Edição 425 - de 21 a 27 de abril de 2011

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 21 a 27 de abril de 2011 Ano 9 • Número 425 Anita Leocádia Prestes De quem é o legado? Luiz Carlos Prestes tornou-se a expressão máxima da luta revolucionária pelo socialismo e o comunismo no Brasil, pelas liberdades democráticas e pela emancipação nacional. Pág. 3 Altamiro Borges Mídia quer sangue Dilma bem que tentou agradar o “deus- mercado”, mas o capital financeiro é insaciável. Através de seus meios de comunicação, ele exige mais sangue – mais juros e cortes de gastos! Pág. 3 Editorial Abril Vermelho A sociedade brasileira já se acostumou a ver as manifestações de trabalhadores rurais em todo país na luta pela reforma agrária e em memória a Eldorado dos Carajás, no mês de abril. Pág. 2 Aeroportos O voo raso da privatização ISSN 1978-5134 A prostituição infantil no entorno da Vale Nilton Cardin/Folhapress Ecad O controle da propriedade intelectual Pág. 8 Reprodução Um relatório do Ipea aponta a morosidade do Brasil nas reformas em aeroportos para a Copa de 2014. O documento acelerou o debate sobre a privatização da infraestrutura dos terminais aéreos. A oposição pressiona e o governo sinaliza com a possibilidade de privatização no setor. A medida, no entanto, geraria aumento de taxas para os usuários, além da desnacionalização desse setor estratégico. Pág. 7 Opressão no Saara Ocidental ocupado Ecad O controle da propriedade intelectual Pág. 8 Um relatório do Ipea aponta a morosidade do Brasil nas reformas em aeroportos para a Copa de 2014. O documento acelerou o debate sobre a privatização da infraestrutura dos terminais aéreos. A oposição pressiona e o governo sinaliza com a possibilidade de privatização no setor. A medida, no entanto, geraria aumento de taxas para os usuários, além da desnacionalização desse setor estratégico. Pág. 7 A prostituição infantil no entorno da Vale Pág. 5 Opressão no Saara Ocidental ocupado Págs. 10 e 11

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Uma visão popular do Brasil e do mundo Ecad Abril Vermelho Mídia quer sangue De quem é o legado? Uma visão popular do Brasil e do mundo Altamiro Borges Anita Leocádia Prestes Luiz Carlos Prestes tornou-se a expressão máxima da luta revolucionária pelo socialismo e o comunismo no Brasil, pelas liberdades democráticas e pela emancipação nacional. Pág. 3 Editorial www.brasildefato.com.br São Paulo, de 21 a 27 de abril de Nilton Cardin/Folhapress Reprodução ISSN 1978-5134

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www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 21 a 27 de abril de 2011Ano 9 • Número 425

Anita Leocádia Prestes

De quem é o legado?Luiz Carlos Prestes tornou-se a expressão máxima da luta revolucionária pelo socialismo e o comunismo no Brasil, pelas liberdades democráticas e pela emancipação nacional. Pág. 3

Altamiro Borges

Mídia quer sangue Dilma bem que tentou agradar o “deus-mercado”, mas o capital fi nanceiro é insaciável. Através de seus meios de comunicação, ele exige mais sangue – mais juros e cortes de gastos! Pág. 3

Editorial

Abril VermelhoA sociedade brasileira já se acostumou a ver as manifestações de trabalhadores rurais em todo país na luta pela reforma agrária e em memória a Eldorado dos Carajás, no mês de abril. Pág. 2

Aeroportos

O voo raso da privatização

ISSN 1978-5134 A prostituição infantil no entorno da Vale

Nilton Cardin/Folhapress

Ecad

O controle da propriedade intelectual Pág. 8

Reprodução

Um relatório do Ipea aponta a morosidade do Brasil nas reformas em aeroportos para a Copa de 2014. O documento acelerou o debate sobre a privatização da infraestrutura dos terminais aéreos. A oposição

pressiona e o governo sinaliza com a possibilidade de privatização no setor. A medida, no entanto, geraria aumento de taxas para os usuários, além da desnacionalização desse setor estratégico. Pág. 7

Opressão no SaaraOcidental ocupado

Ecad

O controle da propriedade intelectual Pág. 8

Um relatório do Ipea aponta a morosidade do Brasil nas reformas em aeroportos para a Copa de 2014. O documento acelerou o debate sobre a privatização da infraestrutura dos terminais aéreos. A oposição

pressiona e o governo sinaliza com a possibilidade de privatização no setor. A medida, no entanto, geraria aumento de taxas para os usuários, além da desnacionalização desse setor estratégico. Pág. 7

A prostituição infantil no entorno da Vale Pág. 5

Opressão no SaaraOcidental ocupado Págs. 10 e 11

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A luta pela reforma agrária continua

DOZE ADOLESCENTES, de 13 a 15 anos, foram cruelmente assassina-dos, dia 7 de abril, nas salas de au-la de uma escola de Realengo, Rio. Outras tantas fi caram feridas. O cri-minoso, de 23 anos, disparou na própria cabeça a 66ª bala saída de seus dois revólveres.

Massacre como este nunca havia ocorrido no Brasil. São frequentes nos EUA. E enchem o prato da mí-dia em busca de audiência. A cada telejornal, reaparecem as fotos das crianças, o depoimento de parentes e amigos, os sonhos que nutriam...

Em Antígona, de Sófocles (496-405 a.C.), a mulher que dá no-me à peça rebela-se contra o Esta-do que a proíbe de sepultar seu ir-mão. Hoje, a exploração midiáti-ca torna os corpos insepultos. As famílias das crianças sacrifi cadas, ontem no anonimato, agora ocu-pam manchetes e são alvos de ho-lofotes. É a morte como sucesso de público!

O assassino foi o único culpa-do? Tudo decorreu de um “mons-tro” movido por transtornos men-tais? A sociedade que engendra es-se tipo de pessoa não tem nenhu-ma responsabilidade?

Um gesto brutal como o do ra-paz que matou à queima-roupa 11 meninas e 1 menino não é fruto de geração espontânea. Há um histó-rico de distúrbios familiares, hu-milhações escolares (bulliyng) e discriminações sociais, indiferen-ça de adultos frente a uma criança com notórios sinais de desajustes.

Quando pais têm mais tempo para dedicar à internet e aos ne-gócios que aos fi lhos; adolescentes ingerem bebida alcoólica mistura-da a energéticos; alunos ameaçam professores; crianças se recusam a dar lugar no ônibus aos mais ve-lhos... o sinal vermelho acende e o alarme deveria soar.

O que esperar de uma sociedade que exalta a criminalidade, os ma-fi osos, a violência, através de fi lmes e programas de TV, e quase nun-ca valoriza quem luta pela paz, é so-lidário aos pobres, trabalha anoni-mamente em favelas para, através do teatro e da música, salvar crian-ças de situações de risco?

Há anos acompanho o trabalho do Grupo Tear de Dança, que con-grega jovens de baixa renda da zona Norte do Rio. Embora seus espetá-culos sejam de boa qualidade artís-tica, sei bem das imensas difi culda-des de patrocínio, de divulgação, de espaço na mídia para noticiar suas apresentações.

É triste e preocupante ver o talen-to de um jovem bailarino se perder porque, premido pela necessida-

de, ele deve retornar ao trabalho de ajudante de pedreiro ou, a bailari-na, de vendedora ambulante.

Como evitar novos massacres se-melhantes ao de Realengo? Quase dois terços dos eleitores brasileiros aprovaram, no plebiscito de 2005, o comércio de armas. As lojas ven-dem armas de brinquedo presen-teadas às crianças. Os videogames ensinam como se tornar assassino virtual.

Há no Brasil 14 milhões de armas em mãos de civis, das quais metade ilegais, como as duas que portava o assassino dos alunos da escola Tas-so da Silveira.

Segundo o deputado Marcelo Freixo (PSOL), existem no estado do Rio 805 mil armas em mãos de civis, da quais 581 mil são ilegais, muitas em mãos de bandidos. “O ci-dadão que compra uma arma pa-ra ter em casa, pensando em se pro-teger, acaba armando os crimino-

sos”, afi rmou no Rio o delegado An-derson Bichara, da Delegacia de Re-pressão ao Tráfi co Ilícito de Armas.

Como dar um basta à violência se o Instituto Nobel da Noruega concede o prêmio da Paz a guer-reiros como Henry Kissinger, Me-nachem Begin, Shimon Peres e Barak Obama?

Monstro é tão-somente quem en-tra armado numa escola, num su-permercado, num cinema, e mata a esmo? Como qualifi car a decisão do governo dos EUA de, após vencer a guerra contra a Alemanha e o Ja-pão, jogar a bomba atômica sobre a pacífi ca população de Hiroshima, a 6 de agosto de 1945 (140 mil mor-tos), e três dias depois outra bomba atômica sobre a população de Naga-saki (80 mil mortos)?

Hitler e Stalin também podem ser qualifi cados de “monstros” e seus crimes são sobejamente conheci-dos. Mas não há uma certa domesti-cação de nossas consciências e sen-sibilidades quando somos coniven-tes, ainda que por inação ou omis-são, frente ao massacre dos povos iraquiano, afegão e líbio?

A paz jamais virá como resulta-do do equilíbrio de forças. Há no-ve séculos o profeta Isaías alertou-nos: ela só vigorará como fruto de justiça.

Mas quem tem ouvidos para ouvirO governo Dilma, com razão, não

gostou do relatório do Departamen-to de Estado dos EUA sobre os di-reitos humanos no Brasil, divulga-do semana passada. O Itamaraty fez uma nota de protesto. É pouco. Só há uma resposta à altura: o Brasil emitir um relatório sobre os direitos humanos nos EUA.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e

Waldemar Falcão de Conversa sobre a Fé e a Ciência (Agir), entre outros livros.

Frei Betto

Tragédia carioca crônica Luiz Ricardo Leitão

A SOCIEDADE brasileira já se acos-tumou, desde 1997, a ver as manifes-tações de trabalhadores rurais em to-do país na luta pela reforma agrária no mês de abril. As jornadas do “abril vermelho” inciaram com uma marcha epopeica realizada pelo MST, com apoio de todas as forças populares do país, em abril de 1997, que marcou o primeiro aniversário do massacre de Carajás e chegou a Brasília com mais de 100 mil manifestantes.

Aquele 17 de abril foi a maior ma-nifestação contra a política neoliberal do governo tucano de Fernando Hen-rique Cardoso (FHC).

De la para cá, todos os anos, os sem-terra, os trabalhadores em geral, retomam as ocupações de latifúndios, marchas, ocupações do Incra, e fazem diversas formas de luta pela reforma agrária. Mas o que mudou nesses 15 anos, desde o massacre em 1996?

A classe trabalhadora derrotou os candidatos neoliberais nas elei-ções presidenciais de 2002, 2006 e 2010. Com isso, a política de repres-são aos movimentos sociais passou a ser exercida mais abertamente pe-los governos estaduais conservado-res. E a mídia, antes condescendente com a luta pela reforma agrária, assu-miu cada vez mais seu papel de por-ta-voz dos interesses do agronegó-cio e dos latifundiários. Até porque a maioria de seus proprietários tam-bém tem terra.

No caso do massacre de Carajás, apesar das mudanças no governo fe-deral, nenhum responsável direto ou indireto por aquela chacina foi puni-do. Apesar da comoção gerada na so-ciedade na época (semelhante à que aconteceu agora com a tragédia de Realengo), infelizmente, a socieda-de esqueceu, e o poder Judiciário, fi el escudeiro dos interesses conservado-res e do poder econômico, engavetou. O Tribunal do Júri condenou o coro-nel Mário Colares Pantoja a 228 anos de prisão e o major José Maria Perei-ra de Oliveira a 158 anos e quatro me-ses de detenção. Os condenados ain-da respondem em liberdade graças a um habeas corpus concedido pe-lo Supremo Tribunal Federal (STF). Deram o direito de esperarem os re-cursos em liberdade... provavelmente até a morte natural.

15 anos de impunidadeNa reforma agrária, apesar de oi-

to anos do governo Lula, pouco mu-dou. O capital segue aplicando sua lógica e sua sanha de acumular per-manentemente a propriedade da ter-ra. E, nesses oito anos, a concentra-ção da propriedade da terra aumen-tou ainda mais. Segundo os dados do último censo do IBGE, relativos a 2006, a concentração da proprieda-de da terra agora é maior do que em 1920, quando recém havíamos saído da escravidão.

Pior. Com a crise do capitalismo fi nanceiro globalizado, o Brasil vi-rou porto seguro para capitais fi nan-ceiros especulativos, que buscam se proteger investindo no patrimônio de bens da natureza: terra, biodiversi-dade, hidrelétricas, etanol, minérios. Tudo isso em abundância no Brasil. E o resultado é que houve também uma desnacionalização da proprie-dade da terra, que nem sequer o go-verno tem controle, pois as empresas estrangeiras compram as ações das empresas brasileiras e nem precisam notifi car ao Incra.

Felizmente o novo governo Dilma está atento e promete ser rigoroso

para evitar a desnacionalização da propriedade da terra, que entre ou-tras consequências, afeta a própria soberania nacional sobre nossas ri-quezas naturais e sobre o território.

Da aliança entre o grande capi-tal das empesas transnacionais que operam no agro com os grandes fa-zendeiros nasceu o agronegócio. Um modelo de produção que ape-nas transforma a agricultura em produtora de lucro e de commodi-ties, e não de alimentos ou de justi-ça social. E o resultado é que o país voltou a ser uma economia agroex-portadora e 69% de todas exporta-ções são commodities. Ou seja, ma-térias-primas agrícolas e minerais sem nenhum valor agregado. As-sim, alguns poucos brasileiros ga-nham muito, mas as empresas transnacionais ganham mais ainda. E o povo brasileiro fi ca com o pas-sivo ambiental e com a injusta dis-tribuição de renda.

