ECOTÉCNICAS APLICADAS AO PROJETO URBANO · III ENECS - ENCONTRO NACIONAL SOBRE ED IFICAÇÕES E...

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III ENECS - ENCONTRO NACIONAL SOBRE EDIFICAÇÕES E COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS ECOTÉCNICAS APLICADAS AO PROJETO URBANO Patrícia Orfila Barros dos Reis ([email protected] ) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana/ Departamento de Engenharia Civil/ Universidade Federal de São Carlos/ UFSCar. Ricardo Siloto da Silva ([email protected] ) Prof. Dr. do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana/ Departamento de Engenharia Civil/ Universidade Federal de São Carlos/ UFSCar. RESUMO As cidades, cada vez mais, se constituem num desafio para os profissionais ligados ao planejamento urbano. O objetivo deste trabalho é abordar técnicas ambientalmente apropriadas de intervenção no meio ambiente, com vistas a nortear a implantação de cidades no âmbito do projeto urbanístico. O desenvolvimento metodológico do trabalho fundamentou-se na revisão da literatura clássica referente ao tema, bem como na análise de recentes documentos que abordam a questão da sustentabilidade ambiental, como é o caso da Agenda 21. A partir da coleta de dados foi possível cotejar e sistematizar princípios e propor diretrizes com fins aplicativos no projeto urbano. Foram utilizados os princípios do desenvolvimento sustentável e do bioclimatismo, tendo em vista a necessidade de conforto humano no ambiente construído. Além disso, foram abordados fenômenos resultantes do processo de urbanização, como o microclima urbano, a formação de “ilhas de calor” e outros, por meio de uma análise ecossistêmica da cidade. Desta forma, considera-se desejável a relação positiva entre as ações antrópicas e o meio natural que lhes dá suporte. Logo, o emprego de ecotécnicas tem o intento de minorar os efeitos negativos resultantes da forma predatória com que o homem se estabelece no espaço citadino, por meio da adequada interação entre a implantação de cidades aos fatores climáticos, topográficos, geomorfológicos existentes no meio urbano, a fim de propor um urbanismo bioclimático, com uso e ocupação do solo urbano dentro dos preceitos do planejamento ambiental. Palavras-chave: urbanismo bioclimático, projeto urbano, sustentabilidade, ecotécnicas. ECOTECHNIQUES APPLIED IN URBAN DESIGN ABSTRACT Cities have become a challenge to urban planning professionals. This paper aims to present environmentally adequate techniques of urban intervention to implement cities in the urban design. The methodological development of the research was based on a classical literature review, as well as on the analysis of recent documents, as agenda 21, concerning the environmental sustainability. From the data collection it was possible to compare and organize principles and propose applicable procedures for the urban design. The ideas of bioclimatism and sustainable development were used having in view the necessity of human comfort in the environment build in addition, phenomena resulting from the urbanization process, such as urban microclimate, heat islands effects and others, were observed by means of an ecosystemic analysis of the city. The positive relation between the anthropic actions and the natural environment which supports them is desirable. This the use of ecotechniques aims to minimize the negative effects resulting from the predatory way man establishes himself in the urban space by means of an adequate interaction between the implementation of cities and the climatic, topographic and geomorphological factors existing in the urban space. The use of such ecotechniques also aims to propose a bioclimatic urbanism by the utilization and occupation of urban soil according to the environmental planning principles. Keywords: bioclimatic urban planning, urban design, sustainability, ecotechniques.

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III ENECS - ENCONTRO NACIONAL SOBRE EDIFICAÇÕES E COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS

ECOTÉCNICAS APLICADAS AO PROJETO URBANO Patrícia Orfila Barros dos Reis ([email protected]) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana/ Departamento de Engenharia Civil/ Universidade Federal de São Carlos/ UFSCar. Ricardo Siloto da Silva ([email protected]) Prof. Dr. do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana/ Departamento de Engenharia Civil/ Universidade Federal de São Carlos/ UFSCar. RESUMO

