DUAS ABORDAGENS SOBRE A LIBERDADE: ISAIAH BERLIN EM “DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE ... · 2019. 3....
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROCRISTIANO DE OLIVEIRA GOMES
DUAS ABORDAGENS SOBRE A LIBERDADE:ISAIAH BERLIN EM “DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE” E
MIKHAIL BAKUNIN DE 1866 AO FIM DE SUA VIDA
Rio de Janeiro2019
Cris OliveiraOval
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CRISTIANO DE OLIVEIRA GOMES
DUAS ABORDAGENS SOBRE A LIBERDADE:ISAIAH BERLIN EM “DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE” E
MIKHAIL BAKUNIN DE 1866 AO FIM DE SUA VIDA
Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação Lógica eMetafísica, PPGLM, da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, como partedos requisitos necessários à obtenção deMestre em Filosofia. Orientadora: Marina Isabel Velasco
RIO DE JANEIRO 2019
Cris OliveiraOval
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CIP - Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
G633dGomes, Cristiano de Oliveira Duas abordagens sobre a liberdade: Isaiah Berlinem "Dois Conceitos de Liberdade" e Mikhail Bakuninde 1866 ao fim de sua vida / Cristiano de OliveiraGomes. -- Rio de Janeiro, 2019. 103 f.
Orientadora: Marina Isabel Velasco. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Programa de Pós-Graduação em Filosofia,2019.
1. Anarquismo. 2. Bakunin. 3. Berlin. 4.Liberalismo. 5. Liberdade. I. Velasco, MarinaIsabel, orient. II. Título.
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Agradecimento
Gostaria de agradecer à minha orientadora Marina Isabel Velasco, cujo encorajamento foi
essencial para que eu pudesse perseverar através de um período difícil e realizar este trabalho.
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(…) Gerações inteiras, nascidas e mortas na miséria, legaram esta imensa herança
ao século XIX.
Em milhares de anos, milhões de homens trabalharam em debastar florestas, sanear
pântanos, abrir estradas, erguer diques nos rios. Cada hectare do solo que se
cultiva na Europa foi regado pelo suor de diversas raças; cada estrada tem uma
história das fadigas do trabalho humano, dos sofrimentos do povo. Cada légua de
estrada de ferro, cada metro de túnel recebeu a sua parte de sangue humano. (…)
E mesmo agora, o valor de cada casa, fábrica ou armazém, é feito do trabalho
acumulado de milhões de trabalhadores sepultados sob a terra. Milhões de seres
humanos trabalharam para criar esta civilização de que hoje nos glorificamos;
outros milhões disseminados na superfície da terra trabalharam para manter.
Mesmo o pensamento, mesmo a invenção são fatos coletivos nascidos do passado e
do presente. Milhares de inventores mortos na miséria prepararam a invenção de
cada uma dessas máquinas, em que o homem admira seu gênio. Milhares de
escritores, poetas e sábios trabalharam na elaboração do conhecimento, para criar
a atmosfera do pensamento científico, sem a qual nenhuma das maravilhas do nosso
século teria aparecido. Mas todos esses sábios, poetas e filósofos, já tinha sido
suscitados pelo trabalho dos séculos anteriores; tinham sido mantidos física e
moralmente, por legiões de trabalhadores e artistas de toda espécie. (…)
Cada descoberta, cada progresso, cada aumento de riqueza da humanidade tem o
seu princípio no conjunto do trabalho manual e cerebral do passado e do presente.
Logo, com que direito poderia alguém apossar-se da menor parcela desse imenso
patrimônio e dizer: “Isto é meu, não é vosso!”
(KROPOTKIN, A Conquista do Pão, 2011, pp. 21-2)
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RESUMO
GOMES, Cristiano de Oliveira. Duas abordagens sobre a liberdade: Isaiah Berlin em“Dois Conceitos de Liberdade” e Mikhail Bakunin de 1866 ao fim de sua vida.Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) – Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019
Esta dissertação tem por objetivo analisar as conceitualizações da liberdade conformeapresentadas por Isaiah Berlin em "Dois Conceitos de Liberdade" e por Mikhail Bakunin noseu período anarquista. Concernindo Berlin, serão abordados o monismo e o pluralismo devalores, a diferenciação entre os conceitos positivo e negativo de liberdade, algumas críticasque lhe foram direcionadas e suas respostas a elas. Também serão apresentados oscomentários de Berlin sobre Bakunin. Quanto a Bakunin, será apresentado o caminho da suaontologia materialista até as condições sociais necessárias para a realização da liberdadeconforme princípios anarquistas. Ao fim, será defendido que as formulações do pluralismo eda liberdade oferecidas por Berlin são inadequadas para os intentos descritos nelas mesmas eque o Anarquismo de Bakunin, embora não proponha um pluralismo de valores, ainda é maisadequado à promoção de um pluralismo de fins.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade. Política. Democracia. Anarquismo. Liberalismo. Federalismo. Socialismo. Materialismo. Determinismo. Berlin. Bakunin.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
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ABSTRACT
GOMES, Cristiano de Oliveira. Duas abordagens sobre a liberdade: Isaiah Berlin em“Dois Conceitos de Liberdade” e Mikhail Bakunin de 1866 ao fim de sua vida.Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) – Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019
This dissertation aims to analyze the conceptualizations of freedom or liberty as theyare presented by Isaiah Berlin in “Two Concepts of Liberty” and by Mikhail Bakunin in hisAnarchist period. Concerning Berlin, we will address monism and pluralism of values, thedifferentiation between the positive and the negative concepts of liberty, some of thecriticisms directed towards him and his replies. We will also present comments by Berlin onBakunin. Regarding Bakunin, we will present the path from his materialist ontology to thesocial conditions for the realization of freedom according to Anarchist principles. By the end,it will be defended that the formulation for pluralism and liberty forwarded by Berlin areinadequate for the intents expressed in themselves and that Bakunin’s Anarchism, although itdoes not proposes a pluralism of values, is nonetheless more adequate to the promotion of apluralism of ends.
KEYWORDS: Liberty. Freedom. Politics. Democracy. Anarchism. Liberalism. Federalism.Socialism. Materialism. Determinism. Berlin. Bakunin.
This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001
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Abreviações:2CL: Two Concepts of Liberty / Dois Conceitos de LiberdadeAFWoNI: A Few Words on Non-InterventionFSA: Fédéralisme, Socialisme et Antithéologisme / Federalismo, Socialismo e AntiteologismoIntro: IntroduçãoJSMatEoL: John Stuart Mill and the Ends of LifeMCI: Meu caminho intelectual PotI: Pursuit of the Ideal / A Busca do Ideal
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Sumário
Introdução ……………………………………………………………………………
1 – Isaiah Berlin ……………………………………………………………………..1.1 – Dois Conceitos de Liberdade …………………………………………………...1.2 – Reconsiderações perante críticas ……………………………………………….1.3 – MacCallum e a rejeição da separação da liberdade em dois conceitos ………...1.4 – Berlin contra Bakunin …………………………………………………………..
2 – Mikhail Alexandrovich Bakunin 2.1 – Do materialismo à liberdade ……………………………………………………2.2 – Formulações e condições para a liberdade ……………………………………..2.3 – Religião …………………………………………………………………………2.4 – Socialismo Federalista ………………………………………………………….
3 – Comparação entre os argumentos de Berlin e Bakunin sobre a liberdade ….3.1 – Berlin, pluralismo de valores, individualismo e liberdade ……………………..3.2 – Bakunin e o coletivismo ………………………………………………………..
Conclusão …………………………………………………………………………….
BIBLIOGRAFIA …………………………………………………………………….
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Introdução
Nesta dissertação, analisaremos os conceitos de liberdade nos pensadores russos Isaiah
Berlin e Mikhail Bakunin. Focaremos especificamente no ensaio de Berlin chamado "Dois
Conceitos de Liberdade", mas também na introdução da coletânea Liberty – Incorporating Four
Essays on Liberty, sem a qual o entendimento do ensaio é incompleto; concernindo Bakunin, nosso
alvo é o período de 1866 até os anos próximos ao fim da sua vida, que correspondem à cristalização
dos seus ideais anarquistas. Como Berlin abordou e atacou Bakunin num ensaio incluído em
Russian Thinkers, também trataremos dessa abordagem aqui.
Isaiah Berlin foi um filósofo e historiador britânico nascido no Império Russo (na cidade de
Riga, hoje parte da República da Letônia) que, ao assumir cadeira na universidade de Oxford em
1958, apresentou em sua aula inicial o ensaio "Dois Conceitos de Liberdade". Nele, Berlin
apresenta sua noção de pluralismo de valores, na qual afirma que os conflitos gerados por valores
são parte inerente da experiência humana e, logo, não podem ser evitados, devendo ser encarados de
frente, o que significa dizer que deve-se aceitar a existência de uma variedade de valores legítimos,
mesmo que eles não sejam compatíveis em absoluto nem possuam uma medida a priori que
determine de antemão qual valor deve ser priorizado. Rejeita-se assim uma medida universal na
qual todas as respostas verdadeiras a problemas sejam passíveis de harmonização entre si, ou seja,
rejeita-se um monismo de valores.
Nesse contexto, o texto se centra na diferença entre dois valores possíveis, duas concepções
diferentes da liberdade: a negativa e a positiva. A primeira se refere à zona de ação na qual o
indivíduo não encontra interferência vinda de outra pessoa. Já a segunda concepção não é tão
intuitiva e nem é apresentada de forma tão simples, pois já começa sendo definida como um
questionamento sobre de onde viriam as formas de interferência que um indivíduo sofre ao tentar
agir ou se realizar. A questão da diferenciação entre os aspectos positivo e negativo da liberdade já
não era nenhuma novidade, datando pelo menos desde Kant e já tendo sido tratada por Benjamin
Constant e até mesmo por Bakunin. Porém há uma diferença notável na forma como a liberdade
positiva é apresentada em Berlin, uma vez que sua intenção é demonstrar as formas pelas quais tal
conceito teria sofrido uma distorção a ponto de resultar não em ganho de liberdade, mas em perda.