Longo caminhoDo lado dos trabalhadores, há ain-

da, segundo estudos do próprio Mi-nistério da Agricultura, cerca de 3,8 milhões de famílias de pequenos pro-prietários de terra de até 10 hectares, que não têm acesso ao Pronaf ou a políticas públicas agrícolas. Portanto constituem-se em mero exército in-dustrial de reserva, esperando ir pa-ra cidade ou a aposentadoria do Fun-

rural. E, abaixo deles, temos outros 4 milhões de famílias de trabalhadores sem-terra, posseiros, assalariados ru-rais, público potencialmente benefi -ciário da democratização da proprie-dade da terra

Mas quantos anos ainda serão ne-cessários para que a reforma agrária deixe de ser letra morta da Constitui-ção? Esperamos que pelo menos as mobilizações justas e necessárias dos trabalhadores rurais sirvam para a sociedade brasileira refl etir sobre is-so. Não pode haver democracia sem democratizar a propriedade dos bens da natureza, em especial da terra.

Os movimentos sociais têm dito que ainda têm esperança de que o le-ma do novo governo de combater a pobreza seja sério, pois para comba-ter a pobreza no meio rural, o princi-pal caminho é garantir acesso à ter-ra a todos os trabalhadores. E com-plementar com políticas de produção agrícola, como incentivo à agroin-dústria, a garantia de compra da pro-dução de alimentos e assistência téc-nica verdadeira.

Não resta dúvida de que os pobres do campo são os mais necessitados de políticas públicas que universa-lizem os direitos sociais básicos, co-mo educação para todos e mora-dia digna. Mas também, com certe-za, essa luta será ainda muita longa. Por isso, salve, salve todos os luta-dores do campo!

de 21 a 27 de abril de 20112editorial

Gama

Bem mais do que um minuto de silêncio ESTA FAMIGERADA Bruzundanga foi sempre uma terra pródiga para os poetas e prosadores de veia mais ferina que se dispõem a retratar em su-as obras os absurdos de nossa profunda iniquidade social. Gregório de Ma-tos Guerra, o “Boca do Inferno”, foi decerto o primeiro cronista das maze-las nacionais, denunciando em versos antológicos a perversidade do antigo sistema colonial (“Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do nosso antigo estado”...).

Depois dele, vieram muitos outros mestres da crítica e do bom humor, traçando com a sua pena cenas e personagens típicos de um regime que veio a nascer sob os signos do descaminho e da trapaça. As Memórias de um sargento de milícias, por exemplo, de Manuel Antônio de Almeida, já nos dão conta da gênese da “malandragem” tupiniquim, na qual o jeitinho é apenas um índice da frustração popular em face das inúmeras expecta-tivas (e promessas) de mudança da realidade social que as elites subscre-vem, sem jamais cumpri-las.

Machado de Assis, com as antológicas Memórias póstumas de Brás Cubas, foi outro mestre das letras a desvelar-nos a desfaçatez das clas-ses dominantes: a maneira como o narrador (Brás Cubas) desdenha do lei-tor, prometendo-lhe contar causos que depois são esquecidos, é uma ale-goria perfeita do comportamento das elites da época (e de hoje, também) – que se diziam “liberais”, mas fi zeram do Brasil o último país escravista das Américas... E o que dizer de Lima Barreto, o criador de Os Bruzundangas, talvez a sátira mais corrosiva que se tenha escrito acerca da República do café-com-leite? Os políticos, banqueiros e oligarcas daquele país “imaginá-rio” são um retrato irretocável da triste política tupiniquim.

As mazelas locais cevaram um sem-número de geniais humoristas no sé-culo 20. Aparício Torelly (o autoproclamado Barão de Itararé), nos tempos de Getúlio, e Sérgio Porto (o célebre Stanislaw Ponte Preta), nos conturba-dos anos de 1960, descreveram como poucos o “Festival de Besteiras que assola o país”. Isso sem falar nos chargistas e caricaturistas que se ocupam das aventuras surreais do Planalto, como a trupe comandada por Chico Ca-ruso, Claudius, Glauco, Laerte, Maringoni e tantos outros, cujos traços fi -xaram para sempre os desvarios de Collor, PC e outros inomináveis “Filhos da Dinda”...

Sim, há matéria de sobra para a fi na ironia do notável prosador Luis Fer-nando Veríssimo, ou o humor esculachado do cronista José Simão. Afi nal de contas, mesmo com o avassalador tsunami do mercado sobre os movi-mentos sociais, não há como esconder sob os tapetes das oligarquias epi-sódios tragicômicos da vida pública nacional. Por vezes, tudo nos parece sonho (ou pesadelo) – que o diga a tchurma do Congresso: Netinho quer criar a Comissão dos Direitos da Mulher, Tiririca foi designado para a Co-missão de Educação e Bolsonaro integra a Comissão de Direitos Humanos da Câmara... Devemos rir ou chorar?

Enfi m, eu deveria estar aqui debochando dessa corja, mas confesso ao leitor que a tragédia de Realengo me calou a veia ferina. Creio que todos nós carecemos de bem mais que um minuto de silêncio para refl etir sobre o signifi cado desse episódio. Penso em meus colegas professores, cujos sa-lários mal dão para comprar um livro ou assistir a uma boa peça teatral, li-teralmente sitiados em suas salas de aula, improvisando barricadas pa-ra evitar a morte de seus alunos – e percebo o quanto estamos distantes do mundo cor de rosa que playboys como Cabral, Aécio (o cacique moderni-nho que se recusou a fazer o teste do bafômetro) & Cia. pintam em suas co-marcas. Olho para a foto do “atirador” e não teço nenhum juízo – penso apenas na euforia dos fabricantes de armas, uma das faces mais perversas do capital, e nos frutos aziagos da Paideia audiovisual de Hollywood, com suas chacinas em série nas telas de TV (sub)urbanas. Haveria muito mais a dizer, mas creio que o melhor, hoje, é apenas silenciar – e pensar...

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila,

Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Os pobres do campo são os mais necessitados de políticas públicas que universalizem os direitos sociais básicos, como educação para todos e moradia digna

Haveria muito mais a dizer, mas creio que o melhor, hoje, é apenas silenciar - e pensar

Como dar um basta à violência se o Instituto Nobel da Noruega concede o prêmio da Paz a guerreiros como Henry Kissinger, Menachem Begin, Shimon Peres e Barak Obama?

opinião

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda • Subeditores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, DanielCassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi,

Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana• Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – CamposElíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, DelciMaria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

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de 21 a 27 de abril de 2011

ram a ser sacrifi cados... Diante de tais desafi os, a me-lhor saída para o BC é dar um passo fi rme para demons-trar controle: aumentar a taxa básica de juros em 0,5%”. E conclui: “Essa é a prioridade”. Aplausos entusiásticos dos banqueiros e rentistas, nacionais e estrangeiros!

Mas não é só a Folha que tem rabo preso com o capi-tal fi nanceiro. Carlos Alberto Sardenberg, editorialista do Estadão e comentarista da Globo, há vários dias vem insistindo na necessidade de um novo aumento da taxa Selic e de novos cortes no Orçamento.

Dias atrás, ele criticou o BC por sua “tolerância com a infl ação”. Para ele, o “otimismo” do BC “signifi ca acre-ditar que a infl ação vai cair sem a necessidade de uma alta mais forte da taxa básica de juros e sem um cor-te de gastos mais expressivo do governo. Segurar juros e ter espaço para gastar – eis algo que interessa a qual-quer governo, muito especialmente ao de Dilma Rous-seff”. Contra o que chama de “eleitoralismo”, Sarden-berg prega abertamente a volta das “políticas ortodo-xas” de FHC.

Toda esta gritaria da mídia tem como único objetivo defender os interesses do capital fi nanceiro. Fica a dúvi-da se estes jornais informam ou prestam serviços, bem pagos, aos banqueiros e rentistas.

Mídia quer sangueDE NADA ADIANTOU a presidenta Dilma Rousseff promover dois aumentos simultâneos da taxa de ju-ros, cortar R$ 53 bilhões do Orçamento e ainda peitar as centrais sindicais na negociação do salário mínimo. Ela bem que tentou agradar o “deus-mercado”, mas o capital fi nanceiro é insaciável. Através de seus meios de comunicação, ele exige mais sangue – mais juros e cor-tes de gastos!

O editorial de 15/4 da Folha de S.Paulo é a prova con-tundente da gula dos rentistas. Para se contrapor ao que jornal diagnostica como “piora das expectativas infl a-cionárias”, que decorrem do “excesso de consumo e das pressões salariais”, a única saída é “aumentar a taxa de juros em 0,5% na semana que vem”, quando o Banco Central (BC) se reúne.

Adepta da máxima neoliberal de que “não há alter-nativa”, a Folha é incisiva na defesa dos interesses dos agiotas. Qualquer outra medida, afi rma, é inefi caz para combater o fantasma da infl ação. Ela inclusive critica o BC por “propagar uma visão muito otimista” sobre o te-ma, reforçando a enorme gritaria dos últimos dias do capital fi nanceiro.

Em tom terrorista, o editorial da Folha afi rma: “A si-tuação é grave, a ponto de outros objetivos já começa-

Gama

instantâneo

Altamiro Borges

de bombardeio, em mãos mercenárias, atacavam a Pá-tria”, comparou.

6º Congresso do PCCO Projeto de Diretrizes para a Política Econômica e

Social do Partido e da Revolução é o tema central do evento. Por esse motivo, durante o Congresso, será vo-tada a reforma econômica, apresentada por Raúl Cas-tro, irmão de Fidel, no comando da ilha desde 2006. Os participantes também elegerão a nova cúpula do parti-do. Fidel, que renunciou ao cargo de primeiro secretário do PCC em março deste ano, por motivos de saúde, de-verá ser ofi cialmente substituído pelo irmão.

Os dirigentes decidirão ainda sobre o tempo máximo dos mandatos em Cuba. Raúl Castro propôs que o teto fosse de dez anos e conclamou a “corrigir os erros come-tidos em meio século”.

O Congresso do PCC, órgão supremo da organiza-ção partidária, teve início dia 16 de abril, data consi-derada “transcendental” da história de Cuba, por ser o 50º aniversário da proclamação do caráter socialis-ta da Revolução cubana. (Adital, com informações de Prensa Libre)

Retifi car e mudar“A NOVA GERAÇÃO está chamada a retificar e mudar sem vacilação tudo o que deve ser retifi cado e modifi ca-do, e seguir demonstrando que o socialismo é também a arte de realizar o impossível”. Esta foi uma das declara-ções que o líder cubano Fidel Castro fez por ocasião do 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC) – iniciado no dia 16 e que se estenderá até amanhã (19).

No texto, publicado dia 17 de abril no jornal ofi cial Granma e no site Cubadebate.cu, Fidel destaca ainda que a tarefa dos dirigentes de hoje é mais difícil do que no início da revolução. “Portanto, persistir nos princí-pios revolucionários é, a meu ver, o principal legado que podemos deixar-lhes. Não há margem para o erro nes-se momento da história humana. Ninguém deve desco-nhecer essa realidade”, frisou.

O líder indicou também que a direção do Partido de-ve ser “a soma dos melhores talentos políticos do nosso povo”, capaz de fazer frente ao imperialismo.

Apesar da conjuntura mais complicada, ele se disse “assombrado” com o bom preparo dos dirigentes. “Me assombrava a preparação desta nova geração, com tão elevado nível cultural, tão diferente da que se alfabeti-zava precisamente em 1961, quando os aviões ianques

Camila Queiroz

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GegêAcompanhei poucos capítulos desta bata-lha enfrentada pelo Gegê como integrante do Instituto Pólis nos encontros do Fórum Centro Vivo. Pude ver como, mesmo perse-guido, ele continuou na ativa, contribuindo com debates e ações pelo Direito à Mora-dia e tantos outros direitos. Fico feliz com a notícia e torço para que ele continue com coragem para seguir em frente.

Júlia Tavares, por correio eletrônico

Gegê 2Parabéns ao Gegê pela resistência e pe-la consciência política. Torço para que sua mágoa com o Estado vire energia positi-va na luta pela justiça e pela igualdade so-cial no Brasil. Movimentos sociais, sejamos mais unidos, para termos a força necessária para libertar os opressores das suas visões egoístas de mundo, com força e amor!

Luciano de Andrade, por correio eletrônico

Griots Fiquei encantada com a reportagem sobre os Griots do Senegal (edição 420). A for-ma com que o texto foi escrito nos reme-te a pensar que estamos vivendo a mes-ma experiência do autor que lá esteve. Pa-rabéns!

Andreia Roseno, por correio eletrônico

LíbiaPerfeito o artigo de Beto Almeida (“Ma-nipulação de bandeira”, edição 423). Cla-ro e objetivo. Faltou dizer que o Brasil es-tá sendo pressionado na ONU a aprovar uma lei antiterror no Congresso Nacional, que além de pertencer à prática, esta, sim, terrorista americana, serviria de embasa-mento contra os movimentos sociais, como aconteceu recentemente no Chile, que teve prisioneiros políticos mapuches condena-dos a penas altas, por lutarem pela retoma-

da das terras de seus ancestrais , cujo valor simbólico e cultural é inestimável.

Maísa Paranhos, por correio eletrônico

Líbia 2Compartilho, incondicionalmente, das ideias esposadas neste texto (“Manipulação de bandeira”, edição 423). Revela-se em sua leitura, portanto, a lucidez e sensibili-dade do autor frente às mazelas e agruras que a política (espúria) internacional ian-que tem perpetrado ao mundo, sobretudo sobre as nações que não se coadunam com os seus interesses imperialistas, ou seja, os estados considerados não alinhados. Uma nação com seríssimos problemas sociais não tem envergadura moral para propalar e vender ao mundo a sua “pseudo” demo-cracia; digo, sim, problemas sociais... afi -nal, o racismo, o consumo de drogas desen-freado pelos jovens, a violência em escalada no seio da sociedade (uma população car-

cerária de aproximadamente 250 mil pre-sos), discriminação impingida aos latinos,crise na saúde pública, enfi m... não corres-pondem a uma crise social instalada na ter-ra do Barack Obomba? Parabenizo o autorpelo texto muito abalizado, o que me faz serum leitor contumaz do Brasil de Fato.

