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Indexada em:• BBE: Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília, INP)• Latindex: Sistema Regional de Información em Línea para Revistas Científicas de America Latina, el Caribe, España Portugal.Qualis: B2 - Educação

Educação em FocoAno 13, n.15 – julho de 2010

ISSN 1519-3322

Publicação do Centro de Comunicação da Faculdade de Educação - UEMGCampus Belo Horizonte

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Conselho Científico

Almerindo Janela (Universidade do Minho – Portugal), Antônio Carrilo Avelar (Universidade do México), Eneida Maria Chaves (Universidade Federal de São João del-Rey – UFSJ), Francisco Antônio Loyola (Montreal), José Augusto Cardoso Bernardes (Universidade de Coimbra), Adilson Xavier da Silva (UNA/BH), José Carlos Libâneo (Universidade Católica de Goiás – UCG), Júlio César Furtado (Centro Universitário da Associação Brasileira de Ensino Universitário – UNIABEU), Maria Aparecida da Silva (Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET/MG), Maria da Consolação Rocha (Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG), Maria Teresa Machado Duran (Universidade de Camaguey – Cuba), Mauro Henrique Nogueira Guimarães de Abreu (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG), Max Haetinger (Inteligência Educacional e Sistema de Ensino – IESDE), Mírian Paura Sabrosa Zippin Grispun (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ), Patrícia Sadovsky (Villa Dominico – Universidade de Buenos Aires - Argentina), Vera Lúcia Ferreira Alves de Brito (Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG).

Conselho Editorial

Ana Teresa Drumond Rodrigues (Centro Universitário Newton Paiva), Belkiss Alves Nogueira da Fonseca (Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG), Maria Odília de Simoni (Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG), Santuza Abras (Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG).

Educação em Foco – ano 13, n. 15 (julho/2010)Belo Horizonte: Faculdade de Educação/Campus BH/UEMG,1995

v. : il.; 21 x 15 cmSemestralISSN: 1519-3322

Educação – Brasil – periódicos 2 - Educação – América LatinaPeriódicos: I – Faculdade de Educação/CBH/UEMG

COD - 370

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ISSN 1519-3322

Belo Horizonte2010

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Universidade do Estado de Minas Gerais

ReitorDijon Moraes Júnior

Vice-ReitoraSantuza Abras

Chefe de GabineteEduardo Andrade Santa Cecília

Pró-Reitor de Planejamento, Gestão e FinançasAntônio Dianese

Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-GraduaçãoLuzia Gontijo Rodrigues

Pró-Reitora de Ensino e ExtensãoRenata Nunes Vasconcelos

EdUEMG – Editora da Universidade doEstado de Minas Gerais

Avenida Coronel José Máximo - 200 - Bairro São SebastiãoCEP: 36.202-284 - Barbacena - MG

Tel.: (32) 3362-7385 - Fax: (32) [email protected]

CapaCentro Design - ED/UEMG

RevisãoTomaz de Andrade Nogueira

CoordenaçãoDaniele Alves Ribeiro

Projeto gráfico e diagramaçãoMarco Aurélio Costa Santiago

Revisão final e normalizaçãoDaniele Alves Ribeiro

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Faculdade de Educação – Campus Belo Horizonte(FaE/CBH) – UEMG

Diretor do Campus Belo HorizonteRogério Bianchi Brasil

Diretora da FaEDolores Maria Borges de Amorim

Vice-Diretora da FaELélia Lombardo

Revista Educação em Foco

Centro de Comunicação (Cenc) da FaECBH/UEMG

Rua Paraíba - 29 - sala 704Belo Horizonte - MG - Cep: 30.130-140

Tel.: (31) 3239-5912

Coordenador do Cenc e editor responsávelTomaz de Andrade Nogueira

SecretáriaMyriam Claudino

Linha editorial

A revista Educação em Foco é editada semestralmente pelo Centro de Comunicação da Faculdade de Educação (FaE) - Campus Belo Horizonte - UEMG - através de seu curso de Pedagogia. A publicação destina-se à divulgação de trabalhos relacionados a assuntos educacionais, sobretudo aqueles ligados à escola pública.As opiniões emitidas nos artigos são de responsabilidade dos autores. Permite-se a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desde que citada a fonte.

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Sumário

Editorial

A pesquisa em livros didáticos de ciênciase as inovações no ensinoResearch on science textbook and innovations in teachingPaulo Sérgio Garcia,Nelio Bizzo

Experiência docente e desafios extremos:aproximações entre experiência de sie tempos de desilusãoTeaching experience and challenges extremes:approaches between self experience andexperience times of disillusionAndré Marcio Picanço Favacho

Infância, criança e a experiência humanado tempoChildhood, child and human experience of timeLaurici Vagner Gomes

Análise de uma proposta de avaliação institucionalpara a escola e para instituições de educação infantilAnalyzing a methodology for institutional evaluationon pre-schools and elementary schoolsVanda Mendes Ribeiro,Cláudia Oliveira Pimenta

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Sumário

Pacto Federativo e o Plano de Cargos, Carreirae Remuneração dos Profissionais da Educação:o caso do estado do ParáFederative pact and Career Plan, Career andRemuneration of education professionals: the case of ParáRosana Maria Oliveira Gemaque,Bruno Cordovil Picanço,Danielle Cristina de Brito Mendes

Violência na infância: caminhos trilhadosem discursos de “grito mudo”Violence in childhood: paths taken in discoursesof “silent cry”Lucileide Malaguth Colares,Daniela Aparecida Oliveira,Isabela Parada

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EditorialA Faculdade de Educação e o Centro de Comunicação inovam

em sua 15ª edição da revista Educação em Foco ao estabelecer parcerias com órgãos do sistema público municipal. A Prefeitura Municipal de Caeté responsabiliza-se por esta edição, ilustrando a capa e apresentando em destaque um dos pontos de referência cultural de sua cidade.

Tais parcerias objetivam levar um pouco da cultura, da arte e da produção de municípios mineiros a diferentes e diversos contextos, difundindo resultados de estudos e pesquisas realizadas por pesquisadores no campo de educação, em âmbito municipal, nacional e internacional.

Esse é o compromisso assumido pela universidade: socializar suas produções, difundir conhecimento, instigar reflexões na busca constante por uma educação de qualidade para uma sociedade mais humana e solidária.

A profundidade da(s) crise(s) da educação na atualidade nos impulsiona a pensar nas relações entre educação e cultura, nos significados das escolhas e opções por materiais didáticos e, em decorrência delas, a sutileza da disseminação de ideias, valores, conceitos e concepções no âmbito das instituições brasileiras escolares e não escolares. Os desafios experienciados pelos docentes em “tempos de desilusão” se transformaram em um convite à reflexão e responsabilização do educador para com o educando, a “preservação da vida” e a “continuidade do mundo”... Desafios esses apresentados nesta 15ª edição da Educação em Foco.

Reafirmando o compromisso e o empenho da Faculdade de Educação e do Centro de Comunicação em contribuir para a reflexão, a formação e a ação propositiva em educação, gestão da educação e suas interfaces com a cultura e com as políticas educacionais, nosso agradecimento aos autores e colaboradores desta edição, que compartilham conosco esse compromisso.

Paulo Sérgio Garcia e Nélio Bizzo, autores do artigo “A pesquisa em livros didáticos de ciência e inovações no ensino”,

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apresentam e defendem a concepção de que as inovações no ensino dependem de novos estudos e da criatividade de seus propositores. Tal afirmativa está fundamentada no resultado da pesquisa que eles realizaram sobre o livro didático de ciências e da constatação de que existem poucos estudos no Brasil com foco em outros aspectos do livro didático de ciências. Além do objeto de investigação - a avaliação dos conteúdos, é evidente a ausência de pesquisas sobre outras categorias de análise e estudos sobre livro didático, com destaques para: os autores, editores, o uso do livro didático pelos professores e alunos, a relação do livro didático com a esfera escolar. Um alerta dos autores: muito há para ser investigado, considerada a complexidade do objeto.

Em “Experiência docente e desafios extremos: aproximações entre experiência de si em tempos de desilusão”, André Marcio Picanço Favacho instiga o leitor a pensar a experiência docente como um processo no qual o professor se experimenta e transforma a si e ao outro diante dos dilemas que se apresentam, constituem a si e a própria realidade social escolar.

Dos recorrentes estudos e pesquisas sobre a docência, sua formação e seus saberes - estudos estes ainda não esgotados, mas plenos de desafios, dúvidas e inquietações -, o autor faz um convite inusitado aos estudiosos do campo da docência: desfocar suas lentes do “recorrente” e buscar novos percursos de investigação. “Exatamente em benefício do que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora: ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho” (Arendt).

Dos estudos fundamentados em Hanna Arendt, Nietzche, Foucault, Heráclito, Platão e outros, Lauruci Vagner Gomes, em seu artigo “Infância, criança e a experiência humana do tempo”, provoca o pensar a “criança” como portadora de “outra” experiência do tempo, pensar ainda um “mundo da criança” independente, próprio, autônomo, “novo’’ diante do velho “mundo” que a recebe. Esse pensar requer dissolução de conceitos e imagens construídas da

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criança como “adulto em miniatura”, um “vir-a-ser” na construção do conceito de infância. Da análise do pensamento dos teóricos que fundamentam esse estudo, vão se delineando os marcos do pensamento sobre criança, infância e educação.

Os instrumentos “Indicadores da qualidade na educação” e “Indicadores da qualidade na educação infantil”, elaborados, recomendados e incorporados como parte das políticas públicas do Ministério da Educação, constituem o objeto de estudo e análise das autoras Vanda Mendes Ribeiro e Cláudia Oliveira Pimenta no artigo “Análise de uma proposta de avaliação institucional para a escola e para instituições de educação infantil”.

A análise se sustenta nos pressupostos de que nas últimas décadas, a avaliação tem se tornado um procedimento relevante mundialmente em diversos contextos educativos e formativos. Na tendência globalizada dos processos e propostas avaliativas externas e internas que têm gerado um movimento de criação/produção de materiais e subsídios para sua aplicação nem sempre confiáveis é que o Brasil nos últimos anos procurou disseminar uma cultura de avaliação - avaliações sistêmicas. A partir desses pressupostos, as autoras apresentam o desenrolar metodológico para a operacionalização da “autoavaliação” institucional.

Subsidiaram o estudo realizado por Rosana Maria Oliveira Gemaque, Bruno Cordovil Picanço e Danielle Cristina de Brito Mendes apresentado no artigo “Pacto Federativo e o Plano de Cargos, Carreira e Remuneração dos Profissionais da Educação: o caso do estado do Pará”, a análise das políticas públicas para a educação com ênfase na análise das Diretrizes Nacionais para o Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração dos Profissionais do Magistério (PCCR) da Educação Básica. Os autores consideraram a heterogeneidade e complexidade de uma política que atenda à diversidade dos 26 estados brasileiros num Pacto Federativo para definir a carreira e a remuneração dos professores.

O estudo elaborado por pesquisadores do estado do Pará descreve a realidade das negociações efetivadas pelos profissionais

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da educação da rede de ensino estadual, pelo governo do Pará e pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Pará (SINTEPP). Os autores do estudo sinalizaram para a necessidade de maior e mais efetiva interlocução entre os estados da Federação na perspectiva da implantação e implementação de políticas com vistas à consolidação de um Pacto Federativo.

“Violência na infância: caminhos trilhados em discurso de ‘grito mudo’”. Nesse artigo, Lucileide Malaguth Colares, Daniele Aparecida Oliveira e Isabela Parada abordam a violência na perspectiva de análise do discurso da infância a partir da escuta das crianças submetidas a diferentes e diversas formas de violência. O estudo realizado no município mineiro de Sabará acena com a possibilidade de análises da infância vitimizada em todo o território nacional.

À complexidade do tema, soma-se a perplexidade vivenciada por diversos atores sociais: educadores, pais e crianças diante do contexto sociopolítico, econômico e educacional atual e o sentimento de impotência frente às mazelas sociais apontadas na pesquisa e que podem ser, respeitadas as especificidades/pecularidades nacionais e internacionais, projetadas mundialmente. Pensar a infância para além do discurso sobre a infância exige a análise inclusive das instituições, dos movimentos sociais e das entidades e associações governamentais que têm prioritariamente a infância como objeto/foco de investigações, proposições, atenção e cuidados.

Este é o intuito do grupo de pesquisa CONTRA - Violência na Infância. A pesquisa traz um alerta, expõe a fragilidade da criança brasileira e a necessidade da consolidação de redes sociais que, articuladas às instituições de ensino superior, escolas de educação básica e demais instituições e agentes sociais, promovam interlocuções e desenvolvam pesquisas na perspectiva da construção da dignidade do “outro” para o “outro” e com o “outro”.

Dolores Maria Borges de AmorimDiretora da FaE/CBH/UEMG

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A pesquisa em livros didáticos de ciências e as inovações no ensino

Paulo Sérgio Garcia1

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Nelio Bizzo2

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Resumo

Este estudo tem o objetivo de analisar a pesquisa sobre os livros didáticos de ciências (LDC) no Brasil e em alguns países e paralelamente relacionar esses resultados com as possibilidades de inovação no ensino. Foram analisados 77 estudos de 24 países. Nesses artigos, observamos os objetivos do estudo, o tipo de metodologia utilizada, a área de estudo e o assunto investigado, o número de pesquisadores envolvidos, o nível educacional do estudo e a nacionalidade. Os resultados mostraram que a maioria dos estudos dos outros países (86,9%) e 90% do Brasil tinham o foco nos conteúdos do LDC. Essas pesquisas estavam mais concentradas na área de biologia (42,3%) e centralizadas no nível secundário. Os pesquisadores utilizaram principalmente a metodologia qualitativa. A maioria dos estudos analisados era da França, Tunísia e Brasil. Os resultados deste estudo são relevantes para nortear futuras pesquisas em relação a esse material.

Palavras-chave: Livro didático de ciências; ensino de ciências; pesquisa em livros didáticos.

1 Doutor em Educação - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).2 Livre docente e professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professor dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Educação (USP).

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Introdução

O livro didático (LD) se constitui num objeto que envolve grandes debates por parte dos professores, especialistas, pais, docentes de universidades, entre outros, por sua relevância no ensino de ciências. No entanto, ainda não dispomos de muitas pesquisas sobre toda sua cadeia de desenvolvimento, envolvendo agentes e usuários desde a elaboração, fabricação, modos de difusão, financiamento até sua utilização. Essas informações são relevantes e úteis no sentido de promover inovações no ensino de ciências (EC).

Em alguns aspectos, as pesquisas sobre o LD já avançaram, trazendo contribuicões significativas. Pesquisadores já agruparam informações valiosas como, por exemplo, aquelas que descrevem o livro didático como um instrumento de poder a serviço de alguma ideologia (CHOPPIN, 2004); ou que consideram o livro didático de ciências (LDC) como uma produção humana e, portanto, cultural, englobando vários discursos (MARTINS, 2003); como o principal instrumento norteador do trabalho do professor, dirigindo e controlando de certa forma o currículo, os conteúdos, as relações didáticas, as práticas de aprendizagem e também a avaliação no ensino de ciências (GAYAN; GARCIA, 1997; BIZZO, 2007; BIZZO et al. 2007); e como o recurso mais utilizado no EC pelos professores (CARNEIRO; SANTOS; MOL, 2005).

O livro didático de ciências tem sido estudado em diferentes partes do mundo e, segundo Taskin (2007), essas pesquisas têm sido realizadas a partir de quatro grandes categorias que se relacionam aos conteúdos, às concepções educacionais, à apresentação visual e à linguagem contida no material. No entanto, Choppin (2004) afirma que a maioria dos trabalhos realizados podem ser agrupados em duas grandes categorias: 1) aquelas em que o livro didático é concebido como um documento histórico em que são analisados os conteúdos em busca de informações estranhas ao livro (forma de apresentação de determinados conteúdos, representação ideológica de um determinado tempo)

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ou as que se relacionam exclusivamente com o conteúdo ensinado; 2) aquelas que consideram o livro como um objeto físico (deixando de lado os conteúdos) e analisam questões como fabricação, comercialização, distribuição ou usos do material.

No Brasil, estudos anteriores têm mostrado que a maioria das contribuições das pesquisas advindas do LDC relaciona-se à área de conteúdos. Elas centralizam-se em conteúdos focados nas análises de conceitos, investigando, por exemplo, questões sobre os erros conceituais, a ideologia contida nos materiais, a imagem da ciência (FRACALANZA, 1993; CASSAB, 2003; FERREIRA; SELLES, 2003; CARNEIRO; SANTOS; MOL, 2005).

No entanto, por outro lado, poucos estudos têm se voltado para a compreensão de outros aspectos tais como: desenvolvimento histórico do material, edição escolar (a questão do mercado e dos produtos), relação do livro didático com a esfera escolar, escolha do livro pelos professores, recepção e uso por parte dos estudantes, relação dos docentes com o material, formação de professores para o uso, modos de uso na sala de aula e possíveis formas de inovação no ensino.

A falta de pesquisas sobre esses outros aspectos do LDC representa uma barreira para inovações no ensino de ciências e para a aprendizagem dos alunos na medida em que pesquisas desenvolvidas poderiam alavancar inovações e mudanças.

Neste estudo, pretendemos analisar a pesquisa sobre o livro didático de ciências em alguns países, incluindo o Brasil, com o intuito de verificar as regularidades, semelhanças e diferenças existentes nos processos de investigação. Paralelamente, almejamos relacionar esses resultados às possibilidades de inovação no ensino.

O livro didático de ciências e as inovações no ensino

Os pesquisadores já fizeram grandes progressos em descrever e relatar valiosas informações em relação ao livro didático. Choppin (2004), por exemplo, mostrou que o livro pode ser considerado

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um instrumento de poder, servindo a uma ideologia. Isso, entre outras razões, faz com que muitos países exerçam algum tipo de controle sobre ele. Devido à complexidade do livro, os governos de muitos países no mundo exercem algum tipo de controle sobre o seu desenvolvimento, financiamento, distribuição e, em muitos casos, até mesmo sobre seus usuários.

Esse controle, às vezes, é político e ideológico, outras, é justificado para fins científicos ou pedagógicos. No Brasil, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) avalia, através de seus especialistas, as obras submetidas pelas editoras e publica resenhas dos livros aprovados em um “Guia do livro didático”, que chega até as escolas públicas brasileiras. Nesse processo, os professores são os agentes que selecionam os livros que desejam receber de forma gratuita em suas escolas, para utilização de seus alunos (BIZZO, 2007). Nesse processo, o MEC investiu, entre 2009 e 2010, quase dois bilhões na compra de livros para a educação básica (FNDE, 2011), valores que só são superados por programas de merenda escolar (FNDE, 2010).

A pesquisa já demonstrou que o LD é um objeto de estudo altamente complexo e envolve agentes e usuários em uma cadeia que vai desde a elaboração, fabricação, autorização, modos de difusão, financiamento, procedimentos de seleção até a utilização do material. O livro, portanto, situa-se, como afirmou Choppin (2004), na confluência de múltiplas interações, por vezes conflituosas, entre os agentes e os usuários. Dessa forma, ele constitui-se em um importante indicador de forças que se formam num dado momento social. Segundo o mesmo autor, o LD pode ser considerado um elemento cultural ou ideologico, servindo, dentre outras coisas, para a unificação nacional e para a uniformização linguística, constituindo-se num instrumento de poder que influencia crianças e adolescentes, na medida em que os livros didáticos são reproduzidos e distribuídos em todo o território de um país.

As pesquisas de Martins (2003) também já mostraram que o livro didático de ciências caracteriza-se como um objeto cultural

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situado, dentre outros, entre o discurso científico, pedagógico e midiático, envolvendo uma forma de negociação entre autor, cientista, professor, aluno e pais.

