E por falar em infância -...

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E por falar em infância... Crônicas, contos e poemas Luciane Mari Deschamps Escritoras convidadas: Arlete Maria Kaiser Janaina Lúcia Alves Janine Lúcia Alves

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E por falar em

infncia... Crnicas, contos e poemas

Luciane Mari Deschamps

Escritoras convidadas: Arlete Maria Kaiser Janaina Lcia Alves

Janine Lcia Alves

http://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=crian%C3%A7as+brincando+desenho&source=images&cd=&cad=rja&docid=FRxK3vrI2Xt9cM&tbnid=GuqsaxlzzkxgvM:&ved=0CAUQjRw&url=http://colorireaprender.com/criancas-brincando&ei=bG50Ub3zDIz89gSg9oDYAw&psig=AFQjCNH-2veHKz2b7xU_bObNImvZTwfXQg&ust=1366671132475714

Os direitos autorais dos textos que compem este livro continuam pertencendo aos

autores discriminados na pgina cinco.

Apoio Cultural: Associao dos Escritores da Regio da Grande Florianpolis AESGF

Produo Independente Capa: Gabriel Bourg Reviso: Luciane Mari Deschamps Ilustraes: Internet

Ficha Catalogrfica

E POR FALAR EM INFNCIA... Crnica, Contos e Poemas

Deschamps, Luciane Mari; Alves, Janaina Lcia; Alves, Janine Lcia e Kaiser, Arlete

Maria.

Florianpolis: , 2014

111p.

1. Literatura brasileira. I. Ttulo.

Luciane Mari Deschamps E por falar em infncia... Contos Crnicas e poemas

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APRESENTAO

Este livro muito especial, pois est cheio de emoes vividas ou imaginadas e que podem ser guardadas na memria e no corao. Os nossos melhores momentos esto na infncia, a fase mais significativa de nossas vidas e onde muito se aprende e cresce.

Todos ns temos fatos para contar dos tempos de criana. Quem j no teve seu animal de estimao ou aquelas pessoas amigas e companheiras das brincadeiras dentro e fora de casa? Quem no se lembra da casa de algum e da presena de avs, tios e primos em torno de uma mesa farta, fazendo festa, rindo e se divertindo? Ou de histrias contadas ao redor de uma fogueira ou na varanda ou na sala de estar? Ou dos preparos para as festas de fim de ano e da Pscoa? Estas so nossas melhores recordaes! Memrias que deixamos passar de novo pelo corao todas as vezes que precisamos rever os captulos do nosso viver.

Infelizmente, a vida tambm tem seus momentos ruins, dolorosos, tristes. O vazio que uma pessoa deixa quando parte para sempre; um brinquedo que se quebra ou que no vem na noite de Natal; pessoas que nos decepcionam por no ficarem ao nosso lado; sentimentos que desaparecem com o tempo ou que ficam quando a alegria no est... Tais situaes, apesar de tristes, tambm so experincias que nos fazem crescer. Algumas, claro, deixam marcas profundas, cicatrizes para sempre. Mas a vida tudo isso e precisamos lidar tambm com as frustaes para entender a importncia de quando somos felizes. O tempero da vida dado por ns. Se adoarmos o que nos amarga, podemos ver o que bom mesmo nas situaes mais difceis.

Cada histria que compe este livro uma tentativa de resgatar as experincias de vida de qualquer um que j cresceu e tem um passado inteiro para contar sobre o que experimentou e o quanto isso foi importante.

E POR FALAR EM INFNCIA... CRNICAS, CONTOS E POEMAS um livro nico e cheio de histrias com ou sobre crianas que, de certa forma, vivenciaram emoes tambm nicas e especiais. O leitor, com certeza, se identificar ou com os fatos narrados ou com os sentimentos vividos. De alguma forma, este um livro que marcar para sempre e que, em algum momento, far voc suspirar por algo guardado em um ba cheio de memrias e que vale a pena ser revisto e sentido novamente.

Desejo que todos leiam estas crnicas, contos e poemas com o mesmo sentimento de quando ramos pequenos, ainda meninos, felizes e esperanosos.

Somente o olhar de uma criana capaz de perceber detalhes da vida que no conseguimos mais ver quando amadurecemos e perdemos a sensibilidade para o que realmente nos traz a felicidade.

Boa leitura! Luciane Mari Deschamps

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SOBRE AS AUTORAS

Luciane Mari Deschamps natural de Videira, Santa

Catarina e reside em Florianpolis h mais de trinta e cinco. Est

com 45 anos. Tem duas filhas, Francieli e Amanda. professora

de Lngua Portuguesa e Espanhol h 24 anos; especialista em

Psicopedagogia. Participa da Associao de Escritores da Grande

Florianpolis e j lanou dois livros: PALAVRAS EM MIM - MEUS

POEMAS E RELATOS DA INFNCIA (EDITORA IXTLAN, 2011) e

PALAVRAS NO TEMPO (EDITORA IXTLAN, 2012).

Janaina Lcia Alves nasceu em Florianpolis, SC, no dia 13

de maio de 1982. formada em Administrao e ps-graduada

nesta mesma rea. Atua profissionalmente na rea do comrcio da

indstria moveleira e decorao de interiores. Escreve seus poemas

h muito tempo secretamente e encorajou-se a divulg-los em

resposta aos seus leitores. A proximidade com os livros de contos

infantis e a facilidade de acesso aos mais variados temas lhe deram

liberdade para escrever sobre diversos assuntos. Entre os estilos

que l, esto os romances, romances policiais, biografias, poesias,

contos e crnicas.

Janine Lcia Alves nasceu em Florianpolis, SC, no dia 30

de janeiro de 1958. aposentada dos Correios e Telgrafos de

SC. Tem uma filha, Janaina Lcia Alves. Hoje em dia, reside em

Palhoa, Santa Catarina. Eu gosto de cantar em Corais e fiz

parte, durante muitos anos, do Coral Clave Sul dos Correios, de

SC. Adoro ler e fazer poemas. Sempre me interesso por assuntos

msticos e msicas clssicas. Meu exemplo de vida minha me:

Edite Maria Alves que j tem 82 anos.

Arlete Maria Kaiser nasceu em Florianpolis, Santa

Catarina, no dia 31 de agosto de 1952. Atualmente, reside em

Campos Novos, no interior catarinense. Tem um filho, Anderson

Kaiser e dois netos, Letcia e Guilherme, por quem nutre um amor

incondicional. Trabalhou com as sries iniciais. professora

aposentada do Estado. Sempre gostou de contar histrias, mas

somente agora resolveu registr-las e public-las.

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NDICE

Que travessura! ............................................................................................................ 09 Belebo ......................................................................................................................... 10 Amor de Menino ........................................................................................................... 12 Manhas e Manias ......................................................................................................... 14 Presente de Natal ........................................................................................................ 16 Desejo de menino ........................................................................................................ 17 Quando o amor chegar ................................................................................................ 19 Elisa ............................................................................................................................... 21 Crianas ........................................................................................................................ 23 Olhos castanhos ............................................................................................................ 25 E a, vai encarar? .......................................................................................................... 26 E quando o futuro chegar? ........................................................................................... 28 Tareco, o gato ............................................................................................................... 30 Tempo de Natal ........................................................................................................... 32 Uma histria de amor .................................................................................................. 34 Tobi ............................................................................................................................. 36 Um amigo para sempre ............................................................................................... 38 O Poo .......................................................................................................................... 40 A Chica do Bastio ........................................................................................................ 41 Mos ............................................................................................................................ 44 Tempestade .................................................................................................................. 45 Brincadeira de criana .................................................................................................. 46

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QUE TRAVESSURA!

Aquela tarde foi fogo! Fogo nas canelas!. Quase fiquei sem minhas roupas e com alguns furos de espingarda. A ideia foi do Gordo, aquele safado. Se eu soubesse que ia entrar em uma fria, jamais tinha topado.

Estava muito calor. Eu, Gordo e Pedroca estvamos sentados beira da estrada, riscando a poeira da rua com pedao de gravetos. L pelas tantas, Gordo lanou a triste ideia:

Que tal, galera, a gente nadar l no riacho da fazenda do seu Chico?

Eu, hein, cara! Voc no sabe que l proibido?

Ah, e quem precisa saber? Ns vamos por um atalho que s eu conheo. Depois, l tambm tem umas jabuticabas que devem estar docinhas nessa poca.

Hum... Parece tentador! Disse Pedroca.

Eu acho perigoso. Insisti. De nada adiantou. Em poucos minutos estvamos l, gritando, pelados, um jogando gua no outro, no meio do rio. O calor e o medo foram embora. Eu cheguei a esquecer de que naquele lugar era proibido nadar (a placa estava diante de nossos olhos, mas no serviu de nada.).

De repente, escutamos um barulho de... TIROS! Cara, era gente correndo para todos os lados. Pegamos roupas daqui, dali e samos na disparada! At o Tobe, o cachorro do Gordo, saiu correndo, assustado e ganindo.

Desta vez, nem deu tempo de olhar para trs. S sei que fomos parar quase na beira da estrada, sem flego, com as roupas nas mos e... Pelados! Que mico! Tudo bem. Hoje acho engraado o que aconteceu, mas acreditem: travessura como essa nunca mais!

Luciane Mari Deschamps

BELEBO

O pi chegou da rua numa disparada, esbaforido e, desesperadamente,

chamava pela me. Parecia estar fugindo de algo muito perigoso ou de algum muito cruel. E realmente estava! S que era de um ser criado pela imaginao popular e claro, a do prprio Pedro.

Um dia, ele ouviu de sua me que ouviu de seus avs histrias de um tal de Belebo. Diziam os mais velhos, em quem o menino muito acreditava, que esse homem levava embora as crianas respondonas, malcriadas, travessas e que no faziam as tarefas da escola. Era o Homem do Saco!

Pedrinho era pi que pertencia aos dois ltimos grupos. Vivia com os outros meninos, metido em travessuras pela vizinhana e sempre deixava para fazer as tarefas da escola por l mesmo, no ptio do colgio, em cima da hora, muito mal feitas e incompletas. Dizia no ter tempo para essas coisas da chata da professora. Queria mesmo era brincar enquanto podia e suas aventuras pareciam no ter fim.

Naquela tarde, viu com seus olhos que a terra a de comer um dia o homem que mais temia! Belebo vestia-se muito mal; andava sujo, barbudo e com um saco marrom s costas. Era uma figura sinistra e cheia de histrias em torno de sua existncia. Sua chegada em um determinado lugar era motivo para mil e um comentrios. Uma histria se metia em outra quando se tratava de Belebo. Sempre havia um adulto contando com voz de mistrio e medo fatos envolvendo crianas misteriosamente desaparecidas quando o homem do saco estava na cidade.