João Marcelo Oggion, por correio eletrônico

ErramosNa edição 423 publicamos equivocada-mente nesta seção de cartas, sob o títuloMcDonald’s, uma mensagem de congra-tulações e sugestão de pauta enviada peloprofessor Rafael Fortes. A mensagem, di-recionada ao editor-chefe Nilton Viana nãoera uma carta de leitor. Pedimos desculpaspelo nosso erro.

A redação

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

NÃO RESTA DÚVIDA de que no Brasil Luiz Carlos Prestes tornou-se a expressão máxima da luta revolu-cionária pelo socialismo e o comunismo, pelas liber-dades democráticas e pela emancipação nacional, o que é reconhecido até mesmo pelos seus adversários.

Passados mais de 20 anos do seu desaparecimento,presenciamos uma intensa disputa por seu legado e por sua herança política entre distintos partidos e en-tidades de diversos tipos, o que vem confi rmar, maisuma vez, a importância do Cavaleiro da Esperança na História do Brasil.

Cabe lembrar, entretanto, que Luiz Carlos Prestesfoi acima de tudo um revolucionário, cuja vida dedi-cou à pugna pela formação de um partido revolucio-nário, que efetivamente viesse a contribuir para a re-volução em nosso país, entendida como a conquistado poder político pelas forças revolucionárias, empe-nhadas em acabar com a exploração do homem pe-lo homem e construir uma sociedade socialista, que preparasse as condições para a passagem ao comu-nismo. Para Prestes, a realização de reformas sociais deveria constituir apenas os possíveis degraus no ca-minho para a revolução, ou seja, jamais seria a metafi nal, apenas um meio para alcançar os objetivos re-volucionários.

Não obstante os erros políticos cometidos pelo PCB, enquanto Prestes foi seu secretário-geral - erros por ele reconhecidos e pelos quais sempre assumiu a res-ponsabilidade máxima -, toda sua trajetória à frente dos comunistas brasileiros foi dedicada ao permanen-te combate às tendências reformistas e de capitula-ção diante do inimigo de classe. Eis a razão por que as classes dominantes continuam a combater a fi gura de Luiz Carlos Prestes, seja através de repetidas calúnias, seja através do silêncio. Mesmo após 20 anos do seu desaparecimento, seu legado continua a incomodá-las pelo seu caráter questionador e revolucionário.

Em 1980, Prestes rompia com a direção do PCB lançando sua hoje célebre “Carta aos Comunistas”, em que denunciava o abandono do compromisso com a revolução da maioria dos então dirigentes do parti-do. Após ter tentado, durante anos e sem êxito, vencer as tendências reformistas cada vez mais presentes, se-ja nos documentos, seja na prática do PCB, Luiz Car-los Prestes, num gesto de extrema coragem, afastava-se daquela direção, à qual não mais se dispunha a em-prestar seu aval de reconhecido revolucionário.

Da mesma maneira como em 1980, quando denun-ciou de público o reformismo do PCB, Prestes hoje não estaria de acordo com aqueles que, em palavras reverenciando sua memória e proclamando-se so-cialistas, na prática conduzem os trabalhadores pa-ra o beco sem saída de uma política de caráter neo-liberal e reformista, de uma política de manipulação das massas populares, de distribuição de migalhas para garantir o domínio do grande capital, para ga-rantir os interesses dos grandes proprietários de ter-ras. Prestes jamais aceitaria as homenagens do presi-dente de um partido (o PCdoB), em ato comemorati-vo realizado em 25/03, que, ao mesmo tempo, defen-de no Congresso Nacional os interesses dos proprie-tários de terras. Todos que militaram junto a Prestes sabem que, nas circunstâncias atuais, ele estaria so-lidário, como sempre esteve, com as lutas pela refor-ma agrária, bastando consultar seus discursos, quan-do senador da República, para comprová-lo.

Por mais disputada que seja a herança do Cavalei-ro da Esperança por toda sorte de reformistas e apro-veitadores, empenhados em utilizar-se do seu prestí-gio junto às massas populares para melhor enganá-las, será a prática, conforme sempre postularam os pais fundadores do marxismo, que mostrará a quem irá pertencer o legado revolucionário de Luiz Car-los Prestes. Da mesma forma como o legado de Jo-sé Martí pertence hoje aos homens e mulheres que fi -zeram a revolução em Cuba, o legado de Prestes per-tencerá aos brasileiros e às brasileiras que realizarão a revolução brasileira.

Anita Leocadia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes – escreve

uma vez por mês neste espaço.

Anita Leocadia Prestes

O legado de Prestes?

O legado de Prestes pertencerá aos brasileiros e às brasileiras que realizarão a revolução brasileira

comentários do leitor

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brasilde 21 a 27 de abril de 20114

Descaso ambiental na Baixada FluminenseLIMPEZA URBANA População de Seropédica protesta contra instalação de aterro sanitário sobre um aquífero.

Eduardo Sáde Seropédica (RJ)

O CENTRO DE TRATAMENTO de Resí-duos (CTR) Santa Rosa, em Seropédica, na Baixada Fluminense, é alvo de ques-tionamento da população local. O início das atividades do centro está previsto pa-ra este semestre. Pesquisadores da Uni-versidade Federal Rural do Rio de Janei-ro (UFRRJ) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), além de grande parte dos moradores, criticam o método do empreendimento e sua lo-calidade, por fi car sobre um aquífero, lençol de água doce subterrânea. O Ins-tituto Estadual do Ambiente (Inea), ór-gão responsável pela licença prévia de instalação do projeto, atestou a seguran-ça e efi ciência da empresa Ciclus, que re-ceberá até 9 mil toneladas de lixo diaria-mente.

A principal contestação dos especia-listas e do secretário municipal de Meio Ambiente e Agronegócios de Seropédica, Ademar Quintella, é que em caso de va-zamento a empresa não terá solução pa-ra o problema, já que com a quantidade elevada de resíduos despejados por dia fi cará difícil manejar o lixo para tratar da contaminação. Segundo a presidente do Inea, Marilene Ramos, todos concordam com a necessidade de se ter um aterro, mas ninguém o quer perto de sua casa. Para ela, não há tecnologia mais avança-da em lixo urbano até que se tenha viabi-lidade econômica para transformá-lo em energia, mas em caso de contaminação o problema pode ser contido. “Em caso de vazamento pode-se utilizar barreiras de contenção para evitar o avanço da conta-minação, por meio de barreiras hidráuli-cas ou impermeáveis verticais”, indica.

O laudo apresentado ao Inea pelos pesquisadores da Rural e da Embra-pa contém mais de 150 páginas. Segun-do ele, o Estudo de Impacto Ambien-tal (EIA) realizado pela Ciclus é defa-sado e equivocado. A análise aponta pa-ra uma contaminação imediata através do rio Piranema, aquífero que desembo-ca no rio Guandu, principal abastecedor de água do Rio de Janeiro. As pesquisas sustentam que ao contrário do aquífe-

ro Guarani, maior do sudeste e situado abaixo de uma rocha sólida, o Piranema fi ca debaixo de um terreno arenoso, que pode ser acessado a menos de 2 metros em alguns trechos. Com isso, toda a re-gião fi cará vulnerável à contaminação. “Não existe um estudo da Embrapa e da UFRRJ, pois tanto o trabalho da técnica quanto dos professores não foram refe-rendados por suas instituições. Eles fo-ram apresentados e considerados, mas a nossa equipe técnica não chegou à mes-ma conclusão que eles, ao ponto de im-pedir a construção”, afi rma Marilene.

Futuro ameaçadoA brincadeira das crianças no rio, o

potencial agropecuário, a pesca regio-nal e outros costumes da população das vilas nos arredores do rio Piranema po-dem fi car comprometidos. O calor, mau cheiro e o barulho serão inevitáveis no bucólico Chaperó, bairro mais próxi-mo da instalação. Num dos caminhos de Seropédica para o aterro, a maioria dos moradores está desinformada. Cerca de 10 agentes de saúde na porta de um pos-to municipal afi rmaram que não sabem de nada e nem foram orientados para possíveis tratamentos de doenças com a vinda do lixo, mesmo com a presença de dengue na região. “Acho que teve dinhei-ro para alguém e o povo é que vai sofrer. Moramos há anos aqui e nunca veio na-da para cá”, comentou um dos agentes,

que não quis se identifi car. “Pra mim es-tá bom, não adianta fi car contra, porque já está acontecendo. Em todos os países tem isso, não tem jeito. Se não for aqui é em outro lugar”, conforma-se o comer-ciante Elias Borges.

ProtestoNo Dia Mundial da Água (22/03) mui-

tos alunos, técnicos, professores da Uni-versidade Federal Rural do Rio de Janei-ro (UFRRJ) e moradores realizaram no centro de Seropédica um protesto para-lisando a rodovia BR 465, que liga o Rio a São Paulo. Além da crítica ambiental, o protesto se concentrou nos possíveis en-traves ao crescimento e desenvolvimen-to do município, como os transtornos no trânsito, que já é caótico, com a estima-tiva de aumento de mais 800 caminhões por dia na região, mesmo com a previsão do Arco Rodoviário. Também houve uma manifestação na porta da Assembleia Le-gislativa do Rio de Janeiro (Alerj) no dia 31 de março.

A presidente da Associação de Docen-tes da UFRRJ (ADUR-RJ), Ana Cristina

dos Santos, afi rmou que a entidade en-trou com ações judiciais junto à socie-dade civil questionando a construção do aterro sanitário. Ela também disse que oConselho Universitário da UFRRJ deli-berou em dezembro passado para a Ru-ral entrar com uma ação na Justiça, masnada foi feito pelo reitor. O Diretório Central dos Estudantes da UFRRJ ela-borou uma moção de repúdio ao aterro,responsabilizando o governador do Es-tado, Sérgio Cabral (PMDB), e o prefei-to, Eduardo Paes (PMDB), pelas obras em relação ao “embelezamento da cida-de para os eventos esportivos de 2014 e2016”. Integrante do Conselho de Cha-peró, bairro colado ao CTR, Sueli Ca-bral diz que os panfl etos distribuídos, li-vros e reportagens são “lindos”, só que arealidade vista de perto é outra. Segun-do ela, não será feito tratamento de re-síduos no local, mas sim um lixão igualao de Nova Iguaçu, também na Baixada Fluminense.

“Ninguém autorizou ou compartilhou com nada, só houve uma reunião no [co-légio público] Brizolão chamada por nós e nada fi cou esclarecido. Aqui é uma área muito carente e eles estão pegando as pessoas menos esclarecidas, dão aulas e as levam de um lado para o outro dizen-do que haverá emprego; isso é um ‘me engana que eu gosto’. As pessoas vão se iludindo, e quando perceberem vão que-rer voltar atrás”, critica a aposentada.

de Seropédica (RJ)

José Claudio de Souza Alves, de-cano de Extensão da UFRRJ, acom-panha o processo do aterro sanitário de perto e produziu um documentá-rio denunciando os danos ambientais na vizinha Nova Iguaçu. Para ele, es-se é um investimento de um monopó-lio que armazena lixo in natura e usa a tecnologia mais primitiva e degra-dante. O professor sustenta que exis-te a possibilidade de as empresas Ha-ztec e S.A. Paulista, também do setor de aterros sanitários, formarem junto à Ciclus um conglomerado muito po-deroso. Sua suspeita decorre dos mes-mos procedimentos utilizados pelas empresas, fato constatado nas suas visitas ao aterro em Nova Iguaçu.

“A Ciclus foi mudando de nome. Ela é a Haztec que em Nova Iguaçu cria o aterro com o nome S.A. Paulista. Comprovamos que eles contamina-ram toda a água da região, com índice altíssimo de fósforo, amônia e ferro. A gente vai obtendo informações de que são as mesmas pessoas. Colocam ou-tra empresa para fazer a mediação e a negociação dessas coisas, e é um em-preendimento caríssimo”, denuncia o decano.

A reportagem teve acesso ao Relató-rio de Impacto Ambiental (RIA) da Ci-clus, que contém o timbre da S.A. Pau-lista, e em um dos telefonemas uma

de Seropédica (RJ)

Maria José Ferreira (PT), vereadora de Seropédica, recordou a chegada da Cidrus à cidade. O processo começou quando a empresa S.A. Paulista comprou a fazenda Santa Rosa, na região de Chaperó/Pirane-ma. “Em 2007, o prefeito Darci dos An-jos encaminhou à Câmara um Projeto de Emenda à Lei Orgânica nº 001/2007 com a fi nalidade de permitir a instalação do Aterro Sanitário. Na mesma data, o prefei-to enviou à Câmara projetos de leis com a fi nalidade de autorizar a instalação da uni-dade, reduzir a Área de Proteção Ambien-tal (APA), criar uma Área de Especial In-teresse Sanitário e Ambiental, e permitir a uma empresa privada gerir esse tipo de empreendimento”, recordou.

Segundo a vereadora, com a Câmara em recesso, o prefeito convocou uma sessão extraordinária e os quatro projetos aci-ma não foram aprovados, porque a popu-lação tomou ciência e pressionou na porta da casa legislativa. No entanto, no dia 9 de novembro de 2007, os projetos foram pro-tocolados e aprovados dois dias depois. O Tribunal de Justiça validou as leis, apesar de o regimento interno da Câmara exigir intervalo de 10 dias para emendar a lei or-gânica. Uma das últimas ações da prefei-tura foi conceder o alvará de obras para a Ciclus iniciar as construções, pois o então prefeito, Darci dos Anjos, foi cassado por crime eleitoral.

