Edição nº 6

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Editor

Eduardo Galasso Faria

Comissão Editorial

Eduardo Galasso Faria, Fernando Bortolleto Filho,

Gerson Correia de Lacerda, Shirley Maria dos Santos

Proença e Valdinei Aparecido Ferreira.

Teologia e Sociedade é editada pelo Seminário Teológico de SãoPaulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil

E-mail: [email protected]

Endereço: Rua Genebra, 180 – CEP 01316-010

São Paulo, SP, Brasil

Telefone (11) 3106-2026

www.seminariosaopaulo.org.br

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

Teologia e Sociedade / Seminário Teológico de São Paulo / Vol. 1,nº 6 (novembro 2009). São Paulo: Pendão Real, 2009.

Anual

ISSN 1806563-5

1. Teologia – Periódicos. 2. Teologia e Sociedade.

3. Presbiterianismo no Brasil. 4. Bíblia. 5. Pastoral.

CDD 200

Revisão: Eduardo Galasso Faria

Gerson Correia de Lacerda

Planejamento Gráfico, Capa e

Editoração eletrônica: Sheila de Amorim Souza

Impressão: Gráfica Potyguara

Tiragem: 1000 exemplares

As informações e as opiniões emitidas nos artigos assinados são

de inteira responsabilidade de seus autores.

ACESSE O LINK

www.ipib.org/calvin09

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SumárioSumárioSumárioSumárioSumário4 EDITORIAL

6 PARA UMA TEOLOGIA REFORMADA DA LIBERTAÇÃO: UMARECUPERAÇÃO DOS SÍMBOLOS REFORMADOS NA LUTA PELA

JUSTIÇA

John de Gruchy

28 JOÃO CALVINO ENTRE O HUMANISMO E A REFORMA

Eduardo Galasso Faria

44 A ECLESIOLOGIA A PARTIR DE REFERENCIAIS REFORMADOS

Fernando Bortolleto Filho

54 A REFORMA, CALVINO E A CIÊNCIA MODERNA

Alexandre Choi

70 JOÃO CALVINO E A TEOLOGIA PASTORAL HOJE

Shirley Maria dos Santos Proença

86 A CONTRIBUIÇÃO MISSIOLÓGICA DE JOÃO CALVINO

Timóteo Carriker

96 A EXEGESE E A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

DE CALVINO

José Adriano Filho

110 AS IDEIAS POLÍTICAS DE CALVINO SEGUNDO DENISCROUZET

Leopoldo Cervantes-Ortiz

RESENHA

118 O PROBLEMA DA INCREDULIDADE NO SÉCULO XVI: ARELIGIÃO DE RABELAIS

Paulo Sérgio Proença

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Teologia e Sociedade 6constitui a segunda edição denossa revista (2008/09)dedicada a João Calvino nos500 anos de seu nascimento.Empenho para a reapro-priação do legado deste ser-vo de Jesus Cristo é nossodever e inspiração. Comocumprir com fidelidade estemandato? À semelhança deoutros grupos reformados/presbiterianos em todo omundo cabe-nos, como igre-ja portadora da missão deDeus para a humanidade, exa-minar atentamente nossasorigens e identidade.

Antecipando as comemo-rações do Jubileu de Calvino,o Seminário de São Paulo, em

2008, juntamente com a Edi-tora Pendão Real, lançou o li-vro João Calvino – Textos Es-

colhidos. Entre outros eventosimportantes, como a criaçãode um site dedicado ao tema eincluído no Portal eletrônico daIgreja (www.ipib.org/calvin09),foi produzida uma Agenda es-pecial dedicada ao Refor-mador. Outros esforços fize-ram com que o jornal O Es-

tandarte, além dos inúmerosartigos sobre o assunto, lanças-se um Caderno Especial(no.11) com a segunda ediçãode O Humanismo Social de

Calvino (A Biéler). Ainda an-tecipando o Jubileu, por oca-sião da formatura dos futurospastores, no final de 2008, foilançada Teologia e Sociedade 5,

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dedicada a examinar Calvinocomo Intérprete das Escrituras.

O número 6 da revista, que ago-ra temos em mãos - Calvino Para

os Dias de Hoje -, foi pensado paraestimular um trabalho compara-tivo entre a mensagem da Palavrade Deus anunciada por Calvino noséculo XVI e suas possibilidadespara a sociedade do século XXI.Seria pretensão se não constituís-se uma tarefa desafiadora impres-cindível para o testemunho doevangelho em nosso tempo.

Entre os artigos que compõemnossa revista, retomamos um tex-to que, a partir da luta da Igrejacontra o “apartheid” na África doSul, recupera símbolos da tradiçãoreformada e compara a açãolibertadora de Calvino com a Te-ologia da Libertação latinoame-ricana no século XX, propondouma Teologia Reformada de Liber-tação para o Terceiro Mundo.

Outros textos exploram a rela-ção do pensamento de Calvinocom a ciência, a teologia pastoral,a missão e a eclesiologia na atuali-dade. Seu trabalho exegético vol-

tou a ser considerado, assim comodiscussões recentes sobre a impor-tância do humanismo cristão emsua formação como retórico, decerta forma garantindo o êxito desua obra reformadora. E não dei-xamos de examinar novas publi-cações sobre a vida de Calvino e oseu tempo, que mais uma vez de-monstram a influência e vitalida-de de seu pensamento. E o traba-lho prossegue a fim de que oreformador não só seja melhorconhecido da Igreja, como tenhalugar primordial na importante einsusbstituível tarefa de se fazerteologia pública contemporânea.

As duas edições de nossa revis-ta foram possíveis graças não sóao importante trabalho dos articu-listas, mas principalmente peloapoio da Igreja e o patrocínio re-cebido da Fondation Pour L´Aideau Protestantisme Reforme (FAP),de Genebra, a quem agradecemos.

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Para uma teologiareformada da libertação:

uma recuperação dos símbolosreformados na luta pela justiça1

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mesmas afinidades e um pensa-mento comum em realação acatólicos romanos e luteranos.Embora permaneçam importan-tes diferenças, em muitos aspec-tos esses primeiros conflitos con-fessionais foram solucionadosno século passado através do di-álogo ecumênico. Onde o con-senso não foi alcançado, existeuma compreensão e considera-ção bem melhor das diferenças

A teologia reformada, desdeo século XVI, tem interpretadosua compreensão da fé e práti-ca cristãs em resposta a váriosdesafios, em diferentes contex-tos históricos. Inicialmente elesvieram dos setores católico-ro-manos e luteranos, o que levouà formulação das confissões defé e catecismos clássicos. Mes-mo não sendo idênticos essessímbolos de fé2 evidenciaram as

* John de Gruchy, é professor emérito de EstudosCristãos na Universidade da cidade do Cabo, Áfri-ca do Sul. Outros livros seus são: Ministry inContext and Crisis; Dietrich Bonhoeffer: Witness toJesus Christ; John Calvin, Christian Humanist andEvangelical Reformer (lançamento). Artigo traduzi-do de Toward the Future of Reformed Theology.David Willis e Michael Welker (eds.). Grand Rapids:Wm. B. Eerdmans, 1999, pp. 103-119, “Toward aReformed Theology of Liberation: A Retrieval ofReformed Symbols in the Struggle for Justice”. Tra-dução: Eduardo Galasso Faria.

1 Para uma discussão mais completa das questõesapresentadas neste ensaio, ver John W. de Gruchy,Liberating Reformed Theology: A South AfricanContribution to an Ecumenical Debate. Grand Rapids:Wm. B. Eerdmans Publishing Co.,1991.

2 O termo “símbolo” tal como é usado nestecontexto, refere-se ao que tem sido tradicional-mente compreendido como uma “confissão defé.” Enquanto alguns símbolos clássicos, como oCredo Niceno por exemplo, são confessados pordiferentes tradições, com freqüência há desacor-do quanto ao seu significado. Por “símbolos defé” referimo-nos não apenas àqueles credos, con-fissões e catecismos que são vistos como guiasnormativos para a interpretação da Escritura,mas também às formas particulares pelas quaisaqueles que são firmados em comum com a igrejaecumênica têm sido interpretados pela tradição.Ver Wilhelm Niesel, Reformed Symbolics: AComparison of Catholicism, Orthodoxy, andProtestantism. Edinburg: Oliver & Boyd, 1962, p.1 ss.

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que se mantiveram.3

Logo depois, o maior desafiopara a teologia reformada veio emconseqüência do Iluminismo euro-peu e especialmente do estudo his-tórico-crítico da Bíblia. Este afetouigualmente todas as confissões, masfoi especialmente severo com aque-las que, à semelhança das reforma-das, afirmavam intensamente o Sola

Scriptura. Os efeitos da mo-dernidade provocaram rachadurasna teologia reformada, o que resul-tou em interpretações divergentesquanto aos símbolos, bem comodiversos cismas. A tradição reforma-da ficou dividida de maneirairrevogável em correntes mais libe-rais e mais conservadoras, com di-versas transformações entre elas.Ironicamente, os conflitos que ocor-reram dentro da família reformadatêm sido, com freqüência, maisamargos e provocadores de divisõesque as lutas históricas entre Roma,Wittenberg e Genebra.

O maior desafio com o qual cris-tãos de todas as tradições são con-frontados hoje é a luta pela “justiça,paz e integridade da criação.” Istonão quer dizer que as questõesconfessionais que provocaram divi-sões no passado não tenham maisdesdobramentos teológicos que ne-cessitem de solução. Nem quer di-

zer que o desafio apresentado à fécristã pelo pensamento pósilumi-nista tenha desaparecido. Pelo con-trário, há uma ligação fundamentalentre a luta por um mundo justo esustentável e a necessidade de su-perar uma parte importante da he-rança do pósiluminismo. As dispu-tas doutrinárias e os debates filosó-ficos não devem ser levados em con-sideração unicamente no campo dasideias. Eles devem ser consideradosem termos da missão da igreja nomundo e portanto, em relação coma luta por uma ordem mundial quemelhor se aproxime da justiça e dapaz de Deus para toda a criação.

Respondendo aos desafios apre-sentados pelas lutas contemporâneasem favor da justiça social e liberta-ção da opressão, partidos em con-flito nas igrejas sentem-se solidári-os com outros que, além dos seuslimites confessionais particulares,pensam como eles. Isso poderia sig-nificar que as diferenças confessio-nais agora são vistas como sendomenos importantes que as diferen-ças políticas e sociais, ou que os cris-

3 Ver Karl Lehgman e Wolfhart Pannenberg, eds., TheCondemnations of the Reformation Era: Do They StillDivide? Minneapolis: Fortress, 1990; Allan P. F. Sell, AReformed, Evangelical,Catholic Theology: The Contributionof the World Alliance of Reformed Churches, 1875-1982.Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1991,p. 112 ss.

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tãos hoje são confessionalmente in-diferentes, ou ainda que há uma von-tade pragmática de colocar entreparênteses tais diferenças, face aosinteresses em alcançar certos obje-tivos sociais e políticos imediatos.

Qualquer que seja o motivo, oproblema colocado pelo labor teo-lógico hoje tem um amplo alcance.Existe algum ponto de referência natarefa de fazer teologia reformada?O problema é especialmente agudopara os teólogos ecumênica e soci-almente progressistas, assim comopara grupos de tradição reformadaque frequentemente sentem que têmmais em comum com cristãos nãoreformados, enxergando sua pró-pria tradição aprisionada a normasburguesas e resistente a mudançassociais libertadoras. Esses teólogosreformados progressistas se sentemfrequentemente muito mais à von-tade entre teólogos da libertaçãocatólico-romanos do que em seupróprio círculo confessional.

Isso foi particularmente proble-mático na África do Sul, onde a pre-dominante Igreja Reformada Ho-landesa apoiou oficialmente e deulegitimação teológica à política doapartheid. Diante desta forte ligaçãoentre injustiça social e um ramo dafamília reformada pelo menos, épertinente perguntar se não seria

melhor colocar de lado seus símbo-los, como resquício de um passadopecaminoso e herético, para estabe-lecer sobre outros fundamentos te-ológicos um testemunho cristão so-cialmente progressista, em uma ten-tativa de seguir um caminho que jáfoi tomado por muitos dentro datradição reformada. Embora sejauma alternativa escolhida por ou-tros, é uma recuperação criativa dateologia reformada, voltada para ajustiça social.4

Existem pelo menos três razõesa favor desta última escolha. A pri-meira é o fato de que a teologia nun-ca pode ser feita no vácuo. Todo te-ólogo ou teóloga está inserido(a) emalguma tradição, mesmo que talposição seja bastante crítica dessaherança. A segunda é uma razão es-tratégica, ou seja, que a transforma-ção social requer a reinterpretaçãodos “símbolos significativos herda-dos pelas pessoas” para que elespossam se tornar “recursos parauma nova imaginação social e guias

4 A recuperação dos símbolos reformados foi central noprojeto teológico de Karl Barth e de muitos que foraminfluenciados por ele. Ver The Göttingen Dogmatics:Instruction in the Christian Religion, vol. 1.Grand Rapids:Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1991, p. 294. Entre-tanto, posteriormente, outros têm procurado recuperara teologia reformada em relação a contextos de opres-são específicos. Ver por exemplo, Allan Boesak, Blackand Reformed: Apartheid, Liberation, and the CalvinistTradition Mariknoll, N. Y.: Orbis, 1984; Johana W. H.VanWijk-Bos, Reformed and Feminist: A Challenge to theChurch. Louisville: Westminster/John Knox, 1991.

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para um novo tipo de envol-vimento.”5 Isso é particularmenteapropriado em situações como as daÁfrica do Sul, onde a tradição re-formada está profundamenteenraizada na cultura.

Aqueles que estão familiarizadoscom a criação da moderna Áfricado Sul, reconhecerão com facilida-de que ela “implicou em uma longabatalha para se apoderar de sinais esímbolos notórios.”6 Símbolos co-loniais, inclusive aqueles associadoscom o cristianismo, que poderiamter sido utilizados para oferecer re-sistência e vencer o colonialismo,foram reclamados, remodelados eusados de modo não pretendidopelos colonizadores. A terceira ra-zão, teologicamente mais importan-te, é que existe uma sólida trajetó-ria profética e libertadora na tradi-ção reformada, que favorece estatentativa. Na verdade, há uma no-tável continuidade entre a Reforma

protestante do século XVI e a reno-vação que está ocorrendo hoje, es-pecialmente entre os católicos ro-manos, como resultado da teologiada libertação.7

Nossa afirmação portanto, é queassim como é legítimo e possível serum teólogo da libertação católico ro-mano, também é legítimo e possí-vel ser um teólogo da libertação re-formado. Sustentamos que a maiorparte da teologia reformada, nãomenos que aquela articulada porJoão Calvino, se encontra em soli-dariedade crítica com as formascontemporâneas de teologia da li-bertação e, em alguns aspectos,constitui seu protótipo.

Na verdade, embora a teologia re-formada possa levantar questões crí-ticas com relação a aspectos das teo-logia de libertação, ela tem muito emcomum com ela em termos de mé-todo, conteúdo e objetivo. Afirmamostambém que a teologia reformadatem necessidade de ser libertada devários cativeiros, não menos que degrupos sociais e ideologias dominan-tes, a fim de ser verdadeiramente umateologia libertadora. Um primeiropasso nesta direção é considerar odesafio que as teologias da libertaçãoapresentam àqueles que estão com-prometidos com a tarefa de fazer teo-logia reformada hoje.

5 Gregory Baum, Religion and Alienation: A TheologicalReading of Sociology, N. York: Paulist Press, 1975, p.223. O uso feito por Baum da palavra “símbolo” éobviamente mais amplo que o sentido mais específicoindicado na nota 2, acima.

6 Jean e John Comaroff, Of Revelation and Revolution:Christianity,Colonailism, and Conscioussness in South Africa.Chicago: University of Chicago Press, 1991, p. 4.

7 Ver J. de Gruchy, Liberating Reformed Theology…;Richard Shaull, The Reformation and Liberation Theology.Louisville: Westminster/John Knox, 1991. Em portugu-ês, A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação. S.Paulo: Pendão Real, 1993.

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O desafio dasteologias da

libertaçãoO verdadeiro desafio das teolo-

gias da libertação não são as teolo-gias em si, mas a opressão humanae o sofrimento aos quais elas res-ponderam. O verdadeiro desafio éa pobreza, o racismo, o sexismo –na verdade, o desafio de todos os quesão vítimas de opressão social, eco-nômica e política. Todavia, a vozdessas vítimas alcançou expressãonas teologias da libertação para sedirigir diretamente aos cristãos edesafiá-los, bem como às teologiasdominantes.

As teologias da libertação se tor-naram “as formas predominantesde consciência crítica que na Igrejacristã respondem às ameaças dosprivilégios de classe, raciais e sexu-ais.”8 Daí o seu desafio à teologiareformada para que se torne criti-camente consciente da opressão emtodas as suas formas e auto-críticaquanto ao papel que a Igreja cristã ea própria teologia têm desempenha-

do em relação a isso.Este desafio difere qualitativa-

mente daquele que é apresentado àteologia reformada por outras teo-logias confessionais históricas. Emprimeiro lugar, as teologias da liber-tação surgiram da experiência e daslutas das vítimas da sociedade. De-pois, elas são teologias que estãocomprometidas desde o princípiocom uma real transformação dasociedade e, portanto, com a liber-tação das vítimas de sua opressão.Consequentemente, em terceiro lu-gar, as teologias da libertação reque-rem uma forma mais apropriada defazer teologia.

Isto é visível logo nas páginas ini-ciais da obra seminal de Juan LuisSegundo, The Liberation Theology,

onde ele faz a distinção entre teolo-gia da libertação e as teologias quetratam da libertação.9 Muitas teolo-gias tradicionais, inclusive a teolo-gia reformada, tratam de justiça elibertação como temas éticos quebrotam da reflexão teológica. Sãoitens que fazem parte de sua agendade testemunho social, mas não per-cebem o envolvimento na luta pelajustiça e libertação como essenciaisem sua preocupação dogmática oumétodo teológico. Para a maioria éuma conseqüência e não um com-promisso prévio. O que distingue as

8 Cornel West, Prophetic Fragmets. Grand Rapids: Wm.B. Eerdmans Publishing Co., 1988, p. 197.

9 Juan Luis Segundo, The Liberation of Theology. Maryknoll,N.Y.: Orbis, 1976, p. 8. Em português: Libertação daTeologia. S. Paulo: Loyola, 1978.

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teologias da libertação dessas teolo-gias não é necessariamente a intro-dução de novos temas dogmáticos,mas a forma pela qual tais temas sãointerpretados, de dentro da luta pelajustiça e libertação. Sendo assim, ateologia se torna uma disciplina so-cialmente comprometida, ao ladodas vítimas da opressão social.

Muitos dos primeiros teólogos epastores reformados, bem comocongregações, estiveram sujeitos àperseguição e muita teologia refor-mada foi concebida no exílio e emgrande pobreza. Calvino descreveuseus amigos refugiados como o re-fugo do mundo. Assim, na verdade,a teologia reformada nasceu emmeio à luta contra a tirania social eeclesiástica.

Embora isto tenha sido verdadei-ro para algumas comunidades refor-madas desde então, a tradição re-formada em seu todo se tornou pro-fundamente enraizada em um am-biente de classe alta para média, re-lativamente confortável, bem edu-cado que, de modo geral, tem se ali-nhado com o poder político domi-nante. As teologias da libertação de-safiam fundamentalmente este ali-nhamento. Isto não significa neces-sariamente que os cristãos reforma-dos têm de abandonar sua posiçãosocial – ser da classe média não é

pecado – mas significa estar ao ladodos oprimidos em suas lutas por jus-tiça e libertação.

Com efeito, isto significa livrar-se do “cativeiro constantiniano,” umlegado que faz parte da tradição re-formada desde o século XVI. Toda-via não implica em adotar uma po-sição politicamente neutra ou fugirà prática responsável do poder.Qualquer pessoa familiarizada com ateologia de João Calvino sabe que elafoi “moldada pela política.”10 Foi es-sencialmente uma teologia pública.

A questão não é se a igreja iráusar sua influência, mas como, emfavor de quem e de qual perspecti-va ela o fará. Será usada “para man-ter o prestígio social que vem de suasligações com os grupos no poder oupara livrar-se desse prestígio rom-pendo com estes grupos e prestan-do serviço verdadeiro ao oprimi-do”?11 Portanto, as teologias da li-bertação não desafiam a teologia re-formada para mudar seu compro-misso básico com a área públicamas, ao contrário, para expressaresse compromisso da perspectiva econforme o interesse daqueles que

10 J. De Gruchy, p. 236 ss.

11 Gustavo Gutiérrez, A Theology of Liberation, rev. ed.(Maryknoll, N. Y.: Orbis, 1988, p. 266 ss. Em português:Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1975.

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são vítimas do poder opressor. Esteé o ponto de partida fundamentalpara a libertação da teologia refor-mada e portanto, essencial para oprocesso através do qual a tradiçãoreformada pode ser recuperada comvistas à transformação social.

Recuperando atradição reformada

A recuperação de símbolos éuma importante tarefa herme-nêutica, mas ela deve levar em con-sideração três aspectos inter-rela-cionados. Em primeiro lugar é ne-cessário identificar os símbolos econsiderar a forma como eles se de-senvolveram na história dadogmática reformada, desdeCalvino até hoje. Os teólogos re-formados nunca pensaram que de-viam seguir Calvino de maneiraservil, mas o reformador continuasendo a “fonte geradora decisiva”12

para se elaborar teologia reforma-da. Portanto, é essencial permane-cer em diálogo com Calvino emtodo o processo.

A teologia de Calvino era pois,essencialmente, uma tentativa deinterpretar a Escritura em relação àvida e missão da igreja no mundo.A partir daí, a abordagem verdadei-ramente reformada da teologia éaquela que, em essência, procurainterpretar a mensagem bíblica den-tro da comunidade de fé e dos con-textos históricos específicos. Assim,por sua própria natureza, a teologiareformada evoca novas possibilida-des teológicas em resposta a desafi-os contemporâneos.13

Em segundo lugar, temos de exa-minar criticamente a maneira comoos símbolos têm funcionado napráxis reformada, particularmenteno que se refere a questões de justi-ça social. O problema tem de serenfrentado considerando-se porquee de que maneira estes símbolos têmsido utilizados para legitimar aopressão. Símbolos que têm sidomal empregados ou que perderamsua força no curso da história sórecuperarão seu poder transforma-dor na medida em que forem exa-minados criticamente, libertados deseus cativeiros ideológicos e empre-gados pelas comunidades cristãscomprometidas com o serviço obe-diente no mundo. Isto requer umateologia crítica que seja capaz derecuperar, esclarecer e dar novo sig-

12 James M. Gustafson, Theology and Ethics. Chicago:University of Chicago Press, 1981, p. 163.

13 Benjamin Reist, “Dogmatics in Process,” ReformedWorld 39, setembro 1987, p. 760.

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nificado aos símbolos em meio àluta pela justiça e transformação.

Com relação a isso é vital re-conhecer que todos os teólogos, in-clusive os reformados, estão so-cialmente estabelecidos em algumlugar dentro do corpo político einevitavelmente estão envolvidoscom os interesses de seu grupo par-ticular ou classe, seja privilegiadoou oprimido. O pecado original,que é ponto essencial da tradição,afeta os teólogos tanto quantoqualquer outra pessoa e talvez ain-da mais por causa da natureza desua tarefa. A teologia reformadatem uma “hermenêutica da suspei-ta” que faz parte de sua própriaestrutura. Daí a urgente necessi-dade de uma teologia reformadaque seja crítica não apenas no sen-tido de ser profeticamente dirigidaàs estruturas de poder no mundomas que, com igual compromis-so, descubra os elementos de alie-nação e falsa consciência operan-do em sua própria tradição.

Em terceiro lugar, devemos con-siderar o modo pelo qual os símbo-los reformados têm sido importan-tes para a causa da justiça social eprocurar recuperá-los hoje, de talmaneira que seu poder libertadorpossa ser reconhecido na comuni-dade de fé e liberado no mundo. O

impulso original que levou à Refor-ma e à interpretação de Calvino so-bre ela, foi a rejeição a qualquer tipode tirania humana e a proclamaçãodo poder libertador do evangelho deJesus Cristo. Foi isto que, em pri-meiro lugar, levou Calvino a rom-per com Roma e que motivou seuesforço para criar uma sociedadenova, verdadeira e eqüitativa, se nãoigualitária. Esta tem sido também amotivação de todos os calvinistasproféticos que têm assumido o ladodos oprimidos, seja no passado ouno presente.

O novo chamado a esta traje-tória libertadora ajuda a manterviva a “memória perigosa” dos sím-bolos formadores e transformado-res do calvinismo e assim, susten-ta aqueles que procuram encarná-los hoje, interessados não apenasna família reformada mas na igre-ja como um todo. Necessitamosportanto, contar de novo a histó-ria de tal modo que os símbolosda tradição não sejam reduzidosapenas a um conjunto de princípi-os teológicos ou atos de cultos dis-tantes da realidade, mas que sejamvistos também de forma incorpo-rada na narrativa da comunidade,a narrativa gravada com carne esangue, luta, sofrimento, celebra-ção e esperança.

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Mudança deparadigma no

simbolismoreformado

A recuperação dos símbolos re-formados com vistas à justiça e li-bertação hoje, tornou-se possívelgraças em grande parte à obra pio-neira de vários teólogos importan-tes dentro da tradição e, de manei-ra especial, Karl Barth. Na verdadetem-se dito que a teologia de Barthfoi uma “teologia da libertação radi-cal antes de todas as teologias da li-bertação.”14 Em consequência, a te-ologia reformada no século XX ex-perimentou uma grande mudança deparadigma – mudança que se tornouvisível em seus símbolos de fé.

No ano de 1925, em uma pales-tra feita para a Aliança Mundial deIgrejas Reformadas, Karl Barth apre-sentou a seguinte questão: “Sobre odesejo e a possibilidade de um Cre-do Reformado Universal.” ParaBarth, tal credo não era nem desejá-vel nem possível por diversas razões,uma das quais era a falta de consen-so acerca da situação concreta que

estava forçando a Igreja a confessarsua fé novamente. “A Igreja deve teralgo a dizer, algum pronunciamentoa fazer que interesse à vida real dosseres humanos.” Como se estivessecontradizendo a si mesmo, Barthentão começou a falar desta situaçãoreal de forma ilustrativa. “A igrejadeve ter a coragem de falar hoje, paramencionar apenas um problema es-pecífico, do nacionalismo fascista,racial, que desde a guerra está apa-recendo de maneira semelhante emtodos os países.”15 Mas Barth duvi-dava se a igreja desejasse realmentedizer algo sobre essas questões aca-loradas e perigosas. Entretanto, lem-brou a seus ouvintes, que o “velhocredo reformado” era “totalmenteético” e sempre endereçado à esferapública.

Esta compreensão reformada darelação integral entre confissão cris-tã e ética foi em grande parte perdi-da durante os séculos subseqüentesde conflito doutrinário e filosófico.Mas ela retornou ao centro do pal-co durante o século XX, especial-mente após 1930. O elemento cata-lizador mais importante foi a luta daigreja alemã contra o nazismo e, emparticular, a elaboração da Declara-ção de Barmen, em sua maior parteescrita pelo próprio Barth. Esta De-claração afetou profundamente as

14 Hans Küng, Theology for the Third Millenium. N. York:Doubleday, 1988, p. 283.

15 Karl Barth, Theology and Church. London: SCMPress, 1962, p. 132 ss.

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manifestações mais progressistasdos símbolos reformados durante osanos que se seguiram à SegundaGuerra Mundial.16 No processo,duas mudanças complementaresmuito importantes ocorreram naforma como se apresentou a teolo-gia reformada. A primeira, estava re-lacionada com a ética social e polí-tica e a segunda, com a escatologia.

Embora Barmen tenha provadoser o elemento catalizador em rela-ção a esta evolução confessional, foisomente com a Confissão de 1967(presbiteriana), nos Estados Unidos,que “uma sólida hermenêutica éti-co-social de obediência fiel foiintroduzida em um documentoconfessional reformado.”17 Em suareflexão sobre as questões críticassóciopolíticas de seu tempo e emmuitos aspectos nossas, agora en-contramos dentro de uma confissãoreformada referência ao fato de quea revelação de Deus em Jesus Cris-to requer que a Igreja atue em favorda abolição da discriminação raci-al, envolva-se na luta pela justiça epaz na sociedade, trabalhe pelo fimda pobreza e promova uma compre-ensão genuinamente cristã da sexu-alidade humana.18 A Confissão de1967 deixa claro que a fidelidade àsexigências éticas do evangelho estáentre as marcas da igreja verdadei-

ra, aos passo que a desobediênciaestá entre as da falsa igreja. Emboraa Confissão de 1967 esteja hoje jáultrapassada em alguns aspectos,ela antecipa o desafio das teologiasda libertação.19

Nos anos 70, os teólogos refor-mados, atuando em conjunto coma Aliança Mundial de Igrejas Refor-madas, deram atenção especial àsquestões sóciopolíticas e especial-mente aos direitos humanos.20 Deinteresse capital entretanto, foi a lutacontra o racismo, ou seja, contra oapartheid. Este foi o significado dareunião da Aliança Mundial em1982, quando ela foi desafiada a re-conhecer que o apartheid é umaheresia, contrária ao evangelho einconsistente com a tradição refor-mada.21

16 Niesel, p. 7 ss.

17 Edward A. Dowey, Jr., “Confessional Documents asReformed Hermeneutic,” in Journal of Presbyterian History61, no. 1, spring, 1983, 94.

18 A Confissão de 1967, artigos 9.43-47. The Book ofConfessions, United Presbyterian Church in the USA, 2ª.edição (1970). Em português: O Livro de Confissões. S.Paulo: Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969.

19 Ver Daniel L. Migliore, “Jesus Christ, the ReconcilingLiberator: The Confession of 1967 and Theologies ofLiberation,” in Journal of Presbyterian History 61, no. 1,spring, 1983, p. 38 s.

20 Sell, pp. 218 ss.

21 Ver Allan Boesak, “He made us all, but...,” in John deGruchy and Charles Villa-Vicencio, Apartheid is a Heresy.Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1984.

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Logo depois de Ottawa, a Igrejada Missão Reformada Holandesa naÁfrica do Sul redigiu a Confissão deFé de Belhar, que foi oficialmenteaprovada em 1986. Foi a primeiravez, desde o século XVII, que umaigreja membro da família reforma-da holandesa adotou uma nova con-fissão como modelo reconhecido defé e prática.22 De maneira especial,em relação à tese que defendemos,a Confissão de Belhar reinterpretoua confissão de Jesus Cristo sob aperspectiva libertadora de compro-misso com os pobres. Percebemosaí uma resposta reformada criativaao desafio da teologia da libertação.A fidelidade a Jesus Cristo, reconhe-cida através da Palavra e do Espíritonão só levou ao relacionamento coma luta anti-apartheid, mas o Deusrevelado em Cristo é “de forma es-pecial o Deus dos destituídos, po-bres e iníquos,” que “chama sua igre-ja a segui-lo nisso.”23

A segunda mudança decisiva nosdocumentos confessionais reforma-dos, especialmente durante as déca-das passadas, foi a escatológica. Issotem ocorrido em continuidade coma redescoberta da escatologia na te-ologia do século XX como um todo.No entanto, um impulso especiallhe foi dado como resultado da in-fluência de Jürgen Moltmann noscírculos teológicos reformados. Umcomentarista das confissões refor-madas do século XX observou queas questões políticas agora são vis-tas sob a perspectiva do reino deDeus e não da providência epredestinação.24 Sua primeira con-sideração não é o apoio aos revesti-dos de autoridade, mas a preocupa-ção e o compromisso para com ospobres e oprimidos.

Essas mudanças confessionaisrefletem alterações tanto teológicascomo sociológicas dentro da comu-nidade reformada. A mudança teo-lógica não é tanto um movimentoque se distancia das doutrinas tradi-cionais reformadas mas umareconsideração dessas doutrinasbaseada em um novo fundamentoteológico (ético/escatológico). Amudança sociológica é que a comu-nidade reformada, com algumasexceções, não consiste mais daque-les que, tendo alcançado o poder,

22 Sobre o pano de fundo da Confissão de Belhar e asquestões que ela levanta, ver G.D. Cloete e D.J. Smit,(eds), A Moment of Truth: The Confession of the DutchReformed Mission Church, 1982. Grand Rapids: Wm. B.Eerdmans Publishing Co., 1984.

