[eBook] Carlos Alberto Messeder Pereira - o Que e Contracultura

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Carlos Alberto Messeder Pereira

O QUE CONTRACULTURA

EDITORA BRASILIENSE

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Eu pensava ter dado um grande salto para a frente e percebo que na verdade apenas ensaiei os tmidos primeiros passos de uma longa marcha. (A Chinesa Godard)

Agradecimentos a: Alberto Sabino Jr., Helosa Buarque de Hollanda, Jos Leonardo Gomes da Silva Neto, Lus Carlos Maciel, Lus Carlos Fridman e Maria Lygia M, C. Pereira. 4

H ALGO NO AR ALM DOS AVIES DE CARREIRAPaz e Amor. Paradise Now. Desbunde. Desrepresso. Revoluo Individual. You Are What You Eat. Aqui e Agora. Proibido Proibir. A Imaginao Est Tomando o Poder. Flower Power. Turn on, Turne in and Drop out. Etc. Etc. . . . Palavras de ordem e expresses como estas foram, num determinado momento, capazes de mobilizar multides de jovens e intelectuais, nas mais diferentes partes do mundo. Corriam os anos 60 e um novo estilo de mobilizao e contestao social, bastante diferente da prtica poltica da esquerda tradicional, firmava-se cada vez com maior fora, pegando a crtica e o prprio Sistema de surpresa e transformando a juventude, enquanto grupo, num novo foco de contestao radical. O que estava acontecendo? Falava-se no surgimento de uma nova conscincia, de uma nova era, enfim, de novos tempos. Era uma revoluo em curso? Estava-se presenciando o surgimento de uma nova utopia? Aos poucos, os meios de comunicao de massa comeavam a veicular um termo novo: contracultura. Inicialmente, o fenmeno caracterizado por seus sinais mais evidentes: cabelos compridos, roupas coloridas, misticismo, um tipo de msica, drogas e assim por diante. Um conjunto de hbitos que, aos olhos das famlias de classe mdia, to ciosas de seu projeto de ascenso social, parecia no mnimo um despropsito, um absurdo mesmo. Rapidamente, no entanto, comea a ficar mais claro que aquele conjunto de manifestaes culturais novas no se limitava a estas marcas superficiais. Ao contrrio, significava tambm novas maneiras de pensar, modos diferentes de encarar e de se relacionar com o mundo e com as pessoas. Enfim, um outro universo de significados e valores, com suas regras prprias. Comeavam a se delinear, assim, os contornos de um movimento social de carter fortemente libertrio, com enorme apelo junto a uma juventude de camadas mdias urbanas e com5

uma prtica e um iderio que colocavam em xeque, frontalmente, alguns valores centrais da cultura ocidental, especialmente certos aspectos essenciais da racionalidade veiculada e privilegiada por esta mesma cultura. Ainda que diferindo muito dos tradicionais movimentos organizados de contestao social e isto tanto pelas bandeiras que levantava, quanto pelo modo como as encaminhava a contracultura conseguia se afirmar, aos olhos do Sistema e das oposies (ainda que gerando incansveis discusses), como um movimento profundamente catalisador e questionador, capaz de inaugurar para setores significativos da populao dos Estados Unidos e da Europa, inicialmente, e de vrios pases de fora do mundo desenvolvido, posteriormente, um estilo, um modo devida e uma cultura underground, marginal, que, no mnimo, davam o que pensar. Esse esprito libertrio e questionador da racionalidade ocidental, que viria a marcar to fortemente isto que ficou conhecido como a contracultura, j se anunciava nos Estados Unidos, desde os anos 50, com uma gerao de poetas a beat generation que produziu um verdadeiro smbolo do fenmeno com o poema Howl (Allen Ginsberg, 1956), que, traduzido, significa uivo ou berro. Nesta mesma poca, com seu apogeu por volta dos anos 1956-1968, surge o rock-n-roll, sintetizado na figura provocativa de Elvis Presley, aglutinando um pblico jovem que comeava a fazer deste tipo de msica a expresso de seu descontentamento e rebeldia, tornando inseparveis a msica (ou a arte) e o comportamento. a chamada juventude transviada, com suas gangs, motocicletas e revoltas contra os professores nas salas de aula. So os rebeldes sem causa to retratados, no importa se justa ou injustamente, pelos filmes da poca e encarnados na figura de James Dean. J comeava a se delinear, de modo bastante claro, algo que seria de grande importncia para a compreenso da dcada seguinte: uma conscincia etria. A oposio jovem/ no-jovem comeava a ganhar cada vez maior sentido para a compreenso de determinados movimentos sociais. , no entanto, nos anos 60, que essa exploso poltico-cul6

tural ganha potncia mxima. Na msica, o i-i-i dos Beatles e o novo som de Bob Dylan comeavam a reunir um pblico crescente e cada vez mais significativo diante da opinio pblica. A segunda metade da dcada marcada por grandes concertos e festivais de rock que, na verdade, se transformavam sempre em grandes happenings. Entre alguns dos mais importantes esto o de Monterey, em 1967, quando surgem Jimmy Hendrix e Janis Joplin; o de Woodstock, em 1969; o de Altamont, ainda no mesmo ano, quando um negro assassinado pelos Hells Angels, evidenciando-se a presena da violncia no interior da contracultura; e, finalmente, o da Ilha de Wight. Este, por sua vez, contou com a presena de figuras importantes da msica brasileira, ou melhor, do Tropicalismo, como Caetano Veloso, Gilberto Gil (ambos vivendo em Londres na poca) e Gal Gosta, ao lado de pessoas de outras reas, como Rogrio Sganzerla, Jos Vicente ou Antnio Bivar, que realizava a cobertura jornalstica do festival para um jornal underground brasileiro. Toda essa movimentao na msica era seguida de perto pelo movimento hippie, com suas comunidades e passeatas pela paz. Por volta de 1967, na mesma poca em que na lendria So Francisco era realizado com grande alarde o enterro simblico do mesmo movimento hippie, surgia um curioso partido: o Youth International Party (Partido Internacional da Juventude), que vinha lanar a figura do yippie (o hippie politizado). Ainda um fato importante na caracterizao desse quadro so as revoltas nos campi universitrios que culminam com a radicalizao do movimento estudantil internacional, sintetizada pelo Maio de 68, na Frana. A partir de ento, era difcil ignorar-se a contracultura como forma de contestao radical. Se seria fcil e totalmente absorvida pelo Sistema, pelo Establishment palavras consagradas pelo jargo da poca , se era um sinal evidente da alienao de parcelas cada vez maiores das populaes de pases situados nos quatro cantos do mundo ou se significava a crtica mais radical que j se havia produzido cultura ocidental como um todo, estas eram algumas das questes centrais que estavam colocadas na pauta de uma discusso quente e prolongada, que no deixa7

de apontar para um saldo que parece exigir e merecer um balano cuidadoso do qual possam sair pistas que apontem no sentido de uma melhor compreenso do que foi ou do que a contracultura.

A ASCENSO DE UM PODER JOVEMEmbora bastante prximo no tempo, o movimento de contracultura, num certo sentido, j faz parte de um passado histrico, estando um pouco distante do nosso dia-a-dia. Os tempos mudam e fica ento difcil reconstituir o vigor, o pique da movimentao daqueles anos 60 que tanto marcaram, de modo radical e definitivo, a experincia da juventude internacional. Por outro lado, descrever, em poucas pginas, a natureza de um movimento complexo e rico como a contracultura, ou mesmo contar um pouco de sua histria, no tarefa fcil. Especialmente se o que se pretende compor um quadro capaz de passar de modo vivo e atual um pouco do clima daquele momento. Nesse sentido, um bom ponto de partida para uma aproximao mais direta do fenmeno da contracultura , sem dvida alguma, o depoimento de algum que, pelo menos no Brasil, teve um papel fundamental tanto na atualizao quanto na divulgao das idias da contracultura. Seu nome Lus Carlos Maciel colaborador do Pasquim do comeo dos anos 70 e de vrios outros jornais underground, bem como autor de vrios livros sobre o assunto em questo , que nestas anotaes que se seguem, publicadas j nos anos 80, nos d algumas pistas fundamentais que vale a pena seguir.Primeira anotao O termo contracultura foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60, para designar um conjunto de manifestaes culturais 8

novas que floresceram, no s nos Estados Unidos, como em vrios outros pases, especialmente na Europa e, embora com menor intensidade e repercusso, na Amrica Latina. Na verdade, um termo adequado porque uma das caractersticas bsicas do fenmeno o fato de se opor, de diferentes maneiras, cultura vigente e oficializada pelas principais instituies das sociedades do Ocidente. Contracultura a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. No sentido universitrio do termo uma anticultura. Obedece a instintos desclassificados nos quadros acadmicos. Segunda anotao Pode-se entender contracultura, a palavra, de duas maneiras: a) como um fenmeno histrico concreto e particular, cuja origem pode ser localizada nos anos 60; e b) como uma postura, ou at uma posio, em face da cultura convencional, de crtica radical. No primeiro sentido, a contracultura no , s foi; no segundo, foi, e certamente ser. Terceira anotao Acostumamo-nos, atravs da educao, a ver na cultura que herdamos de nossos pais e antepassados uma entidade intocvel, definitiva, que se apresenta diante de ns como parte da prpria essncia da realidade algo natural como o Sol ou a Lua, ou o resultado de uma evoluo que se diria biolgica porque inevitvel. evidente, porm, que no assim. Cultura um produto histrico, isto , contingente, mais acidental do que necessrio, uma criao arbitrria da liberdade cujo modelo supremo a Arte. No h cultura, a rigor como manifestao de uma inexistente natureza humana, por exemplo , mas culturas, no plural, criadas por diferentes homens em diferentes pocas, lugares e condies, tanto objetivas quanto subjetivas. Elas expressam no a realidade em si, mas diferentes maneiras de ver essa realidade e de interpret-la. So diferentes leituras do mundo e por nenhum critrio pretensamente objetivo podemos afirmar que uma seja mais vlida ou mais objetiva, verdadeira, cientfica etc. do que outra. Criamos, inventamos culturas e a todo momento, praticamente 9

sem cessar. Trata-se, apenas, no fundo, de um jogo cuja graa maior h de ser, sempre, sua carga potica. O valor mais alto de uma cultura sua viso potica. Cultura, pois, essencialmente Arte um dos piores prejuzos causados pela viso cientfica que domina a nossa cultura foi o de distorcer, obscurecer e finalmente ignorar esse fato. Quarta anotao A compreenso do fenmeno da contracultura depende da erradicao desse preconceito, introjetado em todos ns desde a infncia: o de que nossa cultura particular e suas formas especficas e limitadas so, de alguma maneira, superiores, ou melhores, ou mais objetivas etc. do que quaisquer outras, pretritas ou a inventar. Esta uma iluso tenaz, amparada por todas nossas instituies da universidade poltica , e o primeiro ato indiscutivelmente positivo e genuinamente revolucionrio da contracultura foi o de desmenti-la. Esse ato foi espontneo. O surgimento e o desenvolvimento do que se chamou contracultura no foram previstos e s foram precariamente apreendidos, custa de distores pelos quadros de conhecimento elaborados por nossa cultura. Sua fonte foi a magia fundamental da realidade, seu poder incessante de criao, insubmisso a todos os tipos e tentativas de racionalizao. Esta a principal originalidade histrica da contracultura. Ela tem mais a ver com um passe de mgica do que qualquer processo racionalizvel. Quinta anotao A contracultura foi certamente propiciada pelas prprias doenas de nossa cultura tradicional. Tais doenas condicionaram seu surgimento, como um antdoto, ou anticorpo, necessrio preservao de um mnimo de sade existencial, que passou a ser socialmente exigido pelo prprio instinto de sobrevivncia de nossa vida em comum. Nossa cultura , ela prpria, uma doena. Uma arte mrbida. O pensamento do sculo XIX tentou diagnosticar essa doena de diferentes maneiras. Chama-se alienao, de Marx e neurose, em Freud. No marxismo, o resultado psicolgico da explorao econmica; na psicanlise, o produto social da represso dos instintos. H de ser am10

