DUAS ABORDAGENS SOBRE A LIBERDADE: ISAIAH BERLIN EM “DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE ... · 2019. 3....

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CRISTIANO DE OLIVEIRA GOMES DUAS ABORDAGENS SOBRE A LIBERDADE: ISAIAH BERLIN EM “DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE” E MIKHAIL BAKUNIN DE 1866 AO FIM DE SUA VIDA Rio de Janeiro 2019

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROCRISTIANO DE OLIVEIRA GOMES

    DUAS ABORDAGENS SOBRE A LIBERDADE:ISAIAH BERLIN EM “DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE” E

    MIKHAIL BAKUNIN DE 1866 AO FIM DE SUA VIDA

    Rio de Janeiro2019

    Cris OliveiraOval

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    CRISTIANO DE OLIVEIRA GOMES

    DUAS ABORDAGENS SOBRE A LIBERDADE:ISAIAH BERLIN EM “DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE” E

    MIKHAIL BAKUNIN DE 1866 AO FIM DE SUA VIDA

    Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação Lógica eMetafísica, PPGLM, da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, como partedos requisitos necessários à obtenção deMestre em Filosofia. Orientadora: Marina Isabel Velasco

    RIO DE JANEIRO 2019

    Cris OliveiraOval

  • CIP - Catalogação na Publicação

    Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

    G633dGomes, Cristiano de Oliveira Duas abordagens sobre a liberdade: Isaiah Berlinem "Dois Conceitos de Liberdade" e Mikhail Bakuninde 1866 ao fim de sua vida / Cristiano de OliveiraGomes. -- Rio de Janeiro, 2019. 103 f.

    Orientadora: Marina Isabel Velasco. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Programa de Pós-Graduação em Filosofia,2019.

    1. Anarquismo. 2. Bakunin. 3. Berlin. 4.Liberalismo. 5. Liberdade. I. Velasco, MarinaIsabel, orient. II. Título.

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    Agradecimento

    Gostaria de agradecer à minha orientadora Marina Isabel Velasco, cujo encorajamento foi

    essencial para que eu pudesse perseverar através de um período difícil e realizar este trabalho.

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    (…) Gerações inteiras, nascidas e mortas na miséria, legaram esta imensa herança

    ao século XIX.

    Em milhares de anos, milhões de homens trabalharam em debastar florestas, sanear

    pântanos, abrir estradas, erguer diques nos rios. Cada hectare do solo que se

    cultiva na Europa foi regado pelo suor de diversas raças; cada estrada tem uma

    história das fadigas do trabalho humano, dos sofrimentos do povo. Cada légua de

    estrada de ferro, cada metro de túnel recebeu a sua parte de sangue humano. (…)

    E mesmo agora, o valor de cada casa, fábrica ou armazém, é feito do trabalho

    acumulado de milhões de trabalhadores sepultados sob a terra. Milhões de seres

    humanos trabalharam para criar esta civilização de que hoje nos glorificamos;

    outros milhões disseminados na superfície da terra trabalharam para manter.

    Mesmo o pensamento, mesmo a invenção são fatos coletivos nascidos do passado e

    do presente. Milhares de inventores mortos na miséria prepararam a invenção de

    cada uma dessas máquinas, em que o homem admira seu gênio. Milhares de

    escritores, poetas e sábios trabalharam na elaboração do conhecimento, para criar

    a atmosfera do pensamento científico, sem a qual nenhuma das maravilhas do nosso

    século teria aparecido. Mas todos esses sábios, poetas e filósofos, já tinha sido

    suscitados pelo trabalho dos séculos anteriores; tinham sido mantidos física e

    moralmente, por legiões de trabalhadores e artistas de toda espécie. (…)

    Cada descoberta, cada progresso, cada aumento de riqueza da humanidade tem o

    seu princípio no conjunto do trabalho manual e cerebral do passado e do presente.

    Logo, com que direito poderia alguém apossar-se da menor parcela desse imenso

    patrimônio e dizer: “Isto é meu, não é vosso!”

    (KROPOTKIN, A Conquista do Pão, 2011, pp. 21-2)

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    RESUMO

    GOMES, Cristiano de Oliveira. Duas abordagens sobre a liberdade: Isaiah Berlin em“Dois Conceitos de Liberdade” e Mikhail Bakunin de 1866 ao fim de sua vida.Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) – Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019

    Esta dissertação tem por objetivo analisar as conceitualizações da liberdade conformeapresentadas por Isaiah Berlin em "Dois Conceitos de Liberdade" e por Mikhail Bakunin noseu período anarquista. Concernindo Berlin, serão abordados o monismo e o pluralismo devalores, a diferenciação entre os conceitos positivo e negativo de liberdade, algumas críticasque lhe foram direcionadas e suas respostas a elas. Também serão apresentados oscomentários de Berlin sobre Bakunin. Quanto a Bakunin, será apresentado o caminho da suaontologia materialista até as condições sociais necessárias para a realização da liberdadeconforme princípios anarquistas. Ao fim, será defendido que as formulações do pluralismo eda liberdade oferecidas por Berlin são inadequadas para os intentos descritos nelas mesmas eque o Anarquismo de Bakunin, embora não proponha um pluralismo de valores, ainda é maisadequado à promoção de um pluralismo de fins.

    PALAVRAS-CHAVE: Liberdade. Política. Democracia. Anarquismo. Liberalismo. Federalismo. Socialismo. Materialismo. Determinismo. Berlin. Bakunin.

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

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    ABSTRACT

    GOMES, Cristiano de Oliveira. Duas abordagens sobre a liberdade: Isaiah Berlin em“Dois Conceitos de Liberdade” e Mikhail Bakunin de 1866 ao fim de sua vida.Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) – Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019

    This dissertation aims to analyze the conceptualizations of freedom or liberty as theyare presented by Isaiah Berlin in “Two Concepts of Liberty” and by Mikhail Bakunin in hisAnarchist period. Concerning Berlin, we will address monism and pluralism of values, thedifferentiation between the positive and the negative concepts of liberty, some of thecriticisms directed towards him and his replies. We will also present comments by Berlin onBakunin. Regarding Bakunin, we will present the path from his materialist ontology to thesocial conditions for the realization of freedom according to Anarchist principles. By the end,it will be defended that the formulation for pluralism and liberty forwarded by Berlin areinadequate for the intents expressed in themselves and that Bakunin’s Anarchism, although itdoes not proposes a pluralism of values, is nonetheless more adequate to the promotion of apluralism of ends.

    KEYWORDS: Liberty. Freedom. Politics. Democracy. Anarchism. Liberalism. Federalism.Socialism. Materialism. Determinism. Berlin. Bakunin.

    This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001

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    Abreviações:2CL: Two Concepts of Liberty / Dois Conceitos de LiberdadeAFWoNI: A Few Words on Non-InterventionFSA: Fédéralisme, Socialisme et Antithéologisme / Federalismo, Socialismo e AntiteologismoIntro: IntroduçãoJSMatEoL: John Stuart Mill and the Ends of LifeMCI: Meu caminho intelectual PotI: Pursuit of the Ideal / A Busca do Ideal

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    Sumário

    Introdução ……………………………………………………………………………

    1 – Isaiah Berlin ……………………………………………………………………..1.1 – Dois Conceitos de Liberdade …………………………………………………...1.2 – Reconsiderações perante críticas ……………………………………………….1.3 – MacCallum e a rejeição da separação da liberdade em dois conceitos ………...1.4 – Berlin contra Bakunin …………………………………………………………..

    2 – Mikhail Alexandrovich Bakunin 2.1 – Do materialismo à liberdade ……………………………………………………2.2 – Formulações e condições para a liberdade ……………………………………..2.3 – Religião …………………………………………………………………………2.4 – Socialismo Federalista ………………………………………………………….

    3 – Comparação entre os argumentos de Berlin e Bakunin sobre a liberdade ….3.1 – Berlin, pluralismo de valores, individualismo e liberdade ……………………..3.2 – Bakunin e o coletivismo ………………………………………………………..

    Conclusão …………………………………………………………………………….

    BIBLIOGRAFIA …………………………………………………………………….

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    Introdução

    Nesta dissertação, analisaremos os conceitos de liberdade nos pensadores russos Isaiah

    Berlin e Mikhail Bakunin. Focaremos especificamente no ensaio de Berlin chamado "Dois

    Conceitos de Liberdade", mas também na introdução da coletânea Liberty – Incorporating Four

    Essays on Liberty, sem a qual o entendimento do ensaio é incompleto; concernindo Bakunin, nosso

    alvo é o período de 1866 até os anos próximos ao fim da sua vida, que correspondem à cristalização

    dos seus ideais anarquistas. Como Berlin abordou e atacou Bakunin num ensaio incluído em

    Russian Thinkers, também trataremos dessa abordagem aqui.

    Isaiah Berlin foi um filósofo e historiador britânico nascido no Império Russo (na cidade de

    Riga, hoje parte da República da Letônia) que, ao assumir cadeira na universidade de Oxford em

    1958, apresentou em sua aula inicial o ensaio "Dois Conceitos de Liberdade". Nele, Berlin

    apresenta sua noção de pluralismo de valores, na qual afirma que os conflitos gerados por valores

    são parte inerente da experiência humana e, logo, não podem ser evitados, devendo ser encarados de

    frente, o que significa dizer que deve-se aceitar a existência de uma variedade de valores legítimos,

    mesmo que eles não sejam compatíveis em absoluto nem possuam uma medida a priori que

    determine de antemão qual valor deve ser priorizado. Rejeita-se assim uma medida universal na

    qual todas as respostas verdadeiras a problemas sejam passíveis de harmonização entre si, ou seja,

    rejeita-se um monismo de valores.