Por isso ele começa por definir tal concepção por meio da fonte de interferência, enquanto a
concepção negativa é sempre definida pela falta de interferência humana.
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Esse ensaio se tornou bastante influente, seja como uma inspiração, seja como fonte
de discórdia. Berlin sentiu a necessidade de responder aos vários críticos que, segundo ele,
teriam entendido o contrário do que ele quis dizer em determinados pontos. Na introdução da
coletânea Four Essays on Liberty, posteriormente revisada e expandida sob o título de
Liberty, Berlin tenta prover os esclarecimentos que julga necessário para os mal entendidos
surgidos na leitura de "Dois Conceitos de Liberdade" e de Inevitabilidade Histórica. Nela,
Berlin afirma que é incorreto acusá-lo de rejeitar o conceito positivo de liberdade como um
valor político legítimo e que duas de suas principais influências políticas, Constant e Mill,
defenderam o exercício da liberdade positiva como meio para preservar a liberdade negativa.
Analisaremos também algumas das críticas endereçadas a Berlin.
Mikhail Alexandrovich Bakunin, nascido entre a baixa nobreza russa do século XIX,
perdeu seu status de nobreza devido ao envolvimento no ativismo socialista pela Europa,
sendo preso e posteriormente enviado à Sibéria, de onde fugiu. Passou por várias fases: de
seus estudos iniciais na juventude, influenciado principalmente por Fichte e Hegel,
publicando traduções de ambos para o russo; o seu período pan-eslavista, sua prisão, exílio na
Sibéria e escapada para o Japão e os Estados Unidos; e após seu retorno à Europa, entraria
finalmente em sua transição para o Anarquismo, que concluiria ao fim da década de 1860.
O texto de Bakunin a receber atenção principal aqui é Considerações Filosóficas
sobre o Espírito Divino, sobre o Mundo Real e sobre o Homem, trecho de uma obra maior
inacabada, chamada O Império Knuto-Germânico e a Revolução Social, da qual também saiu
a sua publicação mais conhecida, Deus e o Estado, também inacabada. Trechos de
Considerações Filosóficas aparecem também em Federalismo, Socialismo e Antiteologismo,
outro texto aqui abordado e que serviu como base de princípios para a Liga da Paz e da
Liberdade. Outros textos usados aqui são “Catecismo Revolucionário”, de 1866, marcando o
início de sua transição para a filosofia anarquista; o supracitado Deus e o Estado; Estatismo e
Anarquia, os programas da Irmandade Internacional e da Aliança da Democracia Socialista,
cartas, textos em periódicos, etc.; além de comentaristas como Rudolf Rocker, Sam Dolgoff,
Paul McLaughlin, René Berthier e Éric Vilain.
Considerações Filosóficas merece nossa atenção especial por estabelecer uma
ontologia sobre a qual o pensamento político de Bakunin pudesse se assentar. Num primeiro
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momento, a preocupação de Bakunin é rejeitar qualquer base teológica ou metafísica para a
natureza, podendo assim fundar o conhecimento humano no empirismo. Dessa forma, busca-
se democratizar o conhecimento, abolindo-se as autoridades dos padres, fictícia (de Deus) e
dos acadêmicos estritamente teóricos, substituindo-as pela experiência direta do dia a dia e
pelo acesso universal ao corpo do conhecimento humano acumulado. Num segundo momento,
procura-se inverter a lógica do Liberalismo sobre o entendimento da história humana, que
entenderia que o indivíduo abandona a liberdade absoluta de uma origem de isolamento para
uma vida social de liberdade restringida pelo convívio, para um novo entendimento de que o
homem seria social por natureza e se tornaria cada vez mais livre conforme trabalha junto. O
desenvolvimento da sociedade e da cultura seriam, portanto, expressão da liberdade humana,
pois seria assim que a humanidade superaria suas restrições iniciais. Embora o homem seja
determinado pelas leis da natureza tanto quanto qualquer outro ser e não faça sentido buscar
ser livre da natureza, a razão e o conhecimento humanos fariam com que fôssemos capazes de
usar tais leis a nosso favor e modificar o mundo conforme nossa vontade e necessidade.
Por fim, compararemos as posições dos dois autores aqui apresentadas e tentaremos
demonstrar que as contradições no discurso de Isaiah Berlin impossibilitariam a realização de
um pluralismo de valores fundado na liberdade e que o Anarquismo de Bakunin, se não possui
chances maiores do que Berlin de realizar o pluralismo, não seria por motivos tão diferentes –
a despeito de toda rejeição e condenação da parte de Berlin, que atacou pesadamente Bakunin
e o Anarquismo, na maioria das vezes usando ataques pessoais e abordando os argumentos de
Bakunin de forma pouco fiel e até mesmo caricata, carecendo de uma compostura que
condiga com um intelectual de responsabilidade tratando de um assunto de importância
histórica. Mesmo assim, se ao Anarquismo de Bakunin couber categorização como uma forma
de monismo de valores, pretendemos demonstrar aqui que ele não é incompatível com a
promoção de um pluralismo de fins. Esperamos, com isso, prestar aos leitores um
esclarecimento sobre o Anarquismo que lhes teria sido negado por notáveis históricos da
academia, como Berlin.
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1 – Isaiah Berlin
1.1 – Dois Conceitos de Liberdade – Análise das ideias principais
Em "Dois Conceitos de Liberdade", palestra inaugural de Isaiah Berlin ao assumir sua
cadeira na Universidade de Oxford, posteriormente publicado como ensaio e mais tarde
revisado, o autor se propõe a analisar dois conceitos que ele julga serem centrais dentre as
noções de liberdade: as liberdades ‘negativa’ e ‘positiva’. A primeira corresponde a tudo
aquilo que o agente pode ser ou realizar sem sofrer interferência de outrem e quão grande é
essa gama de ações e realizações potenciais. A segunda concepção recebe diferentes
definições ao longo do texto, mas começa sendo caracterizada como “a fonte de controle ou
interferência que pode determinar a alguém fazer ou ser isso em vez daquilo”. (BERLIN,
2002, 2CL, p. 169) Esses dois conceitos não se originam da obra de Berlin e, particularmente,
o conceito de liberdade positiva não recebera tal definição na tradição liberal. Para
entendermos o porquê disso, é preciso compreender o contexto histórico no qual esse ensaio
se insere – a guerra fria – e a intenção do autor em demonstrar como as restrições às
liberdades dos cidadãos nos regimes comunistas, assim como em regimes de outras tendências
autoritárias e até mesmo por vezes em democracias, são consequência de linhas de
pensamento idealistas que distorcem o sentido positivo da liberdade. Historicamente, tal
distorção teria sido muito maior do que a sofrida pelo sentido negativo da liberdade.
Tradicionalmente, quando a liberdade positiva é caracterizada como ‘autorrealização’, ela
então pode ser entendida como um dos lados da moeda da liberdade como um todo, a
liberdade negativa sendo o outro lado, embora Berlin, mais tarde, esclareça que considera os
dois conceitos como valores completamente diferentes entre si.
Berlin segue a introdução tratando da liberdade negativa. Já aqui percebemos a
importância que o autor dá à questão dos conflitos de interesses e de valores. Pluralismo de
valores é a ideia de que há mais de um valor a escolher e que apesar de que eles possam entrar
em conflito, isso não quer dizer que valores escolhidos sejam necessariamente ruins, mas que
conflito é inerente às relações humanas e que tais instâncias de conflito devem ser resolvidas
sem uma regra a priori que determine universalmente uma hierarquia de valores. O exemplo
mais clássico na literatura política talvez seja o do contrato social, no qual liberdade é
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sacrificada em troca de segurança. Sacrificar toda liberdade não parece ser bom, enquanto a
total liberdade parece incompatível com a segurança. Jean-Jacque Rousseau defende que os
ganhos do contrato social equivalem ao que é perdido – “Em dando-me a todos, dou-me a
ninguém” (ROUSSEAU, 1762, apud BERLIN, 1969, p. 17) – e isso é um ponto de crítica
para Berlin, pois cada valor não pode se equivalente a nenhum outro. O que o sujeito perde
em liberdade não é recuperado por meio da igualdade, da segurança ou da ordem social.
Nesse sentido, Hobbes teria sido mais honesto, pois a submissão dos súditos ao soberano, em
sua teoria, não é disfarçada. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 210)
Cada valor seria potencialmente incomensurável, de modo a não poder haver cálculo
prévio que aponte de antemão o que devemos escolher. (Berlin não deixa claro como saber
quais valores seriam ou não incomensuráveis.) Assim como diferentes valores pesam pratos
diferentes da balança, as diferentes escolhas de diferentes indivíduos também são fontes de
conflito. Exercício irrestrito da liberdade de um indivíduo pode resultar na limitação da
liberdade negativa de outro. Dentro da tradição liberal, o estado existiria então para garantir
que as tais interferências não impeçam a sobrevivência e a dignidade de cada cidadão. Mas
essa mesma tradição se preocupa com a manutenção de uma esfera de liberdade pessoal que
seja grande o suficiente para que o indivíduo possa se realizar sem interferência do estado. O
tamanho dessa esfera é fonte de divergência, o que também está de acordo com o pluralismo
de valores, pois não há nada que indique um ponto ideal a não ser a experiência no momento
em que tais questões são discutidas. Há discordâncias inclusive sobre se condições como a
pobreza de algum indivíduo são ou não uma limitação de liberdade negativa, pois diferentes
teorias poderiam considerar que a pobreza é causada ou por fatores individuais ou por
arranjos econômicos injustos adotados por aquela sociedade. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 169-
71) Fatores individuais podem ser entendidos como aqueles que excluem a existência de
responsabilidade ou culpa alheia, como o azar ou escolhas pessoais, enquanto arranjos
injustos seriam a influência direta da conjuntura sob a qual a sociedade vive e que está além
dos poderes da vítima da pobreza, sendo tal conjuntura a soma de decisões e ações humanas
como causa de prejuízo à liberdade de indivíduos. Veremos mais tarde a posição pessoal de
Berlin sobre o assunto.
