no universo dos

desempregados?

O Quadro 1 procura dar resposta a estas questões, permitindo desde logo retirar

duas conclusões: o nível de desemprego alcançado no final de 2014 seria superior

ao oficialmente registado (entre 3 e 6 pontos percentuais); e o desemprego não

teria revelado a trajetória descendente que os números oficiais sugerem. Isto é,

não teria diminuído cerca de 3,3 pontos percentuais entre o final de 2012 e o final

de 2014 (dos 16,8% para os 13,5% oficiais), tendo antes estabilizado nos 16% a 17%

(quando se consideram os “Pedidos de Emprego” ou os “Desempregados

Ocupados”). E teria mesmo, neste período, aumentado de 17,8 para 19,7%, se o

apuramento fosse feito a partir do número de “Pedidos de Emprego”.

Acresce a este fator de subavaliação do desemprego “oficial”, a elevada

possibilidade de a amostra dos desempregados usada para a estimativa do INE

Inativo

Indivíduo que,

independentemente da sua

idade, no período de

referência não podia ser

considerado

economicamente ativo, isto

é, não estava desempregado

nem desempregado.

Pedidos de Emprego

Total de pessoas com idade

igual ou superior a 16 anos

(salvaguardadas as reservas

previstas na Lei), inscritas

nos Centros de Emprego

para obter um emprego por

conta de outrem. Inclui os

desempregados (que nunca

trabalharam ou que já

trabalharam), empregados

que têm um emprego e

pretendem mudar,

desempregados ocupados e

os indisponíveis

temporariamente

(desempregados ou

empregados que não

reúnem condições imediatas

para o trabalho por motivos

de doença).

Subemprego

Conjunto de trabalhadores

a tempo parcial com idade

entre 15 e 74 anos que, no

período de referência

declararam pretender

trabalhar mais horas do que

as que habitualmente

trabalhavam.

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4

estar mal calibrada. Essa possibilidade é patente no facto de o universo dos desempregados subsidiados

estimados pelo INE deferir em cerca de 100 mil pessoas do valor exaustivo e administrativamente apurado pelo

IEFP, quando os dois valores se deveriam aproximar. De qualquer forma, os valores de todos estes indicadores

atenuam-se desde o segundo semestre de 2013. Será mesmo assim?

Quadro 1

Taxa de Desemprego “Oficial” e Taxas de Desemprego calculadas a partir do número de “Pedidos de

Emprego” e da contabilização de “Desempregados Ocupados”

J 2011 D 2011 J 2012 D 2012 J 2013 D 2013 J 2014 D 2014

Taxa Desemprego «Oficial» 12,1% 13,9% 14,9% 16,8% 16,4% 15,3% 13,9% 13,5%

Taxa Desemprego «PdE» [a] 11,2% 13,3% 14,6% 16,3% 16,7% 17,4% 16,6% 16,4%

Taxa Desemprego «DO» [b] 12,5% 14,6% 16,2% 18,4% 18,5% 18,0% 17,2% 16,7%

[a] Taxa de Desemprego calculada a partir do número de “Pedidos de Emprego” registados pelo IEFP.

[b] Taxa de Desemprego calculada pela soma dos “Desempregados Ocupados” (IEFP) aos valores oficiais de desemprego.

Fonte: IEFP e INE (dados por semestre).

2. O que significa hoje o fenómeno do desemprego?

O prolongamento e aprofundamento da crise ao longo de vários anos, que acarretou uma subida histórica do

desemprego, introduziu uma nova situação na própria quantificação do fenómeno que os critérios oficiais,

harmonizados pelos conceitos do Eurostat, não acompanham devidamente. Essa dimensão do desemprego

obriga a ter em conta realidades do mercado de trabalho situadas para lá do número oficial de

desempregados, como é o caso dos desempregados ocupados, dos inativos desencorajados (que estando

ou não disponíveis para trabalhar, se encontram efetivamente desempregados, apesar de não serem

contabilizados enquanto tal), dos ativos migrantes, que traduzem os impactos acumulados da emigração e a

redução da imigração no mercado de trabalho português, e, ainda, o subemprego.

A estimativa dos inativos desencorajados resulta da soma de duas séries estatísticas apuradas pelo INE,

mutuamente exclusivas entre si: a que respeita à “população inativa à procura de emprego mas não disponível”iv e a

que se refere à “população inativa disponível mas que não procura emprego”.v

Na estimativa de ativos migrantes, pressupõe-se que o aumento da emigração e a redução do saldo (entradas e

saídas) de cidadãos estrangeiros em idade ativa (imigrantes) se traduz, por um lado, numa diminuição acumulada

de população ativa (que o próprio saldo migratório reflete) e, por outro lado, numa aparente diminuição do

desemprego (já que estes ativos deixam de contar tanto para efeitos de desemprego efetivo como de

desemprego desencorajado).vi Em termos globais, o apuramento do Desemprego “Real” encontra-se refletido

no Quadro 2.