    Nesse contexto, o texto se centra na diferença entre dois valores possíveis, duas concepções

    diferentes da liberdade: a negativa e a positiva. A primeira se refere à zona de ação na qual o

    indivíduo não encontra interferência vinda de outra pessoa. Já a segunda concepção não é tão

    intuitiva e nem é apresentada de forma tão simples, pois já começa sendo definida como um

    questionamento sobre de onde viriam as formas de interferência que um indivíduo sofre ao tentar

    agir ou se realizar. A questão da diferenciação entre os aspectos positivo e negativo da liberdade já

    não era nenhuma novidade, datando pelo menos desde Kant e já tendo sido tratada por Benjamin

    Constant e até mesmo por Bakunin. Porém há uma diferença notável na forma como a liberdade

    positiva é apresentada em Berlin, uma vez que sua intenção é demonstrar as formas pelas quais tal

    conceito teria sofrido uma distorção a ponto de resultar não em ganho de liberdade, mas em perda.

    Por isso ele começa por definir tal concepção por meio da fonte de interferência, enquanto a

    concepção negativa é sempre definida pela falta de interferência humana.

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    Esse ensaio se tornou bastante influente, seja como uma inspiração, seja como fonte

    de discórdia. Berlin sentiu a necessidade de responder aos vários críticos que, segundo ele,

    teriam entendido o contrário do que ele quis dizer em determinados pontos. Na introdução da

    coletânea Four Essays on Liberty, posteriormente revisada e expandida sob o título de

    Liberty, Berlin tenta prover os esclarecimentos que julga necessário para os mal entendidos

    surgidos na leitura de "Dois Conceitos de Liberdade" e de Inevitabilidade Histórica. Nela,

    Berlin afirma que é incorreto acusá-lo de rejeitar o conceito positivo de liberdade como um

    valor político legítimo e que duas de suas principais influências políticas, Constant e Mill,

    defenderam o exercício da liberdade positiva como meio para preservar a liberdade negativa.

    Analisaremos também algumas das críticas endereçadas a Berlin.

    Mikhail Alexandrovich Bakunin, nascido entre a baixa nobreza russa do século XIX,

    perdeu seu status de nobreza devido ao envolvimento no ativismo socialista pela Europa,

    sendo preso e posteriormente enviado à Sibéria, de onde fugiu. Passou por várias fases: de

    seus estudos iniciais na juventude, influenciado principalmente por Fichte e Hegel,

    publicando traduções de ambos para o russo; o seu período pan-eslavista, sua prisão, exílio na

    Sibéria e escapada para o Japão e os Estados Unidos; e após seu retorno à Europa, entraria

    finalmente em sua transição para o Anarquismo, que concluiria ao fim da década de 1860.

    O texto de Bakunin a receber atenção principal aqui é Considerações Filosóficas

    sobre o Espírito Divino, sobre o Mundo Real e sobre o Homem, trecho de uma obra maior

    inacabada, chamada O Império Knuto-Germânico e a Revolução Social, da qual também saiu

    a sua publicação mais conhecida, Deus e o Estado, também inacabada. Trechos de

    Considerações Filosóficas aparecem também em Federalismo, Socialismo e Antiteologismo,

    outro texto aqui abordado e que serviu como base de princípios para a Liga da Paz e da

    Liberdade. Outros textos usados aqui são “Catecismo Revolucionário”, de 1866, marcando o

    início de sua transição para a filosofia anarquista; o supracitado Deus e o Estado; Estatismo e

    Anarquia, os programas da Irmandade Internacional e da Aliança da Democracia Socialista,

    cartas, textos em periódicos, etc.; além de comentaristas como Rudolf Rocker, Sam Dolgoff,

    Paul McLaughlin, René Berthier e Éric Vilain.

    Considerações Filosóficas merece nossa atenção especial por estabelecer uma

    ontologia sobre a qual o pensamento político de Bakunin pudesse se assentar. Num primeiro

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    momento, a preocupação de Bakunin é rejeitar qualquer base teológica ou metafísica para a

    natureza, podendo assim fundar o conhecimento humano no empirismo. Dessa forma, busca-

    se democratizar o conhecimento, abolindo-se as autoridades dos padres, fictícia (de Deus) e

    dos acadêmicos estritamente teóricos, substituindo-as pela experiência direta do dia a dia e

    pelo acesso universal ao corpo do conhecimento humano acumulado. Num segundo momento,

    procura-se inverter a lógica do Liberalismo sobre o entendimento da história humana, que

    entenderia que o indivíduo abandona a liberdade absoluta de uma origem de isolamento para

    uma vida social de liberdade restringida pelo convívio, para um novo entendimento de que o

    homem seria social por natureza e se tornaria cada vez mais livre conforme trabalha junto. O

    desenvolvimento da sociedade e da cultura seriam, portanto, expressão da liberdade humana,

    pois seria assim que a humanidade superaria suas restrições iniciais. Embora o homem seja

    determinado pelas leis da natureza tanto quanto qualquer outro ser e não faça sentido buscar

    ser livre da natureza, a razão e o conhecimento humanos fariam com que fôssemos capazes de

    usar tais leis a nosso favor e modificar o mundo conforme nossa vontade e necessidade.

    Por fim, compararemos as posições dos dois autores aqui apresentadas e tentaremos

    demonstrar que as contradições no discurso de Isaiah Berlin impossibilitariam a realização de

    um pluralismo de valores fundado na liberdade e que o Anarquismo de Bakunin, se não possui

    chances maiores do que Berlin de realizar o pluralismo, não seria por motivos tão diferentes –

    a despeito de toda rejeição e condenação da parte de Berlin, que atacou pesadamente Bakunin

    e o Anarquismo, na maioria das vezes usando ataques pessoais e abordando os argumentos de

    Bakunin de forma pouco fiel e até mesmo caricata, carecendo de uma compostura que

    condiga com um intelectual de responsabilidade tratando de um assunto de importância

    histórica. Mesmo assim, se ao Anarquismo de Bakunin couber categorização como uma forma

    de monismo de valores, pretendemos demonstrar aqui que ele não é incompatível com a

    promoção de um pluralismo de fins. Esperamos, com isso, prestar aos leitores um

    esclarecimento sobre o Anarquismo que lhes teria sido negado por notáveis históricos da

    academia, como Berlin.

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    1 – Isaiah Berlin

    1.1 – Dois Conceitos de Liberdade – Análise das ideias principais

    Em "Dois Conceitos de Liberdade", palestra inaugural de Isaiah Berlin ao assumir sua

    cadeira na Universidade de Oxford, posteriormente publicado como ensaio e mais tarde

    revisado, o autor se propõe a analisar dois conceitos que ele julga serem centrais dentre as

    noções de liberdade: as liberdades ‘negativa’ e ‘positiva’. A primeira corresponde a tudo

    aquilo que o agente pode ser ou realizar sem sofrer interferência de outrem e quão grande é

    essa gama de ações e realizações potenciais. A segunda concepção recebe diferentes

    definições ao longo do texto, mas começa sendo caracterizada como “a fonte de controle ou

    interferência que pode determinar a alguém fazer ou ser isso em vez daquilo”. (BERLIN,

    2002, 2CL, p. 169) Esses dois conceitos não se originam da obra de Berlin e, particularmente,

    o conceito de liberdade positiva não recebera tal definição na tradição liberal. Para

    entendermos o porquê disso, é preciso compreender o contexto histórico no qual esse ensaio

    se insere – a guerra fria – e a intenção do autor em demonstrar como as restrições às

    liberdades dos cidadãos nos regimes comunistas, assim como em regimes de outras tendências

    autoritárias e até mesmo por vezes em democracias, são consequência de linhas de

    pensamento idealistas que distorcem o sentido positivo da liberdade. Historicamente, tal

    distorção teria sido muito maior do que a sofrida pelo sentido negativo da liberdade.

    Tradicionalmente, quando a liberdade positiva é caracterizada como ‘autorrealização’, ela

    então pode ser entendida como um dos lados da moeda da liberdade como um todo, a

    liberdade negativa sendo o outro lado, embora Berlin, mais tarde, esclareça que considera os

    dois conceitos como valores completamente diferentes entre si.

    Berlin segue a introdução tratando da liberdade negativa. Já aqui percebemos a

    importância que o autor dá à questão dos conflitos de interesses e de valores. Pluralismo de

    valores é a ideia de que há mais de um valor a escolher e que apesar de que eles possam entrar

    em conflito, isso não quer dizer que valores escolhidos sejam necessariamente ruins, mas que

    conflito é inerente às relações humanas e que tais instâncias de conflito devem ser resolvidas

    sem uma regra a priori que determine universalmente uma hierarquia de valores. O exemplo

    mais clássico na literatura política talvez seja o do contrato social, no qual liberdade é

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    sacrificada em troca de segurança. Sacrificar toda liberdade não parece ser bom, enquanto a

    total liberdade parece incompatível com a segurança. Jean-Jacque Rousseau defende que os

    ganhos do contrato social equivalem ao que é perdido – “Em dando-me a todos, dou-me a

    ninguém” (ROUSSEAU, 1762, apud BERLIN, 1969, p. 17) – e isso é um ponto de crítica

    para Berlin, pois cada valor não pode se equivalente a nenhum outro. O que o sujeito perde

    em liberdade não é recuperado por meio da igualdade, da segurança ou da ordem social.

    Nesse sentido, Hobbes teria sido mais honesto, pois a submissão dos súditos ao soberano, em

    sua teoria, não é disfarçada. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 210)

    Cada valor seria potencialmente incomensurável, de modo a não poder haver cálculo

    prévio que aponte de antemão o que devemos escolher. (Berlin não deixa claro como saber

    quais valores seriam ou não incomensuráveis.) Assim como diferentes valores pesam pratos

    diferentes da balança, as diferentes escolhas de diferentes indivíduos também são fontes de

    conflito. Exercício irrestrito da liberdade de um indivíduo pode resultar na limitação da

    liberdade negativa de outro. Dentro da tradição liberal, o estado existiria então para garantir

    que as tais interferências não impeçam a sobrevivência e a dignidade de cada cidadão. Mas

    essa mesma tradição se preocupa com a manutenção de uma esfera de liberdade pessoal que

    seja grande o suficiente para que o indivíduo possa se realizar sem interferência do estado. O

    tamanho dessa esfera é fonte de divergência, o que também está de acordo com o pluralismo

    de valores, pois não há nada que indique um ponto ideal a não ser a experiência no momento

    em que tais questões são discutidas. Há discordâncias inclusive sobre se condições como a

    pobreza de algum indivíduo são ou não uma limitação de liberdade negativa, pois diferentes

    teorias poderiam considerar que a pobreza é causada ou por fatores individuais ou por

    arranjos econômicos injustos adotados por aquela sociedade. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 169-

    71) Fatores individuais podem ser entendidos como aqueles que excluem a existência de

    responsabilidade ou culpa alheia, como o azar ou escolhas pessoais, enquanto arranjos

    injustos seriam a influência direta da conjuntura sob a qual a sociedade vive e que está além

    dos poderes da vítima da pobreza, sendo tal conjuntura a soma de decisões e ações humanas

    como causa de prejuízo à liberdade de indivíduos. Veremos mais tarde a posição pessoal de

    Berlin sobre o assunto.