Porém não seria impossível que um regime despótico permitisse aos cidadãos agir
sem interferência dentro de uma determinada esfera. Hobbes demonstra como isso é possível:
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Quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que osoberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou deomitir, conformemente à sua discrição. Portanto essa liberdade em alguns lugares émaior e noutros menor, e em algumas épocas maior e noutras menor, conforme osque detêm a soberania consideram mais conveniente.
(HOBBES, 1979, p. 17)
Uma democracia poderia impedir as liberdades individuais de tal forma que Berlin
admite que não haveria um elo necessário entre liberdade individual e democracia. No que
concerne a forma de regime, “quem me governa” é uma questão ligada à liberdade
positiva e não à negativa. Mesmo assim, Berlin continua ligando a concepção positiva de
liberdade a “um modo prescrito de vida”, (BERLIN, 2002, 2CL, p. 178) ou seja, na qual o
exercício da liberdade não coincide com a volição do sujeito, mas com alguma determinação
externa à vontade do indivíduo, seja uma formulação lógica, um valor estimado dentro de
alguma tradição ou a palavra de um tirano. Porém se nós respondermos “eu mesmo” à
pergunta “quem me governa”, a pergunta não passa a se situar fora do conceito positivo. O
que Berlin pretende, portanto, é ligar a ideia de autodeterminação às ideias de autodomínio
(self-mastery) e abnegação (self-abnegation) e demonstrar a raiz do abuso da concepção
positiva: ao reconhecer como livre apenas uma manifestação supostamente transcendental do
indivíduo, seria possível legitimar a limitação de qualquer ação que fosse motivada por
impulsos baixos, passionais, não racionais ou mundanos, seja por meio da educação e dos
costumes, seja por violência estatal, uma vez que ações motivadas por tais instâncias baixas
do sujeito não seriam manifestações da verdadeira liberdade e suas limitações não seriam
entendidas como limitações da verdadeira liberdade.
O item do ensaio sobre a liberdade positiva começa justamente categorizando-a como
autodeterminação. Tal mudança, de “quem me controla” para “como posso me
autodeterminar”, seria para demonstrar qual teria sido a distorção lógica causada pelos
defensores da liberdade positiva. Berlin acredita que a distorção tenha origem na noção de
liberdade como autodomínio (self-mastery) e na noção racionalista de indivíduo. O indivíduo
só seria senhor de si mesmo quando agisse de acordo com a razão. Escravo é aquele que se
deixa levar por impulsos, não sendo diferente de um animal. É como se, no mesmo indivíduo,
houvesse um uma existência superior e outra inferior. Só deve ser considerado autônomo
quem segue seu ‘eu superior’, pois é pela razão que o homem teria controle de suas ações.
Uma pessoa indisciplinada e incapaz de avaliar suas decisões é como que levada pelas forças
da natureza, um mero elo na cadeia causal, determinada por forças externas, mesmo sendo tais
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forças suas próprias paixões. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 178-80) Se essa é a origem da
distorção do conceito de liberdade positiva, então ela é muito antiga, pois tal racionalismo
data, pelo menos, desde Platão.
Berlin atribui tal distorção a “todas as teorias políticas da autorrealização”, embora
afirme que o mesmo pode ser feito com o conceito negativo de liberdade. (BERLIN, 2002,
2CL, p. 180) A diferença parece residir na distância entre os fatos e os discursos. Embora a
interação entre os conceitos negativos e positivos devam ser consideradas de acordo com o
princípio do pluralismo de valores para que a liberdade conforme exercida na realidade seja
realizada, certas teorias podem ignorar ou mesmo excluir um ou outro conceito. No caso das
teorias da liberdade positiva, ao colocarem a liberdade num plano transcendental, o ‘eu
empírico’ não é mais reconhecido como um agente legítimo. Torna-se possível dizer que um
indivíduo tomaria decisões diferentes caso fizesse um uso mais reto da razão e se não o faz,
seria benéfico impedi-lo de agir em erro. Legitima-se então que alguma autoridade externa
aos indivíduos decida o que é certo ou não fazer. A distorção causa, portanto, um paradoxo,
pois em nome da liberdade, se retira a liberdade do indivíduo.
No caso da liberdade negativa, como já vimos, não é consenso o quanto dela o
indivíduo deve reter. O exercício da liberdade de diferentes indivíduos pode entrar em
conflito. Por exemplo, se alguém tiver a liberdade de dar uma festa durante a madrugada,
outro alguém não terá a liberdade de ter uma boa noite de sono. Numa escala maior, isso
impediria a sociedade de funcionar. Ordem social não é a mesma coisa que liberdade, mas ela
pode ser priorizada por um governo ou mesmo uma sociedade. Não é das visões mais
incomuns estados democráticos fazendo uso da violência policial para impor aos seus
cidadãos sua visão de ordem social. Por outro lado, quando o campo da vida é enxergado
como um mercado onde os interesses individuais se regulariam automaticamente, teremos
desigualdade social e embora igualdade não seja o mesmo que liberdade, pessoas pobres terão
menos meios para agir porque tal sociedade se organizou de modo a permitir tal carência de
meios.
O conceito de retirada para a cidadela interior, que dá nome a uma das seções do
ensaio, é uma demonstração de uma compreensão equivocada que liga abnegação a um
aumento de liberdade. Não é incomum que quando uma pessoa não seja capaz de realizar o
que deseja, em vez de insistir, ela abandone tal desejo, limitando, assim, a área que sua
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liberdade cobre. Um indivíduo realmente livre, de acordo com tal ideia, é aquele que sabe
reconhecer aquilo que pode realizar e, por contraste, aquilo que é incapaz de realizar. Em
princípio, não é errado desistir de algo. O problema, para Berlin, é acreditar que a redução da
gama escolhas é um aumento da liberdade, de modo que determinados valores sejam
permanentemente excluídos dessa gama de opções, limitando a liberdade de escolha. A
retirada para a cidadela, portanto, é uma forma insatisfatória de lidar com o pluralismo de
valores, uma vez que consiste em evitar o conflito que é inerente à negociação entre os
diversos valores.
Tal postura é estagnante, pois o sujeito, diante da coerção, evita o conflito e acredita
sair-se beneficiado perto do que poderia sofrer caso fosse vitimado. O resultado da
generalização dessa postura é que o sujeito deixará se superar qualquer coerção que sofre.
Mesmo os impedimentos físicos não causados por pessoas seriam intransponíveis e o sujeito
estaria sempre à mercê dos outros, dependente de paternalismo. Como método para o aumento
da liberdade, abnegação é, como diz o ditado, resolver o problema da caspa através da
decapitação.
Berlin identifica essa contradição no “coração do Liberalismo humanista, tanto moral
quanto político, que foi profundamente influenciado tanto por Kant como Rousseau no século
XVIII” (BERLIN, 2002, 2CL pp. 184-5), ligando-a assim ao conceito de autodomínio descrito
anteriormente. A transcendentalização do indivíduo faz com que ele não deva ser
instrumentalizado ao ponto da objetificação, ou seja, o dever de tratar o sujeito não como um
mero meio, mas um fim em si mesmo. Porém, por esse mesmo ponto de vista, um sujeito que
não se governa exclusivamente por aquilo que possui de transcendente é tanto um objeto
mecânico quanto se fosse coagido por força externa. O sujeito é livre, portanto, se for capaz
de depurar seus desejos de suas paixões e seguir apenas sua razão, efetivamente reduzindo sua
gama de ações.
Não é difícil imaginar, ou mesmo lembrar de, pessoas que consideramos racionais
não concordando umas com as outras. Nós podemos analisar e comparar seus argumentos e
nem todos chegaremos à mesma conclusão. Caso contrário, a única coisa que nos impediria
de responder todas as perguntas nos campos das ciências humanas (salvo História) seria o
tempo, pois todas elas já estariam respondidas a priori, faltando apenas que alguém escreva as
respostas, sem margem para discordância. Nada parece mais longe da realidade. Se, portanto,
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assumirmos como correto um monismo de valor, ou seja, que devemos buscar e preservar um
determinado valor por acreditamos ser o valor fundamental, responsável consequentemente
pela adequação dos outros valores, que lhes seriam secundários, quem será o árbitro? Figuras
de autoridade que reclamam para si o arbítrio da razão e convencem seus subalternos a não
seguirem determinado curso de ação, fazem com que tais subalternos tomem a iniciativa de
reduzir suas próprias gamas de ação. Espinosa diz que a diferença entre um escravo e um
cidadão é que o escravo obedece ordens que não levam em consideração o seu próprio bem,
enquanto a obediência do cidadão a um estado cujas leis são fundadas na razão tem como fim
o bem de todos e, consequentemente, o dele mesmo. (ESPINOSA, 1670, 16:56) Tal
argumento implica num paradoxo: se um escravo possuir um mestre que só dá ordens
fundadas na razão, tendo como fim o melhor interesse do escravo, esse escravo seria um
homem livre? Se por um lado, alguém argumentar que a escravidão nunca é racional e não
realiza plenamente os melhores interesses do escravo, por mais permissiva que seja, por outro,
ainda é preciso explicar como a obediência ao estado não é uma forma de escravidão.