23 Confissão de Belhar, artigo 4.

24 Eugene P. Heideman, “Old Confessions and NewTestimony,” Reformed Journal 38, no. 8, august, 1988,p. 7ss. Ver também Lukas Vischer, ed., Reformed WitnessToday: A Collection of Confessions and Statements ofFaith Issued by Reformed Churches. Bern: EvangelischeArbeitsstelle Oekumene Schweiz, 1982.

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desejam se manter nele, ou aquelesque, embora muito ricos e privile-giados, se tornaram mais conscien-tes e sensíveis quanto às necessida-des e a justa causa dos oprimidos,mas consiste de muitos que são ne-gros, pobres e oprimidos.

O que estamos propondo nesteensaio está em continuidade diretacom esta mudança de paradigma nossímbolos de fé reformados. Nossaproposta é que isso precisa ser leva-do adiante e que uma teologia re-formada da libertação construtiva

deve ser desenvolvida. Por sua vez,isto requer que os tópicos funda-mentais dos símbolos de fé refor-mados sejam re-estabelecidos de talmaneira que seu potencial liberta-dor seja liberado. Ao fazer isso, podeser até que caminhemos além daintenção original desses tópicos, es-pecialmente à medida que pudermosdefinir o seu significado. Tal passo ésempre hermeneuticamente neces-sário.

Ser fiel à tradição reformada nãosignifica repetir fórmulas do passa-do, mas descobrir seu poder para odia de hoje e, no processo,restabelecê-la em termos novos eevocativos. Nas duas seções finaisdeste ensaio, fazemos algumas ten-tativas de propostas com isso emmente, primeiro considerando ele-

mentos chave de uma hermenêuticareformada libertadora e então, re-fletindo sobre a doutrina da sola

gratia a partir de uma perspectivareformada libertadora. No proces-so, mostraremos que uma teologiagenuinamente reformada pode seruma teologia da libertação, sem per-der sua identidade reformada.

Para umahermenêutica

reformadalibertadora

A teologia reformada é, essenci-almente, uma tentativa de restabe-lecer a mensagem bíblica para con-textos históricos em constante mu-dança. Sua preocupação pois, é pri-meiramente hermenêutica. Nestaseção consideraremos dois princípi-os hermenêuticos fundamentais atodas as teologias da libertação, masfaremos isso de uma perspectivareformada.

Os óculos da Escriturarequerem os olhos das

vítimas sociaisTanto devemos afirmar com

Calvino que precisamos dos “ócu-los da Escritura” a fim de conhecera Deus, criador e redentor em Cris-

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to, como devemos também afirmarque precisamos dos “óculos das ví-timas da sociedade”, a fim dediscernir a Palavra viva e libertadorana própria Escritura. Umahermenêutica reformada liber-tadora deve reconhecer em princí-pio “o privilégio epistemológico dospobres.” Isto porque o lugar sociale a experiência dos pobres e de ou-tras vítimas os capacitam a mostrarcomo a dinâmica da sociedade ope-ra contrariamente aos propósitos deDeus em relação à graça liber-tadora, justiça e vida em sua pleni-tude.25 Desse modo, eles podemdiscernir a Palavra libertadora dire-tamente, sem que ela seja filtradapelos vários artifícios protetores queos outros dentre nós utilizam paratornar a Palavra mais aceitável ànossa situação.

Da perspectiva reformada, seestivermos familiarizados com asexposições bíblias de Calvino, a idéiade que os pobres possuem uma com-preensão especial do sentido da Es-critura não nos deveria causar qual-quer surpresa. O reformador afir-mava frequentemente que Deusprefere se revelar ao pobre, ao sim-ples e ao humilde porque eles reco-nhecem mais facilmente sua depen-

dência de Deus. Ao afirmar isto,Calvino não estava dizendo nadaalém do que o próprio Jesus decla-rou nas bemaventuranças. Deus serevela somente àqueles que reco-nhecem sua necessidade dele, os“pobres de espírito,” bem como osmaterialmente pobres (Mt 5.3; Lc6.20 ss). Assim, o testemunho daEscritura corrobora (Scriptura

scripturae interpres) aquilo que tam-bém somos capazes de aprender aoconsiderar o lugar social do pobre.Na própria Escritura há uma gran-de evidência de que as vítimas per-cebem mais claramente a Palavralibertadora e viva de Deus.

Nesse ponto, várias observaçõesprecisam ser feitas. A primeira é oreconhecimento de que emboraaprendamos na própria Escrituraque os pobres são vítimas em umsentido especial e que a maneiracomo nos relacionamos com eles éindicativa da nossa compreensão doevangelho, nem todas as vítimas dasociedade são necessariamente po-bres. A segunda observação é o re-conhecimento de que a Palavralibertadora fala a todas as necessi-dades humanas, inclusive à premen-te necessidade da conversão daque-les que oprimem os outros, dos queabusam do poder, aqueles cuja ri-queza os impede de “entrar no rei-

25 José Miguez Bonino. Toward a Christian PoliticalEthic. Philadelphia: Fortress, 1980, p. 43.

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no de Deus.”26

A terceira observação é que aBíblia só é verdadeiramente com-preendida em uma comunidade defé, ainda que a Palavra viva fale di-retamente a pessoas individualmen-te, de acordo com suas necessida-des. Portanto, quando falamos dacapacidade dos pobres ou de outrasvítimas para ouvir a Palavra de Deus,inferimos que elas assim o são namedida em que partilham de umavida em comum, unidas como co-munidades de fé. Nem os pobres,nem outras vítimas compreendemautomaticamente as Escrituras sim-plesmente por causa de seu lugarsocial ou experiência. Como qual-quer outra pessoa, elas precisam aoportunidade de ouvir as Escriturase necessitam da fé que precede oentendimento. A Bíblia precisa estaracessível às pessoas, de modo acapacitá-las para descobrirem o seusignificado. Daí a importância paraos reformadores de congregaçõesreunidas “em torno da Palavra” e, paraos teólogos da libertação, de “comu-nidades de base” refletindo sobre suasituação à luz da Escritura.

A quarta observação é que, em-bora na bíblia o Deus da tradiçãoprofética tome o lado dos oprimi-dos e fale às suas necessidades, amesma tradição indica que Deus

também pode falar contra os opri-midos. Quando os escravos hebreusdeixaram o Egito, frequentementedesejavam as “panelas de carne” quehaviam deixado para trás. Daí aconstante admoestação de Moiséspara que confiassem em Deus e seesforçassem através do deserto atéalcançarem a terra prometida.27 Emoutras palavras, embora as vítimaspossam perceber mais claramentea mensagem da Escritura, seu “pri-vilégio epistemológico” não é o dedeterminar ou controlar o que aPalavra estabelece.

A lei do amorimplica na

prioridade da práxisOs teólogos da libertação

enfatizam que a Escritura não podeser compreendida a não ser da pers-pectiva das vítimas e que isto requeridentificação com elas em sua lutapor justiça e libertação. Daí a suainsistência na prioridade da práxis ea definição de teologia, segundoGutierrez, como “reflexão crítica

26 Calvin´s New Testament Commentaries. The FirstEpistle of Paul to the Corinthians. 1 Co 1.27. Em portu-guês: 1 Coríntios. S. Paulo: Paracletos, 1996.

27 Pablo Richard, “Biblical Theology of Confrontation,”in Richard et al. The Idols of Death and the God of Life.Maryknoll, N. York: Orbis, 1983, p. 8.

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sobre a práxis à luz da Palavra deDeus.”28 Esta definição é altamentesignificativa porque indica claramen-te que a Palavra não é apenasnormativa, mas que o propósito deseu exame crítico é a ação informa-da pela fé. Foi isto exatamente o queo próprio Calvino tentou realizarcom sua obra de reformador. Suateologia era extremamente crítica dapráxis da igreja em sua época. Elecolocou sob a luz direta da Palavra“a tirania da tradição.” O slogan“ortopráxis e não ortodoxia” usual-mente mas incorretamente atribuí-do à teologia da libertação como umtodo, está baseado em umadicotomia falsa e não bíblica. Acrença correta e a ação correta ne-cessitam uma da outra e secomplementam.29

A teologia da libertação entretan-to, lembra que não podemos conhe-

cer a verdade das Escrituras exami-nando-as objetivamente, de fora.Conhecemos a verdade somente namedida em que nos tornamos com-prometidos com aquilo que a Pala-vra viva e libertadora requer de nós.Sabemos quem é Jesus quando oseguimos. Sem negar de maneiranenhuma o importante papel da crí-tica bíblica para determinar o senti-do do texto escriturístico, temos deafirmar sempre, com a Bíblia e ateologia da libertação, que “conhe-cer a verdade” requer “praticá-la.”

A teologia reformada também éinflexível neste ponto. Para Calvino,conhecer a verdade da Palavra erapraticá-la: “Se estamos prontos aobedecer a Deus, ele nunca deixaráde nos iluminar com a luz do seuEspírito” é o seu comentário emJoão 7.17.30 E nas Institutas, ele es-creve: “Não somente a fé, perfeita ecompleta, mas todo o reto conheci-mento de Deus é nascido da obedi-ência.”31 De modo semelhante, aConfissão Escocesa de 1560 insisteem que qualquer interpretação daEscritura deve se conformar “à re-gra do amor”32 ou, como afirma oCatecismo de Heidelberg, “à regrada fé e do amor.” 33

Em continuidade com essa tra-dição, Barth mais tarde insistiu emque “em relação a Deus, sem ação

28 Gutiérrez, p. 5s.

29 Ver Gutiérrez, p. XXXIV.

30 Calvin´s New Testament Commentaries, The GospelAccording to St. Joh, pt. 1.

31 Calvin, Institutes of the Christian Religion, ed.F.L.Battles and J.T.McNeill. Philadelphia: Westminster,1960, 1.6.2.

32 A Confissão Escocesa, cap. 8. Traduzida em portu-guês como parte de: O Livro de Confissões. S. Paulo:Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969. N.T.

33 O Catecismo de Heidelberg , cap. 2.Em português: Idem.

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não podemos ter conhecimento.”34

Nada disso significa que a ação écolocada acima da verdade, nem queé uma rejeição da teologia como dis-curso racional. A partir da perspec-tiva bíblica, a verdade é sempre ver-dade encarnada, verdade incorpora-da na ação e, justamente por isso, afé está sempre operando em amor.E assim como fazer justiça é o modopelo qual o amor se envolve com anecessidade social e a opressão, oamor atuando na luta pela justiça setorna o ponto crucial para discernira Palavra libertadora de Deus nomundo hoje.

Tudo isso aponta para uma cor-relação fundamental entre Calvino(e a teologia genuinamente reforma-da) e os teólogos da libertação, comênfase sobre a fé em ação – são teó-logos práticos e pastorais e seu tra-balho como intérpretes da Bíblianão apenas ocorre no contexto dacomunidade de fé, mas está envol-vido no propósito manifesto de des-pertar a fé, incitar a esperança e ca-pacitar o amor. Esta é a verdadeirarazão porque eles se envolvem coma tarefa de fazer teologia e porquerefletem sobre a práxis à luz da Pa-lavra. A motivação para umaexegese e exposição bíblica cuida-dosa é exatamente capacitar para sepraticar a vontade de Deus, sem o

que o conhecimento de Deus é im-possível.

A leitura reformadalibertadora da Sola

GratiaÀ luz do que vimos acima,

voltamo-nos para a conclusão a fimde considerar um dos símbolos maisimportantes da fé reformada, ouseja, a prioridade da graça redento-ra de Deus, a sola gratia, e por con-seguinte, a eleição de Deus.

Libertação pelagraça

Sob a ampla influência de KarlBarth e Karl Rahner, tanto a teolo-gia reformada como a teologia ca-tólica do século XX redescobriramnão apenas a prioridade da graça,mas também seu caráter inter-pessoal e dinâmico, como amor di-vino atuando em Cristo e restauran-do nossa relação com Deus em co-munidade. Esta descoberta do sig-nificado social da doutrina da graçaestá em continuidade com a própriacompreensão trinitária da graça em

34 Barth, The Göttingen Dogmatics, p. 172.

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Calvino que, como nos lembra Ale-xandre Ganoczy, fornece a base paraa ética social.35 Explanações maisrecentes da teologia reformada ecatólica (Moltmann e Metz) deramum passo além e firmaram a dou-trina da graça na arena histórica daluta pela justiça e libertação.

Em continuidade com esta evo-lução, a teologia reformada temapresentado a questão da doutrinada graça e portanto, da cooperaçãohumana com Deus, de uma novamaneira, tomando como ponto departida a realidade da opressão so-cial e estrutural ou des-graça huma-na.36 Como argumenta com sensi-bilidade Leonardo Boff: “Assimcomo a reflexão clássica sobre agraça não deu atenção suficiente aoaspecto social do pecado, ela tam-bém não discutiu a justificação em

termos sociais e estruturais.” Em-bora Calvino tivesse um profundosentimento do pecado como reali-dade social, muito mais tarde a teo-logia reformada, juntamente com ateologia católica, reduziram a justi-ficação à esfera individual, privadae portanto, forneceram “o apoio ide-ológico para os que estão no podere os responsáveis pela opressão.”37

A graça, como a compreendeBoff, é “o livre amor de Deus e suapresença libertadora no mundo.”38

Refletindo sobre este assunto, MarkKline Taylor chamou a atenção parauma compreensão mais imanenteda graça na teologia reformada. Elepropõe que falemos sobre “a pree-minência da graça como o poder deDeus que nos atrai e encontra naluta social e histórica, acima de tudono clamor daqueles que sofrem emnosso meio.”39 O temor de que istoenfraqueça a natureza prevenienteda graça estaria mal colocado por-que mesmo assim, a graça de Deusprecede nossa ação e vocação. Aescolha não é entre graça preve-niente e eficaz, mas entre uma com-preensão platônica da graça e outraencarnacional. A diferença está emque nós como pessoas somos alcan-çados pela graça na história e nãono reino privatizado da alma.

Encontramos a graça ou a pre-

35 Alexandre Ganoczy, “Observations on Calvin´sTrinitarian Doctrine of Grace,” in Probing the ReformedTradition, ed. Elsie Anne McKee and Brian Armstrong.Louisville: Westminster/John Knox, 1989, p. 104.

36 “Des-graça” refere-se àquelas ações infelizes que, nahistória, causam sofrimento humano e opressão e nãoaquelas ações de sofrimento redentor que resultam delas.

37 Leonardo Boff. Liberating Grace. Maryknoll, N. Y.:Orbis, 1981, p. 15. Isso se relaciona muito bem comcom o tema inicial do livro de Dietrich Bonhoeffer, Costof Discipleship, ou seja, a “graça preciosa”que se distin-gue da “graça barata.”

38 Boff, p. 40.

39 Mark Kline Taylor, “Immanental and Prophetic: ShapingReformed Theology for the Late Twentieth CenturyStruggle” ( texto não publicado, Princeton TheologicalSeminary, 1983), p. 29.

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sença salvadora de Deus não na Pa-lavra e sacramento isolados do so-frimento humano e da luta pela jus-tiça, mas “em, com e sob” eles. Aíprecisamente foi encontrada a gra-ça de Deus manifestada em favorde Israel e da Igreja primitiva, deacordo com o relato bíblico. A pa-lavra da graça dirigiu o povo de Deusem sua luta e jornada históricas. Naverdade, a Palavra deu o sentido re-dentor e libertador a essa história.

Se procurarmos colocar nossoentendimento da graça dentro dahistória e o poder transformador doevangelho como aquele que não ape-nas transforma indivíduos mas re-faz a humanidade, na verdadeestamos em continuidade com acompreensão reformada desantificação como afirmativa domundo e transformadora e nãocomo ascetismo negador do mun-do.40 A história da salvação, eleiçãoe redenção graciosas de Deus, aoinvés de serem uma alternativa alémda história do mundo, se expressadentro dele, dando-lhe significado edireção. Embora a história da sal-vação, da libertação humana e datransformação social não devam serconfundidas, elas também não po-dem ser separadas. Elas fazem par-te de um mesmo processo contínuo.Se assim é, então precisamos olhar

novamente para a necessária porémtemível doutrina da eleição, que temsido sempre um símbolo central dafé reformada.

Eleição: a opçãopreferencial pelo

pobreÀ parte daqueles que permane-

cem obstinadamente fiéis à sua for-mulação tradicional, a mais impor-tante afirmação da doutrina da elei-ção, feita por Karl Barth, areestabeleceu cristologicamente ede forma radical.41Barth era de opi-nião que se Calvino tivesse feito omesmo, Genebra não teria sido umlugar tão sombrio!42 Toda a criaçãoe história encontram seu significa-do em Jesus Cristo, o começo e ofim do propósito redentor de Deus.43

Além do mais, a eleição do indiví-duo, embora central para a graça eo propósito redentor de Deus, está

40 Nicholas Wolterstorff. Until Justice and Peace Embrace.Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1983,p. 66.

41 Karl Barth. Church Dogmatics II/2. Edinburgh: T. & T.Clark, 1957, caps. 32-35, especialmente p. 325 ss.

42 Barth. The Humanity of God. London: Collins, 1961,p. 49.Em português: in “A Humanidade de Deus”.ArtigosSelecionados. S. Leopoldo: Sinodal, 1986. N.T.

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firmemente inserida por Barth den-tro da comunidade, sob o pacto deDeus.44 Assim, Barth foi capaz demanter a pessoa como objeto dagraça de Deus sem cair nos peri-gos do individualismo ou do coleti-vismo.

No processo de reafirmar a dou-trina da eleição, Barth procurou per-manecer fiel à sua intenção bíblicaoriginal, ou seja, de resguardar omistério do conselho de Deus e afir-mar a graça incondicional comobase da nossa salvação. Mas Barthfez isso de maneira a afirmar que aliberdade de Deus é graciosa elibertadora para a humanidade pro-curando conceder vida ao mundocomo um todo. Em outras palavras,a liberdade de Deus é a base da li-bertação humana. A liberdade deDeus é uma liberdade pactual, nãocaprichosa ou arbitrária. O pacto deDeus com a humanidade e toda aordem criada, que foi renovada emJesus Cristo, é um pacto de liberta-ção e portanto, um pacto em quetanto a comunidade de fé como ocrente descobre a liberdade e a vida.

A questão que queremos colo-

car agora é se é possível descobriruma importante ligação entre estacompreensão da doutrina da eleiçãoe a afirmação da teologia da liberta-ção, de que Deus fez uma “opçãopreferencial pelos pobres.” Na ver-dade, é possível que nesta fórmulacontroversa possamos não apenasencontrar outra importante ligaçãoteológica entre a teologia reforma-da e a teologia da libertação, mastambém estar capacitados a desen-volver esta doutrina de forma maisprofundamente bíblica.45 Porque,embora seja verdadeiro que não de-vemos confundir a providência di-vina na criação e na história com aeleição por parte de Deus da comu-nidade de fé e do crente, é igualmen-te verdadeiro que não podemossepará-los se nós, com Calvino, com-preendemos Deus tanto como cria-dor e redentor em Cristo. Oscalvinistas mais antigos viram cor-retamente a necessidade de relacio-nar providência e predestinaçãopara desenvolver as doutrinas dagraça “comum” e da graça “especi-al.” Seu erro não foi ter feito estacorrelação, mas ter falhado em fazê-la sobre uma base trinitária.

Sem negar a verdade evangélicade que a salvação está fundamenta-da na ação redentora graciosa e ime-recida de Deus em Jesus Cristo, é

44 Barth. Church Dogmatics II/2, pp. 104, 311.

45 Ver Zwínglio M. Dias, “Calvinism and Ecumenism,” inFaith Born in the Struggle for Life. Dow Kirkpatrick.Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1988,p. 281.

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preciso também afirmar que a dou-trina da eleição não pode mais ficarconfinada ao indivíduo, nem ser con-fundida com as doutrinas do desti-no manifesto. Da perspectiva bíbli-ca, no esquema de Deus, os eleitoseram um povo e não simplesmenteum povo, mas escravos no Egito.

O fundamento da doutrina daredenção de Deus está no evento doêxodo, pelo qual Deus se revelacomo libertador. Consequente-mente, quaisquer que sejam as limi-tações e problemas que o tema doêxodo possa apresentar, ele perma-nece fundamental para a compre-ensão cristã de Deus. Deus é conhe-cido através de seus atos libertado-res na história, pelos quais ele cha-ma à existência um povo para setornar sua testemunha. Este ato deprovidência histórica se torna parteessencial do propósito redentor deDeus e assim como a eleição de umpovo para ser testemunha de sua li-bertação gratuita.

No Novo Testamento, a eleiçãotambém não é só uma questão parao crente individual, mas para a co-munidade e está relacionada ao pac-to que, em Cristo, estabeleceu o seupovo. Como Israel, este povo, a igre-ja, existe na história e tem a tarefade ser testemunha do evangelho.Esta é a razão de sua existência. O

povo eleito de Deus não é nem umfim em si mesmo nem um grupoétnico, mas um povo reunido emCristo dentre todas as nações paraservir ao mundo. A vinda do Messi-as e o nascimento da igreja não sãoeventos religiosos desligados da his-tória sociopolítica ou do destino dasnações e classes.

A eleição da humanidade porDeus em Cristo segue lado a ladocom a libertação humana. Em con-seqüência, o Magnificat de Maria,que anuncia a vinda do Messias pararedimir o mundo, mostra a impor-tância deste evento em relação àrealidade mundial. Não surpreendedescobrir então, que muitos doschamados para constituir a igrejasão, como Paulo lembra aoscoríntios, não poderosos mas fracos,não ricos mas pobres, nãodominadores mas dominados ( 1Co 1.26 ss).

O comentário de Paulo é antesde tudo, sociológico – a igreja deCorinto era formada de pessoas “àmargem da história.” No entanto,existe aí também uma profunda di-mensão teológica. A eleição deDeus é vista da perspectiva datheologia crucis. Os propósitos deDeus na história, revelados na fra-queza da cruz, são percebidos emseu favor cheio de graça para com o

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pobre, o oprimido, as vítimas demodo geral e, por meio delas, o res-to da humanidade é habilitado a co-nhecer a graça salvadora e o poderde Deus em Cristo crucificado. Istonão quer dizer que somente os po-bres ou que todos os pobres serãosalvos, nem que os pobres são a igre-ja, o que por vezes está implícito oué reivindicado na teologia da liber-tação. É para afirmar não apenas quenão merecemos a graça de Deus,mas que, como os escravos em Is-rael, as vítimas da sociedade têm umlugar especial tanto na providênciacomo nos propósitos redentores deDeus. Elas podem se tornar teste-munhas especiais de Deus quanto àgraça libertadora e a promessa devida em Jesus Cristo crucificado.

O que estamos afirmando aquiportanto, é que sem a fé em umDeus que não age providencial-mente apenas na história humana,

mas também elege um povo pararealizar seus propósitos redento-res nesta mesma história, é impos-sível compreender o Deus da Bí-blia. Porque esse Deus é aqueleque, ao “libertar escravos daopressão” e “fazer opção preferen-cial pelos pobres,” age tanto deforma providencial como redento-ra. Isto não quer dizer que o reinode Deus chegou quando os escra-vos deixaram o Egito e entraramna terra prometida mas que, semesse ato de libertação política ospropósitos redentores de Deus eportanto a vinda do Messias e achegada final do reino, não teriasido possível. Vista desta perspec-tiva reformada, a doutrina da elei-ção se torna uma manifestação doreino soberano e também liberta-dor de Deus em Jesus Cristo, porcausa do mundo.

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Sem a fé em um Deus que não ageprovidencialmente apenas nahistória humana, mas também elegeum povo para realizar seus propósitosredentores nesta mesma história, éimpossível compreender o Deus daBíblia. Porque esse Deus é aqueleque, ao “libertar escravos daopressão” e “fazer opção preferencialpelos pobres,” age tanto de formaprovidencial como redentora.

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João Calvino entre ohumanismo e a Reforma

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do papa e dos concílios. A per-seguição até a morte na foguei-ra para os seus seguidores e oambiente intelectual por certoimpressionaram o jovem quepor volta dos 14 anos, em Paris,iniciou estudos de língua latinacom o piedoso pedagogo e notá-vel estilista Marthurin Cordier,que se tornou seu amigo parasempre. Passou a estudar Artesno Collège de la Marche, que ti-nha como diretor Beda, um con-servador em profundo atritocom as propostas humanistas eas heresias luteranas.

Freqüentou então o CollègeMontaigu, preparatório para ocurso superior de teologia, fa-moso pelos alunos que teve,como Erasmo, Rabelais eLoyola. Ali provavelmente foialuno do espanhol Antonio Co-ronel e do escocês John Major,tendo estudado filosofia aris-

De modo geral, são conheci-dos os primeiros tempos na vidade João Calvino, nascido emNoyon, na França, a 10.7.1509.Com a perda da mãe quandocriança ainda, passou a ser edu-cado na família aristocrática dosHangest, parentes do bispo, quedeixou marcas em seu caráter.Tendo sido dedicado ao sacerdó-cio, contou com benefícios ecle-siásticos, conseguidos pelo paie que lhe garantiram uma forma-ção intelectual de qualidade paraa época.

A França vivia um tempo detransição entre a Idade Média ea Moderna, marcado peloRenascimento e as agitaçõesprovocadas pelas ideias luteranasquestionadoras da infalibilidade

* Eduardo Galasso Faria, pastor jubilado e profes-sor no Seminário Teológico de São Paulo (IPIB).

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totélica e lógica. Ali também iniciousuas leituras teológicas dos Pais e deAgostinho, incentivadas pelas dispu-tas entre aristotélicos e nominalistas,recebendo o título de mestre emArtes no ano de 1528.

Estudos jurídicosAo término desse período seu

pai, em conflito com o clero emNoyon, do qual era secretário, de-cidiu encaminhá-lo para a área deestudos jurídicos e ele se dirigiu paraOrleans e Bourges, onde foi profun-damente influenciado pelo movi-mento humanista. A Universidadeem Orleans contava com o apoio deMargarida de Navarra, irmã do reiFrancisco I e protetora do movimen-to. Após os estudos de grego com oprofessor luterano Wolmar, aproxi-mou-se do famoso jurista francêsPierre de l´Estoile. que admiravaCalvino apreciava seu brilhantismo,inteligência e integridade, preferin-do-o ao italiano Alciati, notório pro-fessor de direito romano que mani-festava, com seus discursos pompo-sos, o orgulho de ser um represen-tante do humanismo secular italia-no. Embora com reservas, Calvinoaprendeu com ele tanto a tratar dasgrandes questões jurídicas como aadmirar o seu estilo preciso, ele-

gante e impecável no uso da língualatina, o que influenciaria decisiva-mente seu próprio estilo de escre-ver e se comunicar.

No ano de 1531 o futuroreformador teve de ir às pressas parasua cidade natal a fim de acompa-nhar os últimos dias de seu pai.Com a morte dele, sentiu-se maislivre para escolher seu própriocaminho.Voltou então para Pariscom o propósito de se dedicar à li-teratura, com uma vida independen-te e de certa forma, descom-promissada. Viu com entusiasmo acriação pelo rei Francisco I, doCollège de France que, independen-te da velha universidade, reunia sá-bios Preletores Reais, como Danèse Vatable, refletindo o espíritohumanista de buscar o conhecimen-to com ampla liberdade.

Calvino, dentro do espíritohumanista de crítica à Vulgata lati-na, aprofundou seus conhecimen-tos de grego e hebraico, que haveri-am de ser importantes ferramentaspara o estudo das Escrituras nas lín-guas originais. Licenciado em Leis(1532), dedicou-se também à pu-blicação do seu Comentário sobrea obra do filósofo Sêneca, De

Clementia, que tratava da tolerân-cia como virtude do governante eque o tornaria conhecido entre os

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humanistas.A obra publicada mostrou a ca-

pacidade do jovem escritor, sua eru-dição e aplicação do métodohumanista, seguindo Erasmo, Budée outros. Nesses anos de estudosjurídicos em Orleans e Bourges enão em Paris, Calvino ampliou demaneira decisiva seu contato com ohumanismo, que provocou nele umagrande transformação intelectual,determinante para sua vida e obra.

A conversãoOs dados sobre a “conversão” de

Calvino não são muitos. Ocorridapor volta de 1533, portanto aos 24anos, a principal informação é umrelato ou reflexão feitos bem poste-riormente na dedicatória de seuComentário ao livro dos Salmos, de1557. Falou então de uma “súbitaconversão” e de como Deus subju-gou seu coração. A experiência te-ria ocorrido depois do discurso doamigo Nicolas Cop, na Universida-de de Paris, no dia de Todos os San-tos. O texto, com ideias luteranas(contraste entre evangelho e lei, ata-que à salvação pelas obras e defesada graça), teria sido influenciado porum jovem estudioso chamado JoãoCalvino. Com a perseguição inicia-da pela ação dos professores reaci-

onários da Sorbonne, el passou aser cassado como um subversivo,sentindo pela primeira vez fortemen-te o perigo de ser identificado comas novas ideias evangélicas.

Refugiou-se então em Angou-lême, no sul da França, em casa dosacerdote amigo Louis de Tillet,onde começou a escrever suaInstitutio. Provavelmente em dúvi-das, procurou em Nérac, o velhoLefèvre d´Étaples, estrela d´alva doprotestantismo francês, que entre-tanto, não pensava em deixar a Igre-ja. Na mesma época, em um encon-tro com camponeses em uma gru-ta na floresta, ministrou pela primei-ra vez, a Ceia do Senhor para, logodepois, em sua terra natal renunci-ar aos benefícios eclesiásticos queaté então recebia. O caso dos carta-zes (1534) contra a missa afixadosem diversos locais em Paris, provo-cou uma grande perseguição e elese refugiou na Basiléia, próximo deErasmo. Aí esteve em contato comFarel, Viret, Bullinger e ampliou suasleituras dos Pais, Lutero, Melan-chton, Bucer.

No século XX, obras importan-tes sobre o reformador passaram afazer o reconhecimento de um pa-pel muito maior do humanismo emsua vida, o que foi determinante tan-to na evolução de seu pensamento

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como na reforma posta em práticapor ele.

Segundo François Wendel, até1533, Calvino, como outroshumanistas católicos, era influenci-ado pelo grupo de Guilherme Budé,para quem era muito mais impor-tante a volta às fontes, com a recu-peração da literatura clássica greco-romana “do que qualquer ataque àdogmática romana” (Wendel, 22).Não há sinais de que ele estivessede alguma forma ligado ao movi-mento luterano pela Reforma ouque desejasse romper com a Igreja.Até1535, Calvino nunca havia ma-nifestado qualquer mudança radicalem sua vida religiosa e a primeiraedição da Instituição é uma obramoderada.

A primeira evidência pública da“conversão” de Calvino foi o prefá-cio escrito em 1535 para a tradu-ção da Bíblia francesa (NT) deOlivétan - Epístola a Todos os que

Amam a Jesus Cristo e seu Evange-

lho - uma publicação arriscada di-ante das proibições do Reino daFrança. Nesse escrito, pela primei-ra vez Calvino fala contra o papa eos males causados por ele à vida daIgreja.

Autores como AlexandreGanoczy – The Young Calvin – eWilliam J. Bouwsma – John Calvin,

A Sixteenth Century Portrait – nadécada de 90, dedicaram bastanteatenção a essa questão. ParaGanoczy foi “o humanismo cristãoque abriu as portas da Bíblia paraCalvino” (94) permitindo sua leitu-ra nos textos originais. Em sua aná-lise, o ocorrido com ele não seriauma conversão ao protestantismo,“uma experiência religiosa individu-al, comparável a uma conversão nosentido pietista,” (Ganoczy, 291)mas algo muito mais amplo, com oestabelecimento de objetivos críti-cos e construtivos para uma reno-vação da comunidade cristã univer-sal. Também não seria algo idênticoao ocorrido com Lutero, mas umaevolução gradual própria, nuncacompletada.

Bouwsma por sua vez, enfatizaque o que ocorreu com Calvino nes-se período de sua vida foi muitomais uma “mudança e aceleração deseus interesses... nada incompatívelcom o humanismo evangélico detoda uma geração de estudantes emParis” (Bouwsma, 10). Por conse-guinte, em princípio, não implica-ria em um rompimento com asideias de Roma nem com aquelescompanheiros que, embora críticosdas superstições da Igreja, perma-neciam fiéis a ela. Assim, Calvinoseria menos herdeiro de Lutero e

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mais de Erasmo e Lefèvre, para osquais a Bíblia constituiu a base daReforma. O programa de Calvinoseria praticamente o mesmo deErasmo exceto, na determinaçãodeste em não abandonar a Igreja,pensando sempre em uma reformaa partir de dentro dela.