Coincidncia ou no, sempre que Pedro fazia alguma coisa escondida ou recebia bronca por no fazer as tarefas, ele escutava algum falar que Belebo estava na rea para buscar crianas arteiras. Quando viu aquele homem vagando pelas ruas do bairro, vasculhando as lixeiras e mexendo em coisas estranhas, no teve outra! Saiu em disparada para dentro de casa, berrando pela me. Estava certo de que era por ele quem o homem estava buscando.

Meeee! O... O... O homem do saco! Ele... Ele... t a na nossa rua!

Calma, pi! O que aconteceu?

Eu vi o Belebo, me! Eu juro que vi! Ele est l fora e veio me pegar.

Ora, mas por que tu acha que ele vai te levar? Tu no um pi bom? O homem do saco s leva menino travesso.

Mas que... O Joo aprontou e disse que fui eu. Mas eu no fiz nada, me! Eu nem passei por perto da casa da dona Severina! Quem chutou a bola foi o Joo.

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Do que tu t falando, pi? Que histria de bola e dona Severina essa? Por acaso foram vocs que andaram quebrando as roseiras da mulher? Bem que ela esteve aqui reclamando.

No, me! Eu no!

Olha, olha! Bem que me contaram que tinha sido travessura de menino! Agora sei por que o Belebo est na cidade.

Por qu?

Para levar quem quebrou as roseiras com a bola. Sabe quem fez isso?

N... No!

Tem certeza? Quem mente faz xixi na cama!

Foi o Joo! Eu vi ele chutar a bola, mas quando entrou no jardim daquela brux... daquela mulher... samos correndo. Ela muito malvada, me. Acho que Belebo devia levar ela embora, assim dava pra jogar bola na estradinha, sem medo.

Ah, est tudo explicado! J para o banho! E amanh no tem futebol na rua com ningum. Ouviu, mocinho?

Mas, me!

Sem mas! Anda! Amanh mesmo vamos conversar com a dona Severina e o senhor vai pedir desculpas e vai fazer algo para ela. Certo? E agora vou l fora dizer pro Belebo que tu j est dormindo. Vou te safar hoje, mas outra travessura no ser perdoada, viu?

E era assim que a histria do homem que levava criancinhas em um saco se mantinha na boca das geraes.

Luciane Mari Deschamps

AMOR DE MENINO

Eu j estava com onze anos quando tudo na minha vida de menino mudou radicalmente. Naquela manh, fiz as mesmas coisas de sempre: acordei s seis horas, coloquei meu uniforme, tomei chocolate quente com bolacha, escovei os dentes, peguei a mochila e fui para o ponto de nibus a passos largos. At aqui, tudo muito rotineiro.

Ao chegar escola, me encontrei com os outros meninos que estavam jogando bola na quadra. Atirei a mochila em um canto qualquer e corri ao encontro do que eu mais gostava: o futebol. Como eram bons aqueles minutos antes de tocar o sinal para entrarmos em sala! A bola era disputada por todos a berros e empurres. O suor escorria no rosto logo cedo e, quando tocava o sinal, entrvamos na sala de aula agitados e discutindo sobre quem fizera a falta. Alis, o jogo era mais de faltas e pnaltis do que estratgias para fazer um gol.

Ns meninos tnhamos um mundo parte. Estvamos sempre juntos, nas brincadeiras e peraltices. Brigvamos agora e logo depois j trocvamos ideias sobre a prxima aventura. Tinha menino de todos os tipos: alto, baixo, gordo, magrinho, doente, ranhento, briguento, tmido, divertido, mas todos enturmados e envolvidos com aquela fase das melhores brincadeiras infantis. O mundo se resumia aos momentos em que estvamos juntos para nos divertir e dar boas risadas. Inventvamos nossos prprios brinquedos e com eles as brincadeiras. Todos eram meninos, parceiros e amigos de jornada.

E sabe quem eram as meninas para ns? Seres estranhos e desconhecidos. E, at naquele dia, eram um grupo de pessoas excludo de nossas vidas e brincadeiras. Seres enfeitados demais, cheirosos demais, femininos demais e cheios de manias. Qualquer coisa, as meninas saam correndo para reclamar de ns para as mes ou para a professora. Elas no podiam se aproximar do que considervamos coisas para meninos e que menina no entra. Isso poderia gerar uma briga e um bate-boca de horas a fio.

No dia em que Larissa chegou escola, algo foi diferente. Foi a primeira vez que parei para observar uma garota. Vestia o uniforme ainda novo e levava consigo, abraado ao peito, um caderno rosa. Seus movimentos delicados chamaram minha ateno. U, quem era aquela graciosidade, de cabelos compridos e saia curtinha? Senti uma fisgada no corao. Algo mudou dentro de mim. O ptio da escola ficou vazio de repente. Os amigos do futebol desapareceram. O cu ficou mais azul e o sol brilhava de um jeito especial. Senti um perfume diferente no ar, um aroma doce, suave

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que envolveu todo o meu ser. A cabea ficou zonza e meus ouvidos ensurdeceram. A imagem de Larissa permaneceu na menina dos meus olhos e nunca mais a esqueci.

Aquela menina virou motivo para eu sair ainda mais cedo para a escola, no para jogar futebol, mas para ficar isolado dos demais, com o olhar perdido, buscando algum. Fiquei alguns dias espreitando a menina dos meus sonhos pelo ptio. Observava os movimentos e o jeito dela de fazer tudo: falar, andar, rir, sorrir, gesticular. Ah, menina linda, encantadora que comeou a existir para mim!

Eu no poderia contar nada daquilo a ningum. Meus amigos me matariam se soubessem que eu gostava de uma ME-NI-NA. E isso era verdade! Nunca tinha visto algum como Larissa e nem consigo explicar por que ela me chamou tanta ateno. Passei dias suspirando pelos cantos e ensaiando como poderia me aproximar.

Eu sabia que estava apaixonado pela garota mais nova no colgio. Eu sabia, tambm, que no poderia dizer o que sentia a ningum. Guardei em meu peito o sentimento mais bonito que vivi. Larissa foi minha primeira paixo e a descoberta para um mundo at ento desconhecido: o das mulheres. Larissa foi o sonho de amor dos meus tempos de pi.

Luciane Mari Deschamps

MANHAS E MANIAS

Mariana tinha de tudo em seu quarto: da TV de LCD at as cortinas esvoaantes. Tudo muito mimoso, simples e bem cuidado. Ela era do tipo que no sabia o que significava a falta de alguma coisa. Seus pais, mesmo com todas as dificuldades financeiras, procuravam mant-la em um mundo especial, sem problemas e sem necessidade. Havia meses em que as coisas na casa de Mariana no andavam bem, mas ela nem percebia, pois vivia dentro do seu mundinho, cercada de mimos e carinhos. Essa garotinha, desde que nasceu, sempre brincou dentro do apartamento. A me nem descia para o playground porque sempre estava envolvida com as coisas da casa. Alm disso, acreditava que, no quarto, a menina estava bem, segura e feliz. Tinha dias que a menininha nem percebia o dia passar, pois mantinha a ateno na televiso, em jogos da internet, em atividades com seus diversos brinquedos eletrnicos. Vivia sozinha, sem amigos, apenas cercada de tudo o que queria. Certo dia Mariana ficou entediada no seu mundo-quarto e resolveu espiar o que havia alm daqueles vidros e da tela que protegia a abertura da janela. Parecia que l fora tudo era agitado demais. Havia carros, pessoas e muito barulho. Porm, algo despertou o interesse de Mariana. Em um poste, escondido no emaranhado de fios, um pssaro pardo fazia seu ninho. Em voos contnuos, saa e voltava com um galhinho no bico. Fez isso diversas vezes, incansveis vezes! Os olhinhos de Mariana acompanharam por horas o comportamento do pssaro que demonstrava alegria, pois havia momentos que cantava e o canto dele se misturava aos sons do movimento da rua. Mariana desejou fortemente possuir o que via diante de seus olhos de cobia. Achava que podia ter para si aquele canto.

noite, quando o pai de Mariana chegou do trabalho, s viu a filha sair do quarto em disparada e pedindo um passarinho. E agora? Como convencer a menina de que naquele apartamento um pssaro no seria o bichinho ideal. Bastou ouvir o primeiro no e Mariana tirou l do fundo o choro mais forte que tinha nos pulmes. Os pais, que no negavam nada garota, resolveram trazer, no outro dia, uma gaiola com um pssaro comprado em um Pet Shop.

A rotina foi alterada. Agora, Mariana tinha para si um pssaro. No era o mesmo que fizera um ninho no poste da rua. Era um canrio que tinha seu canto

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choroso todas as vezes que via a luz do sol. A menina passou a olh-lo durante muito tempo. Conversava com o bichinho como se ele fosse uma amiguinha da mesma idade. Partilhava com o passarinho seus brinquedos e brincadeiras. Ficava extremamente feliz quando o ouvia cantarolar.

Isso no durou muito tempo, pois a menina mimada logo se aborrecia das coisas que tinha e, numa tarde qualquer, abriu a gaiola para que o pssaro sasse pelo ar. No pensem que foi por bondade o ato de libertar o pssaro. A menina, no dia seguinte, j queria outra coisa que pudesse prender por alguns dias sua ateno.

Luciane Mari Deschamps

PRESENTE DE NATAL

Betina era a boneca mais linda do mundo! Tinha no rostinho de borracha a

expresso das crianas felizes. Usava um vestido de flores midas e coloridas, com rendas na barra da saia e nas manguinhas fofas. Os cabelos loiros e lisinhos eram presos em duas partes, com laos vermelhos de cetim. Betina representava as meninas de um grupo especial de crianas bem tratadas e nutridas, pois tinha as bochechas grandes e rosadas. Trazia um sorrisinho meigo no rosto angelical.

A boneca chegou numa noite de Natal, embrulhada em um papel de presente verde, todo cheio de Papais-Nois sorridentes. Foi comprada em um Shopping Center, recm-inaugurado, na ala sul da cidade, e disputadssima entre trs mes muito preocupadas em realizar o desejo de consumo de uma filhinha mimada.

O nome Betina j veio da fbrica. Era o nome de uma atriz famosa de uma novela infantil de um canal de televiso que sempre estava em audincia. Para alegria das pequenas fs, a atriz foi transformada em brinquedo que foi desejado de uma hora para outra, depois de um anncio publicitrio na TV. Alis, depois de muitas propagandas de variados brinquedos.