O livro didático como uma produção humana serve a diversos discursos de seus múltiplos agentes e usuários, situa-se entre diferentes forças, reúne parte do imenso conhecimento produzido pela humanidade, transmitindo informações verbais e não-verbais. Ele está envolvido por teorias educacionais e científicas, está impregnado de ideologias e, portanto, tanto pode formar como deformar aqueles que fazem uso dele. O LD exerce ainda um papel importante na construção do conhecimento dos alunos, carrega as marcas do discurso científico e escolar e, dessa forma, pode ser considerado um objeto cultural localizado num determinado tempo.

Dados de outros estudos também já nos mostraram que o LDC se constitui na principal ferramenta utilizada pelos professores em suas aulas. A centralidade do livro nas aulas (CARNEIRO; SANTOS; MOL, 2005; BIZZO, 2007) mostra a importância atribuída pelos professores a esse material, incluindo seu papel estruturante e estruturador nas atividades em sala de aula (MARTINS, 2003), ou seja, o professor a partir do LDC organiza as tarefas, os trabalhos e muitas vezes as pesquisas a serem executadas por seus alunos. O livro assume também uma posição de elemento controlador do currículo (GAYAN; GARCIA, 1997; BIZZO, 2007; BIZZO et al, 2007), pois para muitos professores, ele dirige os conteúdos a serem trabalhados no dia a dia.

Por sua importância em relação sobretudo à aprendizagem dos alunos, tem crescido o número de pesquisas sobre o LDC em várias partes do mundo. Em 2007, por exemplo, aconteceu um encontro internacional sobre o LDC (International meeting “critical analysis of school science textbook”) promovido pela Internacional Organization for Science Techology Education (IOSTE), na Tunísia. O evento reuniu pesquisadores de muitos países. No contexto europeu, o projeto de investigação intitulado: Biohead-Citizen - Biology, Health and Environmental Education for better Citizenship é outro exemplo da

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importância dos livros didáticos de ciências. O projeto funciona a partir de uma análise comparativa de diferentes elementos dos LDC de 19 países.

No Brasil, a pesquisa acadêmica sobre o LDC cresceu muito nas últimas décadas. Dados de Fracalanza e Megid Neto (2006), tendo como objeto de análise os trabalhos sobre o LDC conforme os períodos em que esses foram produzidos, mostraram que entre as décadas de 1970 e 2000 foram produzidos 76 trabalhos entre teses, dissertações e projetos de ensino.

Em muitas partes do mundo, o LDC tem sido analisado. Por exemplo, nos Estados Unidos, Hubisz (2003) avaliou os livros didáticos utilizados no ensino fundamental II (elementary school) e identificou, entre outras coisas, erros conceituais, ilustrações inadequadas, discussão inapropriada para a faixa etária e, em algumas edições, a inexistência de atividades experimentais. No contexto europeu, Knain (2001) realizou estudos com livros didáticos na Noruega e revelou que os aspectos ideológicos necessitavam de uma análise mais cuidadosa. Ele mostrou que a imagem da natureza da ciência descrita para estudantes nos materiais mostravam os cientistas trabalhando de forma individual e realizando descobertas através de experimentos.

Também na Europa, alguns dos aspectos mais estudados no LDC relacionam-se, entre outras coisas, às abordagens de conceitos básicos de biologia, que podem fornecer informações sobre os tipos de interações entre o conhecimento científico, as práticas sociais e sistemas de valores (BERNARD; CLÉMENT, 2005); aos obstáculos didáticos que possam surgir entre os alunos devido à manutenção do foco tradicional (CLÉMENT, 2005); ou à geração desse mesmo tipo de obstáculo devido ao uso de imagens inadequadas ou enganosas (CARVALHO; SILVA; CLÉMENT, 2005). Na América do Sul, na Venezuela, Niaz et al. (2002) mostraram que a abordagem tradicional de livros didáticos de química destaca detalhes experimentais, no entanto, ignora o modo como a ciência é construida. Na análise desses autores, os livros não incluiam as

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perspectivas histórica e filosófica, aspectos que poderiam tornar a aprendizagem mais significativa para os alunos.

No contexto brasileiro, alguns estudos têm demonstrado que a maioria das pesquisas sobre o LDC se concentra no conteúdo das ciências. Essas pesquisas têm o foco em erros conceituais, invetigando, por exemplo, a veracidade, apresentação ou organização de um conceito científico. Outros analisam a estrutura do texto, a questão da sintaxe ou a linguagem do material. Há aqueles que investigam ainda os aspectos ideológicos transmitidos muitas vezes subliminarmente em forma de valores para os alunos ou a imagem da ciência que é propagada para os mesmos (CASSAB, 2003; CARNEIRO; SANTOS; MOL, 2005; FERREIRA; SELLES, 2003; FRACALANZA, 1993).

Esse tipo de análise é, sem dúvida, proveitosa para a realidade brasileira. No entanto, apesar da importância da avaliação de conteúdos realizada por muitos pesquisadores com o intuito de denunciar as deficiências do LDC e sugerir soluções para ampliar a qualidade desse material (BIZZO, 1996; PIMENTEL, 1998; PRETTO, 1985), existem poucos estudos com foco em outros aspectos do LDC, incluindo autores, editores, custos, relação do livro didático com a esfera escolar, escolha do material, questão do uso pelos professores e alunos, formação de professores para a utilização e formas de inovação para o ensino.

Isso significa que ainda temos uma compreensão limitada de todos os elementos envolvidos no desenvolvimento do LDC. Essa falta de compreensão causada pela pouca investigação é em certa medida um obstáculo, pois se soubéssemos mais sobre todos os aspectos, novas ideias e inovações poderiam ser implementadas no ensino de ciências. Apesar de seu caráter polissêmico, a inovação está atrelada a um conjunto de intervenções, decisões com certo grau de intencionalidade e sistematização, que visam a transformar as atitudes, ideias, culturas, conteúdos, modelos e práticas pedagógicas (CARBONELL, 2002; CARDOSO, 2003; FULLAN, 2001).

Ao longo do ano, muitas inovações surgem nas escolas. Garcia

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(2009), num estudo sobre a inovação como estratégia de formação contínua de professores de ciências, mostrou que a maioria daquelas que chegam às escolas tem caráter externo e vertical, portanto, são impostas.

As inovações em geral podem ser consideradas internas quando têm origem na própria escola e externas quando se originam fora dela. Elas podem ter sentido vertical, quando surgem de cima para baixo, sendo impostas, ou horizontais, de baixo para cima.

São internas e verticais, dentre outras, aquelas inovações em que os mentores são os coordenadores pedagógicos, o diretor da escola, a orientadora educacional, os inspetores de alunos, a Associação de Pais e Mestres etc. São horizontais e internas aquelas propostas pelos professores, pelos alunos. São verticais e externas aquelas propostas pelo Ministério de Educação, secretarias de educação, mídia, avanço das tecnologias, universidades, através das pesquisas; empresas fabricantes de tecnologias, exigências do mercado de trabalho, mudanças de legislação; reformas educacionais, pressão dos pais, ideologia daqueles que estão no poder (GARCIA, 2009). Há uma variedade de origens das inovações que para serem implementadas dependem do professor, da cultura da escola, de líderes etc. No entanto, inovações horizontais e internas que surgem a partir dos professores e das necessidades pedagógicas são aquelas que apresentam maior probabilidade de sucesso e de continuidade (CARBONELL, 2002).

Assim, as inovações também têm origem e são construídas por meio das pesquisas dentro das universidades. No entanto, se as pesquisas são limitadas ou focam somente um ou outro aspecto do LDC, as possibilidades de inovação no ensino ficam reduzidas.

Existem três possibilidades de inovação no ensino: aquelas relacionadas à utilização de novos materiais, currículos e tecnologias; o uso das novas abordagens de ensino, estratégias e atividades; e a possibilidade de mudança nas crenças e pressupostos que são subjacentes às práticas pedagógicas (FULLAN, 2001, p. 39).

Considerando essas três dimensões propostas por Fullan,

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quanto às inovações, fomentadas por pesquisas acadêmicas, é necessário conectá-las de forma harmoniosa para que ocasionem mudanças e melhorias prolongadas. Garcia afirma que

não é aconselhável a introdução de uma nova tecnologia, por exemplo, sem, paralelamente, levar os professores ao domínio de novas práticas pedagógicas adequadas ao uso dessa tecnologia e, ao mesmo tempo, alterar suas concepções em relação ao ensino e à aprendizagem (GARCIA, 2010, p. 112).

As inovações sem a combinação dessas três dimensões acabam ficando na superficialidade (FULLAN, 2001).

A partir dessa afirmação de Garcia e considerando, por exemplo, o professor com usuário, ou seja, com o foco no ensino, os estudos sobre o LDC, com intuito de fomentar e promover inovações e mudanças na prática do professor em relação ao uso desse material, deveriam ser integrados e ter novos desenhos.

Uma articulação de pesquisa integrada, a fim de ser utilizada para a construção de inovações no ensino, poderia explorar ao mesmo tempo, por exemplo, as concepções dos professores em relação à introdução de um novo livro, capítulo, ou até mesmo de um conceito a partir de novas estrategias de ensino.

Os estudos tendo o professor como usuário do material são limitados e alguns poucos que são produzidos não são integrados a fim de fomentar inovações no ensino de ciências, considerando as três possibilidades de inovação mencionadas. Carneiro, Santos e Mol afirmam que uma das

funções do livro didático é a de dar suporte ao processo de ensino aprendizagem. No entanto, se conhece muito pouco sobre o cotidiano desse recurso na sala de aula e sobre as concepções dos professores e dos alunos a respeito do mesmo” (CARNEIRO; SANTOS; MOL, 2005, p. 129).

Os autores afirmam ainda que é preciso a organização e o desenvolvimento de um maior número de pesquisas que se

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ocupem dos usuários desse material, pois em nosso país o número de estudos é pequeno.

Metodologia Este estudo tem o objetivo de analisar a pesquisa sobre o livro

didático de ciências no Brasil e também em alguns outros países. Pretendemos verificar as regularidades, semelhanças e diferenças existentes nesse processo de investigação. Paralelamente, almejamos relacionar esses resultados às possibilidades de inovação no ensino.

Analisamos 77 estudos de 24 países retirados dos anais do encontro internacional Critical analysis of school science textbook promovido pela International Organization for Science and Technology Education (IOSTE) e acontecido na Tunísia, em fevereiro de 2007.

A coleta desses dados foi escolhida pelo fato de o evento ser quase que exclusivamente destinado a análise do livro didático de ciências, reunindo pesquisadores de diversos países que se interessam pelo tema. Coletando dados diretamente desses anais, podemos, de certa forma, eliminar questões tais como diferentes fontes de coleta dos artigos para serem analisados.

Dos mais de 150 trabalhos apresentados, 77, de 24 países, foram selecionados a partir de dois critérios: a) o estudo deveria estar relacionado com as disciplinas tradicionais das ciências (biologia, química e física); b) o estudo deveria estar centralizado naquilo que no Brasil chamamos de ensino fundamental e médio (nível educacional elementary school, alunos de 6 a 14 anos, e secondary school, estudantes de 15 a 18 anos).

A análise dos dados foi baseada na abordagem da teoria fundamentada (CRESWELL, 2002; STRAUSS; CORBIN, 1990), uma abordagem de tradição qualitativa. Esse enfoque relaciona-se à teoria que é desenvolvida de forma indutiva a partir dos dados coletados.

Em alguns casos, os artigos pertenciam a dois ou mais pesquisadores de mais de um país. Dessa forma, o número de

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nações participantes é maior do que o número de artigos analisados. Sendo assim, 20,4% dos estudos vieram da França; 19,5% da

Tunísia; 9,7% do Brasil; 7,8% de Portugal; 5,8% da Grécia e da Turquia; 2,9% do Líbano, Espanha, Canadá e Polônia; 1,9% de Marrocos, Hungria, Itália, Cyprus, Alemanha e África da Sul; 1,0% dos Emirados Árabes, Senegal, Suécia, Coréia do Sul, Finlândia, Lituânia, Eslovênia e Eslováquia.

A Europa é o continente de maior representação de países, no entanto existem artigos analisados de outros continentes também. Um procedimento adotado em relação às análises foi o de separar os artigos em dois grupos: os provenientes do Brasil (dados do Brasil - DB) e aqueles dos outros países (dados de outros países - DOP).

Inicialmente realizamos a apreciação com uma leitura global e generalizada de todos os artigos. Nessa primeira fase, utilizamos a codificação aberta por meio da segmentação dos dados para permitir as análises pretendidas. Na segunda etapa, por meio dessa filtragem dos dados e análises, com a utilização de códigos e descritores, identificamos as categorias abrangentes. A partir desses códigos classificados em categorias, procuramos por regularidades, similaridades e diferenças entre os artigos. Por fim, reduzimos as categorias para a identificação de temas comuns.

Estabelecemos quatro categorias: 1) Autores e editores - esse grupo foi dividido em duas subcategorias: a) critérios para a escolha de conteúdos conceituais; b) critérios para a escolha das ilustrações. Nessas subcategorias, agrupamos as pesquisas desenhadas para saber quais os critérios foram utilizados na seleção de conhecimentos e de imagens, mapas, gráficos incluídos nos livros didáticos. 2) Professores como usuários - esse grupo foi dividido em duas subcategorias: a) o processo de escolha dos livros didáticos; b) as formas de utilização do LDC em sala de aula. Nessas categorias, reunimos estudos cujos objetivos eram respectivamente conhecer os critérios utilizados pelos professores para escolher o material e como os professores utilizavam esses materiais em sala de aula.

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3) Alunos como usuários - esse grupo também foi dividido como as categorias acima: a) os modos como os LDC são usados, que reuniu os trabalhos que investigaram como os alunos utilizaram o material em sala de aula; b) aprendizagem do aluno, em que foram agrupadas as pesquisas que procuraram compreender aspectos da aprendizagem dos estudantes relacionados a determinados conteúdos e conceitos contidos nos livros didáticos. 4) Conteúdo do LD - esse grupo foi dividido em cinco subcategorias: a) conteúdos conceituais, aqui agrupamos os trabalhos que investigaram a apresentação de conceitos (por exemplo, como um conceito é apresentado em um determinado capítulo do livro), organização de conceitos (por exemplo, como um ou mais conceitos são organizados para serem apresentados aos alunos), erros conceituais (por exemplo, análise do número de erros encontrados no livro), transposição didática (por exemplo, como um conhecimento científico é transformado para ser ensinado em sala de aula), estrutura do texto (por exemplo, como os conceitos são organizados e apresentados na estrutura de linguagem), sintaxe (por exemplo, como o palavras em uma frase e as sentenças são organizadas de modo a auxiliar a compreensão do aluno) e linguagem (por exemplo, como a linguagem é organizada no material); b) a ideologia e os valores do livro (por exemplo, como os valores são transmitidos); c) imagem da ciência, aqui agrupamos os trabalhos que retratavam a imagem da ciência; d) ilustrações (por exemplo, como gráficos ou mapas podem ajudar os estudantes a entender o contexto); e) concepção de ensino (por exemplo, como é explorada a concepção de educação no material). Quando um estudo era incluído nessa última categoria, também analisamos a área do estudo (física, química, biologia), o assunto e o nível de escolaridade.

A fim de detalhar ainda mais os dados, os trabalhos incluídos na subcategoria “ideologia e valores” (b) e “imagem da ciência” (c), que de uma maneira ou de outra também analisaram conteúdos, foram separados da subcategoria “conteúdos conceituais” (a). No entanto, na análise global das frequências, as subcategorias (b) e

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(c) foram incluídas na subcategoria (a). Um mesmo estudo algumas vezes apresentava mais de um

objetivo e, portanto, ele foi incluído em mais de uma categoria, o que explica a diferença entre o número total de estudos (N=77) e a frequencia dos estudos considerados (n=140).

Analisamos também, em todos os artigos, o tipo de metodologia utilizada, o número de pesquisadores envolvidos na pesquisa, o nível educacional em que o estudo estava localizado e a nacionalidade da pesquisa.

Resultados e discussão

Os resultados são apresentados inicialmente de acordo com as categorias e subcategorias. Os dados de outros países (DOP) e do Brasil (DB) estão sintetizados na TAB. 1 e TAB. 2.

Categorias Subcategorias Frequência

Autorese editores

Professorescomo usuários

Estudantescomo usuários

Conteúdodo LD

Total

1

2

3

4

Critério para a escolhados conteúdos conceituais

Critérios para a produção das ilustrações

O processo de escolha do LDC

Modos de uso do LD na sala de aula

Usos do LDC

Aprendizagem do aluno

Conteúdos conceituais

Ideologia e valores

Imagem da ciência

Ilustrações e imagens

Concepção educacional

01

01

02

07

02

04

50

18

02

33

10

130

TABELA 1Categorias e frequências dos outros países

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TABELA 2Categorias e frequências da realidade brasileira

Subcategorias

O processo de escolha do LDC

Conteúdos conceituaisConcepção educacional

Categorias

Professores como usuários

Conteúdodo LD

Total

Frequência

01

0801

10

2

4

Existem diferentes tipos de pesquisa sobre livros didáticos de ciência em diversos contextos socioculturais. Os dados possibilitaram ampliar os debates e as discussões sobre a atual situação das pesquisas sobre o LDC no Brasil e em alguns países.

Existem poucos estudos focando as categorias 1, “autores e editores” e 3, “estudantes como usuários”, nos países analisados. No Brasil, por exemplo, na amostra investigada, não encontramos nenhum.

Tendo como foco os professores como usuários desse material, poucos estudos (09, DOP) e (01, DB) foram encontrados nos dados analisados. De acordo com Carneiro, Santos e Mol (2005), apesar da existência de um grande número de estudos que investigam os livros didáticos de ciências, o número de pesquisas examinando, por exemplo, as concepções dos professores e alunos em relação a esse material ou o cotidiando do LDC na sala de aula ainda é inexpressivo.

É possível ver que a maioria dos estudos dos DB (90%) e dos DOP (86,9%) concentrou-se nos conteúdos do LDC (categoria 4). Dentro dessa categoria, nos dados DOP, quase 44,3% investigaram o conteúdo conceitual; 29,2%, as ilustrações e imagens, e 8,9% examinaram a concepção educacional do livro de ciências. Quanto à realidade brasileira, observamos que ela não diverge muito: 88,9% dos estudos estão nos conteúdos conceituais e 11,1%, na concepção de educação do material.

Esses resultados apresentados mostram que em muitos países

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a pesquisa sobre o LDC está assentada nos conteúdos, sobretudo, nos conceituais. A realidade brasileira também apresentou a mesma característica. Esse resultado já havia sido sinalizado no Brasil através de alguns estudos (CASSAB, 2003; CARNEIRO; SANTOS; MOL, 2005; FERREIRA; SELLES, 2003; FRACALANZA, 1993; JOHNSEN, 1996). Assim, essa característica da pesquisa relacionada aos conteúdos não é somente uma perspectiva local, mas também de vários outros países.

O foco prioritário das pesquisas na avaliação dos conteúdos conceituais nos permite somente uma compreensão limitada de todos os elementos envolvidos no desenvolvimento do LDC. Esse foco tem sua justificativa relacionada ao papel dos conteúdos e à sua exatidão no ensino de ciências. Isso é importante no contexto brasilerio devido às deficiências desse material. Essas deficiências já foram apontadas por muitos pesquisadores que propuseram melhorias na qualidade (BIZZO, 1996; PIMENTEL, 1998; PRETTO, 1985). No entanto, é possível dizermos que há ainda um longo caminho para se afirmar que a pesquisa pode trazer uma compreensão ampla e profunda do que tem sido considerado uma abordagem “precisa” para alguns conceitos. A simples comparação com versões acadêmicas muitas vezes não é razoável, já que não se considera os procedimentos de transposição didática, por exemplo.