As cidades, cada vez mais, se constituem num desafio para os profissionais ligados ao planejamento urbano. O objetivo deste trabalho é abordar técnicas ambientalmente apropriadas de intervenção no meio ambiente, com vistas a nortear a implantação de cidades no âmbito do projeto urbanístico. O desenvolvimento metodológico do trabalho fundamentou-se na revisão da literatura clássica referente ao tema, bem como na análise de recentes documentos que abordam a questão da sustentabilidade ambiental, como é o caso da Agenda 21. A partir da coleta de dados foi possível cotejar e sistematizar princípios e propor diretrizes com fins aplicativos no projeto urbano. Foram utilizados os princípios do desenvolvimento sustentável e do bioclimatismo, tendo em vista a necessidade de conforto humano no ambiente construído. Além disso, foram abordados fenômenos resultantes do processo de urbanização, como o microclima urbano, a formação de “ilhas de calor” e outros, por meio de uma análise ecossistêmica da cidade. Desta forma, considera-se desejável a relação positiva entre as ações antrópicas e o meio natural que lhes dá suporte. Logo, o emprego de ecotécnicas tem o intento de minorar os efeitos negativos resultantes da forma predatória com que o homem se estabelece no espaço citadino, por meio da adequada interação entre a implantação de cidades aos fatores climáticos, topográficos, geomorfológicos existentes no meio urbano, a fim de propor um urbanismo bioclimático, com uso e ocupação do solo urbano dentro dos preceitos do planejamento ambiental. Palavras-chave: urbanismo bioclimático, projeto urbano, sustentabilidade, ecotécnicas.

ECOTECHNIQUES APPLIED IN URBAN DESIGN

ABSTRACT Cities have become a challenge to urban planning professionals. This paper aims to present environmentally adequate techniques of urban intervention to implement cities in the urban design. The methodological development of the research was based on a classical literature review, as well as on the analysis of recent documents, as agenda 21, concerning the environmental sustainability. From the data collection it was possible to compare and organize principles and propose applicable procedures for the urban design. The ideas of bioclimatism and sustainable development were used having in view the necessity of human comfort in the environment build in addition, phenomena resulting from the urbanization process, such as urban microclimate, heat islands effects and others, were observed by means of an ecosystemic analysis of the city. The positive relation between the anthropic actions and the natural environment which supports them is desirable. This the use of ecotechniques aims to minimize the negative effects resulting from the predatory way man establishes himself in the urban space by means of an adequate interaction between the implementation of cities and the climatic, topographic and geomorphological factors existing in the urban space. The use of such ecotechniques also aims to propose a bioclimatic urbanism by the utilization and occupation of urban soil according to the environmental planning principles. Keywords: bioclimatic urban planning, urban design, sustainability, ecotechniques.

1. INTRODUÇÃO A tentativa de assumir-se um modelo de "homem universal" e reduzir a vida urbana a quatro variáveis: habitar, trabalhar, circular e cultivar o corpo e espírito foi um dos pontos de fragilidade do movimento moderno, que se inspirava em visões simplistas do urbano. O paradigma deste novo século emerge diante da tentativa de modificar essa visão fragmentada que tanto o urbanismo quanto a arquitetura adquiriram historicamente, passando a adotar um caráter holístico de investigação. Esse paradigma relacionado à mudança na maneira de encarar o fenômeno urbano é extremamente necessário para dar inicio a uma discussão com relação às perspectivas do projeto urbano enquanto parte do processo de planejamento. Por tanto, diante dessa releitura do urbano nos propomos a analisar as intervenções do homem no ambiente urbano do ponto de vista do projeto, ressaltando que estas intervenções não têm sido harmoniosas, concentrando problemas que vão desde o comprometimento da qualidade de vida de seus habitantes à deterioração dos recursos naturais. Desta insatisfação surgiu o interesse de identificar diretrizes gerais que possam nortear as práticas do projeto urbano, o que se convencionou chamar de ecotécnicas. São práticas técnico-científicas baseadas em princípios de manutenção e conservação da natureza, visando que as futuras intervenções sejam mais adequadas ao meio que se destinam. Acredita-se que essas diretrizes estejam intimamente ligadas à qualidade do ambiente e a uma maneira "intemporal" de construir que, segundo DEL RIO (1990), garanta a permanência da qualidade do projeto no tempo, conferindo a este certa universalidade. O que se pretende, adotando os parâmetros citados pelo autor, é repensar o projeto urbano, aqui entendido como parte do processo de planejamento e não como algo definitivo. A respeito deste posicionamento a escritora e jornalista americana Jane Jacobs, em seu livro Death and Life of Great American Citie (Morte e vida das grandes cidades) faz uma critica severa ao que ela própria denominou de planejamento urbano ortodoxo, travando uma discussão que termina por envolver as utopias de Ebenezer Haward, Mumford, Stain, Bauer e Le Corbusier e a influência deles na construção do urbanismo modernista. Não obstante, a autora emite a sua própria opinião sobre o que os urbanistas contemporâneos devem observar, para que alcancem uma visão mais realista e cotidiana da cidade, sem exagerados preceitos utopistas. Ela chama a atenção para a natureza peculiar das cidades e aborda temas como a segurança, o contato, a integração, o uso dos parques, o uso dos bairros etc. Kevin Lynch foi precursor nos estudos sobre comportamento ambiental, em sua obra conhecida como: A theory of good city form (A boa forma da cidade) denominou de "dimensões de performance" os grandes valores ou metas, diferente de normas, que o desenho urbano deveria seguir para construir ambientes urbanos de qualidade, são elas: vitalidade, senso, congruência, acesso, controle, eficiência e justiça. Conforme nos reporta DEL RIO (1990), os programas de desenho urbano tem cedido espaço acadêmico ao environmental design (desenho ambiental), em que se tenta dar um enfoque ainda mais amplo para a questão do meio ambiente. O desenho ambiental encontra expoente