A menina que a ganharia na manh de Natal a quis logo que soube do lanamento. A garotinha nem mais brincava com bonecas. Suas atividades estavam relacionadas a celulares, internet, redes sociais e jogos eletrnicos. J estava grande demais para brincar com bonecas! Imagine, j tinha cinco anos! Era uma mocinha!

Betina foi desembrulhada com a euforia desejosa de todas as crianas. Foi admirada e levada no colo para ser exibida na casa dos avs e primos. No incio da conversa dos parentes, as atenes at foram voltadas a ela, mas isso logo mudou quando todos resolveram falar dos artistas e da novela das nove que comeou em substituio quela que Betina, a atriz, era a personagem principal. Mesmo a dona da boneca no falava mais do brinquedo que ganhara. Logo ficou bem interessada pelo jogo eletrnico do primo um ano mais velho do que ela.

A boneca de vestido florido e de rosto angelical ficou jogada no sof enquanto as crianas se divertiam em disputar a prxima fase. Somente foi recolhida dali na hora da sada por um dos adultos da casa. Betina era s mais um brinquedo e no tinha nada de especial e atraente para a menina que a esquecera no sof da casa dos avs em um dia de Natal.

Luciane Mari Deschamps

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DESEJO DE MENINO

Eu morava numa cidade do interior quando tinha apenas oito anos. Era um

lugar com poucos habitantes e onde um sabia da vida do outro (a vivida e as histrias criadas pelos olhos espichados por trs das vidraas das janelas entreabertas). Era o tipo de cidade com o extremamente necessrio: a igreja, a praa, o cemitrio, a prefeitura, a agncia bancria, os correios, trs lojas, um mercado e, claro, o campinho atrs da escola. Ah, e o grupo escolar!

As casas tinham ptios para brincar e cercas com moires e arame farpado. Algumas nem tinham cerca, eram rodeadas por rvores frutferas e flores do campo de diversas cores. Havia somente duas residncias mais ajeitadinhas, de alvenaria, com janelas grandes e pintadas em cores fortes. As demais residncias eram de madeira, simples e com a pintura j desbotada com o tempo.

Meus amigos viviam nas casas vizinhas e a maioria era filhos dos irmos da minha me e de meu pai. Tnhamos todos quase a mesma idade e passvamos horas a fio na rua, brincando de tudo que inventvamos.

A brincadeira favorita, porm, era com a bola do primo Chico que ele ganhou no dia do aniversrio. Como era chutada todos os dias, a pobre j estava toda suja e com o couro marcado. Se Chico ficava doente, no tinha jeito de ele emprestar a bola. A regra era clara: ele s levava a bola se desse as ordens durante a pelada, escolhesse quem brincava e quem ficava no banco de reservas, alm disso, seria o juiz e seu time no poderia perder (este ltimo item ele nem mencionava, mas ficava claro quando acabava com a brincadeira de todo mundo e voltava com a bola embaixo do brao; bastava estar de mau humor ou discutir com algum durante a partida para Chico deixar o pessoal sozinho no terreno baldio, sem o que fazer e aborrecido).

Ah, a bola do meu primo sempre foi meu sonho de menino! Um dia pedi para meu pai uma bola igual. No sabia quanto custava ou onde ele a compraria, afinal, nunca tinha visto nada igual no mercado do seu Juca, o nico da cidade. S sei que pedi e deixei no ar a minha vontade de ser dono de alguma coisa. Essa ideia cresceu tanto dentro de mim! noite, ao deitar, olhava para o forro do quarto somente imaginando o quanto seria divertido ter aquele brinquedo s para mim. Esse era o meu jeito de fugir do mundo egosta do Chico.

Se eu tivesse uma bola, eu a dividiria com todos os meninos da minha rua. Faramos at um campeonato. Eu, s vezes, seria o juiz, mas deixaria que outros tambm o fossem. Se houvesse briga entre os meninos, eu esperaria os nimos

http://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=desenho+menino&source=images&cd=&cad=rja&docid=kWdV4UBi62xuiM&tbnid=9P8JfNHejhijRM:&ved=0CAUQjRw&url=http://www.edupics.com/coloring-page-penalty-i26137.html&ei=YAqxUfGyLOHQ0wGRroHoAQ&bvm=bv.47534661,d.dmQ&psig=AFQjCNEKkXHjkADqtvOZIpwpWqz3PcBZDQ&ust=1370643292786899

acalmarem para dar continuidade ao jogo. Se algum implicasse comigo e me chutasse ou se meu time perdesse, seria forte, no choraria e tampouco deixaria o campo, levando a bola embaixo do brao como fazia o Chico. Se eu tivesse uma bola, seria o melhor amigo de todos.

Meu desejo foi crescendo assim como eu. J tinha aprendido a escrever, a ler e ainda continuava a desejar uma bola. Nem precisava ser igual a do Chico. Agora, poderia ser como aquela que vi no mercadinho, pendurada em um saco de plstico transparente. Sabia que era mais leve e, quando chutada, ia (se bobeasse) para a direo contrria. Mesmo assim, eu queria muito aquele brinquedo, objeto dos meus desejos.

Nunca fui o melhor aluno da sala, mas sempre fazia as tarefas que a professora mandava. Aprendia o bsico e sabia fazer conta de cabea. Tinha muitos amigos. Adorava passar minhas tardes no campinho, onde qualquer coisa que pudesse rolar virava uma bola, caso o Chico no levasse a dele.

Chegava a minha casa com o escuro da noite querendo invadir o cu. Minha me ralhava comigo, mas logo esquecia o motivo e me mandava para o banho. Este era o momento em que eu relaxava da correria e limpava os ps ralados e as canelas machucadas pelos chutes dos adversrios.

Como o tempo dos jogos nunca era definido, passvamos horas no campinho em algazarra, gritaria e, principalmente, disputando uma nica bola que parecia fugir dos ps sujos da garotada suada. Com chuva ou sol, garoa ou frio, arranjvamos motivo para uma partidinha animada, divertida, disputada com euforia e agitao.

Minha vida era dividida entre o colgio e os jogos com os amigos. E por isso meu pai reclamava o tempo todo. Dizia que eu vivia na rua, que no colaborava em casa e que as notas estavam baixas para quem s tinha que estudar. Por causa deste pensamento, ele alegava que uma bola seria minha perdio e negava-se a me dar uma de presente.

Perdido ou no, eu apenas queria o instrumento de diverso das minhas tardes com os amigos inseparveis. Meus primos eram do tipo pau para toda obra e sempre estvamos envolvidos em situaes que mostravam o nosso compromisso com uma infncia saudvel e aventureira. Mesmo assim, eles no preenchiam o vazio que a minha vontade de ter a tal bola de couro deixava.

Os dias passavam arrastados, preguiosos e cheios de atividades que s interessavam a ns, os meninos da vrzea. Embora lento, o tempo passou e levou o menino que brincava durante as tardes at a noitinha naquela cidade pequena do interior. A bola to desejada tambm ficou para trs, nos sonhos projetados no teto do quarto daquele que um dia queria ter algo para chamar de seu. Nunca soube o real motivo de eu no ganhar a bola de presente. Meu pedido ficou em algum lugar, assim como meus sonhos de ser jogador e capito do meu time de futebol.

Luciane Mari Deschamps

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QUANDO O AMOR CHEGAR

O orfanato ficava no alto da Rua dos Nascentes. Era uma casa antiga, com as

janelas grandes e voltadas para a rua. Da sacada, no segundo piso, pendiam, debruadas, flores midas e coloridas. As paredes j tinham a cor desbotada pelo tempo. O jardim, cheio de plantas, flores e ervas, ficava entre o velho porto de grades enferrujadas e a porta principal de entrada. O aspecto era meio sombrio. Aquele lugar parecia guardar solido, histrias e tristezas.

Ningum sabia ao certo como as crianas ali chegavam. Apenas era possvel ouvi-las quando se passava por perto. Algumas choravam por vrios motivos e em tons diferentes; outras conversavam e muitas falavam alto ou gritavam. Os sons das vozes midas se cruzavam e, de fora, ningum entendia o que era dito entre as paredes frias daquele casaro solitrio no alto da rua. As vozes eram o nico rudo daquele casaro.

Quem entrava no orfanato logo percebia que os mveis e os objetos eram to antigos quanto s histrias de todas as crianas que por ali passaram. Tudo era muito modesto e arrumadinho. Havia no ar um cheiro de antiguidade, cera e leo de peroba. Para um lugar onde habitavam crianas, a decorao era adulta demais, sem enfeites ou brinquedos que lembrassem sequer algum no incio da vida. A frieza estava na escurido dos mveis, nas cores desbotadas das cortinas e nos degraus da misteriosa escada que levava para o segundo andar da casa. Era notvel que havia pessoas que dedicavam horas para deixar tudo aquilo com a aparncia de um lugar srio e sem problemas.

Sabia-se que o grupo que frequentava aquelas paredes era pequeno em quantidade e idade. As crianas, desde sua chegada at a despedida (sabe-se l quando), sabiam onde poderiam ficar e o que poderiam fazer e, principalmente, no fazer. Alis, o no compunha todas as proibies; era to presente quanto s histrias daqueles pequenos.

Pietra era a menina de quase oito anos que morava no orfanato desde quando tinha fraudas. Era toda magricela, menor do que as demais crianas e vivia com falta de ar ou tossindo. Falava baixo, sem muito esforo. Passava horas no silncio que ela mesma produzia ao redor. Quase no brincava com as demais crianas. Seu corpo leve e de pele parda parecia ser to frgil quanto s midas flores pendentes na sacada. Pietra nunca era escolhida pelos raros visitantes que chegavam observando atentamente a tudo que havia naquele lugar esquecido pelo mundo.

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Um dia, foi diferente. Os olhos que chegaram naquele final de tarde logo avistaram a menininha solitria, sentada no degrau da escada. Por longos minutos, os olhos observaram Pietra. As bocas adultas conversavam assuntos estranhos, em tom de cochicho. Pouco ou nada dava para entender do que diziam. A mo de algum se aproximou silenciosamente, acariciando os cabelos em tranas da menina parda e mirrada.

Uma voz feminina e macia perguntou Pietra sobre o que ela estaria fazendo ali, junto escada e to longe das outras crianas. O silncio envergonhado encolheu os ombros e a cabea abaixou-se para esconder a lgrima grossa dos olhinhos da cor da jabuticaba. Pietra sabia que aquela visita no lhe dizia respeito. Era apenas algum que passaria como todos os outros.