O marxismo seria mais uma nessa série de doutrinas positivas. De acordo com Berlin,
para o materialismo histórico, a história é uma sequência de eventos até agora inevitáveis
porque as pessoas tomaram por forças inevitáveis as instituições sociais que elas mesmas
criaram. A liberdade só viria a partir do momento em que o mundo fosse desfeito e refeito,
terminando assim a opressão que impede o ser humano de ver o mundo como ele realmente é.
Antes de Marx, Hegel afirmara que a moralidade seria essencialmente racional e que o estado
seria a vida moral realizada, a ideia divina realizada na Terra. O homem só seria livre e
consciente através das leis do estado. Os arranjos políticos realizados no mundo seriam
manifestação da objetividade do Espírito. (HEGEL, 1914, p. 40-1) Sobre o Idealismo
hegeliano, Marx diz que sua dialética estava de cabeça para baixo e ele a pusera de pé: os
pensamentos na mente humana seriam, então, um reflexo do mundo material. (MARX, 2013)
No fim, porém, a mesma distorção se sucederia: enquanto o indivíduo não possuísse o
conhecimento necessário, ele não poderia ser livre. Heterônomo, seria levado pelas forças
resultantes das tolices que ele mesmo ou a humanidade criara. Mas a partir da tomada de
consciência, “conhecimento libera não ao oferecer-nos mais possibilidades dentre as quais
podemos escolher, mas preservando-nos da frustração de tentar o impossível”. (BERLIN,
2002, 2CL, p. 190) Querer algo diferente seria arriscar exclusão da comunidade dos
racionalmente capazes. O marxismo, visto dessa forma, revelar-se-ia um idealismo disfarçado
de materialismo. Quando Berlin descreve a ideia da liberdade positiva através da obediência a
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leis das quais o indivíduo mesmo é o autor, além de semelhante à terceira formulação do
imperativo categórico de Kant, devemos perceber que ela também se assemelha àquilo
descrito por Benjamin Constant como a liberdade dos antigos – o exercício coletivo da
deliberação política, da participação da criação das leis que os próprios indivíduos
obedecerão. (CONSTANT, 1819, p. 2-3) Na introdução do ensaio, Berlin reconhece que foi
George Douglas Howard Cole, professor que ocupara a cadeira em Oxford que Berlin então
assumia (o ensaio foi, originalmente, uma aula inaugural de Berlin em Oxford), quem
introduzira a muitos de sua geração a noção de que teoria política é um ramo da filosofia da
moral. O imperativo categórico kantiano é um conceito moral, mas o requerimento da
autolegislação moral individual, se expandido para a esfera pública, se torna a participação no
processo regulamentador da comunidade. Percebamos também que Berlin já dissera que a
noção de liberdade individual seria historicamente recente. Sendo tal valor tão caro a Berlin
uma inovação, relativamente falando, é fácil entender seu ataque à noção mais antiga de
liberdade. Apesar de admitir a inclusão da política na moral, ele não quer dizer com isso que
haja uma teoria capaz de predizer os arranjos sociopolíticos na humanidade. Tudo o que ele
deseja é dissipar as ideias de que o ser humano é levado ou guiado por forças impessoais e
não por sua própria vontade. “Entender tais movimentos e conflitos é, acima de tudo, entender
as ideias e atitudes para com a vida envolvidas neles, o que sozinho torna tais movimentos
uma parte da história humana e não meros eventos naturais.” (BERLIN, 2002, 2CL p. 168)
Há porém uma importante diferença entre a autolegislação no imperativo categórico e
na liberdade dos antigos. No primeiro caso, a autonomia do indivíduo diz respeito
especificamente a ações que seguem máximas que ele pode, racionalmente, desejar que sejam
universalmente adotadas. O critério da adoção é justamente a racionalidade. No caso da
liberdade dos antigos, não se pode dizer que falta de racionalidade fosse um impeditivo. Mas
como Constant conta, a liberdade dos modernos seria uma forma mais apropriada de conduzir
os assuntos do dia a dia nas grandes nações de então, com os indivíduos tratando sem
interferência do estado das relações interpessoais pela via do mercado. Essa instituição, o
direito individual, conforme diz, não existia na antiguidade e nem mesmo era desejada dada a
realidade da época. Eram sociedades pequenas, constantemente em guerra, nas quais o
trabalho manual era exercido por escravos. Segurança e vigilância ultrapassava a importância
da privacidade, logo a liberdade era reconhecida através da participação na vida pública, não
na vida privada. Conforme o comércio se desenvolve e se expande, a guerra deixa de ser o
meio principal de aquisição e a sociedade se desenvolve melhor conforme os cidadãos são
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deixados livres em sua esfera privada para empreender e negociar num cenário de paz.
(CONSTANT, 1819) A transcrição do discurso de Constant em referência situa muito bem o
valor da liberdade negativa dentro do panorama liberal após o Iluminismo, embora possamos
questionar a historicidade do relato. A ideia de que a guerra superava o comércio na
antiguidade como meio de aquisição era senso comum entre os liberais do século XIX e um
argumento comum para justificar como progresso natural os arranjos sociais da época. Caso
estivessem certos, provavelmente a Rota da Seda não teria sido possível, uma vez que o
próprio Constant admite que é preciso paz para a condução de negócios e transações e, do
século II A.C. até a renascença, houve todo um conjunto de rotas comerciais ligando Europa,
África e Ásia.
Mas há aqui algo fora do lugar. “[S]erá mesmo verdade que a felicidade, de qualquer
espécie que ela possa ser, seja o único objetivo do gênero humano?” Assim Constant,
aproximando-se do fim do discurso, questiona a liberdade individual como única prioridade
dos indivíduos e segue invocando o que seria a melhor e mais nobre parte da natureza
humana, o aperfeiçoamento através da participação política. “[E] a liberdade política é o mais
poderoso, o mais enérgico modo de aperfeiçoamento que o céu nos concedeu.” (Ibidem)
Constant insta o povo francês a não abandonar a liberdade de participação política,
tão cara aos antigos, mas combiná-la à liberdade dos modernos, mantendo vigilância sobre os
representantes políticos para que não se tornem tiranos parasitas. Cada uma das liberdades,
segundo diz, oferecem perigos. A de participação política, o perigo de nos alienarmos de
nossos direitos individuais. A dos modernos, o perigo de nos absorvermos tanto no
individualismo a ponto de perdermos noção da coisa pública. Defendendo a participação
política como uma das prioridades, Constant atribui ao seu exercício a promoção da
igualdade, colocando os interesses singulares dos indivíduos em igual exame por toda
sociedade, de modo que cidadãos dos mais diferentes antecedentes e ofícios se encontrariam
na defesa da soberania popular. (Ibidem) Berlin reconhece Constant como um defensor da
liberdade contra a tirania, mas, neste ensaio, faz tal reconhecimento exclusivamente por via da
liberdade negativa, enquanto o verdadeiro Constant o fez por meio da defesa da preservação
da liberdade positiva. Ao relacioná-lo a Mill enquanto cita as ressalvas deste contra a tirania
da maioria na democracia e como o autogoverno na democracia levaria a tal cenário, Berlin
pinta Constant com tons antidemocráticos, mesmo que Constant estivesse defendendo
justamente o processo democrático como meio de livrar a nação da tirania. Na introdução de
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Liberty, Berlin voltará ao assunto reconhecendo que Constant defendeu a liberdade positiva
como meio de preservar a liberdade negativa. Além disso, admitirá que liberdade positiva é
um “objetivo universal válido” e não entende por que afirmaram que sua própria postura seria
contrária a isso. (BERLIN, 1969, Intro, 39)
No quinto item do ensaio, O Templo de Sarastro, Berlin oferece uma formulação para
o monismo valorativo. Como o autor não explicita no texto uma formulação positiva para o
pluralismo, a negação do argumento monista serve como argumento para o pluralismo. A
formulação do monismo é a seguinte:
Pensadores desse tipo [monistas] argumentaram que se problemas morais epolíticos forem genuínos – e eles realmente eram – eles devem, em princípio, sersolucionáveis; quer dizer, deve existir uma e apenas uma solução para qualquerproblema. Todas as verdades poderiam, em princípio, ser descobertas por qualquerpensador racional, e demonstradas tão claramente que todos os outros homensracionais não teriam como não aceitá-las; certamente, este já era, em grandemedida, o caso nas novas ciências naturais. Assim supondo, o problema daliberdade política seria solucionável estabelecendo-se uma ordem justa que daria acada homem toda liberdade a qual seria legítima a um ser racional. Minhareivindicação a liberdade irrestrita pode, à primeira vista, nem sempre serreconciliada com sua reivindicação igualmente não qualificada; mas a soluçãoracional de um problema não pode colidir com a solução igualmente racional deoutro, pois duas verdades não podem ser logicamente incompatíveis; logo uma justaordem deve ser, em princípio, descobrível – uma ordem cujas regras tornampossíveis soluções corretas para todos os problemas possíveis que surgissem nela.
(BERLIN, 2002, 2CL, pp. 191-2)
Por clareza, o argumento pode ser resumido da seguinte forma:
1. Toda questão genuína deve ter uma resposta verdadeira e apenas uma; todas asoutras respostas são erros;
2. É preciso haver um caminho confiável para se descobrir as respostasverdadeiras, que são, em princípio, conhecíveis, mesmo que presentementedesconhecidas;
3. As respostas verdadeiras, quando encontradas, serão compatíveis umas com asoutras, formando um todo singular; pois uma verdade não pode serincompatível com outras. Isto, por sua vez, é baseado na suposição de que ouniverso é harmonioso e coerente.
