Dumping Social Nas Relações De Trabalho

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NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

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Jorge Luiz Souto MaiorJuiz do Trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí. Professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

ranÚLio MendeS MoreiraJuiz do Trabalho do TRT da 18ª Região; Ex-juiz do trabalho do TRT da 3ª Região; Ex-juiz do Trabalho da 23ª Região; Especialista em Direito do Trabalho pela PUC Goiás; Master em Teoria Crítica de Direitos Humanos: Globalização e Direitos, pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha, Espanha.

VaLdete Souto SeVeroJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS.

1ª edição — 2012

2ª edição — 2014

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Jorge Luiz Souto MaiorranÚLio MendeS Moreira

VaLdete Souto SeVero

NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

2ª edição

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EDITORA LTDA.

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Janeiro, 2014

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Souto Maior, Jorge Luiz

Dumping social nas relações de trabalho / Jorge Luiz Souto Maior, Ranúlio Mendes, Valdete Souto Severo. — 2. ed. — São Paulo : LTr, 2014.

Bibliografia.

1. Dumping — Aspectos sociais. 2. Direito do trabalho 3. Empregados — Brasil 4. Relações de trabalho — Brasil 5. Reparação de dano I. Mendes, Ranúlio. II. Severo, Valdete Souto. III. Título.

13-12416 CDU-34:331 (81)

Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Dumping social nas relações detrabalho : Direito do trabalho 34:331 (81)

Versão impressa - LTr 4937.1 - ISBN 978-85-361-2809-2Versão digital - LTr 7701.5 - ISBN 978-85-361-2841-2

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SUMÁRIO

introdução ................................................................................................. 9

1. Situando o tema: Conceitos de “dumping Social” e de dano Social 13

2. o dano Social na Lógica de um estado democrático e Social de direito: os direitos Sociais na Constituição brasileira de 1988......... 27

2.1 O Necessário Resgate da Nossa Capacidade de Indignação ........ 40

2.2 As Relações de Trabalho no Modelo Jurídico vigente ................. 48

3. reconhecendo a responsabilidade por dano Social ........................... 59

3.1 O Dano Social nas Relações de Trabalho ..................................... 71

3.2 A Justiça do Trabalho diante do Dano Social .............................. 83

4. o dever‑Poder do Juiz do trabalho diante do dano Social ................ 117

4.1 O debate sobre Algumas Consequências Processuais da Conde‑nação por Dumping Social .......................................................... 118

4.1.1 O Princípio Dispositivo diante do Dumping Social: a Inércia da Jurisdição e o Contraditório no Âmbito de um

Estado Social ................................................................... 120

4.1.2 A (Necessária) Ruptura de Dicotomias no Direito: a Coletivização da Demanda Individual ............................. 130

4.1.3 Depois da Sentença: a Destinação dada à Indenização Im‑posta à Empresa e a Possibilidade de Reiteradas Conde‑

nações .............................................................................. 132

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4.2 As Regras que Autorizam a Atuação Comprometida do Estado‑‑juiz ............................................................................................. 135

4.3 A Função Social do Processo ....................................................... 139

algumas Conclusões Possíveis .................................................................... 149

referências Bibliográficas ............................................................................ 153

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“O que nos move, não é a compreensão de que o mundo é privado de uma justiça completa — coisa que poucos de nós esperamos —, mas a de que a nossa volta

existem injustiças claramente remediáveis que queremos eliminar.”

(SEN, Amartya. A Ideia de Justiça; Trad. Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011)

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INTRODUÇÃO

Inúmeras são as situações em que o trabalhador, embora titular da demanda processual, está longe de ser o único lesado pela conduta adotada pela empresa. A Justiça do Trabalho é pródiga em manter “clientes especiais”, que estão praticamente todos os dias na sala de audiências, representados por “prepostos oficiais”, contratados para a exclusiva tarefa de “montar” e acompanhar processos trabalhistas.

São empresas que optam pelo não pagamento de horas extras, pelo pagamento de salários “por fora”, pela contratação de trabalhadores sem reconhecimento de vínculo de emprego ou mesmo por tolerar e incentivar condutas de flagrante assédio moral no ambiente de trabalho. Constituem uma minoria dentre os empregadores e, por isso mesmo, perpetram uma concorrência desleal que não prejudica apenas os trabalhadores que contratam, mas também as empresas com as quais concorrem no mercado. Além disso, passam a funcionar como indesejável paradigma de impunidade, influenciando negativamente todos aqueles que respeitam ou pretendem respeitar a legislação trabalhista.