no Brasil nos trabalhos de FRANCO (1997). A autora considera ser o desenho ambiental um novo instrumento da arquitetura e do planejamento territorial que implica na compreensão ecossistêmica dos processos vivos e num novo posicionamento do homem frente à dimensão espaço-temporal. Ela, assim como DEL RIO (1990), consideram que o desenho urbano deve ter uma visão interativa com diversas áreas do conhecimento e que o projeto deixe de ser uma obra acabada - com características estáticas - para se tornar um fator indutor de um processo. Colocar-se-á no bojo desta argumentação que, em face de tantas mudanças e críticas às práticas tradicionais de planejamento, está sendo criado um universo conceitual e operacional, que exige uma nova leitura do fenômeno urbano, aqui em especial com a aplicação de ecotécnicas no projeto urbano, dentro de condições que garantam uma maior sustentabilidade. 2. SUSTENTABILIDADE URBANA A produção do meio urbano, independentemente do agente social gerador – poder executivo, legislativo, investidor imobiliário, organizações populares, etc – tem se dado, em geral, de forma a ampliar a tendência de insustentabilidade da cidade. Contraditoriamente, diversas iniciativas têm percorrido o sentido oposto. As experiências que podem ser classificadas dentro de propostas urbanísticas denominadas ecocities, eco-villages ou cidades saudáveis, as ecotécnicas urbanas abordadas neste estudo ou, ainda, as aglutinadas nas proposições da permacultura e do movimento regenerativo, são exemplos da busca da reversão do quadro de problemas ambientais relacionados ao meio urbano. Também os efeitos globais e a ampliação da conscientização dos impactos decorrentes das ações antrópicas criaram as condições para que ocorressem diversas conferências internacionais que gradativamente incluíram questões ambientais nas discussões sobre desenvolvimento. Pode-se usar como referência inicial o ano de 1972, com a conferência de Estocolmo, e considerar-se que, pelo menos até à ECO 92 com a Agenda 21, houve um progressivo avanço nessas reuniões internacionais. No entanto, a efetivação das Agendas 21 nacionais e locais não ocorreu como o inicialmente previsto. E, mais recentemente, o posicionamento de alguns países, onde se destacam os Estados Unidos pela sua importância singular no cenário internacional, na reunião de Kioto e na Rio + 10 demonstrou um forte arrefecimento no trato dos problemas ambientais. Uma questão de outra natureza também se faz presente. Trata-se da diversidade de usos e de significados que têm sido dados ao termo sustentabilidade. As pesquisas de Henri Ascerald apontam esse fato, promovem uma identificação e uma classificação dessas “matrizes discursivas” e ao se encaminhar para a conclusão de seu texto, o pesquisador cita que: “As diferentes representações sobre o que seja sustentabilidade urbana têm apontado para a reprodução adaptativa das estruturas urbanas com foco alternativamente colocado no reajustamento da base técnica das cidades, nos princípios que fundam a existência cidadã das populações urbanas ou na redefinição das bases de legitimidade das políticas urbanas.” (ASCERALD, 2001) No capítulo sete da Agenda 21, é destacada a promoção da planificação e da ordenação sustentável do uso da terra e a promoção de sistemas sustentáveis de energia e transporte nos assentamentos humanos, propondo-se a adoção de estratégias de urbanismo que abordem questões ecológicas e sociais. (CNUMAD, 1996)