    Porém não seria impossível que um regime despótico permitisse aos cidadãos agir

    sem interferência dentro de uma determinada esfera. Hobbes demonstra como isso é possível:

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    Quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que osoberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou deomitir, conformemente à sua discrição. Portanto essa liberdade em alguns lugares émaior e noutros menor, e em algumas épocas maior e noutras menor, conforme osque detêm a soberania consideram mais conveniente.

    (HOBBES, 1979, p. 17)

    Uma democracia poderia impedir as liberdades individuais de tal forma que Berlin

    admite que não haveria um elo necessário entre liberdade individual e democracia. No que

    concerne a forma de regime, “quem me governa” é uma questão ligada à liberdade

    positiva e não à negativa. Mesmo assim, Berlin continua ligando a concepção positiva de

    liberdade a “um modo prescrito de vida”, (BERLIN, 2002, 2CL, p. 178) ou seja, na qual o

    exercício da liberdade não coincide com a volição do sujeito, mas com alguma determinação

    externa à vontade do indivíduo, seja uma formulação lógica, um valor estimado dentro de

    alguma tradição ou a palavra de um tirano. Porém se nós respondermos “eu mesmo” à

    pergunta “quem me governa”, a pergunta não passa a se situar fora do conceito positivo. O

    que Berlin pretende, portanto, é ligar a ideia de autodeterminação às ideias de autodomínio

    (self-mastery) e abnegação (self-abnegation) e demonstrar a raiz do abuso da concepção

    positiva: ao reconhecer como livre apenas uma manifestação supostamente transcendental do

    indivíduo, seria possível legitimar a limitação de qualquer ação que fosse motivada por

    impulsos baixos, passionais, não racionais ou mundanos, seja por meio da educação e dos

    costumes, seja por violência estatal, uma vez que ações motivadas por tais instâncias baixas

    do sujeito não seriam manifestações da verdadeira liberdade e suas limitações não seriam

    entendidas como limitações da verdadeira liberdade.

    O item do ensaio sobre a liberdade positiva começa justamente categorizando-a como

    autodeterminação. Tal mudança, de “quem me controla” para “como posso me

    autodeterminar”, seria para demonstrar qual teria sido a distorção lógica causada pelos

    defensores da liberdade positiva. Berlin acredita que a distorção tenha origem na noção de

    liberdade como autodomínio (self-mastery) e na noção racionalista de indivíduo. O indivíduo

    só seria senhor de si mesmo quando agisse de acordo com a razão. Escravo é aquele que se

    deixa levar por impulsos, não sendo diferente de um animal. É como se, no mesmo indivíduo,

    houvesse um uma existência superior e outra inferior. Só deve ser considerado autônomo

    quem segue seu ‘eu superior’, pois é pela razão que o homem teria controle de suas ações.

    Uma pessoa indisciplinada e incapaz de avaliar suas decisões é como que levada pelas forças

    da natureza, um mero elo na cadeia causal, determinada por forças externas, mesmo sendo tais

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    forças suas próprias paixões. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 178-80) Se essa é a origem da

    distorção do conceito de liberdade positiva, então ela é muito antiga, pois tal racionalismo

    data, pelo menos, desde Platão.

    Berlin atribui tal distorção a “todas as teorias políticas da autorrealização”, embora

    afirme que o mesmo pode ser feito com o conceito negativo de liberdade. (BERLIN, 2002,

    2CL, p. 180) A diferença parece residir na distância entre os fatos e os discursos. Embora a

    interação entre os conceitos negativos e positivos devam ser consideradas de acordo com o

    princípio do pluralismo de valores para que a liberdade conforme exercida na realidade seja

    realizada, certas teorias podem ignorar ou mesmo excluir um ou outro conceito. No caso das

    teorias da liberdade positiva, ao colocarem a liberdade num plano transcendental, o ‘eu

    empírico’ não é mais reconhecido como um agente legítimo. Torna-se possível dizer que um

    indivíduo tomaria decisões diferentes caso fizesse um uso mais reto da razão e se não o faz,

    seria benéfico impedi-lo de agir em erro. Legitima-se então que alguma autoridade externa

    aos indivíduos decida o que é certo ou não fazer. A distorção causa, portanto, um paradoxo,

    pois em nome da liberdade, se retira a liberdade do indivíduo.

    No caso da liberdade negativa, como já vimos, não é consenso o quanto dela o

    indivíduo deve reter. O exercício da liberdade de diferentes indivíduos pode entrar em

    conflito. Por exemplo, se alguém tiver a liberdade de dar uma festa durante a madrugada,

    outro alguém não terá a liberdade de ter uma boa noite de sono. Numa escala maior, isso

    impediria a sociedade de funcionar. Ordem social não é a mesma coisa que liberdade, mas ela

    pode ser priorizada por um governo ou mesmo uma sociedade. Não é das visões mais

    incomuns estados democráticos fazendo uso da violência policial para impor aos seus

    cidadãos sua visão de ordem social. Por outro lado, quando o campo da vida é enxergado

    como um mercado onde os interesses individuais se regulariam automaticamente, teremos

    desigualdade social e embora igualdade não seja o mesmo que liberdade, pessoas pobres terão

    menos meios para agir porque tal sociedade se organizou de modo a permitir tal carência de

    meios.

    O conceito de retirada para a cidadela interior, que dá nome a uma das seções do

    ensaio, é uma demonstração de uma compreensão equivocada que liga abnegação a um

    aumento de liberdade. Não é incomum que quando uma pessoa não seja capaz de realizar o

    que deseja, em vez de insistir, ela abandone tal desejo, limitando, assim, a área que sua

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    liberdade cobre. Um indivíduo realmente livre, de acordo com tal ideia, é aquele que sabe

    reconhecer aquilo que pode realizar e, por contraste, aquilo que é incapaz de realizar. Em

    princípio, não é errado desistir de algo. O problema, para Berlin, é acreditar que a redução da

    gama escolhas é um aumento da liberdade, de modo que determinados valores sejam

    permanentemente excluídos dessa gama de opções, limitando a liberdade de escolha. A

    retirada para a cidadela, portanto, é uma forma insatisfatória de lidar com o pluralismo de

    valores, uma vez que consiste em evitar o conflito que é inerente à negociação entre os

    diversos valores.

    Tal postura é estagnante, pois o sujeito, diante da coerção, evita o conflito e acredita

    sair-se beneficiado perto do que poderia sofrer caso fosse vitimado. O resultado da

    generalização dessa postura é que o sujeito deixará se superar qualquer coerção que sofre.

    Mesmo os impedimentos físicos não causados por pessoas seriam intransponíveis e o sujeito

    estaria sempre à mercê dos outros, dependente de paternalismo. Como método para o aumento

    da liberdade, abnegação é, como diz o ditado, resolver o problema da caspa através da

    decapitação.

    Berlin identifica essa contradição no “coração do Liberalismo humanista, tanto moral

    quanto político, que foi profundamente influenciado tanto por Kant como Rousseau no século

    XVIII” (BERLIN, 2002, 2CL pp. 184-5), ligando-a assim ao conceito de autodomínio descrito

    anteriormente. A transcendentalização do indivíduo faz com que ele não deva ser

    instrumentalizado ao ponto da objetificação, ou seja, o dever de tratar o sujeito não como um

    mero meio, mas um fim em si mesmo. Porém, por esse mesmo ponto de vista, um sujeito que

    não se governa exclusivamente por aquilo que possui de transcendente é tanto um objeto

    mecânico quanto se fosse coagido por força externa. O sujeito é livre, portanto, se for capaz

    de depurar seus desejos de suas paixões e seguir apenas sua razão, efetivamente reduzindo sua

    gama de ações.

    Não é difícil imaginar, ou mesmo lembrar de, pessoas que consideramos racionais

    não concordando umas com as outras. Nós podemos analisar e comparar seus argumentos e

    nem todos chegaremos à mesma conclusão. Caso contrário, a única coisa que nos impediria

    de responder todas as perguntas nos campos das ciências humanas (salvo História) seria o

    tempo, pois todas elas já estariam respondidas a priori, faltando apenas que alguém escreva as

    respostas, sem margem para discordância. Nada parece mais longe da realidade. Se, portanto,

  • 9

    assumirmos como correto um monismo de valor, ou seja, que devemos buscar e preservar um

    determinado valor por acreditamos ser o valor fundamental, responsável consequentemente

    pela adequação dos outros valores, que lhes seriam secundários, quem será o árbitro? Figuras

    de autoridade que reclamam para si o arbítrio da razão e convencem seus subalternos a não

    seguirem determinado curso de ação, fazem com que tais subalternos tomem a iniciativa de

    reduzir suas próprias gamas de ação. Espinosa diz que a diferença entre um escravo e um

    cidadão é que o escravo obedece ordens que não levam em consideração o seu próprio bem,

    enquanto a obediência do cidadão a um estado cujas leis são fundadas na razão tem como fim

    o bem de todos e, consequentemente, o dele mesmo. (ESPINOSA, 1670, 16:56) Tal

    argumento implica num paradoxo: se um escravo possuir um mestre que só dá ordens

    fundadas na razão, tendo como fim o melhor interesse do escravo, esse escravo seria um

    homem livre? Se por um lado, alguém argumentar que a escravidão nunca é racional e não

    realiza plenamente os melhores interesses do escravo, por mais permissiva que seja, por outro,

    ainda é preciso explicar como a obediência ao estado não é uma forma de escravidão.