O humanismoAs origens do movimento

humanista são encontradas na bai-xa I. Média, a partir do século XII,com o Renascimento italiano quebuscava uma renovação dos ideaisda antiguidade clássica latina e gre-ga, redescobrindo suas obras literá-rias e também a filosofia aristotélica.Diante das incertezas com relaçãoà existência, procurava-se o sentidomais profundo do ser humano, seusproblemas, sua individualidade. Noséculo XIV com Petrarca e os estu-dos sobre Sêneca e Cícero, criou-seum estilo de comunicação elo-quente e elegante (Walker, 481). Noséculo XV Nicolau de Cusa, um te-ólogo místico alemão, neoplatônicoe universalista, crítico doescolasticismo, buscava a unidadeentre as religiões, tendo influencia-do Lefèvre d´Étaples na França. Emcidades como como Basileia eEstrasburgo desafiava-se o escolas-

ticismo com seus métodos teológi-cos tradicionais.

Se por um lado, o humanismoitaliano se apresentava com traçosmais seculares, dedicando-se ao es-tudo da retórica, gramática, poesiae evitando as questões religiosas eteológicas, por outro, ao norte, de-senvolveu-se o Humanismo Cristão,marcado pela aproximação entre osclássicos e as Escrituras, entre a so-ciedade e a Igreja, com ênfase emuma religiosidade interior centradaem Cristo (devotio moderna).

Entre os primeiros representan-tes desta nova tendência estavaReuchlin que com os estudos de gre-go e hebraico, influenciouMelanchton e outros. Erasmo deRoterdã foi um crítico das supers-tições e da vida monástica, tendo sededicado na Basileia à fusão entrea piedade interior (devotio moder-na) e o estudo dos clássicos. No en-tanto, uma postura natural contra odogmatismo e as disputas doutriná-rias, distanciaram-no de Lutero. Seuprograma de reforma da Igreja e dasociedade pretendia uma grande re-novação de ambas, a ser realizadaatravés da eloqüência, do uso da iro-nia e da volta às fontes da culturaclássica.

Erasmo defendia o cristianismocomo religião universal baseada no

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sermão da montanha e também umareligião de espiritualidade interior,firmada na adoração a Cristo. Ele foio primeiro tradutor do NT grego,tendo exercido enorme influênciasobre Budé, Zuínglio e Ecolampádio,bem como na França, sobre Lefèvree Calvino. Ele buscava o sentidooriginal das Escrituras contra a inter-pretação alegórica medieval. Mesmosendo acusado de luteranismo, suameta para a reforma sempre foi a lei-tura da Bíblia nos limites da Igrejaestabelecida.

Para os historiadores, nesseperíodo não existia ainda uma re-belião contra a Igreja e as pesso-as se sentiam, acima de tudo,marcadas pela angústia interiorfrente aos problemas da existên-cia como a miséria, a fome, omedo da morte e do diabo, bemcomo o anseio por segurança noque se refere à salvação. Osreformadores puderam compre-ender muito bem estes sentimen-tos do povo e seus anseios, bus-cando uma resposta que a Igrejaaté então não tinha podido dar.

A tradição retóricaEm seus estudos humanistas,

Calvino se dedicou à oratória latinade Cícero e Quintiliano. Apro-

fundou seus conhecimentos lin-guísticos (grego e latim), em huma-nidades, gramática, retórica, histó-ria, dialética e foi além, absorvendouma ampla visão sobre a história ea natureza humana, o que o tornouum verdadeiro representante da cul-tura humanista. CompreenderCalvino em seu contexto culturalhumanista pode levar portanto, aum melhor entendimento de seupensamento e obra reformadora.

Como ensinou Lucien Febvre aoanalisar o século XVI a partir deseu estudo sobre Rabelais (O Pro-

blema da Incredulidade no Século

XVI) não se justifica uma preocu-pação maior com as raízes filosófi-cas desses pensadores . Tambémpara Bouwsma, “no século XVI nãoexiste pureza intelectual, pois era umtempo totalmente eclético”( 2).Para ele, Calvino é primeiramenteum intelectual francês, humanistaevangélico (retórico) e exilado. Que-rer entendê-lo como um pensadorsistemático acima de tudo, seria umanacronismo tanto em relação a elecomo em relação ao século XVI. Eleseria isto sim, um pensador que bus-cou um arranjo possível entre a pro-blemática de seu tempo e a sua pró-pria, atraído por uma espiritualidadeeclética, à semelhança de Erasmo.

Calvino é descrito por Bouwsma

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como um homem representativo desua época, portador de grande ansi-edade e contradições em seu pensa-mento, superadas principalmentepelo humanismo e não pela filoso-fia socrática (Bouwsma, 113). Talfaçanha seria o feito “genial“ doreformador de Genebra. Em suacaminhada existencial e intelectual,Calvino passou de Sócrates paraRoma até chegar à Resascença atra-vés da retórica de Cícero,Quintiliano e também dos Pais daIgreja.

A retórica como arte de persua-são foi o grande instrumental doshumanistas que consideravam o dis-curso filosófico escolástico, firma-do na lógica racional, irrelevantepara o seu tempo (Bouwsma, 114).Por outro lado, na tradição retóricado sofista Protágoras, o conheci-mento é apenas uma opinião útil ouprovável e a linguagem não é o es-pelho da realidade, mas apenas uminstrumento de comunicação. Naverdade, o ser humano é muito maisemocional, prático e social do queintelectual. A linguagem serve por-tanto, para despertar os sentimen-tos e estimular a ação, controlar amente do ouvinte, persuadir, inspi-rar, conduzir as pessoas. A retóricatinha o poder de “inspirar a alma eincendiar os corações... represen-

tando liberdade e criatividade, compossibilidades de reformar o mun-do. A persuasão “requer habilidaderetórica”, que poussui muito maisforça que as formulações doutriná-rias.

Na verdade, para os humanistas,havia a possibilidades de “revitalizaro cristianismo com a volta à Bíblia.”e isso interessava a Erasmo, Lefèvree também ao protestantismo.Calvino desde o seu De Clementia

sobre Sêneca, entendeu que a lin-guagem é uma construção culturale isto o levou a se aproximar dosclássicos como Cícero, Quintiliano,Sêneca, Demóstenes, bem comodos oradores gregos e romanos, des-prezando filósofos como Platão eAristóteles.

Para os humanistas, a comunica-ção requer mais que fidelidade àverdade (filosofia). Ela exige a vir-tude retórica (decoro), pela qual oprofessor em sua pedagogia se aco-

moda lentamente à capacidade dosalunos, valendo-se de símbolos.Ajustar-se a uma audiência com pro-pósitos específicos é melhor do quese deter na busca de verdades ab-solutas. A mudança de atitudes é oque mais importa. Além disso, a elo-qüência para Calvino, é “uma gra-ça especial de Deus” (Bouwsma,117) e provém do Espírito Santo.

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O humanismocristão de Calvino

A marca mais forte dohumanismo de Calvino. está no “re-conhecimento de que a Bíblia todaé um documento retórico, uma obrade interpretação” (Bouwsma, 121)e era preciso evitar os perigos daalegorização. Assim, a retórica tem,com o seu uso do simbolismo, mui-to mais condições de contribuirpara a compreensão teológica, comoacontece, por exemplo, com a Ceiado Senhor.

A utilização da retórica na leitu-ra das Escrituras levou o re-formador a compreender que Deus,considerando a diversidade das épo-cas, pelo Espírito Santo, se “aco-moda à nossa fragilidade”, ensinan-do não apenas o clero e os instruí-dos, mas também as pessoas maissimples e rudes. Para ele, Moisés nãofalou sofisticadamente ou filosofica-mente, mas popularmente, para queos mais ignorantes pudessem com-preender. Também Jesus falava demaneira simples. Daí a constataçãode que a exposição exegética deCalvino foi mais flexível que a deoutros reformadores de seu tem-po, buscando a brevidade como re-curso retórico, em “contraste coma prolixidade escolástica”. Tendo a

retórica como método de trabalho,ele redigiu seus comentários, asInstitutas e outros escritos.

Bouwsma dá como um dos pri-meiros exemplos dessa prática emseu trabalho evangélico, a cartadirigida ao rei Francisco. I da Fran-ça, redigida de forma a “ensinar,envolver e agradar”. Seus comentá-rios não apresentam apenas erudi-ção, mas preocupação com a atua-lidade e “relevância para uma audi-ência moderna”. Eles têm intensida-de emocional, são persuasivos e vãomuito além de um simples trabalhoacadêmico. O mesmo método eraaplicado aos sermões, que deveriamalcançar as pessoas de acordo comsua possibilidade de compreender,buscando a persuasão. A aplicaçãodesta retórica tinha como objetivoproporcionar, com relativo êxito,uma reorganização da vida face àproblemática cultural das pessoasno século XVI, bem como à sua pró-pria.

Fica evidente em uma análisepsicológica de Calvino, que eleencarnou dentro de si o problemada ansiedade no mundo inseguro desua época. Vivia intensamente pre-ocupado com o futuro da Igreja, apolítica, a família, o julgamento deDeus, a morte e muitas outras coi-sas, que certamente afetaram sua

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maneira de escrever teologia. Daí anecessidade, diante de uma nature-za humana rebelde, de estabelecerlimites de todo o tipo (Bouwsma,36). Com os caminhos humanistase evangélicos percorridos, oreformador de Genebra pôde, emparte, superar sua ansiedade assimcomo a de seu tempo, e desenvol-ver seu programa de reforma.

As figuras do abismo e do labirin-to são utilizadas muitas vezes porCalvino e mostram sua ansiedade.O abismo (Rm 10.7) é o caos semlimites, é o não ser. É o horror ao ili-mitado, a desintegração do eu. O la-birinto (Igreja papal) é a cegueira, aindecisão frente ao futuro que só Deuspode contornar. Para Calvino, umpensamento mais tradicional e con-servador forneceram o alívio para aspressões que sofria.

A Reforma e CalvinoA abordagem retórica proveni-

ente da metodologia de trabalhohumanista fez com que a teologiado reformador e sua aplicação aoviver diário muitas vezes se equili-brasse entre posições aparentemen-te contraditórias, ambivalentes.Com relação à personalidade huma-na, viu o corpo como uma unidade,contrariando a posição dualista pla-

tônica e por isso mesmo, falando deuma “depravação total” sem deixarde enfatizar o ser humano comoimagem de Deus. Utilizando o mes-mo método, Calvino tratou do pe-cado muito menos preocupado emdiscutir filosoficamente o ser huma-no do que em convencer os pecado-res para que se arrependessem(Bouwsma,141).

Tanto Calvino como Erasmo vi-ram a questão de um conhecimen-to confiável do ser humano a partirda filosofia como uma impossibili-dade. A única probabilidade era umconhecimento contingente (Bouws-ma, 152), ambíguo, porém útil. Porisso, Calvino quis iniciar a Institui-

ção tratando do verdadeiroconhecimento,para responder auma preocupação existente em seutempo. A razão não tem condiçõesde alcançá-lo nem de conhecer oevangelho. Daí, a impossibilidade deuma teologia natural. A naturezanão pode garantir um conhecimen-to certo e sólido sobre Deus. Mes-mo assim, Calvino não deixa de fa-lar de uma revelação natural, deuma graça comum, que tem levadomuitos a considerá-lo inconsistenteou dúbio.

Para Erasmo com sua mora-lidade, a ênfase recai sobre umaespiritualidade interior que rejeita o

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excesso de cerimoniais e o peso dasestruturas eclesiásticas, ambos con-siderados adiáfora (coisas indiferen-tes). Todavia, a tradição iniciada porZuínglio, que prossegue comCalvino, vai além do indivíduo e al-cança a sociedade e sua transforma-ção pela ação educativa e moral.

O encontro de Calvino com averdade da Palavra de Deus fez comque uma outra resposta fosse dadaà questão: o ser humano é uma uni-dade misteriosa e seu centro está nocoração, que envolve a mente e ossentimentos. O conhecimento deDeus está ligado a uma relação comele e mostra temor, reverência econfiança, deixando evidente quetodo o bem existente vem dele. Éum conhecimento para a vida, rela-cionado com a experiência quetransforma. O que Deus quer não éque sejamos sábios ou especulativospara uma vida contemplativa maspara atuar, sabendo como viver(Bouwsma, 159).

Em consequência, o conheci-mento mais importante é o prático.

Existe uma unidade entre conheci-mento e prática. Por isso, a fé devese expressar por meio das obras .Nada de especulação vazia, privile-giando apenas a mente mas sim todaa personalidade. A obra teológicadeve ser feita para alcançar o ser

humano, sem muita sistematização,mas juntando perspectivas hu-manistas e bíblicas, preocupada nãocom o sublime mas com o humilde(Bouwsma,160). Além disso, o usodo paradoxo provocou em Calvino“sua abertura para todas as realida-des contraditórias da experiênciahumana”, ultrapassando os limitesda racionalidade e da filosofia paraalcançar o equilíbrio.

Sociedade e políticaCalvino vivendo em meio à ansi-

edade de seu tempo, sentiu com oshumanistas que a sociedade passa-va por uma profunda crise espiritu-al e moral, necessitando se recupe-rar. Transformar o mundo e ordená-lo foi a missão para a qual se sentiuchamado. Como um homem prá-tico e flexível diante das necessida-des econômicas e sociais, sentiu quemais importante que a elaboraçãode uma teologia perene, era atenderàs questões urgentes. Era fundamen-tal que o governo de Deus atravésde Jesus Cristo alcançasse o mundosecular e só se pode falar em verda-deiro culto a Deus quando a sua jus-tiça é praticada na sociedade. Se hádesordem no mundo, sua correçãose dará com a obediência a Deus e asujeição à sua soberania.

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Admitiu, na organização da so-ciedade, a hierarquia – príncipes,aristocratas, magistrados, gover-nantes - pois ela podia ser útil emalgumas circunstâncias (Bouwsma,194). Todavia, diante de Deus nãoexistem diferenças. Respeitava osartesãos e falou dos pobres e hu-mildes como superiores aos gran-des. Embora propenso a exaltar aaristocracia, para ele o povo comumé menos ímpio que os nobres.

Defendeu, como outros hu-manistas a riqueza e os ricos, poisos bens vêm de Deus e nem todosos ricos são corruptos. Ao aconse-lhar o jovem rico para vender tudoo que possuía e dar aos pobres, Cris-to não quis condenar a riqueza emsi mesma, mas o vício daquele jo-vem. Calvino também entendeu quea propriedade privada era essencialpara a ordem social e negou a prá-tica do comunismo na igreja apos-tólica. O dinheiro e o comércio sãoimportantes (Bouwsma, 198) maspara os ricos aconselhou ter umafortuna moderada, que não provo-casse inveja ou suspeita. Por outrolado, a riqueza não deve servir à lu-xúria, mas “para aliviar as necessi-dades dos irmãos”.

Condenou a preguiça e tambémo trabalho exagerado e ambos de-vem estar sob controle. Deus quer

que sejamos frugais e temperantese o importante era a vida na comu-nidade (Bouwsma, 301), para queatendesse a necessidade de todos.Há uma interdependência no traba-lho de cada um e Deus fez assimpara que os homens se sentissemdependentes um do outro. Quemnegligencia o interesse comum nãosabe o que é a verdadeira piedade.Na questão do rico e do pobre, ébom sempre lembrar que somosmordomos daquilo que Deus nos dá.

Sobre a política, como Deus érei de toda a terra, o poder dos prín-cipes existe para promover a suaglória (Bouwsma, 205). Um rei ver-dadeiro se reconhece como minis-tro de Deus como escreveu a Fran-cisco I. Seu dever é punir o mal e senão houver uma disciplina social oshomens agirão como animais. Porisso, mesmo a tirania é preferível àanarquia. Como Maquiavel, despre-zou o discurso filosófico idealista porsua falta de realismo com relação ànatureza humana.

Os governantes devem manter aordem e os súditos são obrigados aobedecê-los pois eles são indicadospor Deus e dele provém a sua auto-ridade. Resistir a eles equivale a re-sistir ao próprio Deus. Quem querque se revolte contra os magistra-dos está buscando a anarquia. No

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entanto, mesmo com esta posiçãoconservadora, Calvino defendeuposições não tradicionais em políti-ca. Há necessidade de flexibilidadee “a política admite e até requer vá-rias mudanças, de acordo com ascondições variáveis das épocas”, algotambém próximo de Maquiavel, nodizer de Bouwsma (207).

Com relação aos tiranos e comoevitá-los, Calvino procurou concili-ar sua idéia de que os magistradosdevem ser sempre obedecidos coma possibilidade de se rebelar contraeles. Embora buscando uma ordemprática e útil para o viver, ele mani-festou-se a favor da resistência aosgovernantes iníquos (Bouwsma,209). Devemos obedecer aos quetêm autoridade na medida em quenão neguem a Deus e o que lhe édevido. Acima de tudo, obediênciaàs autoridades não nos deve desviarda obediência a Deus.

Além disso, existe a resistênciaativa, quando o governante ultrapas-sa os limites de seu ofício, traindo aliberdade do povo. Só que ela de-pende de um chamado. Como ori-entação geral, as pessoas devem so-frer e obedecer. Com relação aosmagistrados inferiores, Calvino pen-sa que eles são responsáveis em pri-meiro lugar diante de Deus e nãodos superiores imediatos, uma po-

sição subversiva com relação à hie-rarquia. Este seria o caminho ordeiroestabelecido por ele para uma revo-lução política.

Além dohumanismo - Calvino

e o nicodemismoUma das características reve-

ladoras da avaliação crítica dohumanismo feita por Calvino embusca de uma verdadeira Reforma,foi sua forte oposição aonicodemismo, expressão referenteà experiência de Nicodemos, queprocurou Jesus durante a noite, masnão estava disposto a mudar sua vida(João 3.1-15). Um notável estudode David Wright, que consta entreas palestras proferidas no Congres-so Internacional de Pesquisa sobreCalvino, de Seoul no ano de 1998 -“Why was Calvin So Severe Criticof Nicodemism?” - trata do ataquede Calvino – muito mais forte doque qualquer outro reformador - aonicodemismo, e pode ser conside-rado um traço distintivo e ideológi-co de uma posição aparentementedúbia entre o humanismo religiosoe o compromisso com a Reforma.Na verdade, foi sua intransigenteposição anti-nicodemita que forne-

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ceu elementos decisivos para a op-ção e compromisso aberto de mui-tos com relação à nova fé.

Calvino viu no nicodemismo deseus companheiros humanistasuma proposta de reformismo evan-gélico moderado, defendida pelopregador Gerard Roussel, apoiadapor Margarida de Navarra e mui-tos outros humanistas de seu tem-po como Erasmo e talvez Lefèvred´Étaples. A prática ficou eviden-te especialmente na França, entrecatólicos e protestantes nãoconfessantes, adeptos de uma reli-gião particular, interior que, diantedas dificuldades de uma profissãode fé clara com relação às novasideias, aparecia como uma “tercei-ra via” entre luteranos e católicos.Estes, embora insatisfeitos com umaigreja que não se sujeitava à refor-ma, rejeitavam uma ruptura, ado-tando uma prática contempo-rizadora, de modo que, embora sim-patizantes das novas ideias, continu-avam a participar da missa como“criptoprotestantes”, com uma re-ligiosidade dissimulada. Ou seja,“não eram nem luteranos, nempapistas” (Wright, 68).

Muitos escritos de Calvino ata-cam essa prática idolátrica, confor-me a classificou o reformador. Noprefácio das Epistolae Duae (Duas

Epístolas), de 1536, escrevendo daItália a um amigo, cita o desafio deElias a Israel em 1 Rs 18.21: “Atéquando coxeareis entre dois pen-samentos? Se o Senhor é Deus, se-gui-o; se é Baal, segui-o”. Em seuPequeno Tratado da Santa Ceia

(1541), afirmou que um crente vi-vendo entre papistas, não pode to-mar parte em suas superstiçõessem ofender a Deus. Ataques idên-ticos são feitos também em seuscomentários e sermões.

Tanto rigor por parte deCalvino fez com que alguns o con-testassem e isso provocou consul-tas aos outros reformadores sobrea questão, sendo uma dirigida in-clusive a Lutero que, por sinal, nãorecebeu a carta. Perguntou entãoao respeitável reformador alemão:“Como é mesmo possível que essafé, sepultada no íntimo do cora-ção, não irrompa em confissão defé?” (Cartas, 53).

A questão foi tratada por Calvinoem sua eclesiologia, afirmando aIgreja primeiramente como unida-de e invisibilidade, para então colo-car a ênfase em uma concepção lo-calizada, como “igrejas individuais”em “cidades e vilas”, “sempre comouma comunidade específica, local epessoal” ( Bouwsma, 216). Ou seja,comunidades concretas em um de-

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terminado lugar, nada individual esim uma congregação em que oscrentes possam estar em comunhão,orando, louvando a Deus e socor-rendo uns aos outros. Para Calvino,esta comunidade atuante que se re-úne e professa a fé em conjunto epublicamente foi sua respostacontestadora à proposta nicodemita.

Embora tais propostas para aIgreja mostrem várias formas decontrole adotadas pelo refor-mador, como a disciplina daexcomunhão, elas constituíramuma tentativa de superar as ansie-dades das pessoas, eliminar a de-sordem existente e fornecer, peloequilíbrio, uma diretriz para o seutempo. Por outro lado, a insistên-cia de Calvino, praticamente sozi-nho nesta posição de ataque, per-mitiu que o protestantismo refor-mado sobrevivesse como uma co-munidade atuante (Bouwsma, 216,240) além de tornar Genebra umacidadela de refúgio para os fran-ceses perseguidos por sua fé.

ConclusãoCalvino, à semelhança de outros

humanistas de seu tempo, procuroucompreender a si mesmo e ao sécu-lo XVI a fim de proporcionar umaresposta para as indagações de uma

época instável, sob o impacto deinúmeras transformações.

Os esforços para compreendê-loem profundidade, mais psicologica-mente que teologicamente, no todode sua personalidade sem reducio-nismos a um ou outro aspecto ape-nas, é uma tarefa importante nabusca do Calvino histórico. Na con-clusão de seu “retrato”, WilliamBouwsma aponta para a “identifica-ção de dois Calvinos, coexistindoincomodamente, intranquilamente,em um mesmo personagem histó-rico” (Bouwsma, 230). Em seu in-terior batalha, por um lado, o pen-sador retórico sensível às contradi-ções da época, buscando ansiosa-mente “inteligibilidade, ordem, cer-teza” e por outro, o homem sensí-vel ao desespero da falta de sentido,em um verdadeiro abismo.

Por um lado, temos o Calvinoconservador, preso a princípios rí-gidos, intolerante com ideias dife-rentes, inseguro quanto à liberdadee procurando, por todos os meios,controlar tanto a si como ao mun-do que o cerca. Por outro, o Calvinoretórico e humanista, ciente dosparadoxos e mistérios da vida, ajus-tando-se às circunstâncias, toleran-te com a liberdade individual e atérevolucionário em meio ao labirin-to das incertezas de seu tempo.

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Na busca da ordem, a propostade Calvino com controle, modera-ção, temperança, pouco tem a dizersobre a liberdade, ao contrário deLutero. No entanto, como Erasmo,Calvino é otimista ao falar de umaética de controle equilibrado pelaqual o pecador, determinado e vigi-lante, pode evitar o pecado.

Tal vivência paradoxal explica oCalvino histórico que une as duastendências, refletindo o ser huma-no de seu tempo e, de certa forma,provavelmente, o curso da própriacivilização ocidental. Na busca daconciliação entre impulsos incom-patíveis dentro de si mesmo, mui-tas vezes predominou o Calvino fi-lósofo, incapaz de aceitar “misturas”enquanto o Calvino retórico podiacombinar tolerância e ambigüidadeno trato com essas mesmas ques-tões. No entanto, ao buscar o equi-líbrio diante de exigências que seri-am incompatíveis, ele se revelousuficientemente político, algo “se-melhante a Maquiavel” (Bouwsma,232), juntando verdades aparente-mente incompatíveis com a condi-ção humana e a fé cristã .

Bouwsma chega a afirmar (232)que este traço humanista deCalvino é, na verdade, o que elepossui de mais original, uma vezque haveria “pouca novidade em

sua teologia”. Recuperar e adaptarpara um novo contexto históricoaquilo que na fé cristã havia sidoperdido pela incúria da Igreja e dopapa seria sua “única inovação”.Muito mais do que anunciar ver-dades eternas, sua contribuição foicriar, através da acomodação, umnovo discurso teológico marcadopelo equilíbrio. Assim, o“calvinismo poderia ser utilizadotanto para aprovar mudanças comopara apelar aos instintos humanosmais conservadores” (Bouwsma,232). Por essa posição equilibrada,pôde atrair os impulsos contradi-tórios de seu tempo, tanto dos de-fensores da liberdade como da or-dem, de homens e mulheres de to-dos os lugares e grupos sociais.

Sem abandonar o pensamen-to tradicional, que dava sentidopara a compreensão do mundo,ele avançou ainda que timidamen-te, na direção de uma nova cul-tura, o que de certa forma o co-loca como alguém tanto medie-val como moderno. Através dorelativismo e pragmatismo, elefirmou um elemento essencial deseu pensamento, que conseguiuatravessar os séculos e se expan-dir em direção ao futuro. Semisso, diz o autor de seu magnífico“retrato”, é improvável que o

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“calvinismo tivesse sido mais doque uma pequena seita localiza-da, sem futuro” (Bouwsma, 233).

A compreensão do Calvino his-tórico e complexo aqui desenvol-vida pode não ser muito atrativapara os que preferem o pensadorsistemático e dogmático mas suarejeição pode torná-lo insignificantepara o mundo real em que vivemos,

no qual a mistura é condição decriatividade e da própria vida. Épreciso portanto, não dispensar oCalvino mais complexo, particular-mente “sensível às sutilezas e con-tradições da condição humana” ,capaz de ensinar ainda hoje a pos-sibilidade de se viver a vida cristãem equilíbrio, com autenticidade erelevância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. S. Paulo: Casa EditoraPresbiteriana, 1990.CALVINO, João. Cartas de João Calvino. S. Paulo: Cultura Cristã, 2009.________. As Institutas. Edição clássica. S. Paulo: Cultura Cristã, 2006.BOUWSMA, William J. John Calvin. A Sixteenth Century Portrait. Oxford: Oxford UniversityPress, 1988.COTTRET, Bernard. Calvin. Paris: Ed. Jean-Claude Lattès, 1995.GANOCZY, Alexandre. The Yooung Calvin. Philadelphia: The Westminster Press, 1987.FARIA, Eduardo Galasso (editor). João Calvino – Textos Escolhidos. S. Paulo: Pendão Real,2008.WALKER, Williston. História da Igreja Cristã. S. Paulo: Aste, 3a. edição, 2006.WENDEL, François. Calvin – the origins and development of his religious thought. London/N. York: Collins/ Harper& Row, 1965.WHITE, David. “Why was Calvin So Severe Critic of Nicodemism?”, em Calvinus EvangeliiPropugnator – Calvin, Champion of the Gospel. Grand Rapids: CRC Product Services, 2006,pp. 66-90.

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A e e e e eclesiologia a partir dereferenciais reformados

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na área da educação teológica.Seu artigo, publicado na RevistaSimpósio 28, fala da necessida-de que a igreja tem de ser autóc-

tone. Nosso artigo não segue exa-tamente essa direção, mas tira-mos proveito de vários pontospresentes no texto do saudosoMaraschin.

Nosso percurso neste texto ébastante simples. Pretendemosobservar os pontos principais dadiscussão teológica sobre a igre-ja no período da Reforma. Comonão podemos nos estender mui-to, a nossa observação será rápi-da, buscando pinçar o que so-bressai. Espaço maior, é claro,dedicamos às considerações deCalvino em relação à eclesio-logia. Essa observação nos aju-dará a contemplar um pouco aigreja em nossos dias, o que nãoserá fácil! Vamos conviver comas dificuldades e desafios de fa-

IntroduçãoOs artigos deste número da

revista Teologia e Sociedade, as-sim como os da edição anteriorvoltam a atenção para as come-morações dos 500 anos do nas-cimento de João Calvino. Nesteartigo, colocamos em discussãoa questão da eclesiologia, umtema tratado com muito carinhopelo reformador homenageadonesta edição.

Tomo a liberdade de, comeste artigo, homenagear tam-bém um colega que nos deixourecentemente. É dele um artigoque nos inspirou a escrever estetexto. Trata-se do pastoranglicano Jaci Correa Maras-chin, uma pessoa bastante co-nhecida no mundo ecumênico e

* Fernando Bortolleto é pastor da IPIB e profes-sor do Seminário Teológico de São Paulo.

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lar sobre a igreja de maneira geral.O importante será tentar perceberpontos nos quais a discussãoeclesiológica no período da Refor-ma, apesar das diferenças de con-texto, ainda pode ser inspiradorapara nós, membros de igrejas de tra-dição reformada.

Os primeirosreformadores e a

eclesiologiaO cristianismo se desenvolve

com características próprias emcada lugar, desde as origens. ApósConstantino, o Império se encarre-gou de patrocinar uma visãounificadora da igreja, buscando jus-tificar sua unidade e catolicidade(RICHARD, p.7). Assim, as mar-cas tradicionais da igreja Cristã fo-ram utilizadas a fim de garantir umaestrutura institucional rígida. E, emmuitos momentos da história, ultra-passar os limites dessa estruturainstitucional significou também cru-zar o limite que separava ortodoxiae heresia.

No mundo medieval, a igreja sedesenvolveu como real administra-dora das graças de Deus, detentora,portanto, de poder supremo. É im-portante que isso seja lembrado,

pois só assim teremos condiçõesmelhores de compreender o pensa-mento dos reformadores sobreeclesiologia. O grande poder da igre-ja se mostrava na hierarquia. Emrelação à vida religiosa dos fiéis, essepoder se manifestava pelos sacra-mentos: “Os sacramentos represen-tavam a objetividade da graça deCristo, presente no poder objetivoda hierarquia” (TILLICH, p.163).Podemos dizer que a integridade davida cristã medieval dependia deuma consideração eclesiástica sóli-da; uma estrutura institucional comabsoluta solidez.

Com os questionamentos daReforma em relação à igreja, inici-almente com Martinho Lutero, sur-ge a necessidade de enfrentar a ques-tão da eclesiologia. A ameaça daexcomunhão fez Lutero refletir so-bre uma nova noção de igreja:

Foi o que levou Lutero, no ser-mão sobre a excomunhão, de1518, a opor as duas noçõesde igreja, que até então esta-vam inseparavelmente ligadasno ensino escolástico: existea Igreja invisível que nos as-segura a salvação e da qual sóo pecado nos pode desligar. Aexclusão da igreja visível emnada afeta a nossa participa-ção na primeira. Devemos,

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sem dúvida, submeter-nos aopoder eclesiástico; entretan-to nosso dever mais urgenteé ser fiel à verdade, mesmoque nos custe a vida(STROHL, p.167).

Movido pelas circunstâncias,Lutero pensa na igreja em níveis di-ferentes. Na verdade, para Lutero,a Igreja é sempre invisível: é a no-ção do conjunto daqueles que têmfé. Essa é a Igreja espiritual (e real!)e é nesse sentido que o reformadorpensava na catolicidade da igreja.Contudo, se a igreja espiritual não éa igreja instituição, como reconhe-cer a verdadeira igreja? Como re-conhecer seus integrantes? Luterofala no batismo e no evangelhocomo elementos identificadores deverdadeiros cristãos e, portanto, in-dicadores da presença da verdadei-ra igreja (Idem, p.170).

Ao pensar na igreja dessa forma,Lutero toca a delicada questão dopoder eclesiástico. E como a igreja,na verdade, está onde estão os fiéis,aqueles que são batizados e crêemno evangelho, é justo pensar num“sacerdócio universal”, uma teseverdadeiramente revolucionária. Adiferença entre os cristãos não podeser especificada em termos de mai-or ou menor dignidade. Há diferen-

tes encargos na igreja (alguns espe-ciais), mas todos aqueles que per-tencem a ela fazem parte do sacer-dócio universal.

A centralidade de Roma, a par-tir daí, não mais encontra base sóli-da para a sua manutenção, segundoo reformador, que se utiliza, commuita liberdade, de diversos textosbíblicos a fim de indicar que o reinode Deus não pertence a este mundo(Jo 18.36) e que o reino está em nós(Lc 17.21). O domínio de Cristo nãoestá num lugar específico, mas ondehouver fé nos corações. Temos, por-tanto, em Lutero, os primeiros pas-sos no caminho de uma nova com-preensão da eclesiologia a partir daReforma: o foco sai da instituição evai para as pessoas que cultivam afé na graça de Deus a partir da pre-gação da Palavra. São elas que com-põem a igreja invisível.