A primeira conclusão a retirar é a da existência de uma divergência crescente entre o Desemprego “Oficial” e o

Desemprego “Real”. Se no primeiro trimestre de 2011 este diferencial se situava em cerca de quatro pontos

percentuais, em 2013 passa para oito pontos percentuais e atinge os onze pontos percentuais no final de 2014. E

se, às estimativas de Desemprego “Real”, juntarmos ainda o subemprego, essa diferença passa de sete pontos

percentuais em 2011 para treze pontos percentuais em 2013, atingindo um valor de dezasseis pontos

percentuais no final de 2014.

iv Corresponde, de acordo com o INE, à situação de “inativo com idade dos 15 aos 74 anos que, no período de referência, tinha

procurado ativamente um emprego ao longo de um período especificado (período de referência ou nas três semanas anteriores), mas

não estava disponível para trabalhar”. v Corresponde, segundo o INE, à situação de “inativo com idade dos 15 aos 74 anos que, no período de referência, estava

disponível para trabalhar, mas não tinha procurado um emprego ao longo de um período especificado (período de referência ou nas

três semanas anteriores”. vi Nos cálculos efetuados, consideram-se os valores oficiais (INE) da emigração e imigração ajustados à população ativa, e

admite-se que, caso não tivessem emigrado, um em cada cinco ativos teria encontrado emprego em Portugal, seguindo

assim de perto o peso percentual de desempregados que regressaram ao mercado de trabalho (18%).

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A segunda conclusão é a de que é mais realista falar-se hoje, não de uma diminuição, mas de uma estabilização do

desemprego em patamares próximos do nível alcançado em 2013. Ou seja, entre 29 a 30% da população ativa. E

que, pela primeira vez desde sempre, a dimensão do “desemprego oculto” ultrapassa o desemprego oficial

(Gráfico 3).

Quadro 2

Comparação entre o Desemprego “Oficial” e estimativa de Desemprego “Real”

J 2011 D 2011 J 2012 D 2012 J 2013 D 2013 J 2014 D 2014

Desempregados (INE) 658 700 746 200 803 300 896 000 866 300 808 000 728 900 698 300

Desempregados Ocupados (IEFP) 26 046 40 664 75 121 82 679 114 809 143 853 171 145 143 853

Inactivos Desencorajados (INE) 175 300 227 600 251 800 273 900 304 100 297 500 285 000 282 300

Activos migrantes (INE) 26 864 53 729 94 316 134 904 176 477 218 050 259 622 301 195

Subemprego (INE) 207 100 230 200 257 600 254 500 266 500 259 100 252 200 251 700

Desemprego Oficial [a] 658 700 746 200 803 300 896 000 866 300 808 000 728 900 698 300

Desemprego «Real» [b] 886 910 1 068 193 1 224 537 1 387 483 1 461 686 1 467 403 1 444 667 1 425 648

Desemprego Real + Subemprego [c] 1 094 010 1 298 393 1 482 137 1 641 983 1 728 186 1 726 503 1 696 867 1 677 348

Desemprego oculto [c-a]/[c] 39,8% 42,5% 45,8% 45,4% 49,9% 53,2% 57,0% 58,4%

População Activa [d] 5 458 100 5 378 700 5 406 000 5 333 100 5 290 900 5 276 800 5 243 500 5 189 800

Pop.Activa (sentido amplo) (*) [e] 5 660 264 5 660 029 5 752 116 5 741 904 5 771 477 5 792 350 5 788 122 5 773 295

Desemprego «Oficial» [a/d] 12,1% 13,9% 14,9% 16,8% 16,4% 15,3% 13,9% 13,5%

Desemprego «Real» [b/e] 15,7% 18,9% 21,3% 24,2% 25,3% 25,3% 25,0% 24,7%

Des. «Real»+Subemprego [c/e] 19,3% 22,9% 25,8% 28,6% 29,9% 29,8% 29,3% 29,1%

(*) A população ativa em sentido amplo resulta da soma, ao valor oficial, dos inativos desencorajados e os ativos migrantes.

Fonte: IEFP e INE (dados por semestre).

Gráfico 3

Desemprego “Oficial” e estimativa de Desemprego “Real”

Fonte: IEFP e INE (dados por trimestre).