Em relação à área do estudo, as pesquisas estavam distribuídas da seguinte forma: 42,3% em biologia, tendo como temas mais estudados: educação sexual, educação ambiental e ecologia; 15,5% em Física, explorando temas como energia; 6,9% em química, examinando temas como gases e soluções; 12,7% em ciências em geral.

Os dados também mostraram que um pequeno grupo de pesquisadores tem se dedicado a entender como as imagens, fotos e ilustrações são apresentadas; como elas podem ajudar na aprendizagem dos alunos ou quais os valores são transmitidos por elas.

Em relação ao nível de escolaridade em que o estudo estava

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envolvido, 22,2% estavam centralizados no ensino fundamental (alunos de 6 a14 anos); 57,2%, no ensino médio (alunos de 15 a 18 anos) e 20,1% em ambos.

A análise da abordagem metodológica mostrou que 79,3% dos estudos foram baseados em métodos qualitativos; 3,9%, no quantitativo e 16,8% utilizaram as duas metodologias.

Alguns estudos foram realizados por grupos de pesquisa já estabelecidos, enquanto outros foram feitos por pesquisadores que se uniram através de um projeto comum como é o caso do projeto Biohead biology, health and environmental education for better citizenship. Outros ainda foram desenvolvidos por pesquisadores independentes. Os resultados mostraram que cerca de 35% dos trabalhos apresentados foram produzidos apenas por um pesquisador e cerca de 28% dos estudos tinham mais de três autores.

Finalmente, a partir da análise de todos os estudos, aproximadamente 21% eram provenientes da França; quase 20% ,da Tunísia e quase 10%, do Brasil.

Implicações finais

Os resultados apresentados mostraram que em muitos países e também no Brasil a pesquisa sobre o LDC está assentada nos conteúdos.

A quase totalidade da pesquisa, nessas realidades estudadas, estava focada no estudo dos conteúdos, o que de certa forma limita nossa compreensão em todos os aspectos que envolvem o LDC e ao mesmo tempo dificulta a construção de inovações no ensino de ciências.

É importante superar o senso comum de que é simples realizar estudos sobre os livros didáticos, e que já temos todas as ferramentas teóricas para realizar essa tarefa. Johnsen (1996) vai mais além e, usando uma analogia do caleidoscópio, sugere que as análises de livros didáticos devem ser mais integradas e sincronizadas com todas as partes da cadeia que envolve dentre

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outras coisas, a elaboração de livro, a produção e os usuários.Em relação ao uso do LDC pelo professor no ensino, todos os

estudos analisados - que eram proveniente de outros países, pois nos dados do Brasil não encontramos esse tipo de estudo na amostra analisada - apresentavam desenhos de pesquisas não integrados. Portanto, tinham pouca relevância a partir da perspectiva de fomentar inovações no ensino, considerando a associação das três possibilidades de inovação propostas por Fullan (2001).

Os estudos sobre a inovação no ensino sugerem que a implantação dessa seja realizada de forma integrada. Portanto, as pesquisas produzidas com o intuito de fomentar inovações no ensino, em relação ao professor como usuário do LDC, necessitariam ter esse caráter integrado também.

As análises aqui apresentadas sugerem, aos interessados em pesquisar sobre LDC, modelos de pesquisas integrados para que esses apresentem subsídios para as inovações no ensino de ciências.

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A pesquisa em livros didáticos de ciências e as inovações no ensino

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Research on science textbook and innovations in teaching

Abstract

This study aims to analyze the research with the science textbook (LDC) in Brazil and also in some countries and, simultaneously, to relate these results to the innovation’ possibilities in Science education. We analyzed 77 studies from 24 countries. In these studies it were analyzed paper’s focus, the type of research methodology used, the number of researchers involved, the area of study, the focus of the topic being investigated, the educational level of the study, and the nationality of the research. The results showed that most studies of other countries (86.9%) and 90% of Brazil had the focus on the contents of the LDC. These studies were more concentrated in Biology (42.3%) and centralized on secondary level of education. The researchers used, principally, qualitative methodologies and the majority of papers came mainly from France, Tunisia, and Brazil. The results are relevant to subsidize future research on this material.

Keywords: Science textbook; science education, research on science textbooks.

Paulo Sérgio Garcia, Nelio Bizzo

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Experiência docente e desafios extremos: aproximações entre experiência de si e tempos de

desilusão

André Marcio Picanço Favacho1

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Resumo

A experiência docente tem sido tratada a partir dos estudos sobre os saberes práticos do professor. Em razão disso, vários desses estudos atestam que os saberes da docência podem ser classificados em saberes de professores novatos, experientes e de aposentados; e, ainda, saberes da formação inicial, da formação continuada, curriculares, pedagógicos, experienciais etc. O presente artigo pretende mostrar algumas lacunas sobre esse debate principalmente em função da exclusão de autores que discutiram a experiência propriamente dita. É por esse motivo que o texto retoma alguns estudos de Benjamim e Foucault sobre o tema a fim de problematizar a noção atual de experiência docente. Porém, mais do que isso, quer convidar os pesquisadores e os professores a pensarem com mais rigor a relação docência e sociedade contemporânea, posto que é nesse contexto que a experiência necessita ser pensada. Afinal, a experiência é um caminho aberto ao desconhecido.

Palavras-chave: experiência de si; experiência docente; desilusão social; Walter Benjamin; Michel Foucault.

1 Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Currículo e Culturas e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho Docente, Formação de Professores e Discurso Pedagógico, ambos da FAE/UEMG.

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No Brasil e mesmo no exterior, os estudos de maior impacto sobre a experiência docente foram aqueles que a trataram sob a perspectiva do saber prático do professor. Em outras palavras, a prática docente foi tomada, com toda razão, como núcleo capital do universo dessa experiência, marcadamente mais importante que outros possíveis saberes, posto que foi considerada como o filtro que melhor definiu o conjunto dos saberes do professor. Obviamente, ao longo da história da formação de professores, sempre se falou em saberes da experiência docente, mas nunca antes foi dada a eles tal importância. O status máximo que esse enunciado possuía era o de elogio destinado a alguém que detinha muitos anos vividos em sala de aula sob a honraria: “professores de grande experiência”.

Porém, desde os anos 1990, os estudos sobre o saber da experiência docente efetivamente ganharam os postos mais importantes dentro das pesquisas sobre formação de professores nos programas de pós-graduação em educação no Brasil. Internacionalmente, os estudos desse campo datam do início dos anos 1980 - como foi o caso dos estudos de Donald Schon, datados de 1983.

Mesmo recente, essa discussão já acumula um número considerável de publicações, além de possuir - nacional e internacionalmente - vários representantes desse debate como, por exemplo, Donald Schon, Kenneth Zeichner, Antônio Nóvoa, Maurice Tardiff, Bernard Charlot, C. Gauthier, Peres Gomes, Phillipe Perrenoud, Gimeno Sacristán, Selma Pimenta, José Therrien, entre outros.

Entretanto, quase no final da década de 2000, observamos um descontentamento em torno dessa discussão. Sugerimos isso não porque ninguém mais a queira ou porque ela não desperte mais o interesse dos pesquisadores - pelo contrário, ainda é um tema de fôlego -, mas porque suas conclusões e análises têm caído num lugar-comum e previsível; sua máxima, aos berros, se repete incansavelmente: “o saber da experiência do professor precisa ser

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valorizado!” Esse é um fato surpreendente, pois como explicar a superficialidade das respostas nesse campo no momento mesmo em que mais se fala em saberes, conhecimentos, informações, experiências criativas, produção de saber, defesa dos saberes, experiências singulares etc.?

Isso se explica, por um lado, porque as discussões sobre a experiência e o saber docente padecem de um didatismo, presente em um considerável número de estudos que se ocuparam em classificar os supostos saberes docentes, classificando-os em saberes de professores novatos, de professores experientes, de professores aposentados; e, ainda, saberes da formação inicial, da formação continuada, curriculares, pedagógicos, experienciais etc. Por outro lado, porque excluíram desse debate importantes pensadores que tratam da noção de experiência propriamente dita. É certo que eles não dão uma verdade final sobre o assunto, mas podem ajudar quanto ao pensamento das entranhas do tempo e do espaço da experiência, da tradição e da sabedoria, da invenção e da genealogia, características que podem melhor localizar a docência nas tramas do passado, do presente e do futuro. Ora, por que retirar desse debate pensadores como Walter Benjamin, Michel Foucault, E. P. Thompson, Victor Turner, Godfrey Lienhardt, entre outros?

É, pois, nessa direção, que o presente texto inclui os “teóricos da experiência” (nome pouco adequado a esses pensadores) no debate sobre experiência docente, especialmente, limitando-se a Benjamim e Foucault. Com isso, convidam-se os educadores a pensarem a experiência docente não mais como um processo tão “racional” ou mesmo “crítico” de classificação da prática do professor, mas como um processo no qual o professor se experimenta na porosidade da atualidade (e do ato), que nada mais é hoje do que a própria sociedade contemporânea. Desconfia-se que seja nesse espaço que a experiência docente necessita ser pensada e essa é a razão pela qual se mencionam as palavras desilusão, desafios extremos e experiência de si no título desse artigo.

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Ajustando os termos

De inicio, gostaríamos de dizer que a experiência docente será entendida aqui como a maneira pela qual o professor ou professora transforma a si mesmo e o outro diante dos dilemas da vida cotidiana e escolarizada. Esse imperativo contrapõe-se àquele que se ocupa com a classificação dos saberes da docência. Não queremos nos ocupar com os saberes, digamos assim, sociológicos ou psicológicos dos professores, mas com a posição discursiva (histórica e crítica) que os saberes dos professores ocupam na vida cotidiana e na vida escolar.

Já os desafios extremos serão entendidos como todas as demandas sociais atuais que incidem sobre a escola e que requerem dela uma resposta (de preferência imediata), mas que, na realidade, causam muitos transtornos, seja porque tais demandas mexem com a moral dos docentes, seja porque as políticas públicas exigem muito com baixa contrapartida. Demandas como, por exemplo, a inclusão de deficientes, o atendimento às ações afirmativas, a incorporação dos debates sobre gênero, sexualidade e etnia requerem dos professores experiências e formas de deslocamentos bem intensas, nem sempre compensadas ou desejadas. Contudo, não tomaremos esses desafios como empecilhos aos professores, mas como matéria ética própria desse tempo, com a qual o professor produz sua prática.

Com isso queremos dizer que, entre a experiência e os desafios extremos (as demandas), emerge o fato de que hoje não existe apenas o saber cientifico a ser ensinado aos alunos, mas também as próprias demandas da sociedade contemporânea se impõem e necessitam ser discutidas com eles. Tais demandas, por um lado, são incansavelmente exigidas pelas pessoas; por outro, são lentamente pensadas ou refletidas pelos professores; por outro lado ainda, são mal administradas pelo Estado. Entranhar-se nessa discussão requer consentir que entre experiência e demandas há um dilema ético que nos impõe o seguinte impasse: enquanto

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homens e mulheres reivindicam outras formas de viver, a sociedade contemporânea impõe enormes obstáculos - morais, políticos etc - para que se viva de outras formas. É nesse contexto que os professores dizem viver “desafios extremos”, pois têm que se esforçar para atender às fortes demandas dos alunos, das famílias e do Estado (além das suas próprias) sem que suas condições de trabalho e formação sejam de fato alteradas para que ao menos compreendam o entorno das tantas exigências.

Partimos do pressuposto, no entanto, de que as desilusões sociais geram desafios extremos, porque marcam um tipo específico de experiência do sujeito contemporâneo cuja sina é o vazio político. Conforme Lipovetsky, o vazio político nos leva a uma falta de discernimento quanto aos destinos da humanidade e isso resulta numa “desagregação da sociedade, dos costumes, do indivíduo contemporâneo da época do consumo de massa, a emergência de um modo de socialização e de individualização inédito” (LIPOVETSKY, 1983, p. 7). Afirma ainda que a partir do século XX, apesar da existência de práticas políticas, econômicas, sociológicas e filosóficas diferentes, o resultado foi essa contínua desagregação que não nos deu alternativa a não ser viver tempos de “privatização alargada, erosão de identidades socais, desafecção ideológica e política” (LIPOVETSKY, 1983, p. 7).

Esse estado de coisas não oferece saídas prontas, pois, conforme relata Ortiz (2007), apesar da desagregação social, a contemporaneidade paradoxalmente produz resultados inimagináveis como, por exemplo, o aparecimento na cena pública de sujeitos assumidos em suas identidades e vontades. De fato, o próprio Lipovetsky alerta para essa forte característica da contemporaneidade: um processo supostamente homogêneo, mas que não ocorre da mesma maneira nem com a mesma intensidade em todos os territórios da vida. No fundo, Lipovetsky e Ortiz mostram a permanente contradição das sociedades contemporâneas de serem ora uma forma de universalizar as particularidades, ora uma forma de relativizar as universalidades.

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Benjamin (1994a) também aparece nessa discussão ao constatar que vivemos “tempos de desilusão”, referindo-se à artificialidade das relações que a sociedade contemporânea estabeleceu com as coisas, com o mundo e com as pessoas. Porém, em vez de reafirmar como muitos outros o caráter contraditório do contemporâneo, ele mostra sua perversão ou ainda sua galvanização. Ele não crê que essa sociedade seja ora boa ou má, ora necessária ou dispensável e nem crê no dito “pior sem ela”; toda ela estaria recoberta da pretensão de se livrar do humano, de recarregar as energias humanas como se os homens fossem pilhas que, mesmo oxidadas, devessem pôr-se a trabalhar; tudo hoje é de vidro e aço, nada mais respira. Vivemos cansados e não sabemos descansar. E pior: “Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia [...]” (BENJAMIN, 1994a, p. 118). Na desilusão da vida cotidiana, preferimos dormir para sonhar a fim de compensar nossa covardia.

Em termos educacionais, Enguita (2004) traslada as desilusões sociais (ou como ele as denomina de “tempos incertos”) para o mal-estar docente, considerando que esse é certamente o resultado do mal-estar social que, com o advento da chamada globalização, teve de atender à nova demanda societal, mercadológica, cientifica e política. Os professores foram atropelados por uma quantidade de outras tarefas e competências que fugiram à tradição de seu ofício. Assim, os professores foram obrigados a produzir respostas a inúmeras demandas, as quais dizem respeito à aprendizagem, formação profissional, informação e comunicação, inclusão, formação de novas consciências ecológicas etc. É óbvio que tudo isso produziu no professor um mal-estar, o que, aliás, possibilitou um conjunto de análises sistemáticas sobre tal sofrimento e cujos resultados, entre outros, podem ser observados nas teses sobre o adoecimento do professor, o afastamento do trabalho, a desautorização docente e a desvalorização profissional.

Sendo assim, consideramos que os desafios extremos da docência dizem respeito às mais variadas demandas sociais

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e escolares, não se limitam aos problemas crônicos de um determinado país e se ampliam por toda a contextura global. Porém, só emergem a partir do momento em que essas demandas são problematizadas em espaços específicos. Significa dizer que, embora com algumas características comuns, nem todas as escolas vivem as mesmas demandas. Disso resulta que os desafios extremos não podem ser associados a nenhuma classe social especifica, nem localizados em determinados territórios urbanos (como favelas ou aglomerados), pois são desafios relacionais, estabelecidos em cada realidade; sendo espalhados por todo o tecido social, não se configuram num atributo definitivo de certa classe ou região geográfica. Dessa maneira, tais desafios podem ter sua origem tanto nos problemas sociais como pobreza, desemprego, violência e miséria, quanto em questões de ordem subjetiva/relacional como, por exemplo, a relação de um professor com um aluno deficiente ou com aquele que, apesar de estar na escola há anos, ainda não adquiriu a habilidade da escrita e da leitura.

Sobre a noção de experiênciaem Benjamin e Foucault

Em Foucault, podemos dizer que a noção de experiência pode ser vista de três formas: existencial, histórica e ontológica. A experiência existencial, de caráter fenomenológico, se ocupou em “desnaturalizar” a experiência vivida, isto é, cuidou de dizer que ela não era uma essência, um dado natural ou metafísico, e sim uma produção, uma dinâmica social. Contudo, “desnaturalizar” não deve ser confundido com a desmistificação ideológica do tipo marxista que pretende mostrar como um valor exterior foi tomado como seu - imposição de valores de classe sobre outra; a experiência existencial quer “apenas” descrever e interpretar como as pessoas dizem, vivem e expressam, o que vivem e sentem. Ela quer, por assim dizer, revelar os processos subjetivos pelos quais as pessoas passam a fim de dar sentido às suas vidas e ao mundo. Por isso mesmo, ela se permitiu relatar as sensações ou

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os diferentes sentidos dados pelos sujeitos às suas experiências, como se quisesse deixar fluir essas experiências subjetivas a ponto de encontrar, ilusoriamente, o momento fundador do sujeito.

O próprio Foucault (1954) parece ter apreciado a experiência existencial. Vê-se, por exemplo, na Introdução (In binswanger, le rêve et l’existence, 1954), que o filosófico defende o autor do livro quando afirma que de fato a única maneira de alcançar o homem está em entender suas formas de existência. Aqui, Foucault quer combater as verdades da psicologia e da filosofia sobre o homem enquanto aposta numa antropologia que, pelo menos em projeto, não separava filosofia e psicologia e, por isso, dava à concepção de homem um tom mais complexo e rigoroso, localizando-o em tempos e espaços próprios. Em outras palavras, a experiência existencial ocupou-se em relatar os sentidos que os sujeitos atribuem a isto ou aquilo, não necessariamente para controlar o dizer, mas para liberar o sujeito para ser o fundador de suas próprias experiências. Nesse tipo de experiência, a análise dos sonhos, da imaginação das pessoas e os processos de significação, segundo Foucault, teriam enorme espaço. Enfim, a experiência existencial queria se apropriar do mundo da vida e fazer com que ele fosse, portanto, a própria “ciência”, que narra a vida e escreve a história. Aos elogios de Foucault à experiência existencial seguem suas críticas, sobretudo exigindo dela a sua linguagem; não uma linguagem de signos, mas de formas de existência cuidadosamente construídas pelas vontades. Assim, Foucault se despede da experiência existencial.

Bem diferente, a experiência histórica perde os encantos poéticos e as escrituras nauseantes da anterior. Lastimamos tal perda, mas também reconhecemos seus avanços, pois a mesma coloca a experiência vivida num espaço e tempo mais restritos, retira seu caráter essencialista e se livra de seu aspecto existencialista. Mais preocupada com o caráter representativo da linguagem, essa experiência foge da noção de que a experiência é um processo mental e subjetivo para se dedicar à noção de

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experiência como um processo real, material e visível tanto das formas (in)justas e éticas de viver em sociedade como do simulacro a que a experiência dos homens teve de se sujeitar.

A experiência histórica preferiu encarar as diferentes formas pelas quais os grupos sociais ou classes impuseram suas visões de mundo sobre os outros e como essas visões embaralharam-se na cena social, instituindo a vida concreta. Além disso, se interessou em compreender a crise de representação provocada pelos efeitos dessas visões de mundo, que acarretaram a perda de referentes identitários.

A experiência do sujeito, nesse caso, constitui-se como o conflito ideológico entre um referente que não lhe pertence, que lhe é exterior, e um referente que lhe é supostamente adequado (experiência verdadeira), mas que lhe fora roubado. Se o nosso referente verdadeiro foi abalado ou destruído por uma ideologia, como será possível continuar a comunicar nossa experiência? Obviamente, essa experiência parece muito própria da visão marxista, porém, também vemos aí localizado Benjamim - mais do que Foucault -; mais precisamente, vemos Benjamim localizado nos limites da experiência existencial com a experiência histórica.