É fácil, ademais, perceber o prejuízo gerado à sociedade pelas condutas reiteradas de desrespeito à ordem jurídica trabalhista. Lembre‑se, por exemplo, que é a partir do custo social do FGTS que várias iniciativas de políticas públicas são adotadas, incluindo a própria concessão do benefício do seguro‑desemprego. Além disso, os recolhimentos previdenciários servem igualmente ao custeio da Seguridade Social, que inclui a prestação de serviços de saúde pública.

Ora, se vários empregadores, por estratégias fraudulentas, deixam de cumprir com as obrigações trabalhistas das quais esses custos decorrem, é mais que evidente que vai faltar dinheiro para a realização desses projetos do Estado Social e todos, não apenas os trabalhadores diretamente atingidos, serão prejudicados.

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Um empregador que tenha registrado seus empregados, assumindo todos os custos sociais daí decorrentes, se verá na quase obrigação de custear, ele próprio, planos de saúde para seus empregados e assim por diante. Todos sabemos que tais custos existem para inserir os trabalhadores no contexto das benesses do Estado Social, sobretudo da Seguridade Social, diante da falência da prestação de serviços na área da saúde pública, que se dá pela falta de recursos que as práticas fraudulentas geram (e, claro, também, pela inescrupulosa, assassina e ilegal prática corruptiva, que assola parcela da burocracia de Estado em conluio com beneficiários do setor privado).

A macrolesão é demonstrada pelas inúmeras ações em uma comarca ou Estado, a revelar a reiteração da conduta lesiva. A tutela jurisdicional perseguida por um número expressivo de trabalhadores não obscurece o fato de que certamente sequer cinquenta por cento dos profissionais lesados pela conduta da empresa buscam seus direitos junto à Justiça do Trabalho.

A realidade de contumaz e reiterado desrespeito aos direitos trabalhistas revela a prática de “dumping social”.

É bem verdade que a expressão “dumping social” foi utilizada, historicamente, para designar as práticas de concorrência desleal em nível internacional, verificadas a partir do rebaixamento do patamar de proteção social adotado em determinado país, comparando‑se sua situação com a de outros países, baseando‑se no parâmetro fixado pelas Declarações Internacionais de Direito. No entanto, não é, em absoluto, equivocado identificar por meio da mesma configuração a adoção de práticas ilegais para obtenção de vantagem econômica no mercado interno.

Ora, ao se desrespeitarem, de forma deliberada, reiterada e institucionalizada, os direitos trabalhistas que a Constituição garante ao trabalhador brasileiro, a empresa não apenas atinge a esfera patrimonial e pessoal daquele empregado, mas também compromete a própria ordem econômica, projetada na mesma Constituição. Atua em condições de desigualdade com as demais empresas do mesmo ramo, já que explora mão de obra sem arcar com o ônus daí decorrente, praticando concorrência desleal.

Em um país fundado sob a lógica capitalista, em que as pessoas sobrevivem daquilo que recebem pelo seu trabalho e na qual as empresas adquirem lucro pela exploração do trabalho, atitudes com tais contornos se afiguram ofensivas à ordem axiológica estabelecida, isso porque retiram do trabalhador, cuja mão de obra reverte em proveito do empreendimento, a segurança capaz de lhe permitir uma interação social minimamente programada. Ou seja, ao colocar o lucro do empreendimento acima da condição humana daqueles cuja força de trabalho justifica e permite seu desenvolvimento como empresa, o empregador nega‑lhes condição de vida digna.

Neste sentido, aliás, não é nenhum exagero dizer que a própria empresa perde a sua legitimidade de atuar no mercado, uma vez que fere frontalmente o preceito

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constitucional da função social da propriedade, que refletiu na própria atuação negocial, conforme regulação do novo Código Civil.

Em razão dessa realidade que vem insistentemente sendo trazida ao conheci‑mento do Poder Judiciário Trabalhista, os profissionais do Direito do Trabalho do Brasil aprovaram o Enunciado n. 4, da 1ª Jornada de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho, organizada pela Anamatra e realizada nos dias 21 a 23 de novembro de 2007, no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, aprovado com o seguinte teor:

“DUMPING SOCIAL”. DANO À SOCIEDADE. INDENIZAÇÃO SUPLEMENTAR. As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera‑se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido “dumping social”, motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi‑la. O dano à sociedade configura ato ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Encontra‑se no art. 404, parágrafo único do Código Civil, o fundamento de ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás, já previam os arts. 652, “d”, e 832, § 1º, da CLT.