Assim que Alcir Martinazzo assumiu, foi

Defesa da CiclusCom um investimento de R$ 400 mi-

lhões, sob a concessão da Comlurb por 15 anos, a Ciclus depositará todos os resídu-os de Itaguaí, Seropédica e da capital fl umi-nense. A empresa informou que terá tecno-logia capaz de garantir a proteção ao solo, subsolo e água, com censores para detectar vazamentos. “Exemplo disso é a tripla ca-mada de impermeabilização, que conta com tecnologia inédita na América Latina. Além disso, os principais passivos gerados pela decomposição dos resíduos, o chorume e o biogás, serão transformados em ativos, co-mo água de reuso e energia elétrica. É um empreendimento totalmente alinhado com as determinações da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e que cumpre to-das as exigências legais”, informa. (ES)

atendente da empresa identifi cou-se como funcionária da Haztec, o que re-força a apreensão do professor. A Ci-clus informou, em nota, que sua Cen-tral de Tratamento de Resíduos (CTR) é uma Sociedade de Propósito Especí-fi co (SPE) formada pela Haztec e pela Julio Simões. A empresa não respon-deu se tem envolvimento com o Ater-ro de Adrianópolis, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

O decano da UFRRJ também criti-ca o que está sendo feito com a popu-lação pouco instruída e de baixa renda no local, pois, segundo ele, o municí-pio está com graves problemas econô-micos e os 800 empregos oferecidos causam um alvoroço, sem sequer as pessoas terem noção das doenças que podem chegar com o empreendimen-to. Ele também destaca uma alternati-va apresentada pela UFRRJ.

“Desde 2007, eles não trabalharam em nenhuma alternativa a este pro-jeto, e com o desespero com o lixão de Jardim Gramacho estão atrope-lando todos os procedimentos. Tem uma proposta aqui de que seriam cin-co pontos, cada um trabalhando com 1,5 mil toneladas de lixo por dia, mas com reciclagem, coleta seletiva e pro-dução de energia. Todo um tratamen-to adequado para esses materiais se-rem reutilizados, tecnologia do que há de mais moderno. Isso seria uma saída para o Rio de Janeiro”, afi rma José Claudio. (ES)

pedida uma suspensão do alvará de insta-lação, que foi invalidada pela Ciclus jun-to à Justiça. “De 11 ações que tramitam há mais de 3 anos no Ministério Público, a única julgada pelos juízes foi a de suspen-são de alvará. Foi feita uma solicitação pa-ra que o juiz impetre um perito de hidro-geologia para apuração, junto a uma assis-tente técnica da prefeitura, mas não houve retorno”, critica o secretário municipal de Meio Ambiente de Seropédica. (ES)

Caminho facilitadoChegada da Cidrus à região contou com medidas “benévolas” do governo municipal

Monopólio disfarçadoSuspeita-se que as empresas Haztec, S.A. Paulista e Ciclus reúnem-se para formar um cartel

As pesquisas sustentam que o rio Piranema fi ca debaixo de um terreno arenoso, que pode ser acessado a menos de 2 metros em alguns trechos

“Acho que teve dinheiro para alguém e o povo é que vai sofrer. Moramos há anos aqui e nunca veio nada para cá”

O laudo apresentado por pesquisadores da UFRRJ e da Embrapa mostra que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) realizado pela Ciclus é defasado e equivocado

RicardoNogueira

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de 21 a 27 de abril de 2011 5brasil

Marcio Zonta de Bom Jesus das Selvas (MA)

A VILA SANSÃO fica a 70 quilômetros da cidade paraense de Parauapebas, on-de está concentrada a exploração mine-ral do projeto de Carajás, liderado pe-la Vale. A vila é constituída de 257 lotes e conta com uma escola de 17 professo-res e 360 alunos, da educação infantil ao ensino fundamental.

A população da vila, que surgiu em 1984, é de 1,2 mil pessoas, grande par-te atraída nos últimos tempos pela pro-messa de emprego na Vale e suas três terceirizadas, entre elas a Odebrecht, que vieram para a implantação da infra-estrutura do projeto Salobo, que explora cobre na região.

Situada no entorno da Floresta Nacio-nal de Tapirapé, sob domínio de proje-tos da Vale, os moradores passaram a conviver com a chegada de 7 mil ho-mens, abrigados em grandes alojamen-tos construídos dentro da vila.

Antes a vila contava com quatro igre-jas evangélicas, uma católica e quatro pequenas casas comerciais, com ven-da de gêneros alimentícios. Hoje, a vila passou a ter nove bares e seis casas con-sideradas como locais de prostituição.

“Como consequência, o índice de ex-ploração sexual infantil aumentou dras-ticamente. Já foram constatados três casos de estupros. São adolescentes que deixam a escola e vão para prostituição, outras permanecem na escola e à noite caem na prostituição”, revela o soció-logo Raimundo Gomes da Cruz Neto, do Movimento dos Atingidos pela Minera-ção no estado paraense.

TâmaraAos 17 anos, com traços indígenas,

e uma estatura de aproximadamente 1,70m, Tâmara* é uma dessas adoles-centes citadas por Neto. Cursa o primei-ro ano do ensino fundamental à tarde e à noite faz programa numa das casas de prostituição da vila, muito frequentada por funcionários da Vale e de suas ter-ceirizadas.

“Moro na vila aqui há três anos com meus pais e meus três irmãos. Primei-ro viemos de uma cidadezinha pequena perto de Belém para Parauapebas, pro-curando emprego para o meu pai, de-pois disseram que era aqui que tería-mos emprego e aí viemos para cá”, con-ta Tâmara.

O pai realmente arrumou um empre-go, mas não na Vale, nem em suas ter-ceirizadas. Hoje ele retira vegetações daninhas em fazendas próximas à Vi-la Sansão.

Já Tâmara, quase todas as noites adentra uma casa, que foi adaptada pa-ra receber homens das empresas insta-ladas na vila. Com um balcão à esquer-da margeado de bancos, reserva quatro quartos ao longo de um corredor que termina em um quintal escuro ao fundo. A “casa” tem no mínimo seis adolescen-tes por noite para atender aos clientes.

“Em dia de semana, venho aqui umas 20h e vou embora lá pela meia noite. Às sextas e sábados fi co até mais tarde, umas 2h, 3h, pois tem mais homens”, diz Tâmara.

Uma senhora atende os clientes que pedem bebidas: cerveja, cachaça ou al-gumas marcas de uísque nacional. En-tre eles está Roberto*. “Frequento aqui faz tempo, desde que cheguei, há um ano. Venho de Goiás para trabalhar nu-ma empresa aqui. Sabe como é, né? Só trabalhar, não dá”, afi rma.

Roberto, que se negou a revelar o no-me da empresa onde trabalha, revela que os frequentadores do local têm ci-ência de que a casa explora menores. “A gente sabe que a maioria das meninas é ‘de menor’, nossos chefes sabem, as em-presas sabem, mas, poxa, vir para cá no meio do nada morar com um monte de macho, sem nada para fazer de noite, fi -ca complicado”.

Efeitos nefastos da mineraçãoEXPLORAÇÃO Entorno de Parauapebas (PA) vê crescimento da prostituição infantil após chegada de empreendimentos liderados pela Vale

“Sem discernimento”Em meio a casas de taipa, de onde sa-

em crianças sujas e descalças, desponta protegido por enormes portões um pré-dio com um belo alojamento de funcio-nários da Vale, trazendo o contraste en-tre a pobreza da região e o poderio eco-nômico da mineradora.

Diferença esta que desperta a aten-ção de algumas adolescentes da cidade, com esperança de terem uma vida me-lhor. “Elas veem essas camionetes das empresas andando por aí, com homens com poder aquisitivo maior, e um alo-jamento como este da Vale em meio a tanta pobreza, isso mexe com o imagi-nário das meninas, o que as faz procu-rar os funcionários”, explica Neto.

Passa das 16h do sábado, 25 de mar-ço, e Cristina*, uma adolescente de 15 anos, maquia-se em frente a um minús-culo espelho, pendurado numa das pa-redes da casa de taipa de três cômodos, que divide com a mãe, vendedora am-bulante, e quatro irmãos mais novos.

Escolhe atentamente a roupa que vai vestir, entra num dos cômodos da ca-sa e depois de 20 minutos reaparece

pronta. Com seus longos cabelos amar-rados, olha pela última vez ao espelho, para antes das 18h sair de casa e ir até o portão do alojamento da Vale ou pa-ra algum bar da cidade frequentado por funcionários.

“A gente fi ca no portão acenando para os homens de dentro do prédio da em-presa, muitos deles saem para conversar com a gente. Aí marcamos alguma coisa de passear ou de ir a algum barzinho”.

Cristina revela que perdeu sua virgin-dade assim, aos 13 anos, com um fun-cionário da Vale. “Foi bom. Todas as vezes em que saímos, ele me dava al-gum dinheiro”.

Ao escurecer, no portão do alojamen-to da Vale, aglomera-se meia dúzia de meninas que prontamente são atendi-das por alguns homens, indo até o portão conversar e acariciar, num primeiro mo-mento, as mãos das adolescentes através dos portões.

Para Nonato Masson, advogado do Centro da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (CDVDH) as “crianças e adolescentes não se prostituem, pois ain-da não têm discernimento para assumir isso como profi ssão, pois estão em for-mação psicológica e social. Portanto, o que ocorre é que são exploradas sexual-mente, mesmo”.

SurtoDona Maria Oliveira teve 19 fi lhos,

dentre eles, dez apenas sobreviveram diante das difi culdades oriundas da po-breza vivida por ela e pelo marido na ci-dade de Bom Jesus das Selvas, um muni-cípio no interior do Maranhão, que rece-

beu no início do ano passado mais de 3 mil homens que trabalharão na duplica-ção da Estrada de Ferro de Carajás, sob concessão da Vale.

Dos nove fi lhos que vingaram, três são homens e sete mulheres, três delas entre 14 e 16 anos. Segundo Meriam, da Pasto-ral da Criança de Bom Jesus das Selvas, as três meninas já frequentaram pontos de prostituição.

Algo que se tornou corriqueiro paramuitas meninas da cidade, conformerelata Tatiane Albuquerque, que coor-dena no Centro de Defesa da Vida e dosDireitos Humanos de Bom Jesus dasSelvas um projeto cultural voltado pa-ra adolescentes em risco de exploraçãosexual. “São meninas pobres que pas-saram a frequentar pontos de prosti-tuição, que aumentaram com a chega-da das empresas”.

O conselho tutelar da cidade constatou que aumentou o número de adolescentes grávidas dos 13 aos 16 anos, além das do-enças sexualmente transmissíveis, des-de o início das obras de duplicação da via férrea na cidade.

Para Gildázio Leão, funcionário da Se-cretaria de Saúde de Bom Jesus das Sel-vas, com a chegada das empresas sem políticas defi nidas para sanar ou mini-mizar os problemas, corre-se o risco de acontecer um surto de doenças contraí-das sexualmente no município.

“Se a gente tem um aumento da popu-lação com a chegada das empresas, pes-soas que chegam e que já podem ter o ví-rus, ou que mantiveram relações despro-tegidas com essas menores podemos ter uma aumento considerável de pessoas infectadas”, esclarece.

Atualmente 25 pessoas foram diagnos-ticas com o HIV positivo, apenas 12 estão em tratamento no município, cinco com idade entre 13 e 20 anos, segundo dados da Secretaria de Saúde de Bom Jesus das Selvas.

Para Leão, no entanto, esse número pode ser até duas vezes maior, já que não se tem obrigatoriedade da identifi cação do soropositivo no Brasil.

Rebeca*, uma das fi lhas de dona Ma-ria Oliveira, é uma das adolescentes com suspeita de estar infectada com o vírus, mas tem medo de fazer o teste. Aos 14 anos, frequenta assiduamente os pontos de prostituição da cidade por troca de be-bida e dinheiro. “O que antes era difi cul-toso para as meninas, ganhar dinheiro, de certo modo tornou-se fácil, pois ho-je quem frenquenta esses bares são ho-mens assalariados”, diz Albuquerque.

* Nomes fi ctícios

“Crianças e adolescentes não se prostituem, pois ainda não têm discernimento para assumir isto como profi ssão. Portanto, o que ocorre é exploração sexual”

“São meninas pobres que passaram a frequentar pontos de prostituição, com a chegada das empresas”

Sem políticas defi nidas para sanar ou minimizar os problemas, corre-

se o risco de um surto de doenças contraídas sexualmente no município

“Foi bom. Todas as vezes em que saímos, ele me dava algum dinheiro”

Bar em Bom Jesus das Selvas, município que recebeu mais de três mil homens para trabalhar na Estrada de Ferro de Carajás

Reprodução

1,2mil era o número de

habitantes da Vila Sansão que recebeu

7mil trabalhadores

Com a chegada das empresas, Bom Jesus das Selvas corre o risco de viver surto de doenças sexualmente transmissíveis

Reprodução

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brasilde 21 a 27 de abril de 20116

História realSem medo da verdade histórica,

o Uruguai acaba de revogar a lei da anistia ampla para poder julgar os que praticaram crimes de lesa-hu-manidade durante a ditadura civil-militar (1973-1985) naquele país. Na mesma linha de corrigir o passado, a Justiça da Argentina acaba de condenar à prisão perpétua o último presidente da ditadura militar (1976-1983), o general Reynaldo Bignone, por violação dos direitos humanos. E aqui, nada de esclarecer a verdade?

DesnacionalizaChamados pelo ex-presidente Lula

de “heróis nacionais”, os usineiros da cana-de-açúcar estão apreensivos com o acelerado processo de entrada do capital estrangeiro no setor. Eles lembram que no início do governo Lula, em 2003, apenas 5% das usi-nas estavam nas mãos de estrangei-ros, e agora, mais de 35% das usinas pertencem a grupos multinacionais. Assim, do jeito que vai a coisa, não sobrará “herói nacional” para contar a história.