Ainda que essa afirmação possa ser considerada pura especulação, basta observar que Benjamin, por um lado, fala da experiência como tradição transmitida pelos sábios e necessária à vida, de como ela permite e admite que o sujeito fale, conte suas experiências, recorra à memória para contar tudo que se passou até o ponto do outro saber qual lição tirar para a vida presente. Mas ele também denuncia e culpa, por outro lado, a vida moderna pela morte da tradição e da experiência, pela morte da transmissão e do sábio.

A parte existencial de Benjamim pode muito bem ser atestada em seu texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, de 1936”, que trata da história de um “sábio”, na verdade, de um escritor de narrativas de cotidianos religiosos da segunda metade do século XIX. Nesse texto, Benjamim vê em Leskov o fim da arte de narrar própria dos tempos de tradição e de experiência,

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posto que “descrever um Leskov como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele” (BENJAMIM, 1936, p. 197).

Leskov, que se dedicou às suas viagens comerciais, escreveu várias narrativas de seu tempo como, por exemplo, sobre a classe operária, o alcoolismo, os médicos da polícia, os vendedores desempregados, as quais anunciavam a insuficiência do mundo econômico. Benjamim considera que a experiência narrada por Leskov é o próprio mundo da vida, regada pela matéria da tradição que é a vida por excelência; é tradição e vida na medida em que se torna um excesso de sentido e de sabedoria da qual o sábio se nutre e divulga o saber. Assim, a experiência verdadeira em Benjamin é arte de narrar, contar, transmitir. O sábio, homem experiente, narra sua experiência e com isso aconselha os mais jovens, ajuda-os a resolver os problemas reais do presente com os contos do passado. Aliás, o passado aqui não é um tempo esquecido, e sim um tempo presente, vivido, pois o narrador acrescenta-lhes suas marcas, sua arbitrariedade irredutível, sua autoridade. Dá-se conta, portanto, de que a narração não é simplesmente um contar o que se passou - como num relatório técnico que se entrega a um chefe -, mas um envolver-se totalmente - assim como o artesão - com sua arte, com a coisa narrada, fabricada. Para Benjamin, a narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1994b, p. 205).

A experiência é a narração da complexidade, extraída dos limites entre a tradição, a sabedoria e a memória. Se não há o que transmitir, não há experiência. Se não há sábios, não há tradição nem memória.

Ora, é exatamente isso que defendeu Benjamin (1994a) em seu texto “Experiência e pobreza”, de 1933. É aí que vemos sua cadeira cativa, agora, na experiência histórica, ao julgar que a modernidade é marcada pela incapacidade de transmitir ou de

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comunicar as experiências coletivas, sendo impossível vivermos e comemorarmos juntos as experiências dos velhos, dos sábios e dos provérbios. Depois da Primeira Guerra Mundial, segundo Benjamin, “os combatentes voltaram silenciosos do campo de batalhas” (BENJAMIN, 1994a, p. 115), isto é, morria o valor central da experiência, que é a sua capacidade de narração e transmissão. Os livros de guerra não continham experiências transmissíveis de boca em boca, porque em seu lugar surgira a experiência monstruosa da técnica que sobrepujava o homem. Pereira (2006) esclarece que Benjamim vê no indivíduo moderno um ser pobre de experiência, um ser mudo e silencioso. “É alguém que nada tem a contar, pois nenhuma experiência possui” (PEREIRA, 2006, p. 65). Sua experiência não passa de vivência marcada pelo individualismo, portanto incomunicável, posto que dispensa ou mesmo não deseja o coletivo.

Quando se diz que a contemporaneidade ou a época moderna é marcada pela pluralidade de acontecimentos e por formas ambíguas de estar no mundo (e de fato parece ser), Benjamim torna-se impaciente com essa interpretação e justifica-se dizendo que em especial após a Primeira Guerra Mundial, os homens se desiludiram com mundo, porém, não se tornaram plurais, e sim desesperançosos, talvez desesperados com o que viram. Na verdade, afirma que os soldados da guerra nos confirmaram até aonde tais acontecimentos nos levam “quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje uma prova de honradez confessar nossa pobreza” (BENJAMIN, 1994a, p. 115).

Para Benjamin, o resultado disso tudo não é apenas a desagregação da sociedade ou novas formas de subjetividade como querem alguns, mas o nascimento de uma nova barbárie, sendo bárbaro aquele que “contenta-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (BENJAMIN, 1994a, p. 16). Em Benjamin, não há, na sociedade de hoje, negatividade e positividade simultâneas; o que há é uma “desilusão radical”. Também não há um ponto positivo e outro

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negativo sobre esse assunto, nem, talvez, uma dialética entre esses pontos, pois o que está em jogo é o nascimento de outra sociedade (a contemporânea) ou de criaturas totalmente novas. Criaturas que decidiram experimentar ou rejeitar o homem tradicional enquanto tornam-se o “contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época” (BENJAMIN, 1994a, p. 116). Satirizando, o autor lembra que vivemos em tempos em que recusamos qualquer semelhança com o humano. Os russos, por exemplo, dão a seus filhos nomes desumanizados, “como Outubro, aludindo à Revolução, ou Pjatileka, aludindo ao Plano Quinquenal, ou Aviachim, aludindo a uma companhia de aviação” (BENJAMIN, 1994a, p. 117).

Mas, afinal, como produzir experiências nessa pobreza de experiência? E, em tempo, perguntamos: há experiências que são pobres e experiências que são ricas? Não! O próprio Benjamin (1994a), pausadamente, nos responde:

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles “devoraram” tudo, a “cultura” e os “homens”, e ficaram saciados e exaustos. “Vocês estão todos cansados - e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso” (BENJAMIN, 1994a, p. 118).

De fato, a experiência histórica de Benjamin é implacável não somente porque nos “ofende” frontalmente, mas porque nos mostra o quanto somos cínicos e pretensiosos diante da sabedoria e da tradição; mesmo cansados e exaustos, embrutecidos e ignorantes, ostentamos um saber vazio. A morte, no corpo

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desfalecido do outro, é o troféu que recompensa o embotamento de nossas verdades. Das guerras cotidianas, voltamos cansados sim, mas vaidosos por termos matado nossos inimigos. A despeito do valor da tradição, a guerra cotidiana consome o homem - como medida de todas as coisas - enquanto institui o poder tecnológico da informação e da comunicação. Diríamos que, com a guerra, o homem foi, no fundo, substituído pelos “ciborgs”, esses seres mistos (homem e máquina) que preveem as estratégias de guerra à revelia dos homens.

O Leskov de Benjamin parece ser um bom exemplo de significação que perdeu seu lugar para os ciborges, isto é, um típico personagem fundador de um saber, cuja autoridade residia exatamente em dizer a verdade de que o outro necessitava e que, com o advento da modernidade, foi morto, banido da cena pública e exilado nos confins da memória. Em seu lugar, aparece o ciborg - essa figura escrota e sem escrúpulos -, programado para repetir os padrões de qualidade.

O melhor de Benjamin para a análise da experiência docente é que não precisamos imaginar as mazelas e as fraquezas de espírito do nosso antigo professor primário. Não precisamos saber de sua intimidade, posto que o que deve interessar é sua sabedoria. No máximo devemos tê-lo em altíssimo respeito para que seu mundo sagrado seja preservado. Porém, o melhor mesmo de Benjamin é poder, hoje, desconfiar de todos nós, pois, sem exceção, estamos todos atolados “até a tampa” nas fraudas sujas da contemporaneidade. Somos, independente da idade, assassinos da tradição e da sabedoria; somos os novos bárbaros: estamos todos cansados de tanta soberba. A propósito, quando na história docente, matamos a sabedoria do professor? Quem seria capaz de dizer, afinal, quais são ou seriam as sabedorias da docência? Se a experiência de Benjamin é esse excesso positivo de sentido, desejoso de ser transmitido ou comunicado porque tem muito a dizer, que tipo de experiência docente gostaríamos de transmitir ou estamos transmitindo aos que acabaram de chegar em nossas

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André Marcio Picanço Favacho

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salas de aula e na própria profissão? Então, a pergunta que devemos fazer não é mais simplesmente

sobre o que são as desilusões sociais ou se existem experiências ricas ou pobres, mas sim qual é a relação estabelecida entre experiência e história; entre experiência e o tempo presente; entre práticas e formas de constituição do “eu”, entre prática social e o sujeito que nela atua. E, no caso deste artigo, vale perguntar: o que é experiência docente em tempos de pobreza de experiência? Como ela se constituiu ou resistiu a tudo isso nos últimos tempos? Qual a relação entre os acontecimentos de nossa história e a produção da experiência escolar? Basta dizer que a experiência docente vive os mesmos problemas dos tempos incertos ou teremos que acompanhar sua instituição?

Por fim, chegamos à terceira experiência, a ontológica. É nela que situamos Foucault. Tal ontologia nada tem a ver com verdades metafísicas e descontextualizadas. Longe disso, ela é a implicação possível do sujeito com a escrita de sua própria história e a de todos. Por isso, é também uma experiência histórica, mas também de si. É histórica sim, mas não se restringe a narrar o que o sujeito diz, nem a imaginar suas construções subjetivas. Sem desprezar os contextos, a experiência ontológica ou de si ocupa em saber se é possível estudar as diferentes experiências das pessoas, constituindo três aspectos da humanidade moderna, a saber: o homem como sujeito do conhecimento, como sujeito social e jurídico e como sujeito ético.

Em outras palavras, a experiência ontológica não se ocupa com as sensações ou significações do homem, nem se sua experiência decorre da forma como a sociedade se impôs sobre ele, mas necessariamente de como os sujeitos ocupam (desejam e resistem) a seus lugares no jogo da verdade, nas relações de poder e nas formas de se relacionar consigo mesmo e com os outros. A modernidade, por exemplo, para Foucault (1984), não é apenas um período temporal da história, e sim uma atitude - “atitude de modernidade”. Para ele, é uma experiência ontológica, ou seja, um

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Experiência docente e desafios extremos: aproximações entre experiência de si e tempos de desilusão

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comportamento, uma forma de pensar, uma espécie de ethos grego, segundo a qual o sujeito só ascende à verdade pelo conhecimento. O conhecimento, só ele, oferece as condições sob as quais o sujeito tem acesso à verdade. Foucault não crê nisso, mas afirma que foi exatamente isso que nos permitiu entrar na era moderna. Quem está fora disso? Quem está contra isso?

Asseguremo-nos, então, da máxima foucaultiana: a experiência é sempre experiência de si, daí porque ontológica, mas também histórica (por isso mesmo crítica), isto é,

deve ser considerada não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um ethos, uma vida filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível (FOUCAULT, 1984, p. 351).

Embora seja assim, nem sempre Foucault entendeu a experiência nesse lugar. Ele mesmo fala que inicialmente sua noção de experiência estava bem mais próxima das experiências de significação tanto existencialistas como históricas; achava que o papel do intelectual era talvez descobrir as significações originárias do sujeito diante de suas práticas, como se o sujeito fosse dono do que faz e detém ou controlador do seu fazer, podendo, se quisesse, até se desalienar.

De fato, Foucault (1978) declara que a sua formação filosófica universitária o levava para esse lugar, uma vez que nela dominaram a filosofia de Hegel e da fenomenologia. Mas era chegada a hora de se decidir a não ser um historiador da filosofia, nem um existencialista. Segundo o filósofo, aproximar-se dos escritos de Nietzsche, Bataille e Blanchot foi decisivo para que ele vislumbrasse outro tipo de experiência (a da dessubjetivação), que era ao mesmo tempo crítica e engajada, mas também “anárquica”; além de crítica, visava retirar do sujeito o impossível ou a intensidade mais enérgica possível do lugar que ocupava na cena pública.

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Mesmo assim, Foucault preferiu ainda buscar uma experiência que fosse menos heróica, revolucionária ou ruidosa e concomitantemente mais desconcertante, provocativa e irônica. Uma experiência que mostrasse o caráter epistemológico e político das práticas das pessoas - é o caso dos estudos sobre o nascimento das ciências humanas e dos governos -, mas também o trabalho ético que o sujeito destina ao seu próprio corpo, como mostrou nos estudos da história da sexualidade, da hermenêutica do sujeito etc. A experiência, nesse caso, não se ocupou nem tão somente do conhecimento ou da política, mas pelo contrário, interrogou ambos exatamente em sua vontade de poder. Numa perspectiva foucaultiana, a experiência ontológica nasce no momento mesmo em que o sujeito deve aparecer, no momento em que ele decide (ou não) se autoflagelar, se autopunir, se autocontrolar, ou seja, é nesse momento que a experiência ontológica nasce, nas possibilidades de ação do sujeito ao se relacionar com o estabelecido, com o proibido, com o desejado e com o permitido. Em virtude disso, o “si” que aparece junto ao termo experiência é a própria atuação do sujeito diante das verdades (do conhecimento) e das imposições de governo (dos poderes), mas também do governo de si mesmo (trabalho ético).

Portanto, esse “si” não deve ser entendido como algo do campo psicológico, e sim do campo genealógico, inscrito nas relações de saber, de poder e de governo de si, na forma como o indivíduo se transforma em sujeito da verdade, do poder e da ética. O que está em questão na experiência ontológica é como o sujeito transforma certas experiências num jogo complexo de relações consigo mesmo, com a verdade, com o poder e com os outros.

Se a experiência em Foucault é a forma como o sujeito ocupa seu lugar no jogo da verdade, nas relações de poder e no relacionamento consigo mesmo e com os outros, podemos aqui avaliá-la melhor (apenas de forma especulativa) para o campo da docência.

Do ponto de vista do jogo da verdade ou do “sujeito do conhecimento”, a loucura, a morte e o crime foram experiências

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privilegiadas nos seus estudos, os quais visavam saber como essas (nossas) experiências se transformaram em conhecimento. Esses tipos de experiências, que, transformadas em conhecimento, geraram as ciências humanas, Foucault (1961) chamou de “experiência-limite”. Trata-se de experiências que expressam a relação entre o ser e os seus limites históricos; entre a dispersão das experiências e a sua estatização; entre a sua estatização e a reação dos sujeitos frente a isso.

Por serem históricas, tais experiências-limite são imediatamente contrapostas por “atitudes-limites”, que são as formas de ultrapassagens e de transgressão social. A atitude-limite é o que criticamos em nós mesmos e, por isso, nos reinventamos não necessariamente para um lugar belo e seguro, mas para outra forma de nos constituirmos como sujeitos frente aos limites que a história nos impõe. É nesse sentido que a experiência é sempre uma crítica de nós mesmos a fim de instituir outra história a partir de outros saberes e poderes; é arrancar o sujeito de si mesmo, de forma que ele saia transformado. Ora, quem disse que o louco se enquadrava nessa palavra? Por que depois de certo tempo a loucura não era mais algo total e passou-se a admitir o seu caráter relativo? No caso da docência, podemos, ainda, perguntar: Quais são e como se instituem as experiências-limite docentes e, por conseguinte, como se delimitaram suas atitudes-limites? Como foi que nos impusemos, por exemplo, a experiência de professores-missionários, vocacionados ao magistério, como nos contrapomos a esse tipo de professor e que tipo de professor (novo) construímos? O professor-missionário deixou de existir? Então, o contraponto não foi suficientemente abrangente?

A experiência de si, nesse caso, é a complexidade discursiva diante das formas como nos apropriamos das verdades existentes, como impomos a nós mesmos algo dessas verdades até o limite de nossa crença ou vontade. E é assim que, segundo Foucault, somos convocados a escrever a história e a história de nós mesmos. Aliás, em termos educacionais, que história da docência está sendo

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escrita? Que história terá sido escrita para que no futuro as novas gerações possam se orgulhar de nós?

Do ponto de vista das relações de poder, da aceitação das regras ou do rechaço das leis sociais, estudos como “Vigiar e punir” (FOUCAULT, 1975) se constituem em um bom exemplo de experiência jurídica quando esclarecem como o homem se transformou “em sujeito social e jurídico”. Nesse caso, já não se trata mais do efeito do conhecimento das ciências humanas sobre os homens, mas, pelo contrário, das disposições do poder sobre seu corpo e/ou as populações, dos quais extraem mais do que conhecimento, saberes e poderes. A experiência é a do homem como sujeito jurídico e social, que aprendeu, nessa trama, a julgar e a se julgar a ponto de saber separar, em seu próprio corpo, o normal do patológico. Com o sujeito social e jurídico, desenhamos a “experiência da normalização”, que define quem é o louco, o monstro, o abusador, o delinquente, o mau caráter, o ladrão, enfim, o estranho. A nós, professores, é pertinente perguntar se, na cena educativa, ignoramos essa relação jurídica que define o normal e o anormal. Ou cremos que já superamos essa dicotomia? Somos capazes de transpor com sinceridade esses limites normalizantes? Nasceram novos anormais na atualidade escolar? Essa dicotomia é superável em tão pouco tempo de história?

Por fim, do ponto de vista da relação consigo mesmo e com os outros, os estudos foucaultianos sobre a sexualidade são os mais evidentes de uma experiência ontológica. Ou seja, do ponto vista do “sujeito ético”, a sexualidade foi a temática que melhor entrelaçou de uma só vez saber, poder e ética a fim de compreender como os sujeitos se tornaram arbitrariamente sujeitos do desejo.

Nesse caso, Foucault não quer saber o que é o sexo, mas como nos governamos a fim de dizer a verdade sobre nossa sexualidade. Esses estudos são privilegiados no campo ético porque é a parte da experiência ocidental que mais nos convidou a falar, a confessar e dizer a verdade sobre nós mesmos. Refere-se ao sujeito ético, porque em Foucault não se quer saber se alguém julgou as

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condutas certas ou erradas, morais ou imorais, mas porque “o próprio individuo se constituiu a si mesmo como um sujeito moral de suas próprias ações” (FOUCAULT, 1984b, p. 28).

A experiência aqui é a do desejo, aquela que define como foi mesmo que chegamos a ser sujeitos de desejo, prontos a dizer a verdade sobre nossa sexualidade. Para além da sexualidade, perguntamos se é certo inferir que a docência, tal qual a sexualidade, também nos tem feito falar, dizer a verdade sobre nós mesmos, nos constituir moralmente como sujeitos do desejo-docência. Ou seja, o que desejamos em nossa docência? De qual desejo se fala quando se pensa em dar aula: ensinar as pessoas e conduzi-las a algum lugar? Que desejo-docência é esse que nos convida a dizer a verdade sobre nós mesmo e sobre o outro? É possível falar em desejo na docência? Afinal, qual é o desejo da docência, por quais tecnologias ele se compôs no ocidente, qual sua história? Para Foucault (1984b), a ética grega dos prazeres tem a mesma estrutura da política, isto é, trata da questão do governo de si e do outro. Parafraseando-o, provocamos a docência: o desejo-docência não se constituiria na própria política educacional que temos hoje?

Enfim, se Benjamin nos parece um tanto metafísico e trágico; se Foucault nos parece irônico, sem saída e debochado, é que, no fundo, ambos são de uma única e mesma família: “a família dos ferinos”. Eles desconfiam de tudo, sobretudo da experiência presente e das formas pelas quais somos capazes - professores ou não - de inventariar nossas práticas morais. Quem será capaz de anunciar, sem constrangimento, as premissas que guiam suas práticas de ensino? Quem será capaz de confessar seu desejo-docência?

Palavras finais

Mesmo que os tempos de desilusão se caracterizem pelo choque de realidade diante das inumeráveis questões presentes na virada da vida moderna, da artificialidade com que a vida é tratada ou mesmo vivida pela humanidade atual, não é nosso propósito

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defender que os desafios extremos são formas de pessimismo ou negativismo, mas sim formas “existenciais” de incômodo que a docência atual enfrenta.