Ainda no capitulo sete, a Agenda informa que pelo menos um bilhão de pessoas no mundo carecem de abrigo adequado mas, por outro lado, reconhece que é nas áreas urbanas que se produz 60% do produto nacional bruto, apesar dos problemas existentes neste locus. Apesar de se tratar de questões de grande complexidade, um raciocínio direto pode indicar que melhorando-se o gerenciamento das áreas urbanas garante-se a sobrevivência da maior parte da humanidade que, atualmente, nelas reside. Mais um ponto importante frisado no capitulo trinta e um diz respeito à participação da comunidade científica e tecnológica, e que a mesma dê uma contribuição mais aberta e efetiva aos processos de tomada de decisão relativas ao meio ambiente e desenvolvimento, procurando fortalecer as abordagens multidisciplinares e desenvolver mais estudos interdisciplinares entre a comunidade cientifica e tecnológica. Podemos considerar os pontos destacados da Agenda 21 como sendo os princípios mais amplos balizadores deste estudo, a fim de enquadrar a prática de ecotécnicas no processo de projeto urbano, como pressuposto para uma condição de maior sustentabilidade. A sustentabilidade para ser compreendida é dividida em múltiplas dimensões: ecológica, ambiental, demográfica, cultural, social, política, institucional, econômica. A dimensão na qual se enquadrada o estudo de ecotécnicas é a ambiental. 2.1. A dimensão ambiental da sustentabilidade A cidade é um ecossistema complexo, caracterizado por processos contínuos de transformação e desenvolvimento. MOTA (1981) afirma que ela “é uma unidade ambiental, dentro da qual todos os elementos e processos do ambiente são inter-relacionados e interdependentes, de modo que uma mudança em um deles resultará em alterações em outros componentes”.

Nessa estrutura ambiental destacam-se dois conjuntos distintos de elementos: os de origem antrópica e os elementos naturais, como o solo, a água, o ar, a flora e a fauna. Quando se propõem ações, procedimentos e posturas que possibilitem que o desenvolvimento tenha bases mais sustentáveis, considera-se, entre outros pontos, uma situação de baixo impacto e, se possível, de impacto positivo, na relação entre esses dois conjuntos. A dimensão ambiental é aquela que está relacionada à conservação da biodiversidade (ecossistemas, espécies, patrimônio genético), ao controle das poluições e da minimização dos riscos ambientais. Esta também associada à capacidade de suporte dos ecossistemas de absorver ou se recuperar das agressões derivadas da ação antrópica, implicando em um equilíbrio entre as taxas de emissão e/ou produção de resíduos e as taxas de absorção e/ou regeneração da base natural de recursos (IBAM, 1999). Tendo em vista tais definições pode-se afirmar que o urbanismo bioclimático assume um papel preponderante dentro da dimensão ambiental.

3. O URBANISMO BIOCLIMÁTICO A alteração do espaço natural para a construção de cidades causa alterações climáticas de diversas formas. Nela, geralmente, as temperaturas de verão são maiores, a umidade relativa é menor, a quantidade de poluentes no ar aumenta, a quantidade de nuvens e nevoeiros e as precipitações são mais presentes, a velocidade dos ventos diminui. Com isso, percebe-se que as cidades causam modificações no clima e na qualidade ambiental. O Oriente Médio é fonte de saber acumulado no que diz respeito a soluções arquitetônicas e urbanísticas encontradas para combater as adversidades do clima desta região. As cidades de Fez, Cairo, Teerão são exemplos de assentamentos humanos que conseguiram criar condições de conforto térmico para a população em pleno clima quente e árido. Na Tunísia as pessoas vivem em estruturas subterrâneas, enquanto em Fez e Isfahan elas vivem em agrupamentos de pátios interiores. Os pueblos de Taos, segundo IZARD e GUYOT (1980), situados no Novo México, têm uma cultura preocupada em conviver harmoniosamente com a natureza, sua estrutura física se adapta facilmente às grandes variações de temperatura que tem como característica dias muito quentes e noites muito frias (Figura 1).

Essas construções erguidas há mais de cinqüenta anos têm evidenciado uma boa adaptação às adversidades do clima. Os princípios da arquitetura vernacular podem servir de exemplo para os planejadores contemporâneos, que muitas vezes ignoram o aspecto bioclimático e constroem sem quaisquer critérios de adaptação às condições locais. O estilo de vida adotado pelas sociedades dos países latinos americanos imitam o estilo de vida norte americano, basta perceber os prejuízos criados pelo excessivo condicionamento artificial utilizado nos prédios de grandes alturas e que utilizam materiais como o vidro, em locais cujas exigências climáticas são bastante inóspitas. As condições climáticas do meio urbano têm sido objeto de muitos estudos, pois suas características são bastante diferenciadas do clima rural, muitas vezes como conseqüência do surgimento de industrias, lixões, depósito de resíduos químicos no ar, na água, no solo, etc. As paisagens naturais das cidades estão cada vez mais ameaçadas, dando lugar a áreas densamente edificadas tendo participação direta nas mudanças climáticas (Figura 2).