Pânico chinêsA Associação dos Produtores de

Soja não esconde o seu temor com a chegada pesada dos chineses no agronegócio, tanto na compra de ter-ras, compra da produção, estocagem de grãos e venda de equipamentos agrícolas. Para se ter uma ideia da rapidez do processo, em apenas cin-co safras da soja, no Mato Grosso, a exportação para a China saltou de 19% para 62% do total exportado. Quem segura a voracidade chinesa?

Recuo contínuoNos anos de 1990 e início dos anos

2000, boa parte da esquerda brasi-leira deixou de lado a bandeira da luta pelo socialismo e adotou como principal referência a luta contra o neoliberalismo e o imperialismo. Mais recentemente parcela dessas esquerdas aderiu ao modelo social-liberal e passou a aceitar o imperia-lismo sem maiores questionamentos. Por isso fi ca difícil saber o que as caracteriza no campo da esquerda. O que são afi nal?

Gestão modelarPrimeiro o governo anunciou que

a expansão da banda larga seria feita pela estatal Telebrás. Mas, como as empresas de telefonia chiaram, o governo decidiu entregar a mina de ouro para a exploração privada, e de-fi niu o preço de R$ 35 mensais pelo serviço. Como as empresas privadas chiaram novamente, o governo fala agora em subsidiar o preço do servi-ço. Está claro? É o dinheiro público que vai garantir o lucro das empre-sas privadas.

Valores errados O último censo do IBGE mostra

que as “causas externas” continuam crescendo nos registros da morta-lidade dos jovens de 15 a 24 anos. Estão muito acima (73,6%) das “causas naturais” (26,4%). As mortes acontecem por homicídio (39,7%), acidentes de veículos (19,3) e por suicídio (3,9%). O índice de suicídio entre os jovens é muitas vezes maior do que a média da sociedade. Está nacara que as causas geradoras dessa violência têm a ver com os valores dominantes.

PrivatizaçãoNa mesma trilha de Collor de

Mello, Fernando Henrique Cardoso e Lula, o governo Dilma continua fi el ao programa de privatização do Brasil: o próximo passo será a entre-ga dos aeroportos para a exploração privada, com licitação em maio e leilão até julho. Como ocorreu nas privatizações anteriores (telefonia, energia elétrica, rodovias etc), pri-meiro se dá o sucateamento, a des-truição pública pela mídia e, depois, a “solução privada”.

Dinheiro curtoO indicador Serasa Experian regis-

tra que a inadimplência com cheques sem fundos continua em elevação em 2011, pelo terceiro mês conse-cutivo, com os seguintes dados de devolução: janeiro, 1,70%; fevereiro, 1,83%, e março, 2,13%. Os analistas justifi cam essa situação como sendo resultado de gastos sazonais com férias, carnaval, material escolar e pagamento do IPVA. Será mesmo?

Punição exemplarO governador do Rio Grande do

Sul, Tarso Genro, afastou de suas funções, no dia 11 de abril, 35 agentes penitenciários – de duas cadeias em Caxias do Sul – porque foram acu-sados pelo Ministério Público pela prática de tortura, entre 2008 e 2010. A condenação deles acarreta em per-da de cargo público. Está aí um bom exemplo para procuradores, promo-tores e governadores de todo o Brasil.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Charles Soutode Sirinhaém/PE

“ESTÃO MATANDO árvore mais velha que eu e você”. Percorrendo os labirin-tos do rio Sirinhaém com a destreza na-tural de quem se criou naquelas águas e mangues, Gino conduz sua pequena baiteira (embarcação) pelos estreitos braços d’água até chegar à região co-nhecida pelos pescadores locais como Monteiro, no município de Sirinhaém, zona da mata sul de Pernambuco. “To-do ano eles fazem isso. Vão derrubando o mangue pouco a pouco pra botar ca-na no lugar”.

Ainda é possível ouvir o motor dos tratores quando a baiteira ancora. Gi-no mantém-se em silêncio por alguns instantes antes de desembarcar. “Dis-seram que um deles anda armado”, ex-plica. Logo não se ouve mais o ronco dos motores e o silêncio só é rompido por assobios vindos de diferentes can-tos da mata. “Isso não é assobio de bi-cho”, alerta o pescador.

Mas desligar motores e fugir no meio

da mata é um recurso inútil, já que é impossível acobertar a estrada clandes-tina que abre caminho onde antes ha-via vegetação nativa de mangue e Ma-ta Atlântica. Com cerca de seis metros de largura e um quilômetro de compri-mento, a estrada está sendo construí-da em paralelo ao Riacho Sibiró, um afl uente do Rio Sirinhaém. “Isso daí é pra facilitar o acesso dos caminhões da Usina quando começarem a plantar ca-na por aqui”, deduz Gino.

À beira da estrada, que ainda possui marcas recentes de tratores, diversos pés de mangue-branco estão tombados. O local faz parte de uma Área de Preser-vação Permanente (APP) localizada em terras públicas aforadas à Usina Trapi-che, responsável por sua manutenção. Mas ao chegar ao fi nal da via clandes-tina, o que se vê estampado nas escava-deiras, compactadeiras e carregadeiras abandonadas às pressas é o emblema da própria Usina Trapiche.

Isso não é surpresa para Gino. “Nes-sa época é sempre assim. Acaba a sa-fra e eles começam a derrubar na baixa

o mangue pra depois irem colocando a cana. Essa área aqui de Monteiro era tu-do mata. Uma beleza só. E agora não tem mais nada”, constata o pescador antes de embarcar de volta em sua baiteira. Aliás, Gino não se chama Gino. Seu nome foi preservado por motivos de segurança.

A denúncia de Gino e dos pescado-res de Sirinhaém ganhou as páginas dos jornais pernambucanos dia 16 de abril. Em entrevista ao Jornal do Commér-cio, o presidente da Associação de Pes-cadores e Armadores de Sirinhaém, Flá-vio Wanderley da Silva, afi rmou que o aterro do manguezal e o desmatamen-to da fl oresta nativa começaram há 15 dias. Por se tratar de uma APP, essa ve-getação só pode ser derrubada mediante projeto de lei encaminhado pelo gover-no do Estado à Assembleia Legislativa, sendo que antes disso o governador pre-cisa decretar a obra como de interesse social ou de utilidade pública. “Mas não há nenhuma placa da obra. É uma es-trada clandestina”, afi rmou o presiden-te da Associação de Pescadores, acres-centando que o desmatamento provoca-do por essa obra prejudica a pesca arte-sanal praticada na região. “Muitas pes-soas dependem da pesca por aqui. E sem o mangue não tem caranguejo, nem guaiamum, nem aratu. Esperamos que a CPRH (Agência Pernambucana de Meio Ambiente) e o Ibama (Instituto Brasilei-ro de Meio Ambiente e Recursos Natu-rais Renováveis) fi scalizem”, conclamou Flávio. Uma equipe da CPRH visitou o local no dia 17 de abril para averiguar a denúncia e dar início à elaboração do auto de infração.

de Sirinhaém/PE

Em 2008, o Ibama realizou a operação “Engenho Verde” e autuou a Usina Tra-piche e todas as usinas sucroalcooleiras de Pernambuco por ausência de licen-ça ambiental do cultivo da cana-de-açú-car, além de interpor ações civis públicas requerendo a adequação ambiental legal das usinas. No total, a operação “Enge-nho Verde” aplicou R$ 120 milhões em multas. Um ano depois, em outubro de 2009, o Ibama fl agrou o morticínio de peixes no Rio Sirinhaém provocado por dejetos da lavagem industrial da cana que estavam sendo despejados pela Usi-na Trapiche nos afl uentes do rio. A Usina foi multada em R$ 1,5 milhão.

A esse rol de crimes ambientais come-tidos pela Usina Trapiche soma-se um truculento processo de expulsão dos an-tigos moradores das Ilhas de Sirinhaém. As famílias que habitavam as ilhas do estuário do Rio Sirinhaém desde o início do século passado, constituindo uma co-munidade tradicional baseada na pesca, agricultura, criação de animais e extrati-vismo, sofreram nas últimas décadas se-guidas perseguições da Usina Trapiche, como ameaças, apreensão de material de pesca, expulsões, queima e demoli-ção de casas. O resultado é que todas as 53 famílias foram expulsas das Ilhas. Apenas as pescadoras Maria de Nazare-th e Maria das Dores resistiram no local.

Mas em novembro do ano passado, após 12 anos de uma disputa judicial movida pela Usina contra a família de Nazareth e das Dores, as pescadoras foram obri-gadas a abandonar suas casas em obedi-ência à decisão do Juiz da Vara Única de Sirinhaém, Luíz Mario de Miranda.

PuniçãoDiante das constantes violações aos

direitos humanos e ambientais perpe-tradas pela Usina Trapiche, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que há 10 anos acompanha a luta dos ilhéus e pescado-res de Sirinhaém, lançou nota pública dia 18 de abril, exigindo “que os infrato-res do crime ambiental respondam civil e penalmente e que seja providenciado ur-gentemente a retirada de todo material usado no aterramento da área de preser-vação permanente para que o ecossiste-ma seja reconstituído”.

No entanto, para a CPT, a solução defi -nitiva para acabar com esses desmandos é mais ampla. Desde 2006, pescadores, ilhéus e ribeirinhos, em parceria com di-versas organizações ambientalistas e de direitos humanos, vêm pleiteando a cria-ção de uma Reserva Extrativista (Resex) na região. Nesse mesmo ano, o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) deram iní-cio aos estudos para a criação da Resex. Após realizar Consulta Pública em agosto de 2009, o procedimento administrativo foi concluído, restando apenas a anuên-

cia do governador Eduardo Campos pa-ra que a presidência da República publi-casse o decreto de criação da Resex. No entanto, até o momento não houve ne-nhuma manifestação de Eduardo Cam-pos sobre a criação da reserva – o que demonstra, na opinião das organizações que acompanham o caso, a subserviência do governo estadual aos interesses do se-tor sucroalcooleiro.

Conduzindo sua baiteira, vendo o pouco que resta das matas e mangues ser tomado pela cana, o pescador Gi-no parece abatido. Mas por um instante ele avista algo que o faz mudar de sem-blante e desligar o motor de sua baitei-ra. Sorridente, aponta para uma árvo-re que se destaca entre a vegetação. “Tá vendo aquele pé de limão ali? É tão ve-lho no mundo! Quando eu era crian-ça, sempre vinha de barco pegar limão aqui. Não sei quem plantou ele. Deve ter sido um dos moradores antigos. É me-lhor aproveitar antes que arranquem es-se também”. (CS)

Conduzindo sua baiteira, vendo o pouco que resta das matas e mangues ser tomado pela cana, o pescador Gino parece abatido

Usina Trapiche tem histórico de antecedentes criminaisNão é a primeira vez que a Usina Trapiche vê seu nome atrelado a crimes ambientais

Cana abre caminho por cima dos manguezais de PE

CRIME AMBIENTAL Pescadores de Sirinhaém denunciam Usina Trapiche por desmatamento em Área de Preservação Permanente

“Mas não há nenhuma placa da obra. É uma estrada clandestina”, afi rmou o presidente da Associação de Pescadores

Tratores abrem estrada clandestina paralela ao Riacho Sibiró para facilitar o transporte da cana

Charles Souto

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brasil de 21 a 27 de abril de 2011 7

Pedro Carranode Curitiba (PR),

BASTA POUCO, apenas um show da banda irlandesa U2, para gerar fi las e atrasos nos aeroportos de São Paulo e Paraná. Basta menos ainda para o coro alarmista do “apagão” aéreo ganhar for-ça, puxado pela mídia empresarial e con-servadores de plantão.

Somado a isso, em anos recentes, a ma-nifestação dos trabalhadores do setor ae-roportuário tende a crescer. Afi nal, 154 milhões de pessoas circularam nos ae-roportos nacionais em 2010, confi guran-do um aumento de 117% em oito anos no acesso a esse meio de transporte. Entre diversos fatores, foi determinante para isso o crescimento conjuntural do núme-ro de empregos no Brasil e a diminuição de preço do serviço.

CopaEstudo do Instituto de Pesquisa Eco-

nômica Aplicada (Ipea) gerou polêmica ao mostrar que nove aeroportos não es-tarão com as obras concluídas até o co-meço da Copa do Mundo de 2014, en-tre 13 terminais analisados, que recebe-rão investimentos do governo. A oposi-ção usa os dados disponíveis para refor-çar o discurso de privatização do setor e suposta incapacidade de gestão da esta-tal Infraero.

Em relação ao modelo, o setor aéreo brasileiro já está submetido à lógica neo-liberal da reestruturação produtiva.

A mira é então privatizar a infraestru-tura dos aeroportos, controlada pela es-tatal Infraero, uma das maiores do mun-do, cuja atribuição pertence ao Ministé-rio da Defesa. Durante o governo Lula, o ministro Nelson Jobim defendia que a administração de todos os aeroportos fosse concedida à iniciativa privada. Dil-ma Rousseff, em suas primeiras declara-ções, mostrou-se defensora de um mode-lo aberto ao investimento privado. Em março, criou a Secretaria de Aviação Ci-vil (SAC), para gerenciar a agência regu-ladora do setor (Anac) e também a pró-pria Infraero. O setor torna-se cada vez mais lucrativo (veja dados abaixo), e em-presas como a consultoria Mckinsey, ci-tada no estudo do Ipea, anseia para o se-tor um investimento total de 29,5 bilhões de dólares entre 2011 e 2030.

Fato é que a capitalização no ramo au-mentou ao longo do mesmo período, de

Voo raso, entre a pressa e a privatizaçãoINFRAESTRUTURA Estudo do Ipea alerta sobre atraso nas obras em aeroportos e acelera debate sobre privatização

um total de R$ 502 milhões para R$ 1,3 bilhão em 2010, ano em que o Brasil foi eleito país sede da Copa e dos jogos olím-picos de 2016.