Vemos esses desafios como positividades - não como um valor moral positivo - como atividades (mesmo dispersas, melhor por isso) de lutas (engajadas ou não) para conservar ou alterar os limites próprios do ofício de mestre. Daí porque queremos acreditar que a desilusão social denunciada no projeto filosófico de Benjamim não deve ser entendida apenas como a abolição do homem, mas também - assim como em Foucault - como o lugar no qual os professores se inscrevem ou registram outro espaço de docência, em construção, que por hora se embaça pelo que se nomeia de mal-estar docente.

Ousamos dizer que nós pesquisadores deveríamos nos livrar um pouco das perspectivas do mal-estar e dos didatismos sociológicos em termos de experiência docência e reservá-las para em que fato elas contribuem ao debate da formação de professores: diagnósticos precisos sobre as condições objetivas do trabalho docente. Se essas perspectivas ajudam a localizar as mazelas da experiência docente, elas tendem também a fixar a experiência docente num único lugar: deslocado de seu oficio. Mas se ainda há prazer na docência? É claro que não propomos opor sofrimento e prazer, mas analisar sua relação. Daí porque nossa aposta é a de convidar os pesquisadores a investigar as experiências da docência (e não a do professor/a como individuo isolado em sua sala de aula) em suas múltiplas relações com as verdades, com os poderes e consigo mesmos.

A experiência docente, nesse sentido, não pode ser compreendida por meio apenas de diversas categorizações feitas por um pesquisador da educação para mapear a realidade pesquisada. Mais do que categorizar os saberes, necessitamos responder urgente a uma série de questionamentos, os quais ousamos sugerir aqui: Que experiências extremas temos vivido nas escolas? Que desafios extremos têm exigido o máximo de

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nossa capacidade de indignação? Quais são os desafios que hoje têm sido privilegiados e considerados extremos pelos professores? Que experiências ou saberes nascem diante do enfrentamento (ou não) desses desafios? O que é ou quais são as experiências consideradas relevantes no campo da docência atual, efetivada em tempos de desilusão? A que aspectos das desilusões sociais essas experiências estão relacionadas? Que tipo de experiência docente tem sido considerada válida ou inválida hoje? Que tipo de saber essas experiências convocam (e desencadeiam)? Quais são as experiências-limites que os educadores vivem dentro dos contornos de uma sociedade da informação? Quais são as relações de poder vividas e praticadas pelas experiências docentes? Que tipo de regras escolares elas manifestam? Que tipo de resistência ou de revoltas elas suscitam? Que resultados elas produzem nos alunos e nos próprios professores? Mais ainda: Como o professor ou professora se autoexperimenta diante de classes que não demonstram nenhuma boa-vontade com o mundo escolar? Como esses professores inscrevem em si mesmos as marcas ou traços dessa realidade pouco prazerosa, tendo ainda de buscar saídas para os impasses cotidianos? Afinal, como é estar a contragosto, atuando num cenário que exige grandes responsabilidades sociais e bons resultados finais? Afinal, como é estar contente e cheio de planos mesmo diante desse cenário de pobreza de experiência?

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Teaching experience and challenges extremes: approaches between self experience

and experience times of disillusion

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Abstract:

The teaching experience has been treated from the studies on the practical knowledge of the teacher. Because of this, many of these studies show that the knowledge of teaching can be classified into knowledge beginner teachers, experienced and retirees and, still, knowledge of initial training, continuous training, curriculum, educational, experiential, etc. This article aims to show some gaps on this debate, mainly due to the exclusion of authors who discussed the experience itself. That is why it takes a few studies of Benjamin and Foucault on the subject in order to discuss the current notion of teaching experience. But more than that, wants to invite researchers and teachers to think more rigorously the relationship between teaching and contemporary society, since it is in this context that the experience needs to be thought, after all, experience is an open way to the unknown.

Keywords: self experience; teaching experience; social disillusion; Walter Benjamin; Michel Foucault.

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Infância, criança e a experiência humana do tempo1

Resumo

O presente trabalho tem como foco o problema da identidade entre criança e infância, partindo da caracterização de importantes elementos históricos e filosóficos envolvidos na construção dessa identidade, passando por Heráclito, Platão, Nietzsche, Foucault e Hannah Arendt. Nesse percurso, pretendemos gerar uma reflexão sobre as bases nas quais essa identidade é construída, partindo de aspectos que envolvem a caracterização da experiência humana do tempo.

Palavras-chave: Infância; criança; tempo; educação; natalidade.

Laurici Vagner Gomes2

[email protected]

1 Texto originalmente produzido para apresentação no “Ciclo de debates sobre o novo currículo do curso de pedagogia”, promovido pela Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais em fevereiro de 2009.2 Doutorando e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), professor do Departamento de Fundamentos Sócio-Histórico Filosóficos da Educação e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e História da Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Professor de Sociologia na Educação Básica da Rede Estadual de Minas Gerais.3 Resolução CNE 1/2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos> . Acesso em: 18 dez. 2011.

A nova resolução3 para o curso de pedagogia define que a educação infantil e o ensino fundamental são os espaços, por excelência, de atuação do profissional pedagogo. O presente trabalho encontra seu solo de origem nesse contexto; na observância das discussões geradas pela nova resolução. Nossa proposta é provocar o que para muitos pode ser uma obviedade: a identidade construída entre criança e infância para a partir disso, abrir discussões sobre o que entendemos por educação infantil. Problematizar a identidade entre infância e criança pode soar

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Infância, criança e a experiência humana do tempo

estranho aos ouvidos, pois a tradição ocidental construiu uma identificação quase que absoluta entre um termo e outro, cuja base se encontra numa compreensão linear do tempo pela qual se configura a crença num desenvolvimento contínuo do humano, em que a infância aparece como uma primeira etapa da vida, demarcada por faixas etárias e consequentemente suprimida pela vida adulta. Nossa discussão trará alguns elementos para provocar essa visão cristalizada.

1 A identidade entre criança e infância

1.1 Educação, cultura e natalidade

A filósofa alemã Hannah Arendt, no único texto em que se debruça de maneira mais direta sobre o tema da educação, intitulado “A crise na educação”, escrito em 1958 e publicado na coletânea de textos chamada “Entre o passado e o futuro”, afirma que é em tempos de crise que se revela a verdadeira essência da educação. Arendt compreende a crise como oportunidade que “dilacera fachadas e oblitera preconceitos - de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu, e a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo” (ARENDT, 1997, p. 223). Segundo a filósofa, a crise nos revela que a educação é uma “obrigação imposta aos homens pelo fenômeno da natalidade”, a obrigação de introduzir novos seres num mundo velho. De acordo com Arendt, é muito simplista acreditar que a crise na educação em nossa sociedade é localizada ou é meramente uma crise dos métodos educacionais. Sendo mais profunda a natureza do problema, faz-se necessário pensar nas relações entre cultura e educação.

Por que podemos vislumbrar a existência de processos educacionais em todas as culturas humanas? Porque em todos os momentos históricos, em todos os contextos no quais se desenvolve a vida social humana, novos seres nascem para o mundo, mundo que não começou com eles e que deverá continuar

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para além da condição finita de cada indivíduo. Como afirma Arendt, a criança enquanto um recém-chegado

em estado de vir-a-ser possui para o educador um duplo aspecto: é um novo ser humano e é um ser humano em processo de formação. A criança compartilha esse estado de vir-a-ser com todas as coisas vivas. Nesse sentido, é um ser humano em processo de formação assim como qualquer filhote animal o é. Mas é somente em relação a um mundo pré-existente, um mundo velho, que a criança é nova, ou seja, a criança não é nova porque ainda não desenvolveu as potencialidades da espécie, porque ainda não se transformou em adulto, pois se assim fosse

a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver que todos os animais assumem em relação aos seus filhos (ARENDT, 1997, p. 235).

“Educar para preservar a vida”: isso compartilhamos com todos os outros animais. “Educar para a continuidade do mundo”: isso é tipicamente humano.

Nesse sentido, a educação, entendida como obrigação imposta aos homens pelo fenômeno da natalidade, desdobra-se em duas responsabilidades: “responsabilidade para com a preservação da vida e responsabilidade para com a continuidade do mundo”. Segundo Arendt, essas duas responsabilidades de modo algum coincidem, podendo, inclusive, entrar em conflito mútuo. Isso porque para um bom desenvolvimento da vida humana finita, a criança deve ser protegida do mundo, assim como o próprio mundo simbólico deve também ser protegido desses recém-chegados para que não seja destruído a cada geração pelo assédio do novo.

Nas sociedades tribais, podemos observar que a “endoculturação”, a introdução dos novos seres na cultura, dava-se pela reprodução dos arquétipos do passado realizada através dos processos educacionais. O homem é introduzido na cultura na medida em que aprende e repete os modelos de conduta advindos do passado. Esses modelos foram

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criados pelos deuses e transmitidos aos antepassados: o passado é assim oracular. Analisando o sentido assumido pela educação numa sociedade caracterizada como “tradicionalista, sagrada e fechada”, o sociólogo Florestan Fernandes, em sua pesquisa sobre a educação entre os tupinambás, afirma:

“Inovação” e “tradição” interpenetram-se de tal modo, que uma conduz à outra, podendo se afirmar: 1) que toda inovação, por mais radical que seja, lança raízes no passado e se alimenta de potencialidades dinâmicas contidas na tradição; 2) que a inovação já nasce, culturalmente, como tradição, como “experiência sagrada” de um saber que transcende ao individuo e ao imediatismo do momento (FERNANDES, 1975, p. 36).

Se, nas sociedades tradicionais, os mecanismos que garantem a continuidade do mundo simbólico através da repetição dos modelos do passado conseguem proteger esse mundo do abalo produzido pela irrupção do novo a cada geração, promovido pelo fenômeno da natalidade, com o advento da atividade filosófica na sociedade grega e a problematização desses mecanismos, outra relação entre natalidade e educação começa a ser gerada.

Em seu livro “Infância. Entre educação e filosofia”, Walter Kohan afirma que apesar da inexistência do termo infância entre os gregos, os diálogos platônicos contribuíram fundamentalmente para a formação desse conceito que foi se cristalizando na filosofia da educação ocidental. A tese defendida por Kohan é que a infância era parte indissociável de algo que constituiu um problema fundamental para a filosofia platônica que seria “entender, enfrentar e reverter a degradação cultural, política e social da Atenas do seu tempo” (KOHAN, 2003, p. 27). É no interior de um projeto político de mudança social para o qual se volta sua filosofia que o fenômeno da infância interessa ao filósofo.

O sentido originário da palavra infância vem impregnado por aquilo que os antropólogos chamam de “signo da falta”. O que se destaca a partir do termo infância são conjuntos de ausências que

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devem ser preenchidas a partir do vir-a-ser adulto. Platão não usa o termo infância, mas o conjunto de ausências vinculado por esse termo está presente no tratamento dado pelo filósofo às crianças, ausências que são preenchidas pelas utopias políticas dos adultos. Podemos observar, a partir do pensamento platônico, que o trabalho de conservação do passado realizado pelos processos educacionais começa a ser invadido pelas projeções de futuro dos adultos.

Como afirma Kohan, não só na república platônica como em toda educação formadora em sentido clássico, se apresenta a

tentação de apropriar-se da novidade dos novos, à tentação de fazer da educação uma tarefa eminentemente política e da política o sentido final de uma educação, a partir de uma lógica da política determinada com independência da vontade dos novos (KOHAN, 2003, p. 58-59).

O sentido e a importância dada à educação das crianças nos diálogos platônicos são marcados pelo vir-a-ser adulto, mas é fundamental observarmos que esse vir-a-ser adulto não significa a realização do homem, seu acabamento. O drama do adulto diante da vida humana finita e seu inacabamento é o solo de onde se origina a tentação de apropriar-se da novidade dos novos, marcando o corpo e o espírito das crianças com suas visões e projeções do futuro, com suas utopias políticas. Somamos a esse aspecto outro que conduz os adultos a roubarem a novidade da criança, a crença naquilo que Nietzsche chama, no “Crepúsculo dos ídolos”, de “melhoramento da humanidade”. Nesse sentido, as crianças devem ser educadas não só porque serão os futuros governantes da polis, mas pela possibilidade de realizarem as utopias, os sonhos que os adultos não realizaram.

Se nas sociedades tradicionais, a novidade dos recém-chegados era roubada pelo passado oracular, no modelo de sociedade utopicamente pensada por Platão, a novidade dos recém-chegados é roubada pela crença no devir progressivo da humanidade que alimenta as projeções de futuro dos adultos. O advento das

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concepções teleológicas do tempo produz radicais transformações no sentido assumido pelos processos educacionais e colocam o homem diante de uma nova relação com o fenômeno da natalidade.1.2 A identidade entre criança e infânciae a experiência teleológica do tempo

Testemos uma primeira afirmação: identificar o fenômeno da infância na criança é enquadrá-la numa concepção linear do tempo marcada não só pelo vir-a-ser adulto, mas também pelo vir-a-ser novo alimentado pela crença do adulto num devir progressivo do homem. Como nos apresenta Hannah Arendt, diante das crianças, dos recém-chegados, o adulto é sempre um representante do mundo velho, um representante que deve assumir não só a responsabilidade pela preservação da vida, mas fundamentalmente a responsabilidade pela continuidade do mundo. Diante disso, partindo do fato de que é sempre um adulto que educa a criança, Arendt revela o contrassenso presente na ideia de se educar para o novo, pois este “novo” é sempre o novo do adulto.

Arendt, a partir disso, problematiza a vinculação entre educação e política: a política é a atividade que se volta para o novo, para a mudança social. A natureza da educação, segundo a filósofa, é outra, a educação é sempre conservadora. Nesse sentido, é um contrassenso querer educar para o novo, sendo que, ao se vincular a esse propósito, a educação invade o campo da política, impossibilitando que o novo surja. Segundo Arendt, educar para o novo é retirar dos recém-chegados, dos verdadeiramente novos, a possibilidade de serem novos.

As ideias modernas de progresso e desenvolvimento, resultantes de outra relação do homem com a história, trouxeram novos elementos para se pensar na educação enquanto “endoculturação”. Nesse mundo moderno, em que a ciência passa a trabalhar para o desenvolvimento tecnológico e ele se torna a mola propulsora da crença no progresso, a ligação do homem com a tradição se enfraquece, pois o passado é visto como algo que deve ser superado pelo presente, que, por sua vez, é superado

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pelo futuro. Nesse contexto, como pensar na educação enquanto endoculturação? Como introduzir os recém-chegados numa cultura em que, usando a célebre expressão de Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”? A educação que se volta para o futuro se concentra na tarefa de superar o passado. Para essa finalidade, acreditamos que os processos educacionais devem acompanhar o ritmo do desenvolvimento tecnológico e das transformações científicas, pois eles sustentam a crença no progresso.

Segundo Arendt, o sinal mais agudo da crise atual legada pela modernidade é a perda do senso comum, da realidade compartilhada, sendo que essa perda resulta justamente do enfraquecimento da autoridade da tradição a que nos conduziu o “pathos do novo” que caracteriza a cultura moderna. Podemos dizer que a problematização do senso comum e a crença no devir progressivo do homem, presente na filosofia platônica, estão na origem desse movimento que acabou por gerar uma profunda crise na educação. Para a autora de “A condição humana”,

o conservadorismo, no sentido da conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa, a criança contra o mundo, o mundo contra criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo (ARENDT, 1997, p. 242).

Na perspectiva de Arendt, que a educação assuma seu caráter conservador é fundamental para que o mundo não se torne mortal como os mortais, para que o mundo continue e se renove a cada nova geração. Chegamos ao centro das argumentações da filósofa sobre educação quando compreendemos o sentido dessa conservação e do contrassenso arraigado na ideia de educar para o novo. Diz Arendt:

Basicamente, estamos sempre educando para um mundo que, ou já está fora dos eixos, ou para aí caminha, pois é esta a situação humana básica, em que o mundo é criado por mãos mortais e serve de lar aos mortais durante tempo limitado. O mundo, visto

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que feito por mortais, se desgasta, e, dado que seus habitantes mudam continuamente, corre o risco de tornar-se mortal como eles. Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em ordem. O problema é simplesmente educar de tal modo que um por-em-ordem continue sendo efetivamente possível, ainda que não possa, é claro, ser assegurado. Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruimos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. Exatamente em benefício do que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar esta novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição (ARENDT, 1997, p. 245).

O mundo é criado pelos humanos mortais, finitos, mas não deve ser mortal como eles. É necessário então conservá-lo, protegê-lo da finitude de seus criadores. Educaremos então as crianças para que elas continuem o mundo simbólico do adulto? É essa a posição de Arendt? Não, para a filósofa, ao contrário do que podemos ver nas sociedades tradicionais que fundamentam sua ordem simbólica num passado oracular, a continuidade do mundo depende de sua renovação. Nesse sentido, a educação não pode retirar das mãos daqueles que são verdadeiramente novos, as crianças, os recém-chegados, a possibilidade de gerar uma nova ordem, pois é dessa forma que o mundo se renova. Mas isso só se torna possível, segundo a filósofa, se a educação, assumindo seu caráter conservador, preservar o mundo da finitude de seus criadores, pois é em relação ao mundo velho que a criança é nova. O papel do educador se coloca então numa encruzilhada entre o

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passado e o futuro: como representante do mundo velho deve apresentá-lo para a criança e, ao mesmo tempo, deve preservar sua novidade. O problema está colocado: “como introduzir a criança, o verdadeiramente novo, o recém-chegado, num mundo velho sem retirar de suas mãos a novidade?”

Diante dessa instigante e complexa questão colocada por Arendt, defenderemos a tese de que enfrentá-la requer não só romper com as imagens da criança marcadas pelo vir-a-ser adulto e pelo vir-a-ser novo articuladas a partir da crença num devir progressivo da humanidade. Essas imagens estão na própria base de estruturação do conceito de infância, mas nos provoca fundamentalmente a mudar esse conceito, construído tradicionalmente a partir da crença num desenvolvimento contínuo do humano alicerçado sobre as bases de uma concepção linear do tempo e de sua identificação com a criança. Em outros termos, “é fundamental pensar a criança como portadora de outra experiência do tempo”.

2 A desconstrução da identidadeentre criança e infância

2.1 A dissolução das imagens dacriança construídas pelo adulto

Dissolver as imagens construídas da criança como um adulto em miniatura e configurar, como diz Arendt, um “mundo da criança” independente, autônomo, próprio: esse movimento demarca o conceito de infância que vem à tona com a modernidade e que, em termos gerais, explica o sentido das concepções, métodos e práxis que singularizam o que chamamos de “educação infantil” frente a outras formas de educação. Mas será que esse novo saber sobre a infância possibilita o rompimento com as imagens da criança construída pelo adulto e por suas projeções de futuro? Ao contrário do que acontecia até então, no século XVII, a infância passou a ser mais diretamente qualificada como um período que

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compreendesse determinadas faixas etárias, caracterizado como a primeira etapa do desenvolvimento humano. Sendo assim, aqueles que se encontrassem nesse período passaram a ser identificados por possuírem especificidades e necessidades próprias. Foi também o momento em que o cuidado com a vida e com o caráter das crianças deixou de ser algo de exclusiva responsabilidade das famílias e passou a ganhar o interesse do Estado no contexto de um movimento mais amplo, em que as demandas da vida humana finita por condições de sobrevivência, trabalho, bem-estar, segurança, entre outras, passaram a ser forças motrizes do mundo público. O Estado, por sua vez, passou progressivamente a invadir a esfera privada das relações íntimas.