    O marxismo seria mais uma nessa série de doutrinas positivas. De acordo com Berlin,

    para o materialismo histórico, a história é uma sequência de eventos até agora inevitáveis

    porque as pessoas tomaram por forças inevitáveis as instituições sociais que elas mesmas

    criaram. A liberdade só viria a partir do momento em que o mundo fosse desfeito e refeito,

    terminando assim a opressão que impede o ser humano de ver o mundo como ele realmente é.

    Antes de Marx, Hegel afirmara que a moralidade seria essencialmente racional e que o estado

    seria a vida moral realizada, a ideia divina realizada na Terra. O homem só seria livre e

    consciente através das leis do estado. Os arranjos políticos realizados no mundo seriam

    manifestação da objetividade do Espírito. (HEGEL, 1914, p. 40-1) Sobre o Idealismo

    hegeliano, Marx diz que sua dialética estava de cabeça para baixo e ele a pusera de pé: os

    pensamentos na mente humana seriam, então, um reflexo do mundo material. (MARX, 2013)

    No fim, porém, a mesma distorção se sucederia: enquanto o indivíduo não possuísse o

    conhecimento necessário, ele não poderia ser livre. Heterônomo, seria levado pelas forças

    resultantes das tolices que ele mesmo ou a humanidade criara. Mas a partir da tomada de

    consciência, “conhecimento libera não ao oferecer-nos mais possibilidades dentre as quais

    podemos escolher, mas preservando-nos da frustração de tentar o impossível”. (BERLIN,

    2002, 2CL, p. 190) Querer algo diferente seria arriscar exclusão da comunidade dos

    racionalmente capazes. O marxismo, visto dessa forma, revelar-se-ia um idealismo disfarçado

    de materialismo. Quando Berlin descreve a ideia da liberdade positiva através da obediência a

  • 10

    leis das quais o indivíduo mesmo é o autor, além de semelhante à terceira formulação do

    imperativo categórico de Kant, devemos perceber que ela também se assemelha àquilo

    descrito por Benjamin Constant como a liberdade dos antigos – o exercício coletivo da

    deliberação política, da participação da criação das leis que os próprios indivíduos

    obedecerão. (CONSTANT, 1819, p. 2-3) Na introdução do ensaio, Berlin reconhece que foi

    George Douglas Howard Cole, professor que ocupara a cadeira em Oxford que Berlin então

    assumia (o ensaio foi, originalmente, uma aula inaugural de Berlin em Oxford), quem

    introduzira a muitos de sua geração a noção de que teoria política é um ramo da filosofia da

    moral. O imperativo categórico kantiano é um conceito moral, mas o requerimento da

    autolegislação moral individual, se expandido para a esfera pública, se torna a participação no

    processo regulamentador da comunidade. Percebamos também que Berlin já dissera que a

    noção de liberdade individual seria historicamente recente. Sendo tal valor tão caro a Berlin

    uma inovação, relativamente falando, é fácil entender seu ataque à noção mais antiga de

    liberdade. Apesar de admitir a inclusão da política na moral, ele não quer dizer com isso que

    haja uma teoria capaz de predizer os arranjos sociopolíticos na humanidade. Tudo o que ele

    deseja é dissipar as ideias de que o ser humano é levado ou guiado por forças impessoais e

    não por sua própria vontade. “Entender tais movimentos e conflitos é, acima de tudo, entender

    as ideias e atitudes para com a vida envolvidas neles, o que sozinho torna tais movimentos

    uma parte da história humana e não meros eventos naturais.” (BERLIN, 2002, 2CL p. 168)

    Há porém uma importante diferença entre a autolegislação no imperativo categórico e

    na liberdade dos antigos. No primeiro caso, a autonomia do indivíduo diz respeito

    especificamente a ações que seguem máximas que ele pode, racionalmente, desejar que sejam

    universalmente adotadas. O critério da adoção é justamente a racionalidade. No caso da

    liberdade dos antigos, não se pode dizer que falta de racionalidade fosse um impeditivo. Mas

    como Constant conta, a liberdade dos modernos seria uma forma mais apropriada de conduzir

    os assuntos do dia a dia nas grandes nações de então, com os indivíduos tratando sem

    interferência do estado das relações interpessoais pela via do mercado. Essa instituição, o

    direito individual, conforme diz, não existia na antiguidade e nem mesmo era desejada dada a

    realidade da época. Eram sociedades pequenas, constantemente em guerra, nas quais o

    trabalho manual era exercido por escravos. Segurança e vigilância ultrapassava a importância

    da privacidade, logo a liberdade era reconhecida através da participação na vida pública, não

    na vida privada. Conforme o comércio se desenvolve e se expande, a guerra deixa de ser o

    meio principal de aquisição e a sociedade se desenvolve melhor conforme os cidadãos são

  • 11

    deixados livres em sua esfera privada para empreender e negociar num cenário de paz.

    (CONSTANT, 1819) A transcrição do discurso de Constant em referência situa muito bem o

    valor da liberdade negativa dentro do panorama liberal após o Iluminismo, embora possamos

    questionar a historicidade do relato. A ideia de que a guerra superava o comércio na

    antiguidade como meio de aquisição era senso comum entre os liberais do século XIX e um

    argumento comum para justificar como progresso natural os arranjos sociais da época. Caso

    estivessem certos, provavelmente a Rota da Seda não teria sido possível, uma vez que o

    próprio Constant admite que é preciso paz para a condução de negócios e transações e, do

    século II A.C. até a renascença, houve todo um conjunto de rotas comerciais ligando Europa,

    África e Ásia.

    Mas há aqui algo fora do lugar. “[S]erá mesmo verdade que a felicidade, de qualquer

    espécie que ela possa ser, seja o único objetivo do gênero humano?” Assim Constant,

    aproximando-se do fim do discurso, questiona a liberdade individual como única prioridade

    dos indivíduos e segue invocando o que seria a melhor e mais nobre parte da natureza

    humana, o aperfeiçoamento através da participação política. “[E] a liberdade política é o mais

    poderoso, o mais enérgico modo de aperfeiçoamento que o céu nos concedeu.” (Ibidem)

    Constant insta o povo francês a não abandonar a liberdade de participação política,

    tão cara aos antigos, mas combiná-la à liberdade dos modernos, mantendo vigilância sobre os

    representantes políticos para que não se tornem tiranos parasitas. Cada uma das liberdades,

    segundo diz, oferecem perigos. A de participação política, o perigo de nos alienarmos de

    nossos direitos individuais. A dos modernos, o perigo de nos absorvermos tanto no

    individualismo a ponto de perdermos noção da coisa pública. Defendendo a participação

    política como uma das prioridades, Constant atribui ao seu exercício a promoção da

    igualdade, colocando os interesses singulares dos indivíduos em igual exame por toda

    sociedade, de modo que cidadãos dos mais diferentes antecedentes e ofícios se encontrariam

    na defesa da soberania popular. (Ibidem) Berlin reconhece Constant como um defensor da

    liberdade contra a tirania, mas, neste ensaio, faz tal reconhecimento exclusivamente por via da

    liberdade negativa, enquanto o verdadeiro Constant o fez por meio da defesa da preservação

    da liberdade positiva. Ao relacioná-lo a Mill enquanto cita as ressalvas deste contra a tirania

    da maioria na democracia e como o autogoverno na democracia levaria a tal cenário, Berlin

    pinta Constant com tons antidemocráticos, mesmo que Constant estivesse defendendo

    justamente o processo democrático como meio de livrar a nação da tirania. Na introdução de

  • 12

    Liberty, Berlin voltará ao assunto reconhecendo que Constant defendeu a liberdade positiva

    como meio de preservar a liberdade negativa. Além disso, admitirá que liberdade positiva é

    um “objetivo universal válido” e não entende por que afirmaram que sua própria postura seria

    contrária a isso. (BERLIN, 1969, Intro, 39)

    No quinto item do ensaio, O Templo de Sarastro, Berlin oferece uma formulação para

    o monismo valorativo. Como o autor não explicita no texto uma formulação positiva para o

    pluralismo, a negação do argumento monista serve como argumento para o pluralismo. A

    formulação do monismo é a seguinte:

    Pensadores desse tipo [monistas] argumentaram que se problemas morais epolíticos forem genuínos – e eles realmente eram – eles devem, em princípio, sersolucionáveis; quer dizer, deve existir uma e apenas uma solução para qualquerproblema. Todas as verdades poderiam, em princípio, ser descobertas por qualquerpensador racional, e demonstradas tão claramente que todos os outros homensracionais não teriam como não aceitá-las; certamente, este já era, em grandemedida, o caso nas novas ciências naturais. Assim supondo, o problema daliberdade política seria solucionável estabelecendo-se uma ordem justa que daria acada homem toda liberdade a qual seria legítima a um ser racional. Minhareivindicação a liberdade irrestrita pode, à primeira vista, nem sempre serreconciliada com sua reivindicação igualmente não qualificada; mas a soluçãoracional de um problema não pode colidir com a solução igualmente racional deoutro, pois duas verdades não podem ser logicamente incompatíveis; logo uma justaordem deve ser, em princípio, descobrível – uma ordem cujas regras tornampossíveis soluções corretas para todos os problemas possíveis que surgissem nela.

    (BERLIN, 2002, 2CL, pp. 191-2)

    Por clareza, o argumento pode ser resumido da seguinte forma:

    1. Toda questão genuína deve ter uma resposta verdadeira e apenas uma; todas asoutras respostas são erros;

    2. É preciso haver um caminho confiável para se descobrir as respostasverdadeiras, que são, em princípio, conhecíveis, mesmo que presentementedesconhecidas;

    3. As respostas verdadeiras, quando encontradas, serão compatíveis umas com asoutras, formando um todo singular; pois uma verdade não pode serincompatível com outras. Isto, por sua vez, é baseado na suposição de que ouniverso é harmonioso e coerente.