No total, foram R$ 8,8 bilhões. Porém, de acordo com o mesmo estudo, a desa-celeração da economia prevista deve re-fl etir no ramo. O crescimento de 1% do PIB tem correspondido a um aumento de demanda no setor aéreo de 3,17%.

Oligopólio consolidadoA economista Leda Paulani, professo-

ra da Faculdade de Economia da USP, comenta que o setor passou por um mo-vimento de centralização de capitais pa-ra obter os lucros de hoje: “Também te-ve um momento muito turbulento, com grande quantidade de empresas que abriram e fecharam, até que foi conso-lidando o oligopólio da Gol e TAM, uma centralização que facilita para que elas tenham lucratividade maior. Quais as condições para o setor privado se interes-sar na privatização dos aeroportos? Au-mento de taxas de embarque seria uma delas”, sugere.

O estudo do Ipea focaliza a relação en-tre a capacidade de cada aeroporto e a relação com o aumento da demanda de

passageiros até 2014. No período de 2011 e 2014, a perspectiva é de que a deman-da no setor aumente em 46,4%, ou se-ja, 10% ao ano. O instituto governamen-tal não se aprofunda, no entanto, sobre questões relativas ao impacto nos traba-lhadores do ramo e nas condições estru-turais de pista etc.

O governo, por meio do Secretário de Aviação Civil, nega a constatação de atra-so e incapacidade dos terminais. Jun-to à imprensa, a Infraero manifestou-se dizendo que não chegou a participar da elaboração da pesquisa do Ipea, “de mo-do que não pode fazer qualquer tipo de avaliação a respeito”, como publicou a assessoria de imprensa da estatal.

Até o fechamento desta edição, a re-portagem do Brasil de Fato não conse-guiu falar com os pesquisadores respon-sáveis pelo estudo do Ipea.

de Curitiba (PR)

O estudo do Ipea averiguou que os ae-roportos do Rio de Janeiro, Bahia e Per-nambuco estão em situação adequada no momento. Porém, o restante das capi-tais, não. São justamente aquelas cidades para as quais estão previstos os maio-res orçamentos no plano de investimen-tos da Infraero para a Copa, caso de Gua-rulhos (SP), Brasília e Confi ns (MG), res-pectivamente.

Esses terminais operam acima ou pró-ximos da chamada “taxa de ocupação”, quando o número de passageiros é maior que a capacidade do aeroporto.

A economista Leda Paulani admi-te que a precarização da infraestrutu-ra dos aeroportos é um dado concre-to frente ao aumento da demanda de voos, porém o projeto de privatização da Infraero, defendido como solução, é um verdadeiro risco, de acordo com ela, pois remete ao que aconteceu com o sistema de modais ferroviários – se-tor hoje abandonado na oferta de servi-ços de qualidade. “A história da econo-mia brasileira no século 20 teve o Es-tado como propulsor do investimento, e os investimentos privados reagem e o seguem. Nunca houve uma burgue-sia, digamos, de investimentos de lon-go prazo”, expõe.

Rumo à Copa e à crise O sistema aeroportuário nacional de-

veria migrar para um modelo descentra-lizado, que não privilegie os atuais 12 ter-minais mais lucrativos (dentre 67 con-trolados pelo Estado), e de fato se alie à necessidade de usuários e trabalhadores, pensa o economista Altair Garcia, espe-cialista em relações de trabalho no setor aéreo. “Cria-se um pacote de aeroportos, os rentáveis e os não rentáveis. Um voo poderia ir direto de São Paulo ao interior, mas não é rentável. A cidade de Catalão (SP), onde há um pólo automobilístico crescendo, seria viável? Mas para a em-presa aérea não interessa”, diz Garcia.

O setor conhece décadas de precari-zação e falta de planejamento. Hoje, as companhias aéreas intensifi cam o trânsi-to de aviões. Em lugar de boas condições na pista, o que se vê são shopping cen-ters nos aeroportos, serviços pagos no in-terior da cabine, voos ininterruptos ater-risando e decolando – o que sobrecarre-ga os trabalhadores. “Se os trabalhadores do setor aéreo fi zessem operação padrão, isso pararia o transporte aéreo no Brasil, se seguissem o que está na legislação. Se cumprisse simplesmente o código brasi-leiro de aeronáutica e a regulamentação funcional do aeronauta, o voo não deco-laria. O piloto tem que ter o mínimo de descanso”, enumera Garcia.

Força de trabalhoAs condições que formam esse cená-

rio de sobrecarga da capacidade dos ae-roportos podem gerar revoltas. O discur-so catalizado pela mídia empresarial, de precariedade no atendimento e nos ser-viços, tem apelo junto à classe média. Ao lado disso, também são possíveis novas movimentações dos trabalhadores do ra-mo. O aumento e lucratividade das em-

R$ 8,8bilhões de investimento

público no setor entre 2003 e 2010, média de R$1,1 bilhão

por ano

39,1%deve-se ao orçamento da

estatal Infraero

187%taxa média de ocupação acima do limite entre os 14 aeroportos analisados

pelo estudo

44%taxa de aplicação dos recursos previstos nos

aeroportos

Fonte: Aeroportos no Brasil: investimentos recentes, perspectivas e preocupações – Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (IPEA)

Lucratividade das empresas do ramo de aviação no Brasil

ANO TOTAL (R$)

2001 6.996.098.310

2006 10.791.359.473

2007 10.891.128.350

2008 14.204.156.283

2009 13.447.755.503

FONTE: Anuário da Agência Nacional de Aviação (ANAC))

Aeroporto no PR custará 320 desapropriações

O crescimento de 1% do PIB tem correspondido a um aumento de demanda no setor aéreo de 3,17%

Dilma Rousseff, em suas primeiras declarações, mostrou-se defensora de um modelo aberto ao investimento privado

Se cumprisse simplesmente o código brasileiro de aeronáutica, o voo não decolaria

de Curitiba (PR)

As obras no aeroporto Afon-so Pena, o maior do Paraná, estão incluídas nos investimentos do Programa de Aceleração do Cres-cimento (PAC). É um dos pou-cos aeroportos, segundo o Ipea, que pode concluir os trabalhos até a Copa, mas, inevitavelmente, mais de 300 famílias no entorno da pista devem ser desapropria-das, a maioria delas habitando em vilas pobres. Ao todo, formam 320 casas, em 280 lotes. As jus-tifi cativas são as ampliações do terminal de passageiros, do pátio do aeroporto e da pista de táxi, também com gastos da Infraero. “Classifi cada como desapropria-ção por ‘utilidade pública’ abran-geria área de 850 mil metros qua-drados. O interesse é o de apres-sar as obras e conseguir tirar to-das as casas”, informa o advoga-do Thiago Hoshino, da organiza-ção de direitos humanos Terra de Direitos. (PC)

presas não refl etiu em contratações mas-sivas, de acordo com o economista Altair Garcia. “A premissa é reduzir custos, o que tem um impacto na contratação, na redução do tempo (da aeronave) em solo, coisas que não faziam antes. Hoje, as ae-ronaves estão voando 24 horas, isso im-pacta os aeroportos”, analisa.

Um estudante do curso de pilota-gem comercial, em Curitiba, informa ao Brasil de Fato que o clima entre os pi-lotos é de constante preocupação, sujei-tos à criminalização no caso de aciden-tes e falhas, em meio à constatação de infra-estrutura precária. “Há medo nos pilotos de pousar em Congonhas, e o pi-loto sabe que a responsabilidade aca-ba sendo jogada nele”, ressalta. Na opi-nião de Garcia, o movimento dos traba-lhadores do ramo, com visibilidade de-vido às movimentações de 2007 e 2010, necessita de maior liberdade de organi-zação sindical.

Contrário à privatização, Garcia, po-rém, defende que o setor deve passar para uma gestão pública, uma vez que atualmente o Ministério da Defesa ge-rencia o setor, o que, no caso de algu-mas categorias, impede a organização sindical. (PC)

“A premissa é reduzir custos, o que tem um impacto na contratação, na redução do tempo em solo, coisas que não faziam antes”

154 milhões de pessoas utilizaram o transporte aéreo nacional em 2010

Reprodução

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culturade 21 a 27 de abril de 20118

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

NA ATUAL CRISE do Ministério da Cul-tura (MinC) sob comando de Ana de Hollanda, muitos talvez sejam os pon-tos em confl ito. O maior deles, entretan-to, talvez seja o direito autoral. Como far-tamente noticiado, a gestão anterior, de Juca Ferreira, deixou pronto um projeto de lei do setor para ser votado pelo Con-gresso Nacional. O texto já fora ampla-mente discutido, fi cara quatro meses em consulta pública, e já passara pela Casa Civil. Ana segurou o projeto, alegando não ser o momento oportuno para apre-sentá-lo.

Há muitos elementos para explicar o recuo. Entretanto, um deles é central, e diz respeito ao Escritório Central de Ar-recadação e Distribuição, o Ecad. Res-ponsável por coletar e repartir os recur-sos para os autores, o órgão está no cen-tro da polêmica. Uma análise profunda da movimentação do escritório revela os interesses nem sempre nobres por trás de sua atuação.

O Ecad é uma sociedade civil de natu-reza privada. Foi criado em 1973 para or-ganizar a arrecadação e distribuição dos direitos autorais, até então pulverizada em diversas associações, com fl uxo caó-tico e confuso. Na época, foi criado tam-bém o Conselho Nacional de Direito Au-toral (CNDA) para fi scalizá-lo. Este ór-gão, entretanto, foi extinto em 1990, pelo presidente Fernando Collor. Alegava-se que estava corrompido, e que era preciso criar outro sistema de fi scalização – que jamais foi criado. A lei de Direitos Auto-rais deixada pelo MinC anterior estabele-ceria um mecanismo de fi scalização. En-tretanto, a atual gestão dá seguidos sinais de que discorda da necessidade de que o Ecad seja fi scalizado. “Em toda socieda-de de gestão coletiva do mundo há fi sca-lização. Isso é um escândalo. É como se déssemos ao Bradesco o direito de rece-ber todos os salários de funcionários pú-blicos do Brasil, cobrando o que quiser, sem fi scalização. A gente confi a no Bra-desco?”, indigna-se o músico Tim Res-cala, da organização de artistas Tercei-ra Via.

“Sem fi ns lucrativos”O Ecad é administrado por dez asso-

ciações. Por lei, seria uma entidade “sem fi ns lucrativos”. Em 2010, arrecadou na-da menos do que R$ 432,9 milhões, e distribuiu aos artistas R$ 346,5 milhões. Isso signifi ca que a diferença – volumo-sos R$ 86,4 milhões – teriam sido utili-zados para cobrir despesas administrati-vas. Foram benefi ciados 87.500 artistas, de um total de mais de 350 mil fi liados (75% dos autores, portanto, não recebe-ram nada). A justifi cativa do Ecad, nesse caso, é que os 87.500 são os únicos que criam e interpretam obras musicais com potencial econômico. Das obras contem-

Quais os interesses por trás do Ecad?PROPRIEDADE INTELECTUAL Responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais, e pouco transparente, o órgão é controlado por uma cúpula e defende interesses de multinacionais

pladas, quase um quarto são estrangei-ras. Para entender esses dados, é preci-so fazer um raio-x minucioso na estrutu-ra do órgão. Entre as dez associações que o administram, duas comandam pratica-mente sozinhas o processo. A Associa-ção Brasileira de Música e Arte (Abra-mus) e a União Brasileira de Composito-res (UBC) têm, juntas, 29 dos 37 votos da assembleia decisória (78,4%).

Quem é quem?O crescimento da Abramus é recente,

e deu-se a partir da migração de grava-doras e editoras para ela. Compõem a as-sociação as multinacionais Warner, Uni-versal, EMI – o que explica a defesa de interesses internacionais pelo Ecad. É comandada pelo advogado e músico Ro-berto Melo, que criou uma associação apenas para combater a reforma do di-reito autoral, o Comitê Nacional de Cul-tura e Direitos Autorais (CNCDA). Em 2010, apoiou José Serra (PSDB) nas elei-ções presidenciais. Roberto teria declara-do que assumiria o MinC num eventual governo tucano. O músico Danilo Caym-mi é diretor. As associações teriam a es-tratégia de utilizar fi guras carismáticas da música brasileira como porta-voz.

Na UBC, o presidente é Fernando Brant, parceiro de Milton Nascimen-

to em alguns de seus maiores suces-sos. Abel Silva, Sandra de Sá e Ronal-do Bastos também integram a direto-ria. A Sony é uma das multinacionais que a compõe.

O controle da UBC está na fi gura de José Antônio Perdomo, que já coman-dou o Ecad praticamente sozinho (ainda é a principal referência). Três meses an-tes de Brant assumir a presidência, o es-tatuto foi mudado, concedendo poder ao cargo que seria ocupado por Perdomo. A UBC representa o repertório musical dos EUA e da Inglaterra. Brant é ami-go de faculdade de Hildebrando Pontes, o polêmico advogado ligado ao Ecad que presidiu a CNCDA. Hildebrando teria si-do cogitado para assumir a Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC. Mas com a pressão dos movimentos sociais, Már-cia Regina Barbosa, que trabalhou com

ele no CNCDA, assumiu. Há, ainda, uma terceira associação, a Sociedade Brasi-leira de Administração e Proteção de Di-reitos Intelectuais (Socinpro), com ape-nas três votos na assembleia. É presidi-da pelo advogado Jorge Costa.

Sem democraciaNo Ecad, há três associações que não

têm direito a voto. Não por coincidên-cia, chegaram a fazer denúncias contrao órgão no passado. “Já tentaram so-breviver sem ele, mas não consegui-ram, porque é um monopólio”, explicaTim. No passado, para se estabelecer ovoto societário, havia três critérios: nú-mero de associados, representativida-de do repertório, e recebimento eco-nômico. Com o tempo, apenas o últimoprevaleceu. A sociedade que arrecadarmais em um ano, vai mandar mais noano seguinte. A UBC e a Abramus arre-cadam, juntas, quase 80% do total. Issoacontece porque são as entidades ondeestão as editoras multinacionais. Entreelas a EMI, a maior editora do planeta.Elas pautam seus interesses por meiodesses mecanismos.