Figura 1 - Adaptação arquitetônico-urbanística às adversidades climáticas - Pueblos de Taos (Novo México).

Fonte: Rolf Brauch (2003)

Sabe-se que o processo de urbanização transforma o meio natural, da mesma forma que os elementos ambientais afetam a morfologia da urbanização. Isso é percebido através de algumas mudanças, como a formação de microclima urbano, modificações na propagação de som e da luz e na ventilação. O tema do planejamento que lida com as questões relacionadas aos aspectos naturais e sua influencia nos objetos arquitetônico e urbano chama-se respectivamente arquitetura e urbanismo bioclimáticos. A arquitetura bioclimática tem como princípio maior a concepção de edifícios adaptados ao clima, bem como utilizar da maneira mais adequada os recursos que a natureza oferece: o sol, o vento, a vegetação e a temperatura (IZARD e GUYOT, 1980). Assim, é possível tirar partido dos fenômenos naturais de transmissão energética para obter ganhos ou perdas de calor através da envoltura do edifício. Da mesma forma atua o urbanismo bioclimático, que pela definição de ROMERO (2000) é aquele cujos ambientes urbanos servem como filtros dos elementos do clima adversos às condições de saúde e de conforto térmico do homem. A bioclimatologia é uma área multidisciplinar que envolve, portanto, diferentes ciências: a biologia e a ecologia, que estudam a parte de fisiologia humana e a inter-relação com o ambiente térmico e mecanismos homeostáticos da regulação térmica; a climatologia e a meteorologia, que explicam as variáveis da atmosfera e do clima, que afetam a percepção térmica do homem. Mas também está relacionada, conforme nos reporta ROMERO (2000) à arquitetura e ao projeto urbano, ao definir as condições ambientais, do meio natural e construído, que melhor satisfaçam às exigências do conforto térmico do homem. A produção, a acumulação e a aplicação do conhecimento sobre a relação entre o ambiente construído urbano e os fatores e as variáveis bioclimáticas poderão contribuir para a aproximação da situação referencial de sustentabilidade. Para se elaborar diretrizes bioclimáticas para o desenho urbano é necessário analisar as características do meio e os elementos de que dispõem o homem a fim de obter o equilíbrio térmico.

Figura 2 - Demonstração das diferenças de temperatura entre o meio urbano e o rural

Fonte: Baptista (2003)

O princípio maior que norteia o urbanismo bioclimático diz que os elementos que compõem o meio urbano, como: os edifícios, a vegetação, as ruas, as praças e o mobiliário urbano, devem ser projetados tendo em vista as exigências de conforto térmico do homem na sua mobilidade. No entanto, a literatura especializada aponta para um desequilíbrio entre a pesquisa aplicada sobre conforto higrotérmico relacionado ao espaço da edificação, onde se caracteriza um desenvolvimento maior, e a que trata de ambientes externos a esta, e mais especificamente, ao espaço externo de uso público, onde se visualiza a necessidade de ampliação do processo de geração do conhecimento e, principalmente, da disseminação deste junto aos setores responsáveis pela produção da cidade. No desenvolvimento do tema tratado neste tópico, este estudo pretende contribuir para ampliar, pelo menos minimamente, o acesso a esta área do conhecimento, buscando criar condições para a capacitação na utilização de técnicas mais adequadas de intervenção no meio urbano. ROMERO (2000) tem afirmado que a desinformação e a falta de utilização de linguagem especializada teriam contribuído para a desconsideração, no projeto urbano, da relação entre meio físico, ambiente construído e população usuária. A adequada interação do conjunto de infra-estruturas urbanas aos fatores como clima, topografia, ciclos biológicos, químicos e geomorfológicos existentes no âmbito da cidade, é o passo inicial necessário para um urbanismo que se caracterize como bioclimático, com uso e ocupação do solo urbano dentro dos preceitos do planejamento ambiental. Os projetos de edifícios, da vegetação, das praças e do mobiliário urbano devem responder, segundo a autora, entre outras diretrizes, as extraídas dos princípios bioclimáticos, conforme explicita que: “a própria malha pode conter soluções que amenizariam os fatores ambientais adversos; alguns problemas poderiam ser facilmente evitados com um traçado urbano apropriado, que aproveitasse os fatores ambientais climáticos e topográficos do lugar” ROMERO (2000). O clima traz muitos efeitos à urbanização, como também a urbanização causa mudanças no clima, afirma HERTZ (1998). Assim, o processo de urbanização intensifica as chuvas relativas ao calor produzido, pode gerar modificações na velocidade e na direção dos ventos devido à presença de edifícios altos, aumentar a temperatura e a poluição do ar, a qual atua como refletor dos raios solares. A relação entre a forma espacial da superfície (topografia, vegetação, superfície do solo, formas criadas pelo homem etc.), a natureza dos materiais superficiais, o adensamento e os variáveis climáticas da região local criam condições pontuais para a percepção do clima. Rotineiramente denomina-se essa condição específica de “ilha climática” (Figura 3).