(CHERNISS & HARDY, 2016, 4.1)
Seguindo essa lógica, um mundo povoado por pessoas racionais seria harmonioso e
as vontades dos diferentes indivíduos jamais entrariam em conflito. Opressão deixaria de
existir, pois ela é causada pela irracionalidade. Devemos crer, portanto, que a coerção usada
hoje para impedir que o forte arrase com o fraco é posta em prática porque nem todo
indivíduo alcançou o patamar de racionalidade necessário para ser plenamente livre.
Consideremos, então, os ricos e poderosos desprovidos de empatia pelos mais necessitados: a
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partir de seus próprios juízos racionais, há alguma vantagem que eles consigam abandonando
a opressão dos mais pobres que eles não consigam engajando-se na opressão? Se o indivíduo
só considera seu benefício individual, não só desconsiderando o resto da população, mas
também desconsiderando qualquer responsabilidade geracional, ou seja, se supormos que ele
não se preocupe nem com o bem-estar de seus descendentes no futuro, qualquer apelo por
solidariedade cai em ouvidos surdos e não se pode culpar a falta de racionalidade, pois aqui o
conflito é de valores.
Não é preciso, claro, chegar a exemplos extremos como magnatas monopolistas e
destruidores do ambiente. Basta considerar que pessoas diferentes têm valores diferentes e
isso não é uma questão de que elas ainda não perceberam o que deveriam querer. Pessoas
diferentes objetivamente têm necessidades diferentes que farão com que elas valorizem coisas
diferentes. Se comprarmos a ideia de que uma pessoa excepcionalmente racional pode decidir
pelas outras em seu melhor interesse, essa pessoa precisaria conhecer todas as diferentes
necessidades e provê-las de acordo.
Como já vimos, é difícil crer que a racionalidade seja garantia de unanimidade. Não é
incomum que dois intelectuais da mesma área entrem em desacordo. Mesmo que um deles
esteja em erro, a razão sozinha não é garantia de desempate em tempo hábil. Considerando
que os problemas são potencialmente infinitos, não seria bom o suficiente que a razão fosse a
solução universal apenas em princípio, pois isto nos deixaria esperando. A necessidade de
ação nos impele a testar soluções de forma empírica, levando em consideração a peculiaridade
de cada caso em vez de uma regra universal. Quando Berlin reconhece que as ciências
naturais operam em grande parte sob a ideia de que cada problema tem solução única,
devemos perceber que ele rejeita um cenário semelhante nas ciências humanas. Por isso a
‘inversão’ do hegelianismo realizada por Marx não serve para Berlin.
Berlin se refere à postura monista como a falácia jônica, em referência à tradição
filosófica jônica pela busca por um princípio universal para todas as coisas que existem,
embora Berlin reconheça que os jônios não são culpados disso e “o que eles provavelmente
perguntavam eram questões sobre física, das quais questões metafísicas talvez não fossem
claramente distintas nos seus dias”. Essa tendência, porém, seria retomada posteriormente “de
Aristóteles a Russell”, numa busca “pelos constituintes definitivos do mundo num sentido
não-empírico”. Berlin acusa tal linha de pensamento de não fazer sentido, ser impossível de se
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testar empiricamente e cujas conclusões não oferecem muito sobre a natureza do mundo.
(BERLIN, 1999, p. 76)
Longe de ser um problema exclusivo de socialistas, Berlin produz uma lista inteira de
liberais culpados de manter uma visão racionalista da liberdade: os já citados Rousseau, Kant
e Espinosa, juntamente com Locke, Burke e Montesquieu. Todos eles teriam equacionado
autonomia com autoridade, mantendo que as leis, ao nos restringir, nos liberam. Bentham
seria um dos únicos a se opor a tal ideia. Que uma limitação específica de liberdade contribua
para aumentar a soma total de liberdade por impedir que os indivíduos interfiram com as
liberdades negativas alheias, não significa que tal limitação, em si, não seja uma limitação.
Apenas numa situação hipotética, autonomia e autoridade seriam iguais: numa utopia onde
todos fossem perfeitamente racionais, pois a conduta de todos seria em pleno acordo com as
leis, de forma que as leis aos poucos murchariam. (BERLIN, 1969, p.17-8) A forma como
Berlin conclui o argumento, porém, é curiosa. Ele afirma que
Apenas um movimento social foi ousado o suficiente para apresentar tal suposiçãotão explicitamente e aceitar suas consequências – os anarquistas. Mas todas asformas de Liberalismo fundadas numa metafísica racionalista são mais ou menosversões diluídas deste credo.
(BERLIN, 1969, p.18)
A despeito do Anarquismo ser um movimento tradicionalmente socialista, Berlin
prefere descrevê-lo como uma forma extremada de Liberalismo. A expressão que ele escolhe
usar para o destino das leis em tal sociedade (“wither away”) é famosamente associada ao
marxismo por via da tradução de Emile Burns ao inglês de Anti-Dühring, de autoria de
Engels.1 Aliás, tal expressão é citada por Berlin, no primeiro parágrafo, em referência à
“profecias marxistas”. Mas Berlin já se referira ao Anarquismo nesse mesmo primeiro
parágrafo, no qual o caracteriza como uma tecnocracia de produção substituindo a política,
em linha com o estágio final do marxismo. Porém só o Anarquismo recebeu uma comparação
com o Liberalismo. Provavelmente porque, diferente da centralização estatal no marxismo, o
Anarquismo quer conciliar a ordem social com a maior quantidade de liberdade individual
que se possa desejar, o que seria possível apenas com o fim do estado, o que Berlin rejeita,
julgando que isso só seria possível com o fim dos conflitos entre os indivíduos sobre os fins a
1 “A interferência do poder estatal nas relações sociais se torna supérflua numa esfera atrás da outra, e então cessa por si só. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e a direção dos processos de produção. O estado não é abolido, ele murcha até sumir [it withers away].” - ENGELS, Herr Eugen Dühring’s revolution in science, vulgo Anti-Dühring, 1878, trad. Emile Burns, 1894, trecho traduzido para o português por mim, ênfase no original.
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serem buscados – ou seja, isso não seria possível. Talvez Berlin simplesmente igualasse o
estágio final do marxismo, o comunismo propriamente dito, com o Anarquismo, logo o
comunismo ideal também seria uma forma Liberalismo racionalista.
Mais à frente, Berlin estabelece um outro valor que, embora não seja identificado
como liberdade negativa nem positiva, seria comumente associado com aumento de liberdade
mesmo que os indivíduos contemplados não gozem efetivamente de uma soma maior de
liberdade. Segundo o autor, muitas vezes quando um indivíduo reclama da falta de liberdade,
na verdade o que lhe falta é o reconhecimento enquanto um indivíduo autônomo por parte de
uma comunidade com a qual ele se identifique. Aqui Berlin abre espaço para um elemento
comunitário que contribui para a noção que o indivíduo tem de si mesmo. Embora não admita
que o indivíduo é resultado de forças sociais, assume que as ideias que alguém tem de si
mesmo, parcial senão totalmente, só são inteligíveis enquanto aquele alguém é membro de um
contexto social. Se o reconhecimento da autonomia pode ser negada a um indivíduo com base
em algum status social, então é provável que toda sua comunidade sofra da mesma privação.
Quando se trata de uma comunidade dentro de uma sociedade maior, presumimos que haja
uma reivindicação por igualdade de oportunidades e maior liberdade de ação, e isso pode
também fazer parte da pauta, mas não seria o principal. Tal valor seria geralmente identificado
como liberdade social, mas para Berlin não é uma liberdade. Isso levaria a uma notável
contrariedade, na qual os indivíduos não desejam paternalismo, mas serem reconhecidos
como agentes responsáveis pelos próprios atos e objetivos; porém se sentiriam mais livres
mesmo que suas liberdades negativas lhes fossem tolhidas, desde que os seus iguais os vissem
como donos dos próprios destinos. O exemplo mais pungente é o da colônia asiática ou
africana que prefere um governo mais autoritário desde que ele seja formado por membros de
seu povo do que um colonizador estrangeiro mais justo e benevolente. (BERLIN, 2002, 2CL,
p. 203-4)
A confusão entre status de liberdade (percepção de liberdade independente da
liberdade factual) e a liberdade em si preocupa Berlin, pois uma vez que o indivíduo é
identificado com sua classe, a classe inteira ganha um falso status de indivíduo no qual a
liberdade da comunidade passa a significar a liberdade de seus membros. Embora a classe seja
emancipada e ganhe uma liberdade maior de ação, tal reconhecimento não é equivalente a
liberdade, pois os indivíduos podem muito bem experimentar um decréscimo de liberdade a
despeito do reconhecimento tanto em bloco como entre cada um dos membros. E embora
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Berlin tenha negado que tal valor pudesse ser identificado com uma das formas de liberdade
em questão no ensaio, ele afirma que seria algo conectado à questão sobre quem exerceria a
autoridade – questão que ele associa ao conceito positivo de liberdade, embora ele chame de
uma forma híbrida de liberdade, uma vez que a resposta à questão leva em consideração
valores como fraternidade e solidariedade. O estado ou a sociedade, sejam democráticos ou
despóticos, seriam então como um credo secularizado e a liberdade receberia seu significado
na comunhão neles. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 206)
Mesmo a democracia por si só não traz garantias a Berlin com relação às liberdades
individuais. Pelo contrário, o estado democrático, encarnando a vontade geral do povo,
reclamaria assim legitimidade para limitar todo comportamento que não julgar adequado.