    (CHERNISS & HARDY, 2016, 4.1)

    Seguindo essa lógica, um mundo povoado por pessoas racionais seria harmonioso e

    as vontades dos diferentes indivíduos jamais entrariam em conflito. Opressão deixaria de

    existir, pois ela é causada pela irracionalidade. Devemos crer, portanto, que a coerção usada

    hoje para impedir que o forte arrase com o fraco é posta em prática porque nem todo

    indivíduo alcançou o patamar de racionalidade necessário para ser plenamente livre.

    Consideremos, então, os ricos e poderosos desprovidos de empatia pelos mais necessitados: a

  • 13

    partir de seus próprios juízos racionais, há alguma vantagem que eles consigam abandonando

    a opressão dos mais pobres que eles não consigam engajando-se na opressão? Se o indivíduo

    só considera seu benefício individual, não só desconsiderando o resto da população, mas

    também desconsiderando qualquer responsabilidade geracional, ou seja, se supormos que ele

    não se preocupe nem com o bem-estar de seus descendentes no futuro, qualquer apelo por

    solidariedade cai em ouvidos surdos e não se pode culpar a falta de racionalidade, pois aqui o

    conflito é de valores.

    Não é preciso, claro, chegar a exemplos extremos como magnatas monopolistas e

    destruidores do ambiente. Basta considerar que pessoas diferentes têm valores diferentes e

    isso não é uma questão de que elas ainda não perceberam o que deveriam querer. Pessoas

    diferentes objetivamente têm necessidades diferentes que farão com que elas valorizem coisas

    diferentes. Se comprarmos a ideia de que uma pessoa excepcionalmente racional pode decidir

    pelas outras em seu melhor interesse, essa pessoa precisaria conhecer todas as diferentes

    necessidades e provê-las de acordo.

    Como já vimos, é difícil crer que a racionalidade seja garantia de unanimidade. Não é

    incomum que dois intelectuais da mesma área entrem em desacordo. Mesmo que um deles

    esteja em erro, a razão sozinha não é garantia de desempate em tempo hábil. Considerando

    que os problemas são potencialmente infinitos, não seria bom o suficiente que a razão fosse a

    solução universal apenas em princípio, pois isto nos deixaria esperando. A necessidade de

    ação nos impele a testar soluções de forma empírica, levando em consideração a peculiaridade

    de cada caso em vez de uma regra universal. Quando Berlin reconhece que as ciências

    naturais operam em grande parte sob a ideia de que cada problema tem solução única,

    devemos perceber que ele rejeita um cenário semelhante nas ciências humanas. Por isso a

    ‘inversão’ do hegelianismo realizada por Marx não serve para Berlin.

    Berlin se refere à postura monista como a falácia jônica, em referência à tradição

    filosófica jônica pela busca por um princípio universal para todas as coisas que existem,

    embora Berlin reconheça que os jônios não são culpados disso e “o que eles provavelmente

    perguntavam eram questões sobre física, das quais questões metafísicas talvez não fossem

    claramente distintas nos seus dias”. Essa tendência, porém, seria retomada posteriormente “de

    Aristóteles a Russell”, numa busca “pelos constituintes definitivos do mundo num sentido

    não-empírico”. Berlin acusa tal linha de pensamento de não fazer sentido, ser impossível de se

  • 14

    testar empiricamente e cujas conclusões não oferecem muito sobre a natureza do mundo.

    (BERLIN, 1999, p. 76)

    Longe de ser um problema exclusivo de socialistas, Berlin produz uma lista inteira de

    liberais culpados de manter uma visão racionalista da liberdade: os já citados Rousseau, Kant

    e Espinosa, juntamente com Locke, Burke e Montesquieu. Todos eles teriam equacionado

    autonomia com autoridade, mantendo que as leis, ao nos restringir, nos liberam. Bentham

    seria um dos únicos a se opor a tal ideia. Que uma limitação específica de liberdade contribua

    para aumentar a soma total de liberdade por impedir que os indivíduos interfiram com as

    liberdades negativas alheias, não significa que tal limitação, em si, não seja uma limitação.

    Apenas numa situação hipotética, autonomia e autoridade seriam iguais: numa utopia onde

    todos fossem perfeitamente racionais, pois a conduta de todos seria em pleno acordo com as

    leis, de forma que as leis aos poucos murchariam. (BERLIN, 1969, p.17-8) A forma como

    Berlin conclui o argumento, porém, é curiosa. Ele afirma que

    Apenas um movimento social foi ousado o suficiente para apresentar tal suposiçãotão explicitamente e aceitar suas consequências – os anarquistas. Mas todas asformas de Liberalismo fundadas numa metafísica racionalista são mais ou menosversões diluídas deste credo.

    (BERLIN, 1969, p.18)

    A despeito do Anarquismo ser um movimento tradicionalmente socialista, Berlin

    prefere descrevê-lo como uma forma extremada de Liberalismo. A expressão que ele escolhe

    usar para o destino das leis em tal sociedade (“wither away”) é famosamente associada ao

    marxismo por via da tradução de Emile Burns ao inglês de Anti-Dühring, de autoria de

    Engels.1 Aliás, tal expressão é citada por Berlin, no primeiro parágrafo, em referência à

    “profecias marxistas”. Mas Berlin já se referira ao Anarquismo nesse mesmo primeiro

    parágrafo, no qual o caracteriza como uma tecnocracia de produção substituindo a política,

    em linha com o estágio final do marxismo. Porém só o Anarquismo recebeu uma comparação

    com o Liberalismo. Provavelmente porque, diferente da centralização estatal no marxismo, o

    Anarquismo quer conciliar a ordem social com a maior quantidade de liberdade individual

    que se possa desejar, o que seria possível apenas com o fim do estado, o que Berlin rejeita,

    julgando que isso só seria possível com o fim dos conflitos entre os indivíduos sobre os fins a

    1 “A interferência do poder estatal nas relações sociais se torna supérflua numa esfera atrás da outra, e então cessa por si só. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e a direção dos processos de produção. O estado não é abolido, ele murcha até sumir [it withers away].” - ENGELS, Herr Eugen Dühring’s revolution in science, vulgo Anti-Dühring, 1878, trad. Emile Burns, 1894, trecho traduzido para o português por mim, ênfase no original.

  • 15

    serem buscados – ou seja, isso não seria possível. Talvez Berlin simplesmente igualasse o

    estágio final do marxismo, o comunismo propriamente dito, com o Anarquismo, logo o

    comunismo ideal também seria uma forma Liberalismo racionalista.

    Mais à frente, Berlin estabelece um outro valor que, embora não seja identificado

    como liberdade negativa nem positiva, seria comumente associado com aumento de liberdade

    mesmo que os indivíduos contemplados não gozem efetivamente de uma soma maior de

    liberdade. Segundo o autor, muitas vezes quando um indivíduo reclama da falta de liberdade,

    na verdade o que lhe falta é o reconhecimento enquanto um indivíduo autônomo por parte de

    uma comunidade com a qual ele se identifique. Aqui Berlin abre espaço para um elemento

    comunitário que contribui para a noção que o indivíduo tem de si mesmo. Embora não admita

    que o indivíduo é resultado de forças sociais, assume que as ideias que alguém tem de si

    mesmo, parcial senão totalmente, só são inteligíveis enquanto aquele alguém é membro de um

    contexto social. Se o reconhecimento da autonomia pode ser negada a um indivíduo com base

    em algum status social, então é provável que toda sua comunidade sofra da mesma privação.

    Quando se trata de uma comunidade dentro de uma sociedade maior, presumimos que haja

    uma reivindicação por igualdade de oportunidades e maior liberdade de ação, e isso pode

    também fazer parte da pauta, mas não seria o principal. Tal valor seria geralmente identificado

    como liberdade social, mas para Berlin não é uma liberdade. Isso levaria a uma notável

    contrariedade, na qual os indivíduos não desejam paternalismo, mas serem reconhecidos

    como agentes responsáveis pelos próprios atos e objetivos; porém se sentiriam mais livres

    mesmo que suas liberdades negativas lhes fossem tolhidas, desde que os seus iguais os vissem

    como donos dos próprios destinos. O exemplo mais pungente é o da colônia asiática ou

    africana que prefere um governo mais autoritário desde que ele seja formado por membros de

    seu povo do que um colonizador estrangeiro mais justo e benevolente. (BERLIN, 2002, 2CL,

    p. 203-4)

    A confusão entre status de liberdade (percepção de liberdade independente da

    liberdade factual) e a liberdade em si preocupa Berlin, pois uma vez que o indivíduo é

    identificado com sua classe, a classe inteira ganha um falso status de indivíduo no qual a

    liberdade da comunidade passa a significar a liberdade de seus membros. Embora a classe seja

    emancipada e ganhe uma liberdade maior de ação, tal reconhecimento não é equivalente a

    liberdade, pois os indivíduos podem muito bem experimentar um decréscimo de liberdade a

    despeito do reconhecimento tanto em bloco como entre cada um dos membros. E embora

  • 16

    Berlin tenha negado que tal valor pudesse ser identificado com uma das formas de liberdade

    em questão no ensaio, ele afirma que seria algo conectado à questão sobre quem exerceria a

    autoridade – questão que ele associa ao conceito positivo de liberdade, embora ele chame de

    uma forma híbrida de liberdade, uma vez que a resposta à questão leva em consideração

    valores como fraternidade e solidariedade. O estado ou a sociedade, sejam democráticos ou

    despóticos, seriam então como um credo secularizado e a liberdade receberia seu significado

    na comunhão neles. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 206)

    Mesmo a democracia por si só não traz garantias a Berlin com relação às liberdades

    individuais. Pelo contrário, o estado democrático, encarnando a vontade geral do povo,

    reclamaria assim legitimidade para limitar todo comportamento que não julgar adequado.