Em Melanchton, já encontramosum certo aprofundamento (e tam-bém certas discordâncias) sobre aquestão da igreja em relação ao pen-samento de Lutero. CertamenteMelanchton valoriza mais a igrejavisível, que ele admite não ser per-feita, mas da qual não podemos nosafastar. Considera os riscos de umaacentuada ênfase na igreja invisível,o que poderia levar a uma perigosaabstração. Em relação à possibilida-

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de de identificação de uma igrejavisível confiável, ele fala de algunselementos: doutrina pura, corretaadministração dos sacramentos ereconhecimento da autoridade deministros fiéis ao evangelho (Idem,p.195).

Zuínglio também se distancia deLutero na questão eclesiástica.Acompanha Lutero ao entender aigreja como o conjunto de cristãosverdadeiros espalhados pela face daterra, mas afasta-se dele na consi-deração das comunidades locais, àsquais confere o status de igreja. Tam-bém considerava legítimo o poderde jurisdição da igreja, exercido so-bre os fiéis, de maneira mais práti-ca e objetiva.

Segundo Strohl, “dos reforma-dores anteriores a Calvino, Bucer éo que mais se interessa pelaeclesiologia” (p.185). Ele confirmaa distinção entre Igreja invisível eigreja visível. Utilizando-se da tesedo “sacerdócio universal”, observaa possibilidade de cristãos verdadei-ros constituírem um “corpo”, ouseja, uma igreja visível. Bucer temum especial sentimento pastoral aoconsiderar a eclesiologia. A realida-de da igreja visível deve estar apoia-da num sentido comunitário de aju-da mútua.

Em seus comentários sobre o

Evangelho de Mateus e a Epístolaaos Romanos, aprofunda a idéia deigreja visível como local de testemu-nho da fé. Bucer passa a considerarde forma destacada os meios de gra-ça. Palavra e sacramentos são paraele o testemunho da fé eficaz. Seugrande apreço pela doutrina do “sa-cerdócio universal” leva-o a obser-var com cuidado o ministério daadministração dos meios de graça. Aosalientar também a função educativada igreja, Bucer coloca em destaque aquestão da disciplina. Ainda que sejacomum lembrar de Calvino ao falarde disciplina na igreja, Bucer a consi-derou de maneira mais objetiva, co-locando-a como uma “marca” da igre-ja (McGRATH, p.551).

Bucer oferece uma definição bas-tante abrangente de igreja:

A igreja é a comunidade querecebe sua inspiração deDeus, por intermédio da Pa-lavra e dos sacramentos, eque concorre para o progres-so do reino de Cristo prati-cando a caridade e a discipli-na. Seus membros sãoarrebanhados do mundo e,em Cristo, o Senhor, consti-tuídos em um corpo pelo Es-pírito e pela Palavra. Todos osmembros têm o dever co-

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mum de contribuir para aedificação de todo o corpo ede cada um de seus membros.Assim eles constituem umafraternidade em que ninguémvive para si próprio, mas emque cada um sente os proble-mas corporais e espirituais dopróximo como se fossemdele próprio, empenhando-seem aumentar o número deverdadeiros crentes e a suaqualidade (apud STROHL,p.190).

Não há como negar que essadefinição traz elementos muito sig-nificativos para a época (e, por in-crível que pareça, para nós, hoje,também). Não é mais a estabilida-de institucional que garante a soli-dez da igreja. Mesmo a pregação daPalavra e os sacramentos, funda-mentais para a visão reformada, sãoindicados como veículos do poderde Deus para a manutenção e forta-lecimento de uma comunidade defato. A solidariedade aparece emdestaque. Também a indicação dapreocupação que a igreja deve terde levar as pessoas a Cristo moti-vou uma interessante note de rodapéna obra de Strohl (p.191): “Bucer éo único reformador que insiste nodever missionário da igreja, tendo

formulado quase todos os argumen-tos que hoje se invocam em favorda obra missionária”.

A igreja nopensamento de

CalvinoCalvino aproveita-se positiva-

mente das discussões teológicasanteriores a ele sobre a igreja. Rea-firma pontos básicos, delineados notópico anterior, discutidos por ou-tros reformadores e apresenta no-vidades significativas.

Calvino entende que Palavra esacramentos não podem existir semproduzirem frutos (CALVINO,p.812). Assim, onde quer que tenha-mos a pregação sincera da Palavra ea administração dos sacramentosconforme a instituição de Jesus Cris-to, aí teremos a igreja visível. O povode Deus está sempre reunido emtorno da Palavra e dos sacramentos,elementos que Calvino reafirmavigorosamente como marcas essen-ciais da igreja.

O reformador de Genebra fazquestão de permanecer refletindosobre a diferença entre a igreja visí-vel e a igreja invisível. O conceitode igreja invisível tem grande impor-tância para Calvino, pois essa é a

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forma de expressar a totalidade doseleitos, cujo número somente Deusconhece. A igreja invisível, comoobjeto de fé, é o que confessamosquando utilizamos o símbolo de fédos apóstolos: “cremos na igreja”.A confissão é abrangente e não develimitar-se a uma única expressãohistórica da igreja. Os conceitos devisível e invisível permanecem, nopensamento de Calvino, em perma-nente e saudável tensão: são doispólos interligados. Para Calvino, aigreja que se pode chamar de ver-

dadeira é a igreja invisível.Quanto à igreja visível, ela é ne-

cessária, deve ser honrada, poisDeus a deseja. Os cristãos devem aela fidelidade. Nas sucessivas edi-ções das Institutas, a igreja visível écontinuamente valorizada. Strohlobserva que o título “mãe”, queabordaremos mais adiante, utiliza-do na edição de 1536 exclusivamen-te para a igreja invisível, aparece, naedição definitiva, conferido à igrejavisível: a igreja invisível aparececomo que “encarnada” na igreja vi-sível (p.208). A reflexão de Calvinose torna mais madura e concretadiante de suas experiências em Ge-nebra. Ele havia conseguido progres-sos significativos em seu trabalho, oque o levava a ver aspectos muitopositivos em sua comunidade.

Uma vez verificada a importân-cia crescente que Calvino dá às co-munidades locais, tornar-se clara asua atitude no sentido de preocupar-se de maneira especial com a orga-nização interna da igreja. Principal-mente em relação aos ministériosessenciais para o seu funcionamen-to, os quais, segundo ele, estão ob-jetivamente indicados no texto bí-blico.

No caminho de valorização daigreja visível, Calvino enfrentouaqueles que faziam objeções, apoia-dos nas marcas tradicionais da igre-ja, como a santidade. Seria possívelchamar de igreja (e, portanto, san-ta) uma instituição imperfeita?Calvino, sem abrir mão da luta con-tra os vícios, mostra-se tolerante,tomando o exemplo do apóstoloPaulo, enfrentando as dificuldadesda igreja de Corinto.

Ao analisarmos o primeiro capí-tulo do livro quarto das Institutas,percebemos que Calvino fala daigreja como “mãe”. Essa metáfora éimportantíssima no seu pensamen-to sobre eclesiologia. A igreja-mãeé aquela que nos faz nascer em Cris-to, que nos alimenta, que nos am-para e nos defende (CALVINO,p.806). A figura da “mãe” aplicadaà igreja é utilizada para deixar claraa sua posição: a igreja é essencial.

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Em Calvino, estar na igreja não éuma opção que fazemos de acordocom o nosso gosto; não se pode com-preender a vida cristã distante daigreja. Por isso, o reformador utili-za expressões fortes, indicando quese apartar da igreja é “pernicioso emortal”.

Um pouco mais adiante, no mes-mo capítulo, no ponto 10, o texto éainda mais enfático quanto a se se-parar da comunhão da igreja. Ela éa guardiã das verdades de Deus; Eleutiliza a igreja a fim de manter vivaa pregação da sua Palavra. O textochega mesmo a dizer que quem seaparta da igreja nega a Deus e a Je-sus Cristo (CALVINO, p. 813).

A questão da comunhão apare-ce também com destaque no mes-mo capítulo (ponto 3). Os crentesnão participam dos benefícios con-cedidos por Cristo como indivídu-os isolados. Fica destacado o senti-do de corpo, pelo qual a igreja tam-bém dá testemunho (GEORGE,pp.234-235).

Concluindo, podemos dizer quea igreja para Calvino teve um senti-do verdadeiramente autóctone, poispertencia realmente ao lugar ondeestava (MARASCHIN, p.293). Soba liderança de Calvino, nascia umaigreja em Genebra totalmenteidentificada com aquele momento

histórico. Essa igreja, concreta, comvirtudes e defeitos, com seus avan-ços e retrocessos, foi o referencialpara uma consistente reflexão sobreeclesiologia, sem dispensar, comoindicamos no início deste tópico,reflexões anteriores.

Desafioseclesiológicos atuais

Pode parecer pretensioso o títu-lo deste tópico. A intenção não éessa, certamente. A proposta paraeste terceiro tópico do nosso textoé, na verdade, bastante limitada. Aintenção é questionar como estamosvivendo a experiência eclesiástica eprocurar perceber nossos desafiosatuais, auxiliados pelo que vimos atéaqui. É necessário muito cuidado,pois, nos quase quinhentos anos quenos separam dos reformadores,muita coisa mudou.

Só para ter uma ideia, nessesquase quinhentos anos, a históriaregistrou muita coisa importantepara a nossa consideração sobre aigreja: ocorreu a explosão dodenominacionalismo, o movimentomissionário, o movimento ecu-mênico, o crescimento avassaladordas igrejas pentecostais etc. Diantede tantas mudanças, chegamos a um

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cenário multifacetado, confuso, ex-cessivamente fragmentado. Pensan-do na herança reformada, o quepodemos dizer sobre a igreja hoje?

A Reforma Protestante abriu asportas para denominacionalismo. Osaudoso Professor A. G. Mendon-ça nos lembra que “O protestantis-mo é uma atitude espiritual que seexpressa sempre em novas formasde vida e pensamento. Pode respon-der sempre a situações contextuaisnovas, mas o evangelho continua omesmo” (p.264). Certamente issose verificou no movimento missio-nário. Contudo, temos enfrentadoos efeitos colaterais do deno-minacionalismo. Ele é hoje umafragmentação absurda, pretextopara vaidades pessoais, sem qualquerjustificativa de caráter teológico.

O respeito pela igreja, que veri-ficamos no pensamento de Calvino,mesmo consideradas as diferençasde contexto, está muito longe docenário evangélico brasileiro demaneira geral. O princípio da ade-são voluntária, próprio da noção deliberdade no contexto protestante,transformou-se numa realidade con-fusa de trânsito eclesiástico orien-tado pela noção mercadológica deigreja, que deve oferecer “serviços”melhores para a manutenção da “cli-entela”. O pior é pensar que, mui-

tas vezes, a consideração de maiorimportância da igreja invisível tam-bém serve de argumento para umaatitude de despreocupação em rela-ção à igreja visível.

Teríamos também de perguntar:o que orienta hoje nossa avaliaçãosobre as marcas essenciais de umaigreja que possa ser consideradacristã? Seria ainda decisivo falar napregação da Palavra e nos sacramen-tos? Para a nossa realidade, não se-ria isso demasiadamente genérico(MARASCHIN, p.292)? Muitas ini-ciativas de caráter religioso são cha-madas de “igreja” atualmente.Como proceder? Isso é muito gravepara nós, protestantes, pois, no cris-tianismo brasileiro, tudo o que nãoé católico é considerado “evangéli-co”. Devemos enxergar tudo issodentro de uma perspectiva de tole-rância? Não deveríamos tambémnos influenciar pelo ardor da críticaprofética, em nome da justiça e con-tra os abusos em nome da fé?

Fizemos referência acima ao fatode Calvino ter desenvolvido umaexperiência eclesiástica identificadacom o lugar em que estava. Vai nes-sa linha o artigo de J. Maraschinabordando a “igreja Autóctone” (Re-vista Simpósio 28). A ênfase nesseartigo se dirige à necessidade da igre-ja realmente renascer no local em

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que está, visto que as denominaçõesprotestantes são artigos de impor-tação em nosso continente. O autorvaloriza a cultura local e aponta osperigos de um transplante de mo-delos e costumes como se fossemdivinos. Se isso ocorreu inicialmen-te nas iniciativas missionárias, dei-xando marcas até hoje, podemosdizer que continua ocorrendo. Emnome da busca obstinada pelo cres-cimento numérico, as igrejas impor-tam novos modelos. Constantemen-te há lançamentos de livros que for-necem modelos e instruções práti-cas para a obtenção de crescimentoexplosivo. Técnicas de administra-ção e marketing são indicadas semqualquer critério ético e teológico.

Encerramos com duas citações,uma mais antiga e outra mais atual.A primeira é de H. Strohl, na últimapágina do capítulo sobre a igreja oseu livro O Pensamento da Reforma:

Uma das forças do cal-vinismo foi exatamente nãose contentar em apenas des-pertar, pela pregação, a fé emindivíduos isolados, mas tra-balhar por reunir os cristãos,organizando-os solidamenteem comunidades onde assu-missem responsabilidades etivessem o privilégio e a obri-

gação de praticar a ajuda mú-tua de acordo com os diver-sos ministérios e conforme osdons de cada um (p.210).

A outra citação é do pastorLuterano Lothar C. Hoch, em artigosobre espiritualidade e educação teo-lógica, na revista Estudos Teológicos:

Temos deixado de crescer en-quanto igrejas protestantes his-tóricas porque temos negligen-ciado a cura d’almas, a solida-riedade na dor (...) A grandemaioria do povo latino-ame-ricano tem sede da Palavraencarnada, da ação solidáriaque traz consolo e esperançana doença, na morte, no luto,na depressão, na velhice, nodesemprego (p.80).

As citações são contundentes.Falam do que poderíamos chamarde natureza da igreja de Cristo.Nossa herança calvinista nos leva apensar na igreja como comunidadede serviço. Temos, talvez, no senti-do profundamente comunitário e nadisposição de todos para o serviçoao próximo, marcas necessárias efundamentais para a igreja em nos-sos dias.

Soli Deo Gloria

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, J. Institución de la Religión Cristiana. Rijswijk: FELIRE, (vol. II), 1986.GEORGE, T. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993.HOCH, L. C. “A importância da espiritualidade para a formação teológica: Um aporteteológico-pastoral”. In: Estudos Teológicos. São Leopoldo: EST, v.49, n.1, 2009.McGRATH, A. Teologia – Sistemática, Histórica, Filosófica. São Paulo: Shedd, 2005.MARASCHIN, J. C. “As marcas da igreja autóctone”. In: Simpósio. São Paulo: ASTE, v.5, n.4,1984.MENDONÇA. A. G. “Denominacionalismo”. In: Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo:ASTE, 2008 (p.263-267).RICHARD, P. “As diversas origens do cristianismo”. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes, v.22, n.3, 1995.STROHL, H. O Pensamento da Reforma. São Paulo: ASTE, 2004.TILLICH, P. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2000.

SALA DE EXPOSIÇÃO NOMUSEU DA REFORMA, EMGENEBRA

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dez ideias que estão mudando omundo exatamente agora. Paraa revista, o “neocalvinismo” évisível nas novas músicas quefazem sucesso e evocam os gran-des temas calvinistas como a de-pravação total, a soberania deDeus e a redenção em JesusCristo, cantadas pelas bandasdos jovens norte-americanos. Aofinal do artigo vem a ironia: “Emjulho próximo, se dará o 500ºaniversário de nascimento deCalvino. Será interessante obser-var se o seu último legado con-tinuará sendo a clássica difama-ção contra os protestantes ou semais cristãos, buscando a segu-rança da fé, renderão sua vonta-de ao Deus severo e exigente,herdado da infância histórica deseu país”.

É muito forte a imagem ne-gativa do reformador. “Calvinoé praticamente desconhecido,

Na celebração dos 500 anosdo nascimento de Calvino suaimportância é lembrada não ape-nas pelos que estudam a histó-ria da Igreja. No momento emque são comemorados os 400anos da astronomia, os 200 donascimento de Darwin, os 150anos de “A Origem das Espéci-es”, a contribuição do reforma-dor em relação à ciência moder-na é significativa, especialmentepara as próximas gerações deteólogos e cientistas.

“O calvinismo está de volta”,foi o que disse a revista ameri-cana Time,1 que também colo-ca o “neo-calvinismo” na lista das

* Alexandre Choi é bacharel em Teologia pelo Se-minário Teológico de São Paulo e licenciado emFísica pela Universidade de São Paulo.

1 http://www.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1884779_1884782_1884760,00.html

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exceto talvez como lembrança dedelitos e folclores do passado...”2

William J. Bouwsma, em seu livro“João Calvino: Um Retrato de Sé-culo XVI”, argumenta que “as cau-sas da atual desconhecimento deCalvino são complexas, mas umadelas pode resultar do seu abando-no, com algumas honrosas exce-ções, por parte dos historiadoresseculares...” “... convencidos por seuspróprios secularismos da ir-relevância do discurso religioso paraa vida real...” “... e considerando, namelhor das hipóteses, como de in-teresse marginal o Calvino históri-co”.3

O atual desconhecimento deCalvino também pode ter ocorridoem conseqüência da suposta igno-rância por parte dos reformadoresno que se refere à revolução cientí-fica. Para examinar melhor este pon-to de vista, precisamos conhecer aspesquisas em andamento sobre aReforma e o nascimento da ciênciamoderna.

A Reforma e aciência moderna

Na pesquisa sobre a revoluçãocientífica e a influência da Reformareligiosa do século XVI, muitos te-ólogos e historiadores mantiveram,

até o começo do século XX, a ideiade que existe uma afinidade entre ocalvinismo e a ciência moderna.Mas a nova pesquisa histórica ques-tiona esta ligação.

Para a maioria dos historiadoresda igreja até o século XIX, oscalvinistas posteriores, herdeiros doCalvino filosófico e sistemático,rejeitaram as qualidades retóricas epolíticas do Calvino histórico, subs-tituindo-as por um tensodogmatismo.4

Pannenberg analisa:“Na base de uma visãomecanicista da natureza ainferência a partir do primei-ro motor ou primeira causaperdeu a sua irrefutabilidade.Para tentar provar Deus apartir da experiência do mun-do era preciso se concentrarna análise dos efeitos da na-tureza ou da contingência daexistência finita. De acordocom W. Philip, o primeiropasso foi dado pela física-te-ológica que floresceu na épo-ca do Iluminismo e o segun-

2 William J. Bouwsma. John Calvin. A Sixteenth-CenturyPortrait. Oxford: Oxford University Press, 1988, p.1.3 Idem.4Idem, p. 234.

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do, por aqueles que enfa-tizaram a contingência comouma prova cosmológica deDeus.”5

A pesquisa da Kirchengeschichte6

vai mais longe nesta questão físico-teológico do século XVII. Enquan-to W. Philip fala que o iluminismo,partindo da confissão na revelação,é a tentativa físico-teológica, “...dedar nova vida a todas as áreas esva-ziadas pela descoberta deCopérnico”, M. Schmidt critica talexplicação e diz que o iluminismo éantes, a resposta do mundo aopietismo, que menosprezou o pri-meiro artigo das confissões de fé ese distanciou da Reforma de Lutero.

Segundo Gary B. Deason, no seuartigo “Reformation Theology and

the Mechanistic Conception of

Nature”7, existem pesquisadoresque tentaram mostrar a ligação di-reta entre Calvino e seus seguido-res com a ciência moderna. JohnDillenberger e Brian Gerrish argu-mentaram de forma convincente,que a teoria exegética protestanteinclui vários elementos que permi-tem a reaproximação entre as rei-vindicações bíblicas e as hipótesesastronômicas.8

Posição dedistanciamento

Jan Rohls num artigo intituladode “A teologia reformada e a cultu-ra moderna”9 fala que no início doséculo XX, os estudiosos alemãesdescobriram na teologia reformadauma das raízes da cultura moderna.A razão disso estaria ligada ao bemconhecido Max Weber. Em seu fa-moso ensaio A ética protestante e o

espírito do capitalismo, este soció-logo, luterano por nascimento, fezuma ligação entre a ética docalvinismo, baseada na doutrina dapredestinação, e o espírito racionaldo capitalismo moderno. Jan Rohlscita outro luterano, Ernst Troeltsch,que cinco anos mais tarde, em umfamoso ensaio de 1905, resumiu atese de Weber sobre a relevância

5 Idem, p. 234.6 Pannenberg, Systematic Theology, Vol. 1, pg 88. cita W.Philipp, Das Werden der Aufklärung inTheolgiegeschichtlicher Sicht, Göttingen, 1957), pp. 21-73. p. 88.7 Joachim Mehlhausen & Wolfgan Bienert.„Kirchengeschichte (KG)” in: Georg Strecker (Hrsg.)Theologie im 20. Jahrhundert. Tübingen: J. C. B. Mohr,1983.8 Gary B. Deason, “Reformation Theology and theMechanistic Conception of Nature” in God and Nature:Historical Essays on the Encounter Between Christianityand Science, ed. David C. Lindberg and Ronald L.Numbers (Berkeley: University of California Press, 1986),167-191. p. 171.9 Jan Rohls. “Reformed Theology and Modern Culture”.pg. 45-59 in Brian Gerrish (ed.) Reformed Tehology forthe Third Christian Millenium: The 2001 Sprunt Lectures.Louisville, London: Westminster John Knox Press, 2003.

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do protestantismo para o surgi-mento do mundo moderno. A con-clusão de Troeltsch é que “ocalvinismo foi muito mais influentena sociedade moderna do queluteranismo”.

Jan Rohls explica que Weber eTroeltsch encontraram esta tese nasfamosas palestras proferidas peloprimeiro ministro holandês e teólo-go Abraão Kuyper em Princeton, em1899. Na parte em que trata de “Ateologia reformada e a ciência”Kuyper estaria interessado em mos-trar como o desenvolvimento da ci-ência moderna tem suas raízes nocalvinismo. Ele argumentou que adoutrina da predestinação levou àconvicção de que a natureza é regidapor leis que os cientistas haviamapenas começado a descobrir. Adoutrina calvinista da predestinaçãoe a convicção fundamental da ciên-cia moderna têm assim, uma basecomum. Ambas consideram que omundo está baseado no princípio dodeterminismo. O calvinismo, comuma visão determinista da criação,tem portanto, uma relação muitomais estreita com a ciência moder-na do que o arminianismo.

Kuyper pensava também que adoutrina da graça comum, deCalvino, foi tão importante para odesenvolvimento da ciência moder-

na como a doutrina da predes-tinação absoluta. Apesar de sermoscorrompidos pelo pecado, Deusmantém a todos com sua graça co-mum. Assim, a teologia reformadaenfatiza que a natureza revela Deuscomo criador e preservador domundo. A conclusão de Kuyper foique enquanto a Idade Média apre-sentou muito pouca investigação ci-entífica, no início da modernidadea doutrina calvinista da graça co-mum inspirou o surgimento da ci-ência natural.

Mas o que o autor do artigo, JanRohls, tem em mente ao citar osteólogos do início do século XX queelogiavam o calvinismo é outra coi-sa. Segundo ele, Calvino considera-va o mundo natural como um espe-lho que reflete Deus, como o “tea-tro da glória de Deus”, no qual so-mos colocados como espectadores,embora isto não signifique que eleestava preocupado com investiga-ção científica. E, ainda, Calvino es-tava convencido de que algumas dasdescrições bíblicas da criação eramacomodações à mentalidade sim-ples das pessoas da Antigüidade. Porisso, Moisés não falou de modo ci-entífico, mas teria feito um discur-so popular. A cosmologia de Calvinoera geocêntrica, não só porque essaera a astronomia aceita em seu sé-

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culo, mas também porque era apoi-ada pela Bíblia.

Alguns seguidores profunda-mente influenciados por Calvino,como Girolamo Zanchi e Lam-bertus Danaeus escreveram umaFísica Cristã baseada na Bíblia e emAristóteles, utilizando a interpreta-ção literal. Em suas obras, acosmologia heliocêntrica deCopérnico não foi aceita. Pelo con-trário, foi fortemente atacada, por-que contradizia a Bíblia.

Em meio ao século XVII,Voetius, o famoso chefe do partidoortodoxo reformado holandês, cri-ticou aqueles que, confiando em suaspróprias observações, não se restrin-giram à física mosaica da EscrituraSagrada, ditada pelo Espírito San-to. Isto já mostraria para Jan Rohlsque não há uma ligação direta entreCalvino e seus seguidores com a ci-ência moderna: nem Calvino nemqualquer um de seus seguidores or-todoxos contribuíram para o nasci-mento e desenvolvimento da ciên-cia moderna.

A teologia reformada só come-çou a aceitar a ciência moderna pelainfluência de Descartes. O filósofofrancês apoiou a cosmologiaheliocêntrica com sua física moder-na e alguns teólogos da Reforma in-troduziram pela primeira vez a nova

ideia nas universidades nos PaísesBaixos. Teólogos como JohannesClauberg e Christoph Wittich foramos primeiros a aceitar a ciência mo-derna e sua cosmologia, tal comoapresentadas por Descartes.

Wittich, que ensinava na Univer-sidade de Leiden, elaborou um tra-tado-resposta criticando o mau usoda Escritura Sagrada em física feitopor Jacob du Bois, um ministro Re-formado em Leiden, que usou o seu“Dialogus Theologico-Astrono-micus” em 1653, para defender acosmologia geocêntrica como sen-do a única apoiada pela Bíblia. Nes-te tratado, Wittich combinou, pelaprimeira vez, a defesa da cosmologiaheliocêntrica ensinada por Descar-tes com a teoria da acomodação deCalvino, ou seja, sempre que acosmologia geocêntrica esteve pres-suposta, o autor da Bíblia, o EspíritoSanto, acomodou-se à compreensãodos antigos leitores. Wittich defen-deu sua teoria com um princípiohermenêutico: a intenção do Espíri-to Santo, inspirando os autores a es-crever a Bíblia, não era ensinar físi-ca ou cosmologia, mas dizer-nos oque fazer para alcançar o céu.

Este seria o fim da Física Cristãde Danaeus, Zanchi, Voetius, e mui-tos outros. Vivendo em um contex-to completamente diferente, essa

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cosmologia “de Calvino”, geocên-trica, já não teria qualquer relevân-cia, embora seja pressuposta pelaBíblia. A conseqüência disso foi, en-tão, que a imagem do universo anun-ciada na Bíblia já não seria tão au-têntica e autorizada e que podia,agora, ser criticada. Jan Rohls citaoutros calvinistas da época paramostrar o difícil processo de aceita-ção da ciência moderna pelosreformadores.

Posição dereaproximação

Gary B. Deason em seu artigo“Reformation Theology and the

Mechanistic Conception of Nature”argumenta que a teoria exegéticaprotestante incluía vários elementosque permitem a reaproximação en-tre reivindicações bíblicas e as hi-póteses astronômicas. Lembrandoa importância da matemática, diz:

“somos obrigados a reconhe-cer a aplicação generalizada demétodos matemáticos aomundo físico como a únicamudança mais significativafeita na tradição científica doséculo XVII. A partir deGalileu, que formulou a lei daqueda de corpos, de Descar-

tes que tratou da reduçãoprogramática da natureza àgeometria, das leis de impac-to de Wren, da força centrí-fuga de Huygens e dos prin-cípios matemáticos da Filoso-fia Natural de Newton, no sé-culo XVII, o mundo foi des-crito progressiva e sucessiva-mente por meio através douso das ferramentas da ma-temática.”10 Deason, p. 167.

A matematização da natureza narevolução científica representou areafirmação de uma visão platônicada matemática contra o ponto devista de Aristóteles, que havia do-minado a filosofia natural no séculoXIII. Para Platão a realidade é a maiselevada forma intelectual, ou puraideia, consubstanciados imperfeita-mente na física e mais perfeitamen-te na matemática.

O sucesso da aplicação de mate-mática no mundo físico do séculoXVII pondo fim à concepçãoaristotélica, exigiu uma nova con-cepção da natureza, que permitiu aaplicação da matemática. No desen-volvimento desta nova concepção,os pensadores não retornaram di-retamente a Platão... Em vez disso,

10 Deason, p. 167.

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construíram uma nova visão domundo, transformando a antiga fi-losofia em uma concepção me-canicista da natureza.

As leis da natureza são entendi-das pelos filósofos como matemáti-cas. As descobertas de Kepler,Galileu, Descartes, Stevin, e outrosdescrevendo fenômenos físicos pormeio de fórmulas matemáticas de-senvolveram a visão da naturezacomo uma máquina. Quando osmecanicistas rejeitaram a compre-ensão da natureza de Aristóteles re-jeitaram a teoria da cooperação danatureza com Deus. As leis da na-tureza que eram regidas, até então,por Deus e por sua obra providen-cial já não eram necessárias. Assim,influenciados por uma concepçãopositivista da ciência, muitos estu-dos rejeitavam qualquer contribui-ção da teologia para a revolução ci-entífica e interpretavam esta rejei-ção como a purificação dodogmatismo teológico a partir dosconhecimentos científicos.

Recentemente, pesquisadoresafirmaram que a mecânica não im-plicou na rejeição da teologia, masrepresentou um avanço na direção

das convicções teológicas, manifes-tadas pela primeira vez entre osnominalistas medievais, assim comona doutrina da soberania de Deusno pensamento da Reforma, espe-cialmente em Martinho Lutero eJoão Calvino. Ao contrário da teo-ria medieval de cooperação, queafirmava que a natureza cooperacom Deus, a Reforma acreditavaque uma compreensão adequada dasoberania excluía qualquer contri-buição de seres humanos ou da na-tureza para a providência divina.

A crença na passividade da ma-téria ganhou destaque no séculoXVII, em parte devido à reconheci-da afinidade entre ela e a doutrina dasoberania de Deus dos protestantes.Os filósofos da mecânica voltaram-se para a doutrina protestante da so-berania de Deus convictos de que amatéria não poderia possuir poderesativos sendo Deus soberano.

Em contraposição à opinião ge-ralmente aceita de um diálogo en-tre o protestantismo e a nova ciên-cia, o prof. Deason afirma que oprotestantismo da Reforma possuíaqualidades significativas de pensa-mento e de práticas que tinham afi-nidades com a ciência moderna in-surgente.

Wolfhart Pannenberg perguntaem seu livro Fé e Realidade,11 no

11 Wolfhart Panneberg. Fé e Realidade. São Paulo: Ed.Cristã Novo Século, 2004. (orig., Glaube und Wirklichkeit.Klein Beiträge zum christlichen Denken, 1975. Trad. In-glesa, Faith and Reality, Philadelphia: The WestminsterPress, 1977.)

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capítulo “Nossa Vida está nas Mãosde Deus?”: “A realidade da nossavida tem alguma coisa a ver comDeus?” para dizer “essa é uma ques-tão que se tornou aflitivamente ur-gente aos cristãos de hoje.”12 Paraele,

“O homem medieval achavao processo da natureza in-compreensível, salvo se elelevasse em conta uma causaprimeira, a qual era, na épo-ca, imutável; se ela fossemutável, deveria ter uma cau-sa para sua mutabilidade. Aconclusão a que se chegava,quanto à natureza imutáveldessa causa primeira, era queessa causa deveria ter sidouma realidade espiritual e queessa conclusão inevitavelmen-te trouxe o pensamento sobreum Deus pessoal. Essa pri-meira causa, entretanto, ne-cessariamente tem de ser con-siderada como um primeirocomeço de todo processo na-tural. Embora exista, ao mí-nimo, uma necessidade parauma causa mantenedora pri-meira que impede o proces-so natural de um início me-nos eficaz. Havia uma con-cepção de que todo movimen-to exigia estímulos contínuos

para que não viesse a cessar.Essa necessidade de aceitaçãocontínua da atividade divina,sem a qual todo movimentona natureza estaria prestes acessar, eventualmente tor-nou-se supérflua quando oprincípio de inércia foi intro-duzido durante o século XVII.Esta idéia teve uma parte im-portante no processo peloqual Deus foi eliminado da na-tureza. De acordo com a leida inércia, todo corpo emmovimento tinha a tendênciade continuar em seu própriomovimento, contanto que nãofosse retardado ou aceleradopor influências exteriores.Aqui, para nós, essa lei do sé-culo XVII é muito importan-te, porque sua aceitação im-plicou em não haver necessi-dade de explicar o processodo movimento contínuo danatureza através do recursode um poder divino, infinitoe envolvente. O movimentoda natureza se mantém atra-vés de seu próprio acordo. Oprincípio da inércia foi o pri-meiro e talvez o exemplo

12 Idem, p. 13.

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mais contundente que expli-cava como a compreensão demundo do homem desas-sociou-se das pressuposiçõesreligiosas tradicionais, e aidéia de que o mundo pode-ria ser entendido puramenteatravés de si mesmo começoua desenvolver-se.”13

Este argumento de Pannenbergvai diretamente contra o do prof.Deason. De um lado, a idéia de“inércia” que teria mudado acosmovisão da Idade Média, da di-vina ação para o movimento ineren-te do próprio universo, e por outro,a idéia da soberania de Deus, quenão exige nenhuma atividade extrada parte da providência divina.