bas as coisas e mais ainda. A origem dessa doena perde-se na noite dos tempos: ela no depende apenas das maneiras que os homens organizaram sua sobrevivncia material ou suas relaes familiares; antes, suas formas mrbidas dinheiro, explorao, represso, autoritarismo etc. so suas conseqncias ou sintomas, ou ainda melhor: so ela prpria, ao nvel da experincia coletiva concreta. Sexta anotao Na noite dos tempos quer dizer: aqui e agora. Eternidade do Instante Eficiente. Stima anotao O doente o homem condicionado que conhecemos em nossa cultura. Sua perda bsica a da prpria liberdade. Em funo disso, ele se torna, cada vez mais, um escravo do que os hindus chamam Maya. Maya significa iluso mgica, arte, jogo. O olho desperto o v assim; o adormecido o confunde com o real, prende-se em sua teia. Nas teias de Maya, o sujeito vive um estado de alucinao completa, de absoluta confuso mental. Sua mente conturbada cria uma srie interminvel de monstruosidades econmicas, sociais, psicolgicas e existenciais. O grande obstculo que esse estado onrico, alucinatrio, considerado normal por sua prpria tica, que a vigente; dessa forma, a preservao e mesmo a evoluo da doena so asseguradas. Considerando-se saudvel, o doente no procura mdico nem remdio e atribui seu sofrimento a uma fatalidade absurda e incompreensvel. Essa condio caracteriza o nosso cotidiano. A doena essencialmente mental e, portanto, tanto fsica quanto espiritual. Mente, Corpo e Esprito esses trs so um s. Oitava anotao A contracultura surgiu do confronto entre a cultura, reconhecida como doena, e a viso juvenil, cujo instinto natural para a sade. A audcia dessa viso no pode ser considerada mera precipitao ingnua, pois funda-se, antes, num desencanto radical atingido por saturao, maturidade com o mundo tal como o conhecemos. 11

As vertentes que confluram para a formao de contracultura so vrias, de naturezas aparentemente diversas, mas sublinhadas pelo denominador comum da inteno libertria. E a fonte instintiva dessa inteno , sem dvida, a viso juvenil.*

Surgido inicialmente na imprensa, o rtulo contracultura foi ganhando um espao de circulao cada vez mais amplo. E isto, principalmente, na medida em que o fenmeno a que ele se referia ia tambm se expandindo e se revelando, aos olhos de um nmero crescente de pessoas, como um tema obrigatrio de discusso, claro que no se pode esquecer ou deixar de levarem considerao a fora, o poder da imprensa, especialmente da grande imprensa, no sentido de lanar rtulos ou modismos. Mas isto, por si s, no parece ser suficiente para explicar a enorme e rpida difuso do termo contracultura. Assim que, de um lado, temos a expanso e difuso do fenmeno a que o rtulo se referia e, de outro o que um ponto fundamental , o grande vigor expressivo do prprio rtulo. Desta forma, o termo colava no apenas porque se referia a um fenmeno que assumia propores cada vez maiores, ou porque era veiculado por uma imprensa mais ou menos poderosa, mas, talvez, especialmente, porque continha em si mesmo uma expressiva carga de informao a respeito do movimento que designava. Tratava-se, de fato, de um movimento de contestao que colocava frontalmente em xeque a cultura oficial, prezada e defendida pelo Sistema, pelo Establishment. Diante desta cultura privilegiada e valorizada, a contracultura se encontrava efetivamente do outro lado das barricadas. A afirmao e a sobrevivncia de uma parecia significar a negao e a morte da outra. E agora, amplificada e difundida pelos meios de comunicao de massa, a recusa radical da juventude ganhava a cena com grande alarde e assumia ares de uma verdadeira contracultura. Podemos entender por contracultura duas coisas at certo*Lus Carlos Maciel. Revista Careta, Ano LIII, n0 2736, de 20/07/1981. p. 19. 12

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ponto diferentes, ainda que muito ligadas entre si. E, quando algum usa o termo, possvel que esteja se referindo a uma ou a ambas as coisas. De um lado, o termo contracultura pode se referir ao conjunto de movimentos de rebelio da juventude de que falvamos anteriormente e que marcaram os anos 60: o movimento hippie, a msica rock, uma certa movimentao nas universidades, viagens de mochila, drogas, orientalismo e assim por diante. E tudo isso levado frente com um forte esprito de contestao, de insatisfao, de experincia, de busca de uma outra realidade, de um outro modo de vida. Trata-se, ento, de um fenmeno datado e situado historicamente e que, embora muito prximo de ns, j faz parte do passado. Hoje, mesmo quando nos vemos diante de um ou outro destes elementos, eles j no tm o mesmo sentido de antes, ou pelo menos no com aquela fora. De outro lado, o mesmo termo pode tambm se referir a alguma coisa mais geral, mais abstrata, um certo esprito, um certo modo de contestao, de enfrentamento diante da ordem vigente, de carter profundamente radical e bastante estranho s formas mais tradicionais de oposio a esta mesma ordem dominante. Um tipo de crtica anrquica esta parece ser a palavra-chave que, de certa maneira, rompe com as regras do jogo em termos de modo de se fazer oposio a uma determinada situao. Aquela postura ou posio de crtica radical em face da cultura convencional, qual se refere Maciel em suas anotaes. Uma contracultura, entendida assim, reaparece de tempos em tempos, em diferentes pocas e situaes, e costuma ter um papel fortemente revigorador da crtica social. Tanto no sentido mais geral quanto no espec f ico, o termo aponta para uma realidade cuja natureza extremamente radical, questionadora, e bastante diferente se comparada s formas mais tradicionais de oposio ao status quo, sugere a idia de que estamos de fato diante de algo situado fora da ou contra a cultura oficial. E isto na medida em que esta nova realidade se apoia sobre uma recusa fundamental, explcita ou implcita, de alguns dos14

valores mais sagrados e prezados por aquela cultura. Fiel filosofia utpica do dropout, a juventude engajada na contracultura dos anos 60 buscava, atravs deste conjunto de idias e comportamentos, cair fora do Sistema. Descrente do futuro e desencantada com o presente uma sociedade e uma cultura que, segundo o consenso da poca, estavam simplesmente doentes , o que tentava criar era um mundo alternativo, underground, situado nos interstcios daquele mundo desacreditado, ou no que se acreditava ser o outro lado de suas muralhas. Rompia-se com praticamente todos os hbitos consagrados de pensamento e comportamento da cultura dominante, realizandose uma espcie de crtica selvagem a esta mesma cultura e sociedade ocidentais. No se tratava da revolta de uma elite que, embora privilegiada, visasse uma redistribuio da riqueza social e do poder em favor dos mais humildes. Nem de uma revolta de despossuidos. Ao contrrio. Era exatamente a juventude das camadas altas e mdias dos grandes centros urbanos que, tendo pleno acesso aos privilgios da cultura dominante, por suas grandes possibilidades de entrada no sistema de ensino e no mercado de trabalho, rejeitava esta mesma cultura de dentro. E mais. Rejeitavam-se no apenas os valores estabelecidos mas, basicamente, a estrutura de pensamento que prevalecia nas sociedades ocidentais. Criticava-se e rejeitava-se, por exemplo, o predomnio da racionalidade cientfica, tentando-se redefinir a realidade atravs do desenvolvimento de formas sensoriais de percepo. Nas palavras de William James, estudioso dos agentes alucingenos do final do sculo passado: ... a conscincia racional, como a chamamos, constitui apenas um tipo especial de conscincia, enquanto, a seu redor, dela separadas por um tenussimo biombo, jazem formas potenciais inteiramente diferentes (...). Nenhuma concepo do universo em sua totalidade que ignore essas outras formas de conscincia pode ser definitiva (...). Elas impedem um fechamento prematuro de nossas contas com a realidade. a recusa radical destes princpios mais do que consagra15

dos que parece emprestar ao rtulo contracultura seu forte sentido, justificando sua fcil aceitao de ambos os lados das barricadas. Tanto da parte daqueles que se colocavam ao lado do novo fenmeno, quanto da parte dos que lhe faziam oposio, o que se pressentia era uma ruptura, no sentido mais essencial da palavra, com a ordem dominante. E a talvez na sua fria, na falta de sistematicidade de sua crtica esteja a dimenso essencial da radicalidade da contracultura. Embora a contracultura no seja uma inveno exclusiva da juventude, o que fcil de demonstrar pela idade avanada de alguns de seus tericos e gurus mais destacados, ela encontra no jovem o seu intrprete principal e o seu motivo mais forte. Eram estes mesmos jovens que atualizavam e colocavam em prtica, no seu cotidiano, algumas das idias, hipteses e suposies daqueles tericos mais velhos. Est, assim, profundamente marcada por um inegvel esprito juvenil, no sentido mais rico da expresso. De uma certa forma, podia-se falar agora da entrada em cena de um poder jovem que, no apenas pelo seu vigor prprio, mas tambm pelas alianas que conseguia estabelecer com grupos de contestao s vezes muito diferentes, ia se revelando uma presena cada vez mais incmoda do ponto de vista do status quo. A partir de um certo momento comeou a ser cada vez mais freqente e comum o emprego, em contextos diversos, da expresso conflito de geraes. Falar ento de conflito de geraes era tocar em um problema essencialmente poltico. No se tratava mais de um fenmeno episdico e particular, mas de um foco importante de contestao social de nossa poca. O espao privado e ntimo da famlia palco por excelncia destes conflitos ganhava ares de arena poltica. Houve quem dissesse que a revoluo havia chegado s salas de visita de algumas das mais pacatas famlias burguesas ou mesmo sentado mesa do jantar. Ao invs de encontrar seu inimigo de classe no operariado das fbricas afirmavam alguns , a burguesia o encontrava na figura de seus filhos cabeludos. Mas no era apenas no interior da famlia que o jovem se16