    Lembrando Mill novamente, o chamado governo do povo não é exercido pelo mesmo povo

    que ele governa. Autogoverno na democracia não tem sentido literal e, mesmo como

    metáfora, seria uma aproximação insuficiente. Porém, Berlin ainda acredita em seu potencial

    para defender as liberdades individuais se alguns limites não forem ultrapassados. Assim, todo

    e qualquer indivíduo deve ter o direito absoluto de se recusar a agir de forma desumana e

    qualquer ser humano normal deveria ser capaz de reconhecer tais limites e se negar a cruzá-

    los. Uma sociedade seria tão mais livre quanto possível exercer tal direito. Enquanto os

    defensores da liberdade negativa desejariam a limitação de tal autoridade, os que defendem a

    liberdade positiva a quereriam para si. Como não se desejaria viver em extremos de ou falta

    total de coerção, ou coerção absoluta, é preciso encontrar um ponto entre os dois. (BERLIN,

    2002, 2CL, p. 209-10)

    O que Berlin defende, no final das contas, é que tenhamos clareza dos valores que

    reivindicamos, pois uma vez que não se equivalem, se enganar e tomar um pelo outro pode

    resultar na perda do que se pretende. Tudo que escolhermos terá um preço e como não há uma

    regra a priori que nos oriente, não é possível medir um valor contra o outro em abstrato. Cada

    situação determinará quanta segurança é adequada para se manter uma ordem social que

    permita o exercício das liberdades individuais e quanta liberdade individual deve se sacrificar

    para garantir todo resto. Cada sociedade deve decidir quais conjuntos de valores priorizar

    através da experiência empírica da vida em sociedade e do exercício político. As relações

    entre os indivíduos na sociedade reinstanciam os conflitos da pluralidade de valores através

    das diferenças de preferências e identidades culturais. É a diferença entre as diversas

    perspectivas que, por competição ou resolução, conduzem o progresso e é em benefício do

  • 17

    exercício da escolha que devemos preservar a liberdade. Para Berlin, as utopias não são

    atraentes, pois são visões de um mundo onde não há mais escolhas a serem feitas. São

    mundos sem vida onde o ser humano perde sua razão de ser.

    1.2 – Reconsiderações perante críticas

    Qual conceito de liberdade Isaiah Berlin assume como válido não é um caso que

    chega ao veredito por vias tão tranquilas quanto alguns queiram crer. O leitor de "Dois

    Conceitos de Liberdade" pode concluir que o autor está a defender uma via certa contra um

    perigo indefensável, mas há motivos para crer, dentro do ensaio, que essa não seja a conclusão

    correta. Primeiramente, Berlin admite que os dois conceitos não são logicamente distantes,

    uma vez que o sujeito que é livre para agir como deseja – o sujeito possuidor da liberdade

    negativa – é o sujeito que é livre para decidir por si mesmo como agir – o sujeito possuidor da

    liberdade positiva. (BERLIN, 2002, 2CL, II, p. 178). Segundo, ele afirma que distorções

    históricas semelhantes àquelas perpetradas pelos defensores do conceito positivo de liberdade

    podem também ser perpetradas em defesa do conceito negativo de liberdade. (Ibidem, p. 181)

    Na introdução de Liberty – Incorporating Four Essays on Liberty, Berlin tenta desfazer o mau

    entendido, chegando a admitir a validade de um plano social e legislativo para um estado de

    bem-estar social e mesmo para o socialismo que se baseasse seja na liberdade negativa, seja

    na positiva. (BERLIN, 2002, Intro, pp. 38-9)

    A opinião de que Berlin seria um estrito defensor da liberdade negativa e opositor da

    positiva pode ser uma impressão causada pela ênfase que Berlin dá às qualidades da primeira

    e aos defeitos da segunda. Muito do ensaio é usado para demonstrar como a defesa da

    liberdade positiva justificou, durante a história, enormes restrições de liberdade individual e

    como a realização pessoal e o progresso da sociedade necessita da garantia de uma gama

    mínima de ação pessoal enquanto direitos inalienáveis. Como já vimos, em "Dois Conceitos",

    Berlin chega a representar de forma pouco fiel a posição de Benjamin Constant como um

    defensor da liberdade negativa num “conflito dos dois tipos de liberdade”. (BERLIN, 2002,

    2CL, II, p. 209) Já na introdução de Liberty, Berlin admite que Constant defendia o exercício

    da liberdade positiva como meio de garantir a negativa, assim como John Stuart Mill defendia

    tal forma de liberdade como um meio indispensável para se atingir a felicidade. Liberdade

    positiva, então, seria um “objetivo universal válido” e o autogoverno democrático uma

    necessidade humana fundamental. (BERLIN, 2002, Intro, p. 39) A introdução de Liberty é,

  • 18

    por si só, mais um ensaio, feito em grande parte para desfazer mal entendidos com relação aos

    argumentos anteriormente declarados por Berlin, como aqueles em "Dois Conceitos". Persiste

    a dúvida sobre o porquê desses posicionamentos não terem sido claramente articulados no

    ensaio original de Berlin, se por descuido ou se porque o autor realmente achou que, para

    transmitir sua mensagem concernindo “os embates ideológicos do nosso século” (Ibidem, p.

    3), seria melhor fazê-lo dessa forma, o que coloca sua honestidade em questão, uma vez que

    "Dois Conceitos" nos faz chegar a conclusões que são negadas aqui. De um modo ou de

    outro, não parece ser possível compreender as posições do autor sem esse ensaio posterior,

    principalmente se considerarmos que o autor julgou necessário escrever esse texto para negar

    várias das atribuições que lhe foram feitas.

    Berlin crê que as distorções do conceito de liberdade negativa não foram tão

    profundas nem causaram tantos malefícios através da história como as distorções da liberdade

    positiva, mas que isso não quer dizer que elas não possam ser feitas. Ele se preocupa

    especialmente com os abusos de uma noção absoluta de liberdade negativa que resultassem na

    ausência de limitação contra os abusos dos mais fortes sobre os mais fracos, de forma que a

    opressão e a exploração resultassem na diminuição das liberdades negativas dos mais fracos.

    Berlin insiste que uma interferência deva ter causas humanas para ser considerada uma

    violação de liberdade negativa, mas admite que relações de poder podem ser causas desse

    tipo. (BERLIN, 2002, Intro, p. 40, nota 1) Na interpretação de Kaufman, Berlin não

    consideraria a pobreza da Índia, por exemplo, como uma restrição de liberdade. (KAUFMAN,

    1962, p. 243) O que Berlin diz, na verdade, é que se a pobreza for encarada como uma doença

    ou se ela for causada por uma deficiência, uma característica da pessoa que não tenha sido

    causada por outro alguém, então ela não pode ser considerada como falta de liberdade; porém,

    se for reconhecida nos arranjos que a sociedade pratica uma causa para a pobreza de alguém,

    então há sim aí uma restrição de liberdade. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 170) A crítica de

    Kaufman, porém, vai mais longe e nós a examinaremos mais à frente.

    O que Berlin chama de distorções são, na verdade, a autoderrota dos princípios

    aplicados na prática. Embora a aplicação de determinado conceito de liberdade esteja de

    acordo com seus princípios, o descuido na aplicação poderia levar a uma perda de liberdade

    em vez de sua ampliação. Isso se deveria pela não observância da inevitabilidade dos conflitos

    entre os diversos valores. A existência social dos indivíduos é atravessada por conflitos que só

    deixariam de existir se as manifestações de valores em conflito fossem esmagadas, mas isso

  • 19

    não seria desejável. Berlin atribui o progresso à discordância. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 1) Não

    aceitando uma prescrição a priori do arranjo dos valores políticos, a sociedade deveria

    negociar internamente, encarando tais conflitos de frente. Não havendo tal prescrição, não se

    poderia reconhecer um valor como mais fundamental do que outro. A eleição de um valor

    fundamental em detrimento da busca pelos outros não faria com que esses outros valores

    surgissem por consequência do valor fundamental, pois não haveria equivalência possível

    entre valores diferentes. Seria preciso haver clareza sobre os valores que se defende e Berlin

    demonstra muita preocupação com a obscuridade das definições oferecidas para alguns

    valores. Belinsky teria dito que se seus semelhantes permanecessem na pobreza e em

    submissão, ele preferiria abandonar sua liberdade e viver em iguais condições. Berlin adverte

    que confundir liberdade com igualdade dessa forma não traria ganhos para ninguém. (Ibidem,

    p. 172) A eleição da igualdade como valor fundamental aqui não promoveria ganho de

    liberdade para ninguém, na verdade, promoveria a perda total de liberdade para Belinsky. Não

    haveria harmonização instantânea entre os valores quando seguimos uma regra

    preestabelecida e nos negamos a observar os efeitos que tal postura causa na experiência da

    sociedade. Mais tarde, porém, examinaremos a validade do argumento contra Belinsky.

    Mas assim como um valor sozinho não daria conta de dois, dois valores diferentes

    não poderiam coexistir sem que houvesse concessões. Embora não seja desejável abdicar de

    toda liberdade para ganhar alguma ou total igualdade, não seria possível ter liberdade total e

    gozar de segurança ao mesmo tempo, pois assim como os valores políticos se chocam, os

    valores individuais também e logo o exercício de liberdades dos diferentes indivíduos também

    entrarão frequentemente em choque. Então como não é possível termos total liberdade de

    ação, trocamos parte dela por segurança, igualdade e solidariedade.

    Por esse motivo, Berlin adverte contra um apreço excessivo pela liberdade negativa

    dentro da esfera econômica. Uma economia laissez-faire, segundo Berlin, levaria àquilo que

    ele chamou antes de escravidão econômica, pois embora o pobre seja livre para gastar o

    pouco que tem, o pouco que tem não é suficiente como meio de realizar sua liberdade. Não

    seria possível falar de direitos sem os meios para seu exercício. (BERLIN, 2002, Intro, p. 38)

    Pelo menos até então, Berlin não acreditava que a defesa do conceito negativo de liberdade

    tivesse distorcido tanto seu conceito quanto a defesa do positivo, uma vez que regimes

    despóticos históricos se valeriam de um discurso que equaliza a liberdade com o exercício de

  • 20

    determinados valores considerados superiores e expressados pelo estado em detrimento de

    outras expressões, rigorosamente individuais.