Na modernidade, como diz Kohan, com a “invenção ou a intensificação dos sentimentos em torno da infância, a educação passa a ser, como de certa forma queria Platão, uma questão de Estado” (KOHAN, 2003, p. 91). Mas é bom dizermos que esse Estado não é mais aquele conforme projetava Platão, um Estado que, para garantir uma polis justa, necessitava de homens formados para a virtude moral e para a verdade, gerados pela educação da alma, pela ascese, cuja finalidade é o conhecimento metafísico do bem em si como única forma de compreensão do bem-comum. Se, alimentada pela utopia platônica, a educação das crianças é movida pela crença no devir progressivo do homem e angariada nas imagens de futuro dos adultos, conforme já discutido, na modernidade essa crença se mantém, mas o seu alvo não é mais a virtude moral e a verdade, e sim a normalidade. Em síntese, a crença num devir progressivo da humanidade se mantém, mas ela passará a fundamentar-se nas imagens de futuro idealizadas por um adulto normalizado. A utopia é a normalidade: da moral da virtude passamos a uma moral da normalidade.

Segundo Nietzsche, o Estado Moderno é o bastião da domesticação civilizatória operada através da utilização do cristianismo enquanto técnica de dominação, cujo produto máximo é o homem gregário, comum, rebanho, portador de ideais de

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bem-estar, paz e igualdade. Nesse caminho aberto por Nietzsche, Foucault analisa as formas de exercício do poder nas instituições modernas e a maneira como se opera a dominação do Estado através da adaptação do poder pastoral cristão às suas necessidades. Na relação entre o Estado Moderno e suas instituições, assistimos a articulação entre o poder disciplinar e o pastoral.

Foucault dá o nome de disciplina à forma característica de exercício do poder que vem à tona nas sociedades dos séculos XVII e XVIII, sendo que a função principal do poder disciplinar é normalizadora: gerar um indivíduo apto a governar sua conduta dentro da normatividade que distingue o certo e o errado, o são e o insano, o proibido e o correto. Dessa forma, fabricar “homens úteis”. Na medida em que o poder disciplinar individualiza, produz indivíduos aptos a serem submetidos à forma de dominação característica do poder pastoral, forma de organização do poder que remonta aos hebreus e que foi ligeiramente modificada pelos cristãos.

O poder pastoral é o poder que se origina da relação entre o pastor e seu rebanho, em que: 1) se estabelece um vínculo moral entre o pastor e cada membro de seu rebanho, sendo que o primeiro deve assumir a responsabilidade por todos os atos do segundo; 2) a relação entre pastor e rebanho é caracterizada pela dependência absoluta, sendo a obediência entendida como virtude; 3) o pastor deve conhecer com precisão o que acontece no interior da alma de cada membro de seu rebanho e 4) o pastor deve por em prática técnicas de exame, confissão e direção da consciência para induzir os membros do rebanho a renunciarem constantemente este mundo e a si mesmo.

A modernidade assiste ao desenvolvimento da escola, uma instituição que será, em grande parte, a responsável pela intensificação dos sentimentos relativos à infância. Nesse sentido, é fundamental, como argumenta Kohan, observar que essa intensificação é gerada por uma instituição moldada por dispositivos disciplinares e também invadida pelo poder pastoral.

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É essa instituição, responsável pela construção de um saber/poder sobre a infância, que progressivamente será a responsável pela introdução das crianças, dos recém-chegados, no mundo. Podemos dizer que a escola mais do que possibilitar e aplicar um saber sobre a infância, através dos seus dispositivos disciplinares, produzirá a infância.

Através da escola, a criança, o recém-chegado, o ser novo é introduzido no mundo a partir de uma série de representações específicas reconhecidas socialmente como pertencentes ao “mundo da criança”, produzindo sobre o corpo e o espírito do ser novo o ser infantil. O ser criança é produzido pelo saber sobre a infância e é introduzido no mundo simbólico na medida em que se percebe e se reconhece como infantil aos olhos de um professor adulto representante do mundo púbico, do poder pastoral do Estado. O professor-pastor produz a infância na criança, vigiando-a e conduzindo-a e como guardião de seu futuro, responde pelo seu desenvolvimento. Nesse sentido, produzir a infância na criança é colocá-la no início da linha de desenvolvimento contínuo do humano rumo à normalização, movimento compreendido como imprescindível para o progresso social alimentado pela crença numa concepção teleológica do tempo, angariada principalmente nos avanços da ciência e no desenvolvimento tecnológico que marcam as projeções de futuro do adulto normalizado. Nesse contexto, se torna extremamente significativa a afirmação de Foucault que na escola as crianças são prisioneiras de uma infantilização que não é delas4.

Segundo Arendt, a instituição escolar deve sua origem a um movimento da sociedade moderna de rejeição da distinção entre a esfera do publico e do privado, que por sua vez configura uma nova relação entre as forças que se voltam para o exercício da responsabilidade para com a vida humana finita e as que se voltam para o exercício da responsabilidade pela continuidade do mundo. 4 “Não são apenas os prisioneiros que são tratados como crianças, mas as crianças como prisioneiras. As crianças sofrem uma infantilização que não é delas. Neste sentido, é verdade que as escolas se parecem um pouco com as prisões, as fabricas se parecem muito com as prisões” (FOUCAULT; DELEUZE, 1999, p. 73).

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Segundo Arendt, a esfera pública é o âmbito em que se exerce a responsabilidade pela continuidade do mundo em detrimento da vida finita dos mortais, sendo que é na esfera privada, na família, que se constitui como “um escudo contra o mundo e, sobretudo, contra o aspecto público do mundo” (ARENDT, 1997, p. 236), que a responsabilidade com a vida individual finita se exerce.

A rejeição dessa distinção na modernidade resulta de um processo no qual a responsabilidade para com a vida individual finita progressivamente deixa a esfera privada e invade a pública. O Estado passa a ser o responsável pela conservação da vida e pelo devir individual de seus membros, por suas demandas de sobrevivência, condições de vida, progresso futuro, prosperidade e trabalho. Como efeito disso, a esfera pública invade a privada e passa a desenvolver mecanismos de controle e vigilância sobre a vida dos indivíduos na tentativa de “conciliar” o devir dos indivíduos e o do Estado.

Para Arendt, a educação moderna procurou constituir um “mundo da criança” independente do mundo adulto, procurando libertá-la dos padrões desse mundo, mas acabou por destruir “as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vital” (ARENDT, 1997, p. 236) à medida que expôs as crianças à existência pública, o que é típico do mundo adulto, o que seria um contra-senso da educação moderna. A filosofia diz que quanto

mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público, entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público, ou seja, quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e vice-versa, mais difíceis tornam as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento (ARENDT, 1997, p. 238).

A perda da autoridade da tradição devido ao “pathos do

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novo” alterou a existência pública, que deixou de ser o âmbito da realidade compartilhada, do senso comum, gerado pela consciência do pertencimento a um passado comum, e passou a ser o âmbito em que se opera a normalização como forma de conciliar o devir individual e o devir do Estado que, através do exercício do poder pastoral, constrói a imagem de um futuro comum, angariado numa concepção teleológica do tempo, sustentada pela crença no desenvolvimento científico e tecnológico. Expostas à esfera pública, as crianças se tornam vítimas dos mecanismos de normalização.

Ao assumir a responsabilidade pelas demandas da vida privada e devido aos efeitos gerados por esse comprometimento, a esfera publica deixa de ser o âmbito de exercício da responsabilidade pela continuidade do mundo na medida em que passa a concentrar seus esforços nos mecanismos de normalização. O progresso futuro depende desses mecanismos. Na medida em que a educação passa a ser movida pelo “pathos do novo”, que move a cultura moderna, alicerçada nas visões de um futuro redentor para humanidade, passando a ser um dos pólos de exercício dos mecanismos de normalização, mais se distancia de sua essência: introduzir seres novos num mundo velho. Na medida em que a educação mais se afasta de sua essência, mais se torna um mecanismo que rouba a novidade dos recém-chegados, colocando, dessa forma, a continuidade do mundo em xeque. A normalização impede que o mundo se renove e, assim, obstrui sua continuidade.

Arendt caracteriza como “crise da autoridade na educação”, o sintoma mais agudo da progressiva perda da responsabilidade pela continuidade do mundo, sintoma que “guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição, ou seja, com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado” (ARENDT, 1997, p. 243). Para que o mundo continue, é necessário que o educador torne-se uma ponte entre o velho e o novo. Para isso, deve nutrir um “respeito extraordinário pelo passado” (ARENDT, 1997, p. 244). Mas na medida em que o educador se torna um professor-pastor que disciplina as crianças para entrarem na “marcha do progresso”, o

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respeito pelo passado vai sendo dissolvido. Dessa forma, deixando de ser uma ponte entre o velho e o verdadeiramente novo, ele compromete a continuidade do mundo na medida em que rouba a novidade do novo ao submetê-la às projeções de futuro dos adultos, impedindo que o mundo se renove.

Arendt nos leva a pensar até que ponto a construção do “mundo da criança” pela educação moderna serviu para desatrelar a criança da tirania do adulto e a libertou das imagens do vir-a-ser adulto e do vir-a-ser-novo, construídas pelo adulto. Mesmo procurando romper com as imagens da criança como um adulto em miniatura, o saber sobre a infância produzido pela modernidade, responsável pela construção desse mundo simbólico da criança distinto do mundo adulto, continua, na medida em que a infância é caracterizada como uma etapa da vida, entendida como um marco inicial no desenvolvimento contínuo e linear humano, a ser um terreno configurado e ocupado pelas projeções de futuro dos adultos.

Como introduzir a criança, o recém-chegado no mundo sem roubar-lhe a novidade? Essa questão arendtiana é especialmente desafiadora para a pedagogia que, na modernidade, com a intensificação dos sentimentos relacionados à infância, passa a ser legitimada como ciência na medida em que aplica os saberes produzidos sobre a infância na produção de um tipo específico de criança. Através da caracterização de um “mundo da criança”, a pedagogia moderna se ocupará em produzir uma forma particular de subjetividade infantil. Como nos diz Kohan, antes da modernidade, já existiam ideias, práticas e saberes pedagógicos sobre as crianças. Porém, o que não existia previamente era a pedagogia como ciência, como moral e como política do conhecimento, como desejo de conhecer e estudar o corpo das crianças, seus desejos, seus brinquedos, seus pensamentos e capacidades intelectuais.

Nesse sentido, Arendt nos obriga a repensar o sentido da educação infantil construído historicamente pela pedagogia e nos impõe como tarefa construir em outras bases o sentido e a práxis que a envolve. Em nossa perspectiva, esse movimento nos

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provoca a mudar a ideia de infância construída tradicionalmente a partir da crença num desenvolvimento contínuo do humano, construído sobre as bases de uma concepção linear do tempo, e sua identificação com a figura da criança caracterizada por um conjunto de ausências que as transformaram em solo para as projeções do adulto. Para essa finalidade, pensaremos a criança como portadora de outra experiência do tempo. Faremos isso com o auxílio de dois filósofos: Heráclito e Nietzsche.

2.2 A criança como portadora deoutra experiência do tempo

A filosofia de Heráclito guarda as marcas do processo de “dessacralização” da vida pública grega marcada pelo comumente chamado processo de transição do mito ao logos, que também caracteriza a filosofia socrático-platônica. Se nos ativermos à leitura nietzscheana de Heráclito, vislumbraremos no pensador de Éfeso, o advento de outra cultura que Nietzsche caracteriza como cultura trágica, que fora esmagada pelo homem teórico com sua lógica da identidade e sua tentativa de corrigir os abismos da existência, cujo primeiro movimento se encontra, justamente, na filosofia socrático-platônica. É dessa tradição vitoriosa, do homem teórico, que advém a imagem de Heráclito como um pensador obscuro. Donaldo Schüler, no livro “Heráclito e seu (dis)curso”, diz:

Heráclito brinca com as palavras como se fossem dados. A poesia requer o sacrifício da seriedade, busca os caminhos que levam ao mundo da criança, ainda não afetado pelas leis que delimitam os possíveis do adulto (SCHÜLER, 2007, p. 71).

Operando com a linguagem através do logos do jogo, Heráclito afronta a sua época em que, nas cidades que se democratizam, a palavra se torna uma arma. Esse também é o contexto de Platão, mas o logos de Heráclito é outro. O logos de Heráclito requer a ampliação do mundo, um mundo em que a contradição não deve

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ser expulsa pela lógica da identidade, e sim experimentada e manifestada na linguagem como um caminho que nos conduz a unidade de todas as coisas. Onde buscar essa linguagem? Na poesia que requer o sacrifício da seriedade e que nos conduz ao mundo da criança, um mundo ainda não afetado pelos possíveis dos adultos, adultos para os quais a contradição deve ser expulsa dos discursos, para os quais a contradição não é possível. A criança nos convida a entrar no discurso-rio de Heráclito. O filósofo de Éfeso diz no fragmento 12: Para aqueles que se banham nos mesmos rios, fluem águas distintas e distintas (KOHAN, 2003, p. 128)5.

Heráclito joga com oposições. Oposição entre a identidade dos rios e a distinção das águas que fluem neles. Os mesmos rios reúnem em si águas distintas e, dessa forma, manifestam a unidade que se estabelece na distinção, na diferença, na alteridade. Para isso é necessário entrar no rio. Somente entrando no rio, vislumbramos o fluxo de águas distintas que compõe a unidade-rio, unidade que se torna mais perceptível na medida em que saímos do rio, pois quanto mais distantes, menos perceptível o fluir das águas. Os banhistas compreendem, diferentemente daqueles que contemplam o rio de fora, que a unidade-rio é construída sobre o fluxo de suas águas distintas. Os banhistas jogam e isso significa, segundo Deleuze, que procuram a correlação do um com o múltiplo6, do ser-rio com o devir de suas águas. Jogar é entrar e sair do rio várias vezes. É através desse movimento que os banhistas escutam o logos que se revela na dinâmica do Aión manifestada no jogo sem moral da criança que brinca de construir e destruir castelos, logos que é a possibilidade sempre renovada de reunir o múltiplo no um.

É fundamental entrar e sair do rio: a criança de Heráclito nos convida a esse movimento. Se não entrarmos no rio, não perceberemos que a unidade se mantém no fluxo, na luta dos contrários, no jogo das oposições que caracteriza o mundo vivo.

5 DK 22 B 12 apud KOHAN, 2003, p. 128.6 “A correlação do múltiplo e do um, do devir e do ser forma um jogo. Afirmar o devir, afirmar o ser do devir são dois tempos de um jogo que se compõem com um terceiro termo, o jogador, o artista ou a criança” (DELEUZE, 1976, p. 20).

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Se não entramos no rio, as palavras se congelarão na fixidez ilusória dos conceitos, se cristalizarão na gramática e na lógica da identidade. Desse modo, vislumbraremos uma unidade ilusória, estanque, não viva. Se não entrarmos no rio, não experimentaremos o tempo da vida: tempo governado pela criança. Afirma Heráclito no célebre fragmento 52. O tempo da vida é uma criança que joga um jogo de oposições. De uma criança, seu reino (HERÁCLITO DK 52 apud KOHAN, 2003, p. 147).

Aparecem em Heráclito dois usos do termo “criança”. Um primeiro mais coloquial, que caracteriza a criança como paidós, um não adulto. Um segundo como aquilo que não tem oposições, que joga com as oposições. Nesse segundo termo, a criança passa a caracterizar o tempo da vida (Aión). Aión não é o tempo marcado pela continuidade, demarcado pelas fronteiras do passado, presente e futuro, também não é o tempo mensurado (Chrónos), é um tempo compreendido como destino, do nascimento e da morte, do vir-a-ser e do perecer, da criação e da destruição. Mas por que o tempo como Aión, o tempo da vida, é o reino da criança?

Nietzsche, em “A filosofia na época trágica dos gregos”, escrito de 1873, numa seção em que discute a filosofia de Heráclito, recupera essa associação do filósofo de Éfeso:

Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente activo, constrói e destrói em inocência eternamente igual. E, assim como brincam o artista e a criança, assim brinca o fogo eternamente activo, constrói e destrói em inocência - e esse jogo joga o Aión consigo mesmo. Transformando-se em água e em terra, junta, como uma criança, montinhos de areia à beira-mar, constrói e derruba: de vez em quando recomeça o jogo. Um instante de saciedade: depois, a necessidade se apodera outra vez dele, tal como a necessidade força

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o artista a criar. Não é a perversidade, mas o impulso do jogo sempre despertando de novo que chama outros mundos à vida. Às vezes, a criança lança fora o brinquedo: mas depressa recomeça a brincar com uma disposição inocente. Mas, logo que constrói, liga e junta as formas segundo uma lei e em conformidade com uma ordem intrínseca (NIETZSCHE, 1995, seção VII).

A língua grega reúne num mesmo termo, paizo7, o jogar e o brincar. O tempo da vida (Aión) é regido pela dinâmica do jogar-brincar. No tempo da vida, as coisas são geradas e destruídas, assim como uma criança que brinca de construir e destruir castelos. Como nos diz Nietzsche na passagem citada, a identidade entre o Aión e a criança, assim como também com o artista, se dá pelo fato de que esses entram na dinâmica do construir e destruir através do jogar/brincar sem nenhuma imputação moral em que a destruição potencializa a criação. Para Nietzsche, o movimento do Aión desconhece moralidade, mais do que isso, a moral surge do ressentimento diante da dinâmica do Aión. Dar uma imputação moral ao jogar/brincar manifesta esse ressentimento. O pensamento moral tem uma dinâmica distinta do jogo e acaba por destruir a dinâmica que o envolve.

Segundo Nietzsche, o ressentimento do homem diante da dinâmica do Aión marca a cultura ocidental, pois está na base daquilo que o filósofo caracteriza como pensamento metafísico-moral, que se manifesta no platonismo e depois no cristianismo, religião em que esse pensamento se torna mais capcioso, um “platonismo para as massas”, sendo que, na modernidade, a “morte de Deus” é o evento capaz não só de libertar o pensamento do jugo da moral, como também de dissolver a moral como instância de avaliação do tempo da vida (Aión). Como nos indica a narrativa dramática de “Assim falava Zaratustra”, a “morte de

7 “Outras línguas, incluindo o grego, reúnem, num mesmo termo, o que dividimos em brincar e jogar. Constrangido a escolher, traduzimos paizo por jogar. Mais acertado estaríamos se disséssemos jogar-brincar” (SCHÜLER, 2007, p. 68).

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Deus” requer do homem a geração de uma nova experiência do tempo. Segundo Nietzsche, essa nova experiência será produzida na medida em que se afirme o “pensamento do eterno retorno”. Em “Assim falava Zaratustra”, Nietzsche mostra o dramático processo de incorporação desse pensamento, recuperando a figura da criança de Heráclito na produção dessa nova experiência humana do tempo.

O pensamento nietzscheano do eterno retorno aparece pela primeira vez no aforismo 341 de “Gaia ciência”, intitulado “O maior dos pesos”. Nesse aforismo, o eterno retorno é formulado como uma hipótese apresentada por um demônio:

O maior dos pesos. – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!” Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você estaria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2001, p. 230).

O filósofo apresenta dois estados despertados pela hipótese lançada pelo demônio, dois estados distintos que apontam para

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duas atitudes distintas. Nietzsche impõe uma pergunta que indica o primeiro estado: “Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou?”. Outro estado, também despertado pela hipótese demoníaca, revela uma atitude oposta, uma atitude afirmativa: “Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: ‘Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!’”. Nietzsche apresenta que, na vigência de um certo instante extraordinário, a hipótese demoníaca seria afirmada. Através da caracterização nietzscheana da experiência humana do tempo, podemos vislumbrar o conteúdo dramático desse pensamento e a dificuldade que envolve a sua afirmação

Logo nos primeiros movimentos do parágrafo I da “II Extemporânea”, intitulada “Da utilidade e desvantagem da história para a vida”, Nietzsche caracteriza a singularidade da experiência humana do tempo:

Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade – pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que não me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer, mas também já esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso (NIETZSCHE, 2003, p. 7).