Metade do repertório da UBC é de mú-sica estrangeira. Em 2005, por exem-plo, representava 15% do repertório doEcad. Em 2009, essa participação su-biu para 31%. Os Estados Unidos são as principais fontes dessas canções. O país não paga ao Brasil direito conexo (refe-rente ao intérprete). Mas o Brasil paga aos Estados Unidos. Questões como es-sa são pautadas, internamente, no Ecad, pela UBC e pela Abramus. Esse dinhei-ro internacional não passa pelo Ecad. “Nem o Ministério das Relações Exte-riores, nem o Banco Central sabem des-se dinheiro. Muitos músicos reclamamque não recebem, e não sabem porquê”, protesta Tim.

Advogado que atua em defesa de au-tores prejudicados pelo sistema, DanielCampello, da UpRights, explica o pro-cesso. “O sistema Ecad se fortaleceu no início dos anos 2000, com o início daqueda do mercado do disco no Brasil.A partir de então, as gravadoras e edito-ras major – multinacionais que contro-lam a maior fatia do mercado da músicano Brasil – passaram a tomar assentosnas associações que compõem o Ecad. Dessa forma, o sistema que, em tese, se-ria gerido pelos próprios autores e in-térpretes, na verdade tem como as prin-cipais cabeças de comando pessoas que trabalharam, ou ainda trabalham, paraas gravadoras e editoras multinacionais.Assim, o sistema é pautado por uma dis-tribuição do dinheiro muito concentra-da nos artistas dessas multinacionais,dando a elas uma fatia muito grande doque se arrecada”, diz.

Procurado pela reportagem do Brasil de Fato, o Ecad não deu retorno.

do Rio de Janeiro (RJ)

Uma das principais denúncias dos autores des-favorecidos pela distribuição de recursos é o sis-tema de amostragens. Algumas atividades, co-mo a de música ao vivo, por exemplo, obedecem a um padrão indireto de distribuição de recursos. Funciona assim: a casa de shows arrecada dinhei-ro para o caixa do Ecad. Quando o órgão vai dis-tribuir esse recurso, o faz por amostragem, ran-queando as principais músicas que tocam no rá-dio e na TV.

A consequência é que muitos músicos tocam nos bares e nas casas de shows e pagam, mas quem vai receber é aquele que toca na rádio. Os artistas que compram espaço nos veículos (o famoso “jabá”) sa-em favorecidos. E músicos consagrados, como Cae-tano Veloso – que escreveu um artigo defendendo com veemência as posições do ministério – tam-bém saem favorecidos, porque são amplamente contemplados no rádio e na TV.

O Ecad só paga as 950 músicas mais tocadas (600 do ranking do rádio, 350 do da televisão). Das academias de ginástica aos motéis, a distri-buição é feita por amostragem. “É um sistema que favorece a concentração de renda de alguns auto-res. Prejudica o artista que está começando”, ex-

plica Oona Castro, do coletivo Intervozes. Alexan-dre Negreiros, que tem tese de doutorado sobre o tema, considera o órgão importantíssimo, por-que “a gestão coletiva dá poder ao autor”. Segun-do ele, a mídia cria uma falsa polaridade, entre os que não querem nem a fi scalização, e os que se-riam “contra o Ecad”.

No balanço divulgado, nas atas de assembleia, pelo Ecad, há a “comissão sobre as metas alcança-das”, considerada estranha pelos ativistas da Cul-tura Livre, uma vez que o Ecad é uma empresa sem fi ns lucrativos. O número de ações contra o órgão já chegou a mais de 7 mil. Os funcionários ganham uma “remuneração por solução de litígios” – o que faz com que muitos se interessem pelo crescimen-to das ações judiciais contra o órgão onde traba-lham. “A pessoa vê que a ação vai demorar meses e negocia o débito com o Ecad. Então, para eles também é bom. As ações viraram negócio”, afi rma Tim. O Grupo Bandeirantes enfrentou o Ecad na Justiça por oito anos, até negociar acordo. A Globo ainda enfrenta o órgão na Justiça. (LU)

do Rio de Janeiro (RJ)

Em setembro do ano passado, o Ecad fi rmou um acordo com o Youtube. O órgão considera a veiculação de músicas “execução pública”. A partir de novembro, o site – proprie-dade da Google – passou a pagar pelas canções disponibili-zadas. A Google ainda se comprometeu a saldar valores re-troativos até 2001. Por óbvio, o Ecad deveria estar pagando os autores cujas músicas estão sendo veiculadas no site. Po-rém, não há ainda certeza se isso está acontecendo, devido à pouca transparência do órgão. “É muito provável que o Ecad também use a amostragem do rádio para pagar os autores nesse caso, o que é mais um absurdo”, afi rma Campello.

Analistas são unânimes: se a distribuição viesse a ser feita com justiça ao que realmente está sendo acessado – hipóte-se pouco provável – estimularia uma rede ampla de criação, incluindo os autores de menor porte.

O Ecad não descarta cobrar usuários que ofereçam livre-mente canções digitais, ou simplesmente sonorizem seus si-tes com arquivos tipo Midi – a tabela do órgão, nesse caso, exige o pagamento de R$ 37,49 por mês. O órgão já anun-ciou que os próximos a serem cobrados serão os sites de ven-da de música. (LU)

A distribuição por amostragemSistema concentra recursos em medalhões e favorece “jabá”

O acordo suspeito com o YoutubeO site vai pagar ao Ecad direitos sobre todas as músicas disponibilizadas

A consequência é que muitos músicos tocam nos bares e nas casas de shows e pagam, mas quem vai receber é aquele que toca na rádio

“Em toda sociedade de gestão coletiva do mundo há fi scalização. Isso é um escândalo”

Em 2010, o Ecad arrecadou R$ 432,9 milhões e distribuiu R$ 346,5 milhões aos artistas. Uma diferença de R$ 86,4 milhões

No Ecad, há três associações que não têm direito a voto. Não por coincidência, chegaram a fazer denúncias contra o órgão no passado

A ministra da Cultura, Ana de Hollanda

Antonio Cruz/ABr

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de 21 a 27 de abril de 2011 9internacional

Eduardo Sales de Lima da Redação

WAEL ALY AHMED ALY, 40 anos, di-retor de uma agência de turismo na ci-dade do Cairo, Egito, está numa pri-são militar desde quarta-feira, dia 13 de abril. O conselho do Exército o acu-sou de ter insultado a instituição duran-te manifestações na Praça Tahir no dia 8 de abril e de ter insufl ado manifestan-tes a atacar os militares na noite de 9 de abril. Aly, agora, é mais um dos 2 mil presos políticos no Egito, segundo in-formações de ativistas locais.

Até hoje, de acordo com o soció-logo Frederico Henriques, colaborador da secretaria de Relações Internacio-nais do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), as lideranças, sobretudo na re-gião de Suez, por não serem “pelegas”, são presas de “modo coercitivo”. Ficam retidas por três dias e depois são soltas.

O exército e a polícia proibiram mani-festações na Praça Tahrir, no Cairo, co-mo resposta a manifestações que exi-giam a transição imediata para um go-verno civil e que o ex-presidente Hos-ni Mubarak fosse punido mais rapida-mente.

Fato é que, mesmo com tais contradi-ções, após quase três meses do início da Revolução de 25 de janeiro, a caminha-da rumo à democracia egípcia começou. A população quer recuperar o dinheiro roubado pelo regime de Hosni Muba-rak, alcançar uma nova Constituição democrática, laica e civil, e democrati-zar as instituições públicas. Forças po-líticas estão se reagrupando, tendo em vista as eleições parlamentares de se-tembro próximo. Nomes como o Nobel da paz Mohamed ElBaradei e o secre-tário-geral da Liga Árabe, Amr Mussa, são ventilados.

Protagonistas do processo, os movi-mentos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana, e setores populares caren-tes de organização não possuem dire-trizes estratégicas, projetos político-so-ciais. É o que acredita Henriques. Ele permaneceu no Egito por duas sema-nas e teve contato direto com diversas organizações sociais. “Os setores mais radicalizados são uma pequena parte do sindicalismo e também setores da juventude urbana, como em Alexan-dria”, conta.

Ele lembra que as pessoas mais po-bres, sobretudo do interior do país, são as mais religiosas e, por consequên-cia, as mais infl uenciadas por organi-zações como a Irmandade Muçulmana, por exemplo.

E existem os quadros conservadores. Figuras que no último momento antes da queda de Mubarak saíram do Parti-do Nacional Democrático (PND), apoia-dor do ex-ditador e que, agora, “demo-craticamente” estão se organizando. Se-gundo Mohamed Habib, diretor do Ins-tituto da Cultura Árabe (Icarabe), mes-

mo que eles representem uma minoria, esses benefi ciários do regime de Muba-rak, que agora se veem perdendo privi-légios, tentarão através do processo de-mocrático organizarem-se por meio de partidos conservadores. Por isso, de acordo com Habib, também pró-reitor de extensão e assuntos comunitários da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), será necessário que o mo-vimento revolucionário aprenda a dia-logar e a debater com essas forças con-servadoras.

AceleraO grande desafi o na atual etapa do

processo revolucionário egípcio é con-duzir um diálogo nacional entre essas forças civis e o Exército. De imediato, as três reivindicações mais urgentes da população são: o julgamento imediato daqueles que cometeram crimes na di-tadura; a substituição de todos funcio-nários estatais e políticos regionais vin-culados à ditadura de Mubarak e a libe-ração dos presos políticos.

“Há um processo de limpeza que é muito complexo e que envolve os pró-prios tentáculos do Estado. As pessoas que trabalhavam no governo impondo políticas não-democráticas, incluindo

No horizonte, a democracia REVOLTAS ÁRABES Processo transitório no Egito expõe contradições

condutas de corrupção, antiéticas, con-tra os direitos humanos precisam ser retiradas”, defende Mohamed Habib.

Na atual etapa da revolução egípcia, o que está em disputa, segundo ele, é a velocidade de implementação das rei-vindicações. Há a pressão das forças do

levante popular que exigem uma acele-ração, tanto no processo de julgamen-to dos culpados na ditadura quanto naretirada daquelas pessoas que ocupampostos residuais do regime anterior.

FreiaEntretanto, por mais que sejam legíti-

mas, essas mudanças demandam tem-po. “Dois meses parecem muito tempopara nós. Mas quando se fala de um sis-tema complexo, de um país de quase 80milhões de habitantes e que viveu qua-se 40 anos num regime ditatorial, não éum processo fácil”, pondera Habib.

Os que dizem que a revolução pre-cisa ser atrasada afi rmam que os úni-cos grupos organizados são a Irmanda-de Muçulmana e o ex-partido de Mu-barak, agora ruído. Foi o que ouviu noEgito, Mamede Mustafa Jarouche, pro-fessor de língua e literatura árabe daUSP, entre os dias 21 de janeiro e 13de março.

O problema para os setores popula-res ocorre quando esses argumentos setornam embuste para os próprios con-servadores. Um exemplo é que, quantoàs mudanças mais urgentes reclamadaspela população, “até agora, só o primei-ro escalão foi substituído, enquanto ostentáculos da ditadura continuam pre-sentes nos demais níveis do poder go-vernamental”, lembra o pró-reitor daUnicamp, Mohamed Habib.

Uma das intenções da recente or-dem de prisão de Mubarak e seus fi lhos,Alaa e Gamal, aliás, seria a de atenu-ar a pressão da maior parte da popula-ção, que reclama da falta de transparên-cia no julgamento dos corruptos do an-tigo regime. Essa é uma das razões pe-las quais tem aumentado a pressão pa-ra que os julgamentos ocorram em tri-bunais civis, não militares, como lem-bra Habib.

Ré Das forças que tentam frear ao máxi-

mo, ou até regredir nos avanços da re-volução, além dos “tentáculos” buro-cráticos e repressivos do antigo regi-me de Mubarak, como coloca Habib,está a ação “viciada” das próprias For-ças Armadas do Egito, que reconheci-damente, recebem 1,3 bilhão de dóla-res por ano dos Estados Unidos. É es-se órgão que vai tutelar a nova Consti-tuição do país.

Para ele, é provável que a embaixada estadunidense esteja em contato diretocom a alta cúpula militar egípcia, alémde outras forças civis ligadas ao regimeanterior. “Os Estados Unidos nunca se afastam de um processo geopolítico. Oque muda é a forma de intervenção. Po-de ser militar, como ocorre no Iraque ou política indireta, com reuniões secretas,como deve estar ocorrendo no Egito”, relembra. Habib não tem dúvidas de que “eles estão tentando até abordar se-tores do movimento revolucionário”.

da Redação

Em janeiro, após 23 anos no governo, e por conta da pressão da população tu-nisiana, o ex-presidente da Tunísia, Zi-ne El Abidine Ben Ali, renunciou. Ape-sar disso, seu regime ainda ecoa dentro da vida social e política do país. Setores da sociedade que sempre usufruíram das benesses do antigo governo tentam manter seus privilégios e ainda gozam do apoio da França.

“Ben Ali saiu, mas o regime permane-ceu”, afi rma ao Brasil de Fato Amami Nizar, militante do Sindicato dos Cor-reios e Telégrafos da Tunísia e mem-bro da Liga de Esquerda Operária. Ni-

“Ben Ali saiu, mas o regime permaneceu”

Falta limpar o EstadoSegundo tunisiano, queda de ditador ainda não refl etiu mudanças estruturais

zar pontua ainda que o capital tunisia-no tem uma forte relação com o capita-lismo e imperialismo francês e estadu-nidense.

Para Amami, as mudanças são difí-ceis porque ainda existe uma forte in-fl uência da burguesia dentro da buro-cracia estatal.