Lembrando Mill novamente, o chamado governo do povo não é exercido pelo mesmo povo
que ele governa. Autogoverno na democracia não tem sentido literal e, mesmo como
metáfora, seria uma aproximação insuficiente. Porém, Berlin ainda acredita em seu potencial
para defender as liberdades individuais se alguns limites não forem ultrapassados. Assim, todo
e qualquer indivíduo deve ter o direito absoluto de se recusar a agir de forma desumana e
qualquer ser humano normal deveria ser capaz de reconhecer tais limites e se negar a cruzá-
los. Uma sociedade seria tão mais livre quanto possível exercer tal direito. Enquanto os
defensores da liberdade negativa desejariam a limitação de tal autoridade, os que defendem a
liberdade positiva a quereriam para si. Como não se desejaria viver em extremos de ou falta
total de coerção, ou coerção absoluta, é preciso encontrar um ponto entre os dois. (BERLIN,
2002, 2CL, p. 209-10)
O que Berlin defende, no final das contas, é que tenhamos clareza dos valores que
reivindicamos, pois uma vez que não se equivalem, se enganar e tomar um pelo outro pode
resultar na perda do que se pretende. Tudo que escolhermos terá um preço e como não há uma
regra a priori que nos oriente, não é possível medir um valor contra o outro em abstrato. Cada
situação determinará quanta segurança é adequada para se manter uma ordem social que
permita o exercício das liberdades individuais e quanta liberdade individual deve se sacrificar
para garantir todo resto. Cada sociedade deve decidir quais conjuntos de valores priorizar
através da experiência empírica da vida em sociedade e do exercício político. As relações
entre os indivíduos na sociedade reinstanciam os conflitos da pluralidade de valores através
das diferenças de preferências e identidades culturais. É a diferença entre as diversas
perspectivas que, por competição ou resolução, conduzem o progresso e é em benefício do
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exercício da escolha que devemos preservar a liberdade. Para Berlin, as utopias não são
atraentes, pois são visões de um mundo onde não há mais escolhas a serem feitas. São
mundos sem vida onde o ser humano perde sua razão de ser.
1.2 – Reconsiderações perante críticas
Qual conceito de liberdade Isaiah Berlin assume como válido não é um caso que
chega ao veredito por vias tão tranquilas quanto alguns queiram crer. O leitor de "Dois
Conceitos de Liberdade" pode concluir que o autor está a defender uma via certa contra um
perigo indefensável, mas há motivos para crer, dentro do ensaio, que essa não seja a conclusão
correta. Primeiramente, Berlin admite que os dois conceitos não são logicamente distantes,
uma vez que o sujeito que é livre para agir como deseja – o sujeito possuidor da liberdade
negativa – é o sujeito que é livre para decidir por si mesmo como agir – o sujeito possuidor da
liberdade positiva. (BERLIN, 2002, 2CL, II, p. 178). Segundo, ele afirma que distorções
históricas semelhantes àquelas perpetradas pelos defensores do conceito positivo de liberdade
podem também ser perpetradas em defesa do conceito negativo de liberdade. (Ibidem, p. 181)
Na introdução de Liberty – Incorporating Four Essays on Liberty, Berlin tenta desfazer o mau
entendido, chegando a admitir a validade de um plano social e legislativo para um estado de
bem-estar social e mesmo para o socialismo que se baseasse seja na liberdade negativa, seja
na positiva. (BERLIN, 2002, Intro, pp. 38-9)
A opinião de que Berlin seria um estrito defensor da liberdade negativa e opositor da
positiva pode ser uma impressão causada pela ênfase que Berlin dá às qualidades da primeira
e aos defeitos da segunda. Muito do ensaio é usado para demonstrar como a defesa da
liberdade positiva justificou, durante a história, enormes restrições de liberdade individual e
como a realização pessoal e o progresso da sociedade necessita da garantia de uma gama
mínima de ação pessoal enquanto direitos inalienáveis. Como já vimos, em "Dois Conceitos",
Berlin chega a representar de forma pouco fiel a posição de Benjamin Constant como um
defensor da liberdade negativa num “conflito dos dois tipos de liberdade”. (BERLIN, 2002,
2CL, II, p. 209) Já na introdução de Liberty, Berlin admite que Constant defendia o exercício
da liberdade positiva como meio de garantir a negativa, assim como John Stuart Mill defendia
tal forma de liberdade como um meio indispensável para se atingir a felicidade. Liberdade
positiva, então, seria um “objetivo universal válido” e o autogoverno democrático uma
necessidade humana fundamental. (BERLIN, 2002, Intro, p. 39) A introdução de Liberty é,
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por si só, mais um ensaio, feito em grande parte para desfazer mal entendidos com relação aos
argumentos anteriormente declarados por Berlin, como aqueles em "Dois Conceitos". Persiste
a dúvida sobre o porquê desses posicionamentos não terem sido claramente articulados no
ensaio original de Berlin, se por descuido ou se porque o autor realmente achou que, para
transmitir sua mensagem concernindo “os embates ideológicos do nosso século” (Ibidem, p.
3), seria melhor fazê-lo dessa forma, o que coloca sua honestidade em questão, uma vez que
"Dois Conceitos" nos faz chegar a conclusões que são negadas aqui. De um modo ou de
outro, não parece ser possível compreender as posições do autor sem esse ensaio posterior,
principalmente se considerarmos que o autor julgou necessário escrever esse texto para negar
várias das atribuições que lhe foram feitas.
Berlin crê que as distorções do conceito de liberdade negativa não foram tão
profundas nem causaram tantos malefícios através da história como as distorções da liberdade
positiva, mas que isso não quer dizer que elas não possam ser feitas. Ele se preocupa
especialmente com os abusos de uma noção absoluta de liberdade negativa que resultassem na
ausência de limitação contra os abusos dos mais fortes sobre os mais fracos, de forma que a
opressão e a exploração resultassem na diminuição das liberdades negativas dos mais fracos.
Berlin insiste que uma interferência deva ter causas humanas para ser considerada uma
violação de liberdade negativa, mas admite que relações de poder podem ser causas desse
tipo. (BERLIN, 2002, Intro, p. 40, nota 1) Na interpretação de Kaufman, Berlin não
consideraria a pobreza da Índia, por exemplo, como uma restrição de liberdade. (KAUFMAN,
1962, p. 243) O que Berlin diz, na verdade, é que se a pobreza for encarada como uma doença
ou se ela for causada por uma deficiência, uma característica da pessoa que não tenha sido
causada por outro alguém, então ela não pode ser considerada como falta de liberdade; porém,
se for reconhecida nos arranjos que a sociedade pratica uma causa para a pobreza de alguém,
então há sim aí uma restrição de liberdade. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 170) A crítica de
Kaufman, porém, vai mais longe e nós a examinaremos mais à frente.
O que Berlin chama de distorções são, na verdade, a autoderrota dos princípios
aplicados na prática. Embora a aplicação de determinado conceito de liberdade esteja de
acordo com seus princípios, o descuido na aplicação poderia levar a uma perda de liberdade
em vez de sua ampliação. Isso se deveria pela não observância da inevitabilidade dos conflitos
entre os diversos valores. A existência social dos indivíduos é atravessada por conflitos que só
deixariam de existir se as manifestações de valores em conflito fossem esmagadas, mas isso
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não seria desejável. Berlin atribui o progresso à discordância. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 1) Não
aceitando uma prescrição a priori do arranjo dos valores políticos, a sociedade deveria
negociar internamente, encarando tais conflitos de frente. Não havendo tal prescrição, não se
poderia reconhecer um valor como mais fundamental do que outro. A eleição de um valor
fundamental em detrimento da busca pelos outros não faria com que esses outros valores
surgissem por consequência do valor fundamental, pois não haveria equivalência possível
entre valores diferentes. Seria preciso haver clareza sobre os valores que se defende e Berlin
demonstra muita preocupação com a obscuridade das definições oferecidas para alguns
valores. Belinsky teria dito que se seus semelhantes permanecessem na pobreza e em
submissão, ele preferiria abandonar sua liberdade e viver em iguais condições. Berlin adverte
que confundir liberdade com igualdade dessa forma não traria ganhos para ninguém. (Ibidem,
p. 172) A eleição da igualdade como valor fundamental aqui não promoveria ganho de
liberdade para ninguém, na verdade, promoveria a perda total de liberdade para Belinsky. Não
haveria harmonização instantânea entre os valores quando seguimos uma regra
preestabelecida e nos negamos a observar os efeitos que tal postura causa na experiência da
sociedade. Mais tarde, porém, examinaremos a validade do argumento contra Belinsky.
Mas assim como um valor sozinho não daria conta de dois, dois valores diferentes
não poderiam coexistir sem que houvesse concessões. Embora não seja desejável abdicar de
toda liberdade para ganhar alguma ou total igualdade, não seria possível ter liberdade total e
gozar de segurança ao mesmo tempo, pois assim como os valores políticos se chocam, os
valores individuais também e logo o exercício de liberdades dos diferentes indivíduos também
entrarão frequentemente em choque. Então como não é possível termos total liberdade de
ação, trocamos parte dela por segurança, igualdade e solidariedade.
Por esse motivo, Berlin adverte contra um apreço excessivo pela liberdade negativa
dentro da esfera econômica. Uma economia laissez-faire, segundo Berlin, levaria àquilo que
ele chamou antes de escravidão econômica, pois embora o pobre seja livre para gastar o
pouco que tem, o pouco que tem não é suficiente como meio de realizar sua liberdade. Não
seria possível falar de direitos sem os meios para seu exercício. (BERLIN, 2002, Intro, p. 38)
Pelo menos até então, Berlin não acreditava que a defesa do conceito negativo de liberdade
tivesse distorcido tanto seu conceito quanto a defesa do positivo, uma vez que regimes
despóticos históricos se valeriam de um discurso que equaliza a liberdade com o exercício de
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determinados valores considerados superiores e expressados pelo estado em detrimento de
outras expressões, rigorosamente individuais.