A voz insistiu. Disse outras coisas e fez os negros olhos da menina olhar para cima. Dois olhares se encontraram e um nico sentimento forte, de repente, chegou sem avisar, fazendo moradia naqueles dois coraes solitrios. Dali, as histrias daquelas duas pessoas se cruzaram de tal maneira que ningum mais percebeu a ausncia de Pietra nos dias longos por trs do porto de grade enferrujada do orfanato da Rua dos Nascentes.

Luciane Mari Deschamps

Luciane Mari Deschamps E por falar em infncia... Contos Crnicas e poemas

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ELISA

A primavera, enfim, chegara, trazendo consigo as flores, o canto dos pssaros e a vida que estava recolhida, encolhida, adormecida, cada, congelada, morta em qualquer lugar. A fora desta estao movimenta desde os menores insetos aos grandes animais. Todos fazem do retorno uma festa, com direito a muito rudo, chiado, barulho, estardalhao. O aparente silncio frio do inverno tomado pelos sons de tudo que vive, cresce e morre.

O ciclo da vida recomea. A temperatura amena e agradvel deixa espao para aves e borboletas pintarem o cu com pontos multicoloridos. As guas retomam lenta e suavemente seu curso. O coaxar de sapos, grilos, cigarras e as luzes dos pirilampos fazem parte da imagem desenhada nos dias, dando som e cor quele lugar cheio de energias renovadas.

Enfim, o momento mgico chegara! Era como se a vida nunca tivesse morrido! Naquele lindo jardim, tudo aprecia florir e sorrir. Era realmente a magia do lugar que tornava tudo ali diferente. Fadas? Duendes? Seres mitolgicos que, com pozinhos mgicos, faziam a natureza mudar e parecer mais bela? Ser que aquele lugar era a moradia da vida primaveril?

Ningum sabia ao certo se naquele jardim habitavam tais seres, mas a magia das cores e da vida eram muito presentes. Elisa vivia bem prximo dali. Era uma menina delicada que percebia o que outros nem viam. Ela era extremamente sensvel e, durante a primavera, tornava-se ainda mais.

A menina Elisa, quando visitava o jardim, se deitava sobre a grama verde e ficava admirando o formato de cada nuvem no cu. Conseguia ver um ser, um bicho diferente, ora um coelho, ora uma ovelha e ora a silueta de um camelo. A imaginao corria solta, levada pelos sonhos daquela menina to sensvel. Seus ouvidos percebiam alm do canto dos pssaros e do zumbido de mosquitos e abelhas. Ela conseguia ouvir at mesmo vozes que lhe diziam sobre acontecimentos passados e por vir. Era por esse motivo que muitos viam Elisa falando sozinha. Contava aos outros tudo o que escutava dos amigos ditos imaginrios e todos que a ouviam tinham receio deste comportamento estranho. Elisa falava com tom de verdade e convicta da existncia de cada ser que ouvia. Alguns tinham nomes prprios e eram mais constantes. Outros surgiam s vezes, em momentos diferentes. Todos, porm, eram os nicos amigos constantes de Elisa.

Quando voltava dos seus passeios, Elisa se dispunha a narrar aos outros as conversas que ouvia. Algumas eram at intrigantes, pois pareciam mensagens

codificadas e direcionadas para um algum conhecido. Outras eram como se os fatos ocorridos h muito tempo e que nem diziam respeito vida daquela garotinha. Tudo era misterioso e o que sobrava era a desconfiana em algum sensivelmente diferente dos demais.

Elisa era sozinha. As crianas da mesma idade a temiam devido aos comentrios dos mais velhos que diziam que a menina no batia muito bem da cabea. O preconceito afastava todos do encanto real que Elisa possua.

Um dia a menina adoeceu. Muitos foram os dias febris em cima de uma cama. Muitos foram os momentos de dor e angstia para aqueles pais. Qualquer pessoa teria se entregue, mas no a pequena Elisa que parecia saber por que estava passando por todo aquele sofrimento. Mesmo com uma voz fraca, conseguia dizer o quanto era feliz por ter algumas pessoas a sua volta, alis, bem poucas. No parecia sofrer com a falta de amigos, pois alegava ter o que outros no viam. a febre. Est delirando. diziam.

Elisa tinha seus encantos e sempre fora meiga ao falar com e das pessoas. Eram suas histrias sobre gente que no estava mais neste mundo que a faziam diferente das demais. Quem acreditaria em suas histrias de menina? Tudo aquilo poderia ser coisa de criana imaginativa e sozinha demais.

No final da primavera, a doena de Elisa foi embora, levando-a junto. A menina era uma das flores daquele lindo jardim que, por algum motivo, deixou de ter os encantos que possua.

Luciane Mari Deschamps

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CRIANAS

Quem conheceu as crianas daquela estrada de cho, a uns dez quilmetros do

centro de uma cidade do interior, talvez se lembre de um casalzinho de irmos que parecia fazer histria desde ento.

Pedro e Aninha viviam com os amigos, brincando na rua at o horrio em que o sol insistia em ir embora por trs das montanhas, deixando as estrelas e a lua em seu majestoso lugar.

O grupo parecia o mais feliz de todos que j passou por ali. Eram crianas saudveis, criativas, dinmicas, que conseguiam fazer de uma pedrinha no cho um objeto de muita serventia para seus jogos e brincadeiras.

Pedro e Aninha lideravam as peripcias daquele grupo por serem um ou dois anos mais velhos que os demais. Por este motivo, tambm eram os que recebiam as broncas dos mais velhos quando a brincadeira crescia a tal ponto que colocava em risco a segurana dos menores. Quando isso acontecia, ficavam um ou dois dias recolhidos em casa.

Como eram muito ativos, chegava um momento do castigo que ficava insuportvel t-los trancados dentro de uma casa pequena, to cheia de afazeres. Dali a pouco a me gritava:

Andem! No aguento mais esta baguna! Vo pra rua! J! Era exatamente a frase de que precisavam para sair porta afora, sedentos de

espao e amigos. Na correria para a liberdade, na estradinha, o pessoal todo se encontrava em questo de minutos. Pedro e Aninha passavam na casa de cada vizinho, chamando pelos parceiros de traquinagens e aventuras.

As brincadeiras ora envolviam todos do grupinho, desde os menores at os ces e os gatos da crianada. Ora s envolviam os maiores que j sabiam se virar ou entender as regras do jogo. O importante era estarem juntos para a partida de futebol, os jogos de amarelinha, pega-pega, esconde-esconde, corda e outras brincadeiras sem nome que eles mesmos inventavam no decorrer do dia.

Pouco se importavam se a roupa estava suja ou rasgada. A alegria de viver cada momento junto era o que interessava. At o cheiro da poeira molhada pelos primeiros pingos de chuva eram curtidos antes de todos se despedirem para se recolher e se proteger do temporal.

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Ningum deve ter vivido momentos to sublimes quanto estes que fizeram aquelas crianas crescerem e se tornarem homens e mulheres felizes e com histrias para contar a seus filhos e netos.

Pedro e Aninha, de todos, so os que mais sabem contar o que fizeram naquele espao cercado de rvores, pedras, mato e um riacho, entre a casa e a estradinha de terra. Somente eles sabiam que aquele era um momento da vida especial chamado infncia.

Luciane Mari Deschamps

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OLHOS CASTANHOS

Foi em maio quando aqueles lindos e grandes olhos vieram para ver o mundo. Eram sempre muito atentos e alegres. Janaina era a dona daqueles olhos amendoados e da cor da castanha. Observadora, logo comeou a falar sobre tudo o que vivenciava. Na escola, entre os demais de sua idade, era a mais ativa, envolvida e tagarela. Sabia cantar, danar e conversar com as pessoas como gente grande. Por este motivo, estava sempre cercada de amigos. Quando Janaina chegava, a alegria a acompanhava. O amor que a gente sentia por ela chegava a doer no peito, querendo fugir para todos os lados. Chegava com sua roupinha de passeio, trazendo nos braos a boneca Guigui (que ria ao abrir e fechar os bracinhos) ou seus ursinhos Peposo e Peposa. Estes eram seus brinquedos favoritos entre os muitos que lotavam seu quarto de menina. Logo ao chegar, dividia suas coisas com todos ao mostr-las, orgulhosa e feliz. Como era gostoso v-la manuseando seus brinquedos com cuidado, parecendo uma mezinha dedicada! Janaina aparentava ser forte e dona de uma personalidade nica. Era objetiva e verdadeira. s vezes, at demais! Deixava claro quando gostava ou no de algo ou de algum. Era preciso conquist-la aos poucos antes para que se entregasse totalmente. Desconfiava de tudo e fingia no ter medo. Era parceira indispensvel para brincar e demonstrava liderar o grupo de crianas ao qual pertencia. Sabia dividir e ser paciente. Carinhosa e extremamente envolvente. S tinha um problema: tudo devia ser do jeito dela e ai de quem no concordasse! Nem sempre se saa bem na arte de convencer e partia para um choro cheio de lgrimas grossas que rolavam pela face ruborizada e que causavam piedade no outro que logo cedia aos apelos da menina de olhos castanhos e amendoados. Um dia os pais de Janaina discutiram. As vozes em tom alto e ofensivo deram fim a um casamento de cinco anos. Janaina era a nica filha do casal. Ela ficara entre os dois maiores amores de sua vida: o pai e a me. No teve como escolher. Apenas, no seu coraozinho, queria que tudo voltasse a ser como antes. Aos poucos, aprendeu a gostar das visitas constantes do pai e dos passeios que fazia ao shopping com a me nas tardes de sbado. A situao ficou difcil para me e filha. Janaina precisava de algum que estivesse por perto enquanto a me trabalhava para sustent-la. Tambm precisa morar perto de uma escola. A casa da av que sempre visitava e onde passava as frias passou a ser seu novo lar. Muitas vezes, a casa ficava cheia de primos para alegrar suas brincadeiras. Tudo isso fez com que se acostumasse nova vida e se torna-se uma pessoa especial. Janaina cresceu. Manteve muitas de suas caractersticas de quando menina e adquiriu outras ao se tornar mulher. Hoje, vive no seu prprio lar, junto com uma pessoa que escolheu para ser o parceiro de uma prxima etapa de sua vida. Os seus olhos continuam atentos e observadores. Com certeza, muito ainda tem para aprender e conquistar.

Luciane Mari Deschamps (Em homenagem sobrinha da autora, Janaina Lcia Alves)

E A, VAI ENCARAR?

Na turma da Dona Otlia, a maioria dos alunos era muito estudiosa e se

destacava pelo interesse e pela curiosidade. A professora sentia prazer e muita alegria com os resultados apresentados por cada um, at mesmo os que, de certa forma, tinham dificuldades para aprender.