Quando tem como resultante uma condição térmica mais elevada é referida como “ilha de calor”, que é formada “pelo aquecimento da superfície das cidades (isolada das chuvas e da umidade do subsolo por enormes crostas de edificação e asfalto) e das camadas inferiores da atmosfera urbana, esse fenômeno cria zonas de baixa pressão que retendo gases e partículas em suspensão, em algumas ocasiões provocam inversões térmicas”. (ALVA, 1997)

Isto ocorre, por exemplo, em ocupações de alto adensamento, como na favela Heliópolis, na cidade de São Paulo, que tem casas com telhado de amianto, ruas asfaltadas sem árvores e lotes pequenos e onde a temperatura, comumente, mantém-se acima de 30ºC. Mas essas condições específicas podem gerar uma condição oposta, como no exemplo da formação de “ilhas de frio” no centro da cidade de São Paulo. As “ilhas de frio” são constituídas por áreas que não recebem luz solar em praticamente nenhum momento do dia em conseqüência do adensamento de prédios e de viadutos, como é o caso do Elevado Costa e Silva. As ecotécnicas podem ser aplicadas na forma de diretrizes urbanísticas, especificando o escopo das formas, os conceitos de projeto, o vocabulário físico-arquitônico e outros fatores básicos para o desenvolvimento de uma determinada área. Devemos desenhar a cidade sem projetar edifícios, "como as regras não podem cobrir todos os aspectos do espaço urbano, o organizador das diretrizes deve decidir sobre quais são os temas mais importantes, perguntando-se, na verdade, qual o interesse público em um projeto urbano e quais são os elementos essenciais do projeto urbano que afetam este interesse" (DEL RIO, 1990). Diretrizes devem conter claramente objetivos, procedimentos, elementos do desenho, significados, relações entre si e com o contexto. Servem para orientar a intervenção urbana. É impossível exigir dos empreendedores que reproduzam protótipos específicos, por tanto, as diretrizes buscam encorajar o melhor e tentam evitar o pior.

Figura 3 - Perfil da ilha de calor urbana, dando destaque ao adensamento das áreas centrais.

Fonte: Baptista (2003)

4. ECOTÉCNICAS APLICADAS AO PROJETO URBANO O estudo dos princípios bioclimáticos nos serviu de base teórica para apoiar a sistematização de ecotécnicas - o objetivo deste estudo. Para SILVA e MAGALHÃES (1993) "ecotécnicas se constituem no embasamento infra-estrutural da compatibilização da cidade ao ambiente, minimizando o impacto das intervenções necessárias. Muitas delas são conhecidas e empregadas há milênios. Muitas há por conhecer, desenvolver e aperfeiçoar. " Neste item estão sistematizados alguns exemplos de ecotécnicas a serem aplicadas ao projeto urbano. Na maioria das cidades brasileiras não transparece a ação sobre um sistema de arborização enquanto componente de uma política pública estruturada. A retirada das poucas unidades arbóreas existentes é uma constante e, em geral, aparece justificada por apresentarem sinal de perigo à população, ou por não se compatibilizarem com as infra-estruturas, ou simplesmente para dar lugar a novas edificações. A cobertura vegetal vem diminuindo cada vez mais, como conseqüência do adensamento das cidades, sendo substituídas por superfícies de baixa permeabilidade tais como asfalto, tijolo e concreto. Essas superfícies têm baixa refletância e armazenam a energia solar em vez de refleti-la. Destacamos aqui, em especial, a importância da vegetação como variável importante na sistematização de técnicas ambientalmente mais adequadas. Seguem abaixo: • a presença da vegetação no espaço urbano é uma alternativa sustentável, pois reduz

sensivelmente os efeitos da radiação solar, oferecendo conforto térmico aos habitantes, além de reduzir a poluição do ar, no entanto é preciso fazer um estudo com espécies nativas ou adaptadas;