O Enunciado retrata uma realidade diante da qual os Juízes do Trabalho não querem mais calar (somente no TRT da 18ª Região já foram prolatadas mais de 45 sentenças condenando empresas causadoras de danos sociais). Uma realidade que em última medida compromete o projeto de sociedade instaurado em 1988.

Este estudo dedica‑se justamente a enfrentar o tema do dano/dumping social, sob a perspectiva da função do Estado‑Juiz, em um país que se pretende e se proclama social e democrático de direito.

Trata‑se de tema que, havendo surgido no âmbito das relações comerciais ou de consumo, tem estreita imbricação com as características paradoxais do sistema capitalista de produção. É produto desse sistema a existência de forças díspares que interagem gerando prejuízos que, muitas vezes, mal disfarçam sua característica essencial: a redução de tudo, inclusive do homem e da natureza, à condição de mercadoria.

O Direito do Trabalho está no centro dessa tensão, viabilizando condutas que em nome da legítima persecução do lucro terminam por gerar sofrimento coletivo (como nas hipóteses de assédio moral no ambiente de trabalho), prejuízos sociais (como nas hipóteses em que práticas econômicas predatórias determinam o fechamento de pequenas empresas) e encargos desnecessários (representados, por exemplo, pelo expressivo número de trabalhadores sem condições de exercer suas atividades, em razão de doenças profissionais potencializadas pela ausência de prevenção no ambiente de trabalho).

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A discussão que pretendemos estabelecer diz respeito não apenas a esse diagnóstico, facilmente alcançado diante do que todos os dias noticiam os jornais e as salas de audiência da Justiça do Trabalho, mas também com a função/dever que o juiz assume diante dessa realidade. Para além da constatação de fatos, pretendemos propor alternativas viáveis que ao menos minimizem a prática predatória nas relações trabalhistas, tornando um “bom negócio” a observância tempestiva dos direitos de personalidade dos trabalhadores durante a execução do contrato de trabalho.

Essa função não é exclusiva do juiz. O fato de o Ministério Público do Trabalho ter legitimidade para propor ação coletiva pretendendo o pagamento de indenizações que coíbam a reiteração de práticas de dumping social não retira do juiz a mesma função. Trata‑se de uma ação conjunta em prol da concretização do projeto constitucional de sociedade inclusiva e comprometida com o bem de todos.

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111111111111111111111 SITUANDO O TEMA: CONCEITOS DE “DUMPING SOCIAL” E DE DANO SOCIAL

Antes de iniciarmos a tratar dos pressupostos e dos fundamentos que sustentam a teoria que aqui iremos defender — de possibilidade de condenação, de ofício, ao pagamento de indenização por “dumping social”, no âmbito de demandas individuais trabalhistas —, cumpre fixar os conceitos dos institutos pertinentes ao tema.

A necessidade dessa verdadeira preliminar à abordagem do tema se dá, por um lado, em razão do expressivo aumento de condenações por dano social, às vezes denominadas indenização por “dumping social”, ou indenização suplementar, e, de outro lado, em função de uma resistência conceitual que o tema tem encon‑trado. Uns negam que a expressão “dumping” possa ser utilizada no contexto interno das relações comerciais de um único país, pois estaria reservada às rela‑ções internacionais. Outros asseveram que a expressão “dumping” tem natureza estritamente econômica, devendo ser conceituada como a “prática de comércio internacional consistente na venda de mercadorias em praça estrangeira por preço sistematicamente inferior ao do mercado interno ou ao de produtos concorrentes, tendo como fito a eliminação da concorrência”(1), o que tornaria impróprio falar em um “dumping” de natureza social, sendo que em decorrência dessa resistência, alguns advogam a utilização da expressão “delinquência patronal”.

O instituto da “delinquência patronal” já foi referido, entre outros autores de nomeada, por José Augusto Rodrigues Pinto e Rodrigo Trindade(2), sendo que

(1) PINTO, José Augusto Rodrigues. Dumping social ou delinquência patronal na relação de emprego? Disponível em: <http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/26999>. Acesso em: 21 abr. 2013.

(2) SOUZA, Rodrigo Trindade de. Punitive damages e o Direito do Trabalho brasileiro:adequação das condenações punitivas para a necessária repressão da delinquência patronal. Disponível em: <revistapraedicatio.inf.br/download%5Cartigo07‑edicao2.pdf>. Acesso em: 10 maio 2013.