    Kaufman dá também voz à opinião de que “Berlin não é suficientemente radical em

    sua exposição de tais ameaças às nossas liberdades essenciais”. Para Kaufman, já existiria

    evidência suficiente de que os abusos da liberdade negativa precisavam ser discutidos. Onde

    antes uma monarquia tirânica exercia controle intervindo fisicamente na vida dos súditos, já

    se poderia atingir tal controle por meios mais “sutis”. Embora Berlin não tenha deixado de

    falar dos perigos da concentração de riqueza, Kaufman não se dá por satisfeito, uma vez que

    tal assunto é meramente referido, mas não explorado. Kaufman, então, oferece o argumento

    de que haveria duas correntes na tradição liberal que aceitaram a escassez de recursos como

    uma regra, e apenas poucos países se apresentavam como exceções – “Estados Unidos,

    Alemanha Ocidental, Inglaterra, França e União Soviética”. A primeira corrente, que

    Kaufman descreve como tenebrosamente pessimista, receitaria como métodos de conter a

    pobreza, ações individuais e voluntaristas, como trabalho árduo, moderação e filantropia, mas

    sem ilusão de que essa guerra possa ser definitivamente vencida, pois dever-se-ia aceitar a

    condição humana como trágica. A segunda corrente, descrita como pacientemente otimista,

    seria aquela que acredita que a escassez seria solucionada gradual e automaticamente pelos

    mecanismos internos da economia de livre mercado. Sendo assim, nenhuma das duas

    correntes se preocuparia com políticas de combate à obstrução da liberdade individual pela

    pobreza, pois, de um lado, escassez seria um fato inevitável, mas que poderia ser amenizado

    por ações individuais, enquanto de outro, bastaria esperar que o conjunto de transações entre

    os indivíduos livres de interferência extinguisse toda escassez material. As duas correntes

    veriam como prejudicial a interferência de políticas positivas do governo naquilo que elas

    enxergam como o remédio à escassez, fosse tal remédio um paliativo ou a cura. (KAUFMAN,

    1962, p. 242)

    Como os pobres não poderiam realizar seus desejos por falta de poder ou meios e não

    porque alguma outra pessoa teria colocado um obstáculo em seu caminho, Kaufman

    argumenta que isso não constituiria para Berlin uma obstrução de liberdade, embora alguém

    possa defender que os ricos deveriam prover meios para os pobres exercerem sua liberdade e

    a omissão dos ricos nesse sentido perpetuaria uma obstrução. Para Kaufman, se alguém se

    encontra obstruído, ele não estaria menos obstruído porque a causa da obstrução não é uma

    ação humana deliberada. Kaufman defende que nesse caso não há interferência humana

  • 21

    deliberada, mas acredita que a “insistência de Berlin no fator humano” é “incompreensível e

    moralmente trivial”. (Ibidem, p. 243)

    O conceito negativo de liberdade conforme definido por Berlin é uma formulação

    insuficiente da liberdade para Kaufman, uma vez que é restrita demais para garantir direitos

    humanos. Kaufman vê na obstrução não-humana ou na obstrução humana inadvertida um

    motivo suficiente para considerarmos que há limitação de liberdade, mesmo que essa

    liberdade seja concebida negativamente, do contrário estaríamos endossando a omissão

    perante o testemunho do sofrimento e da escassez de recursos. O reconhecimento da

    necessidade de remover tais restrições não-deliberadas como promoção da liberdade negativa

    implica na promoção de ações positivas por parte dos governos, seja na politica interna, por

    exemplo, fomentando diretamente a economia ou modificando o ambiente em favor do bem-

    estar da população, seja na política externa na forma de ajuda a países mais pobres. (Ibidem)

    Berlin não concorda com esse argumento. Ele não aceitaria, digamos, que uma

    avalanche seja considerada uma privação do direito humano básico de livre movimento.

    Berlin afirma que o único sentido para liberdade política que lhe concerne é aquele em que a

    liberdade é impedida apenas pela ação humana ou pelo resultado das relações de poder.

    (BERLIN, 2002, Intro, p. 40, nota 1) Isso é estranho, pois previamente na introdução de

    Liberty, Berlin afirmara que liberdade positiva, assim como o autogoverno democrático – que

    nada mais é que uma das manifestações da liberdade positiva –, também é um valor universal

    válido. A posição de Berlin aqui nos deixa num dilema, pois é prudente que esgotemos toda

    chance de caridade interpretativa antes de acusar um filósofo reconhecido de cometer um

    erro. Não é possível que a única liberdade política possível seja a negativa e que, ao mesmo

    tempo, liberdade positiva seja igualmente possível. Uma alternativa é que liberdade positiva

    seja uma possibilidade, mas não do seu interesse. Tal alternativa é falsa, uma vez que Berlin já

    deixou claro que o exercício da liberdade positiva é necessário para a preservação da negativa.

    Outra alternativa seria que liberdade positiva fosse uma liberdade de outro tipo que não seja

    política. Esta alternativa também é falsa, primeiramente pelo mesmo motivo da alternativa

    anterior ser falsa, assim como, em segundo lugar, Berlin ter exemplificado o autogoverno

    democrático como uma de suas manifestações. Mais uma alternativa seria desconsiderar a

    liberdade positiva como uma forma de liberdade e entender sua formulação como uma

    confusão de valores. Berlin realmente trata de conceitos que são tomados vulgarmente por

    liberdade, mas que seriam outra coisa. É central para seu pensamento político que tais

  • 22

    confusões entre os valores sejam dissipadas para que entendamos o que estamos escolhendo e

    quais as consequências dessas escolhas. Porém, para que então insistir em chamar tal valor

    liberdade positiva se tal valor não é uma forma de liberdade, principalmente após admitir que

    tal valor é válido? Em "Dois Conceitos", Berlin é rápido em negar que o conceito de

    liberdade social seja realmente uma forma de liberdade, mas um desejo por reconhecimento

    público enquanto indivíduo autônomo ou membro de uma comunidade capaz de autonomia

    individual. (BERLIN, 2002, 2CL, VI) Berlin não faz o mesmo com o conceito de liberdade

    positiva, afirmando, em vez disso, que os problemas que surgem dela são advindos de uma

    distorção lógica, algo que pode também acontecer no campo da liberdade negativa. Portanto

    esta alternativa também deve ser descartada.

    Uma última alternativa seria considerar que liberdade positiva é uma liberdade

    política porque ela pode sofrer obstrução externa por agentes humanos – deliberados ou não,

    uma vez que Berlin admite como ação humana o resultado do das relações de poder na

    conjuntura sociopolítica. (BERLIN, 2002, Intro, p. 40, nota 1) Isto também não faz sentido,

    pois se a liberdade positiva for passível de ser eliminada por meio de ação humana externa,

    não estaremos mais falando de liberdade positiva, mas liberdade negativa. Alguém pode

    apontar para a forma de restrição a qual Berlin se refere em O retorno à cidadela interna, ou

    seja, quando o agente se conforma com os obstáculos (possíveis ou certos) e desiste de seu

    desejo.(BERLIN, 2002, 2CL, V) Isso poderia ser descrito, por vezes, como a internalização da

    coerção originalmente externa, uma perda de liberdade autoimposta pelo conformista sob a

    perspectiva equivocada de que desistir de um desejo é um aumento de liberdade. Porém, por

    algum motivo, Berlin passa a afirmar na Introdução que tal atitude resulta sim num aumento

    de liberdade. Mesmo assim, ele insiste que um aumento de liberdade por abnegação

    corresponde a uma diminuição na área de liberdades políticas possível. (BERLIN, 2002, Intro,

    p. 31-2) Isto é extremamente confuso, já que Berlin associa ao conceito negativo de liberdade

    as perguntas “qual minha área de ação possível?” (a extensão da área onde não há coerção) ou

    “o quanto eu sou governado?” (a extensão da área onde há coerção). Berlin não está

    meramente interessado em saber se o cidadão é capaz de executar a ação física que ele tem

    vontade de executar – que é como Hobbes definiria liberdade –, mas se ele tem tal

    oportunidade. (Ibidem, p. 35) É irrelevante para o autor que haja liberdades caso não exista

    meios para utilizá-las. (Ibidem, p. 38) Vemos, portanto, que liberdade de escolha é um

    componente importante para a liberdade política, mas apesar de Berlin sempre associar

    liberdade negativa com a gama de liberdade possível, autorrealização e autogoverno são

  • 23

    elementos da liberdade positiva. Posto dessa forma, seria muito mais intuitivo incluir

    liberdade de escolha no conceito positivo de liberdade do que no negativo. Em momentos

    como este, a divisão entre positiva e negativa da liberdade traz mais problemas do que

    soluções, pois se é tão importante para Berlin sabermos de que valor estamos tratando, aqui é

    muito difícil distinguir liberdade negativa da positiva.

    1.3 – MacCallum e a rejeição da separação da liberdade em dois conceitos.

    Gerald C. MacCallum, Jr. está entre os críticos da abordagem que Berlin faz da

    liberdade. Em seu “Negative and Positive Freedom”, MacCallum questiona a utilidade de se

    separar a liberdade social e política em dois conceitos diferentes e discutir qual seria o melhor

    ou mesmo o verdadeiro. Para ele, não existem duas formas diferentes de liberdade social e

    política. Elas são a mesma, embora focadas em diferentes componentes da real relação

    triádica que caracteriza a presença ou ausência de liberdade.