constitua num foco de contestao. O mesmo acontecia na escola, nos campi universitrios, na msica, nas movimentaes de rua, em grandes movimentos sociais, enfim, em todos os lugares e/ou instituies onde sua presena se fazia notar. Com especial destaque para certos pases e para certos grupos sociais, jovem e juventude passavam a ser sinnimo de contestao. Pelo menos inicialmente, a juventude branca de camadas mdias de pases como os Estados Unidos ou aqueles da Europa Ocidental que vai se constituir em algo que poderia ser definido como o ncleo bsico deste novo esprito de contestao radical da contracultura. E, assim, a oposio filhos/pais, ou melhor, a oposio jovem/adulto, ganhava, cada vez mais, uma dimenso nova e radical. Contudo, parece no ter sido to de repente que tudo isto aconteceu. Efetivamente, de modo mais acentuado a partir da II Grande Guerra, e especialmente nos pases ditos desenvolvidos com destaque para os Estados Unidos , as condies de vida e a definio mesma do que fosse o jovem ou a juventude haviam se transformado bastante, e todas estas transformaes apontavam no sentido de fazer deste mesmo jovem uma pea importante, de destaque no grande xadrez social. Certamente, para quem est situado deste nosso lado no-afluente do mundo contemporneo, no deve ser muito fcil perceber e avaliar de modo imediato o alcance e o significado destas alteraes. Afinal de contas, por maior que tenha sido entre ns o impacto da II Guerra Mundial e mesmo de seu trmino ou das transformaes ocorridas no perodo que se seguiu a ela, nossa situao era muito diferente daquela vivida pela Europa o palco mais vivo daquele conflito no apenas militar mas sobretudo ideolgico ou pelos Estados Unidos. Especialmente no que se refere aos Estados Unidos, talvez a grande novidade do perodo ps-guerra, este pas comeava a se constituir ento no primeiro grande exemplo de uma sociedade afluente, tecnocrtica, o que se materializava, por exemplo, na afirmao do american way of life, um estilo de vida exportado com razovel sucesso para o mundo inteiro. Por outro lado, entr17

vamos, naquela hora, em um novo perodo da luta entre as grandes potncias. Vivia-se a guerra fria, alimentada pela ameaa atmica, entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica, e que se expressava tanto nos macios investimentos industriais de guerra realizados por ambas as partes, quanto no macarthismo, fenmeno que tanto marcou a dcada de 50 nos Estados Unidos com suas listas negras e uma implacvel perseguio a personagens da esquerda americana. Por outro lado, falando ainda especialmente do caso dos Estados Unidos, vale lembrar que ao volume extremamente grande de sua populao com menos de 20 anos, portanto bastante jovem, vinha se acrescentar o forte desenvolvimento, no psguerra, de uma educao liberal que tinha, entre outros, o efeito de reforar a existncia de um espao legtimo de questionamento e reivindicao especficos do jovem. Ainda na rea educacional, bom chamar a ateno para a expanso de cursos superiores que vinha ocorrendo tanto no Estados Unidos quanto na Europa Ocidental. A experincia do campus universitrio no apenas significava uma enorme concentrao de jovens num espao bastante aberto de discusso e questionamento, que por si s j favorecia o incremento de uma identidade grupal, como tambm ajudava a transformar a juventude numa carreira ainda mais longa, o que adiava um pouco mais o contato mais direto entre o jovem e o mundo dos adultos decorrente, por exemplo, da profissionalizao. Como se tudo isso no bastasse para reforar as fileiras deste exrcito de jovens, vale lembrar que o repertrio de informaes desta mesma juventude havia se transformado bastante durante a dcada de 50. Com o desenvolvimento galopante que tiveram os meios de comunicao, a difuso de normas, valores, gostos e padres de comportamento, que at ento estivera sob a influncia mais direta do crculo mais ntimo, representado, por exemplo, pela famlia ou outras instituies afins, se libertava agora destas amarras tradicionais e locais, ganhando uma dimenso mais universal e aproximando realidades at ento infinitamen18

te afastadas umas das outras. Afinal de contas, o mundo da comunicao de massa era aquela aldeia global de que nos fala McLuhan um nome importante no elenco de tericos que tiveram seu lugar no movimento de rebelio da juventude. Mas como se caracteriza essa sociedade em que se constitui e com que se defronta este poder jovem? Como ela se apresenta aos olhos daqueles que vo desafi-la? Suas marcas mais fortes parecem ser uma indstria altamente avanada, aliada a uma razovel afluncia, aliana que se traduz numa pauta de consumo sempre renovada e num sistema essencialmente massificante. Trata-se, na verdade, de uma sociedade tecnocrtica voltada para a busca ideal de um mximo de modernizao, racionalizao e planejamento, com privilgio dos aspectos tcnico-racionais sobre os sociais e humanos, reforando uma tendncia crescente para a burocratizao da vida social. Tudo isto, por sua vez, apoiado e referendado pelo dogma da cincia, ou melhor, pela crena absoluta na objetividade do conhecimento cientfico e na palavra do especialista, o intrprete autorizado do discurso da tecnologia, da produtividade e do progresso. Neste sentido, a tecnocracia esta forma social acima apontada se afirma como um imperativo cultural incontestvel e indiscutvel cuja dominao boa parte da populao mundial do final do sculo XX se rende sem muitas vezes ter ao menos a mais leve conscincia deste fato. Diante de um tal sistema, altamente repressivo e massificante, uma das caractersticas essenciais de toda a contestao da juventude vai ser a nfase na afirmao da individualidade, dado que, ao lado de outras marcas no menos importantes, vai afastar esta populao jovem das formas mais tradicionais e disponveis de luta poltica, aquela poltica quadrada e careta na verso desta mesma populao praticada, muitas vezes, por seus prprios pais. Assim, uma parte significativa da juventude de um semnmero de pases do mundo ocidental se encontrava, no final dos anos 50 e comeo dos 60, numa situao de difcil sada. Se, de19

um lado, rejeitava, cada vez com mais fora, seja o Sistema, sejam os valores tradicionais, de outro no conseguia canalizar este descontentamento para as formas consagradas de luta poltica, por no encontrar neste tipo de contestao respostas a sua nova problemtica. Deste modo, grande parte da energia crtica desta nova gerao de descontentes vai ser canalizada para atividades at ento no descobertas pelas formas tradicionais de luta poltica, manifestando-se de maneiras as mais surpreendentes para quem no estivesse suficientemente atento ao surgimento daquele novo fenmeno de contestao social intitulado por Marcuse um de seus tericos e idelogos mais destacados como a Grande Recusa.

HISTRIA DE UM SONHO?Quando, no comeo da dcada de 70, o ex-Beatle John Lennon declarou, em alto e bom som, para o mundo inteiro: o sonho acabou, certamente deve ter havido quem, sem conseguir esconder uma ponta de satisfao, l com os seus botes tenha pensado que, afinal de contas, aquilo no podia dar certo mesmo, pois aquele projeto de revoluo individual, cultural, no passava de um sonho. E assim, depois de muita fantasia e iluso, haviase chegado novamente ao duro terreno da realidade. Tratava-se apenas de mais um castelo revolucionrio que desmoronava e at que, desta vez, a Histria havia andado rpido. E certamente houve tambm muitos jovens que, apesar de suas simpatias para com aquelas novas propostas de transformao social, se surpreenderam e se decepcionaram com a possvel e cantada falncia revolucionria da contracultura. Mas ser a histria da contracultura apenas a histria de um sonho, de uma iluso? E de um sonho fracassado? Seria s isso que diziam os versos de Lennon? difcil negar que a con20

tracultura seja a mais recente ou a ltima (pelo menos at agora) grande utopia radical de transformao social que se produziu no Ocidente. Mas a utopia se resume numa iluso, num sonho? Como se move uma utopia ao longo da Histria? possvel afirmar que toda aquela energia, toda aquela nsia de transformao revolucionria, que tanto marcou o Ocidente nos anos 60 e parte dos 70, simplesmente se esgotou ou no deu em nada? Foi um sonho que passou e deixou suas marcas frgeis em alguns hippies de boutique ou em festinhas elegantes, regadas com bom vinho e alguma droga da moda? No seriam as coisas mais complicadas e a Histria menos cruel? * * * Falar da contracultura , num certo sentido, falar dos Estados Unidos pelo menos num momento inicial. Afinal, foi l onde primeiro se manifestou, de modo mais marcante e evidente, esse novo esprito de contestao que os movimentos de rebelio da juventude dos anos 60 viriam colocar na ordem do dia. Apesar da importncia do papel que a Europa seguramente desempenhou na formao de toda essa nova ideologia da juventude, certas condies especiais dos Estados Unidos faziam deste pas o bero por excelncia da contracultura. J desde os anos 50, era bastante visvel na sociedade americana a familiaridade crescente que a noo de antiintelectualismo vinha ganhando. Um exemplo desse fato o surgimento de toda uma tradio bomia aquela dos beatniks de verdadeiros representantes de um anarquismo romntico, cujo estilo de contestao e agitao, novo e radical quando comparado luta da esquerda tradicional, estava apoiado sobre noes e crenas tais como a da necessidade do desengajamento em massa ou da inrcia grupal. no interior desta gerao de rebeldes marginalizados dos bairros bomios que surge a poesia beat, qual se ligam nomes como Allen Ginsberg, Ider e inspirador do flower power (o poder21

da flor) dos anos 60. Ginsberg foi um dos verdadeiros idealizadores do estilo tpico de concentrao e manifestao dos hippies, sendo presena obrigatria nesses acontecimentos. Sua frmula de interveno se encontra em um de seus poemas, intitulado How to Make a March/Spectacle. Por sua vez, seu j mencionado poema Howl (1956) foi objeto, na poca, de um processo por obscenidade em So Francisco, o bero dos beatniks. Os versos iniciais deste poema I saw the best minds of my generation destroyed by madness* exprimem toda a dramaticidade da angustiante experincia desta gerao, cuja busca passava freqentemente pelos caminhos dolorosos da loucura e dos hospitais psiquitricos, como ocorreu com o poeta Carl Solomon, a quem o poema dedicado. Ainda outros nomes expressivos so os de William Burroughs ou Jack Kerouac, autor do livro On The Road, de 1958, que, em dado momento, afirmou: Eliminai a inibio literria, gramatical e sinttica, seguindo com a pregao de obedincia a nenhuma disciplina que no seja a da exaltao retrica e da afirmao no censurada. Foram os beatniks um dos grupos de destaque a encarnar, de modo especialmente vigoroso, a rebeldia marginalizada dos anos 50 nos Estados Unidos. J fascinados pelas doutrinas orientais, ponto fundamental de encontro entre eles e os alegres hippies dos anos 60, rejeitavam o caminho do intelectualismo, devotando-se a uma vida marcadamente sensorial e deixando-se arrastar por sua ludicidade e desprezo pelas satisfaes de uma carreira e de um rendimento regular, este estilo de comportamento que os faz um dos grupos pioneiros do esprito de contestao da contracultura dos anos 60, sendo, de uma certa forma, os hippies prematuros de um momento anterior. Norman Mailer, romancista americano indissoluvelmente ligado a todo este novo esprito de revolta que j comeava a se afirmar na dcada de 50 nos Estados Unidos, quem vai chamar a ateno para um outro fenmeno de contestao contempor*Em portugus: Vi as melhores cabeas da minha gerao destrudas pela loucura. 22