São pontos de vista opostos nosentido de leituras feitas a partir daciência ou a partir da teologia, masas duas posições se complementammutuamente como mostram recen-tes pesquisas de conciliação.

Calvino contra a“revolução

copernicana”?Tendo ou não havido contribui-

ções da Reforma para o nascimen-to da ciência moderna, é facilmen-te identificável a concordância dasanálises históricas da Reforma emrelação à revolução científica e oheliocentrismo de Copérnico.

O reconhecimento dos proble-mas científicos e filosóficos em tor-no do heliocentrismo e da revolu-ção científica tem ainda hoje influ-ência direta sobre a avaliação dasquestões relacionadas com acopernicanismo e a Bíblia.

Deason relembra a grande polê-mica que o sistema de Copérnicolevantou contra a religião ou contraa Reforma em especial.14 Mas aoanalisar os textos citados pela his-tória da ciência do século XIX le-vanta suspeitas ao questionar: seCalvino era contra “A RevoluçãoCopernicana”?

Quase todos os textos da Histó-ria da ciência publicados desde o li-vro de A. D. White “A História daGuerra da Ciência com a Teologia”(A History of the Warfare of Science

with Theology)” (1895), mencionama interpretação bíblica dos protes-

13 W. Pannenberg, op. cit., pp. 14-15.14 Gary B. Deason. John Wilkins and Galileo Galilei:Copernicanism and Biblical Interpretation in the Protestantand Catholic Traditions in McKee, Elsie Anne. &Armstrong, Brian G. (ed.) Probing the Reformed Tradition:Historical Studies in Honor of Edward A. Dowey, Jr.Louisville, Ky.: Westminster/John Knox Press, 1989, p.313-338.

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tantes em relação ao copercanismoquase sempre de forma negativa.

Citações de Lutero, Me-lanchthon e Calvino baseadas noprincípio da “sola scriptura”contraa nova astronomia, feitas nos livrosde História da Ciência, não foramaté hoje encontradas nas obras des-ses reformadores.

Deason enumera autores nestalinha: Thomas Kuhn, DorothyStimson (1890-1988),HerbertButterfield (1900-1979) e Alan G.R. Smith. Thomas Kuhn em seufamoso livro famoso, “A RevoluçãoCopernicana”15 de 1957, lido dereferenciado por toda uma gera-ção de filósofos e historiadores daciência, tem a seguinte observaçãoque citou de A. D. White sobre umtrecho supostamente encontrado nocomentário sobre Gênesis deCalvino: “O mundo também estáestabelecido e não pode ser movido... Quem vai se atrever a colocar aautoridade de Copérnico acima dado Espírito Santo?”16

Em um excelente trabalho dedetetive, Edward Rosen descobriuque a citação de Lutero, a observa-ção espúrea de Calvino e uma cita-ção de Melanchthon foram repeti-damente utilizadas em apoio da con-clusão de que o biblicismo da Re-forma protestante estava em desa-

cordo com a nova astronomia.Brian Gerrish denuncia, resolu-

tamente, o procedimento pelo qualWhite e outros, fazendo um peque-no número de observações isoladase breves citações, chegaram à con-clusão de que a hermenêutica bíbli-ca protestante era contra a nova ci-ência. A importância do artigo deGerrish é de nos lembrar queLutero e Calvino realizaram traba-lhos muito mais importantes e com-plexos sobre as Escrituras do que asobservações citadas repetidas vezespelos historiadores.

Quanto a Calvino, Gerrish noslembra de um ponto, ressaltado pelaprimeira vez pelo Prof. Dowey(1952), de que toda a revelação deDeus aos homens – na Escritura, nacriação e por meio do Espírito San-to – é acomodada à sua limitadacapacidade de compreensão.Gerrish reconhece que foramLutero e Melanchthon e não Calvinoque citaram especificamente a Es-critura contra Copérnico. SegundoThompson, as citações de White

15 A Edição em português de Thomas Kuhn, “A Revolu-ção Copernicana: a astronomia planetária no desenvolvi-mento do pensamento Ocidental”, Lisboa: Edições 70,1990.16 Kuhn, Copernican Revolution, p. 191. Gerrish notaque a versão de Lauterbach desta passagem, que éconsiderada geralmente mais confiante, não contémnenhuma cláusula do tolo, embora seu tom seja anti-copernicano. (Gerrish, Reformation, pp. 243-244).

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feitas por Kuhn no Salmo 93, “Fir-mou o mundo que não vacila”, e“Quem vai se atrever a colocar aautoridade de Copérnico acima dado Espírito Santo?”17 pertencem aTurretin (1623-1687), teólogo pro-testante suíço-italiano e não aCalvino.

Em defesa deCalvino

Para Bouwsma, a relação entreas idéias de Calvino e de Copérnicopassa pelo contexto vivido por elesno século XVI. A ansiedade deCalvino era como a de Copérnico e“não foi possível abandonar as for-mas tradicionais de pensamento, emparte devido ao temperamento, masacima de tudo, porque ele dependiadelas para dar sentido ao mundo, oque foi inegavelmente desastrosopara com uma nova cultura.”18

Havia razão para assim ser poisno século XVI, “Embora houvesseafirmações contingentes, o conhe-cimento permaneceu ambíguo.”19

Bouwsma diz: “A dependênciaque essa cultura tradicional tinha de

uma cosmologia ajuda a explicar porqual razão a nova astronomia deCopérnico e Galileu foi rejeitadacom tanta ferocidade. A ordem in-teligível exibida pela antiga ciênciatinha sido uma fonte de conforto,bem como a sua subversão era equi-valente a deixar a raça humana àderiva, em um mar desconhecido.Calvino não era um filósofo e mui-tas vezes ele não fazia questão deexplicitar, muito menos examinar,os pensamentos tradicionais, pres-supostos subjacentes a seu pensa-mento. Ele possuía certamente acompetência da mente humanapara conhecer o mundo em um sen-tido tradicional. Em seu entendi-mento, era intolerável “para os ho-mens aproveitarem sinais incertose negligenciar a verdade das coisas.”20 Calvino também seguiu o esque-ma tradicional de estudo dos céuscom uma percepção da ordem divi-na que rege o universo e isto erasuficiente para que ele permaneces-se com a antiga astronomia.

Por outro lado, Calvino achavaque para ser apreciado como umamanifestação da sabedoria de Deus,o universo deve ser inteligível e, as-sociando o infinito com Deus, eleinsistia em sua finitude. “Mesmoque os céus se estendam amplamen-te, ele ainda tem um limite”, dizia.

17 Thompson, Ernest Trice. Through The Ages: A Historyof the Christian Church. Atlanta: John Knox Press, 1965,reprint 1976. Capítulo 18: A Igreja absorve o NovoConhecimento. P. 242.18 Bouwsma, op.cit., p. 233.19 Idem.20Bouwsma, op. cit., p. 152.

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Por isso se opôs ao copernicanismo,advertindo seus seguidores contraaqueles que afirmavam que “o solnão se move e que é a terra que semove e se transforma.” Tais pesso-as eram para ele motivadas por “umespírito de amargura, contradição erabugice”, vindo do demônio e des-tinado a “perverter a ordem da na-tureza.”

A astronomia, Calvino insistia,“desdobra a admirável sabedoria deDeus” apresentando a maravilhosavisão do céu, e “nesta grande vasti-dão, nada é incoerente ou deforma-do.” O sol é admirável pela sua ve-locidade, sua tranquilidade, e a re-gularidade de seu curso. As váriasentidades nos céus também são cla-ramente distinguidas umas das ou-tras pelos princípios de hierarquia esubordinação. A “multiplicidade deinúmeras estrelas” é “ordenadacomo um exército em todas as suasfileiras”. Os corpos celestes, emsuma, são obedientes de modo in-falível às leis naturais impostas porDeus. “Eclipses e outras manifesta-ções” claramente provam que asestrelas estão acima dos planetas, eque cada planeta tem a sua própriaórbita. “O sol, a lua, e as estrelas”,concluiu, “não são misturados con-fusamente, mas cada um tem a suaposição e habitação colocadas nos

devidos lugares”.Concepções de ordem cósmica

também ajudaram a moldar a con-cepção de Calvino sobre o final dostempos. “A confusão de coisas nomundo ... não vai durar para sem-pre”. No reino de Deus todo o mun-do será submetido “ao seu gover-no.” Calvino foi consistente em seupensamento, ao relacionar acosmologia clássica com aescatologia cristã.21

Outros podem dizer ainda, queo processo de reconhecimento ci-entífico do heliocentrismo tambémfoi demorado. Segundo LucienFebvre22, “... nem (naturalmente) agrande revolução que levaria a su-bordinar a lógica e a matemática àexperimentação estava à vista, mes-mo de longe, nem sequer o grandedesenvolvimento das matemáticasestava começando – aquele de queDescartes tirará as conseqüênciasúteis.”23 E ainda:

“Tratando-se dos homens doséculo XVI, nem suas manei-ras de raciocinar nem suas

21 Bouwsma, op. cit., pp. 70-72.22 Lucien Febvre. Problème de l’Incroyance au XVIe Siècle:La Religion de Rabelais. Paris: Albin Michel Ed., 1942.Em português: O Problema da Incredulidade no SéculoXVI: A Religião de Rabelais. São Paulo: Companhia dasLetras, 2009, (da edição francesa de 2003).23 Febvre, op. cit. p. 144.

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exigências de prova são asnossas. Elas não são nem se-quer as maneiras de racioci-nar, as exigências de prova deseus netos, os contemporâne-os de Descartes, de Pascal, deHuygens, de Newton. Nãochegou o momento de tratar,em conjunto, dessas grandesquestões; do estudo a que aca-bamos de nos entregar pare-ce resultar, em todo caso, queos homens daquele tempo,em sua maneira de argumen-tar, não pareciam experimen-tar nem a necessidade impe-riosa de exatidão. Nem a pre-ocupação com objetividadeque existe em nós.” “... na es-peculação dos homens daque-le tempo, as contradições quejá não têm lugar em nossossistemas lógicos de pensa-mento ...” faziam parte nor-mal de pensamentos e diálo-gos. “O emprego dos instru-mentos mais usuais hoje, maisfamiliares a todos, continua-va a ser-lhes desconhecido.Para observar, nada melhorque seus dois olhos – quandomuito servidos, se fosse pre-

ciso, por óculos mesmo rudi-mentares...” 24

O relógio de bolso foi inventadono ano de 1509, ano do nascimen-to de Calvino. Mas eram muito pou-cos os que tinham condições de ad-quirir um. “Inútil dizer que essesrelógios não soavam as horas.” “Nototal, os hábitos de uma sociedadede camponeses, que aceitam nuncasaber a hora exata, a não ser quan-do o sino toca (supondo-se que sejapontual) e que, quanto ao resto, con-fiam nas plantas, nos animais, no vôode tal pássaro ou no canto de taloutro.”25 “‘Por volta do sol nascen-te’, ou então ‘por volta do sol posto’– o que é de uma precisão inteira-mente anormal.”

Continua Febvre:“Assim, em toda parte: fanta-sia, imprecisão, inexatidão.Isso é próprio de homens quenem sequer sabem sua idadeexatamente: ... Quando nas-ceu Erasmo? Ele não o sabia,mas apenas que o aconteci-mento se dera na véspera dodia de são Simão e são Judas.Em que ano nasceu Rabelais?Ele o ignorava. Lutero, emqual? Hesita-se.” “No séculoXVI, para quantos homens ocalendário astronômico era a

24 Idem, p. 147.25 Idem, p. 147.

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medida verdadeira, o verda-deiro regulador do tempo?Mesmo transposto para o pla-no religioso?”26 “Nessa altu-ra, nos causará surpresa quetenha faltado senso históricoaos homens de então; que,para tomar apenas esteexemplo, o problema da ida-de do mundo jamais tenhasido levantado por eles emseus escritos; que o montan-te absoluto de 4004 anos de-corridos desde a criação domundo até o nascimento doCristo jamais tenha provoca-do discussão.”27

Lucien Febvre, um inovador dahistoriografia, condena o maior pe-cado dos historiadores: o anacronis-mo, uma deformação cronológica,uma mistura de épocas, de elemen-tos do presente e do passado. O ana-cronismo mostra que já não conse-guimos imaginar a vida sem com-putador, sem internet, sem eletrici-dade, sem água encanada, sem es-tradas asfaltadas, sem gráfica im-pressora, sem jornais, sem revistase sem livros, sem relógio, sem amatemática que conhecemos hoje.

Descartes olhando para Calvinoum século mais tarde, usou inten-samente o anacronismo e depois,

qualquer tentativa de superar oheliocentrismo dos teólogos se tor-nou impossível!

Se o anacronismo é um pecadopara os historiadores, para a teolo-gia, a filosofia e as ciências é umaoportunidade para inovações e no-vas percepções que brotarão do di-álogo com o passado, com as pes-soas que já não estão mais entre nós,a fim de expressar em palavras dehoje as idéias que não puderam serexpressas com as palavras daquelaépoca.

ConclusãoOs fundamentos da ciência mo-

derna, diante das questões levanta-das sobre o século XVI de Rabelaise Calvino, segundo Febvre apontamna seguinte direção:

“Cada civilização com suasferramentas mentais; maisainda, cada época de umamesma civilização, cada pro-gresso, seja das técnicas, sejadas ciências, que a caracteri-za – com suas ferramentasrenovadas, um pouco maisdesenvolvidas para certosempregos, um pouco menos

26 Idem, p. 340.27 Ibidem, p. 342.

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para outros. Ferramentasmentais que essa civilização,que essa época não está segu-ra de poder transmitir, inte-gralmente, às civilizações, àsépocas que lhe vão suceder;elas poderão passar por mu-tilações, voltar atrás, sofrerdeformações importantes.Ou, ao contrário, por pro-gressos, enriquecimentos,complicações novas. Elas va-lem para a civilização que sou-be forjá-las; valem para a épo-ca que as utiliza; não valempela eternidade, nem para ahumanidade: nem sequerpelo decurso restrito de umaevolução interna de civiliza-ção...”.28

Se o copernicanismo tivesseapoio científico conclusivo e se ti-vesse fenômenos aplicáveis no dia-a-dia, o poder de persuasão do pro-

cesso de reinterpretação das passa-gens bíblicas que parecia entrar emconflito com a nova teoria astronô-mica teria sido muito mais forte doque a evidência ditada pelaambiguidade disponível até aquelemomento. A discussão deste temanas questões isoladas fora da Bíbliaintroduz um elemento deartificialidade e levanta uma bandei-ra de precaução.

A física moderna, com todo re-quinte teórico e experimental, aindanão está conseguindo explicar muitacoisa. No século XX descobriu-seuma nova física, que torna mais com-plexa a situação. O observador atuamodificando, o que significa dizer quedo ponto de vista do observador, ogeocentrismo pode ser válido.

Para os que defendem oheliocentrismo uma coisa é certa. Éválida a frase de Copérnico: “aindaestamos no centro!”.29

28 Febvre, op. cit. p. 143.29 Para observações dos telescópios tipo Hubble existemcampos visuais que alcançam “deep space” (espaçoprofundo) que são observações das distâncias da épo-ca do “Big Bang”. Mas ao alcançar cada vez mais longedescobrimo-nos a nós mesmos como observadores nocentro: “o centro ainda está em nós.” A mesma situaçãoaparece na Mecânica Quântica, em que o observadormodificaria a realidade que ele observa.

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Cada civilização com suasferramentas mentais; maisainda, cada época de umamesma civilização, cadaprogresso, seja das técnicas,seja das ciências, que acaracterizam – com suasferramentas renovadas, umpouco mais desenvolvidaspara certos empregos, umpouco menos para outros.

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João Calvino e ateologia pastoral hoje

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o universo protestante refor-mado. Esses estudos demons-tram o interesse de pesquisa-dores e pesquisadoras em suasidéias e atuação tanto na igrejae sociedade do século XVIcomo no século XXI

Como parte deste momentohistórico de comemoração e re-flexão, serão traçadas algumasconsiderações em busca da açãopastoral de João Calvino, pastoratuante em Genebra por maisde duas décadas. Em primeirolugar, serão abordadas ideias so-bre o significado da pastoral his-toricamente situada; em segui-da, serão discutidas algumasações pastorais de Calvino e, porfim, serão apontadas três dimen-sões do trabalho pastoral doreformador, que desafiam a Igre-ja Reformada hoje.

No ano em que se comemo-ra os 500 anos do nascimentode João Calvino, as contribui-ções bíblico-teológicas doreformador constituem fonteinspiradora para novas pesqui-sas. Sua compreensão da fé edos princípios cristãos foi fun-damental para o estabelecimen-to da Igreja Reformada emuma sociedade em mudança.Em muitos países onde estaigreja está presente, são reali-zados encontros e debates, uti-lizando novas chavesinterpretativas para a melhorcompreensão de sua obra. Bi-ografias, traduções de cartas eoutros escritos assim como co-mentários a respeito do seupensamento teológico ocupam

* Shirley M. dos Santos Proença é pastora da IPIBe professora no Seminário Teológico de São Paulo.

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1. Significado dapastoral

Conceituar o termo pastoral nãoé uma tarefa simples. Muitos auto-res têm se empenhado em esclare-cer o seu significado mas por faltade consenso, não tem sido possívelfazer uma delimitação precisa. Paraa conceituação do termo “pastoral”não basta procurar no dicionário overbete correspondente, que o apre-senta como um adjetivo: “relativo a,ou próprio do pastor; pastoril. Pró-prio dos pastores espirituais; ousubstantivo feminino: “circulardirigida aos padres ou aos fiéis peloPapa, ou por um bispo”(FERREIRA, 1975, p. 1044).

Embora a raiz da palavra sejaimportante para compreendê-la, háde se lembrar que as palavras fazemparte de um determinado contextodiscursivo que nasce e se estruturaem contextos sociais e históricosespecíficos. A elas são agregadosvalores. Por exemplo: “pastoral” re-ferindo-se à ação de alguém ao cui-dar de pessoas; “pastoral” designan-do práticas coletivas em favor deindivíduos ou grupos e, “pastoral”como circular contendo orientaçõeseclesiásticas. Isso quer dizer que apalavra, no discurso oral ou verbal,

assume sentido mais ou menosabrangente. “Cada palavra evoca umcontexto ou contextos, nos quais elaviveu sua vida socialmente tensa;todas as palavras e formas são po-voadas de intenções...” (BAKHTIN,1988, p. 100).

Não há dúvida que a palavra “pas-toral” é derivada do vocábulo “pas-tor”; o seu uso numa sociedade pas-toril refere-se à pessoa que guarda,guia, apascenta os rebanhos. Teolo-gicamente, no Antigo Testamento,Deus e aqueles que ele chamou sãoconhecidos como “pastores” quedesempenham ações pastorais: di-rigir, cuidar, orientar, sustentar opovo de Israel. No Novo Testamen-to, Jesus dá continuidade à idéia depastorear o povo de Deus, e ampliaa abrangência desta ação à vida daigreja.

A pastoral, pois, no pensa-mento do Novo testamento,define-se a partir de a partirde Jesus... A pastoral, pois, jáque Cristo, por seu Espírito,está no corpo que é a Igreja,tem uma dimensão coletiva,comunitária. Não se limita auma pessoa, a um carisma, aum só ministério. Mas, nempor isso tem perdido sua fun-ção, sua responsabilidade, de

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guiar, de cuidar, de condu-

zir, de abrir caminho e acom-

panhar a toda a gente em suamarcha para o Reino. (SAN-TA ANA, 1985, p. 37)

Pareceria satisfatória aconceituação sobre pastoral comoa ação do pastor ou da pastora querecebeu a incumbência de cuidardas pessoas que fazem parte dasigrejas; no entanto, ao termo foramagregados historicamente mais sig-nificados que contribuem para a di-fícil tarefa de conceituá-lo.

À medida que os ministérios fo-ram se organizando na institucio-nalização do cristianismo, a atribui-ção de cuidar do povo de Deus secentralizou na pessoa dos lídereslocais e dos pastores. Esta concep-ção prevalecerá até meados do sé-culo XX, quando o termo “pasto-ral” passou a designar a ação da igre-ja na sociedade, principalmente nocatolicismo latino-americano.

A partir de 1960, sob a influên-cia do Concílio Vaticano II1, a Igre-ja Católica Romana ressaltou a im-

portância do conceito de “pastoral”como o “agir da igreja no mundo”(LIBANIO, 1982, p. 11), referindo-se o vocábulo “à forma como a Igre-ja cumpre sua função, seja em ter-mos gerais (pastoral de conjunto) ouparticulares (pastoral da terra, pas-toral indígena, pastoral da juventu-de, isto é, referida a situações e/ougrupos sociais específicos).” (SAN-TA ANA, 1985, p.30)

O cuidado pastoral tornou-seuma ação coletiva da Igreja de Cris-to na sociedade que se rege por con-dutas e estruturas que determinama condição social e econômica daspessoas. A igreja se insere em umcontexto em que são valorizados osindivíduos que possuem mais recur-sos econômicos, mais prestígio emais poder em detrimento daque-les que sofrem à margem, por esta-rem desprovidos de recursos finan-ceiros, de oportunidades de traba-lho, de acesso ao ensino de qualida-de, do direito ao lazer, enfim, todasas pessoas que vivem relaçõesassimétricas que oprimem, exclueme promovem as injustiças.

A ação da igreja se torna “pasto-ral” quando se sensibiliza e se com-padece de quem sofre e se pronun-cia a favor dos desvalidos, seguindoos passos de Jesus. “A ação pasto-ral, enquanto ação humana no Es-

1 XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi convoca-do no dia 25 de Dezembro de 1961, através da bulapapal Humanae salutis, pelo Papa João XXIII. Estemesmo p inaugurou-o, a ritmo extraordinário, no dia 11de outubro de 1962. O Concílio, realizado em 4 sessões,só terminou no dia 8 de dezembro de 1965, já sob opapado de Paulo VI.

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pírito segundo o Evangelho, não épuro empirismo ou pragmatismopastoral. É, sempre, uma ação pen-sada, ainda que, muitas vezes, de ma-neira precária e insuficiente”(BRIGHENTI, 2006, p.18).

Na perspectiva da “pastoral”como ação da igreja, a Igreja Cató-lica sistematizou as ações pastoraisem três funções:� Função profética: abrange as di-

versas formas do ministério daPalavra de Deus (evangelização,catequese e homilia), bem comoa formação espiritual dos católi-cos;

� Função litúrgica: refere-se à ce-lebração dos sacramentos, so-bretudo da Eucaristia, à oraçãoe aos sacramentais;

� Função real: diz respeito à pro-moção e orientação das comu-nidades, à organização da carida-de e à animação cristã das reali-dades terrestres.A partir das funções citadas fo-

ram organizadas mais de 25 áreasnas quais a ação pastoral deve ocor-rer, entre elas: criança, carcerária,saúde, juventude, família, universi-dade etc...

Enquanto para o catolicismo apastoral se tornou a ação da igrejana sociedade, em seus mais diver-sos campos de atuação e no com-

promisso com a realidade à luz dosensinamentos do evangelho, para oprotestantismo o termo pastoralnão é compreendido da mesma for-ma. “Para o pensamento das igrejasque surgiram a partir da Reformado século XVI, falar de “pastoral”tem significado, principalmente, re-ferir-se à função do pastor” (SAN-TA ANA, 1985, p.30), isso indicaação individual; o termo é usadopela Igreja Católica para designar asorientações institucionais e açõesespecíficas ligadas à educação paraas igrejas ligadas às universidades.

Não obstante, autores protestan-tes se empenharam em elaboraruma reflexão mais ampla sobre oconceito e extensão de pastoral; ateoria não reflete a realidade dasigrejas que aceitam e difundem ostermos missão e/ou ministérios paradesignarem suas ações internas eexternas de preservação insti-tucional, de cuidado mútuo, de mai-or ou menor inserção social.

Na tradição protestante, em-bora tenha havido diversosesforços liderados pelo Cen-tro Evangélico Latinoameri-cano de Estudios Pastorales(Celep), o termo [pastoral]não encontrou lugar no con-tinente, preferindo, assim, as

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igrejas o uso do termo “mi-nistério”, como serviço dealguma forma sustentadopelo modelo pastorcêntrico.(SILVA, 2001, p.212)

O significado do termo traz umadimensão teológica – Deus é quemchama para cuidar dos aflitos, dosnecessitados e para proclamar e vi-ver a esperança e a vida reveladasem Jesus Cristo; uma dimensão his-tórica – no protestantismo históri-co de missão permanecem resquí-cios do anticatolicismo, e todo equalquer sinal de aproximação deveser rejeitado, como a compreensãoabrangente do termo pastoral; umadimensão relacional - pessoas ne-cessitam ser acolhidas, cuidadas,nutridas; a igreja precisa atendê-lassob a orientação do Espírito de Deuse em parceria com outras institui-ções que pautam suas ações nosensinamentos evangélicos de fé e deousadia.

Segundo Ronaldo Sathler Rosacitando Goodliff, há quatro priori-dades no cuidado pastoral.

Em primeiro lugar criar umacomunidade que seja, simul-taneamente, humana e quereflita o amor de Deus; emsegundo, que crie a saúde

relacional, mantendo e nu-trindo a boa qualidade de re-lacionamentos; em terceiro,que cure a “alma ferida” e, emquarto lugar que nutra e sus-tente a fé, para que a comu-nidade, em tempos de transi-ção como os que vivemos, sejanutrida e fortalecida em suaidentidade e sua fé em JesusCristo (SATHLER-ROSA,2004, p. 45;47;48).

Além destas prioridades pode-ria se acrescentar ao cuidado pas-toral a busca pela maturidade indi-vidual e comunitária na fé em Cristoque permite à igreja pastoreada porDeus realizar uma pastoral para sie para os outros, que leve em con-ta a inclusão, o “comprometimen-to radical com a justiça e o amor ede paixão não-egoísta por um mun-do transformado, um mundo refei-to não à imagem deles [líderescarismáticos], mas de acordo comuma intencionalidade divina etranscendente” (FOWLER, 1992,p.169).

Após a apresentação da difíciltarefa de se conceituar o termo “pas-toral”, e de um breve panorama deseu uso, cabe-nos a pergunta: quaisas contribuições de Calvino para asigrejas reformadas desenvolverem

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ações pastorais contextualizadas erelevantes na sociedade onde se in-serem?

2. Calvino e apastoral

Os reformadores do séculoXVI nunca falaram de “pas-toral”. Quando muito, refe-riram-se ao ministério do pas-tor e sua ordem própria. Éóbvio que, com o correr dotempo, produziu-se no pensa-mento protestante uma redu-ção do conceito, que foi fican-do limitado à pessoa (ou à fi-gura, como se queira) doministro ordenado

Julio de Santa Ana

O cristianismo na Europa do sé-culo XVI estava envolto em contro-vérsias doutrinárias e teológicas, lu-tas políticas e eclesiásticas. Reis,imperadores e papas travavam ver-dadeiras batalhas bélicas, ideológi-cas e religiosas para a conquista emanutenção do poder espiritual etemporal de igrejas e cidades.

A reforma protestante encon-trou ambiente favorável no momen-to histórico em que a sociedade pas-sou a questionar os determinismos

religiosos e a buscar respostassatisfatórias aos dramas relaciona-dos à origem, à finitude e ao signifi-cado da existência dos seres huma-nos. As grandes navegações, a in-venção da imprensa, a corrupção,os desmandos e a imoralidade doclero são alguns fatores que contri-buíram para a postura crítica depensadores como Thomas Morus eErasmo de Roterdam, consideradoo “príncipe dos humanistas”. Den-tre os intrépidos questionadores daigreja em seu aspecto teológico, éti-co e moral, estão os reformadoresMartinho Lutero, Ulrico Zuínglio,John Knox e João Calvino.

As idéias defendidas por Lutero,na Alemanha, foram levadas à Suí-ça por Zuínglio, e, posteriormente,pelo francês João Calvino que che-gou à cidade de Genebra em 1536,onde após cerca de dois anos foiexpulso pelo Conselho Municipal,retornando em 1541 para perma-necer até a sua morte, em 1564.

Várias são as avaliações a respei-to de João Calvino e sua atuação,principalmente em Genebra, no pe-ríodo da Reforma do século XVI. Al-guns autores o elogiam por sua ca-pacidade de articulação e sua respon-sabilidade em esclarecer pontos te-ológicos essenciais para a bases domovimento reformado mas outros,

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o vêem como um homem rabugen-to, intolerante, que conseguiu mu-danças na cidade de Genebra por serum líder autoritário e manipulador.

Para Teodoro de Beza, sucessorde Calvino em Genebra, oreformador foi um homem virtuo-so, coerente, responsável, zeloso esolícito. Para ele, Calvino seria sem-pre lembrado pelo seu ministériopastoral e pelos seus escritos.

Por fim, posso, em verdade,protestar que nunca me ha-veria de cansar de consolar-me na falta de tal e tão exce-lente pessoa, em tendo-o bempresente mercê darememoração de suas virtu-des tão raras e delicadas. E,se bem que eu não possa pen-sar em sua morte sem gran-de tristeza, entretanto, conso-la-me ela admiravelmente,quando considero que foi elade tal molde que é como quea coroa e ornamento de todaa sua vida. Resta que, assimcomo a Deus aprouve fazê-lofalar ainda através de seus tãodoutos e santos escritos, as-sim também seja ele ouvidopela posteridade até o fim domundo, quando veremos nos-so Deus tal como Ele é, para

com Ele vivermos e reinar-mos eternamente (BEZA,2006, p.124-125).

Teodoro de Beza menciona quemuitos contemporâneos de Calvinoo consideravam herege, irreconcili-ável, cruel, sanguinário, severo de-mais, demasiado colérico, principal-mente quando associado à morte deServeto, mas apresenta a sua defe-sa em favor do amigo,

não quero fazer de um homemum anjo. Entretanto, porquesei quanto Deus Se serviu ma-ravilhosamente até mesmo des-sa veemência, não devo calar oque disso sei e o que fato é.Além de sua natural propen-são à irritabilidade, o espíri-to admiravelmente pronto, aindiscrição de muitos, a cifra devariedade infinita de obrigaçõespara com a igreja de Deus e,mais para o fim da vida, as en-fermidades agudas e constan-tes, tornaram-no algo rabugen-to e difícil. Mas, tão longe esta-va ele de comprazer-se nestedefeito, que, ao contrário, nin-guém mais do que ele melhordisso se apercebeu, nem oachou tão vultoso quanto elepróprio” (BEZA, 2006, p.123).

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A trajetória pastoral de Calvinoaconteceu entre lutas e disputas depoder político e religioso. Na Fran-ça, os protestantes, conhecidoscomo huguenotes, cresceram de cin-co igrejas organizadas até 1555 para2.150 em 1562, e realizaram umareunião do Sínodo Nacional em1559. Lutas internas mescladas pormotivações políticas e religiosasduraram 30 anos, tendo como des-fecho sangrento e hediondo a noitede São Bartolomeu, em 24 de agos-to de 1572, quando cerca de dez milpessoas foram mortas. Em 1593 orei huguenote Henrique IV renun-ciou à fé protestante e aderiu ao ca-tolicismo romano. Os massacres, asperseguições por parte do governofrancês, aliado ao poder papal, pra-ticamente extinguiram o calvinismona França. A partir de 1598 com aassinatura do Edito de Nantes foiestabelecida “uma trégua em terri-tório francês, com concessões reli-giosas aos perseguido huguenotes”(HACK, 2007, p. 38).

Neste contexto de discórdias,lutas políticas e religiosas pode-seentender “pastoral” como a ação dopastor numa igreja e numa socieda-de em transformação.

A relação pastor-igreja e igreja-sociedade respondem às necessida-des do período. A pastoral realiza-

da pelo pastor, pelo líder é deencorajamento, de fortalecimentoda fé diante das injustiças, das per-seguições e da morte. Em cartas es-critas por Calvino a vários prisionei-ros em Lion julgados pela inquisiçãoe entregues à fogueira, o pastor en-coraja-os a não apostatarem da fé,a permanecerem firmes e constan-tes como testemunhas da verdade,na certeza que Deus os fortalecerána tribulação (CALVINO, 2009, pp.103-104; 107-112).