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este último informa que a expressão foi utilizada pela primeira vez em 1994(3), em artigo do professor Wilson Ramos Filho.

O Direito Penal, conforme esclarece Wilson Ramos Filho(4), citando Baratta, não foi concebido para reprimir os integrantes da elite, e, por certo, o Direito do Trabalho, “o mais capitalista de todos eles”(5), também não foi concebido para fundamentar atuações da Justiça do Trabalho para assegurar eficácia máxima da legislação obreira, e, por isso, as condutas “nada corretas” de diversos empregadores escapam não somente às reprimendas da Lei Penal, como também da Trabalhista.

Conforme Ramos Filho, algumas normas penais foram alteradas para consi‑derar certas condutas patronais como delitivas, tais como a submissão do traba‑lhador a condição análoga à de escravo (art. 149 do CPB) e também a frustração de direito assegurado em legislação trabalhista (art. 203 do CPB), dentre outras que também punem a sonegação, mediante não anotação de CTPS e pagamento de salários “por fora”.

De todo modo, na visão de Wilson Ramos Filho, as leis que impõem sanções criminais não foram feitas para os ricos, e no subconsciente coletivo os aplicadores do Direito Penal tendem a somente aceitar como crimes os atos perpetrados pelos pobres.

Neste sentido, o professor Marcio Túlio Viana certa vez disse, em um curso de formação de juízes do Trabalho, na sede do TRT de Minas Gerais, que, se ele (senhor já de idade e com cabelos brancos) entrasse em uma padaria e pedisse ao balconista seis pães, colocasse o embrulho sob o braço e saísse sem pagar, certa‑mente o vendedor, o caixa e até os clientes gritariam: pega ladrão! Pega ladrão! E certamente até encontraria, mesmo junto aos transeuntes, alguém que lhe inter‑ceptasse, tomasse a “res furtiva” e o prendesse em flagrante. Mas, acrescentou o grande professor mineiro: se uma empresa, de forma calculada, voluntária e propo‑sitada deixasse de pagar as horas extras de seus empregados, certamente ninguém diria “pega o ladrão de horas extras!”.

Está corretíssimo o raciocínio do nosso mestre. A pergunta que nos devemos fazer é, por que, afinal, furtar alguns pães é crime e não o é subtrair o fruto do trabalho e do esforço humano?

(3) A expressão “delinquência patronal” é de autoria de Wilson Ramos Filho, adotada inicialmente em artigo produzido em 1994: RAMOS FILHO, Wilson. O Enunciado n. 331 do TST: terceirização e a delinquência patronal. Síntese Trabalhista. Porto Alegre, n. 58, p. 110‑22, abr. 1994

(4) RAMOS FILHO, Wilson. Delinquência patronal, repressão e reparação. Disponível em: <migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090116‑01.pdf>. Acesso em: 8 jun. 2013.

(5) Wilson Ramos Filho afirma que “o Direito do Trabalho é o mais capitalista dos direitos, no sentido de que é esse o ramo do direito que legaliza a apropriação da mais‑valia, fundamenta o poder diretivo do empregador e que organiza o funcionamento da economia capitalista ao atribuir papéis, direitos e deveres tanto para a classe que vive do trabalho, quanto para a classe que, no mercado, compra a força de trabalho”.

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Certamente porque as leis não foram feitas por aqueles que têm as horas extras furtadas, mas sim por aqueles que as furtam. Ocorre que o direito é uma construção complexa, que vai além da vontade restrita do legislador — embora no aspecto do Direito Penal, especificamente, a adstrição à lei seja uma característica inarredável, garantia do cidadão. O que nos parece importante destacar é que se faz necessário, urgentemente, reavaliar as práticas trabalhistas, para o fim de perceber que há uma grave violência nos atos de desrespeito deliberado aos direitos sociais, que visam a assegurar uma condição de existência digna aos trabalhadores, cumprindo aos juristas extrair do conjunto normativo, que é pautado pela predominância dos Direitos Humanos, os efeitos punitivos, exemplares, de tais condutas.

Neste sentido, as resistências conceituais, ou, mais propriamente, as intrigas quanto à melhor nomenclatura a ser utilizada, servem apenas para evitar que essa necessária evolução do Direito se produza concretamente.

A respeito das resistências conceituais (e de tantas outras), é interessante notar que o fenômeno social destacado pela teoria do “dumping social”, tal qual referido no presente livro, não é desconhecido por ninguém. Em outras palavras, nenhum autor que tenha se posicionado sobre o tema, mesmo apresentando objeções conceituais, negou a existência do fato social e econômico consistente na prática reiterada de descumprimento da legislação trabalhista como forma de obter vantagem econômica sobre a concorrência.