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De facto, se no final do primeiro semestre de 2011 os desempregados ocupados, os inativos desencorajados e

os ativos migrantes representavam, globalmente, cerca de 25% da estimativa de Desemprego “Real”, já em 2013

passaram a significar 37% do desempregado “Real” e, no final de 2014, representavam já mais de metade do

Desemprego “Real” (51%). Caso se considerasse o subemprego, o desemprego “oculto” assumiria um papel

ainda mais importante (58% do Desemprego “Real”). Ou seja, a descida gradual no número oficial de

desempregados, visível a partir de 2013, foi sendo contrariada pelo aumento do número de desempregados não

reconhecido pelas estatísticas (Gráfico 4). Esse aspeto é precisamente reportado na primeira avaliação do Fundo

Monetário Internacional (FMI) após o período de ajustamento, de janeiro passado, ao referir que “no caso de

Portugal, uma medida mais alargada do desemprego que acrescenta os trabalhadores desencorajados – que

aumentaram significativamente durante a crise – do desemprego oficial e à força de trabalho (...) é estimado

atingir os 20,5% quando era de 9,5% antes da crise de 2008”vii.

Gráfico 4

Evolução do Desemprego “Oficial” e do Desemprego “Oculto”

Fonte: IEFP e INE (dados por trimestre).

Por outro lado, a par da estabilização do desemprego num patamar elevado, é importante registar a sua maior

rigidez e fragilidade. Em termos de rigidez, é significativo o aumento das situações de desemprego com duração

superior a dois anos face ao total do desemprego “oficial” – entre o primeiro semestre de 2011 e o final de

2014, subiu em cerca de quinze pontos percentuais do total de desempregados “oficiais”. Bem como, em termos

de fragilidade, dado que o aumento relevante do peso relativo dos desempregados sem acesso a qualquer

prestação de desemprego (subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego, inicial ou subsequente) –

no desemprego em sentido amplo – passou de cerca de 74 para 82% (Quadro 3).

Quadro 3

Desempregados sem acesso a prestações de desemprego e Desemprego de Longa Duração (em

situação de desemprego há mais de dois anos)

J 2011 D 2011 J 2012 D 2012 J 2013 D 2013 J 2014 D 2014

Sem subsídio de desemprego [a] 73,9% 75,7% 76,0% 75,7% 77,3% 78,3% 80,7% 81,8%

De longa duração (> de dois anos) [b] 33,5% 32,5% 34,1% 36,1% 37,7% 41,4% 43,9% 48,1%

[a] Percentagem de desempregados sem acesso a nenhuma prestação de desemprego face ao valor de desemprego amplo (número

oficial de desempregados, desempregados ocupados, inativos desencorajados e ativos migrantes).

[b] Percentagem de desempregados de longa duração (há mais de dois anos), face ao número oficial de desempregados.

Fonte: IEFP, INE e Direcção Geral da Segurança Social (dados por semestre).

vii http://www.imf.org/external/pubs/ft/scr/2015/cr1521.pdf.

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O impacto do “ajustamento” no desemprego traduz-se, pois, em três tendências essenciais que têm vindo a

reforçar-se. Por um lado, a tendência para a sua estabilização – e não a sua diminuição – em patamares muito

elevados. Por outro, o aumento do peso relativo das situações de desemprego que traduzem uma crescente

dificuldade de regresso ao mercado de trabalho (longa duração, ativos desencorajados, emigração). E, por

último, um desemprego cada vez mais fragilizado, na perspetiva dos subsídios e apoios públicos.

3. Os níveis de criação de emprego

A par de uma estabilização do desemprego, os dados estatísticos do INE revelam um crescimento do emprego

bastante incipiente, incapaz de absorver o desemprego – mesmo o desemprego gerado apenas a partir de 2011

(Gráfico 5).

Gráfico 5

Criação semestral de postos de trabalho desde 2011 (em milhares)

Fonte: IEFP e INE.

Do primeiro semestre de 2011 ao primeiro semestre de 2013, foram destruídos 374,8 mil postos de trabalho.

Desde então, foram criados cerca de 67 mil postos de trabalho. Ou seja, o emprego gerado apenas recuperou

18% dos postos de trabalho destruídos durante o período de “ajustamento”.

Esta realidade não entra, ainda, em linha de conta com a qualidade do emprego existente. Como já referido, ao

longo deste período: a) tem vindo a aumentar significativamente o número de “desempregados ocupados”,

estatisticamente considerados pelo INE como empregados. Caso a amostra do INE esteja bem calibrada (ou

seja, em que os valores estimados pelo INE corresponderiam aproximadamente ao número de desempregados

ocupados do IEFP), esses “empregos” seriam responsáveis entre 60 a 66% dos postos de trabalho criados nos

últimos trimestres, o que aponta para uma criação de emprego altamente precário, sem garantia de continuidade

e apoiado com fundos públicos; b) tem vindo a crescer sensivelmente o subemprego, que abrangia cerca de

213,9 mil pessoas no 1ºtrimestre de 2011 e atingiu 251,7 mil no 4ºtrimestre de 2014.