• ela diminui drasticamente o desconforto das chamadas "ilhas de calor" dos grandes

centros urbanos, aumentando a capacidade de infiltração das águas pluviais; • a vegetação é importante na amenização climática das cidades. MASCARÓ (1990) cita

como exemplo os resultados animadores da cidade de Tucson, localizada no árido estado americano do Arizona, que desenvolve programas exemplares de plantio de árvores em larga escala como medida para reduzir o calor do verão;

• a mesma autora ainda nos conduz a uma questão importante: o uso de árvores deve estar

compatibilizado com os equipamentos e as infra-estruturas urbanas como a rede elétrica de iluminação, a pavimentação das ruas e calçadas, com as condições climáticas, a sua própria manutenção, bem como ao tempo de vida das espécies;

• para diminuir a demanda por refrigeração (uso de condicionadores de ar), a utilização de

árvores e superfícies de alto albedo (Figura 4) - que se constituem em materiais de construção mais reflexivos a radiação solar, como as cores claras - são freqüentemente mencionados como os mais adequados na bibliografia sobre o tema, segundo MASCARÓ (1990). As árvores amenizam o clima diretamente através do sombreamento e indiretamente por evapotranspiração, processo pelo qual as plantas produzem o vapor de água.

O uso do asfalto como pavimento fundamental das ruas tem um lado bastante negativo. Quando este material é escolhido como pavimento de pequenas vilas, por exemplo, muitas vezes acaba sem deixar superfícies porosas capazes de infiltrar as águas pluviais. Para pavimentar ruas locais, onde o movimento de carros é menor que nas avenidas, existem boas técnicas que permitem que uma quantidade maior de água possa infiltrar, como as peças intertravadas, que são placas de concreto colocadas lado a lado com espaçamento entre si, por onde a água infiltra, porém geralmente não são bem aceitas pela população. Com relação a esta questão pode-se afirmar: • a sociedade como um todo tem um papel indispensável na mudança de paradigma

cultural. Por exemplo, mudar a concepção imediatista (e muitas vezes preconceituosa) a respeito da utilização de novos materiais que possam se adequar melhor às condições locais;

• sempre que possível deve-se substituir as superfícies pavimentadas por superfícies

permeáveis, como gramados ou de preferência aquelas que garantam a permanência da vegetação nativa.

É importante salientar que para cada tipo de clima existem princípios bioclimáticos a serem respeitados, por tanto todo planejador deve ter a responsabilidade de conhecer as condições climáticas da região na qual irá intervir, com o intuito de tirar-lhes partido e propor formas mais sustentáveis aos assentamentos humanos. A temperatura, um dos elementos climáticos, constitui-se em um indicador importante para análise da qualidade de vida no meio urbano e no processo de tomada de decisão no âmbito do planejamento urbano. No geral, ela atinge médias mais altas nas cidades do que no meio rural, onde a proporção do ambiente construído é significativamente menor (RIVERO, 1985).

Ao destacar a importância do estudo do clima urbano para o sistema de planejamento das cidades, KATZSCHNER (1997) cita a possibilidade de minimização da interferência que as intervenções têm sobre o meio natural, ao se assegurar a circulação e renovação das massas de

Figura 4 - Albedo dos materiais urbanos Fonte: Baptista (2003)

ar, que, segundo o autor são “aspectos relevantes para a preservação e/ou projeto do chamado 'clima urbano ideal' durante o processo de crescimento das cidades”. HERTZ (1998) faz referência nesse sentido ao afirmar que: • nas zonas que sofrem com os efeitos da alta temperatura e da umidade, é fundamental

promover o movimento do ar. O melhor lugar, portanto, é aquele onde se possa estar exposto a esse movimento.