Além disso, ninguém disse — nem poderia dizer, por certo — que constitui um direito das empresas buscar melhorar seu lucro e vencer a concorrência econômica por meio de práticas fraudulentas, notadamente no que se refere aos direitos trabalhistas.

Bem se vê, portanto, que as objeções são muito mais terminológicas do que, propriamente, conceituais, até porque o maior erro que se pode cometer no tema proposto seria o de manter o direito alheio a uma realidade que passou a receber a necessária problematização jurídico‑teórica.

O direito é um dado cultural que se constrói evolutivamente na medida das valorações que se atribuam aos fatos sociais. A partir de uma problematização específica, o conjunto de normas e princípios, qual seja, o direito, é chamado a conferir uma resposta corretiva dos efeitos sociais nefastos identificados.

Na sociedade capitalista, o direito apresenta‑se, ademais, como o instrumento regulador necessário para salvaguardar o próprio sistema, que requer padrões claros de conduta econômica, e para preservar o ser humano diante desses mesmos interesses econômicos tidos como legítimos.

Foi assim, por exemplo, que o tema relativo ao “assédio moral” nas relações de emprego, uma vez identificado por pesquisas médicas, atingindo preocupa‑ções psicossociais, passou a integrar o rol dos estudos jurídicos trabalhistas. Hoje, mesmo sem o advento de uma lei específica, ao contrário do que ocorria há dez anos, o assédio moral nas relações de emprego, entendido como a prática reite‑

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rada de rebaixamento da condição humana do trabalhador, levando ao abalo de sua autoestima, é um fato social devidamente reprimido pelo direito. Essa situação foi identificada, problematizada e recebeu uma resposta do direito. Recebeu o nome de “assédio moral”, mas poderia ter recebido qualquer outro nome, que em nada mudaria a sua essência...

Pois bem, o que se passa com o fato social e econômico da prática de algumas empresas de utilizar o descumprimento sistematizado da legislação traba‑lhista como forma de potencializar lucros e suprimir a concorrência é exatamente a mesma coisa. Percebido o fato, ou problematizada a questão sob o ponto de vista de seus graves efeitos para o próprio propósito constitucional de regulamentar o modo de produção capitalista em consonância com o projeto de consagração do valor social do trabalho e da preservação da dignidade humana, não se pode excluir a incidência do direito sobre o problema, buscando no seu bojo os meios para as correções necessárias.

O nome que se dê ao fato é relevante como facilitador da compreensão da ideia, mas não é a sua essência. Podemos chamar a justa causa do empregador de “rescisão indireta”, mas a essência não muda, muito embora, deva‑se reconhecer, a expressão mais amena, no caso específico da “rescisão indireta”, acabe servindo para dificultar a percepção da delinquência patronal, direcionando‑se apenas para o empregado a conotação de ordem moral que a expressão “justa causa” carrega.

Não negamos, por certo, a importância da linguagem. Não é por razão diversa que demos a este estudo o título de Dumping Social nas Relações de Trabalho. Na nossa concepção é, sim, de dumping que estamos tratando e a adoção desse termo tem a relevância de não minimizar o problema, que se daria mediante a utilização de eufemismos.

De todo modo, é necessário pontuar que a eventual divergência quanto ao nome não pode, de modo algum, ser obstáculo à percepção da ideia e mais ainda à visualização do problema social identificado. Em outras palavras, ainda que se tenham bons argumentos para dizer que a expressão “dumping” é restrita às relações econômicas e que sirva para relações internacionais, não se pode concluir, a partir da objeção terminológica, que o fenômeno social e econômico embutido na problematização, que deu origem à reação jurisprudencial, não existe e que, não existindo, não deva ser uma preocupação do jurista e, consequentemente, do direito.

O texto referido, do professor José Augusto Rodrigues Pinto, aliás, tem, exatamente, esse mérito, de explicitar uma objeção terminológica, apontada como conceitual, mas que não desconsidera a existência do fato social e econômico que ensejou a atuação jurisprudencial, defendendo, em suma, a interferência corretiva do direito.

Entendemos, no entanto, que a divergência, muito bem‑vinda por sinal, não é conceitual, na medida em que os instrumentos jurídicos preconizados como aplicáveis ao caso, visando a sua correção, não são rejeitados.