Kaufman dá também voz à opinião de que “Berlin não é suficientemente radical em
sua exposição de tais ameaças às nossas liberdades essenciais”. Para Kaufman, já existiria
evidência suficiente de que os abusos da liberdade negativa precisavam ser discutidos. Onde
antes uma monarquia tirânica exercia controle intervindo fisicamente na vida dos súditos, já
se poderia atingir tal controle por meios mais “sutis”. Embora Berlin não tenha deixado de
falar dos perigos da concentração de riqueza, Kaufman não se dá por satisfeito, uma vez que
tal assunto é meramente referido, mas não explorado. Kaufman, então, oferece o argumento
de que haveria duas correntes na tradição liberal que aceitaram a escassez de recursos como
uma regra, e apenas poucos países se apresentavam como exceções – “Estados Unidos,
Alemanha Ocidental, Inglaterra, França e União Soviética”. A primeira corrente, que
Kaufman descreve como tenebrosamente pessimista, receitaria como métodos de conter a
pobreza, ações individuais e voluntaristas, como trabalho árduo, moderação e filantropia, mas
sem ilusão de que essa guerra possa ser definitivamente vencida, pois dever-se-ia aceitar a
condição humana como trágica. A segunda corrente, descrita como pacientemente otimista,
seria aquela que acredita que a escassez seria solucionada gradual e automaticamente pelos
mecanismos internos da economia de livre mercado. Sendo assim, nenhuma das duas
correntes se preocuparia com políticas de combate à obstrução da liberdade individual pela
pobreza, pois, de um lado, escassez seria um fato inevitável, mas que poderia ser amenizado
por ações individuais, enquanto de outro, bastaria esperar que o conjunto de transações entre
os indivíduos livres de interferência extinguisse toda escassez material. As duas correntes
veriam como prejudicial a interferência de políticas positivas do governo naquilo que elas
enxergam como o remédio à escassez, fosse tal remédio um paliativo ou a cura. (KAUFMAN,
1962, p. 242)
Como os pobres não poderiam realizar seus desejos por falta de poder ou meios e não
porque alguma outra pessoa teria colocado um obstáculo em seu caminho, Kaufman
argumenta que isso não constituiria para Berlin uma obstrução de liberdade, embora alguém
possa defender que os ricos deveriam prover meios para os pobres exercerem sua liberdade e
a omissão dos ricos nesse sentido perpetuaria uma obstrução. Para Kaufman, se alguém se
encontra obstruído, ele não estaria menos obstruído porque a causa da obstrução não é uma
ação humana deliberada. Kaufman defende que nesse caso não há interferência humana
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deliberada, mas acredita que a “insistência de Berlin no fator humano” é “incompreensível e
moralmente trivial”. (Ibidem, p. 243)
O conceito negativo de liberdade conforme definido por Berlin é uma formulação
insuficiente da liberdade para Kaufman, uma vez que é restrita demais para garantir direitos
humanos. Kaufman vê na obstrução não-humana ou na obstrução humana inadvertida um
motivo suficiente para considerarmos que há limitação de liberdade, mesmo que essa
liberdade seja concebida negativamente, do contrário estaríamos endossando a omissão
perante o testemunho do sofrimento e da escassez de recursos. O reconhecimento da
necessidade de remover tais restrições não-deliberadas como promoção da liberdade negativa
implica na promoção de ações positivas por parte dos governos, seja na politica interna, por
exemplo, fomentando diretamente a economia ou modificando o ambiente em favor do bem-
estar da população, seja na política externa na forma de ajuda a países mais pobres. (Ibidem)
Berlin não concorda com esse argumento. Ele não aceitaria, digamos, que uma
avalanche seja considerada uma privação do direito humano básico de livre movimento.
Berlin afirma que o único sentido para liberdade política que lhe concerne é aquele em que a
liberdade é impedida apenas pela ação humana ou pelo resultado das relações de poder.
(BERLIN, 2002, Intro, p. 40, nota 1) Isso é estranho, pois previamente na introdução de
Liberty, Berlin afirmara que liberdade positiva, assim como o autogoverno democrático – que
nada mais é que uma das manifestações da liberdade positiva –, também é um valor universal
válido. A posição de Berlin aqui nos deixa num dilema, pois é prudente que esgotemos toda
chance de caridade interpretativa antes de acusar um filósofo reconhecido de cometer um
erro. Não é possível que a única liberdade política possível seja a negativa e que, ao mesmo
tempo, liberdade positiva seja igualmente possível. Uma alternativa é que liberdade positiva
seja uma possibilidade, mas não do seu interesse. Tal alternativa é falsa, uma vez que Berlin já
deixou claro que o exercício da liberdade positiva é necessário para a preservação da negativa.
Outra alternativa seria que liberdade positiva fosse uma liberdade de outro tipo que não seja
política. Esta alternativa também é falsa, primeiramente pelo mesmo motivo da alternativa
anterior ser falsa, assim como, em segundo lugar, Berlin ter exemplificado o autogoverno
democrático como uma de suas manifestações. Mais uma alternativa seria desconsiderar a
liberdade positiva como uma forma de liberdade e entender sua formulação como uma
confusão de valores. Berlin realmente trata de conceitos que são tomados vulgarmente por
liberdade, mas que seriam outra coisa. É central para seu pensamento político que tais
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confusões entre os valores sejam dissipadas para que entendamos o que estamos escolhendo e
quais as consequências dessas escolhas. Porém, para que então insistir em chamar tal valor
liberdade positiva se tal valor não é uma forma de liberdade, principalmente após admitir que
tal valor é válido? Em "Dois Conceitos", Berlin é rápido em negar que o conceito de
liberdade social seja realmente uma forma de liberdade, mas um desejo por reconhecimento
público enquanto indivíduo autônomo ou membro de uma comunidade capaz de autonomia
individual. (BERLIN, 2002, 2CL, VI) Berlin não faz o mesmo com o conceito de liberdade
positiva, afirmando, em vez disso, que os problemas que surgem dela são advindos de uma
distorção lógica, algo que pode também acontecer no campo da liberdade negativa. Portanto
esta alternativa também deve ser descartada.
Uma última alternativa seria considerar que liberdade positiva é uma liberdade
política porque ela pode sofrer obstrução externa por agentes humanos – deliberados ou não,
uma vez que Berlin admite como ação humana o resultado do das relações de poder na
conjuntura sociopolítica. (BERLIN, 2002, Intro, p. 40, nota 1) Isto também não faz sentido,
pois se a liberdade positiva for passível de ser eliminada por meio de ação humana externa,
não estaremos mais falando de liberdade positiva, mas liberdade negativa. Alguém pode
apontar para a forma de restrição a qual Berlin se refere em O retorno à cidadela interna, ou
seja, quando o agente se conforma com os obstáculos (possíveis ou certos) e desiste de seu
desejo.(BERLIN, 2002, 2CL, V) Isso poderia ser descrito, por vezes, como a internalização da
coerção originalmente externa, uma perda de liberdade autoimposta pelo conformista sob a
perspectiva equivocada de que desistir de um desejo é um aumento de liberdade. Porém, por
algum motivo, Berlin passa a afirmar na Introdução que tal atitude resulta sim num aumento
de liberdade. Mesmo assim, ele insiste que um aumento de liberdade por abnegação
corresponde a uma diminuição na área de liberdades políticas possível. (BERLIN, 2002, Intro,
p. 31-2) Isto é extremamente confuso, já que Berlin associa ao conceito negativo de liberdade
as perguntas “qual minha área de ação possível?” (a extensão da área onde não há coerção) ou
“o quanto eu sou governado?” (a extensão da área onde há coerção). Berlin não está
meramente interessado em saber se o cidadão é capaz de executar a ação física que ele tem
vontade de executar – que é como Hobbes definiria liberdade –, mas se ele tem tal
oportunidade. (Ibidem, p. 35) É irrelevante para o autor que haja liberdades caso não exista
meios para utilizá-las. (Ibidem, p. 38) Vemos, portanto, que liberdade de escolha é um
componente importante para a liberdade política, mas apesar de Berlin sempre associar
liberdade negativa com a gama de liberdade possível, autorrealização e autogoverno são
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elementos da liberdade positiva. Posto dessa forma, seria muito mais intuitivo incluir
liberdade de escolha no conceito positivo de liberdade do que no negativo. Em momentos
como este, a divisão entre positiva e negativa da liberdade traz mais problemas do que
soluções, pois se é tão importante para Berlin sabermos de que valor estamos tratando, aqui é
muito difícil distinguir liberdade negativa da positiva.
1.3 – MacCallum e a rejeição da separação da liberdade em dois conceitos.
Gerald C. MacCallum, Jr. está entre os críticos da abordagem que Berlin faz da
liberdade. Em seu “Negative and Positive Freedom”, MacCallum questiona a utilidade de se
separar a liberdade social e política em dois conceitos diferentes e discutir qual seria o melhor
ou mesmo o verdadeiro. Para ele, não existem duas formas diferentes de liberdade social e
política. Elas são a mesma, embora focadas em diferentes componentes da real relação
triádica que caracteriza a presença ou ausência de liberdade.