A escola ficava numa cidade do interior e bem longe do centro urbano. As crianas que a frequentavam eram filhos de agricultores e dividiam o tempo entre os afazeres na roa, junto com os pais, e as atividades escolares. Quase todos davam conta do recado, pois a professora procurava fazer tudo durante as quatro horas em que estavam na sala de aula. Ela sabia que seus alunos voltavam muito cansados da lida com a terra e que no teriam disposio para fazer horas de deveres. Portanto, sempre que pedia alguma coisa para ser feita em casa, era possvel fazer em mais uma hora de estudo, entre s seis e sete da noite, como ensinara para seus alunos. Ela dizia que, se todos fizessem as tarefas, no mesmo horrio, era como se estivessem juntos, em sintonia. Estabeleceu um pacto que parecia funcionar muito bem.

Todas as atividades tinham a ver com o ato de aprender alguma coisa. At as brincadeiras mais simples viravam motivo de aprendizagem. A professora Otlia era uma mulher de meia idade, sria e inventava teatros, jogos, exerccios, brincadeiras que tinham a ver com os contedos que aqueles pequenos precisavam entender para lidar com a vida de um jeito mais fcil. Todos a respeitavam e sabiam o quanto era capacitada para fazer um bom trabalho. Nunca deixou de ser exigente e, ao mesmo tempo, amiga e solidria.

O destaque era para as atividades que faziam aqueles alunos entenderem melhor a terra onde plantavam e a regio onde viviam. E nisso eles eram mestres! Todos tinham sempre algo para dizer ou comparar. Alguns contavam causos e outros falavam de suas experincias. Tudo era motivo para compreender melhor os fatos da vida. Desde as histrias do folclore da regio at a importncia da reciclagem do lixo em casa e da gua na vida de cada ser.

Certo dia, a escolinha de dona Otlia foi desafiada a participar de uma gincana cultural com as demais escolas do centro da cidade. A princpio, os alunos achavam que no tinham condies de disputar com os da cidade. Pensavam que no sabiam o suficiente para ganhar se quer a medalha de participantes.

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Dona Otlia conhecia cada aluno com quem dividia seu tempo. Sabia que aquele Quinto Ano do Ensino Fundamental era diferente. Confiava na capacidade de cada um. E por isso iniciou um trabalho intenso com a garotada.

Todos os dias, alm dos contedos normais de aula, fazia um momento de retomada e reviso do que eles j tinham visto durante o ano. Queria garantir que seus alunos saberiam as respostas quando algum lhes perguntasse algo. E foi assim durante os dois ltimos meses antes do grande dia.

A professora confiava no trabalho que fizera e na capacidade de cada criana que frequentara suas aulas. Todos fariam a avaliao com a certeza de que se sairiam bem. E assim aconteceu. Ningum deixou de festejar o resultado da turma de dona Otlia. Agora, com a autoestima elevada, quem iria encarar a melhor turma da regio?

E voc a, vai encarar?

Luciane Mari Deschamps

E QUANDO O FUTURO CHEGAR?

A fazenda do vov era um refgio para ns que vivamos em um apartamento de dois quartos e uma sacada para ver o movimento das ruas do centro agitado da cidade.

Quando entrvamos em frias, ficvamos agitados e espervamos ansiosos pelo dia da viagem at onde meus avs moravam e guardavam as histrias da infncia do meu pai.

Os parentes da minha me tambm moravam naquela regio, por isso, na nossa chegada, ramos muito bem recebidos. Eles diziam que ramos o povo da cidade grande. Minhas tias, preocupadas em agradar o tempo todo, faziam muitas guloseimas para as crianas que, naquela poca, enchiam a casa da fazenda com correrias, brincadeiras e gritos e muita fome. Vov nem se importava, pois dizia que aquilo era energia guardada que precisava ser gasta pelos vastos pastos daquele lindo lugar.

Meus primos e eu no contvamos tempo para transformar nossos dias de frias em infinitas brincadeiras. Sentamos que o tempo colaborava com a gente ao demorar em passar. O mais gostoso era lidar com a terra e com os bichos na fazenda do vov. Era renovador tomar banho de rio e sentir o cheiro da gua doce e transparente que lenta contornava as visguentas pedras escuras. Mesmo parados, sem nada para fazer, tudo era motivo para inventarmos histrias e joguinhos com regras que surgiam enquanto brincvamos. s vezes, isso at acabava em discusso ou em outra brincadeira dentro de casa. Era um perodo que no sentamos a mnima vontade de assistir televiso ou de fazer qualquer coisa que costumvamos fazer quando estvamos em nossas casas. Amvamos a novidade que parecia existir em tudo o que estava naquele lugar.

Meus primos, os meninos da vizinhana e eu nos reunamos todos os dias para curtir cada metro quadrado daquele cho cheio de natureza. As brincadeiras variavam entre as conhecidas e as que se apresentavam medida que o dia avanava. Como era bom estar na casa do vov!

Havia um ba cheio de objetos, fotografias, cadernetas, papis, roupinhas de bebs e brinquedos que vov dizia ser um pedao de sua histria. E era bem verdade! Todos os dias, aps a janta, ficvamos estirados no tapete da sala enquanto ouvamos as diversas histrias contadas pela voz grossa e pausada do vov. A vov somente confirmava os fatos, balanando a cabea para l e para c e sorrindo.

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Incrvel como que pequenos objetos podem ter tanto para dizer s outras geraes! Aqueles foram momentos inesquecveis e que atribuam significado a minha infncia tambm. Eu no sabia, mas tudo o que vivia naquele instante eram pedacinhos da minha histria que se juntavam para formar minha vida de menino da cidade. Eu realmente no sabia que aqueles seriam os melhores momentos que um dia poderia narrar para meus netos e bisnetos.

Meus avs foram pessoas importantes na minha vida, pois eram pacientes, companheiros e cheios de histrias para que, hoje, eu tivesse o que dizer. Onde viviam, iluminavam a vida dos filhos e netos. Eram sbios e experientes. Valeu cada minuto no passado, ao lado deles e dos meus primos. As minhas frias, na casa de stio dos meus avs, fizeram-me crescer como pessoa, pois me tornaram algum feliz.

Quando o futuro chegar, trarei em mim a alegria de ter plantado vida no meu corao, porque acredito que as corridas pelos pastos, as brincadeiras na rua e na gua do rio foram momentos inesquecveis e valiosos que hoje posso chamar de FELICIDADE.

Luciane Mari Deschamps

http://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=desenho+crianas&source=images&cd=&cad=rja&docid=vspuVtTPZbxg7M&tbnid=DGE1zubrfeyjqM:&ved=0CAUQjRw&url=http://atividadeseducativas.blog.br/2011/08/criancas-ma-primavera-para-colorir.html&ei=LQuxUey9FPKq4APQ84DoBQ&bvm=bv.47534661,d.dmQ&psig=AFQjCNGhMM_PgQY3GYXVuw9p8kzb8wnBSA&ust=1370643565739665

TARECO, O GATO

Tareco fora encontrado ainda muito pequeno no caminho que Dita fazia todos

os dias para levar a marmita do pai que trabalhava em uma obra, logo depois do rancho de canoa de uns pescadores. Miava fininho e estridente, parecendo chamar a futura dona pelo corao. E foi exatamente isso que aconteceu. Aquele miado pedindo ajuda mexeu com os nobres sentimentos da menina de cabelos negros, cacheados e de olhos verdes.

Dita foi atrs do som que tirou sua ateno e encontrou o dono dele entre o mato e a cerca de madeira. Era um gato malhado de preto e branco, sem raa definida, magrinho e com olhos de quem precisava de carinho, gua e muita comida. No deu outra! Dita pegou o bichano nas mos, acariciou o pelo sujo e falou com ele com a voz meiga de criana:

O que foi, meu gatinho? T perdido por aqui? Cad seu dono? Quer ajuda? Pegou o gato, ainda olhando para os lados para ver se via algum que poderia

ser o dono. No viu ningum. O gato agora miava mais alto devido o cheiro de comida que saa da marmita embrulhada em um pano de loua alvo.

Dita sabia que seu pai no queria mais bichos em casa, mas o corao ficou apertado ao ter que deixar o gato naquele lugar, sem comida e gua. Abriu a marmita, retirou dela uma das sardinhas fritas e a colocou no cho. Amarrou novamente o pano que segurava a tampa e o calor da comida enquanto o bicho comia vorazmente, demonstrando uma fome de todos os tempos. Dita levantou-se e saiu correndo, atrasada para levar o almoo do pai carpinteiro que esperava por ela.

Durante a volta para casa, Dita veio cuidando para encontrar novamente o gatinho perdido. Ao se aproximar da cerca em que o vira pela primeira vez, percebeu o gato ainda ali. O bichano logo a reconheceu e comeou a miar. Dita apurou o passo para no ser seguida. Isso de nada adiantou. O gato vinha atrs dela como quem sabia que seria adotado. Vez ou outra, Dita olhava para trs para ver se o gato a seguia realmente e fingia que aquilo no era com ela. No queria assumir a culpa de ter trazido o gato para casa.

Quando chegou casa, disfarou para que a madrasta no visse que o gatinho estava no quintal. E por alguns dias foi assim. Escondia alguns restos de comida e dava ao bichano quando o pessoal da casa no estava por perto. Por alguns dias esta foi a rotina da menina at que a madrasta a viu, alimentando o gato.

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Diiiita! Que t fazendo com esse gato a?

Nada, me. Ele s apareceu aqui. T dando comidinha.

Teu pai no quer bicho aqui em casa! Vem pra dentro, j. Deixa esse bicho a.

Dita sempre obedecia para no ter que levar uma surra do pai que no tolerava criana travessa e desobediente. Naqueles tempos, achavam que esse era o jeito certo de educar.

Os dias foram passando e o gato j tinha at um nome: Tareco. No comeo somente circulava pelo quintal e dormia debaixo da escada da cozinha. Era quase invisvel aos olhos dos adultos e s recebia os carinhos de quem o adotara, a menina Dita.

Tareco foi crescendo e nunca se atreveu a pegar um peixe sequer sem a permisso de sua dona. Ficava por perto, vendo-a limpar a pesca do dia, sem se aproximar. Ganhava os restos de peixe para se fartar. Era um gato de rua, mas tinha l sua majestade. Os laos de amizade entre Dita e Tareco foram se fortalecendo medida que o tempo passava. Um entendia o outro. Dita dizia:

Cuida dos peixes, Tareco, que eu j volto. E o gato ficava por perto, sem se atrever a pular na mesa para pegar qualquer

coisa para si. Esperava Dita voltar para a cozinha e miava, pedindo a recompensa pelo servio prestado. E ele recebia seu quinho antes de ir para seu cantinho preferido.