    A relação triádica em questão é expressa da seguinte forma:

    Agente x é livre / não é livre de y para fazer / ser / não fazer / não ser z.

    x é uma pessoa. y é algo que, quando presente, obstrui a liberdade de x. z é aquilo que

    x realizará se estiver livre de y, ou aquilo que y impedirá x de realizar. (MACCALLUM, 1967,

    p. 314)

    Dessa forma, ambos os valores descritos como liberdade negativa e liberdade positiva

    seriam o mesmo conceito. Duas pessoas, cada uma assumindo a defesa de cada um dos dois

    valores, estariam falando da mesma liberdade, mas através de aspectos diferentes. Dessa

    forma, tal tipo de diferenciação estaria sempre negligenciando algum aspecto que é

    fundamental para examinarmos o status de liberdade dos sujeitos em questão. O que é

    chamado de liberdade negativa seria a liberdade articulada apenas em termos da relação entre

    x e y (agente e obstrução), enquanto a liberdade positiva seria uma relação apenas entre x e z

    (agente e ação). (Ibidem, p. 318) MacCallum defende que, se ambos os lados estão falando da

    mesma liberdade, então deveríamos examinar o que cada lado considera como agente e como

    obstrução em vez de focarmos numa diferença que não existe.

  • 24

    Uma vez que a diferenciação entre dois supostos conceitos de liberdade

    exclusivamente focados em “livre de y” ou “livre para z” é desfeita, MacCallum propõe que

    se examine as caracterizações remanescentes de cada campo. Sobre as possíveis obstruções à

    liberdade, o campo negativo consideraria que apenas a presença de algo constituiria uma

    obstrução à liberdade de alguém, enquanto para o campo positivo, a ausência de algo também

    seria considerada uma obstrução. Além disso, o campo negativo parece insistir numa causa

    humana para a obstrução, enquanto o campo positivo não parece aderir a essa especificação. E

    sobre o que contaria como uma pessoa, um sujeito, o campo negativo parece contar apenas

    indivíduos, enquanto o campo positivo aparentemente admite uma certa elasticidade ao

    conceito. Através de uma “retirada à cidadela interior”2, a pessoa seria reduzida a uma

    condição interior que excluiria desejos em desacordo com a racionalidade, fazendo-a escolher

    apenas aquilo que ela “realmente desejaria”. E num movimento oposto, a pessoa equivaleria a

    uma categoria inteira de sujeitos, uma vez que a liberdade de cada indivíduo para fazer ou ser

    algo estaria ligada a manutenção das relações internas da categoria, pois a violação da

    identidade dos sujeitos como membros da categoria seria uma violação da autonomia de

    associação entre eles. (MACCALLUM, 1967, p. 320-5)

    Mesmo assim, a divisão entre as duas concepções de liberdade não é satisfatória, pois,

    por exemplo, violações de liberdade podem ser formuladas, por vezes, tanto como presença

    de obstáculos como ausência de meios. Alguém pode não estar livre pela presença de

    correntes, mas também pela ausência de chaves. Da mesma forma, quando alguém tem

    ausência de meios para realizar-se, o exemplo dado por MacCallum sendo falta de

    qualificação profissional, pode se dizer que ninguém está no caminho da pessoa, que seu

    fracasso é de sua própria responsabilidade dada sua natureza individual; ou pode-se dizer que

    a conjuntura sociopolítica, que é um conjunto de ações humanas, impediu a pessoa de

    alcançar as qualificações necessárias para exercer uma profissão adequada à sua realização.

    Inclusive quando se atribui a alguém um grau de irracionalidade que supostamente a

    desqualificaria como autônoma (dentro de um paradigma de autodomínio), poder-se-ia dizer

    que isto foi causado pela presença de algum “arranjo ou instituição social, educacional ou

    moral específico” (Ibidem, p. 321, nota 8) Veremos mais tarde que Mikhail Bakunin afirma

    justamente que as hierarquias sociais perpetuam a falta de liberdade dos trabalhadores mais

    2 MacCallum comete uma confusão aqui, pois o conceito de “retirada para a cidade interior” não é a redução do eu para uma esfera interior e transcendental, mas a abnegação com a qual se desiste de um objetivo ao jurgá-lo muito difícil ou impossível.

  • 25

    pobres, impedindo-lhes o acesso ao conhecimento científico necessário para sua

    autorrealização.

    De qualquer modo, estas não são diferenças sobre o que liberdade é, mas sobre suas

    condições. Ao separarmos discursos e autores em dois campos, lidamos com o assunto como

    se houvesse duas liberdades diferentes, quando elas são a mesma coisa e nosso foco é

    desviado da real diferença. Além disso, MacCallum adverte contra o empobrecimento da

    interpretação das ideias dos autores políticos, uma vez que seus trabalhos não foram escritos

    com tal recorte em mente. Forçá-los a caber nessa diferença entre liberdade positiva e

    negativa conduz a equívocos ao ignorarmos argumentos e afirmações que não cabem nos

    rótulos propostos. (Ibidem, p. 321, notas 7-9)

    Reside aqui certa ambiguidade, pois Berlin concede em alguns momentos que autores

    políticos não estão plena e exclusivamente num campo ou no outro e MacCallum reconhece

    isso pelo menos no caso de Marx. Porém o caso de Marx é justamente aquele no qual Berlin

    mais enfaticamente atribui adesão ao campo positivo. Em contraste, MacCallum aponta para

    Locke como o caso emblemático da rotulação no campo negativo, embora Berlin faça citação

    direta a Locke defendendo aspectos da dita liberdade positiva. Sobre Marx, Berlin concede

    em uma breve passagem que dependendo da teoria à qual o sujeito adere, ele poderá

    considerar a pobreza e deficiência física ou mental como restrições à liberdade, mas “só se eu

    aceito a teoria”. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 170) Na nota 1 da mesma página, ele elenca como

    exemplos de tais teorias as leis sociais no marxismo e também as outras formas de socialismo,

    além de algumas as doutrinas cristãs e utilitaristas. Porém nós já vimos que Berlin não

    considera causas não humanas como restrições de liberdade, então ficamos tentados a crer que

    ele não vê legitimidade em tais teorias, até lembrarmos que Berlin acha irrelevante falar sobre

    direitos quando não há meios para exercer tais direitos e que ele se opõe ao capitalismo

    laissez-faire. É difícil dizer, no entanto, se ele adere à noção de que os exemplos citados são

    mesmo violações de liberdade ou meramente ausência de meios para exercer a liberdade. E

    como no exemplo do sujeito acorrentado, uma mudança de formulação na descrição do estado

    do sujeito complicaria nossa compreensão do que seria liberdade e o que seriam meios para a

    liberdade: estar acorrentado é uma violação da liberdade, mas não possuir a chave das

    correntes é a mesma coisa ou deixa de ser uma violação para virar uma mera falta de meios?

    Ao questionarmos a relevância de tais distinções, voltamos à crítica de Kaufman, na qual

    restringir-se a impedir interferência humana na liberdade alheia é insuficiente para garantir a

  • 26

    liberdade das pessoas, além de ser moralmente questionável observar a falta de meios alheia e

    se omitir de tomar ações positivas.

    Quanto a Locke, Berlin cita trechos em que o autor defende aspectos positivos da

    liberdade, criticando-o por fazer confusão entre liberdade e cerceamentos da liberdade com o

    fim de impedir violações da liberdade negativa. (BERLIN, 2002, 2CL, p. 193) São trechos do

    parágrafo 57 do Segundo Tratado sobre o Governo Civil, onde se diz:

    A lei, em sua verdadeira noção, não é tanto limitação, mas a direção de um agentelivre e inteligente em seu próprio interesse, e só prescreve visando o bem comumdaqueles que lhe são submetidos. Se eles pudessem ser mais felizes sem ela, a leidesapareceria como um objeto inútil; e não merece o nome de confinamento aquiloque nos restringe apenas de lodaçais e precipícios. De forma que, mesmo que possaser errada, a finalidade da lei não é abolir ou conter, mas preservar e ampliar aliberdade. Em todas as situações de seres criados aptos à lei, onde não há lei, nãohá liberdade. A liberdade consiste em não se estar sujeito à restrição e à violênciapor parte de outras pessoas; o que não pode ocorrer onde não há lei: e não é comonos foi dito, uma liberdade para todo homem agir como lhe apraz.

    (LOCKE, 2006, §57)3

    MacCallum questiona por que Locke não é encaixado no campo positivo graças a

    esse trecho, porém Berlin realmente atribui à passagem o caráter de liberdade positiva e de

    crença num monismo de valores, onde se todos fossem perfeitamente racionais, as ações de

    todas as pessoas se harmonizariam, pois todos agiriam de acordo com ideias corretas e

    crenças verdadeiras e tudo que é verdadeiro necessariamente estaria livre de conflito.

    (BERLIN, 2002, 2CL, p. 193) O que Berlin deseja aqui é contrastar tal tipo de argumento que

    iguala restrição de liberdade à liberdade com a posição exemplificada por Bentham, quando

    este diz que “toda lei é contrária à liberdade” e que erros e crimes são abusos de liberdade

    justamente porque são ações livres e que restringimos a liberdade dos tolos justamente porque

    eles fazem mau uso dela. (BENTHAM, 1843, apud BERLIN, 2002, 2CL, p. 193, nota 3; p.

    194, nota 1) Se bom uso da razão fosse condição para a liberdade, não se poderia dizer que é

    preciso restringir-lhes a liberdade. Isso, é claro, tem implicações na responsabilização dos

    agentes, uma vez que é problemático culpar e punir alguém que se considera como não

    possuidor da liberdade.

    Mas esta repreensão sobre Locke só faz sentido porque a liberdade foi separada em

    dois conceitos diferentes, o positivo e o negativo. Como MacCallum diz, se levarmos em

    3 O trecho “and that ill deserves the Name of Confinement which hedges us in only from Bogs and Precipices” foi retraduzido para corrigir um erro na tradução usada.

  • 27

    consideração o modelo triádico de liberdade, uma restrição inserida na relação pode ser ao

    mesmo tempo um meio para a realização de um outro objetivo. A faixa de pedestres, por

    exemplo, representa a restrição do cruzamento de qualquer outro trecho da rua, porém

    representa também a prioridade do pedestre com relação aos automóveis. (MACCALLUM,

    1967, p. 330) Sem a faixa de pedestres determinando um local exclusivo para o cruzamento

    de pedestres e no qual os motoristas reconhecessem a necessidade de dar prioridade a esses

    pedestres, a liberdade que o indivíduo tem de cruzar em qualquer ponto da rua pode ser

    subitamente interrompida por um atropelamento