Os animais não sabem o que é o ontem e o hoje, ou seja, não constroem demarcações entre o presente e o passado que

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possibilitem diferenciá-los. Os animais estão ligados “de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante”. Os animais estão presos a estaca do instante, porque as sensações de prazer e desprazer se encontram fechadas em si mesmas e, ao contrário do que acontece com o homem falante, não dão ensejo a nenhum processo contíguo, não são transpostas a outras articulações com a realidade.

Dessa forma, podemos construir a rede de articulações que media a relação dos homens com o devir, articulações que se originam da transposição das sensações de prazer e desprazer em “imagens perceptivas” e dessas aos próprios conceitos que demarcam profundamente a forma pela qual a experiência temporal dos homens se distingue da experiência dos animais. Ou seja, é a linguagem, à medida que torna possível o prolongamento das sensações de prazer e desprazer em sensações de imagem e a incorporação dessas num conceito, que é a verdadeira responsável pela singularidade da experiência humana do tempo frente aos outros animais. Por não assistirem a esse prolongamento, os animais nunca se apartam do instante em que as sensações têm lugar, devido a isso não podem experimentar um determinado instante em sua “diferencialidade” própria, portanto não sabem distinguir o ontem e o hoje.

Assim, os animais não estão submetidos a dois sentimentos tipicamente humanos: a melancolia e o enfado. O enfado surge do próprio peso que a experiência do passado descarrega sob o presente, que faz com que o próprio homem sinta inveja do animal e lembre com melancolia dos tempos de infância, em que ainda não sentia sobre si o peso do passado. Diz Nietzsche:

Assim, o animal vive a-historicamente: ele passa pelo presente como um número, sem que reste uma estranha quebra [...]. O homem, ao contrário, contrapõe-se ao grande e cada vez maior peso do que passou: este peso o oprime ou o inclina para o seu lado, incomodando os seus passos como um fardo invisível e obscuro que ele pode por vezes aparentemente negar e que, no convívio

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com seus iguais, nega com prazer: para lhes despertar inveja. Por isso aflige, como se pensasse em um paraíso perdido, ver o gado pastando, ou, em uma proximidade mais familiar, a criança que ainda não tem nada a negar do passado e brinca entre os gradis do passado e do futuro em uma bem-aventurada cegueira. E, no entanto, é preciso que sua brincadeira seja perturbada: cedo demais a criança é arrancada ao esquecimento. Então ela aprende a entender a expressão “foi”, a senha através da qual a luta, o sofrimento e o enfado se aproximam do homem para lembrá-lo o que é no fundo a sua existência - um imperfectum que nunca pode ser acabado (NIETZSCHE, 2003, p. 8).

O progressivo peso do passado reveste a experiência humana do tempo com um conteúdo dramático. Na tentativa de livrar-se desse peso, o homem produziu valores que, segundo Nietzsche, revelam a vingança da vontade humana contra o tempo, o que marca profundamente a cultura ocidental e que tem no evento da “morte de Deus” um momento decisivo para ser dissolvida. Como diz Nietzsche, o homem inveja a criança, assim como o animal, por experimentar o instante que se encontra vedado ao adulto. Essa inveja faz com que o adulto arranque muito cedo a criança do esquecimento, obrigando-a a entrar na dramática experiência humana do tempo, afastando progressivamente a criança da experiência do instante, submetendo-a às suas configurações do passado ou às suas projeções do futuro.

O animal vive preso a estaca do instante, porque esquece. Esquece porque as sensações de prazer e desprazer não se prolongam para além do instante no qual têm lugar, esquecem porque essas sensações não geram sensações de imagens, reminiscências que retornam como fantasmas, perturbando a emergência de um instante posterior. Por outro lado, por vê-lo extinguir-se para sempre a cada vez, os animais não experimentam o instante em sua “diferencialidade” própria, o que segundo

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Schopenhauer permite afirmar que vivem num presente eterno.De acordo com a “II Extemporânea”, a dramática relação

que o homem ostenta com a temporalidade encontra seu foco na não dissolução das configurações do passado que se mantêm presentes na memória, gerando o prolongamento de certo instante em que determinadas sensações de prazer e desprazer foram produzidas, e que o faz refém daquilo que passou. Na medida em que vislumbramos a maneira pela qual Nietzsche caracteriza a experiência humana do tempo, compreendemos o conteúdo dramático que envolve a hipótese demoníaca do eterno retorno e o sentido da postulação de que somente na vigência de um instante extraordinário esse pensamento seria afirmado.

Em “Assim falava Zaratustra”, Nietzsche apresenta os desdobramentos dramáticos envolvidos na enunciação do eterno retorno. Nesse contexto, recuperando a figura da criança de Heráclito, nos convida a pensar na emergência de uma experiência temporal capaz de produzir a “transvaloração de todos os valores”. Apesar de aparecer de maneira explicita somente na terceira parte da obra, nas seções “Da visão e do enigma” e “O convalescente”, o cenário dramático no qual o pensamento do eterno retorno emerge é preparado desde os primeiros movimentos da obra. Para o propósito de pensar na ligação entre a figura da criança e o sentido da experiência do eterno retorno no interior do drama da Zaratustra, é fundamental analisar o discurso do personagem ainda na primeira parte da obra, intitulada “Das três metamorfoses do espírito”. Nesse trecho, o filósofo nos convida mais uma vez a pensar a criança como portadora de outra experiência temporal.

Nessa seção, Zaratustra fala acerca de três transmutações do espírito. O espírito que realiza a primeira metamorfose transmuta-se em camelo, configura-se como espírito da suportação, suporta todo o peso das coisas já criadas, o peso do passado. Esse espírito pode conduzir aos “últimos homens”, homens cansados que, esmagados pelo peso do passado histórico, já perderam toda a capacidade de criar.

O espírito como camelo “marcha carregado pelo deserto”

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(NIETZSCHE, 2003, p. 52), ambiente onde se dá a segunda transmutação: de camelo em leão. O espírito que se transmuta em leão luta contra a imposição gerada por aquilo que já foi criado, representada pela figura do dragão “tu deves”. Dois aspectos são fundamentais nessa luta: a necessidade de se romper com o passado e, nesse movimento, “criar para si a liberdade para novas criações” (NIETZSCHE, 2003, p. 52). Zaratustra, acerca da segunda transmutação do espírito, lança uma questão: “Meus irmãos, para que é preciso o leão no espírito? Do que já não dá conta suficiente o animal de carga, suportador e respeitador?” (NIETZSCHE, 2003, p. 52). O personagem responde dizendo que aquilo que o espírito de suportação não dá conta é da criação de valores. Mas os novos valores criados podem submeter novamente o homem. Para que isso não ocorra, é necessário que o espírito se transmute em criança. Um novo começo, a possibilidade sempre renovada de um novo ordenamento do mundo é fundamental para que o passado não volte a submeter o homem aos valores já criados. Diz Zaratustra: “Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira sobre si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’” (NIETZSCHE, 2003, p. 53).

A terceira transmutação simboliza a passagem de um mundo regido pela legislação moral para um mundo regido pela legislação do jogo e a possibilidade de geração de uma disposição afirmativa diante do eterno retorno capaz de reverter o peso envolvido na hipótese demoníaca da eterna repetição de tudo na mesma sequência e ordem. É nesse sentido que, no interior da experiência nietzscheana do eterno retorno, podemos ver configurada uma imagem da criança capaz de modificar não só a crença num desenvolvimento linear e contínuo do homem, mas a própria experiência temporal humana e, dessa forma, reinventar o sentido da infância.

Para finalizarmos, apontaremos alguns elementos que sinalizam para a viabilidade dessa leitura, analisando, no interior do texto nietzscheano, a associação entre a figura da criança e o eterno retorno a partir da caracterização da experiência humana

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do instante apresentada na “II Extemporânea” e retomada na narrativa dramática de “Assim falava Zaratustra”.

Considerações finais

O “eterno retorno” aparece pela primeira vez de maneira explicita em “Assim falava Zaratustra”, na seção intitulada “Da visão e do enigma”. O personagem aparece falando aos marinheiros sobre o espírito de gravidade, seu “demônio e mortal inimigo”, personificado na figura de um Anão, que pula nas costas do personagem quando escalava sua mais alta montanha. Zaratustra adota um estilo argumentativo em seu diálogo com o Anão que só pode ser entendido na medida em que se compreende o sentido e os desdobramentos das imagens e metáforas construídas. O diálogo se passa em frente a um portal onde Zaratustra e Anão encontram-se parados, no qual se assiste à junção entre dois caminhos, o que leva para trás e o que leva para frente, caminhos que duram uma eternidade. Esse portal representa o instante. O instante-portal divide o tempo infinito em duas metades, o passado e o futuro, metades que também duram uma eternidade.

Tendo em vista que o passado e o futuro, se encontram no instante, Zaratustra pergunta ao Anão se ao regressarmos ao passado ou nos projetarmos ao futuro, essas dimensões do tempo iriam contradizer-se eternamente. O questionamento conduz o Anão à conclusão de que o tempo é circular, conclusão que Zaratustra rejeita, qualificando-a como apressada e superficial. Na continuidade do diálogo, Zaratustra argumenta que diante da eternidade do passado, podemos afirmar que tudo que ocorre num determinado instante já deve ter acontecido pelo menos uma vez, inclusive o instante no qual ele e o Anão se encontram dialogando. O personagem diz ainda que, ao regressar ao passado, se contempla a infinitude da rua que leva para trás e se prolonga até o instante, salientando que ninguém a percorreu até o final. Mas então como vislumbrar que um dado instante repete um evento já transcorrido?

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É fundamental observar que os argumentos de Zaratustra não são conclusivos e que a conclusão é formulada pelo Anão, seu mortal inimigo. Os argumentos de Zaratustra são interrompidos pela enigmática visão de um pastor sendo devorado por uma serpente, a qual é melhor compreendida na seção “O convalescente”, quando o personagem revela: “O grande fastio que sinto do homem - isto penetrava em minha goela e me sufocava; e aquilo que proclamava o advinho: ‘Tudo é igual, nada vale a pena, o saber nos sufoca’” (NIETZSCHE, 2003, p. 261).

O pastor é o próprio Zaratustra e a serpente, o fastio que sente com relação aos homens diante da evidência de que não há progresso e aperfeiçoamento da humanidade, somente eterna repetição. O drama de Zaratustra se intensifica e a doutrina do Adivinho reaparece como um fantasma, conduzindo o personagem à convalescência. Essa doutrina, apresentada por Nietzsche ainda na segunda parte da obra, representa o desdobramento niilista da experiência do eterno retorno, que conduz ao esgotamento de todas as capacidades criativas do homem, que conduz aos últimos homens, ao homem cansado que perdeu toda capacidade de criar.

Para Paolo D’Iorio, esse desdobramento dramático está ligado à dificuldade de aceitar o eterno retorno sem se afetar pelos efeitos paralisantes e niilistas envolvidos numa concepção circular do tempo que aponta para o não-histórico, para a dissolução da experiência temporal humana, e afirmá-lo no mais alto grau de sentido histórico. Isso mostra que o eterno retorno nietzscheano não pode ser identificado com a concepção circular do tempo dos antigos, pois, como aponta a narrativa de “Assim falava Zaratustra”, deve ser visto no interior de um projeto de redenção “no” tempo e não de um projeto de redenção “do” tempo, um projeto que incorpora o sentido histórico e não o dissolve. Por isso que a experiência do instante, crucial nesse embate de Zaratustra contra os desdobramentos niilistas do eterno retorno, é metaforizada na figura de um portal a partir do qual regressamos ao passado ou nos projetamos ao futuro.

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Nessa caracterização, podemos observar o esforço de Nietzsche em afirmar o pensamento do eterno retorno sem romper com as categorias de passado e de futuro, recompondo essas dimensões do tempo a partir da experiência do instante. Sendo assim, o rompimento com a concepção linear do tempo realizada pela experiência do eterno retorno nietzscheano não se estabelece a partir da retomada da circularidade estática dos antigos, mas através da repetição do instante. Essa formulação coloca novamente em questão o problema da experiência humana do instante em sua diferencialidade própria.

Apesar de assistirmos grandes mudanças no pensamento do filósofo da “II Extemporânea” para “Assim falava Zaratustra”, principalmente no que se refere à posição assumida diante do sentido histórico, essa obra do período de juventude é crucial para a construção dos elementos que envolvem a formulação do eterno retorno à medida que coloca em questão o problema da vivência do instante em sua “diferencialidade” própria como o que distingue a experiência temporal humana. Podemos dizer que nessa formulação, a figura da criança emerge do interior da filosofia nietzscheana como elemento potencializador dessa experiência, que encontra na articulação entre memória e esquecimento, sua marca distintiva. No contexto da experiência do eterno retorno, a figura da criança se constitui como um elemento capaz de romper a vingança da vontade contra o tempo que, segundo Nietzsche, está na base de geração de todos os valores niilistas que negam a vida.

A dramática progressão retórica de enunciação do eterno retorno em “Assim falava Zaratustra” nos revela que tanto a concepção circular dos antigos como a concepção teleológica do tempo são marcadas por essa vingança. Nem o passado oracular, nem o futuro idealizado, o eterno retorno nietzscheano potencializa a experiência do instante para romper a vingança da vontade contra o tempo. Nesse registro, a figura da criança aparece dotada de um significado totalmente diferente daquele construído pela tradição. Pensando com Nietzsche, mas extrapolando o

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próprio texto nietzscheano, podemos nos questionar se não seria a identidade construída entre criança e infância um sintoma dessa vingança contra o tempo que se expressa através da relação que o homem estabelece com o fenômeno da natalidade.

Heráclito e Nietzsche são filósofos que nos convidam a observar como as imagens da criança estão vinculadas diretamente com a compreensão humana da temporalidade. Nesse sentido, nos fazem pensar que uma mudança radical nas caracterizações da figura da criança, como podemos encontrar no interior do pensamento desses filósofos, só é possível na medida em que uma nova experiência do tempo seja vislumbrada, o que atinge diretamente os processos educacionais. Como vimos, segundo Arendt, a crise na educação está diretamente ligada ao enfraquecimento da autoridade da tradição a que nos conduziu o pathos do novo que caracteriza a modernidade, ou seja, a crise está diretamente ligada a uma mudança nas relações do homem com o tempo.

Mas, por outro lado, a crise revela que a essência da educação se encontra no fenômeno da natalidade, no fato de seres novos nascerem num mundo velho. A crise nos colocou diante de uma discussão acerca da relação entre natalidade e experiência humana do tempo, denunciando no centro dessa reflexão o potencial que os processos educacionais possuem de roubar a novidade dos verdadeiramente novos, as crianças.

Nesse percurso, a leitura de Heráclito e Nietzsche pode nos colocar diante da emergência de um pensamento capaz de desconstruir a identidade, construída historicamente a partir das imagens do vir-a-ser adulto e da crença no devir progressivo do homem, entre criança e infância, e nos possibilitar pensar essa relação em outros termos, em que a criança, não mais caracterizada por um conjunto de ausências e marcada pelo “signo da falta”, pode reinventar o sentido da infância. Dessa forma, transformar radicalmente o que chamamos de educação infantil, impossibilitando que esse seja o âmbito em que, em termos arendtianos, a novidade da criança é roubada.

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Infância, criança e a experiência humana do tempo

Abstract:

The present work has as focus the problem of the identity between child and childhood, leaving of the characterization of important historical and philosophical elements involved in the construction of that identity, going by Heráclito, Plato, Nietzsche, Foucault and Hannah Arendt. To leave of that course it seeks to generate a reflection on the bases in which this identity is built, leaving of aspects that involve the characterization of the human experience of the time.

Keywords: Childhood; child; t ime; education; birth rate.

Childhood, child and humanexperience of time

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Análise de uma proposta de avaliação institucional para a escola e para instituições de

educação infantilVanda Mendes Ribeiro1

[email protected]

Cláudia Oliveira Pimenta2

[email protected]

Resumo

Este artigo analisa uma metodologia de autoavaliação institucional para escolas e instituições de educação infantil presente em dois instrumentos: “Indicadores da qualidade na educação” e “Indicadores da qualidade na educação infantil”, cujo uso tem sido recomendado pelo Ministério da Educação (MEC). A análise será feita à luz de critérios internacionais próprios para a crítica de avaliações (utilidade, factibilidade, precisão e propriedade) e também considerando desafios para o campo da avaliação (envolvimento dos stakeholders; melhoria da vida das pessoas e das instituições; legitimidade frente aos responsáveis pelas decisões; compartilhamento de percepções). Conclui-se que os materiais têm potencial para responder a maior parte desses critérios e desafios, sendo que estudos sobre sua operacionalização em diferentes contextos são importantes para reforçar, contrariar ou trazer novas evidências.

Palavras-chave: autoavaliação institucional; qualidade na educação; metodologia de avaliação.

1 Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), com bolsa Capes, e mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 2 Mestranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), com bolsa do Observatório da Educação/Capes, e professora de História na rede estadual de São Paulo.

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Introdução

Este artigo pretende analisar uma metodologia de autoavaliação institucional para o ensino fundamental e a educação infantil sugerida pelos instrumentos “Indicadores da qualidade na educação” e “Indicadores da qualidade na educação infantil”, elaborados respectivamente em 2003 e 2008 e publicados nos anos subsequentes. O objetivo desses instrumentos é que o uso da avaliação institucional seja um meio de mobilizar profissionais da educação, alunos, familiares e demais interessados para a melhoria da qualidade na educação. O Ministério da Educação os tem recomendado e incorporado no âmbito de suas políticas, sendo que a publicação do mais recente deles já surgiu como parte da Política Nacional de Educação Infantil.

A análise procurará averiguar a potencialidade da metodologia proposta nos materiais acima citados de responder, enquanto proposta de autoavaliação institucional, a padrões de qualidade de avaliação internacionalmente reconhecidos e a desafios contemporâneos da avaliação, expressos por especialistas da área.

Nas últimas décadas, a avaliação tem se tornado um procedimento cada vez mais relevante, mundialmente, nos mais variados contextos educativos e formativos. Sousa, especialista em avaliação e pesquisadora da área de educação, afirma a tendência da avaliação de “[...] se voltar a diferentes focos, como, por exemplo, aprendizagem, desempenho de alunos, planos, programas, projetos, currículos, instituições e, até mesmo, às próprias políticas educacionais” (SOUSA, 2009, p. 2).

Essa tendência, além de se globalizar, tem gerado um movimento amplo no sentido da criação de materiais e subsídios para a aplicação dessas avaliações nem sempre muito confiáveis: “O campo [da avaliação] vai continuar a se propagar rapidamente pelo globo até haver poucos países, territórios, províncias, estados e municípios onde a avaliação não seja feita pelo menos de vez em quando” (WORTHEIN; SANDERS; FITZPATRICK, 2004, p. 676).

Análise de uma proposta de avaliação institucional para a escola e para instituições de educação infantil

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Daqui e dali surgem verdadeiros kits prontos a usar para avaliar professores, escolas e sistemas educativos. Tudo em nome de uma qualidade, de uma eficiência e de uma eficácia que, em rigor, nem sempre serão discutidas com clareza e com a desejável e necessária profundidade (FERNANDES, 2007, p. 2)3.

No Brasil, segundo Oliveira, nos últimos anos,“procurou-se disseminar uma cultura de avaliação. Sua forma mais visível foi o estabelecimento de diversos tipos de avaliações sistêmicas. Entre estas, o SAEB [Sistema de Avaliação da Educação Básica]” (OLIVEIRA, 2006, p. 99). E “apesar das resistências [...] o passar do tempo tem feito com que tais mecanismos ampliem sua abrangência” (OLIVEIRA, 2006, p. 103).