Um dia apareceu outro gato na casa, tambm trazido da rua pelos sentimentos de piedade da menina Dita. Recebera o nome de Jon. Como Tareco e o mais novo morador tinham a mesma histria, eles pareciam ser amigos de muito tempo. Ficavam sempre juntos e perto da menina Dita enquanto ela fazia os servios da casa.

Um dia, o caminho da luz passou pela rua e atropelou o gato Jon. Foi muito triste aquele momento, tanto para Dita quanto para Tareco.

Alguns dias aps a morte de Jon, Tareco desapareceu. Ningum mais sabia do paradeiro do bichano que, provavelmente, saiu atrs do velho companheiro ou morrera de tristeza.

Estes foram os bichinhos de estimao de Dita que hoje, aos oitenta e dois anos, ainda se lembra da presena dos parceiros enquanto trabalhava na cozinha, em torno do fogo lenha e em volta da pia, entre os peixes e o quintal.

Luciane Mari Deschamps

(Histria baseada nos relatos de infncia de Edite Maria Alves, me da autora.)

TEMPO DE NATAL

Quando as festas de final de ano se aproximavam, minha famlia comeava uma rotina que, mesmo dando o maior trabalho, valia a pena. Era um perodo que ansivamos, pois sabamos que seria diferente.

Minha me comeava os preparativos em novembro, com a faxina da casa. Tudo precisava ser arrumado, lustrado, encerado, ajeitado e lavado. Tudo deveria parecer novo ou renovado depois de limpo.

s vsperas do Natal, a rigorosa faxina estava quase pronta. J tnhamos lavado as paredes por fora e por dentro, pois no podamos pintar a casa. Todos colaboravam com o servio. Tudo parecia funcionar to bem! Naquela poca, chegava a pensar que o tempo no passava e que nada estava mudando. Com minhas pequenas mos, ajudava com a mesma empolgao dos mais velhos. Era um momento de trabalho, mas tambm de distrao e alegria.

As festas natalinas e da Pscoa sempre foram momentos muito especiais, de agitao para ns crianas e bastante trabalho para os adultos, pois, alm da limpeza da casa, tinham-se outros preparativos: o das carnes que seriam assadas; dos amendoins que seriam feitos no acar e colocados em cartuchos de papel; das sobremesas (da famosa torta de bolacha!), da canjica da sexta-feira da Paixo e de toda a comilana para aquele povaru. O cheiro do pepino cru me lembra at hoje a salada servida naqueles dias festivos. O gosto do guaran Max Willians e da laranjinha me remetem alegria em torno da mesa farta e barulhenta.

Montar a decorao de Natal foi sempre um captulo parte da minha histria de guria. Minha me guardava, em caixas, as bolinhas de vidro coloridas que enfeitariam a rvore de Natal escolhida e posta dentro de uma grande lata de tinta, forrada com papel laminado. Tudo recebia enfeites com papis dourados, festes, algodes, luzinhas coloridas do pisca-pisca e muitas bolas de cores e formatos diferentes. Eu no sei o que acontecia, mas, em minhas pequenas mos, as bolinhas de natal sempre se quebravam! Nestes dias, ouvamos e cantvamos msicas natalinas que tocavam em discos de vinil.

A rvore aos poucos surgia no canto da sala de tev. Todos os anos eram montadas de um jeito e em um lugar diferente na sala. Lembro-me de uma que foi feita com um galho seco, pintado de branco. O colorido das bolinhas de vidro e os

http://www.google.com.br/imgres?num=10&hl=pt-BR&tbo=d&biw=1024&bih=438&tbm=isch&tbnid=J8_h0zYA0hAjDM:&imgrefurl=http://baudaweb.blogspot.com/2010/11/10-arvores-de-natal-para-imprimir-e.html&docid=6QKuMi4VAztrHM&imgurl=http://3.bp.blogspot.com/_otgpQpxR_Fc/TOhlNeTBFkI/AAAAAAAABZI/TYLGFD9L8nA/s1600/arvore-de-natal-com-presepio.jpg&w=494&h=700&ei=1LfYUIDzF4j68QSuroHYDw&zoom=1&iact=hc&vpx=579&vpy=36&dur=2761&hovh=267&hovw=189&tx=123&ty=177&sig=116829373856545307322&page=2&tbnh=146&tbnw=103&start=15&ndsp=22&ved=1t:429,r:20,s:0,i:207

Luciane Mari Deschamps E por falar em infncia... Contos Crnicas e poemas

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festes verdes e dourados davam o brilho e a alegria para aquela linda rvore que levvamos horas para deixar pronta.

Havia anos em que o prespio era feito por ns, com rolinhos de papel, fazendo s vezes de Famlia Sagrada. Deixvamos tudo pronto para a semana da novena natalina, quando os vizinhos vinham a nossa casa para rezar. Cada dia, a novena era em uma casa diferente. Na mesma hora, as famlias chegavam juntas para se reunir, rezar e cantar. Sempre terminvamos o encontro com a msica Noite Feliz. Apesar de a melodia ser triste, a cantoria colocava meu corao a palpitar. Eu ansiava por algo especial.

Nunca pedi presente de Natal, mas sempre esperava ganhar qualquer coisa. Um dia, ganhei um joguinho de ch, com xcaras, colherezinhas e tudo! Foi o melhor Natal da minha infncia! Por muito tempo, este brinquedo fez parte das minhas brincadeiras de menina.

A espera pela festa era muito boa. Parecia que aqueles dias passavam cumpridos e cheios de alegria. A famlia se reunia em torno da mesa. Todos falavam ao mesmo tempo. Os meus irmos mais velhos ainda eram adolescentes na poca. Minha me era cheia de energia e passava horas fazendo a ceia natalina, enchendo a casa de um cheiro gostoso de carne assada e de diversas sobremesas.

Queria que muitos tivessem, em suas lembranas, estes preparativos para o Natal. Sinto falta da alegria e do sabor destes dias que somente a infncia capaz de proporcionar.

Feliz Natal a quem quer alegria e luz em seu viver!

Luciane Mari Deschamps

UMA HISTRIA DE AMOR

Eu e meus irmos nascemos numa cidade do interior. Um lugar bom para se

viver quando se criana, pois tnhamos espao e liberdade para correr, brincar e para ser feliz. Meus pais trabalhavam muito para trazer nosso sustento, mesmo assim, achvamos que tudo estava s mil maravilhas e que no precisvamos de mais nada.

Meu pai chegava da roa, cansado da lida. Muitas vezes o via na varanda da casa, com o olhar parado, voltado para o cair da tarde, segurando a cuia do chimarro. A expresso de seu rosto era de quem passou a vida sofrendo ou esquecendo-se de si para doar-se a ns que ainda ramos crianas e dependamos de cuidados e carinhos. Ele era um homem alto, forte, responsvel, honesto e de poucas palavras. Nunca deixou de nos afagar quando chegava da rua e muito menos de se preocupar com as nossas atividades do dia. Perguntava de um por um o que havamos feito. Difcil era compreender as respostas que vinham numa enxurrada de palavras infantis e fantasiosas. Ele sempre ria de algo ou de algum, dando importncia a um fato corriqueiro.

Descobri, mais tarde, que, naquela poca, meu pai s tinha quarenta anos e que os cabelos brancos e as rugas haviam se antecipado devido ao sol e s preocupaes para sustentar os cinco filhos. Era um homem trabalhador. Nunca o vi sem fazer nada. Estava sempre lidando com as plantaes, ora plantando, ora colhendo, ora vendendo o que produzia. Tinha medo de temporais e rezava para chover quando a seca ameaava a prxima colheita.

Os meninos o ajudavam no servio da roa. Eu e minha me ramos responsveis pelos afazeres da casa. Nada impedia, porm, que as funes fossem trocadas. Diversas vezes ajudei na colheita ou no preparo dos produtos que seriam levados para vender na feira. Muitas vezes meus irmos ajudaram a limpar a casa e a fazer os doces e as compotas. Nossa rotina era em torno dos frutos que vinham da terra.

Minha me casou-se cedo e logo teve seus filhos que vinham um a cada ano. J havia perdido a vaidade de moa ainda aos vinte e cinco anos. Na maioria das vezes, prendia os cabelos com um leno para passar horas na boca do fogo lenha para

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fazer suas receitas que seriam vendidas na feira da cidade, todos os sbados. Era uma excelente cozinheira e boleira de mo cheia. Conhecia como ningum as frutas e os legumes que podiam virar doces e compotas. Enchia a casa de um cheiro gostoso de bolo e frutas. Caprichava na hora de fazer as embalagens dos vidros e etiquetava seus produtos com uma letra desenhada mo. Mame tinha dons artsticos e culinrios que causariam inveja a qualquer um. Tudo o que tocava ficava muito bonito e bem acabado. Vinham senhoras de longe para fazer encomendas com ela e isso a enchia de orgulho. Estas atividades, muitas vezes, socorreram as despesas da famlia, principalmente quando uma chuvarada ou uma geada rigorosa ou uma estiagem comprometiam as colheitas na roa.

Lembro que a vida de meus pais sempre foi em torno da terra e dos frutos que ela nos proporcionava. Eu e meus irmos dividamos nosso tempo entre a escola e o servio de casa. E cada um tinha suas tarefas para cumprir conforme a idade. Quanto mais velhos amos ficando, mais coisas ns tnhamos que assumir.

O tempo que trazia a nossa juventude era o mesmo que deixava nossos pais mais casados e idosos. Um dia, meu pai adoeceu e no conseguia mais trabalhar. Fazia um ou outro servio, mas comeou a deixar as tarefas para meus irmos e dois rapazes que pagava quando o servio apurava. Era difcil v-lo sentado na varanda, sem foras para o trabalho. A doena afetou seus movimentos e suas mos tremiam sempre. Aos setenta e dois anos papai partiu. Foi um dia sem sol e de uma tristeza sem fim.

Minha me, por algum tempo, manteve-se firme nos servios que fazia. Em um ritmo bem mais lento, claro. Os meus irmos se casaram e eu fiquei com minha me at meus vinte e sete anos.

Todos ns sempre a visitvamos. Enchamos a casa do barulho dos netos que foram chegando. Mame envelheceu a tal ponto que j no conseguia trabalhar. Os bolos, os doces e as compotas que fazia eram, agora, degustados apenas pelos filhos e netos nos almoos de domingo. Mame partiu aos oitenta e trs anos. Neste dia, chamou seus filhos e se despediu, dizendo que iria encontrar papai.