nea ao dos beatniks. Trata-se dos hipsters, isto , aqueles que se opem aos square os caretas, os quadrados, aqueles que o Sistema pode transformar com sucesso em conformistas bem ajustados. Da mesma forma como o On The Road de Kerouac havia feito do beatnik um grande assunto da imprensa de todo o mundo, o termo e o assunto hipster so, no mesmo ano de 1958, definitivamente consagrados por um artigo de Mailer intitulado The White Negro: Superficial Reflections on the Hipster. Vale lembrar que coubera a Ginsberg, um ano antes, o lanamento literrio do termo atravs de seu poema Howl. Ao contrrio do square, conformista e fiel defensor do american way of life, o hipster aquele que se rebela contra aquela situao. Diante da falncia da revoluo proletria nestas sociedades industriais avanadas, ele aquele que se revolta e nega violentamente os valores estabelecidos. Na sociedade americana, ele pode ser definido como um negro branco (o white negro de Mailer), exatamente porque nesta sociedade os negros so aquele grupo que, por sua posio marginalizada, se v obrigado a manter sempre uma atitude de rebelio, uma vez que est constantemente exposto ao perigo. Finalmente, hipster e square so, antes de mais nada, um estado de esprito, uma atitude de revolta ou de conformismo diante do status quo das ento modernas sociedades tecnocrticas. Apesar do valor que Mailer percebe na atitude beat de busca da sensao e da satisfao orgstica, no aceita aquilo que ele v como sua passividade ou falta de afirmatividade. Assim, acima do beatnik, ele colocaria o hipster, cuja conscincia dos extremos terrores da vida assemelha-se e derivada da que tem o negro, pois nenhum negro pode andar por uma rua seguro de que a violncia no vir encontr-lo em seu passeio. O que Mailer admirava no hipster era sua disposio de aceitar o desafio de se desligar da sociedade, de existir sem razes, de empreender essa viagem sem rumo pelos rebeldes imperativos do ego. Em suma, seja ou no uma vida criminosa, a deciso est em encorajar o psicopata que existe dentro de si mesmo, de explorar aqueles dom23

nios de experincia em que a segurana tdio e portanto doena (. . .). , assim, neste sentido, que aquela forma de delinqncia juvenil atualizada pela atitude hipster estava desafiando o desconhecido. Mas no era apenas nos Estados Unidos que essa combinao de marginalidade, bomia e revolta vinha se evidenciando. Assim como So Francisco, Chicago ou Nova York exibiam suas hordas de estranhos e novos rebeldes, tambm os bairros bomios de cidades europias como Londres ou Paris se enchiam daqueles mesmos rebeldes que comeavam a falar uma linguagem de revolta e contestao, com uma marca fortemente existencial e anrquica, e voltada principalmente para a transformao da conscincia, dos valores e do comportamento, na busca de novos espaos e novos canais de expresso para o indivduo e para as pequenas realidades do cotidiano. De ambos os lados do Atlntico sopravam tambm novos ventos, que evidenciavam a tentativa de renovao por parte do prprio pensamento terico crtico, de esquerda, diante das novas contradies surgidas no perodo do ps-guerra e diante do tipo de organizao e vida social que vinha se evidenciando naquelas sociedades industriais avanadas. Era, por exemplo, a Nova Esquerda (para a qual a poltica feita, antes de tudo, de envolvimentos pessoais e no de idias abstratas) que comeava a despontar com suas idias e publicaes, as quais teriam, nos anos 60, um papel e um desenvolvimento extremamente importantes junto aos setores da contracultura que levavam frente uma forma de contestao mais explicitamente poltica e, de modo especial, junto ao movimento estudantil internacional que provocaria a grande exploso do Maio de 68 francs, com suas barricadas e seus slogans renovadores. O vigor da presena da Nova Esquerda nas novas foras de contestao social pode tambm ser avaliado pelo papel de enorme importncia que tem, ao longo dos anos 60, a SDS (Students for a Democratic Society), organizao estudantil de amplitude mundial. Por sua vez, nomes como Paul Goodman, Dwight Mcdo24

nald e, especialmente, C. Wright Mills, ao lado de grupos que sustentavam publicaes radicais como Liberation e Dissent, vinham, nos Estados Unidos, tentando desvendar a nova realidade das sociedades tecnocrticas. Os trabalhos de pensadores como Herbert Marcuse ou Norman Brown, pelo confronto que forneciam entre as obras de Marx e Freud e pelo que exploravam no sentido de descobrir os mecanismos, as razes ou o sentido de fenmenos tais como a dominao, a represso ou a alienao, bem como as possibilidades de transformao social radical nas modernas sociedades industriais, viriam a constituir, por sua vez, um dos mais slidos pilares tericos da crtica da contracultura. Em 1954, aparecia o One Dimensional Man, de Marcuse, e, em 1955, do mesmo autor, o Eros and Civilization, ambos analisando e discutindo a natureza das sociedades industriais avanadas e suas possibilidades de transformao revolucionria. Norman O. Brown, por sua vez, publicava, em 1959, o livro intitulado Life against Death: The Psychoanalitical Meaning of History, cruzando, como sugere o prprio ttulo, a psicanlise e a investigao social. Se, de um lado, nem a psique nem a classe social podiam ser dispensadas, de outro, os projetos de transformao social revolucionria explicitavam, cada vez mais claramente, a nfase na busca no apenas da liberdade mas, fundamentalmente, do prazer. Em suma, o que se pode observar por toda parte uma tentativa de renovar e atualizar o instrumental terico de anlise da crtica social mais progressista, no sentido de dar conta das novas realidades que se apresentavam queles que se empenhavam num projeto e numa prtica de transformao social nas novas condies de desenvolvimento industrial e afluncia que caracterizavam especialmente as sociedades europias ocidentais e a norte-americana. No entanto, uma vez mais, as prprias condies da sociedade americana faziam com que o pndulo da contracultura casse mais fortemente na direo dos Estados Unidos. Ao contrrio da juventude europia, que trazia s costas todo o peso de uma longa tradio de luta poltica de esquerda bastante institucionalizada,25

o jovem norte-americano contava com um background radical de esquerda bem menos slido. Deste modo, era nos Estados Unidos que as novas formas de contestao e luta poltica postas em cena pelos movimentos de rebelio da juventude iam encontrar o campo mais frtil de surgimento e desenvolvimento. A populao jovem norte-americana, mais livre do peso de uma tradio que seus colegas europeus, sentia-se especialmente estimulada pela presena de grupos bastante significativos do ponto de vista poltico (minorias tnicas ou culturais), mas que no encontravam um lugar muito definido e estabelecido em espaos institucionais tradicionalmente voltados para uma atuao poltica mais reconhecida, como sindicatos ou partidos. Assim, a juventude americana mostrava-se mais sensvel quelas novas formas de contestao, menos sistemticas e menos explicitamente polticas, bem como, de uma certa forma, se revelava ainda mais inovadora e radical na formulao e concretizao daqueles tipos de luta que deixavam em muitas cabeas uma mesma dvida: mas isso poltico? Em linhas certamente muito gerais, este o pano de fundo contra o qual vemos florescer toda a cultura jovem dos anos 60, batizada com o rtulo de contracultura. Esta, por sua vez, se concretizou atravs de inmeras manifestaes surgidas em diferentes campos, como o das Artes, com especial destaque para a msica, ou melhor, para o rock; o da organizao social, aparecendo em primeiro plano a nfase dada pelo movimento hippie vida comunitria, na cidade ou no campo; e, ainda, o da atuao poltica. Aqui chama a ateno tanto o novo estilo de manifestao e interveno surgido no bojo de toda a cultura psicodlica que os mesmos hippies popularizavam, quanto a atuao da Nova Esquerda. Isto pode ser melhor observado tanto na prtica do movimento estudantil internacional (especialmente na sua grande demonstrao de fora que foi o Maio de 68), como em inmeros outros momentos, quando alianas com hippies, negros ou outras foras emergentes permitiram aos estudantes abrir as portas de novos espaos de interveno poltica.26

Especialmente no que se refere aos Estados Unidos, toda a movimentao em torno das vrias manifestaes da cultura jovem, indo do flower power aos estudantes e intelectuais da Nova Esquerda, passando por movimentos como o gay power ou womens lib, acompanhada de perto pelo surgimento e pela consolidao do black power, o poder negro, cuja luta teve como ponto de partida e ponte de articulao com a revolta de outros grupos a difcil batalha pelos direitos civis que marcou, desde o incio, a dcada de 60 nos Estados Unidos. Pela posio especial que o negro ocupa na sociedade americana, visivelmente oprimido e radicalmente excludo frente ao american way ofiife, ele no apenas detm um enorme potencial de revolta, como tambm se constitui num aliado quase que natural do jovem branco de camadas mdias que se rebela diante do Sistema, recusando suas eventuais ofertas e vantagens, ainda que no seja possvel omitir a diferena racial existente entre os dois grupos. Para este jovem branco o negro , ao mesmo tempo, um corajoso smbolo de rebeldia diante da opresso e de recusa de um estilo de vida contra o qual aquele mesmo jovem filho do Establishment luta desesperadamente. Deste modo, o negro assume, de certa forma, o papel de depositrio de valores j nostalgicamente perdidos para o branco, e o encontro com ele, suas tradies, sua msica, sua cultura, enfim, o encontro com a fora de uma vigorosa fonte natural de rebeldia e recusa. No de estranhar, portanto, todo o peso e o significado que o negro vai ganhar e, por a, o poder negro aos olhos daquela cultura jovem. . . e branca. No apenas nos Estados Unidos, mas em todos os lugares onde floresceu, a cultura jovem dos anos 60 foi extremamente sensvel e simptica a toda e qualquer movimentao de grupos tnicos ou culturais que se vissem nessa posio de marginalidade ou excluso diante das vantagens e promessas da sociedade ocidental. Alm disso, o tipo de luta que estes grupos se viam obrigados a levar adiante fora dos espaos polticos tradicionais e, portanto, tendo que se valer de um alto grau de inventivida27

de os aproximava da utopia revolucionria daquela juventude que, por suas idias e tambm pela posio que ocupava naquela mesma sociedade, se via na contingncia de ter que buscar sadas alternativas para expressar seu descontentamento e fazer valer suas crenas e sua voz. E, certamente, estas sadas foram encontradas. Uma delas, por exemplo, a msica. No quadro da contracultura, o rock um tipo de manifestao que est longe de ter um significado apenas musical. Por tudo que conseguiu expressar, por todo o envolvimento social que conseguiu provocar, um fenmeno verdadeiramente cultural, no sentido mais amplo da palavra, constituindo-se num dos principais veculos da nova cultura que explodia em pleno corao das sociedades industriais avanadas. Mas algum tempo antes do rock dos anos 60, um outro ritmo no muito afastado daquele j havia tambm demonstrado sua enorme capacidade de mobilizao social. Era o rock-n-roll, em meados dos anos 50, com seu balano frentico e sensual, seus estridentes acordes de guitarra eltrica e seu fiel e alucinado pblico jovem. Quem no se lembra de nomes como Bill Haley, Alan Freed, Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino ou The Platters? Ou de msicas como Rock around the Clock, Only You, Roll over Beethoven, Rock and Roll Music, Back in the USA, Carol, Tutti Frutti ou Sweet Little Sixteen? E, afinal, quem no se lembra de figuras como James Dean smbolo mximo da contestao dos rebeldes sem causa ou Elvis Presley, que, com sua voz sensual e seus requebros audaciosos, fazia muita moa desmaiar nas primeiras filas da platia de seus shows? Esta era a poca do rock-n-roll. Ainda que feito por msicos mais velhos, o rock-n-roll dos anos 50 j tinha um pblico certo e definido: a juventude branca rebelde e com uma forte conscincia de idade. Ao mesmo tempo, este tipo de msica operava uma vigorosa e expressiva sntese de msica branca e msica negra. Por outro lado, deste filo musical que surge toda uma sucesso de danas e ritmos tais como o twist, o Madison, o Watusi, o hully gully, o surf, o jerk e assim por diante.28