A ventilação também é outro elemento que deve sempre estar presente na cidade e nos edifícios, pois ela diminui o consumo crescente da climatização artificial. O aumento de temperatura nas áreas urbanas provoca impacto diretamente nos custos de refrigeração. (MASCARÓ, 1990). Com relação a este fator: • é importante orientar as vias principais na direção dos ventos dominantes; • em climas quentes e com umidade elevada, os princípios para projeto devem buscar

privilegiar uma malha urbana mais dispersa, solta, aberta e extensa (Figura 5), uma morfologia do tecido urbano capaz de deixar o vento penetrar livremente, já que a presença de ventilação é imprescindível (ROMERO, 1988);

• para esta mesma exigência climática a cidade deve contar com a presença significativa de

árvores, para garantir o sombreamento necessário, bem como absorver a radiação solar, conforme já foi assinalado;

• a presença de edifícios de diferentes alturas favorece a ventilação, pois edifícios da mesma

altura formam uma barreira contra o vento (Figura 6);

Figura 5 - Morfologia urbana para clima quente -úmido, privilegiando a passagem do vento.

Fonte: Olgyay (1998).

• a topografia do terreno é um elemento natural muito importante e que deve ser levado em conta no projeto urbano, a malha urbana proposta deve seguir o máximo possível as curvas de nível do local, para facilitar o escoamento das águas pluviais, bem como para evitar movimento excessivo de terra, capaz de modificar sobremaneira as características naturais do sitio;

• para as regiões de clima quente-seco, a presença de corpos d’água nos espaços públicos

abertos serve para efeito de controle térmico, contribuindo com o aumento da umidade do ar;

De um modo geral é importante que juntamente à aplicação de ecotécnicas estejam vinculadas outras diretrizes relacionadas ás outras infra-estruturas da cidade. Seguem abaixo alguns exemplos: • aperfeiçoamento do metabolismo dos sistemas urbano-industriais e a adoção de estilos de

vida e padrões de consumo mais coerentes em relação à disponibilidade real de recursos e às características ecológicas dos ecossistemas tropicais (ALVA, 1997);

• recuperação de estruturas degradadas, incluindo os centros históricos das cidades; • reciclagem de subprodutos industriais e domésticos; • economia no uso da água e da energia; • prolongamento da vida útil das instalações por meio de manutenção sistemática; • liberação do trânsito urbano congestionado; • reabilitação de terras erodidas.

Figura 6 - Morfologia urbana e comportamento do vento. Fonte: Izard e Guyot (1980).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As ecotécnicas apresentadas neste estudo, quando utilizadas de forma a garantir que a consolidação de cidades respeite a capacidade suporte dos elementos naturais existentes, podem contribuir para a melhora da qualidade de vida no meio urbano, fazendo do projeto urbanístico um instrumento de controle ambiental em busca de uma maior sustentabilidade. Procurar compreender os problemas contemporâneos de forma sistêmica, interligada e interdependente é a maneira mais adequada de garantir o conforto aos habitantes da cidade, considerando que os valores humanos e ambientais sejam levados em conta no processo de decisão do planejamento. Segundo ALVA (1997), a racionalidade social é um dos princípios do desenho urbano, pois constitui, na realidade, a mais suave das tecnologias aplicadas ao assentamento humano, podendo representar um aumento líquido do bem-estar coletivo com economia de recursos de capital. A utilização de ecotécnicas é um meio de intervenção urbana que se insere na dimensão ambiental da sustentabilidade e tem como ponto fundamental a realização de projeto urbano adequado às condições físico-ambientais locais. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVA, E. (1997) Metrópoles (In) Sustentáveis. Rio de Janeiro. Relume Dumará. ASCERALD, H. (2001) Discursos da Sustentabilidade Urbana. In: R. B. Estudos Urbanos e Regionais, nº 1. BAPTISTA, G. (2003) Ilhas urbanas de Calor. Scientific American Brasil. Ano 1, n..8, p54-59. CNUMAD (1996) – CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Agenda 21. Brasília: Senado Federal/SSET. DEL RIO, V. (1990) Introdução ao Desenho Urbano no Processo de Planejamento. São Paulo: Editora Pini. FRANCO, M. (1997) Desenho Ambiental: Uma Introdução à Arquitetura da Paisagem como Paradigma Ecológico. São Paulo: Annablume: FAPESP. HERTZ, J. (1998) Ecotécnicas em Arquitetura - Como Projetar nos Trópicos Úmidos do Brasil. São Paulo: Pioneira. IBAM (1999) Instituto Brasileiro de Administração Municipal. Cidades Sustentáveis. Volume III, Brasília. IZARD, J, GUYOT, A. (1980) Arquitectura Bioclimática. Barcelona. GG. JACOBS, J. (1961) The Death and Life of Great American Cities. New York: Random House.

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