A relação triádica em questão é expressa da seguinte forma:
Agente x é livre / não é livre de y para fazer / ser / não fazer / não ser z.
x é uma pessoa. y é algo que, quando presente, obstrui a liberdade de x. z é aquilo que
x realizará se estiver livre de y, ou aquilo que y impedirá x de realizar. (MACCALLUM, 1967,
p. 314)
Dessa forma, ambos os valores descritos como liberdade negativa e liberdade positiva
seriam o mesmo conceito. Duas pessoas, cada uma assumindo a defesa de cada um dos dois
valores, estariam falando da mesma liberdade, mas através de aspectos diferentes. Dessa
forma, tal tipo de diferenciação estaria sempre negligenciando algum aspecto que é
fundamental para examinarmos o status de liberdade dos sujeitos em questão. O que é
chamado de liberdade negativa seria a liberdade articulada apenas em termos da relação entre
x e y (agente e obstrução), enquanto a liberdade positiva seria uma relação apenas entre x e z
(agente e ação). (Ibidem, p. 318) MacCallum defende que, se ambos os lados estão falando da
mesma liberdade, então deveríamos examinar o que cada lado considera como agente e como
obstrução em vez de focarmos numa diferença que não existe.
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Uma vez que a diferenciação entre dois supostos conceitos de liberdade
exclusivamente focados em “livre de y” ou “livre para z” é desfeita, MacCallum propõe que
se examine as caracterizações remanescentes de cada campo. Sobre as possíveis obstruções à
liberdade, o campo negativo consideraria que apenas a presença de algo constituiria uma
obstrução à liberdade de alguém, enquanto para o campo positivo, a ausência de algo também
seria considerada uma obstrução. Além disso, o campo negativo parece insistir numa causa
humana para a obstrução, enquanto o campo positivo não parece aderir a essa especificação. E
sobre o que contaria como uma pessoa, um sujeito, o campo negativo parece contar apenas
indivíduos, enquanto o campo positivo aparentemente admite uma certa elasticidade ao
conceito. Através de uma “retirada à cidadela interior”2, a pessoa seria reduzida a uma
condição interior que excluiria desejos em desacordo com a racionalidade, fazendo-a escolher
apenas aquilo que ela “realmente desejaria”. E num movimento oposto, a pessoa equivaleria a
uma categoria inteira de sujeitos, uma vez que a liberdade de cada indivíduo para fazer ou ser
algo estaria ligada a manutenção das relações internas da categoria, pois a violação da
identidade dos sujeitos como membros da categoria seria uma violação da autonomia de
associação entre eles. (MACCALLUM, 1967, p. 320-5)
Mesmo assim, a divisão entre as duas concepções de liberdade não é satisfatória, pois,
por exemplo, violações de liberdade podem ser formuladas, por vezes, tanto como presença
de obstáculos como ausência de meios. Alguém pode não estar livre pela presença de
correntes, mas também pela ausência de chaves. Da mesma forma, quando alguém tem
ausência de meios para realizar-se, o exemplo dado por MacCallum sendo falta de
qualificação profissional, pode se dizer que ninguém está no caminho da pessoa, que seu
fracasso é de sua própria responsabilidade dada sua natureza individual; ou pode-se dizer que
a conjuntura sociopolítica, que é um conjunto de ações humanas, impediu a pessoa de
alcançar as qualificações necessárias para exercer uma profissão adequada à sua realização.
Inclusive quando se atribui a alguém um grau de irracionalidade que supostamente a
desqualificaria como autônoma (dentro de um paradigma de autodomínio), poder-se-ia dizer
que isto foi causado pela presença de algum “arranjo ou instituição social, educacional ou
moral específico” (Ibidem, p. 321, nota 8) Veremos mais tarde que Mikhail Bakunin afirma
justamente que as hierarquias sociais perpetuam a falta de liberdade dos trabalhadores mais
2 MacCallum comete uma confusão aqui, pois o conceito de “retirada para a cidade interior” não é a redução do eu para uma esfera interior e transcendental, mas a abnegação com a qual se desiste de um objetivo ao jurgá-lo muito difícil ou impossível.
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pobres, impedindo-lhes o acesso ao conhecimento científico necessário para sua
autorrealização.
De qualquer modo, estas não são diferenças sobre o que liberdade é, mas sobre suas
condições. Ao separarmos discursos e autores em dois campos, lidamos com o assunto como
se houvesse duas liberdades diferentes, quando elas são a mesma coisa e nosso foco é
desviado da real diferença. Além disso, MacCallum adverte contra o empobrecimento da
interpretação das ideias dos autores políticos, uma vez que seus trabalhos não foram escritos
com tal recorte em mente. Forçá-los a caber nessa diferença entre liberdade positiva e
negativa conduz a equívocos ao ignorarmos argumentos e afirmações que não cabem nos
rótulos propostos. (Ibidem, p. 321, notas 7-9)
Reside aqui certa ambiguidade, pois Berlin concede em alguns momentos que autores
políticos não estão plena e exclusivamente num campo ou no outro e MacCallum reconhece
isso pelo menos no caso de Marx. Porém o caso de Marx é justamente aquele no qual Berlin
mais enfaticamente atribui adesão ao campo positivo. Em contraste, MacCallum aponta para
Locke como o caso emblemático da rotulação no campo negativo, embora Berlin faça citação
direta a Locke defendendo aspectos da dita liberdade positiva. Sobre Marx, Berlin concede
em uma breve passagem que dependendo da teoria à qual o sujeito adere, ele poderá
considerar a pobreza e deficiência física ou mental como restrições à liberdade, mas “só se eu
aceito a teoria”. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 170) Na nota 1 da mesma página, ele elenca como
exemplos de tais teorias as leis sociais no marxismo e também as outras formas de socialismo,
além de algumas as doutrinas cristãs e utilitaristas. Porém nós já vimos que Berlin não
considera causas não humanas como restrições de liberdade, então ficamos tentados a crer que
ele não vê legitimidade em tais teorias, até lembrarmos que Berlin acha irrelevante falar sobre
direitos quando não há meios para exercer tais direitos e que ele se opõe ao capitalismo
laissez-faire. É difícil dizer, no entanto, se ele adere à noção de que os exemplos citados são
mesmo violações de liberdade ou meramente ausência de meios para exercer a liberdade. E
como no exemplo do sujeito acorrentado, uma mudança de formulação na descrição do estado
do sujeito complicaria nossa compreensão do que seria liberdade e o que seriam meios para a
liberdade: estar acorrentado é uma violação da liberdade, mas não possuir a chave das
correntes é a mesma coisa ou deixa de ser uma violação para virar uma mera falta de meios?
Ao questionarmos a relevância de tais distinções, voltamos à crítica de Kaufman, na qual
restringir-se a impedir interferência humana na liberdade alheia é insuficiente para garantir a
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liberdade das pessoas, além de ser moralmente questionável observar a falta de meios alheia e
se omitir de tomar ações positivas.
Quanto a Locke, Berlin cita trechos em que o autor defende aspectos positivos da
liberdade, criticando-o por fazer confusão entre liberdade e cerceamentos da liberdade com o
fim de impedir violações da liberdade negativa. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 193) São trechos do
parágrafo 57 do Segundo Tratado sobre o Governo Civil, onde se diz:
A lei, em sua verdadeira noção, não é tanto limitação, mas a direção de um agentelivre e inteligente em seu próprio interesse, e só prescreve visando o bem comumdaqueles que lhe são submetidos. Se eles pudessem ser mais felizes sem ela, a leidesapareceria como um objeto inútil; e não merece o nome de confinamento aquiloque nos restringe apenas de lodaçais e precipícios. De forma que, mesmo que possaser errada, a finalidade da lei não é abolir ou conter, mas preservar e ampliar aliberdade. Em todas as situações de seres criados aptos à lei, onde não há lei, nãohá liberdade. A liberdade consiste em não se estar sujeito à restrição e à violênciapor parte de outras pessoas; o que não pode ocorrer onde não há lei: e não é comonos foi dito, uma liberdade para todo homem agir como lhe apraz.
(LOCKE, 2006, §57)3
MacCallum questiona por que Locke não é encaixado no campo positivo graças a
esse trecho, porém Berlin realmente atribui à passagem o caráter de liberdade positiva e de
crença num monismo de valores, onde se todos fossem perfeitamente racionais, as ações de
todas as pessoas se harmonizariam, pois todos agiriam de acordo com ideias corretas e
crenças verdadeiras e tudo que é verdadeiro necessariamente estaria livre de conflito.
(BERLIN, 2002, 2CL, p. 193) O que Berlin deseja aqui é contrastar tal tipo de argumento que
iguala restrição de liberdade à liberdade com a posição exemplificada por Bentham, quando
este diz que “toda lei é contrária à liberdade” e que erros e crimes são abusos de liberdade
justamente porque são ações livres e que restringimos a liberdade dos tolos justamente porque
eles fazem mau uso dela. (BENTHAM, 1843, apud BERLIN, 2002, 2CL, p. 193, nota 3; p.
194, nota 1) Se bom uso da razão fosse condição para a liberdade, não se poderia dizer que é
preciso restringir-lhes a liberdade. Isso, é claro, tem implicações na responsabilização dos
agentes, uma vez que é problemático culpar e punir alguém que se considera como não
possuidor da liberdade.
Mas esta repreensão sobre Locke só faz sentido porque a liberdade foi separada em
dois conceitos diferentes, o positivo e o negativo. Como MacCallum diz, se levarmos em
3 O trecho “and that ill deserves the Name of Confinement which hedges us in only from Bogs and Precipices” foi retraduzido para corrigir um erro na tradução usada.
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consideração o modelo triádico de liberdade, uma restrição inserida na relação pode ser ao
mesmo tempo um meio para a realização de um outro objetivo. A faixa de pedestres, por
exemplo, representa a restrição do cruzamento de qualquer outro trecho da rua, porém
representa também a prioridade do pedestre com relação aos automóveis. (MACCALLUM,
1967, p. 330) Sem a faixa de pedestres determinando um local exclusivo para o cruzamento
de pedestres e no qual os motoristas reconhecessem a necessidade de dar prioridade a esses
pedestres, a liberdade que o indivíduo tem de cruzar em qualquer ponto da rua pode ser
subitamente interrompida por um atropelamento