Descobri, somente agora, que esta foi a mais linda histria de amor, dedicao, trabalho e companheirismo que j presenciei. Sinto-me realizada por ter feito parte destes momentos em que nem imaginava o quanto era feliz. No entanto, s nos damos conta disso quando a vida tambm passa por ns e vai nos deixando aos poucos.

Luciane Mari Deschamps

TOBI

Tobi era meu cozinho de estimao e o encontrei na rua, perdido ou abandonado, j com alguns meses de vida. Foi uma amizade que surgiu sem muita cerimnia. Apenas nos vimos e ele me seguiu at em casa, abanando o rabinho e balanando o corpo num gingado malandro e descontrado. Parecia ter sido sempre meu aquele co vira-latas.

O pelo de Tobi era de um marrom da cor da sujeira da rua. No tinha raa definida. Na verdade, era uma mistura de todas as raas. Tinha as pernas e o rabo curtos que lhe davam um jeito de andar diferente e, ao mesmo tempo, simptico. Tinha os olhos grandes e da cor do caramelo. A expresso era de um co que j tinha passado por diversas situaes, mas que lutara e sobrevivera s ruas da cidade. Agora estava ali, no ptio da minha casa, como se sempre vivesse naquele lugar.

Nos primeiros dias, para garantir a vaga em minha casa, se comportou como um lorde. Nunca ultrapassava os degraus da escada e esperava ansioso pelos ossos que lhe eram oferecidos aps as refeies. Atendia ao chamado, levantando as orelhas, abanando o rabo e dando latidos felizes. Esbanjava simpatia o danado!

medida que os dias foram passando, at o carteiro se acostumou com o latido forte de Tobi no quintal, fazendo-se de dono do territrio. Defendia a casa com ares de quem dava as ordens por ali. Tinha j se acostumado comigo e minha esposa e nos reconhecia quando apontvamos na esquina. Quando chegavam os estranhos, armava-se de co de guarda e at parecia feroz. Era, na verdade, um fracotinho metido a valento. Tobi era aquele tipo de amigo que vai conquistando o corao da gente com o passar do tempo e, de uma hora para outra, parece fazer parte da sua vida desde sempre.

Depois de um ano, Tobi j era da famlia. Corria solto pelo quintal, tinha uma casinha s para ele, um pote com gua e outro com rao. Passava os dias escolhendo os melhores lugares para descansar ou enterrar os ossos. Geralmente, ficava perto do porto, de onde podia observar o movimento da rua que um dia foi sua morada.

Em uma tarde agitada de dezembro, quando havia a correria de Natal, Tobi passou pelo porto que estava entreaberto, latindo como um louco atrs do caminho do lixo. Os homens da empresa corriam para pegar os sacos de lixo nas caladas a fim de jog-los para dentro do coletor. Ningum viu quando Tobi se atravessou na frente dos pneus. Ouviu-se apenas o som estridente da freada e um ganido alto de dor. Ningum parou para socorrer o meu co que conseguiu voltar para casa sozinha, arrastando uma das patas traseira.

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Quando o encontramos, estava quase morto. Os olhos pediam ajuda e o corpo j nem se mexia. Levamos, s pressas, Tobi a uma clnica veterinria e, na sala de espera, os minutos tornaram-se horas at que o mdico veterinrio nos deu a notcia que tanto queramos:

O cachorrinho de vocs muito forte! Ficar bem, mas os movimentos ficaro prejudicados. Talvez vocs tenham que colocar um aparelho para que ele possa andar. Vamos aguardar por alguns meses at que melhore de vez.

Foi uma festa a volta de Tobi para casa. Minha esposa e eu cuidamos para que ele ficasse bem e se recuperasse o mais rpido possvel. Somente o tempo faria com que nosso cozinho voltasse a andar e a ser o mesmo de antes. s vezes, considervamos um milagre ele ter escapado com vida do atropelamento.

Dois meses se passaram e os movimentos de Tobi ainda eram poucos. Resolvemos ajud-lo e adaptamos um aparelho com rodas na parte traseira para que ele voltasse a andar sozinho e para que tivesse mais independncia. E foi o que aconteceu. Tobi, aos poucos, voltou a ter sua vida normal. Andava pelo ptio com a ajuda das rodas. Voltou a latir para os transeuntes e morria de medo quando ouvia o motor de caminhes, principalmente o da empresa da coleta de lixo.

Se antes Tobi tinha um caminhar com um gingado diferente, agora era ainda mais. Passou a ser conhecido por todos os moradores da rua como o co que tinha rodas e isso tirava dele a fama de mal. Foram anos usando o aparelho at tornar-se um co idoso e cheio de bardas. Na verdade, foi meu co de estimao antes da chegada dos meus filhos. Agora, pertence a todos, como se nada de ruim tivesse acontecido a ele. Tobi era fiel, amigo, companheiro e brincalho. Com rodinhas e tudo, era o cachorrinho mais feliz do mundo e tudo graas ao seu jeito simptico de olhar e conquistar as pessoas. Que bom que ele me encontrou naquele dia!

Luciane Mari Deschamps

UM AMIGO PARA SEMPRE

Quando criana, eu tinha dois grandes amigos: Rafael e Joo. ramos vizinhos e a rua era o espao para nossas brincadeiras. Um era ruivo, com os cabelos espetados e o rosto cheio de sardas e detestava ser chamado de cabea de fogo. O outro era negro, de lbios grossos e cabea raspada. Ns trs tnhamos somente nove anos naquela poca e a sensao de uma eternidade pela frente.

Rafael tinha o esprito de lder. Sempre chegava com ideias bacanas para nossas brincadeiras e falava com entusiasmo sobre o que e como brincaramos. Eu e o Joo sempre topvamos, pois, antes mesmo da brincadeira comear, tudo parecia que ia ser o mximo ao estarmos fazendo o que Rafael descreveu.

Joo era um menino tmido e extremamente companheiro. Sabia partilhar, compreender e valorizar tudo o que fazamos. Apaziguava os nimos do grupo quando no entrvamos em acordo. Mostrava sempre um lado diferente que realmente nos convencia a parar de brigar e partir para outra.

Eu era a menina que no aceitava nenhuma gracinha. s vezes, se provocada, perdia a pacincia e engrossava. Geralmente, isto s acontecia com as outras crianas com quem brincvamos na rua. Os outros meninos no eram como o Rafael e o Joo, pois faziam piadas e eram violentos entre si. Viviam brincando de se machucar, chutar, lutar e isso era bastante irritante. Eu gostava mesmo era dos meus dois amigos e os demais eram apenas os outros meninos.

Brincar era divertido. Inventar os brinquedos e as brincadeiras era muito mais! Pode falar quem quiser, mas isso era o que dava sabor aos nossos dias. s vezes, passvamos a tarde inteira juntos, chegvamos cansados em casa. Exaustos de tanto correr, pular, saltar e jogar. Havia dias em que parecamos uns bichinhos, de to sujos. Como eram bons aqueles dias!

Um dia meu amigo Joo adoeceu de verdade. Isto , no teve uma dorzinha qualquer de garganta. A doena de Joo devia ser algo muito srio. At eu e o Rafael no podamos visit-lo, porque fomos proibidos pelos mais velhos que no explicavam os reais motivos da proibio. Ficvamos sabendo algo dele atravs das conversas que ouvamos por de trs das portas. As pessoas diziam que era algo e o chamavam de coitadinho. No sabamos por qual motivo sentiam pena dele, apenas sabamos que era algo grave.

Naquela poca, criana no se envolvia em conversa de adultos. Quando estes queriam falar sobre coisas de gente grande, ou cochichavam ou mandavam a gente sair de perto. Mas criana no tola nem nada. Todas as vezes que eles agiam assim,

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ns sabamos que era proibido ouvi-los. A a curiosidade aumentava a tal ponto que fazamos de tudo para ouvir o que diziam. A interpretao dos fatos, claro, ficava por conta do nosso entendimento distorcido ou incompleto de cabea de menino.

Joo no participava mais de nossas brincadeiras. Passava os dias em casa, em seu quarto, geralmente deitado. Sabamos que ele no estava bem e que, medida que os dias avanavam, o caso dele ficava cada dia pior. Ouvamos dizer que a doena dele era to grave e nem os chs e as benzeduras no davam conta. Levaram-no a um mdico na cidade, mas voltaram desanimados. Joo estava mais magro e plido. No conversava e nem ria. Parecia se despedir todos os dias da vida que escapava de suas mos, levada pelo sopro da morte.

Havia dias em que eu e o Rafael ficvamos sentados, na beira da rua, esperando uma notcia boa que nos tirasse daquela angstia. Como nosso amigo fazia falta! No entendamos por que uma criana devia passar por tamanha provao. Cada dia era uma luta contra algo que desconhecamos.

Infelizmente, em um dia nublado e frio, a histria de Joo teve um fim. Lembro-me do choro agudo e sentido da me dele. Do soluo preso na garganta do pai e dos irmos menores ainda confusos, sem saber o que fazer. Eu mesma no acreditava que meu amiguinho partira para sempre. Rafael sentia a falta de Joo e contava das coisas que juntos vivamos. Ns tnhamos apenas 10 anos e nunca imaginaramos que um de ns partiria e viraria um anjo no cu.

Descobri que nossos amigos de infncia so especiais. No importa quanto tempo passamos com eles. O que importa a qualidade dos dias que vivemos. Quero acreditar que Joo est em um bom lugar, cercado por outros anjos e brincando como uma eterna criana.

Luciane Mari Deschamps

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O POO

Desde muito pequena, a menina de olhos verdes e cabelos negros cacheados teve uma grande misso. Ficou rfo aos trs anos e foi criada pela madrasta. Nem deixou de ser criana para assumir uma vida de gente grande. Aos oito anos, lavava a roupa da casa e tinha uma rotina de bastante trabalho domstico. S estudou por trs anos, o suficiente para aprender a ler e a escrever. Foi tirada da escola porque mulher no precisa estudar. E foi assim que passou a fazer de tudo para todos: lavar, passar, cozinhar, limpar e servir, servir, servir. Edite era esta menina.

Certo dia, Edite usava para trabalhar em casa seu vestido branco do dia de sua Primeira Comunho que j estava velho e surrado. Era um modelinho simples de um tecido comum. Naquele mesmo dia, trazia gua do poo para encher o tanque em que lavaria a roupa da casa. Contava os baldes um a um, pois precisaria de dez at o tanque encher por completo.