Fortalecer a fé dos irmãos pre-sos; encorajá-los para não abando-narem a fé em Cristo, mesmo dian-te das perseguições; orientá-los parase tornarem melhores cidadãos emelhores seres humanos era umatarefa árdua em tempos de mudan-ças sociais em que a guerra e a ma-nutenção do poder dizimavam oscristãos protestantes. A ação pasto-ral precisava dar uma resposta decuidado, de direcionamento aos queaceitavam o desafio de viver a féevangélica e defendê-la até a morte.Neste aspecto, a pastoral de Calvinofoi uma resposta consoladora aosque enfrentavam os martírios.

Para o movimento da Reformaque se expandia, Calvino em suaobra a Instituição da Religião Cris-

tã, sistematizou os pontos teológi-cos que sustentariam a sua compre-

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ensão das Escrituras. Com o objeti-vo de preparar estudantes de teolo-gia, “a obra pretende ser um guiapara as Escrituras, funcionandocomo um livro de referências e umcomentário sobre seus significadospor vezes complexos e intrincado”( McGRATH, 2004, p.162).

Neste aspecto, a pastoral deCalvino esteve voltada para a funda-mentação teórica que alicerçaria a fécristã do ponto de vista reformado.Além da Instituição da Religião Cris-

tã, sua obra mais conhecida, publicoudiversos comentários sobre os livrosda Bíblia, bem como Instrução na Fé

ou Catecismo de Calvino, Pequeno Tra-

tado da Santa Ceia, e a Ordenanças

Eclesiásticas, entre outros.Esta preocupação pastoral inse-

re-se na realidade de prover alimentonecessário para aqueles que aderi-am à Reforma. Participar do movi-mento reformado exigia aprendiza-do, conhecimento a respeito da fécristã e da subordinação do cristãoaos desígnios divinos a fim de parti-cipar na sociedade para transformá-la segundo o padrão de Deus. Osvalores do reino de Deus eramapresentados por meio das prega-ções, estudos bíblicos e teológicos evivenciados pelos cristãos em todae qualquer circunstância.

Além da pastoral de Calvino se

preocupar com as pessoas e com oestudo para que a igreja pudesse darrazão da sua esperança, empenhou-se em manter a sua unidade. O ca-ráter ecumênico da pastoral deCalvino pode ser observado pela“consciência de pertencer à igrejaautêntica, à igreja historicamente re-encontrada, à igreja cristã restaura-da, à igreja católica, apostólica e san-ta de todos os tempos, ao corpo úni-co de Cristo” (BIÉLER, 1970, p. 81).

Para Calvino, Cristo é o Salva-dor e Senhor a quem todos devemse submeter. Em seu Comentário à

Epístola aos Efésios, ele lembra que“Cristo não pode ser dividido. A fénão pode ser despedaçada. Não exis-tem vários batismos, mas um só,que é comum a todos... A fé e o ba-tismo, Deus o Pai e Cristo podemnos unir, a ponto de quase nos trans-formarmos em um único ser huma-no” (VISCHER, 2004, p. 14).

“Pastoral” em Calvino refere-seà reconciliação, ao diálogo que pro-curou restabelecer com a igreja. Di-ante da insistente recusa católica aodiálogo, ele “aceita a diferença en-tre “a doutrina pela qual a igreja deCristo se mantém”, comum a todosos cristãos e a diversidade de inter-pretações e costumes próprios decada denominação confessional”(BIÉLER, 1970, p. 82,83).

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Se a ação pastoral esteve cen-tralizada na pessoa do pastor,respondeu às necessidades docontexto no período da im-plantação da reforma protes-tante e deixou importantespistas para que continuasserelevante em tempo e lugaresdiferentes, transformando-see reformando-se, ela auten-tica o dinamismo da igrejanuma sociedade em constan-te mudança.

Embora as ações pastorais deCalvino ocorram numa perspectivapastorcêntrica, deve-se levar emconsideração o contexto históricoem que elas ocorreram e como fo-ram fundamentais para o fortaleci-mento e a preservação da fé cristãnuma realidade hostil e devastado-ra de perseguição e morte. Foramações essenciais para as pessoas quese predispuseram a reescrever ahistoria pessoal, comunitária e so-cial a partir de valores fundamen-tais do reino de Deus.

Calvino foi um pastor atento, ani-mou e intercedeu junto a Deus e àsautoridades políticas pelos cristãospresos e condenados, visitou e insis-tiu na importância da visitação aosdoentes, defendeu o direito do po-bre, da viúva e do órfão quanto aoatendimento hospitalar gratuito, de-

fendeu a unidade da igreja. Foi umteólogo engajado: fundou a Acade-mia de Genebra, que originou a Uni-versidade, importante centro de es-tudos teológicos para preparação depastores e lideres para as comunida-des calvinistas reformadas; elaborounormas de conduta para orientar oscristãos a uma vida disciplinada; sis-tematizou o pensamento teológicopublicando-o na Instituição da Reli-

gião Cristã; elaborou normas para areorganização da igreja quanto à ad-ministração e à liturgia. Foi um pre-gador zeloso e incansável dosensinamentos bíblicos. Foi umreformador para quem teoria e prá-tica encontram-se imbricadas na for-mação do caráter cristão.

3. Dimensões dapastoral de Calvino

que desafiam aIgreja Reformada

Quanto às contribuições deCalvino para a ação pastoral refor-mada, três aspectos serão conside-rados: a dimensão do cuidado, a di-mensão do preparo, a dimensãoecumênica.

Dimensão do cuidado

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A releitura da realidade estevepresente no movimento da Refor-ma Protestante na crítica a umaigreja apática voltada para si mesma,que buscava interesses próprios, quecompactuava com a injustiça, que seassociava ao poder e que eliminavaos que lhes ofereciam perigo.

Diante de tais desafios premen-tes, Calvino não se omitiu e foi con-trário aos desmandos eclesiásticose civis. Suas palavras, proféticas epolíticas, demonstram seuengajamento social. John H. Leithdefende que “a intenção de Calvinoem Genebra não era simplesmentea de salvar almas, mas a de reorga-nizar a cidade segundo a Palavra deDeus” (1996, p.117). SegundoAlister McGrath, Calvino por sercidadão francês, pastor na igreja emGenebra “não podia votar e nãopodia concorrer a cargos públicos...sua influência sobre Genebra foiexercida de forma indireta, atravésde pregações, conferências e outrasformas de persuasão legítima... elenão possuía qualquer jurisdição ci-vil...” (2004, p.131,132).

Calvino, como um homem quelia a realidade, não perdeu oportu-nidades para cuidar do povo deDeus e, de maneira muito especial,dos perseguidos pela inquisição, queforam julgados hereges por defen-

derem os princípios reformados dafé cristã.

Cuidado, segundo ação pastoralde Calvino, estava relacionado aocompanheirismo e encorajamento:“sempre que seus fiéis companhei-ros Farel e Viret tiveram, nessa épo-ca, difíceis questões a enfrentar emseu ministério, Calvino jamais dei-xou de carregar uma parte do far-do, como, aliás, hão eles procedidocom igual dever de fraternidade paracom ele” (BEZA, 2006, p.36).

O cuidado exige um coração des-pojado, pronto para o serviço. Paraque a ação pastoral se torne relaçãode cuidado, o outro deve ser consi-derado em suas necessidades mate-riais, físicas, emocionais, espirituais.A ação pastoral de cuidado está fun-damentada no amor ao próximocomo cumprimento do mandamen-to de Jesus Cristo.

A igreja que não se reforma, quenão entende seu papel histórico, quenão se dinamiza, não cumpre o seupapel na sociedade marcada por ilu-sões e sinais de morte.

O cuidado como ação pastoralprecisa estar no coração da igrejareformada como esteve no coraçãode Calvino. Saber ler o momentohistórico e agir de maneiracontextualizada implica em reorga-nizar estruturas, firmar princípios de

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fé, rejeitar teorias e teologiasexcludentes e se assumir como igre-ja cuidadora, que se coloca semprea favor da humanização e da vida.

Cuidar do indivíduo é essen-cial, mas, não é suficiente!É preciso cuidar da ‘casa’,dos sistemas que estruturama vida das pessoas em socie-dade, das múltiplasinterações do ser humano. Éa ação pastoral direcionadaa sistemas. Em sua fase deconhecimento da situação, aação pastoral identificadistorções, desequilíbrios,injustiças que sejam obstá-culos para a vida plena, paraa cura e para a paz. É a di-mensão da “denúncia profé-tica”. Então, proclama asBoas Novas por meio da Pa-lavra e da participação nabusca de alternativas. É a di-mensão do anúncio. É vozprofética nos domínios pú-blicos, estatais,institucionais. O cuidadopastoral enraíza-se na espe-rança e na confiança de queé possível a mudança e fa-zer “novas todas as coisas”(Apocalipse 21.5) medianteações das comunidades de fé

e seus ‘cuidadores’ pasto-rais. (SATHLER-ROSA,2004, pp.50,51).

Na Reforma, a ação pastoral deCalvino foi de cuidado para que oscristãos perseverassem na fé e reor-ganizassem suas vidas segundo aspropostas do reino de Deus, carac-terizadas por justiça, paz e amor aopróximo. Que a pastoral da IgrejaReformada, neste momento histó-rico, sinta-se desafiada a sercuidadora e colabore para a cons-trução de um mundo melhor.

Dimensão do preparoO cuidado pastoral de Calvino

também esteve relacionado com apreparação da igreja quanto ao ensi-no cristão. A igreja era alimentada enutrida por intermédio das prega-ções, dos comentários bíblicos e dasobras teológicas que ele produziu.

Desde criança Calvino se dedi-cou aos estudo. Tendo se formadoem Direito, estudou Teologia, Filo-sofia, Grego, Hebraico. Em 1532,com 24 anos de idade publicou emParis seu comentário sobre a obrade Sêneca, De Clementia. Posteri-ormente, produziu o Comentário ao

Livro de Salmos, Hinos Adaptados

para o Canto, vários comentáriosbíblicos e a Instituição da Religião

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Cristã.

À semelhança de Calvino, a igre-ja, para exercer toda e qualquer pas-toral, precisa se preparar, conhecermelhor os ensinamentos bíblicos, asbases teológicas que fundamentama fé cristã reformada e elaboraraportes teóricos contextualizadospara que desenvolva ações pasto-rais significativas numa sociedadecomplexa e em transformação.

Vive-se hoje em busca de respos-tas imediatas, descartáveis e super-ficiais; não há tempo para a refle-xão, para a construção do conheci-mento, para dedicação e empenho.A igreja que abandona seu preparoteórico torna-se vulnerável diante dasuperficialidade. Historicamente,foi o que aconteceu com o protes-tantismo brasileiro, após 1968, se-gundo Antonio Gouvêa Mendonça:

Perdeu seu vigor intelectualpela repressão exercida, prin-cipalmente sobre os seminá-rios, assim como pelo exíliode muitos de seus líderes(exílio geográfico e insti-tucional). Assumiu umainterioridade religiosa conser-vadora e ao mesmo tempomística que permitiu a inva-são de práticas religiosas es-tranhas à sua tradição intelec-

tual disciplinada e atenta àação no mundo (2000, p. 49).

Refletir e agir são dois momen-tos de uma mesma realidade e, seum só é privilegiado, o outro se tor-na inócuo e vazio.

A atividade de reflexão não selimita ao mundo da academia.Todas as pessoas envolvidasnos diversos serviços pastoraispodem e devem desenvolvero pensar criticamente sobre oexercício de seus ministériose dons como parte do Corpode Cristo. Além disso, a práti-ca, a teorização valoriza a ca-pacidade humana de pensar econfere lucidez à ação pasto-ral. Evita-se, igualmente, queas igrejas caiam no ativismo eno corre-e-corre sem rumosclaros e sem correspondênciacom as finalidades de sua mis-são (SATHLER-ROSA, 2004,p.55).

O preparo como um dos aspec-tos da pastoral de Calvino é algo quedesafia a igreja reformada em seuscaminhos. Paralelamente às publi-cações para reflexão bíblica e teo-lógica, Calvino não se esqueceu davivência da igreja enquanto comu-

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nidade de fé inserida na sociedade.Orientou os pastores a respeito daimportância e frequência dos ser-mões, sobre os procedimentos a se-rem adotados em relação aos sacra-mentos, ao casamento, ao funeral,visitação etc...

A igreja, hoje, em sua ação pas-toral precisa ter clareza e compre-ensão da missão à luz da Palavra deDeus e, para tanto, se faz necessá-rio o estudo, a reflexão, a discussãocrítica de sua atuação na sociedade.Sem a construção do conhecimen-to, sem a firmeza na fé, a igreja tor-na-se desorientada quanto ao seupapel histórico.

Dimensão ecumênicaO cuidado pastoral não está vol-

tado apenas para o indivíduo, mastambém para a comunidade, para asociedade, para o planeta. O grandedesafio é viver o amor de Deus nãohipoteticamente, mas de formarelacional, presente, transfor-madora.

A igreja que se encontra em

movimento deve agir pastoralmen-te encorajando relações sociaisalicerçadas pela justiça, pela tolerân-cia, pelo espírito solidário em defe-sa da vida humana e do planeta.

Para Calvino a unidade da igrejafundamenta-se no ensino bíblicosegundo o qual é Cristo quem a pro-move, mesmo quando ela éameaçada pelas diferençaseclesiológicas desenhadas historica-mente.

A pastoral ecumênica não se res-tringe aos acordos institucionais, aações fragmentadas ou individuais.Ela é uma atitude vivencial que aIgreja Reformada tem em suas raízese que se perdeu na caminhada his-tórica.

Calvino representa um momen-to de reconstrução para a ação pas-toral contextualizada. As igrejas re-formadas têm o grande desafio dereconstruir e reelaborar caminhosque foram abandonados e desenvol-ver ações pastorais que sejam rele-vantes para uma sociedade desafia-dora, que experimenta rápidastransformações.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O MUSEU DA REFORMA E ACATEDRAL DE SÃO PEDRO

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A contribuiçãomissiológica de

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ja, especialmente no que se tratada obra missionária. Não é raropensar que João Calvino e o mo-vimento que ele gerou não se in-teressaram pela obra missionáriae pouco contribuem para a refle-xão missiológica hoje. No iníciodo século, o alemão historiadorda missão da igreja, GustavWerneck, por exemplo, afirmou:“nós perdemos com osReformadores não apenas a açãomissionária, mas até a idéia demissões… [em parte] porqueperspectivas teológicas funda-mentais deles evitaram que des-sem a suas atividades, e mesmoa seus pensamentos, uma orien-tação missionária”.1

O fato é que, muito pelo con-trário e mesmo com toda a pre-ocupação pela reforma da igrejana Europa, João Calvino contri-buiu não só para o movimentomissionário em si como tam-

Fora da igreja e entre es-tudiosos, para a surpresa demuitos que estão dentro da igre-ja, João Calvino frequentemen-te é visto com bons olhos. O gê-nio marxista, Leon Trotsky, queajudou Lenin a criar a UniãoSoviética a partir da RevoluçãoRussa de 1917, afirmou que KarlMarx e João Calvino eram osdois maiores revolucionários emtoda a história do ocidente. Maspopularmente, é comum se de-preciar a contribuição deCalvino, inclusive dentro da igre-

* Timóteo Carriker é pastor e professor do Semi-nário Teológico de Fortaleza (IPIB).

1 WARNECK, Gustav. History of Protestant Missions,tradução de G. Robinson. Edinburgh: Oliphant Anderson& Ferrier, 1906, 9, citado em KLOOSTER, Fred H.“Missions - The Heidelberg Catechism and Calvin,” CalvinTheological Journal 7 (Nov. 1972): 182. Warneck tam-bém afirmou que, para Calvino, a igreja não tinha obri-gação de enviar missionários”. Ibid., 19.

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bém para a reflexão missiológicaque nutre o bom empenho missio-nário até os dias de hoje. Envioucentenas de missionários por toda aEuropa e até para o Brasil. Apesarde possuir uma abrangência muitomaior do que a missiologia contem-porânea, por causa da sua relevân-cia missiológica, não é nenhum exa-gero atribuir-lhe o título de “pai damissiologia protestante”.

Bases bíblicas eteológicas

João Calvino não escreveunenhuma “teologia de missão” oureflexão missiológica a respeito da“missão” de Deus ou a “missão” daigreja. E nem podia. Afinal de con-tas, até o século XVI a palavra “mis-são” era reservada para se referir àrelação da Trindade: a missão doFilho como o enviado do Pai e amissão do Espírito Santo como oenviado do Filho e do Pai.2 Masmuito mais importante que usar aterminologia contemporânea damissiologia, por meio dos seus es-critos3, Calvino estabeleceu as ba-ses bíblicas e teológicas para falardo papel da igreja na transformaçãoda sociedade, e não apenas em ter-mos locais, mas globais.

1 . Missio Dei et missio Christi.

Fundamentalmente Calvino estabe-leceu a base cristocêntrica eteocêntrica da missão. E deu forteapoio à evangelização através de seuscomentários.4 Scott J. Simmons re-centemente descreveu como istoocorre nos escritos de Calvino,5 mostrando que ele entendeu que,por meio de Cristo, Deus está atual-mente reinando em nosso mundo.Vejamos por exemplo, alguns dosseus comentários da Bíblia...

Acerca de Isaías 2.4:

a diferença entre o reino deDavi, que era apenas umasombra, e este outro reino ...[é que] ... pela vinda de Cris-to, [Deus] começou a reinar… na pessoa de seu Filhounigênito.6

2 A terminologia de “missão” para se referir àevangelização dos povos (no caso, não-católicos) veio aser usada somente no século XVI pelos jesuítas ecarmelitas que começaram a enviar missionários ao NovoMundo.3 “Epistológrafo copioso, muitas pessoas da Europa edas ilhas britânicas lhe pediam conselhos. Suas cartas,com outros escritos, integram 57 volumes do CorpusReformatorum, e existem 2000 de seus sermões.” CAIRNSEarle E. O Cristianismo Através dos Séculos – uma histó-ria da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1995, p.254).4 BEAVER, R. Pierce. “The Genevan Mission to Brazil,”In: The Heritage of John Calvin, ed., J. H. Bratt. GrandRapids: Wm. B. Eerdmans, 1973, 56.5 SIMMONS, Scott J. “John Calvin and Missions: AHistorical Study”. (http://www.aplacefortruth.org/calvin.missions1.htm); também em português (http://www.joaocalvino.com.br/?p=23).6 CALVIN, John. Calvin’s Commentaries, vol. 7, Isaiah 1-32. Grand Rapids: Baker, 1979, 98-99.

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Acerca de Isaías 12.4-5:

Esta exortação, pela qual os ju-deus testemunharam a sua gra-tidão, deve ser consideradaprecursora da proclamação doevangelho, que depois seguiuna ordem correta. Como osjudeus proclamaram entre osmedos e os persas e às outrasnações vizinhas o favor que erademonstrado para com eles,assim, quando Cristo se ma-nifestou, eles deveriam ter sidoarautos para ressoar em altavoz o nome de Deus atravésde cada país do mundo. Por-tanto, é evidente qual é dese-jo o tesouro de todos os pie-dosos. É, que a bondade deDeus seja conhecida por todoo mundo e que todos sereunam no mesmo culto aDeus. Devemos ser especial-mente possuídos deste desejo,após sermos libertos de algumperigo alarmante e acima detudo, depois de termos sido li-bertados da tirania do diabo eda morte eterna.7

Acerca do Salmo 22.8:

Não tenho dúvidas de que estapassagem concorda com mui-tas outras profecias que repre-sentam o trono de Deus er-guido, no qual Cristo podeassentar-se para comandar egovernar o mundo.8

Acerca de Miqueias 2.1-4:

O reino de Cristo somente seiniciou no mundo quandoDeus ordenou que o evange-lho fosse proclamado em todolugar e... hoje o seu curso ain-da não se completou.9

Acerca de Ezequiel 18.23:

Deus certamente nada maisdeseja, para aqueles que estãoperecendo e correndo para amorte, que retornem ao ca-minho da segurança. Por issoo evangelho é proclamadohoje em todo o mundo, por-que Deus quis testemunhar atodas as épocas, que ele se in-clina grandemente para a mi-sericórdia 10

Acerca de 1 Timóteo 2.4:

Não há nenhum povo e ne-nhuma classe no mundo que

7 Ibid., 402-403.8 CALVIN, John. Calvin’s Commentaries, vol. 4, Joshua -Psalms 1-35, 385.9 Citado em BEAVER, Ibid., 56.10 CALVIN, Johsn. Calvin: Commentaries. Filadélfia:Westminster Press, 1963, vol. 23, The Library of ChristianClassics, eds. Baillie, McNeill, and Van Dusen, 402.

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seja excluída da salvação;porque Deus deseja que oevangelho seja proclamadopara todos, sem exceção 11

Simmons sugere que este reino deDeus, por meio de Cristo, é a basenos escritos de Calvino para a suamissiologia implícita. Acerca de Isaías2.2, Calvino comentou que haverá“progresso ininterrupto” na expansãodo reino de Cristo “até que Ele apare-ça uma segunda vez para nossasalvação”.12 Uma das implicaçõesdeste reino presente é a destruição dadistinção entre judeus e gentios e anecessidade consequente da procla-mação do evangelho entre todos osgentios do mundo. Isto também de-corre da sua noção de eleição.

Diante do governo de Cristo so-bre toda a terra, há duas respostas:a dos réprobos que negam o domí-nio de Cristo e até o atacam, e doseleitos que são “levados a prestarobediência voluntária a Ele”. Nadapoderá barrar o avanço do governode Cristo. A tarefa da igreja é pre-gar a Palavra de Deus porque “nãoexiste outra forma de edificar a igre-ja de Deus senão pela luz da Pala-vra, em que o próprio Deus, por suavoz, aponta o caminho da salvação.Até que a verdade brilhe, os homensnão poderão estar unidos como uma

verdadeira igreja”.13 Deus escolheuusar as pessoas como seu instru-mento para pregar o evangelho atodos. O que motiva as pessoas apregar o evangelho é o zelo pela gló-ria de Deus, a finalidade principalde toda a humanidade.

Conforme Charles Chaney, cita-do por Simmons, “o fato de que aglória de Deus constituiu o motivoprimordial nas primeiras missõesprotestantes e isto haver se tornado,mais tarde, uma parte vital do pen-samento e atividade missionárias,pode estar ligado diretamente à teo-logia de Calvino”.14 Vemos assimcomo a reflexão do Calvino contri-buiu significantemente para a teolo-gia da missão hoje.

IncompreensõesAlgumas pessoas, entretanto, ob-

jetam, alegando que a teologia deCalvino trouxe obstáculos teológi-cos para o desenvolvimento poste-rior da missão da igreja. Apontam

11 CALVIN, John.. Calvin’s Commentaries, Ephesians –Jude. Wilmington, DE: Associated Publishers and Authors,n.d., 2172.12 CALVIN, John.. Calvin’s Commentaries, vol. 7, Isaiah1-32, 92.13 Comentário sobre Miquéias 4:1-2, citado em CHANEY,Charles: “The Missionary Dynamic in the Theology ofJohn Calvin,” Reformed Review 17 (Mar. 1964): 28.14 CHANEY, Charles Ibid., 36-37. Veja também ZWEMER,Samuel. “Calvinism and the Missionary Enterprise,”Theology Today 7 (Jul. 1950): 211.

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principalmente para a sua doutrinada predestinação e um suposto malentendido a respeito da Grande Co-missão.

1. Predestinação. Alega-se, porexemplo, que a doutrina calvinistada predestinação torna a obramissionária irrelevante.15 Entretan-to, esta não é a lógica de Calvino,para quem o principal instrumentode Deus para salvar as pessoas eraa pregação da sua Palavra:

embora ele seja capaz de reali-zar a obra secreta de seu SantoEspírito sem qualquer meio ouassistência, ele também orde-nou a pregação para ser utiliza-da. Para torná-la um meio efe-tivo e frutífero, ele escreve comseu próprio dedo em nossos

corações as palavras que sãoditas em nossos ouvidos pelaboca de um ser humano”.16

Deus não pode ser invocado porninguém, exceto por aqueles queconheceram sua misericórdia pormeio do evangelho. 17

Por ser o número dos eleitos des-conhecido, cabe à Igreja pregar o evan-gelho livre e irrestritamente atodos.18 Logo, a doutrina dapredestinação em nada impede a tare-fa missionária. Antes, a encoraja comodever da igreja em prol dos eleitos.

2. A Grande Comissão. É verda-de que Calvino interpretou a GrandeComissão como se referindo ao mi-nistério apostólico do primeiroséculo.19 Mas não é verdade queCalvino entendeu que os apóstoloscompletaram a tarefa tornandodesnececessária a tarefa daevangelização contemporânea. Eleentendeu que os apóstolos completa-ram apenas o início da tarefa20 e que aevangelização do mundo continua aser uma tarefa para a igreja.21

Calvino, como os outrosreformadores, era apenas contra adoutrina católica da sucessão apostó-lica e assim argumentava que oapostolado era um munus

extraordinarium temporário que ces-sou com os doze. A grande Comissão

15 TUCKER, Ruth A. Até aos confins da terra, Umahistória biográfica das missões cristãs. São Paulo: VidaNova, 1986, 67.16 CALVIN, João. The Bondage and Liberation of the Will:A Defence of the Orthodox Doctrine of Human Choiceagainst Pighius, ed. A.N.S. Lane, trad. G. I. Davies.Grand Rapids: Baker, 1996, 215.17 CALVIN, João. Institutas da Religião Cristã, 3.20.12.Veja também 3:20.1; 3.20.11.18 CALVIN, João. Institutas da Religião Cristã, 3.23.14.Veja também, The Bondage and Liberation of the Will,160.19 CALVIN, João. Institutas da Religião Cristã, 4.8.4;4.8.820 VAN DEN BERG, J. “Calvin’s Missionary Message:Some Remarks About the Relation Between Calvinismand Missions.” Evangelical Quarterly 22 (Jul. 1950),179; veja também o Comentário sobre o Salmo 22:27 ,em Calvin’s Commentaries, vol. 4, Joshua - Psalms 1-35,386.21 CALVIN, John. Calvin’s Commentaries, vol. 17, Harmonyof Matthew, Mark and Luke, 384.

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fazia parte deste argumento contra ocatolicismo, mas não contra aevangelização mundial em si.22

3. Missão integral. A dicotomiaentre a espiritualidade e o enga-jamento social não é herança deCalvino, e sim de alguns dos seusseguidores, em séculos posteriores. Para Calvino, o discípulo de Cristodeveria seguir o evangelho no seupensamento e por ações sociais epolíticas.23 Esta integralidade depensamento missiológica é descritapelo bispo anglicano, RobinsonCavalcanti, da seguinte forma:

Do ponto de vista reformado,ou calvinista, o homem é umser integralmente unificado.Deve-se evitar dicotomias.Tudo é esfera sagrada, edeve-se aplicar a Palavra deDeus a todas as áreas da vida.Toda a criação caiu com opecado e está agora sob aação redentora de Cristo, queé o Senhor tanto da Igrejaquanto da sociedade. Os cris-tãos devem lutar hoje paramanifestar a presença do rei-no de Deus, embora a sua ple-nitude somente se alcançarácom o retorno de Cristo. So-mos salvos para servir. Oscristãos devem se infiltrar em

todas as esferas da sociedadepara chamá-la ao arrependi-mento e à conformação àsnormas do reino. A Igreja éum centro de arregimentaçãoe treinamento de pessoas quese reformam para reformar.24

Para Calvino, o evangelho tocatodas as áreas da vida humana e aigreja deve também exercer a suamissão em prol da transformaçãode pessoas e das suas instituiçõessociais, econômicas, políticas, etc.justamente porque Cristo é Senhorsobre toda a vida e a Palavra deDeus desafia toda a vida humana.Ricardo Quadros Gouvêa afirma:“Calvino não visava em sua obrameramente uma reforma doutriná-ria e uma reforma da vida da igreja,mas também a transformação detoda cultura humana em nome deJesus e para a glória de Deus.”25 Nãonos surpreende, então, que nos seuscomentários, sermões, cartas e nasua obra prima de teologia, as

Institutas, encontremos a preocupa-ção com uma teologia que hoje de-

22 VAN DEN BERG, op cit., 178.23 BARTH, K. apud BIÉLER, A. O Pensamento Econômi-co e Social de Calvino,. trad. Waldyr Carvalho Luz. SãoPaulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990. p. 29.24 CAVALCANTI, R. Cristianismo e Política: teoria bíblicae prática histórica, p. 129.25 GOUVÊA, R. Q. A importância de João Calvino nateologia e no pensamento cristão. In: CALVINO, J. AVerdadeira Vida Cristã, p. 5.

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nominaríamos de “integral”, isto é,com as implicações sociais do evan-gelho na transformação completa depessoas e do ambiente que as cerca.26

4. ”Missão” na liturgia. Final-mente notamos repetidamente nasorações de Calvino, a preocupaçãopela evangelização mundial. Segue-se um exemplo de oração escrita porele para o uso no culto dominical:

Finalmente, oferecemos ora-ções a ti, Ó Deus cheio de gra-ça e Pai de todas as pessoas,pleno de misericórdia, que seagrada em ser reconhecidocomo salvador de toda a raçahumana pela redenção reali-zada por Jesus Cristo, teu Fi-lho. Pedimos para que aque-les que ainda são estranhos aoconhecimento dele, e estãomergulhados na escuridão, esão levados para o cativeiropela ignorância e erro, pos-sam, pelo teu Espírito Santobrilhando neles, e pelo teu evan-gelho ressoando nos seus ouvi-dos, ser trazidos de volta para

o caminho da salvação que con-siste no conhecimento de ti, overdadeiro Deus e Jesus Cris-to que tu enviaste.27

Em tudo isso vemos o quantoCalvino se preocupava com a missãoda igreja e como ela fez parte impor-tante da sua teologia e prática cúltica.Além disto, como veremos logo emseguida, Calvino também se empe-nhava de modo prático e intenso naevangelização com muito êxito naEuropa assim como nos limites ex-ternos e internos no Novo Mundo.

Ação missionáriaDiante da contribuição de

Calvino para a reflexão missiológicahoje, não devemos nos surpreenderapenas com seu empenho acadêmi-co e literário, mas também pela suaprópria atividade missionária.

1. O missionário. Aos vinte esete anos de idade, o próprioCalvino saiu do seu país nativo, aFrança, e foi para Genebra comomissionário.

2. A escola missionária. Protes-tantes de toda a Europa se refugia-ram em Genebra a partir de apro-ximadamente 1542 e, nos treze anosque se seguiram, a população dupli-cou. Aos poucos, a cidade se tornou

26 BIÉLER, André, op cit. SOUZA DE MATOS, Alderi,“Amando a Deus e ao Próximo: João Calvino e oDiaconato em Genebra,” Fides Reformata 2:2 (Jul-Dez1997), 69-88.27 CALVINO, João. Tracts and Treatises Vol. 2: TheDoctrine and Worship of the Church. Grand Rapids:Eerdmans, 1958, 102.

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não só um centro de refúgio comotambém um centro de preparo mis-sionário. John Knox, mais tarde, dis-se que esta era “a mais perfeita es-cola de Cristo que jamais houve naterra desde a época dos apóstolos”.Lá, Calvino ensinava a teologia re-formada, evangelização e a planta-ção de igrejas, enviando discípulospara toda a Europa.

Por meio da ida e vinda destesrefugiados assim como pormeio dos escritos evangélicosda imprensa de Genebra, emlatim, francês, inglês e holan-dês, a fé reformada foi expor-tada amplamente, mesmopara a Polônia e a Hungria. Porcorrespondência, Calvino en-corajou, guiou e dialogou comessa diáspora de cristãos evan-gélicos que testemunhavamsob perseguição.28

3. O envio missionário. EmGenebra, Calvino estabeleceu umaescola para abrigar refugiados pro-testantes de toda a Europa. Porexemplo, em 1561, enviou mais que140 missionários para a França, onorte da Itália, a Holanda, a Escó-cia, a Inglaterra e até a Polônia. Alémdestes, Calvino enviou os primeirosdois missionários protestantes na

história para um outro continente.Em 1556 ele os enviou ao o Brasil,233 anos antes do envio missioná-rio de William Carey, tido como “paidas missões modernas”. Qual foi oimpacto deste esforço?