Foi, finalmente, este som do rock-n-roll que acompanhou e embalou o dia-a-dia de uma juventude que ento comeava a descobrir a fora e o alcance de seu potencial de contestao. Mas o rock dos anos 60 no apenas levaria toda esta histria adiante como tambm traria dados novos. Um deles e que no era de pequena importncia refere-se a uma maior aproximao de idade entre os compositores e/ou intrpretes e o pblico da msica jovem. Ao contrrio do rock-n-roll, criado para jovens por msicos mais velhos, o rock dos anos 60 era um tipo de msica feito por jovens e para jovens. Desta forma, para aqueles que ainda no acreditavam que a juventude havia se tornado uma poderosa fora social, a estava a msica a evidenciar ruidosamente este fato novo. Diante do grande nmero de intrpretes, compositores e grupos que compem o mundo do rock internacional, difcil saber quem apontar no sentido de reavivar um pouco desta histria. Entretanto, uma coisa certa: h trs nomes que iniciaram, pelo menos em suas grandes linhas, esta verdadeira revoluo cultural que a msica rock dos anos 60 sintetiza, constituindo-se, assim, em referncias obrigatrias para quem quiser evocar o esprito desta poca. So eles: Os Beatles, Bob Dylan e os Rolling Stones. De ambos os lados do Atlntico, o trabalho destas pessoas abria novos caminhos para a msica. Mas, alm disso, elas eram capazes, principalmente, de encarnar a revolta e as aspiraes de toda uma juventude rebelde que via na aliana entre Arte, comportamento e contestao uma nova possibilidade de expresso e sustentao de sua identidade. No comeo da dcada de 60, na cidade operria de Liverpool, Inglaterra, quatro rapazes colocavam no ar sua msica eletrizante. Eram eles John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. Rapidamente, a palavra Beatles passava a significar no apenas msica, mas, especialmente, todo um novo estilo de vida que, ao lado de novos comportamentos, inclua tambm humor, inveno, novas roupas e at mesmo um novo corte de cabelo. Aos poucos, uma verdadeira beatlemania tomava conta29

da juventude, o que evidentemente era acompanhado de perto pela indstria da comunicao de massa. Certamente no era toa que, em 1966, Lennon afirmava: Somos mais populares que Jesus Cristo. Afinal de contas, apenas um ano antes, eles haviam sido condecorados pela rainha da Inglaterra, fato que provocou uma enorme onda de protestos na tradicional Cmara dos Lordes. J desde 1956, Lennon e Paul McCartney tocavam juntos no conjunto The Quarrymen, que o primeiro havia organizado naquele ano. Em 1958, era a vez de George Harrison se juntar ao grupo, que, agora, passava a se chamar The Silver Beatles. Em 1961, era contratado o empresrio Brian Epstein, que, durante todo seu contrato com o conjunto, foi o responsvel por uma certa orientao disciplinadora e pelo constante reparo da imagem pblica do grupo, o que se constituiu numa fonte freqente de conflitos. Brian sempre demonstrou, por exemplo, grande preocupao com as roupas e a aparncia do grupo, tendo praticamente inventado os terninhos e o corte de cabelo dos Beatles. Conforme declaraes do prprio Lennon, em 1971: Brian literalmente limpou a nossa imagem. Havia brigas homricas porque eu me recusava a me embonecar. Ele e Paul formaram at uma espcie de aliana para me manter na linha: eu estava sempre sujando a imagem dos Beatles. Em 1962, Ringo Starr vinha se juntar aos outros trs, ocupando o lugar do baterista Pete Best, e causando por isso enormes protestos por parte das fs do baterista anterior, as quais, nas apresentaes, gritavam frases como: Pete is best e Pete Best Forever Ringo never!. Estava assim formado o conjunto que, segundo a declarao do crtico do jornal Sunday Times, de Londres, reunia os maiores compositores, desde Beethoven. Em outubro de 1962, surge o primeiro grande sucesso dos Beatles: lanado o compacto de Love Me Do. Em janeiro de 1963, o grupo lanava o seu primeiro LP: Please Please Me. Estava no ar o Liverpool Sound. Em novembro do mesmo ano, o conjunto se apresentava para a Famlia Real, no Royal Variety Show, e, rapidamente, se tornava o assunto do momento em todo o mundo. Foi nesta apresentao que Lennon, com seu humor crtico, convidou30

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a platia a participar do espetculo dizendo: Quem estiver nos lugares mais baratos, bata palmas; os outros, nos assentos mais caros, apenas agitem suas jias. No mesmo ano, depois de vrias apresentaes por toda a Inglaterra, provocando verdadeiras reaes de massa com jovens gritando e desmaiando, o conjunto batia um recorde: o LP With the Beatles chegava s lojas com mais de 250 mil pedidos antecipados, s na Inglaterra. A partir da, os Beatles seguiam sua enorme carreira de sucesso. Uma vez conquistado o Reino Unido, partiam agora para a conquista dos Estados Unidos. Em 1964, o conjunto recebido por mais de dez mil fs no aeroporto Kennedy, em Nova York. Alm disso, aparecem no Ed Sullivan Show e so assistidos por mais de setenta milhes de pessoas. Suas apresentaes no Washingtons Coliseu e no Carnegie Hall so um estrondoso sucesso. No mesmo ano, o filme A Hard Days Night (que, no Brasil, recebeu o ttulo de Os Reis do l-l-l) um enorme sucesso de pblico e crtica. Em 1965, a vez do lbum e do filme Help. Ainda neste ano, o grupo lana o disco Rubber Soul, que vai marcar o comeo de sua maior sofisticao na faixa Norwegian Soul*, por exemplo, George Harrison, crescentemente interessado pela ndia, fazia uso da citara. O ano de 1967 marca o comeo de uma srie de modificaes na vida e na produo do grupo. Em agosto, o empresrio Brian Epstein se suicida. A partir deste mesmo ano, passam a trabalhar apenas em estdio a ltima apresentao ao vivo havia sido em So Francisco, em agosto de 1966. O misticismo e, especialmente, a aluso ao uso de drogas comeavam a aparecer no trabalho do grupo. Assim, por exemplo, A Day in the Life tem sua execuo proibida em estaes americanas e inglesas por referncia direta a drogas. O ano de 1967 foi uma poca de grande influncia oriental, atravs principalmente do contato com o Maharishi o guru da Meditao Transcendental. No ano seguinte, os Beatles ainda se encontrariam na ndia estudando meditao com o* O correto Norwegian Wood (nota do digitalizador) 32

mesmo Maharishi. Em junho de 1967, surgia o LP SGT Peppers Lonely Hearts Club Band verdadeiro marco na histria dos Beatles, que praticamente inaugura a era do experimentalismo eletrnico na msica popular contempornea , cuja faixa Lucy in the Sky with Diamonds trazia as iniciais LSD, as mesmas que identificavam o alucingeno responsvel pelas grandes viagens daquele momento. Em dezembro deste mesmo ano, lanado o filme Magical Mistery Tour, que foi duramente criticado. Por esta poca, cada um dos Beatles comeava a se tornar mais independente um do outro, ao mesmo tempo que suas posies individuais iam tomando rumos cada vez mais especficos: o agressivo ativismo poltico radical e inovador de Lennon, o carisma romntico e pragmtico de Paul, o orientalismo psicodlico de Harrison ou o humorismo simptico de Ringo. No ano de 1968, apareciam, entre outras produes, o desenho Yellow Submarine e o disco Hey Jude, primeiro lanamento da gravadora Apple, de propriedade do grupo. Em 1969, o casamento de John Lennon com Yoko Ono representante do mundo da Arte Experimental nova-iorquino significava mais um passo no reforo dos caminhos individuais de cada um dos Beatles. Por sua vez, os desentendimentos entre Paul e John aumentavam. Mas, apesar de tudo, ainda um grande sucesso: em agosto de 1969, surge Abbey Road, o ltimo LP do conjunto. Ainda um fato importante marcava a vida do grupo neste ano: em novembro de 1969, John Lennon devolvia a condecorao recebida da rainha, em 1965, em protesto pelo envolvimento britnico no Vietn e na Biafra. estria do filme Let It Be, nenhum dos quatro Beatles comparecia. Em dezembro deste mesmo ano, Paul McCartney pedia, na justia, a dissoluo legal dos Beatles. Com eles, encerravase uma poca. No mesmo ms de dezembro de 1970, em uma entrevista concedida ao jornal Rolling Stone, John Lennon, fazendo um balano das transformaes causadas por toda a revoluo da contracultura daqueles anos 60, afirmava:33

Eu acordei pra isso tambm. O sonho acabou. As coisas continuam como eram, com a diferena que eu estou com trinta anos e uma poro de gente usa cabelos compridos.

Fim de um grupo, fim de uma dcada e fim de um sonho. Na sua composio God, tambm desta poca, o mesmo tom era reafirmado:O sonho acabou o que que eu posso dizer? O sonho acabou ontem, eu era um fabricante de sonhos mas agora eu nasci novamente Eu era o leo-marinho mas agora eu sou John E ento, meus amigos, Vocs tm de continuar O sonho acabou.

Juntos desde o comeo dos anos 60 e fiis representantes daquele momento, no era toa que os Beatles se separavam. Como se pode avaliar pelas afirmaes de Lennon, havia uma marca de desencanto no ar. Entretanto, se a separao daquelas quatro figuras que tanto haviam influenciado a juventude dos anos 60 tinha um pouco a ver com aquele clima de desencanto, ela no deixava de apontar para um novo momento que mais uma vez se traduziria no trabalho individual de cada um deles a partir dali. Nos Estados Unidos, tambm desde o comeo dos anos 60, um outro nome marcava a msica da dcada. Era Robert Zimmerman ou, como bem mais conhecido, Bob Dylan, que, em 1960, com apenas 19 anos, trocava seu estado natal de Minnesota pelo j famoso bairro de Greenwich Village, em Nova York, uma das cenas privilegiadas de toda a movimentao do underground americano. Ao longo de sua trajetria nas dcadas de 60 e 70, Dylan desempenhou o papel de uma figura extremamente polmica, capaz de gerar os protestos mais radicais por parte de seu pbli34

co, ao mesmo tempo em que era tomado como um verdadeiro mito. Cantor folk, porta-voz da Nova Esquerda americana, guru dos hippies, inovador do rock, estes so alguns dos rtulos com que ele teve que se defrontar naqueles anos quentes e difceis. De um modo ou de outro, o fato que Dylan alcanava um sucesso estrondoso, no apenas como artista mas, basicamente, como um dos lderes de toda uma gerao. Sua chegada a Nova York, no comeo da dcada de 60, havia significado um encontro radical e duradouro com a msica folk, ao mesmo tempo que lhe facilitava um contato mais direto com todo o mundo pop que ento se concentrava especialmente no Village. por volta desta poca, por exemplo, que Dylan se encontra com Woody Guthrie seu verdadeiro dolo , que, algum tempo depois, lhe faria este enorme elogio: Pete Seeger um cantor de msicas folk, Jack Elliot um cantor de msicas folk; mas Bob Dylan um cantor folk. dentro das estruturas da msica folk americana que Dylan vai construir o seu LP de estria intitulado Bob Dylan , lanado em maro de 1962, alguns meses antes do lanamento do primeiro sucesso dos Beatles. O disco inclua composies do prprio Dylan, bem como canes de velhos compositores de blues e outras que variavam do mais tradicional ao mais moderno folk. O seu segundo LP, The Freewheelin Bob Dylan, lanado em maio de 1963, evidenciava o desenvolvimento de seu trabalho. por volta deste momento que Dylan comea a se afirmar como o porta-voz da Nova Esquerda, como o grande cantor da protest song. deste LP, por exemplo, a cano Blowing in the Wind, que se tornou verdadeiro hino do Movimento dos Direitos Civis que se estruturava com mais vigor naquele momento, e diante do qual Dylan, ao lado de Joan Baez, desempenhava um papel de frente. Assim, ambos participam, em Washington, por exemplo, em agosto de 1963, da Marcha dos Direitos Civis. neste mesmo ano, em julho, no Newport Folk Festival, que ele se afirma definitivamente, ao lado de nomes j consagrados como Pete Seeger, Peter, Paul and Mary e mesmo Joan Baez.35