Mesmo com tais contradições, umjulgamento do ex-presidente da Tuní-sia, Zine El Abidine Ben Ali, é conside-rado como uma bandeira para dar cré-dito e legitimidade ao novo poder aosolhos do povo. A Justiça da Tunísia de-terminou a abertura de 18 ações con-tra ele e prepara o pedido de extradi-ção. Ben Ali renunciou em 14 de feve-reiro e fugiu com a família para a Ará-bia Saudita.

Enquanto a extradição não acontece,o governo de transição na Tunísia or-ganiza para 24 de julho as eleições pa-ra a Assembleia Constituinte. A ideia éque os eleitores escolham seus candi-datos por meio de listas proporcionaise respeitando a paridade entre homense mulheres.

Um decreto-lei adotado pela comis-são, presidida por Yadh Ben Achour ex-clui as candidaturas de pessoas que tive-ram cargos no governo do ex-presiden-te Zine El Abidine Ben Ali, que deixou opoder sob denúncias de corrupção e vio-lações de direitos humanos. (ESL)

Na atual etapa da revolução egípcia, o que está em disputa, segundo Mohamed Habib, é a velocidade de implementação das reivindicações

Protagonistas do processo, movimentos islâmicos e setores populares carentes de organização não possuem diretrizes estratégicas, projetos político-sociais

“Os Estados Unidos nunca se afastam de um processo geopolítico. O que muda é a forma de intervenção”

Segundo ativistas, existem 2 mil presos políticos no Egito

Forças do levante popular querem acelerar mudanças

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internacionalde 21 a 27 de abril de 201112

Achille Lollo de Roma (Itália)

EM DOIS MESES chegaram à ilha ita-liana de Lampedusa cerca de 20 mil tu-nisianos, em sua maioria jovens desem-pregados. O governo italiano, além da sua tradicional competência em mani-pular um drama social por motivos elei-toreiros, conseguiu demonstrar sua to-tal incapacidade em administrar as situ-ações emergenciais. Isso facilitou a espe-culação racista e xenófoba de Ugo Bos-si, ministro das Reformas e da Liga Nor-te, o segundo partido do governo Berlus-coni. De fato, esse ministro, ao comen-tar o aumento do fl uxo migratório, sen-tenciou: “Imigrantes? Fora dos colhões!” Uma baixaria que virou drama político, visto que a metade dos eleitores italianos logo aplaudiu a baixaria racista do líder da Liga Norte.

Quando, em março, um barco reple-to de imigrantes tunisianos chegava ao porto de Lampedusa, logo os morado-res da ilha tentavam impedir o desem-barque, fazendo uma corrente humana que, ao uníssono, gritava slogans nada amigáveis. Mesmo assim, o número de migrantes tunisianos aumentou despro-porcionalmente, chegando a 12 mil, isto é, o dobro dos moradores de Lampedu-sa. Por isso, o prefeito da ilha declarou estado de calamidade pública, obrigan-do assim o presidente da região da Sicí-lia, Pietro Lombardo, o ministro do Inte-rior, Roberto Maroni, e o próprio primei-ro-ministro Silvio Berlusconi a prometer soluções milagrosas.

AfogamentosPorém, as soluções primárias e emer-

genciais foram tomadas somente quando os jornais anunciaram a morte por afoga-mento de cerca de 80 imigrantes, entre eles crianças, cujos barcos afundaram na travessia entre Tunis e Lampedusa. O es-cândalo explodiu quando foram recupe-rados mais 10 corpos de imigrantes ati-rados no mar pelos próprios transporta-dores. Praticamente, de 1º de janeiro a 10 de abril, morreram 250 imigrantes.

O risco de afundar durante a traves-sia, o caro preço pago aos transportado-res (em média R$ 3.500) e a incerteza de ser aceito pelas autoridades italianas não diminuíram o fl uxo. Aliás houve um au-mento de 100%, tanto que de janeiro até 10 de abril chegaram cerca de 60 mil imi-grantes tunisianos, ofi cialmente classifi -cados como “clandestinos a serem devol-vidos ao país de partida”.

Os novos migrantesNa década de 1970 começou na Tuní-

sia, Argélia e Marrocos um intenso fl uxo migratório que estava direcionado, em particular, para a França, Bélgica e Ale-manha. Nestes países havia muita pro-cura de mão de obra barata, visto que o boom econômico fez com que certo tipo de trabalhos não fossem mais realizados pelos nativos e tampouco pelos antigos migrantes portugueses, espanhóis e ita-lianos que, com a criação da Comunida-de Europeia, tornavam a ser cidadãos de primeira categoria. Por exemplo, as dire-torias das grandes fábricas metalúrgicas, químicas e montadoras de França, Ale-manha e Bélgica se aproveitaram desse contexto para empregar os imigrantes árabes com salários diferenciados e fo-ra dos parâmetros sindicais. Consequen-temente, os subúrbios das cidades indus-triais começaram a transformar-se em guetos, onde os parentes dos primeiros imigrantes começaram a ocupar áreas de comércio e serviços, para depois chegar até aos bairros da própria cidade.

Dois exemplos: em Paris, para com-prar uma comida ou fruta depois das 18h30, é possível somente nas lojinhas de árabes ou vietnamitas – normalmente de condução familiar – que fi cam abertas até 24h. Para ir de táxi do centro da cida-de para o subúrbio, só é possível com um motorista argelino ou africano.

O mesmo acontece em Berlim, onde turcos, curdos e tunisianos fi caram he-gemônicos nas pequenas lojas de gêne-ros alimentares e de roupa a baixo custo. Outro exemplo, nos bairros-dormitório da capital Bruxelas, quase todas as ofi ci-nas mecânicas e as que reparam os pneus são de tunisianos e argelinos. Imaginário

Consequentemente, os 40 anos de mi-gração criaram nos jovens argelinos, marroquinos e sobretudo nos tunisianos o mito da vida europeia com seu consu-

mo, a possibilidade de ganhar muito e de viver como os europeus em sociedades sexualmente mais livres.

Este mito hoje é muito mais forte na juventude árabe, no momento em que os 30 anos de pretensas revoluções ára-bes ou de democracias presidencialistas não conseguiram criar estabilidade eco-nômica.

Hoje a migração é, sobretudo, uma for-ma de fuga da realidade das sociedades magrebinas que têm muito pouco a ofe-recer aos jovens. De fato, a grande dife-rença entre os migrantes dos anos 1970 - cuja maioria era de homens, entre 28 e 35 anos, analfabetos, operários e cam-poneses – é que hoje quem arrisca a vida nas travessias dos mares são, antes de tu-do, estudantes universitários ou recém-formados entre 20 e 25 anos.

Isto é, a força viva das nações árabes que sonha fi car na Europa, apenas para mandar aos pais que fi caram um cheque de 100 dólares no Natal!

Berlusconi e SchengenOs países membros da União Europeia

assinaram o acordo de Schengen para (ofi cialmente) “regulamentar a imigra-ção dos cidadão extra-comunitários”. Na realidade trata-se de um acordo que legi-tima a rejeição e a devolução de imigran-tes dos paises árabes do mar Mediterrâ-neo e do continente africano considera-dos “clandestinos”.

Porém, as necessidades de mão de obra barata para alguns tipos de serviços e, sobretudo pelas atividades laborais pa-gas sem contrato de trabalho e sem ne-nhuma garantia trabalhista, determina-ram certa fl exibilização dos protocolos de Schengen - que tratam da livre circu-lação de pessoas na União Europeia.

Por isso, quase todas as cidades euro-peias estão repletas de “clandestinos” árabes, africanos e sul-americanos que sobretudo durante os períodos eleito-rais são caçados e expulsos para captar a simpatia do eleitorado conservador e moderado.

Foi nesta base que quando se tratou de convencer os eleitores europeus de que na Iugoslávia o governo de Milosevic es-tava praticando uma selvageria contra as minorias, logo foi criada uma exceção le-gislativa ao protocolo de Schengen para permitir a imediata integração nos países da União Europeia de quem fugia da Iu-goslávia e em particular da província de Kosovo, transformada em campo de ba-talha pela Otan.

Para se livrar dos 60 mil imigrantes que ingressarams nos últimos quatro meses, o governo Berlusconi resolveu adotar a mesma resolução que foi inven-tada ad hoc para os migrantes da provín-cia de Kosovo e da Bósnia. Assim, o mi-nistro do Interior , Roberto Maroni, ela-borou um decreto-lei em que “as autori-dades italianas concedem o visto tempo-rário de seis meses aos imigrantes que entraram clandestinamente na Itália até dia 5 de abril, os restantes serão devolvi-dos aos seus países de origem”.

ReaçãoEste decreto provocou a ira do governo

francês e do alemão, por considerar o vis-to temporário italiano uma farsa buro-crática para permitir aos 60 mil clandes-tinos tunisianos de deixar a Itália e en-trar legalmente na França, na Alemanha ou em outro país da União Europeia.

Apesar da amizade com Berlusconi, o presidente Sarkozy insurgiu e enviou seu ministro do Interior, Claude Gue-ant, para acertar com o ministro do In-terior italiano, Roberto Maroni, um pro-tocolo que prenuncia uma espécie de fi s-calização nas fronteiras com a Itália, pa-ra não aceitar cidadãos tunisianos com o visto temporário italiano.

O governo italiano recebeu logo outras duas bofetadas diplomáticas do governo alemão de Angela Merkel e da comissá-ria europeia para as questões nacionais, Cecília Malmstrom, que em dois comu-nicados reafi rmaram que “a decisão do governo da Itália é uma plena violação ao espírito de Schengen”.

Mais duro foi o porta-voz do Ministé-rio do Interior da Alemanha, Jens Tes-chker: “Nos últimos anos, a Alemanha recebeu pedidos de asilo político e hu-manitários seis vezes mais que a Itália, por isso, vamos reforçar a fi scalização nas fronteiras tal como decidiu o gover-no francês”.

Nenhuma solidariedadeO governo Berlusconi, além de ser es-

truturalmente incapaz de gerenciar uma explosão de fl uxo migratório, na reali-dade tentou repassar para a União Eu-ropeia os custos da emergência e por is-so fez com que o drama dos imigrados de Lampedusa fosse o mais visível pos-sível, no momento em que todo o sul italiano servia para deslanchar o ataque dos aviões franceses e da Otan contra a Líbia de Kadafi . Um mesquinho oportu-nismo institucional que representa os baixos níveis políticos de Berlusconi e de sua turma, visto que o fl uxo migra-tório dos tunisianos nada tem a ver com a guerra civil na Líbia. De fato, de Trí-poli chegaram somente dois barcos com 180 migrantes de nacionalidade etíope, sudanesa, eritréia que, desde janeiro, se

preparavam para enfrentar a travessiado mar, isto é, antes do confl ito.

Por outro lado, a crise que explodiu en-tre Sarkozy, Ângela Merkel e Berlusconi demonstra ainda uma vez que entre os governos de direita não existe solidarie-dade política e tampouco esses governos conseguem fazer algo em prol da solida-riedade humana.

O que eles admitem e projetam para seus eleitores é saber “quanto meu país vai ganhar com isso”. De fato, no lugar de acirrar a xenofobia europeia os go-vernantes dos principais países da União Europeia deveriam ter preparado seus países para receber 100 mil imigrantes dos países árabes, no momento em que naquela região há guerras e mudanças institucionais importantes.

Assim, se países como Grã Bretanha, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália, Suécia, Dinamarca, Áustria e Re-pública Tcheca recebessem cotas de até 10 mil imigrantes, não teriam sido cria-dos graves problemas em termos de cus-tos assistenciais e de integração.

O problema é que essa solidariedade não se manifestou porque em quase to-dos os países da União Europeia os go-vernos de direita culpam o excesso de imigrantes extra-comunitários e de clan-destinos para justifi car, diante de seu eleitorado, o desemprego, a paralisia do ensino e a falência da saúde pública.

Temas que diariamente são trabalha-dos pela mídia para criar a ideia, inclu-sive entre eleitores progressistas e de es-querda, que o imigrante árabe ou africa-no é o novo “inimigo interno”. De fato, nas eleições de 2009, a Liga Norte do ra-cista Ugo Bossi tornou-se majoritária no norte da Itália pelo simples fato de dizer que no governo com Berlusconi teria de-volvido o trabalho aos desempregados italianos e expulsos todos os clandesti-nos árabes e negros que moravam nas cidades do norte da Itália. Em Roma, o ex-nazista Alemanno elegeu-se prefeito no partido de Berlusconi, graças à cam-panha de ódio e mentiras que quase to-dos os jornais e TVs veicularam duran-te a campanha eleitoral, tendo por obje-tivo “malhar” o imigrante romeno, alba-nês, árabe e cigano.

Infelizmente, foi necessário que a ci-dade de Roma, ou outras governadas pe-la direita, resultassem cada vez mais ví-timas da improbidade administrativa, da incompetência no gerenciamento urba-no e da corrupção, para que muitos ci-dadãos começassem a levantar a cabe-ça, questionando se vale a pena continu-ar a viver em uma situação de caos como a que eles hoje vivem.

Achille Lollo é jornalista italiano, editor do programa TV “Quadrante Informativo”.

Ninguém os quer, todos os exploramOPINIÃO Imigrantes tunisianos são barrados na Europa; decisão de Berlusconi irrita países aliados

As soluções primárias e emergenciais foram tomadas somente quando os jornais anunciaram a morte por afogamento de cerca de 80 imigrantes

O risco de afundar durante a travessia, o preço caro dos transportadores e a incerteza de ser aceito não diminuíram o fl uxo

A mídia constrói diariamente a ideia de que o imigrante árabe ou africano é o novo “inimigo interno”

Barco cruza o Mar Mediterrâneo levando dezenas de imigrantes africanos rumo à Itália

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Foi necessário que a cidade de Roma se tornasse cada vez mais vítima da improbidade administrativa, da incompetência e da corrupção, para que muitos cidadãos começassem a levantar a cabeça