Consideremos a França, paraonde Calvino começou a enviar mis-sionários em 1553. Dois anos de-pois, em 1555, cinco igrejas refor-madas foram estabelecidas. Maisquatro anos depois, havia quase1000 e em 1562, havia 2150 igre-jas, com uma membresia total detrês milhões, 17% de toda a popula-ção da França!29 Tudo isto pelo es-forço de pouco mais de 140 missio-nários em um só dos nove anos de1553 até 1562, enviados por Calvinoda pequena cidade de Genebra, comcerca de 20.000 habitantes. Concor-damos com Klooster que chamoueste projeto de “monumental”.30

4 . Os métodos missionários. Jámencionamos a importância da pre-gação da Palavra de Deus para a prá-tica missionária. Este era o métodomissionário de Calvino por excelên-

28 LAMAN, Gordon D. “The Origin of ProtestantMissions,” 59.29 LAMAN, Gordon D. “The Origin of ProtestantMissions,” Reformed Review 43 (1989): 59; KINGDON,Robert M. Geneva and the Coming of the Wars of Religionin France (Genève: Libraire E. Droz, 1956), 79.30 KLOOSTER, Fred H. “Missions—The HeidelbergCatechism and Calvin,” Calvin Theological Journal 7 (Nov.1972): 192.

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cia e não pela manipulação de pesso-as. A Igreja, com mansidão, deveapresentar argumentos persuasivosa fim de atrair os curiosos para quevenham livremente (comentários deMiquéis 4.3 e Filemom 10). Calvinotambém insistia que cristãos jamaisdevem usar a força física ou o podermilitar para impor a fé nos incrédu-los (comentário de Miqueias 4.3).

Em segundo lugar e seguindo oexemplo de Cristo em Marcos 9.38,ele enfatizava que a igreja deveria orarpedindo que Deus enviasse trabalha-dores para a colheita. Terceiro, a igre-ja deveria também ”recrutar a suaforça e dirigi-la eficazmente, para queo seu labor não fosse em vão” (co-mentário sobre Isaías 49.17).

Em quarto lugar, os crentes de-vem ser líderes e viver de modo co-erente com a sua fé. (comentário deIsaías 2.3). E finalmente, segundoCalvino, os cristãos, sendo ricamen-te abençoados, devem entusias-madamente compartilhar as suasriquezas com os outros (comentá-rio de 2 Coríntios 1.4), o que incluia oração pelos perdidos (comentá-rio de 1 Timóteo 2.4).

Conclusão Em uma época em que “mis-

são” era a linguagem para descre-ver o relacionamento com a Trin-

dade e a doutrina católica da suces-são apostólica impedia a reforma daigreja, não devemos nos surpreen-der que João Calvino, como os ou-tros reformadores, não falasse de“missões” e pouco aproveitasse da“Grande Comissão” para encorajaro avanço da igreja pela Europa ealém.

É erro crasso concluir a partirdaí que ele não possuía um sensoagudo da necessidade“missionária”. Não só possuia comoo advogava intensamente, primei-ro, pelo exemplo da sua própriapessoa ao assumir o desafio de li-derar o movimento protestante emGenebra; segundo, pelo preparo eenvio de missionários por toda aEuropa e até ao Novo Mundo e,acima de tudo, por meio de seusescritos, onde expunha a vinda doreino de Cristo e a necessidade dapregação da Palavra de Deus pelaigreja, principal instrumento deDeus para a salvação dos eleitos.Não é exagero afirmar, que assimcomo a teologia bíblica enfatizaa missio Dei por meio do regnum

et missio Christi como ponto departida para a melhor missiologiacontemporânea, também JoãoCalvino pode ter a distinção de sero “pai da missiologia contemporâ-nea protestante”.

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A exegese e ainterpretação bíblica

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dicando que não se poderia to-mar seu texto como definitivo,muito menos seu conteúdo teo-lógico1.

Além dos desenvolvimentostecnológicos e das descobertasfilológicas, havia um clima dedescontentamento com o cato-licismo medieval2. Lutero foiapenas uma fagulha naquele con-texto religioso. O temperamen-to religioso na Europa oscilavaentre o cinismo e a ansiedade,indo freqüentemente do ocultis-mo à apocalíptica. A maior par-te dos cristãos europeus assumiaas instruções da Igreja Católica,mas os ensinos católicos tradici-onais, juntamente com a heran-ça da exegese medieval e seusmétodos, estavam sendo amea-çados pelas perspectivas rivaisdos protestantes e dos radicais,que apelavam às Escriturascomo autoridade única, suficien-

A disseminação da imprensana Europa já era conhecida háalgum tempo no ambiente inte-lectual em que Calvino nasceu.Houve também o crescimentoda pesquisa que produzia e con-sumia livros. A reivindicaçãohumanista ad fontes (“de voltaàs fontes”) alimentou o apetitedos estudiosos na medida emque eram publicadas. Edições eferramentas disponíveis lembra-vam aos estudiosos e pregado-res que havia novas descobertasa serem feitas com relação à Bí-blia. A edição do Novo Testa-mento de Erasmo (1516) sola-pou o magistério da Vulgata, in-

* José Adriano Filho é professor do SeminárioTeológico Rev. Antonio de Godoy Sobrinho, deLondrina (IPIB).1 THOMPSON, John L. “Calvin as a biblical interpreter”,p.58.2 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento polí-tico moderno, pp.309-346.

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te e final3.Nesse contexto, a interpretação

bíblica tornou-se uma tarefa mais doque necessária, pois o que estava emjogo era a defesa do evangelho. Cadaaspecto da vida cotidiana e da esfe-ra política tinha implicações teoló-gicas e, portanto, implicaçõesexegéticas4. Calvino pertence a essecontexto; não ao seu primeiro mo-mento, mas ao segundo, ainda quede forma acidental, pois seu desejonão era ser um reformador ou umagrande personalidade, mas viver avida calma de estudioso humanista.Ele não escreveu um tratado espe-cífico sobre método, mas estava pre-ocupado com a adequada interpre-tação das Escrituras.

Para a segunda geração dereformadores a necessidade de lidarcom esta questão se tornou eviden-te por razões internas e externas: porum lado, havia o confronto com osanabatistas e antinomistas (que afir-mavam que o tempo da Lei passarae rejeitavam toda igreja e discipli-na) e a diversidade de interpretaçõesda Bíblia no movimento da Refor-

ma; por outro, era necessário apre-sentar didaticamente o conteúdo dafé a partir do princípio Sola

Scriptura5.

1- O uso do métodofilológico e do

método retóricoCalvino foi influenciado pelos

ensinos e valores humanistas no pe-ríodo de sua preparação acadêmi-ca, a qual se iniciou com os estudosno Collège de La Marche em Parise continuou em Orléans e Bourges,onde estudou Teologia e Direito.Seus estudos incluíam a Bíblia, asfontes clássicas e patrísticas e seusprimeiros escritos indicam a marcade um estudioso humanista.

O comentário sobre o De

Clementia, de Sêneca (1532), colo-ca Calvino na linha do movimentohumanista francês. Ele comenta olivro de Sêneca segundo as regrasda filologia e da retórica utilizadasna época, pois parte da análiseexegética que insere o texto na épo-ca de Sêneca, esclarecendo concei-tos, alusões e identificando as figu-ras de linguagem utilizadas na obra.A meta da interpretação a partir dalocalização do texto em seu contex-to lingüístico e histórico busca re-velar o significado das declarações

3 WILLIAMS, G. La Reforma Radical, pp.899-917.4 THOMPSON, John L. “Calvin as a biblical interpreter”,p.59.5 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, pp.431-432.

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de Sêneca e a intenção do seu dis-curso6.

O trabalho do reformador nestecomentário prefigura a forma deinterpretação seguida mais tarde porCalvino na exposição bíblica. Eleutiliza o método filológico e oretórico para interpretar do texto,só que a partir de bases teológicas7.Sua preferência na interpretação dasEscrituras, declarada no prefácio deseu comentário aos Romanos, pu-blicado em 1540, escrito emEstrasburgo e dirigido a seu amigoSimon Grynaeus, constitui um in-tento programático para sua inter-pretação bíblica:

Lembro-me de que há trêsanos atrás tivemos uma agra-dável discussão sobre a me-lhor maneira de interpretar aEscritura. E o método queparticularmente aprováveiscoincidiu ser também o mes-mo que, naquele tempo, eupreferia a qualquer outro.Ambos sentíamos que a lúci-da brevidade constituía a pe-culiar virtude de um bom in-

térprete. Visto que quase aúnica tarefa do intérprete épenetrar fundo a mente doescritor a quem deseja inter-pretar, o mesmo erra seualvo, ou, no mínimo, ultrapas-sa seus limites, se leva seusleitores para além do signifi-cado original do autor. Nossodesejo, pois, é que se possaachar alguém, do número da-queles que na presente épocase propõem a promover acausa da teologia, nesta área,que não só se esforce por sercompreensível, mas que tam-bém não tente deter seus lei-tores com comentários de-masiadamente prolixos. Esteponto de vista, estou bemconsciente, não é universal-mente aceito, e aqueles quenão o aceitam têm suas razõespara assumirem tal posição.Eu, particularmente, confes-so que sou incapaz de medemover do amor à brevida-de. Mas, visto que a variaçãodo pensamento, a qual perce-bemos existir na mente hu-mana, faz certas coisas maisaprazíveis a uns que a outros,que cada um dos meus leito-res formule aqui seu própriojuízo, contanto que ninguém

6 THOMPSON, John L. “Calvin as a biblical interpreter”,p.59; Hebrew Bible, pp.429-430.7 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, pp.430-431.

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forçe a todos os mais a obe-decerem a suas próprias re-gras. Assim, aqueles que den-tre nós preferirem a brevida-de, não rejeitarão nem des-prezarão os esforços daque-les cujas exposições dos livrossacros são mais prolixas emais extensas; por outro lado,nos suportarão, ainda quan-do entendam que somos de-masiadamente lacônicos8.

Calvino utiliza a expressão “lúci-da brevidade”, que em si mesma nãoconstitui uma teoria hermenêutica,indicando muito mais o desejo deescrever de forma compreensível. Aalusão à “lúcida brevidade”, junta-mente com o acento na “mente doescritor” ou intenção e suas decla-rações sobre a “meta” ou “escopo”do comentário bíblico é um teste-munho do papel que os valores emétodos da retórica do período doRenascimento assumiram na suaexposição bíblica. Este legado e ainfluência dos precursores protes-tantes da época são fundamentaispara a concepção e interpretaçãobíblica de Calvino.

2- “Lúcidabrevidade” e “a

mente do escritor”A compreensão do texto bíblico

inicia-se com a determinação da“mente do escritor” em cada con-texto particular, mas a dimensãoretórica do texto deve também serconsiderada na sua interpretação.Com isso, a intenção de Calvino tor-na-se manifesta, pois estes textosprecisam ser entendidos a partir domovimento da Palavra de Deus parao ser humano. A meta da interpre-tação consiste, portanto, em extra-ir um “ensino útil”.

Existe portanto, em Calvino,uma compreensão teológica das ar-tes liberais, pois ele as vê como dá-divas divinas para serem usadas pe-los homens (Institutas II 2.14-17).As artes liberais, em si mesmas, nãoconduzem à sabedoria e se limitamà vida terrena, mas devem ser utili-zadas, pois a “vontade escravizada”para com Deus não exclui a apreci-ação e o uso da inteligência comodádiva da criação9.

Calvino nomeia como “lúcida” e“brevidade” os dois princípios queguiam seu próprio intentoexegético. Há um consenso básicode que a meta da interpretação érefletir adequadamente sobre a

8 CALVINO, João. Romanos, pp.17-18.9 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, p.431.

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“mente do escritor”10, que esclare-ce o que ele quer dizer quando afir-ma que “lúcida” e “brevidade” sãoos princípios básicos da sua exegese.

Segundo John L. Thompson11, acarta de Calvino a Simon Grynaeusindica, pelo menos, quatro aspectosda interpretação bíblica de Calvino,que podem ser correlacionadas emum grau ou outro com os valoresprincipais do humanismo renas-centista:� a) A meta da interpretação é en-

tender a “mente do escritor”.Para tal, Calvino empregou asmelhores ferramentas de suaépoca ao estabelecer o contextohistórico e o pano de fundo dotexto, procurando o significadopreciso de termos nos textos gre-go ou hebraico.

� b) Calvino estava comprometi-do com a exposição da Escrituraque fosse útil à causa do evange-lho e da Igreja. “Lúcida brevida-de” não significava somente abusca da eloqüência, mas era amaneira de ensinar e persuadirefetivamente. “Lúcida brevidade”

e “utilidade” localizam-se na ór-bita do princípio da acomoda-ção, na comunicação efetiva quedeve ser adequada à capacidadee circunstâncias dos ouvintes.

� c) É errado afirmar que por cau-sa do princípio Sola Scriptura osprotestantes recusavam as tradi-ções e escritos pós-apostólicos,pois Calvino valorizava, e muito,o trabalho desses antigos prede-cessores na fé.

� d) A interpretação bíblica deCalvino não consistia em uma re-ação ao tratamento retórico daanálise e interpretação dos tex-tos, nem seus esforços exegéticosestavam em contradição comsua obra como escritor de teolo-gia, isto é, as Institutas da Reli-

gião Cristã. Estas duas ativida-des estão interligadas e sãointerdependentes em seus escri-tos. Suas obras, quandopublicadas, assemelham-se adois gêneros distintos, mas estãomutuamente reforçadas no com-promisso de discernir e expor o“escopo” do texto bíblico e a“mente do escritor”, que indicame proclamam as boas novas daobra redentora de Deus prome-tida e cumprida em Jesus Cris-to12.Além da carta de Calvino a

10 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, p.432.11 THOMPSON, John L. “Calvin as a biblical interpreter”,pp.61-62.12 GREEF, Wulfert de. “Calvin, sa concepcion de la Bibleet son exegese”, pp.123-125.

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Simon Grynaeus, Thompson13 as-sinala também que Calvino expres-sa sua opinião sobre a interpretaçãobíblica no prefácio às Homilias deJoão Crisóstomo, ampliando os as-pectos anteriormente assinalados:� a) Os Pais da Igreja devem ser

lidos. Eles oferecem benefíciossubstanciais, como orientação nosignificado das Escrituras, exem-plos e exortação à retidão morale disciplina, além de orientaçõespara a vida da Igreja antiga. Seusescritos são auxílios para a leitu-ra da Escritura, não devem seraceitos de forma acrítica, masrejeitá-los seria grande ingrati-dão. Calvino valoriza os Pais daIgreja e não os rejeita.

� b) O prefácio às Homilias deCrisóstomo destaca a dedicaçãode Calvino a um tipo de inter-pretação bíblica adequado às pes-soas de pouca instrução, em ou-tras palavras, aos leigos. Ele tam-bém reconhece que alguns mi-nistros de sua época tinham pou-co conhecimento do grego e dolatim. Sua visão sobre leigos pre-parados não era um fim em simesmo, mas uma agenda maiorde reforma geral e renovação daIgreja.

� c) A recomendação que Calvinofaz de Crisóstomo, mais que de

outros autores da patrística, in-dica uma de suas marcas distin-tivas como exegeta, isto é, seucompromisso com o sentido li-teral e histórico do texto.Calvino admite algumas falhasna teologia de Crisóstomo, maso elogia, pois sua interpretaçãoapresenta o significado evidenteda Escritura e o “significado sim-ples das palavras”. Esta posiçãonão é nova ou única, pois Calvinofoi precedido por outrosreformadores que haviam criti-cado, em especial, a exegese es-piritual ou alegórica de váriosautores patrísticos e medievais.A declaração de Calvino sobre a

qualidade da exegese dos Pais daIgreja corresponde à ênfase e inter-pretação do conceito de “lúcida bre-vidade”. Acima de tudo, consideraCrisóstomo exemplar, pois osexegetas que utilizaram a interpre-tação alegórica, especialmenteOrígenes e Agostinho, obscurecemo sentido do texto mais do que oesclarecem14. A regra “lúcida brevi-dade” é utilizada na busca do senti-do do texto, isto é, a “mente do es-critor”. A exegese subordina-se à

13 THOMPSON, John L. “Calvin as a biblical interpreter”,pp.63-64.14 STEINMETZ, David D. “John Calvin as an interpreterof the Bible”, pp.282-284.

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auto-explicação da verdade do tex-to. Para isso, as artes liberais são ins-trumentos não só legítimos, mastambém exigidos; elas devem serusadas de forma adequada, nãocomo fins em si mesmos. Sua tare-fa consiste em remover os obstácu-los para a compreensão do texto. Ointérprete cumpre sua tarefa ao dis-tinguir entre o texto e o desenvolvi-mento argumentativo da interpre-tação que realiza, utilizando a gra-mática e a retórica15.

3- A relação entre3- A relação entre3- A relação entre3- A relação entre3- A relação entreo Antigo e oo Antigo e oo Antigo e oo Antigo e oo Antigo e o

Novo TNovo TNovo TNovo TNovo Testamentoestamentoestamentoestamentoestamento

A relação entre o Antigo e o NovoTestamento é decisiva para a inter-pretação bíblica de Calvino, em es-pecial a interpretação dos textos doAntigo Testamento. Calvino lidou deforma intensiva com a relação entreo Antigo e o Novo Testamento noperíodo que viveu em Estrasburgo.Na edição de 1539 das Institutas

afirma que os dois testamentos sãouma unidade em si mesma, diferen-

ciada e dinâmica. Ele integra o ensi-no da aliança na soteriologia e, alémdisso, o conceito de “aliança” tornou-se decisivo na conexão da cristologiacom a exegese.

O livro II das Institutas intitula-se “O conhecimento de Deus comoredentor em Cristo, conhecimentoque primeiro foi revelado aos patri-arcas sob a Lei e agora, a nós, noEvangelho”, enquanto o ensino so-bre a Lei é chamado: “A lei foi dadanão para reter em si mesma o povoda antiga aliança, mas para alimen-tar a esperança de salvação em Je-sus Cristo até a sua volta” (Institutas

II.VII)16.Calvino fala sobre a unidade e as

diferenças entre os dois testamen-tos nas Institutas II.X e II.XI respec-tivamente. Ele não entende por Leisomente “os Dez Mandamentos, osquais apresentam a regra para viveruma vida piedosa e santa, mas a for-ma da religião tal como Deus a deuatravés de Moisés” (Institutas

II.VII.1). A Lei está baseada na gra-ça eletiva de Deus e Cristo já se acha-va nela presente: a mediação deCristo “não foi expressa de formaclara nos escritos de Moisés”, mas“Deus jamais se mostrou propícioaos patriarcas do Antigo Testamen-to, nem jamais lhes deu esperançaalguma da graça e do favor sem pro-

15 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, p.433.16 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, p.435.

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por-lhes um mediador” (Institutas

II.VI.2)17.Há vida espiritual e esperança de

imortalidade por adoção no AntigoTestamento, a aliança estabelecidapor Deus com os Pais não se baseianos méritos deles, mas em sua mi-sericórdia. A aliança feita com ospais é semelhante à aliança feitaconosco, podendo-se dizer umamesma com ela, pois difere somen-te na ordem em que foi outorgada(Institutas II.X.2)18.

Segundo o reformador, a unida-de da aliança é constituída por trêsfatores: primeiro, a eleição para “aesperança de imortalidade”, a qual jáera a meta dos judeus no tempo doAntigo Testamento, não menos quepara os cristãos; as promessas doAntigo Testamento não visavam so-mente felicidade terrestre, pois a ali-ança que Deus fez com o povo deIsrael era, a despeito da inclusão dapromessa da terra e da lei cerimoni-al, uma aliança “espiritual”; segundo,a aliança é puramente uma aliançade graça, sendo assim já na época doAntigo Testamento. A continuidadedo princípio Sola Gratia envolve osdois testamentos; terceiro, a comu-nhão com Deus e a participação naspromessas baseia-se na mediação deCristo, tanto no Antigo quanto noNovo Testamento. Os patriarcas

também “tinham e conheciam a Cris-to como mediador”19.

Com respeito às diferenças en-tre os dois testamentos, Calvino afir-ma que elas surgem pela maneirana qual Deus, por razões pedagógi-cas, acomodou sua palavra ao ser-viço da salvação. Ele afirma primei-ro que as promessas que têm Cris-to como seu único fundamento, asquais, segundo a palavra eletiva deDeus que contém a “graça da vidafutura”, eram mediadas no AntigoTestamento “sob benefícios terre-nos”, como, por exemplo, na pro-messa da terra de Canaã, mas noNovo Testamento são apresentadasde forma mais clara; segundo, falasobre a clareza progressiva da reve-lação, em especial o que diz respei-to às cerimônias do Antigo Testa-mento, que foram abolidas para acomunidade cristã e substituídaspelos sacramentos.

Calvino relembra também a di-ferença entre a “sombra das boascoisas por vir” e a “verdadeira for-ma destas realidades” (Hebreus

17 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, pp.435-436.18 PUCKETT, David L. John Calvin’s Exegesis of the OldTestament, pp.88-91; GREEF, Wulfert de. “Calvin, saconcepcion de la Bible et son exegese”, pp.130-131.19 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, p.436.

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10.1) bem como a distinção entre“a sombra do que há de vir” e a“substância”, identificada com Cris-to (Colossenses 2.17); terceiro, afir-ma a diferença entre letra e espíri-to; quarto, mostra a diferença entreescravidão e liberdade; quinto, indi-ca o chamado das nações, atravésdo Evangelho, que ultrapassa os li-mites de Israel (Institutas II,XI.11).

A diferença maior entre o Antigoe o Novo Testamento é que o AntigoTestamento faz conhecer a promes-sa que o Novo Testamento apresen-ta como realidade presente20.Calvino ilustra a história da aliançacomo história da revelação por meioda imagem do aumento progressi-vo da luz. A história da aliança dagraça de Deus com a humanidadeindica como Deus manifestou a luzda sua Palavra até que a fonte ante-riormente oculta de toda luz semanifestasse em Cristo (Institutas

II.XI.5). Deus se revelou ao ser hu-mano, tornou-se humano, assim al-cançando o ponto mais alto da suaacomodação. As antigas promessassão cumpridas e, portanto, ultrapas-sadas (Institutas X.X.20).

A imagem do aumento progres-

sivo da luz expressa a forma da açãode Deus na aliança de graça com oshomens, correspondendo à pedago-gia de Deus, que como pai instrui,governa e conduz seus filhos em to-das as fases das suas vidas. Deus nãomuda de pensamento e “acomodoua si mesmo à capacidade dos sereshumanos, que é variada e mutável”.A vontade imutável de Deus exigeque sua comunicação ocorra de di-ferentes maneiras.

A Lei, de acordo com Calvino, édeterminada pelo seu contexto pe-dagógico, é o tempo dos “rudimen-tos” e aponta para além de si mes-ma ao tempo do Evangelho. Ade-mais, o tempo anterior a Cristo,como tempo “sob a Lei”, é caracte-rizado pela esperança e expectativae não pode, a despeito da unidadefundamental da aliança, ser iguala-do ao tempo do Novo Testamento,pois aboliria a dinâmica histórica daaliança21.

4- Princípios daexposição da

EscrituraCalvino iniciou a interpretação

da Bíblia a partir do Novo Testamen-to, com a carta aos Romanos. EmEstrasburgo (1538-1541), fez pre-leções sobre 1 Coríntios, cujo co-

20 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, pp.436-437.21 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, p.438.

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mentário foi publicado em 1546.Entre 1546 e 1550, comentou qua-se todas as cartas de Paulo. Em 1551as cartas paulinas foram reeditadas.Em seguida, por volta de 1549, ini-ciou o estudo do Antigo Testamen-to, que apresenta três modos de ex-posição: sermões, conferências ecomentários. Sermões, porqueCalvino tinha que pregar em Gene-bra, não somente aos domingos,mas, desde 1549, também durantea semana. No domingo, Calvinopregava sobre o Novo Testamento,à tarde, às vezes sobre os Salmos e,durante a semana, sobre o AntigoTestamento. Os sermões são, emgeral, exposições sobre os textos daBíblia. Ele fez também preleçõessobre o Antigo Testamento, ocasiãoem que lia um trecho da Bíbliahebraica, traduzia-o para o latim eo comentava versículo porversículo22.

As conseqüências concretas daexposição bíblica de Calvino podemser exemplificadas a partir dos se-guintes princípios:

� a) Sentido literal e “a mentedo escritor”.

A tarefa principal da exegese érevelar o sentido do texto bíblico ea intenção de seu autor. Ao buscaratingir essa meta, Calvino identifica

o gênero do texto em estudo, a situ-ação histórica e circunstâncias desua produção, seu autor e destina-tários; explora também o significa-do de expressões importantes. Aodeterminar as circunstâncias e ocontexto histórico e lingüístico, bus-ca o sentido do texto. Ele critica ométodo alegórico de interpretaçãopor não considerar o significado li-teral do texto, mas reconhece que osignificado do texto pode ser expres-so através da linguagem figurativaou metafórica23.

� b) Relação entre a comunida-de da antiga aliança e o corpo pneu-mático de Cristo.

Calvino apresenta a questão da“mente do escritor” a partir da es-trutura da aliança. Refere-se à rela-ção da comunidade da antiga alian-ça e o indivíduo com Deus e, assim,à forma do conhecimento de Deuse do autoconhecimento humano,formulados como os constituintesbásicos de sua teologia no começodas Institutas. Ele diz também queatravés das Escrituras nós “apren-demos a colocar nossa confiança em

22 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, p.439; WILCOX, Pete, “The Prophets”, pp.107-108.23 GREEF, Wulfert de. “Calvin, sa concepcion de la Bibleet son exegese”, pp.125-130.

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Deus e caminhar no seu temor”, a“reconhecer a Cristo como o ‘fim’e a ‘meta’ da Lei, e os profetas comoa “substância” do evangelho24.

� c) A educação do povo de DeusO Antigo Testamento é testemu-

nha, antes de tudo, de um processopedagógico, isto é, a história da edu-cação do povo escolhido de Deus.Os textos históricos servem comoespelhos do ensino e cuidado deDeus, ativo na história da aliança.Eles nos revelam a providência sin-gular de Deus ao governar e preser-var a Igreja. A unidade do povo deDeus em todas as épocas deriva daunidade da aliança. Isso em últimainstância está fundamentado na de-cisão do Deus único que escolheuseu povo, permanece fiel e lhes dáuma esperança escatológica25.

� d) História bíblica da salva-ção como história da libertação.

A Escritura não é um espelho deverdades atemporais. Os cristãos

devem entender a história bíblica dasalvação como história da libertação,na qual eles próprios estão incluí-dos. Nesta história, os primeiroseventos da salvação assinalam osúltimos, e os últimos devem ser vis-tos como seu cumprimento, trazen-do-os à sua completa verdade. Acomunidade cristã compreende es-tes eventos à luz de Cristo. Ela é,assim, fortalecida na fé ao olhar paratrás, para o Êxodo, e ao mesmo tem-po, adiante. Nesta tradiçãointerpretativa, a comunidade cristãlê a Escritura e reconhece seu pró-prio futuro à luz dos eventos de li-bertação do povo de Deus, os quaissão entendidos como parte de umaúnica história da libertação de Deusque tem o seu clímax na salvaçãoescatológica26.

� e) Cristo, meta e substânciada Lei.

O conhecimento de Deus é ameta da exposição da Escritura.Cristo é a fonte de toda revelação,“a única luz da verdade”. O ensinode Moisés aponta para Cristo: Cris-to é o “fim” (Romanos 10.4) e o “es-pírito” (2 Coríntios 3) da Lei. Aspromessas do Antigo Testamentofalam sobre Deus e a aliança da gra-ça. Como “intérprete fiel”, Cristoexplica a “natureza da Lei, seu obje-

24 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, pp.441-442; GREEF, Wulfert de. “Calvin, saconcepcion de la Bible et son exegese”, pp.135-136.25 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, pp.442-445.26 OPITZ, Peter. “The exegetical and hermeneutical workof John Oecolampadius, Huldrych Zwingli and JohnCalvin”, pp.445-446; PUCKETT, David L. John Calvin’sExegesis of the Old Testament, pp.113-124.

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to e seu escopo”. No exercício doseu ofício de profeta, Ele confirmasua validade e revela seu significadoe propósito, sumarizado na dupla leido amor. Além disso, as “exortaçõese promessas”, que eram condicionaisna observância do Decálogo, apon-tam de forma pedagógica para Cris-to. A Lei tem sentido somente comoLei da Aliança; separada de Cristo ede seu Espírito, é letra morta27.

� f) Interpretação cristológicado Antigo Testamento.

A interpretação da história bíbli-ca é vista a partir da história de umaúnica aliança e, ao mesmo tempo,como uma história da libertação quese fundamenta em Cristo e apontapara Ele28. A presente comunidadecristã está incluída na história da li-bertação. A história bíblica é inter-pretada a partir da perspectiva dasoberania de Cristo que acontece notempo. Nesse sentido, a interpreta-ção do Antigo Testamento deCalvino é cristológica, sendo, aomesmo tempo, uma interpretaçãoque o atualiza.

Calvino, portanto, utilizou todosos meios filológicos, retóricos e his-tóricos da sua época para alcançaruma exegese bíblica contextual, cujoobjetivo último era provocar a fé, aqual surge quando o Espírito Santo

prepara o caminho para tal. Ele en-tende que o comentário de um tex-to bíblico deve ser breve, transpa-rente. Ademais, a interpretação dotexto bíblico deve esclarecer o con-texto histórico do texto, dar a devi-da atenção às circunstâncias histó-ricas em que se originou e investi-gar de forma meticulosa a gramáti-ca do texto. O que importa é o sen-tido literal do texto, mas a ênfaseno contexto não exclui a possibili-dade de aplicá-lo ao momento atualda igreja. A explicação do uso daEscritura ultrapassa a aplicação dosmétodos filológicos e retóricos. Naexegese dos textos bíblicos, o queimporta é a compreensão da “men-te do escritor” e o movimentoquerigmárico-retórico do texto. Issopressupõe uma compreensão da Bí-blia derivada da convicção reforma-da da clareza das Escrituras, enten-dida como Palavra de Deus “dirigidae acomodada a nós na forma datransmissão de palavras humanas,como a chave que abre o reino deDeus para nós, nos introduz lá e nosensina que podemos conhecer oDeus que adoramos e as formas daaliança que Ele fez conosco”.

27 GREEF, Wulfert de. “Calvin, sa concepcion de la Bibleet son exegese”, pp.138-141.28 GREEF, Wulfert de. “Calvin, sa concepcion de la Bibleet son exegese”, pp.131-134.

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SALA DE EXPOSIÇÃO NOMUSEU DA REFORMA, EMGENEBRA

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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As ideias políticas deCalvino segundo Denis

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dade.”1 Ao citá-lo, DenisCrouzet, em sua biografia deCalvino, admite esta ambigüida-de situando-a como parte “dospróprios mecanismos da férestabelecida”.2

Além disso, acrescenta que opensamento calviniano flutuounão apenas segundo a evoluçãodos acontecimentos e de certascontribuições teóricas externas,“mas também, estruturalmen-te”. Sua “inteligência pragmáti-ca” sempre o conduziu de forma“a estar em condições de mudarvirtualmente em relação a simesmo”.3

1. Um temasempre polêmico

Comecemos pelo princí-pio. Em “Divina Glória”, o últi-mo capítulo de seu livro, Crouzettraça um perfil bastante diversi-

Sobre as ideias políticas emCalvino e na tradição reforma-da rios de tinta já correram. Umexemplo é Quentin Skinner,professor da Universidade deCambridge, no segundo tomo desua monumental obra Las Fun-

damentos del pensamiento polí-

tico moderno (1978), dedicadoà Reforma Protestante, que nãovacila em qualificar Calvinocomo “um mestre da ambigüi-

* Leopoldo Cervantes-Ortiz é pastor da Igreja Naci-onal Presbiteriana do México e professor de teolo-gia. Texto traduzido por Eduardo Galasso Faria.

1 Q. Skinner, Los Fundamientos del pensamientopolítico moderno. II. La Reforma. México, Fondo deCultura Econômica, 1986, p. 198. A frase comple-ta é: “Calvino é em cada momento um mestre daambigüidade, e embora seja indiscutível seu com-promisso básico com uma teoria da não-resistên-cia, em sua argumentação ele introduz um bomnúmero de exceções”. Em português: QuentinSKINNER, Fundamentos do Pensamento PolíticoModerno. S. Paulo: Companhia das Letras, 1996.2 D. Crouzet, Calvino. Trad. de I. Hierro. Barcelo-na: Ariel, 2001, p. 338.3 Idem.