Emerge, assim, deste Festival, como uma das grandes vozes do novo movimento juventude/folk. As declaraes de Dylan e Baez imprensa reforam suas posies e lideranas. Minhas canes protestam contra a guerra, contra as bombas e os preconceitos raciais, contra o conformismo, dizia Bob Dylan. De sua parte, Joan Baez afirmava: H coisas que me chocam profundamente: o assassinato de crianas por poeira radioativa ou o assassinato dos espritos pela segregao racial. Gosto de cantar e no posso esquecer tudo isso quando canto. O seu terceiro LP, The Times They Are A-Chan-gin, de janeiro de 1964, s vem reafirmar o fato de que, j bem mais do que um msico, Dylan havia se convertido num verdadeiro caminho a seguir para uma juventude que via nas suas canes a denncia das mazelas e contradies de uma sociedade que se afirmava como o reino absoluto da liberdade e da qual, cada vez mais, o jovem americano desconfiava abertamente. Mas o ano de 1964, na trajetria de Bob Dylan, representaria um momento de virada. Dos temas sociais e polticos mais explcitos, passava agora a explorar especialmente aqueles referentes ao amor e ao seu mundo interior; e tudo isto, diga-se de passagem, com o mesmo pique inovador e revolucionrio de antes. Mas o pblico no aceitaria assim to facilmente a mudana de orientao daquele que se havia convertido num autntico lder e iria protestar ruidosamente. O LP Another Side of Bob Dylan, lanado em agosto de 1964, trazia uma msica intitulada Mr. Tambourine Man, cantada no Newport Folk Festival daquele ano, que efetivamente significou um divisor de guas. Nela, Dylan tematizava a liberdade de esprito e, acima de tudo, os efeitos das viagens de drogas. Se antes havia se tornado o arauto da Nova Esquerda, agora o pblico mais especfico que conquistava eram os hippies. Em maro de 1965, surgia o LP Bringing It All Back Home, no qual Dylan, retomando os caminhos do rock, partia para o que se comeava a chamar de folk-rock. Esta retomada do rock lhe custaria, por exemplo, a perda do apoio de Joan Baez. Cada vez mais,36

suas novas posies apareciam, para o seu pblico de esquerda mais tradicional, como uma verdadeira traio ao movimento de contestao. O acidente de motocicleta sofrido por Dylan pouco depois do surgimento de seu lbum Blonde on Blonde (1966) o afasta por um ano e meio das gravaes e das apresentaes em pblico. Ironicamente, foi durante esta ausncia prolongada e involuntria que aquela parcela da juventude universitria engajada conseguiu se desvencilhar de seus preconceitos com relao msica rock. Entretanto, isto no seria capaz de pacificar inteiramente as relaes de Dylan com o pblico e mesmo com a crtica. Sua vontade de questionar e de inovar era bem maior que a preocupao com um sucesso fcil e garantido. no histrico ano de 1968, no ms de janeiro, que Dylan faz sua rentre, depois daquele ano e meio de ausncia. O LP intitulava-se John Wesley Harding e trazia a marca de um grande despojamento com msicas cantadas numa voz tnue, suave. Trabalho que, pela negao de toda complexidade ou radicalismo, era uma verdadeira volta s razes e simplicidade, opondo-se diametralmente linha do rock progressivo, experimental, que havia se consolidado durante seu afastamento mas que rapidamente comeava a dar mostras de desgaste e empobrecimento. Fechando o disco, duas msicas country. Aqui no se pode esquecer a conotao fortemente reacionria que tinha a country music, voltada para o interior, para o campo, para o mundo dos pequenos camponeses e freqentemente apropriada pela mentalidade conservadora das classes dominantes. E Dylan sabia muito bem de tudo isso. Mais do que apenas uma nova experincia musical, este seu trabalho investia vigorosamente contra sua imagem de mito, de guru, de quem se esperam respostas a todas as perguntas, imagem esta que o pblico, apesar dos desencontros, insistia em cultivar diante dele. Nessa mesma linha situa-se o LP Nashville Skyline, de abril de 1969. Mas sua grande performance de questionamento diante do pblico teria lugar no Festival da Ilha de Wight, na Inglaterra,37

em agosto de 1969, fechando a turbulenta dcada de 60. Recusando a imagem do gnio mstico e revolucionrio, ele, provocativamente, se apresentou como algum prspero, elegantemente vestido, tudo isto acompanhado de uma interpretao amena e discreta. O pblico reagia indignado. No entanto este ainda no era o ponto mximo de indignao que ele seria capaz de provocar. Em junho de 1970 era a vez do polmico lbum duplo Self Portrait, uma dose talvez excessiva, mesmo para Dylan, de convencionalismo. Ainda neste mesmo ano, e numa espcie de correo de rota, ele grava New Morning, de certa forma uma reutilizao no seu trabalho de uma contestao mais explcita, mais evidente. Este disco lhe valeu da revista Rolling Stone, que havia criticado duramente seu trabalho anterior, o seguinte comentrio: Dylan nos pertence de novo! Durante o ano de 1971, dois trabalhos em que ele revisita com mais freqncia seu passado: Watchin the River Flow e More Gratest Hits. tambm deste ano o lanamento do livro Tarntula, reunindo diversos textos seus. Os anos de 1972 e 1973 foram, para Dylan, um perodo de atividades mais tranqilas e discretas. J em 1974, ele no apenas volta a se apresentar em pblico com grande freqncia realizando, por exemplo, uma grande e bem-sucedida tourne pelos Estados Unidos , como lana um de seus grandes sucessos de pblico e de crtica: o LP Planet Waves. Porm, mais importante do que o sucesso deste seu trabalho era o fato dele evidenciar a extraordinria capacidade de Dylan no sentido de trabalhar simultaneamente com as diversas variantes contidas em sua criao musical. E, desta forma, Planet Waves fazia um pouco a ponte entre as vrias facetas de sua controvertida trajetria artstico-musical: de arauto da Nova Esquerda a guru dos hippies, passando por fonte de indignao generalizada de todas as partes. Mas, por esta poca, j ia longe o tempo ureo da contracultura e, talvez at mesmo por isso, fosse agora possvel este tipo de sntese da parte de algum que viveu to intensamente as propostas e os conflitos de seu momento. Pelos anos afora,38

o trabalho de Bob Dylan vem continuando, de uma maneira ou de outra, a desempenhar o papel constante de um verdadeiro marco na msica internacional. Voltando Inglaterra, nos defrontamos agora com a violenta fria revolucionria de um grupo que certamente marcou como poucos uma poca no apenas na msica, mas tambm na cultura: os Rolling Stones. Quem no se lembra, por exemplo, do incrvel sucesso de Satisfaction, em meados da dcada de 60? Mas este um fato pequeno se comparado histria deste grupo que hoje, nos anos 80, j atingiu sua maioridade. Para muita gente, os Rolling Stones so a figura de Mick Jagger. Seu jeito agressivo e provocador fez de sua imagem a marca registrada dos Stones e, aos poucos, ele foi se tornando a figura central do grupo. Quando os Beatles j faziam grande sucesso na Inglaterra, os Rolling Stones ainda no eram conhecidos. No entanto, a rpida ascenso da banda de Liverpool no deixava de ser til aos Stones, embora este grupo trilhasse um caminho prprio e bastante diferente daquele seguido pelos Beatles, com seu discreto ar de bons moos. Ao contrrio, a imagem dos Rolling Stones era de uma rebeldia agressiva, alucinada, at mesmo temvel. Homossexualismo, uso de drogas, escndalos, acidentes nos shows, conflitos e choques com autoridades, estes so alguns dos ingredientes de uma imagem que traduzia a fria radical da contestao de uma parcela da juventude internacional. O perodo de formao do grupo vai de mais ou menos 1960 ano em que Mick Jagger e Keith Richards se encontram num trem e conversam sobre sua paixo comum pelo rhythm and blues a 1962, quando, em julho, ainda sem todos os nomes que fariam a fama do grupo, ele se apresenta ao vivo pela primeira vez, no clube Marquee, em Londres, com o apoio de Alexis Korner, que, naquela poca, liderava uma importante blues band chamada Blues Incorporated. Durante o segundo semestre de 1962, numa srie de idas e vindas, o grupo vai tomando sua forma mais definitiva e, em janeiro de 1963, estava assim constitudo: Mick Jagger, Bill Wyman, Keith Richards, Brian Jones, Charlie Watts e, fi39

nalmente, lan Stewart, que logo deixaria o grupo, voltando apenas para eventuais encontros e gravaes. Ao longo de praticamente vinte anos, os Rolling Stones vm produzindo um trabalho que inclui numerosos discos, alguns filmes e uma incrvel performance no palco capaz de abalar qualquer platia. O ano de 1963 marcou, efetivamente, o incio de carreira dos Stones. Foi em abril que Andrew Loog Oldham os viu pela primeira vez. Uma semana depois, ele assinava um contrato para empresariar o grupo. A partir da, inicia-se um verdadeiro turbilho de atividades. No espao de apenas seis semanas que se seguiram, os Stones conseguiram um contrato de gravao com a Decca e um compacto simples Come on. Tambm por essa poca fazem sua primeira apresentao na TV. De setembro a novembro realizam uma excurso por toda a Inglaterra e, pouco antes do final da tourne, surgia um novo compacto: I Wanna Be Your Man. No ano seguinte, 1964, o grupo j estava plenamente afirmado, com enorme sucesso e uma imagem definida. Surgia o primeiro lbum: The Rolling Stones. E o ano seguiu realmente cheio de atividades e eventos: apresentaes no palco e TV, tournes dentro e fora da Inglaterra e encontros memorveis. Em uma de suas duas viagens realizadas aos Estados Unidos naquele ano, o grupo, durante uma gravao no Chess Studios, de Chicago, encontra-se com Chuck Berry, Muddy Waters e Willie Dixon. Ainda um fato importante: sua apresentao no Ed SuIlivan Show, naquele mesmo ano, desencadeou tal histeria na audincia do estdio que eles no puderam mais aparecer por l. Alis, freqentemente, suas apresentaes ao vivo eram bastante tumultuadas, quase no se podendo nem mesmo ouvi-los. O pblico enlouquecia, atirava objetos sobre o palco, destrua os teatros. As tournes por diversos pases continuaram em 1965. Alis, elas sempre foram uma constante na vida do grupo. Naquele ano foi a vez, por exemplo, da Austrlia, ustria, pases da Escandinvia, Alemanha, Frana, Irlanda e, novamente, os Estados Unidos. Um novo LP, intitulado Out of Our Heads, trazia um dos40