Ora, expurgando estas realidades que empolam o emprego – e assumindo que correspondem a universos mais

próximos do desemprego – conclui-se que a recuperação do emprego neste período foi ainda mais frágil.

Descontando os desempregados ocupados, a destruição de empregos de 2011 até ao primeiro semestre de

2013 atingiu 463,6 mil postos de trabalho, que apenas teria sido compensada, depois dessa data, com a criação

de 37,9 mil. Quando se observa a evolução em termos acumulados conclui-se, por sua vez, que o período de

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“ajustamento” está longe de apresentar resultados positivos (Gráfico 6), o que é compatível com os níveis

medíocres de crescimento do PIB após anos de recessão.

Gráfico 6

Destruição acumulada de postos de trabalho desde 2011 (em milhares)

Fonte: IEFP e INE.

A incipiência da criação de postos de trabalho é visível igualmente nos fluxos de passagem de pessoas entre os

universos dos desempregados, empregados e inativos. Numa conjuntura de recuperação do emprego seria

expectável que a criação de emprego atraísse os inativos para o mercado de trabalho (tornando-os empregados

ou desempregados) e, por outro lado, que se verificasse uma contração do desemprego em proveito do

emprego. Com base na classificação feita pelos próprios inquiridos no Inquérito ao Emprego, são visíveis duas

evoluções no sentido da retoma do número de empregados: a) uma subida do número de pessoas que

declararam que há um ano estavam desempregadas e que agora estão empregadas; b) uma diminuição do

número de pessoas que, há um ano, estavam empregadas e que agora declaram estar desempregadas. Mas a

dimensão do universo de empregados que perdem o emprego é ainda bastante elevada, o que indicia que a

dinâmica de criação de desemprego continua a ser relevante; c) estas duas tendências parecem ter estabilizado,

indiciando uma fase de estagnação no mercado de trabalho (Gráfico 7).

Por último, estes fluxos parecem indiciar que o mercado de trabalho estabilizou num nível de desemprego

elevado e num baixo nível de emprego e não dá mostras de conseguir absorver a enorme massa de pessoas em

situação de desemprego. Torna-se visível que a redução do fluxo do emprego para o desemprego não se traduz

proporcionalmente num maior fluxo do desemprego para mais emprego, adensando a perspetiva de que algo de

doentio se está a verificar no mercado de trabalho. (Gráfico 8)

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Gráfico 7

Fluxos de trabalhadores desde 2011 (em milhares)

Fonte: INE (dados por trimestre).

Gráfico 8

Fluxos de pessoas desde 2011 (em milhares)

Fonte:INE (dados por trimestre).

4. Conclusões

Passados quase quatro anos de “ajustamento” económico, o mercado de trabalho em Portugal encontra-se

numa situação nunca antes vista. Se forem considerados os fluxos migratórios como sintoma doentio da terapia

aplicada, então Portugal terá gerado um contingente de pessoas atiradas para o desemprego e que atingiu os

25% da população ativa em 2014. E caso se considere aqueles que, embora não sendo desempregados, trabalham

um total de horas semanais abaixo do que gostariam de trabalhar, então esse universo sobe para os 29,1 % no

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segundo semestre de 2014. A estagnação do mercado de trabalho explica que, pela primeira vez desde

sempre, as facetas “ocultas” do desemprego ultrapassem em valor o desemprego “oficial”. A crise

profunda provocada em Portugal pelo programa de “ajustamento” não se refletiu da mesma forma nos

indicadores estatísticos “oficiais”, tendo mesmo sido fortemente atenuada ao invés da realidade.

A aplicação prolongada de medidas de austeridade, na expectativa de “ajustar” para de seguida relançar a

economia e o emprego (no pressuposto das virtualidades associadas ao modelo teórico da “austeridade

expansionista”), conduziu a um afundamento do mercado de trabalho que, face à incipiente retoma, poderá estar

a estabilizar o desemprego em valores elevados e o emprego a um nível retraído, realidades que

se refletem numa taxa de desemprego real sem precedentes.

Dada a evolução histórica de baixos níveis de crescimento económico no contexto da moeda única, é de recear

que estes valores não se atenuem fortemente, mesmo que a economia não esteja em recessão. E esta nova fase

no mercado de trabalho parece caracterizar-se por um desemprego menos apoiado e desprotegido, e por

postos de trabalho mais precários, de baixa retribuição, sem perspetivas de continuidade e insuficientes para

absorver o novo fenómeno do desemprego.

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