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ficado das posturas políticas doreformador, a partir do postulado deque Calvino foi também “um gran-de técnico da infiltração doutriná-ria, o grande ordenador de uma ba-talha no dia-a-dia”. 4 Com isso emmente, Crouzet expõe como oescatologismo de Calvino pode serlido no contexto de um inter-nacionalismo que o levou, sem sairde Genebra, a ter influência na In-glaterra, Alemanha, Escócia, Polôniae Hungria. Para Calvino, “o reino deCristo devia testemunhar a recon-ciliação de todos os homens, quais-quer que fossem suas raças, situa-ção social e identidade política ounacional. Em um dia não determi-nado, o mundo seria uno”.5 Tal oti-mismo enfrentaria enormes barrei-ras, como o imprevisível papel dosmonarcas e da nobreza. As implica-ções políticas desta percepção cer-tamente seriam provadas frente àcrua realidade.

Frente à atuação do papado, apartir de 1555, a situação dos hete-rodoxos perseguidos levou à consi-deração do problema da autoridadepolítica. Em princípio, Calvino adefiniu como uma autoridade legí-tima, pois para ele, os poderososdeste mundo nada mais são que fun-cionários de Deus, que receberamde suas mãos a autoridade para re-

digir leis e, como têm esta autorida-de por delegação divina, não existemotivo para a rebelião. Não há dúvi-da de que esta teoria da submissãoirá se enfraquecer diante do dever defazer com que “a glória de Deus avan-ce diante do clamor dos fiéis famin-tos de fé no reino da França”.

2. A necessidade doEstado

No item cujo título é “Necessi-dade”, fiel a um impecável estilo deesboçar sucintamente os diversosepisódios da vida do reformador,Crouzet desenvolve suas ideias bá-sicas sobre o Estado. Em primeirolugar, a perspectiva de Calvino so-bre a relação com o evangelho é ade um conservador, pois a existên-cia do Estado não é fortuita, pois foiestabelecida por Deus. Portanto, aresistência a este estado de coisaspor parte do anabatismo lhe pare-cia inaceitável, pois equivalia a “dei-xar-se cair na barbárie e na negaçãode Deus”.6 O Estado é necessário damesma forma que o são a comida,o sol, o ar. “Sua necessidade, que éessencial para a vida em comum,ressalta ao mesmo tempo o direito

4 D. Crouzet, ibidem, p. 287.5 Idem, p. 288. Ênfase acrescentada.6 Ibidem, p. 289.

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divino e o direito natural”. Além dis-so, tem a missão de evitar os escân-dalos que obscurecem a glória deDeus e estabelecer o que cabe acada um. O Estado, para ampli-ar seu significado teológico, surgiutambém por causa do pecado, poisse este não houvesse infectado avida humana sequer existiria “e ohomem traria a lei no fundo de seucoração”, nas palavras de MarcÉdouard Chenevière (La pensée

politique de Calvin, 1937). As leisconstituem um recurso contra opecado e preservam a humanidadeentre os seres humanos. “Sua fun-ção é conseguir que o homem sejaadvertido por sua injustiça, demons-trando a justiça de Deus”.7

Tendo em vista tudo isso e comoadvertiu Michael Walzer, a políticacalviniana é realista, mas nãoamoral. Desde a primeira edição daInstituição, ao dirigir-se a FranciscoI, Calvino valoriza a presença dopoder político nesse sentido, lem-brando-lhe que todo príncipe é mi-nistro de Deus e tem uma série deresponsabilidades diante dele. Seufundamento para isso, vem do após-tolo Paulo.

Crouzet destaca que no sermão

no. 55, sobre Deuteronômio 7,Calvino critica amplamente osgovernantes que se deixam levarpelos cortesãos e optam por esta-belecer a paz mediante acordosmantidos pelos abusos de alguns. Nosermão no. 51 evoca a violênciacomo dever do Estado, o que possi-bilita que este desempenhe seu pa-pel às vezes com uma crueldadetambém necessária, pois “o homemnão se deve considerar mais mise-ricordioso que Deus”.8

O magistrado perfeito, além depouco presente até então, é aqueleque assume uma postura paternalpara com o povo, como guardião dapaz, seu protetor e protetor da jus-tiça. Isto não impediu que Calvinotivesse “uma visão pessimista dopoder político, opressor do povo eassassino de inocentes, que não va-cila em ser “um bandoleiro por di-reito”, chegando a cair em “víciosenormes e estranhos”.

Portanto, fica muito difícil asse-verar que Calvino preferiu este ouaquele regime político. Fazer issoimplicaria em seguir algum dos es-tereótipos anacrônicos que lhe têmsido atribuídos como o de sua hipo-tética “opção republicana”. O certoé que Calvino insistiu em relacionara política com a ética, como o fazno terceiro sermão sobre Deu-

7 Ibidem, p. 290.8 D. Crouzet, p. 292.

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teronômio 1 (1555), no qual de-monstra que os que vierem a ocu-par cargos públicos devem ser elei-tos com extremo cuidado, devendoser pessoas virtuosas, tementes aDeus, opostas à avareza, prudentese experientes. Calvino expõe comtoda clareza o apego à piedade emsua famosa carta ao rei da França:“Engana-se quem espera uma gran-de prosperidade para um Reino quenão seja governado pelo cetro deDeus, ou seja, por sua santa Pala-vra, pois o mandato celestial nãopode mentir”.

Desse modo, segundo Calvino,um rei infame é um castigo enviadopor Deus ao povo, embora “inclusi-ve em sua perversidade, detenha omesmo poder que Deus concede aosbons reis”.9 Aí aparece aambiguidade calviniana manifestapraticamente sem qualquer dissi-mulação! Apesar disso, esta seçãoconclui com a observação de que,assim como Deus ordenou obedi-ência ao tirano Nabucodonosor, de-vem se contentar os súditos em pe-dir a ajuda divina contra o príncipedesumano. Cedo ou tarde a provi-dência divina atuará. Mesmo assim,Calvino se encarregou de esclarecerquanto à atitude dos monarcas: “...não é racional que nos considere-mos súditos de quem, como rei, de

sua parte nada nos acrescente.” Umavez entreaberta a porta da dúvida, aseção seguinte do livro de Crouzetcompletará a compreensão dasideias política calvinianas.

3. O germe darebelião

Na segunda parte do capítulo,“Divina glória”, com que Crouzetencerra sua esplêndida biografia deCalvino, ele rastreia muito bem omodo pelo qual o reformador criti-cou abertamente a autoridade polí-tica: o rei Henrique II foi o alvo deseus ataques e “invectivas proféti-cas”, sendo o 31º. sermão, sobreDeuteronômio 5, um exemplo. Aíele afirma que “quando se exercemal o poder, rompe-se com a obe-diência, (a qual) pode se transfor-mar em uma desobediência que,para Calvino, não é mais que passi-va, espiritual”. Quando pais, mães emagistrados querem se o opor aDeus, e (citação de Calvino) ‘levan-tar-se contra esta tirania, ao pontode usurpar aquilo que pertence so-mente a Deus, querendo apenas nosdesviar de sua obediência’, ocorreuma exceção à regra: não devem serobedecidos” (p. 296).

9 Idem, p. 295.

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Este confronto ocorre a partir demarcos espirituais e teológicos, ouseja, quando os governantes preten-dem, de maneira idolátrica, suplan-tar a Deus. O conflito é evidente:trata-se de “usurpadores que ofen-dem a honra de Deus”. Entretanto,Calvino não abre imediatamente asportas à rebelião, pois a perspectivaenunciada não implica a necessida-de da rebelião.

A resistência deve ser, em primei-ro lugar, espiritual. Contudo, expli-ca Crouzet, não se prende a umavisão fechada da história, uma vezque esta é condicionada “por umprincípio de obediência ativa ou dedesobediência passiva”. Sua finalida-de “não consiste em permitir que ohomem tome em suas mãos a pró-pria história por iniciativa própria,com sua vontade corrompida e suainteligência embrutecida”, pois fa-zer isso implicaria em cair na tenta-ção de converter-se em seu próprioamo. Largo é o caminho que vaidestas afirmações até a possibilida-de real de resistir à tirania dosgovernantes ímpios.

Uma vez que todo o “sistemacalviniano” parte e se remonta aDeus e a humanidade deve viver porEle e para Ele, a única forma de en-tender os caminhos teológicos até arebelião política, que se encontra em

germe aqui é portanto, aquela emque “frente a um governante injus-to somente a majestade divina estáem condições de realizar uma liber-tação”. Portanto, não busquemosuma resposta linear à pergunta so-bre como, onde e quando enfrentarum governante que apresente estascaracterísticas em nome de Deus.Pelo contrário, trata-se de percebercomo se concatenam as coordena-das teológicas e históricas para to-mar decisões políticas concretas.

4. Oscondicionamentos

teológicos darebelião

Crouzet lembra, em primeirolugar, a afirmação de Calvino que amajestade de Deus pode intervirquando sua bondade, poder e pro-vidência determinem que surja umeleito “para castigar um domínioinjusto e libertar da calamidade opovo iniquamente afligido”. O es-quema bíblico que sustenta essaideia está fora de discussão, poisbasta lembrar a história de Moisés:o caudilho experimenta uma voca-

ção libertadora que o coloca às or-dens da vontade divina.

Os cristãos primitivos sabiam

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muito bem que os demônios dirigi-am o mundo. Mesmo assim, esta-vam convencidos de que todo aque-le que se dedicava à política, oumelhor, que se valia do poder e daviolência era porque tinha um pac-to com o diabo. Por conseguinte, arealidade é que em seu dinamismo,já não é o bom e que só produz obem nem o mau o mal, mas que,frequentemente, ocorre o contrário.Não levar em conta isso na política,é pensar de maneira pueril.10

Apesar disso, em terceiro lugar,Crouzet chama a atenção para ocontexto político do século XVI eadverte que Calvino chegou a “des-cobrir na história casos de magis-trados inferiores aos quais compe-tia, entre o lacedemônios, osatenienses e os romanos, colocarum freio no “abuso”dos reis e assimcriar uma forma institucional deresistência” (p. 297). Em seu tem-po, ele acreditou que esse mesmopapel seria desempenhado nos rei-nos pelas assembléias dos três esta-dos, às quais reconhece o direito deresistir “à intemperança ou cruelda-de dos reis”. Seu dever seria não traira liberdade popular, pois foram ins-tituídas como uma espécie de “tu-tores pela vontade de Deus”.

Estas ideias não mostram umCalvino inovador nem muito menos

que isso, pois já Lutero, influencia-do por pensadores reformados ra-dicais adotou esquemas que podi-am legitimar a resistência contraCarlos V. Nesse sentido, Crouzetobserva que talvez tenha sidoAndréas Osiander (1498-1552) oprimeiro teólogo que defendeu aresistência ativa ao redefinir a con-cepção paulina de poder, emboraBucer seria quem teria radicalizadoo pensamento político entre 1530-1535. Para ele, Romanos 13 não serefere ao poder mas aos poderes, detal modo que, se o magistrado su-perior não cumpre a missão de pre-servar o povo contra as tentações domaligno, os magistrados inferioresdeveriam resistir ativamente a elesem nome de Deus. SegundoCrouzet, essas ideias constituem afonte do imaginário político deCalvino.

O ponto de ruptura surge quan-do o ser humano interior, que per-manece na fé apesar das pressões eopressões do governante injusto esujeito a Deus, é confrontado coma afirmação fundamental de que a

10 M. Weber, El político y el científico. Documento prepa-rado pelo Programa de Redes Informáticas e Produtivasda Universidade Nacional de General San Martín(UNSAM),Argentina, www. bibliotecabasica.com.ar, emHACER. Hispanic American Center for Economic Research,http://www.hacer.org/pdf/WEBER.pdf, p. 34.

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liberdade cristã é uma liberdade deobediência a Cristo, uma arma ide-ológica contra toda forma de tira-nia, uma vez que lhe será possíveltranscender as imposições legalistasque já não poderiam impedir sua“livre obediência” à vontade de Deus.

A principal libertação que nun-ca está em jogo, é a espiritual, a qualnenhum governante poderá interdi-tar. Por isso, Calvino, frente aos ti-ranos, exalta inicialmente o prima-do da paciência, quando os crentesse voltam para a providência divi-na, mediante aquilo que PierreMesnard classifica como “fidelida-de heróica” em El arranque de la

filosofia política em el siglo XVI

(1977). Assim, diante dos abusos dogovernante, as alternativas para queum crente não coloque em risco suafidelidade a Deus são o exílio ou omartírio.

Todavia, “para além do rei in-justo se encontra o rei dos reis, queestá por cima de tudo” e nada nemninguém pode separar do amor deDeus. Portanto, para Calvino, os fi-éis que se encontravam dispersospor terras dominadas por príncipesmaus são como cativos, mas nãodevem deixar de honrar a Deus. Enão deveriam se sujeitar a uma reli-gião subjetiva, alienante, pois todoo ser é consagrado a Deus e seu des-

tino é glorificá-lo. “A obediência aDeus constitui a ordem natural dohomem” (p. 300). Em meio a tudoexiste uma convicção profunda deque a justiça de Deus domina ple-namente em suas vidas e por isso aatitude paciente está bastante dis-tante da resignação, pois se trata deuma ação em Cristo, tal como ex-pressou Calvino em seus sermõessobre o livro de Jó. Portanto, emqualquer circunstância, “o povo deve

glorificar a Deus em sua justiça”

(ênfase acrescentada) e a vidasecularl não pode ser entendidacomo se pudesse se esgotar no pre-sente.

Para Calvino é certo que a lutacontra a impiedade e a injustiça éuma luta entre Deus e satanás, masmesmo assim, conclui Crouzet: “Ocalvinismo é uma militância espiri-tual que, sem se valer da rebeliãocontra os poderes seculares e ape-sar dos instrumentos a que estesrecorrem para manter o poder desatanás, pode e deve trabalhar parafazer avançar a glória divina” (p.301). No entanto, entre os seguido-res de Calvino, como Teodoro Beza,John Knox e ChristopherGoodman, surgiria mais tarde umasólida teoria teológica sobre a rebe-lião contra os poderes injustos.

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Para Calvino é certo que a lutacontra a impiedade e a injus-tiça é uma luta entre Deus esatanás, mas mesmo assim,conclui Crouzet: “O calvi-nismo é uma militância espi-ritual que, sem se valer darebelião contra os poderesseculares e apesar dos instru-mentos a que estes recorrempara manter o poder desatanás, pode e deve traba-lhar para fazer avançar a gló-ria divina”.

DENIS CROUZET

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ResenhaO problema da incredulidade no séculoO problema da incredulidade no séculoO problema da incredulidade no séculoO problema da incredulidade no séculoO problema da incredulidade no século

XVI: a rXVI: a rXVI: a rXVI: a rXVI: a religião de Religião de Religião de Religião de Religião de Rabelaisabelaisabelaisabelaisabelais

da incredulidade no século XVI:

a religião de Rabelais (de auto-ria do historiador francês LucienFebvre, publicado em 1942), quesão oportunas e contribuem paraum novo olhar sobre o tempodos reformadores.

A “Apresentação”, o “Prefá-cio” e o “Posfácio” foram escri-tos por historiadores consagra-dos, sob perspectiva críticaesclarecedora. Ao correr da lei-tura, pode-se perceber que o au-tor domina com maestria a arteda escrita, cujo resultadocorresponde a pensamento cris-talino e envolvente.

Lucien Febvre (1878-1956)destacou-se como renovador dosestudos de História. Com MarcBloch criou a correntehistoriográfica conhecida como“história-problema”, em oposi-ção ao descritivismo dospositivistas, que elaborava apenasparáfrases acríticas de documen-

*Paulo Sérgio de Proença, pastor e deão noSeminário Teológico de São Paulo.

FEBVRE, Lucien. Oproblema da incredulidade

no século XVI: a religião de

Rabelais. Tradução deMaria Lúcia Machado;tradução dos trechos emlatim de José Eduardo dosSantos Lohner. São Paulo:Companhia das Letras,2009.

O conjunto das celebraçõesdo quinto centenário do nasci-mento de Calvino proporcionoua realização de eventos diversos,não só no mundo religioso-pro-testante. A academia alimentouo mercado editorial e, assim,produziram-se títulos inéditos ereimprimiram-se clássicos so-bre Calvino, seu mundo e seutempo. É o caso da tradução epublicação do livro O problema

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tos históricos. Febvre e Bloch pro-puseram novas reflexões metodo-lógicas. Para eles, os documentosnão existem per se, mas enquantoobjeto de definição e interpretaçãodos historiadores.

A investigação histórica se faz apartir de questões concretas propos-tas à documentação e, se preciso for,pode adotar instrumentos intelectu-ais de áreas afins, com a proposiçãode problemas que adequada e efeti-vamente contribuam para a investi-gação histórica. O procedimentodeve se ajustar ao que o historiadorprocura, pois, para Febvre, “o his-toriador não é aquele que sabe. Éaquele que procura”. Oportuna re-cuperação do ensino de Sócrates.Felizmente, o princípio não vale so-mente para os historiadores. Vale –e como vale! – para os teólogos,para os autoproclamados apóstolose bispos, para muitos dos pastoresde nosso tempo, que não adotam oconselho de Sócrates. Afinal, elestudo conhecem, sabem e podem,com a agravante de atribuírem aoEspírito Santo tamanha bizarrice.

O problema da incredulidade

surgiu para discutir idéias do histo-riador Abel Lefranc, para quemRabelais é adepto da “féracionalista”; um ateu, portanto.

Para Febvre, isso é problemático eele se propõe a provar o contrário,estudando a história do século XVIa partir das idéias em suasinterações com as dimensões soci-ais. Assim, Rabelais é veículo paraalcançar o pensamento da época,sob a necessária consciência dosobstáculos interpostos pelo “anacro-nismo”, processo de avaliação his-tórica segundo o qual “cada épocaconstrói mentalmente sua represen-tação do passado”1. Por exemplo, éanacronismo dizer que Rabelais eraateu, pois o século XVI não tinhaesse conceito elaborado, pelo me-nos da forma como o temos hoje.

Quem foi, afinal, Rabelais? Nas-ceu provavelmente em 1483 emChinon (França); morreu em 1553,em Paris. É conhecido também por“Alcofribas Nasier”, anagrama deseu nome. Os detalhes da vida deRabelais não são muitos. Sabemosque foi sacerdote, primeirofranciscano e depois beneditino,embora de pouco convicta vocação.Como padre, viaja pelo interior daFrança e entra em contato com as

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1 O anacronismo já é conhecido dos estudiosos daBíblia. Na investigação histórica, estamos condenadosa cometer esse pecado, porque é impossível anular odescompasso cronológico entre duas épocas. A acronia,pura e simplesmente, é mais do que fuga à história: é anegação dela.

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lendas e os costumes que influenci-ariam sua obra. Deixa a vida religi-osa em 1530 para estudar medicinaem Montpellier.

Foi, isso sim, erudito apaixona-do pelo saber, homem de espíritoousado, com propensão para novi-dades; foi considerado aliado dosreformadores por seus adversáriosno início dos anos 1530. Recebe for-mação clássica. Autor da dePantagruel e Gargantua, (publi-cadas em 1532 e 1534, respectiva-mente) epopéias heróico-cômicas.

Como escritor, provoca escânda-lo entre os intelectuais e teólogos daépoca. Os heróis Pantagruel e seupai Gargantua são gigantes de ape-tite imenso. Rabelais descreve comdetalhes o exercício das funções fisio-lógicas naturais de seus personagens,pelo que é considerado obsceno. Suaescatologia2 foi usada com fins humo-rísticos. Segundo se dizia, seuPantagruel chegou a vender maisexemplares do que a Bíblia, na época.

Rabelais usa a imaginação popu-lar do espírito medieval e o estilopicaresco para o enfoque crítico dadecadência do seu tempo. Critica,também, o espírito escolástico, osistema de educação, o pedantismomonacal e o dogmatismo daSorbonne, a igreja e as convençõessociais. Antipuritano convicto, ali-

mentou o sonho de uma reformaliberal na igreja e nos costumes. Semnegar o valor do evangelho, preten-deu libertar as pessoas da supersti-ção religiosa. Para os católicos, foiherege; para os protestantes, radi-cal demais. Sua obra teve merecidoreconhecimento póstumo. A obra deRabelais, pode-se dizer, é uma ma-nifestação original de crença no ho-mem, da qual o gigantismo das per-sonagens pode ser considerado umsímbolo.

Não se pode falar de Rabelaissem menção a outro estudioso dele,apaixonado como Febvre. O mun-do retratado nas obras de Rabelaisfoi também estudado pelo teóricorusso Mikhail Bakhtin3, para quem

2 Note-se que o termo “escatologia” não é o mesmoutilizado em Teologia Sistemática, da qual “Escatologia”é o estudo dos últimos acontecimentos, das últimascoisas (do adjetivo grego “éschatos” [escatoV], que sig-nifica “último”, “derradeiro”). Nos escritos rabelaisianos,“escatologia” tem origem no substantivo grego “skór,skátos” (skwr, skatoV), que significa “ fezes”,“excrementos”.3 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Médiae Renascimento: o contexto de François Rabelais. SãoPaulo/Brasília: Hucitec/UnB, 1987. Bakhtin tem exerci-do grande influência, nos últimos anos, no Brasil, prin-cipalmente nos estudos de Linguistica e Literatura. Oestudo da noção de intertextualidade einterdiscursividade, por exemplo, prosperaram a partirda criação bakhtiniana de “polifonia”. A adoção doestudo dos “gêneros”, que afeta o currículo escolarformal de nossos dias, remonta, também, a contribui-ções teóricas do linguista russo. Bakhtin levou tão asério seus estudos sobre o realismo grotesco e sua teoriasobre a polifonia que propôs, a partir da combinação

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a cultura medieval popular se sus-tentava em princípios materiais ecorporais, por ele chamada de “rea-lismo grotesco”: “cultura cômicapopular, de um tipo peculiar de ima-gens e, mais amplamente, de umaconcepção estética da vida práticaque a diferencia claramente das cul-turas dos séculos posteriores (a par-tir do Classicismo). No realismogrotesco [...] o princípio material ecorporal aparece sob a forma uni-versal, festiva e utópica. O cósmi-co, o social e o corporal estão liga-dos indissoluvelmente numa totali-dade viva e indivisível. É um con-junto alegre e benfazejo” (Bakhtin1987, p. 17).

O realismo grotesco tem interes-

se especial pelo corpo, o qual tem apeculiaridade de se abrir ao mundoexterior, com o qual está emsimbiose; o mundo nele penetra edele sai, como o próprio corpo hu-mano “sai” para o mundo, atravésde seus orifícios e excrescências:boca aberta, órgãos genitais, seios,falo, barriga, nariz etc. A essa con-cepção grotesca se vincula a paró-dia medieval, que se inspira em ima-gens corporais para criar visões dealém-túmulo e as lendas de gigan-tes, por exemplo. Havia paródiascom os elementos do “alto”, emcontraposição ao “baixo” corporal.

Paródias litúrgicas e bíblicas e pa-ródias de testamentos faziam partede um mundo lúdico, em que os jo-gos dirigiam as ações e emoções,principalmente os jogos com as pa-lavras, com negações, cujo exemplocélebre é a História de Nemine.Nemo, cuja existência se dá por efei-to de negação, é uma criatura igualao filho de Deus. Assim, Nemo (emlatim “ninguém”) não é uma nega-ção, é um nome próprio. Se a Es-critura diz: Nemo Deum vidit (Nin-guém viu Deus), depreende-se queNemo viu Deus. Ora, o impossíveltorna-se possível para Nemo. Criou-se, então, alguém dotado de um po-der excepcional, inacessível aos mor-tais, pois Nemo sabe o que ninguém

desses elementos, formação do romance, a partir danoção de intertextualidade (no sentido de polifonia).Com isso, a discussão das relações de uma obra sobreoutra se impôs e a conseqüência foi a adoção do prin-cípio da carnavalização como motivação para a forma-ção do romance, dialógico por natureza. A prosa deficção se carnavaliza, no sentido em que se torna diálo-go entre textos: “Bakhtin vai encontrar suas raízes nasátira menipéia, no diálogo socrático, nas escritasdionisíacas ou carnavalizadas que correspondem à lógi-ca libertária do desejo, na encruzilhada entre o sério e orisível [...] que funda a ambivalência do discurso literá-rio, a exprimir um subversivo “desejo do outro” – de sero outro, ou de ser de outro modo, não do modo burroda seriedade, mas do modo astuto do riso que estásempre apreendendo o outro, a alteridade embutidamas nunca inteiramente declarada: carnavalização daseriedade culpada de uma sociedade que simula permitire estimular as oposições mas só as consente na medidaem que elas estiverem desarmadas ou forem domestica-das. (LOPES, 1994, pp. 78-9).

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sabe e faz o que aos demais é proi-bido.

O resultado produzido é a libe-ração de todas as restrições e inter-dições que pesam sobre o homem,consagradas pela religião oficial. Osintermináveis, limitadores e sinistros“ninguém pode”, “ninguém é capaz”,“ninguém sabe” transformam-se emalegres “Nemo pode”, “Nemo é ca-paz”, “Nemo sabe”. Esse jogo é utó-pico e anárquico, como se vê, apre-sentando um Nemo que é o avessodas limitações humanas. Cria novavisão de mundo, o realismo grotes-co, pois olha o universo com novosolhos, relativiza tudo o que existe, epor isso, sugere a possibilidade deuma ordem nova e diferente domundo, para a qual a ambivalênciaé sempre criadora, exemplificada nafigura de velhas grávidas que riem:a morte prenhe, a morte que dá àluz. Com essa renovação, o grotes-co tem a função de liberar o homemdas formas desumanas em que sebaseiam as idéias dominantes sobreo mundo, das quais a morte seja,talvez, a mais amedrontadora.

Bakhtin e Febvre fazem deRabelais o representante de umacultura e de uma época, respectiva-mente. Continuando o enfoque emFebvre, podemos acrescentar que Oproblema da incredulidade no sécu-

lo XVI: a religião de Rabelais é exer-cício de investigação histórica quecombina psicologia coletiva e razãoindividual. Apesar de privilegiar umhomem, o objeto do livro de Febvreé o estudo da psicologia coletiva, poisisolando o indivíduo do clima mo-ral, da atmosfera da época, não sepoderia compreender o século XVI.Para isso, o exame inicial e básico éa atitude daquele século em relaçãoà religião. Depois, sim seria perti-nente perguntar se, de fato, Rabelaisteria sido julgado de forma isentapor seus críticos.

Febvre investiga os poetas dotempo de Rabelais e descobre quenumerosas peças são favoráveis aele ou não levantam a questão reli-giosa. O mesmo ocorre com os teó-logos, esses controversistas: ne-nhum prova o ateísmo de Rabelais(lembremos que “ateu” não tinha osentido que atribuímos hoje).

Que pensava Rabelais da religião?Qual o credo dos gigantes? Nos pri-meiros livros dele havia páginas in-teiras de citações ou alusões evan-gélicas e bíblicas. Se Rabelais eracristão, qual cristianismo professa-va? Pode ele ser consideradoreformador? Por volta de 1532,Rabelais foi considerado “umfomentador da heresia reformada”.Contudo, a piedade gigantal, verifi-

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cou-se, estava mais próxima da re-ligião erasmiana que da religião re-formada, sobretudo na convergên-cia entre eles sobre o papel da fé najustificação. Erasmo, o “Filósofo doCristo”, pregava religião humanista;queria fazer frutificar os dons doEspírito: amor alegria, bondade,paciência, fé, modéstia, em detri-mento da aceitação da centralidadeda fé no processo de justificação.

Mas, afinal, Rabelais era ateu? Pararesponder à pergunta, Febvre apontaque a religião (particularmente, o cris-tianismo) era onipresente no homemmedieval; na vida doméstica, profis-sional, nos pensamentos e comporta-mentos; o tempo, o espaço, o nasci-mento, o casamento, a morte, a peste– tudo a religião dirigia. A igrejaestabelecida era centro das grandesemoções coletivas; o sino tocava, sem-pre, controlando a vida dos homens:repouso, trabalho, prece, deliberação,batismo, enterro. Como não crer? Oshomens que assim viviam eram cré-dulos. Milagres, claro que havia, deDeus ou de Satanás. O sobrenaturalera admitido sem discussão. O impos-sível não existia. Não se recuava dian-te da contradição, pois não havia es-pírito crítico. Seguiam a lógica do “istoe aquilo” e não a do “isto ou aquilo”.Natural e sobrenatural estão em cons-tante comunicação; o universo era po-

voado de demônios.A imprensa no século XVI ser-

via apenas para compilar. Não ha-via, ainda, condições filosóficas nemmateriais para o domínio da ciênciae da dúvida, ainda que metódica.Não se dispunha de armas, nem deinstrumentos adequados para a con-quista científica do mundo. As via-gens marítimas não tinham tido tem-po suficiente para produzir efeitopermanente. A própria “ciência” erauma palavra anacrônica. Para Febvre,o século XVI não foi um século dasluzes da modernidade. Daí, a ênfasena religiosidade – na credulidade,portanto - daquele tempo.

Se Abel Lefranc viu emRabelais o ‘inimigo do Cristo, umateu militante, discípulo de

4 Luciano de Samósata (115[120?]-181?) escreveu qua-se uma centena de obras (quase uma dezena é apócrifa).Inspirou muitos escritores, entre os quais Rabelais eSwift (Viagens de Guliver) e Machado de Assis. Defendiao “riso filosófico” de natureza satírica. Escreveu oDiálogo dos Mortos, uma de suas obras mais famosas,em que reis e nobres, depois de mortos, viram mendigos.Na obra Acusado duas vezes, ele, Luciano é o autor e oréu, acusado pela Retórica e pelo Diálogo. Este, acu-sando, diz que Luciano “lhe arrancou a máscara trágicae respeitável, aplicando-lhe uma outra, grotesca, cômi-ca, satírica, quase ridícula, trazendo-lhe as anedotas, ocinismo [...] que ridicularizavam tudo o que é sério ehonesto [...] Luciano se defende dizendo que [...] oreformou, limpou-o da poeira acumulada e o forçou asorrir, a ser agradável de ser visto; a seguir juntou-lhe acomédia, o que o fez ser apreciado pelo grande público”(Luciano, 1996, p. 17-18). Um personagem freqüentenos Diálogos dos Mortos é Menipo (discípulo de Diógenes),que viveu no século IV a.C. em Gadara (Síria). Criou a“sátira menipéia” e fez da religião e da filosofia epicuristaos principais alvos de suas sátiras.

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Luciano4, Febvre, ao contrário, con-sidera o autor francês do séculoXVI um artista de grande enverga-dura, o primeiro dos grandes ro-mancistas modernos, escritor ori-ginal e – um crente! Ver emRabelais um ateu ou inimigo da re-ligião é julgá-lo com os critérios er-rados. Não se pode avaliar sua obrapelo crivo da religião e muito me-nos da ortodoxia, atual ou do sécu-lo XVI. Suas obras têm valor lite-rário antes de tudo e é com as fer-ramentas próprias da Literaturaque devem ser examinadas.

Afinal, o livro O problema da

FONTES ELETRÔNICAS

Para os dados biográficos de Rabelais foram consultados os sites, em 26 de julho de 2009:www.algosobre.com.br/biografias/francois-rabelais.htmlhttp://pt.wikipedia.org/wiki

OBRAS CITADAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e Renascimento: o contexto de FrançoisRabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/UnB, 1987.LOPES, E. Discurso literário e dialogismo em Bakhtin. In: D. L. BARROS, Dialogismo, Polifornia,Intertextualidade (p. 63-81). São Paulo: EDUSP, 1994.LUCIANO. Diálogos dos mortos. Tradução de Henrique G. Murachco. Edição bilingue. São Paulo:Palas Athena/Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

As obras de Rabelais podem ser encontradas com razoável facilidade. Basta fazer uma consultaà internet para saber em quais livrarias os livros podem ser encontrados e os preços praticados.

incredulidade no século XVI: a reli-

gião de Rabelais é ele também filhoda crença, tendo vindo à luz em ple-na guerra. E também, não se nega,da simpatia pessoal do autor peloherói que destaca. Febvre admiraRabelais. Talvez o que mais admireno seu herói do século XVI seja acrença, ainda que não ajustada aospressupostos da ortodoxia. Mas,não se negue: era crença, de fato, nareligião, no evangelho, em Deus.Isso, admitamos, já é um grandeestímulo para ler o livro. E - quemsabe? - ler, igualmente, as obras deRabelais...

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