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grandes sucessos dos Stones: a composio (I Cant Get No) Satisfaction. Por essa poca, Jagger e Richards comeam a compor suas prprias canes. A primeira delas, The Last Time, vai aparecer em LP do ano seguinte. 1966: novamente vrias tournes pela Europa e Estados Unidos. Quanto aos LPs, dois merecem destaque: Aftermath, com a famosa faixa Paint it Black, e Got Live If You Want It, onde aparece a referida cano The Last Time, de autoria de Jagger e Richards. O ano de 1967 no foi fcil para os Stones, tendo sido marcado pelo primeiro de uma longa srie de processos por uso de drogas. Keith Richards e Mick Jagger foram julgados e condenados a penas de respectivamente um ano e trs meses de priso. Foi enorme a reao de todo o mundo do rock e, em julho, a condenao de Richards era anulada e a Jagger era dada liberdade condicional. Era o primeiro grande affair envolvendo drogas e astros do rock de modo to aberto, com tanto espao na imprensa internacional. Logo foi a vez de Brian Jones, condenado a nove meses de priso. Sai sob pagamento de fiana, mas acaba hospitalizado sob a alegao de exausto nervosa. O ano de 1967 foi de LPs como Between The Buttons, Flowers e, finalmente, Their Satanic Majesties Request, que foi a primeira e ltima grande incurso dos Stones na onda da msica psicodlica. Em 1968, o grupo produzia dois LPs de enorme sucesso: Jumpin Jack Flash e Beggars Banquet, definido pela imprensa especializada como um dos maiores lbuns de rock-n-roll dos anos 60, e que trazia duas faixas que marcariam poca: Sympathy for The Devil e Street Fighting Man. Ao contrrio do ltimo LP de 1967 Their Satanic Majesties Request , bastante marcado pelo interesse de Brian Jones no uso de instrumentos eletrnicos, os dois de 1968 significavam a opo por um caminho diferente, onde, alis, Brian tinha pouca participao. a partir da, inclusive, que comeam a se evidenciar diferenas musicais fortes entre ele e o restante do conjunto. Por outro lado, suas dificuldades de relacionamento com o grupo e, especialmente, sua difcil convivn42

cia com o fato da liderana quase natural de Jagger terminam por isol-lo cada vez mais, at que viesse a deixar o grupo em junho do ano seguinte, sendo posteriormente contratado o guitarrista Mick Taylor. Mas o ano de 1969 seria bem mais tumultuado do que o afastamento de um dos componentes do grupo poderia fazer supor. Havia sido programado, para o dia 5 de julho, um grande concerto gratuito no Hyde Park. Apenas dois dias antes da data prevista para o show, uma tragdia abalava a vida dos Stones: Brian Jones aparecia morto em sua piscina, vitimado por um ataque de asma, segundo a verso que circulou oficialmente. No entanto, os rumores sobre um consumo constante e excessivo de drogas no cessavam. Apesar do abalo causado por aquela morte sbita, o concerto no deixou de ser realizado, tendo sido dedicado ao excompanheiro. 1969 foi tambm o ano dos trgicos episdios de Altamont, registrados no referido filme Gimme Shelter, que estreou na Inglaterra em 1971. tambm deste ano de 1969 o LP Let It Bleed, ttulo que, traduzido, significa deixa sangrar. Em 1970 aparecia o fime Ned Kelly, que contava com a participao de Mick Jagger e, em 1971, era a vez de Performance, novamente com ele. Tambm neste ano de 1971 surgia a Rolling Stones Records, cujo smbolo era o desenho de uma enorme lngua. O primeiro LP a aparecer com o novo selo foi Sticky Fingers. A partir de ento, todos os discos do grupo seriam produzidos pela Rolling Stones Records. Foi tambm em 1971 que se deu o polmico casamento de Mick Jagger com a nicaragense Bianca Perez Morena de Macias, a partir de ento simplesmente Bianca Jagger. Muitos se perguntavam como era possvel que uma figura to radical e contestadora do mundo do rock como Mick Jagger fosse capaz de se submeter s regras de uma cerimnia de casamento que, afinal de contas, descontados alguns efeitos especiais, era igual a qualquer outra. Imediatamente, o casal passava a ocupar lugar de destaque no jet-set internacional, estando a imprensa atenta a sua presena, sempre notada em qualquer lugar. Sua separao definitiva, no entanto, viria a ocorrer em 1979, quando se43

divorciam tambm com grande alarde. Em 1972, surgia o lbum duplo Exile on Main Street. Novamente, tournes pelos Estados Unidos e tambm Canad. E cada apresentao era uma ocasio sempre renovada de verdadeiro delrio por parte do pblico. No ano de 1973, um fato marcante: devido s sucessivas acusaes de uso de drogas, os Stones tm sua entrada proibida no Japo e Austrlia, embora este ltimo pas logo volte atrs em sua deciso. Surgia o LP Goats Head Soup com a faixa Angie, que apareceria tambm em compacto simples. Em 1974, mais um remanejamento na estrutura do conjunto: Mick Taylor deixa o grupo que, posteriormente, incorpora Ronnie Wood, assumindo ento os Stones sua composio atual. Quanto aos LPs, era a vez de lts Only Rock-n-Roll. Passados mais de dez anos desde seu aparecimento, os Rolling Stones haviam alcanado um lugar absolutamente prprio e incontestvel no mundo do rock internacional. E, num certo sentido, eram um grupo que resistia como poucos diminuio de intensidade da contestao da contracultura, que, por essa poca, j dava mostras evidentes de desintegrao como movimento. Ao longo da dcada de 70 e mesmo entrando agora na de 80, os Rolling Stones seguem com seu trabalho musical, registrando uma longa srie de lbuns realmente incrveis. Eis alguns: Black and Blue (1976), Love You Live (1977), Some Girls (1978), Emotional Rescue (1980), Tattoo You (1981). E o flego do conjunto, assim como o de seu pblico cativo, no parece diminuir com o passar do tempo muito pelo contrrio. Mas, apesar da fora e da importncia do papel que tiveram grupos como os Beatles e os Rolling Stones ou um compositor/intrprete do porte de Bob Dylan, o panorama da msica jovem dos anos 60 e comeo dos 70 certamente engloba uma quantidade incrvel de outros nomes que seria difcil listar aqui. The Mamas and The Papas, Gnesis, Yes, Deep Purple, Led Zeppelin, Queen, Animais, The Who, Pink Floyd, Mothers of Invention, Jethro Tull, so apenas algumas referncias dentro de uma enor44

me srie. No entanto, h dois nomes que, pelo impacto que causaram no curto espao de suas carreiras, exigem um registro especial: Jimmy Hendrix e Janis Joplin. Foi no Festival de Monterey, nos Estados Unidos, em 1967, que eles fizeram sua explosiva apario e, em 1970, num perodo de quinze dias, ambos morriam. Tanto num caso como no outro eram mortes que, de uma certa maneira, significavam a angustiante explorao quase obrigatria dos limites do seu tempo. Em entrevista revista Esquire, no ano de 1968, no auge da fama, Janis Joplin declarava: Talvez eu no dure muito tempo, mas, se eu me controlo, no vou servir para nada, agora. Esse mesmo sentido de urgncia diante do momento presente, de valorizao extrema do aqui e agora marcou a atuao de Jimmy Hendrix. Enquanto Janis Joplin interpretava os sentimentos da poca atravs de seus blues, cantados com voz rouca e lancinante chegando mesmo a ser tida como a cantora favorita dos Hells Angels , Hendrix o fazia atravs de uma habilidade toda especial no uso da guitarra eltrica. Nas suas mos, todos os sons possveis e impossveis deste instrumento eram radicalmente explorados, incluindo-se mesmo o uso deliberado da distoro como elemento musical. Era a msica eletrnica no seu desenvolvimento mximo, a nvel da msica popular. Nas palavras de Lus Carlos Maciel, a guitarra eltrica, em Jimmy Hendrix, no apenas um novo som: uma nova experincia existencial que exige, para que se estabelea uma comunicao efetiva, uma alterao profunda na prpria maneira de viver do ouvinte, nos prprios valores que norteiam seu comportamento e no seu prprio sistema nervoso. Uma excelente amostra de tudo isso que vem sendo dito , por exemplo, sua apresentao no Festival de Woodstock, nos Estados Unidos, no ano de 1969, quando, em dado momento, Hendrix inicia uma longa improvisao com a guitarra a partir do tema de Star Spangled Banner, o hino dos Estados Unidos. Pouco a pouco, atravs de um som violento e angustiado, a melodia vai sendo literalmente estraalhada, dissolvida e, em seguida, sem45

nenhuma interrupo, ele comea a tocar o Purple Haze, uma de suas composies mais clebres, com enorme suavidade e delicadeza, numa tentativa de contrapor, desintegrao do hino nacional americano, um novo hino da contracultura. Ainda uma vez Lus Carlos Maciel que chama a ateno para a expressiva ligao entre Hendrix, de um lado, e o rock e a contracultura, de outro. Do ponto de vista estritamente musical, a obra de Hendrix encerra a grande lio cultural do rock. Foi essa msica que praticamente estabeleceu o mtodo fundamental de criao da contracultura. Consiste basicamente em recolher o lixo da cultura estabelecida, o que , pelo menos, considerado lixo pelos padres intelectuais vigentes, e curtir esse lixo, lev-lo a srio como matria-prima da criao de uma nova cultura. Misticismo irracionalista, filosofia oriental, astrologia, especulao metafsica, hedonismo primitivista etc, geralmente considerados bobagens infantis pelo melhor pensamento moderno, foram transformados nas principais disciplinas da academia do underground. Principalmente durante a segunda metade da dcada de 60, os grandes acontecimentos musicais da contracultura foram os festivais. Reunindo um nmero enorme de grupos, compositores e intrpretes e, obviamente, um pblico gigantesco , esses happenings musicais eram uma ocasio nica para o encontro daqueles que, s vezes desesperadamente, tentavam criar um mundo novo que fugisse aos limites do Sistema. Foram inmeros esses festivais e tiveram lugar, especialmente, nas mais diferentes cidades dos Estados Unidos e da Europa. No entanto, pelo menos dois deles, pela importncia que tiveram enquanto marcos no apenas da msica, mas do movimento de contracultura como um todo, exigem uma referncia especial Woodstock e Altamont. Por razes diversas mas, possivelmente, com igual impacto sobre o momento, ambos extrapolaram de muito as fronteiras da msica e marcaram poca na histria do movimento de rebelio da juventude internacional. Ambos os festivais se realizaram no ano de 1969, tendo resultado em filmes {Woodstock e Gimme Shelter) igualmente46