A menina Edite era baixinha e de pernas curtas, pois ainda ela era muito pequena para aquele enorme trabalho. Tinha apenas oito anos!

No oitavo balde, Edite se distraiu e tropeou na boca do poo.

Jesus! Quase ca! disse ao perceber o perigo. Saiu para esvaziar o balde dentro do tanque e voltou para pegar mais gua. O

infortnio aconteceu. O pequeno corpo bateu no fundo do poo aps a queda. Era para acontecer! Com dificuldades, a menina viu a gua turva e segurou-se nas laterais, com uma fora de gente grande.

Nossa Senhora! Minha me! clamou em desespero. Conseguiu chegar com a cabea para fora e gritar por socorro. Uma vizinha viu

aquela situao desesperadora e pulou a janela da casa para alcanar o quintal onde Edite estava. As mos geis seguraram a pequena assim que ela retornou superfcie e os minutos decisivos separam aquele anjo de partir aos oito anos.

O vestido branco da menina ficara todo rasgado. Seu escudo para proteger-se de todos os males? Acredito que no, pois Edite, mesmo depois do ocorrido, ainda continuou a trabalhar com os baldes, o poo, o ferro de brasa para passar roupas, as facas afiadas da cozinha e tantos outros objetos que, de certa forma, eram os menores perigos que a vida ainda lhe ofereceria.

A menina teria muito ainda para viver e um dia contar a filhos, netos e bisnetos sobre o dia em que caiu naquele poo do quintal de casa e que fora salva por uma vizinha que, sem querer, lhe proporcionou a chance de contar muitas vezes esta histria.

Luciane Mari Deschamps (Fato ocorrido com a me da autora.)

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A CHICA DO BASTIO

Foi numa festa de So Joo que eu fui noiva do Bastio. Noiva de mentira. Era s brincadeira, mas me apaixonei. Vejam s que besteira! O Bastio era um rapago. Falava bonito que nem capito. Uma serenata sabia tocar. Ai, ai, quem me dera com ele casar! Tocava sanfona e tambm violo. Ai, caboclo malvado do meu corao!

Esta uma msica que ouvia minha me cantar na poca em que se

aproximavam as festas juninas. A histria narrada na letra me faz lembrar tambm Dona Francisca, uma senhora idosa que morava sozinha, numa casa pequena, de janelas azuis, beira da estrada que levava a um riacho que cortava a fazenda do Seu Antnio.

Todos da minha cidade conheciam Dona Francisca, pois ela era uma mulher de idade avanada e com fama de santa e que teve um companheiro e uma linda histria de amor.

Contam os mais velhos que presenciaram o incio da histria de Dona Francisca que ela era uma moa muito faceira, digna dos olhares desejosos dos homens da cidade. Todos a chamavam de Chiquinha devido ao penteado que usava e o nome que tinha. Como Chica era bonita! Cabelos loiros, olhos grandes e azuis e boca carnuda. At as mulheres a olhavam com admirao. Menina sria, de famlia, diziam. No levantava os olhos quando estava prxima de outras pessoas, principalmente de homens em idade casadoira.

Francisca j tinha sido prometida para o filho de um fazendeiro e os negcios feitos pelo pai ela nunca questionava. Naquela poca, estar prometida em casamento para algum era estar segura na vida. Teria um marido e filhos. Ela seria me e dona de casa um dia. Era o destino das mulheres. Como era de uma famlia pobre, o negcio feito para se casar seria uma maneira de diminuir a quantidade de gente em casa para alimentar e, em contra partida, um alvio para os pais que entregavam a filha para algum que podia sustent-la.

Com isso, Francisca se conformou at seus quinze anos, quando, na festa de Santo Antnio, conheceu um rapaz alto, bonito, um rapago! Durante a dana da quadrilha, em meio a fogos de artifcios e ao calor da fogueira, aqueles coraes se encontraram para iniciar uma histria de amor. Aquele dia mudou a trajetria da menina que tudo aceitava sem questionar. Aquele sentimento que surgiu durante uma

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brincadeira tpica das festas juninas tirou o sossego dos pais que j haviam dado a palavra de honra ao dono da fazenda vizinha.

Aproximava-se a data do casrio de Francisca com o tal filho do fazendeiro Antnio. O corao dela sangrava e os olhos choravam quando se lembrava do rosto do seu amado que teria que esquecer devido s circunstncias. Pouco sabia sobre o futuro noivo, muito menos o conhecia pessoalmente. Isso a aterrorizava todas as noites, quando colocava a cabea no travesseiro e comeava a imaginar quem seria seu pretendente. Ora imaginava um homem muito mais velho, barrigudo e com um enorme bigode; ora imaginava um rapaz franzino e narigudo, sem nenhum atrativo. Na verdade, Francisca criava em sua mente tudo o que era pior. Tinha vezes que tentava pensar numa maneira de fugir e deixar para trs aquela histria de casamento arranjado, mas, como boa filha, imaginava tambm as consequncias do seu ato e o sofrimento e a vergonha dos pais que tanto amava.

A histria de Francisca seria bastante surpreendente e at um tanto fantstica se no fossem os prprios conhecidos dela que a contavam sempre que ela passava sozinha, pelas ruas estreitas da cidade, em direo casa de janelas azuis, beira da estrada.

O casrio de Francisca se aproximava e seria no dia de So Joo. At l, foram noites mal dormidas, pesadelos e choro abafado pelo travesseiro de penas. A menina nem mais comia direito e andava curvada, como se o mundo estivesse pesando em suas costas. Quem seria o noivo? Por que nunca lhe foi apresentado? Por que tantos mistrios em torno da identidade dele? Tudo era confuso e questionvel. Parecia que os dias a empurravam para um destino incerto e infeliz.

Francisca tinha apenas quinze anos quando se vestiu de noiva para se casar de verdade com um desconhecido. Se no fosse seu corao apaixonado pelo rapago com quem danara, estaria indo para aquele casamento com a mesma segurana das mulheres submissas da poca. Mas no. Seu corao batia por um homem que vira por uma nica vez, na festa de Santo Antnio. Seu corpo, no entanto, caminhava rumo ao altar, onde encontraria seu futuro companheiro.

E assim foi. A porta da igreja se abriu. A msica tocou alto, anunciando a chegada da noiva. Parentes e amigos olharam para trs, levantaram-se e acompanharam os passos lentos e difceis de Francisca em direo ao noivo que a esperava no altar. Ao entrar, o nervosismo e a vergonha fizeram os olhos azuis de Francisca permanecer olhando o tapete vermelho que se estendia pelo corredor central.

Aqueles poucos minutos foram eternos. Agora era para acontecer. Dos olhos de Francisca, lgrimas. Porm, ao levantar o rosto para enfrentar os olhares dos convidados, em frente ao altar, a noiva prometida vislumbrou com a figura de seu amado. A vontade de acelerar o passo foi contida pela sensao de estar sonhando. Forou a viso para ter certeza e comprovava o que o corao em saltos lhe dizia: o noivo era Sebastio que a conquistara no dia de Santo Antnio e com quem se casaria no dia de So Joo. Foi um momento sublime! E a alegria daquele dia se estendeu por toda uma vida de companheirismo e amor.

Francisca e Sebastio formavam um casal lindo de se ver. Abenoado pelos santos casamenteiros do ms de junho. Felicidade que durou 45 anos, at o dia em que Bastio partiu e deixou Chica na casinha branca, de janelas azuis, beira da

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estrada da fazenda do seu Antnio. Hoje, ela ainda espera o dia do reencontro com seu grande amor. Quem sabe numa noite estrelada e fria de So Joo. Quem sabe...

Nosso Amor (Msica de Nelson Gonalves) Nosso amor que eu no esqueo E que teve o seu comeo numa festa de So Joo Morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, Sem luar, sem violo. Perto de voc me calo. Tudo penso e nada falo. Tenho medo de chorar. Nunca mais quero teu beijo, mas meu ltimo desejo voc no pode negar. Se alguma pessoa amiga pedir que voc lhe diga se voc me quer ou no Diga que voc me adora. Que voc lamenta e chora a nossa separao. E s pessoas que eu detesto, diga a elas que eu no presto, Que meu lar um botequim, E que eu arruinei a sua vida, Que no mereo a bebida Nem mereo a comida Que voc pagou pra mim.

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MOS

Ardia em febre. O corpo parecia pesado como se um saco de farinha estivesse sobre ele. A imagem de uma linha, ora reta ora em ngulos pontiagudos, dava a sensao de desequilbrio e, ao mesmo tempo, desconforto. O corpo mido largado, sem foras, na cama. A doena. Tempo demais para quem no tinha tempo a perder.

De repente, duas mos abriam a porta do quarto e traziam o ch de limo com mel. Para acompanh-lo, um analgsico destes que se vendem na farmcia sem receita. Alis, como ter receitas sem mdico? Medicina caseira mesmo: chs de todos os gostos amargos e fortes de ervas colhidas no quintal (receita da vov ou da vizinha solidria), compressas frias, rodelas de batatas na testa, massagens com Vick e um comprimido qualquer. Esperana da cura que chegava pelo olhar piedoso e pelas mos adultas. Momentos de cuidado e ateno.

Doena tempo paralisado e dolorido. As mos se tornam a imagem do conforto naqueles dias sem brincar, correr, pular, falar. Eram estas mos que traziam a sensao de alvio para os momentos de angstia. Sentia-se a cura enquanto se recebia ateno e carinho. Havia o risco da perda e a sombra da morte, mas o amor era maior. Era o que temperava o ch, a compressa e tudo mais. Lembranas das mos solcitas em busca das solidrias.

Hoje, as mos que solicitavam ajuda cresceram. Tornaram-se as que ajudam aquelas mos solidrias que envelheceram e enfraqueceram. Uma troca justa, cheia de carinho, amor, ateno. A criana agora a me daquela me que um dia foi forte e gil. A filha me da prpria me. Cuida dos anos pesados da idade com as mos daqueles que sabem retribuir o amor, o cuidado e a esperana da cura das doenas que surgem para tirar, dolorosamente e aos poucos, uma vida inteira de dedicao. O tempo continua passando e urge. Ainda no h tempo a perder, porque o tempo de quem sofre pequeno. No justo deixar sofrer quem curou nossas febres de quando o tempo parecia eterno e cheio de vida.

Que nossas mos sejam sempre para cuidar bem da vida em momentos de alegria ou de dor! Que nossas mos sejam a fora para aqueles que precisam de ajuda! Que nossas mos sejam a cura para as dores do corpo e da alma! Que todos sejam mos solidrias e envolventes! Mos que se estendem e curam cada vida que tocam.

Luciane Mari Deschamps

http://www