incrveis e que no podem deixar de ser vistos por algum que queira entender por dentro um pouco daquele tempo. No entanto, h uma diferena profunda entre eles: enquanto o festival de Woodstock representou a realizao, aqui e agora, da utopia do peace and love, pelo clima de tranqilidade e alegria em que transcorreu, Altamont, ao contrrio, apontou para a destruio, para o fim da chamada era de Aquarius, pelo tom agressivo e pelos episdios de violncia sangrenta que o marcaram, culminando com o assassinato de um negro pelos Hells Angels. Nas palavras de Abbie Hoffman, um dos nomes obrigatrios da contracultura norte-americana e autor de um livro sobre um desses festivais, intitulado Woodstock Nation, o clima daquele encontro foi assim descrito: Se eu tivesse que resumir a experincia de Woodstock, eu diria que foi a primeira tentativa de aterrissar um homem na Terra. Realmente, o que se configurou durante aqueles trs dias foi a nao de Woodstock, um outro pas, um outro mundo, onde o lema proibido proibir, do Maio de 68 francs, foi posto em prtica de verdade, num ambiente psicodlico, com muita msica (nomes como Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Ten Years After, Santana, Richie Havens, Joan Baez, Joe Cocker etc. etc), muita alegria, onde meio milho de pessoas formavam uma verdadeira comunidade, no melhor estilo da filosofia hippie da poca. J Altamont, ao contrrio, realizado quatro meses depois de Woodstock, em dezembro de 69, no teve a mesma sorte e se configurou como um dos momentos mais negros da utopia da contracultura, deixando no ar um forte sentimento de frustrao, perplexidade e fracasso. assim que Maciel, em texto escrito na poca, intitulado O Fracasso da Contracultura, comenta o festival: Para comemorar uma bem-sucedida excurso pelos Estados Unidos que lhes rendeu mais de um milho de dlares, os Rolling Stones resolveram oferecer um concerto de graa aos fs da Califrnia, onde alta a percentagem de hippies e afins. Escolheram Altamont, que fica a quarenta milhas de San Francisco, contrataram alguns47

grupos famosos para os nmeros de abertura (Santana, Grateful Dead, Jefferson Airplane etc.) e deram aos Hells Angels, a assustadora gang de motociclistas, um caminho cheio de cerveja como pagamento por seus servios como guarda de segurana. Compareceram cerca de trezentas mil pessoas e o desastre foi total. O congestionamento de trfego transformou a rea num verdadeiro inferno. Alm do cido e da maconha, e ao contrrio do que aconteceu em Woodstock, as bebidas alcolicas e as bolinhas de anfetamina tiveram um amplo consumo. A violncia estourava a cada momento, em discusses e brigas sangrentas. Chamados de fascistas pelo pblico, os Angels espancavam quem pintasse na frente. Quatro pessoas morreram: uma afogada e duas atropeladas pelos automveis irritados. O restante, um estudante negro chamado Meredith Hunter, foi esfaqueado por um Angel no momento em que apontava um revlver na direo do palco, enquanto Mick Jagger cantava os versos escabrosos de Sympathy for the Devil. (...) A euforia criada por Woodstock era forte demais e 1970 foi, de acordo, um ano carregado de otimismo. Mas a gua continuava a rolar sob a ponte e o prprio Woodstock teria de ser esquecido. Aquele sonho colorido no poderia durar para sempre e, na falta de novas felizes confirmaes, Altamont foi ressuscitada com seus sombrios significados, como um despertar cruel para a dura realidade. Ficava assim evidenciada a presena da violncia, do dio, enfim, da contra-utopia no interior da prpria contracultura. E a presena marcante dos Hells Angels nos episdios de Altamont s corroborava ainda mais esta evidncia. Este grupo era uma organizao direitista e extremamente violenta que surgiu na Califrnia, nos Estados Unidos, mas que se estendeu por vrios pases da Europa. Declaradamente fascistas, com um comportamento pautado pela intolerncia e autoritarismo, o grupo sempre chamou ateno pelo uso ostensivo de capacetes, susticas e medalhas sobre seus bluses de couro negro. Mas, com todas suas contradies, estes e outros festivais de msica foram, talvez, os grandes momentos de atualizao da48

utopia da contracultura: da transformao, da revoluo aqui e agora. E, para isso, a msica, ou melhor, o rock desempenhou um papel fundamental. Sobre o show de rock, Billy Mundi, do conjunto Mothers of Invention, afirma o seguinte: No espetculo convencional, o artista procura fazer que o pblico se identifique com ele e nele se anule. uma tcnica reacionria. No rock so os msicos que devem se identificar com o pblico e se anular no pblico. um sentimento revolucionrio. O som amplificado, que corta toda possibilidade de comunicao no s com a pessoa ao lado mas de cada pessoa consigo mesma. As luzes relampejantes, que diluem as relaes de espao e anulam a capacidade de orientar-se segundo o hbito embrutecedor do espao tridimensional. Ento tudo explode. Explode a segurana que o Sistema oferece. Explode a segurana que oferecem a rotina e os hbitos, aceitos passivamente porque so mais cmodos e ajudam a sobreviver. O homem se encontra consigo mesmo e ao mesmo tempo confundido com uma multido infinita de outros homens. No somos gente de espetculo, no fazemos espetculo. Somos apenas provocadores de um rito. No grande rito da contracultura, que o rock ajudava a encenar, um grupo tinha um papel absolutamente fundamental: eram os hippies. Com seu mundo psicodlico, seus cabelos agressivamente compridos, suas roupas coloridas e exticas, enfim, com seu ar freak (estranho, extravagante), eles comearam a encher as ruas dos Estados Unidos, ou melhor, da Califrnia, j desde os primeiros anos da dcada de 60. E no preciso dizer que, de l, eles comearam a se espalhar pelo mundo inteiro, numa viagem longa e sinuosa. Era o flowerpower que comeava a ganhar seu lugar ao sol, com o aval de nomes nada desprezveis como Andy Warhol, Ginsberg, Thimothy Leary, Alan Watts, Mc-Luhan, Marcuse e tantos outros. Nas principais cidades dos Estados Unidos, certas partes ou mesmo avenidas convertiam-se, pouco a pouco, em verdadeiros centros de hippismo. o que ocorre, por exemplo, com HaightAshbury (em So Francisco), Sunset Boulevard (em Los Angeles),49

Old Town (em Chicago) ou East Village (em Nova York). Por outro lado, cidades como Londres e especialmente Amsterd, ou ainda outras marcadas por um trao qualquer de exotismo, como Katmandu, Marrakesh ou Cuzco, por exemplo, convertiam-se tambm, para desespero das autoridades locais, em verdadeiras mecas de um novo misticismo mundano. O final dos anos 50 e comeo dos 60, nos Estados Unidos, foram especialmente movimentados. A descrena no liberalismo visto, cada vez mais, como um mito, uma retrica que s protegia interesses , aliada ao crescente questionamento dos benefcios da sociedade industrial, constitua o pano de fundo das primeiras reivindicaes em torno dos direitos civis. O acirramento das lutas raciais, a crescente corrida armamentista e o incio da guerra do Vietn, por volta de 1963, vinham se acrescentar a este clima de descrdito e descontentamento. No entanto, o que marcava esta nova onda de protestos que comeava a tomar conta, principalmente, da sociedade americana era o seu carter de no-violncia. Mesmo no caso do movimento negro, apenas num segundo momento que ele assume uma ttica e um tom de maior agressividade diante, inclusive, da constatao da progressiva falncia da luta pacfica pelos direitos civis, nesse processo de radicalizao, por exemplo, que figuras como o pastor Martin Luther King (que viria a ser assassinado em 1968) vo aos poucos perdendo a hegemonia na luta anti-racismo para lderes e grupos com posies mais radicais, por volta de 1965, por exemplo, que surge o Black Panther Party, do qual Eldridge Cleaver, um importante lder negro que teve um papel de destaque na articulao de seu movimento com o protesto da juventude branca, foi o ministro de Informao. So desta poca as grandes marchas pacifistas contra a guerra ou pelos direitos do cidado, as passeatas hippies com seus slogans alegres, sua msica, suas cores e seus toques de orientalismo e os sit-ins dos jovens estudantes de universidades americanas e europias. Aumenta, nos Estados Unidos, a recusa ao pagamento de impostos, por parte daqueles que discordavam do destino50

dado pelo governo ao dinheiro pblico (guerra do Vietn, armas nucleares etc). Cresce a resistncia prestao do servio militar, ao alistamento e embarque para as frentes de combate, chegando-se, at mesmo, queima de cartes de recrutamento, numa clara demonstrao do repdio dos jovens norte-americanos guerra do Vietn. Aqui vale a pena lembrar acontecimentos como a pea Hair, um musical que tematizava, com todas as cores da poca, o drama da juventude diante da guerra do Vietn pea que foi transformada posteriormente em filme com trilha sonora de enorme sucesso e a figura do lutador de boxe Muhammad Ali, o Cassius Clay, que, em 1966, teve o ttulo de campeo cassado diante de sua recusa, por motivos poltico-religiosos, prestao do servio militar. No entanto, o grande fato a ser salientado, neste perodo, talvez seja a intensidade com que toda a agitao poltico-cultural de carter novo aglutinava grupos sob certos aspectos to diferentes como hippies, negros e aqueles estudantes que representavam os comeos de uma nova esquerda. E tudo isso, diga-se de passagem, com muito rock ao fundo, o som que, afinal de contas, havia realizado a mais radical fuso da msica branca com a negra. Mas no era apenas na msica que o clima da poca estava presente. impossvel esquecer, por exemplo, o cinema de Andy Warhol, artista que se converteu em um dos gurus do movimento hippie, destacando-se o seu Chelsea Girl filme fundamental para o hippismo. Tambm exige uma referncia especial o trabalho realmente revolucionrio do Living Theater, grupo teatral que consagrou internacionalmente os nomes de Julien Back e Judith Malina. At 1964, o grupo teve sua sede em Nova York; a partir desta data, em funo de problemas com as autoridades, passa a viver o exlio europeu, tendo estado no Brasil em 1971. Em perfeita sintonia com o projeto de revoluo cultural dos anos 60, um de seus espetculos trazia o famoso ttulo Paradise Now. Esse o contexto mais imediato no qual os hippies esto surgindo e se espalhando pelos quatro cantos do mundo, com seus slogans de um radicalismo bem-humorado como Faa Amor,51

No a Guerra, Paz e Amor ou com o curioso hbito, freqente nas suas passeatas e manifestaes, de distribuir flores s pessoas em volta, com um sorriso nos lbios, ao invs de gritar violentas e conhecidas palavras de ordem. assim que os hippies encarnavam, de modo bastante especial, a nova radicalidade de um determinado momento e de certos segmentos sociais. Por outro lado, no se pode esquecer que a dcada de 60, a nvel internacional, foi realmente um tempo de muita agitao, esperana e inovao nas formas de luta poltica. Basta lembrar, por exemplo, alguns dos grandes acontecimentos que se destacavam no panorama mais geral daquela poca, dentre os quais pelo menos trs exigem uma referncia especial: a Revoluo Cultural Chinesa, a resistncia popular vietnamita agresso armada dos Estados Unidos e a guerrilha de Guevara na Bolvia. Em todos estes casos, o que estava em jogo era a abertura de novos espaos de contestao poltica e de luta, com a surpreendente emergncia de novos vencedores num quadro de novas vitrias. Muito provavelmente, este era o dado que tanto fascinava a juventude da poca e lhe permitia, inclusive, uma identificao to forte com acontecimentos at certo ponto bastante afastados de seu cotidiano. Da mesma maneira, talvez por a que se deva compreender o prestgio e a popularidade, entre os jovens, de personagens como Mao Tse-Tung, Ho Chi Min e