Entretanto, se a avaliação externa do desempenho dos alunos por meio de teste em larga escala se coloca como elemento central para o desenho de políticas de educação básica no país, o mesmo não se pode dizer da autoavaliação institucional. De acordo com Brandalise4,

a autoavaliação institucional é uma discussão recente, uma prática ainda a ser construída nos espaços escolares. É uma modalidade de avaliação que carece de maior aprofundamento teórico e metodológico, particularmente no contexto brasileiro (BRANDALISE, [200-], p. 3).

Sousa afirma que a perspectiva de avaliação institucional na educação básica é bastante recente no Brasil.

A discussão sobre avaliação institucional direcionada para a educação básica é recente no Brasil. O que temos acumulado são contribuições trazidas, desde os anos 80, relativas à avaliação das instituições de ensino superior, as quais podem ajudar-nos na proposição e desenvolvimento de propostas para a escola básica [...] (SOUSA, 1999, p. 83).

3 FERNANDES, D. Limitações e potencialidades da avaliação educacional. Lisboa, 2007. 6 f Mimeografado.4 BRANDALISE, M. A. Auto-avaliação da escola: processo construído coletivamente nas instituições escolares. São Paulo, [200-]. 18 f. Mimeografado.

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Para Vianna (2000), o debate internacional sobre avaliação aponta alguns critérios para sua análise, tais como: rigor/precisão, utilidade, factibilidade/exequibilidade e propriedade. Os critérios surgiram no início da década de 1980, nos EUA e são chamados de Standarts for evaluations of educational programs, projects and materials (Padrões para Avaliação de Programas, Projetos e Materiais Educacionais). Esses padrões objetivaram enfrentar uma série de abusos que vinham sendo cometidos com a proliferação de avaliações realizadas na área educacional. Sua elaboração envolveu “um grande número de pessoas e vários anos de árduo trabalho cooperativo, em que importantes organizações científicas norte-americanas se fizeram representar5” (VIANNA, 2000, p. 110).

Os padrões de avaliação estão agrupados em quatro grupos, de acordo com os atributos de uma avaliação: sua utilidade; sua factibilidade; sua propriedade (adequação; correção) e sua precisão. Os padrões de utilidade refletem o consenso na literatura relacionado à necessidade de a avaliação de programas ser responsiva às indagações das clientelas. Os padrões, em geral, exigem que os avaliadores conheçam as várias audiências interessadas nos resultados da avaliação, estabeleçam as informações de que precisam, e apresentem clara e concisamente informações relevantes no tempo próprio. Os padrões relacionados à factibilidade (ponderam a avaliação) em termos materiais e de custos-benefícios. A avaliação exige um plano definido, operativo, prático e parcimonioso em relação aos recursos financeiros. Ou seja, o padrão factibilidade significa ser: realista, prudente, politicamente viável e parcimonioso, no dizer de Stufflebeam e Madaus (In: MADAUS et al., 1993). O terceiro grupo de padrões – sua propriedade – reflete o fato das avaliações afetarem as pessoas de diferentes modos; assim, são padrões que garantem os direitos das pessoas e os protegem, considerando

5 Segundo Vianna (2000) o processo de definição dos padrões durou cinco anos, de 1976 a 1980.

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que muitas avaliações têm implicações éticas. [...] Os padrões relacionados com a precisão demandam que as informações levantadas sejam tecnicamente adequadas e que as conclusões estabelecidas estejam logicamente relacionadas aos dados (VIANNA, 2000, p. 120-121).

O cumprimento de tais critérios está diretamente relacionado com a capacidade de uma avaliação responder adequadamente a certos desafios. Dentre eles, o envolvimento dos stakeholders (partes interessadas na avaliação); a percepção dos diferentes significados que os stakeholders podem atribuir à qualidade do que está sendo avaliado; a explicitação de conflitos e problemas; a mediação de negociações; a contribuição para a melhoria das pessoas e das instituições (FERNANDES, 2007; [200-]6); e a capacidade da avaliação se fazer legitimar junto aos responsáveis pelas decisões (FITZPATRICK; CHRISTIE; MARK, 2009).

Os dois instrumentos aqui analisados são compostos de duas partes principais. A primeira é uma sugestão de metodologia para operacionalizar a autoavaliação institucional participativa. A segunda traz um conjunto de indicadores que oferece parâmetros para a autoavaliação. Para analisar os referidos instrumentos, este artigo tratará primeiramente de descrever e analisar o modo como o conjunto de indicadores foi elaborado. Em seguida, será descrita e analisada a metodologia de autoavaliação sugerida nos dois documentos.

A elaboração dos sistemas deindicadores presentes nos materiais7

Os “Indicadores da qualidade na educação” foram elaborados primeiramente para o ensino fundamental, em 2003, sob

6 FERNANDES. Domingos. Avaliação de programas e projetos. Lisboa: [200-]. Mimeografado.7 Em 2005, foi publicado no “Caderno de pesquisas”, por Vera Masagão Ribeiro, Vanda Mendes Ribeiro e Joana Buarque de Gusmão, artigo que trata da elaboração do sistema de indicadores e da metodologia de operacionalização da autoavaliação voltada para o ensino fundamental de forma mais detalhada. Nesse artigo, as autoras nomeiam o conjunto de dimensões, indicadores e perguntas como sendo um sistema de indicadores, nomenclatura essa que será aqui adotada (Cf: RIBEIRO, Vera; RIBEIRO, Vanda; GUSMÃO, 2005, p. 239).

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coordenação de um conjunto diverso de instituições: uma organização não-governamental (Ação Educativa, com sede em São Paulo), dois organismos internacionais (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD e Unicef), e governo federal (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep e Coordenadoria de Articulação e Fortalecimento Institucional dos Sistemas Escolares - Cafise, vinculada à Secretaria da Educação Básica, do MEC)8.

Em 2008, seguindo a mesma metodologia, foram organizados os “Indicadores da qualidade na educação infantil”. A coordenação da elaboração desse segundo instrumento esteve a cargo da Ação Educativa, Unicef, Fundação Orsa, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e Coordenadoria-Geral da Educação Infantil (Coedi), vinculada à Secretaria de Educação Básica do MEC. Os dois materiais se apresentam como instrumentos de avaliação institucional participativa cujo objetivo é “ajudar a comunidade escolar na avaliação e na melhoria da qualidade da escola” (AÇÃO EDUCATIVA et al., 2007, p. 5).

Em ambas as publicações, os indicadores encontram-se divididos em sete diferentes dimensões de qualidade. As dimensões são “elementos fundamentais que devem ser considerados pela escola na reflexão sobre sua qualidade” (AÇÃO EDUCATIVA et al., 2007, p. 5) ou, segundo a Secretaria de Educação Básica e o Ministério da Educação “aspectos fundamentais para a qualidade” (SEB/MEC, 2009, p. 19). Na publicação voltada para o ensino fundamental, cada dimensão possui cerca de seis indicadores. Na publicação “Indicadores da qualidade na educação infantil”, o número de indicadores por dimensão é menor: cerca de três para a maior parte das dimensões. Vinculado a cada um dos indicadores propostos, há ainda um conjunto de perguntas. Segue abaixo um exemplo retirado da publicação de 2007 e que mostra a estrutura do conjunto de dimensões, indicadores e perguntas.

8 A primeira publicação dos “Indicadores da qualidade na educação” é de 2004. Em 2007, foi publicada uma nova versão que incluiu outra dimensão da qualidade - Ensino e Aprendizagem da Leitura e da Escrita e outras alterações. Os “Indicadores da qualidade na educação infantil” foram elaborados em 2008 e publicados em 2009.

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Dimensão 1: Ambiente educativoIndicador 1. Amizade e solidariedade1.1. Quando alguém (professor, funcionário ou aluno) chega à escola com algum problema pessoal encontra pessoas dispostas a ajudar?1.2. O ambiente da escola favorece a amizade entre todos (entre alunos e alunos; entre professores e alunos; entre os professores etc.)?Indicador 2. Alegria2.1. Os alunos gostam de frequentar a escola?2.2. As pessoas que trabalham na escola gostam do trabalho que ali desenvolvem?2.3. A escola promove festas com a participação de pais, alunos, professores e funcionários?

Nessa dimensão - Ambiente educativo - usada como exemplo, há ainda outros quatro indicadores, cada um deles com seu conjunto de perguntas. Vale observar que logo após o anúncio de cada dimensão, há um texto curto, com uma linguagem simples, explicando as razões pelas quais os indicadores que pertencem a essa dimensão são importantes.

As duas publicações aqui estudadas explicitam a contribuição de amplos grupos técnicos no processo de definição do sistema de indicadores. Analisando as instituições componentes de tais grupos técnicos, observa-se que foram constituídos por especialistas de universidades, organizações não-governamentais, fundações empresariais, autarquias, instituições representativas da área da educação, organismos internacionais e membros do governo federal, em geral da Secretaria de Educação Básica do MEC. Observa-se que para a elaboração dos sistemas de indicadores foram realizadas várias reuniões do grupo técnico, oficinas regionais (no caso do sistema elaborado em 2008) e pré-testes de versões preliminares.

Contando com um estudo preliminar e uma primeira sistematização [...], esse grupo de trabalho reuniu-se para definir as linhas gerais do projeto. [...] Com

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essas referências, elaborou-se uma versão preliminar do sistema. Membros do grupo de trabalho mobilizaram-se para, articulados com escolas interessadas, utilizar experimentalmente o instrumental, com vistas a testar sua adequação [...] e reunir dados para seu aperfeiçoamento. Foram envolvidas nessa etapa do trabalho 14 escolas distribuídas nas cinco regiões do território nacional (RIBEIRO, Vera; RIBEIRO, Vanda; GUSMÃO, 2005, p. 235).

O desenvolvimento do trabalho contou com a participação de um Grupo de Trabalho, composto por representantes de entidades, fóruns, conselhos, professores, gestores, especialistas e pesquisadores da área, que se reuniu ao longo de um ano para elaborar a primeira versão. Essa versão foi discutida e alterada em 8 (oito) Seminários Regionais e, após a incorporação das sugestões, foi pré-testada em instituições de educação infantil, públicas e privadas, de 9 (nove) unidades federadas (SEB/MEC, 2009, p. 7).

Tais estratégias adotadas para elaboração dos materiais têm potencial de dialogar com pelos menos três questões relevantes em se tratando de avaliação, segundo especialistas. A primeira delas diz respeito à importância do apoio dos responsáveis pelas decisões para que os resultados da avaliação sejam utilizados, conforme afirma David Fetterman, em entrevista concedida a Fitzpatrick, Christie e Mark (2009, p. 107). A presença de instituições representativas da área educacional no grupo técnico que contribuiu com a elaboração dos sistemas de indicadores legitima os materiais, aumentando sua potencialidade de serem aceitos junto aos gestores da área, o que, por sua vez, aumenta o seu potencial de utilidade. Relate-se, por exemplo, que a Undime e o MEC fizeram parte não somente do grupo técnico, como também do grupo que coordenou a elaboração dos “Indicadores da qualidade na educação infantil”.

O sistema de indicadores foi elaborado com a participação de

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segmentos das comunidades escolares e de educação infantil (em oficinas regionais, pré-testes e oficinas nacionais). Ou seja, houve reconhecimento, ainda na fase de elaboração dos parâmetros de avaliação, da importância de envolver os stakeholders em processos avaliativos, ponto central em avaliações (FERNANDES, [200-], p. 6)9.

Por fim, ressalte-se que o sistema de indicadores foi construído com a participação de especialistas. De acordo com Worthein, Sanders e Fitzpatrick (2004), é fundamental, em processos avaliativos, ouvir a opinião dos especialistas em conteúdos que se relacionam com o objeto a ser avaliado.

Pode-se dizer, com base em afirmações de especialistas em avaliação, que o diálogo que a metodologia de elaboração dos sistemas de indicadores denota ter mantido com desafios próprios de processos avaliativos faz com que os materiais aqui analisados adquiram características que potencializam seus níveis de utilidade (no que tange à legitimidade junto aos responsáveis pelas decisões) e precisão (devido à participação de especialistas que garantem relação com as teorias sobre educação e à participação de pessoas que representam os stakeholders).

A metodologia de autoavaliaçãoinstitucional presente nos materiais

Para facilitar a análise da metodologia sugerida para operacionalizar a autoavaliação participativa nas escolas e instituições de educação infantil, a referida metodologia foi dividida em cinco fases:1. Criação de um grupo coordenador do projeto na instituição de educação infantil ou escola;2. Mobilização da comunidade escolar;3. Avaliação;4. Planejamento;5. Monitoramento.

9 FERNANDES, D. Avaliação de programas e projetos. Lisboa, [200-]. 6 f. Mimeografado.

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Na fase 1, a metodologia de ambos os instrumentos aqui analisados sugere a criação de um grupo coordenador que cuida, na instituição, da organização das demais fases para o uso dos instrumentos aqui analisados (prevendo locais, materiais, meios de mobilizar a comunidade etc.).

Recomendamos que a escola constitua uma equipe para organizar o processo, planejar como será feita a mobilização da comunidade, providenciar os materiais necessários e preparar espaços para as reuniões dos grupos, a plenária final e também as atividades relativas ao planejamento (AÇÃO EDUCATIVA et al., 2007, p. 9).

Fica claro que a opção do material é pela avaliação interna, “da integral responsabilidade de um grupo de participantes directos” da comunidade escolar (FERNANDES, [200-]10, p. 5). Não se tratando, portanto, de avaliação externa. Vale a pena citar aqui as vantagens e desvantagens da avaliação interna, segundo Fernandes:

É verdade que a avaliação interna, ao ser realizada por pessoas que estão directamente envolvidas no programa, pode descrever com mais autenticidade e com mais profundidade o que, realmente, está acontecendo. Mas também é verdade que a avaliação nestas condições pode correr o risco de ser demasiado parcial e enviesada (FERNANDES, [200-], p. 6).

Resultados parciais de uma avaliação dizem respeito ao critério “precisão”. Seria importante investigar se a operacionalização concreta dessa metodologia implica em resultados de tal modo parciais ou enviesados a ponto de infringir esse critério. Ou se características da proposta, tal como a participação de todos na avaliação, que se reporta à triangulação de informações, um dos modos de evitar, segundo Fernandes [200-], a falta de rigor, são suficientes para fazer frente à problemática.

Na fase 2, o grupo coordenador define e executa formas de

10 FERNANDES, D. Avaliação de programas e projetos. Lisboa, [200-]. 6 f. Mimeografado.

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efetivar a mobilização da comunidade. O documento explicita como sendo esse um momento importante:

A mobilização da comunidade escolar para participar da avaliação é o primeiro ponto importante no uso dos Indicadores. Quanto mais segmentos e pessoas participarem da avaliação da escola e se engajarem em ações para sua melhoria, maiores serão os ganhos para a sociedade e para a educação. Por isso, é muito importante que todos os segmentos da comunidade sejam convidados a participar, não somente aqueles mais atuantes no dia-a-dia (AÇÃO EDUCATIVA et al., 2007, p. 9).

A preocupação expressa no material com a mobilização da comunidade se apresenta como coerente com seu objetivo de “ajudar a comunidade escolar na avaliação e na melhoria da qualidade da escola”. A publicação traz várias sugestões sobre como é possível fazer essa mobilização:

A escola deve usar criatividade para mobilizar pais, alunos, professores, funcionários e outras pessoas da comunidade para o debate sobre sua qualidade. Cartas para os pais, faixa na frente da escola, divulgação no jornal ou na rádio local e discussão da proposta em sala de aula são algumas possibilidades (AÇÃO EDUCATIVA et al., 2007, p. 9-10).

A valorização da fase de mobilização da comunidade e da ideia de que a melhoria da qualidade da educação na escola depende da participação dos stakeholders no processo avaliativo e de planejamento evidencia mais uma vez esforços da metodologia de buscar responder ao desafio do envolvimento dos stakeholders. Fernandes considera que:

a participação na avaliação de, pelo menos, os principais intervenientes num dado projeto, garante a diversidade de pontos de vista sobre o seu mérito e o seu valor, permitindo uma visão mais rigorosa das realidades que se pretendem avaliar (FERNANDES, [200-], p. 6)

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A fase 3, referente à sugestão sobre como realizar a autoavaliação participativa propriamente dita, é a que toma mais espaço no total de explicações sobre como se operacionaliza o uso dos instrumentos aqui analisados. O material sugere que as escolas de ensino fundamental ou instituições de educação infantil destinem entre 4 a 6 horas de trabalho para a realização da autoavaliação. Ou seja, é preciso agendar meio ou um dia de trabalho para essa fase. Segundo a metodologia sugerida nas duas publicações, esse momento começa com a reunião de todos os participantes (que, pela proposta, devem se constituir de todos os segmentos da comunidade escolar - professores, familiares, alunos, diretores, coordenadores pedagógicos, demais funcionários, membros de associações locais, representantes de conselhos etc.) em um mesmo espaço. Alguém do grupo coordenador explica, então, os objetivos da reunião e expõe como será organizado o momento de autoavaliação.

Uma exposição para iniciar os trabalhos no dia da avaliação - por meio de cartazes, murais, quadros, retroprojetor ou Power Point - pode ajudar na compreensão do objetivo dos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil e de quais serão os passos para o planejamento e a organização da avaliação (SEB/MEC, 2009, p. 18).

Em seguida, os participantes são divididos em grupos constituídos por representantes de todos os segmentos da comunidade escolar. Cada grupo fica responsável por debater os indicadores e perguntas de uma dimensão. Os locais para a reunião desses grupos devem estar previamente preparados e sinalizados. Indica-se que o número de pessoas por grupo não ultrapasse vinte para facilitar a participação de todos.

Os participantes devem dividir-se em grupos por dimensões. Cada grupo deve ser composto por representantes dos vários segmentos da comunidade escolar e eleger um coordenador e um relator, sendo este

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último responsável por tomar nota e expor na plenária o resultado da discussão do grupo (RIBEIRO, Vera; RIBEIRO, Vanda; GUSMÃO, 2005, p. 240).

Nos grupos, o coordenador é responsável por verificar se todos entenderam e cuidar que todos falem, considerando o tempo previsto. O trabalho é iniciado com a leitura do texto que apresenta a dimensão. Em seguida, a orientação é que seja feita a leitura de um indicador e do conjunto de perguntas a ele relacionado. A discussão então deve ser iniciada com o grupo respondendo à primeira pergunta. “As perguntas presentes no documento referem-se a ações, atitudes ou situações que mostram como está a instituição em relação ao tema abordado pelo indicador” (SEB/MEC, 2009, p. 20). Discutida uma pergunta, o grupo lhe atribui uma cor: vermelha, amarela ou verde.

Caso o grupo avalie que essas práticas, atitudes ou situações estão consolidadas na escola, deverá atribuir-lhes cor verde, pois podem ser consideradas boas. O instrumental é claro ao dizer que, nesse caso, a escola está num bom caminho no constante processo de melhoria da qualidade, sendo ele infinito. Se na escola, essas atitudes, práticas ou situações ocorrem, mas não podem ser consideradas recorrentes ou consolidadas, o grupo lhes atribuirá cor amarela. Elas merecem cuidado e atenção. Caso o grupo avalie que na escola essas atitudes, situações ou práticas são inexistentes ou quase inexistentes, irá atribuir-lhes cor vermelha, pois exigem intervenção imediata (RIBEIRO, Vera; RIBEIRO, Vanda; GUSMÃO, 2005, p. 240).

Após terminar de avaliar e atribuir cores a todas as perguntas do primeiro indicador, o grupo faz uma discussão e atribui uma cor ao primeiro indicador. O grupo passa então a tratar do segundo indicador. [...] Quando todas as perguntas e indicadores tiverem recebido suas cores, o grupo terá

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terminado sua primeira tarefa e poderá ir para a plenária (SEB/MEC, 2009, p. 22).

Na plenária, os relatores, com o apoio de um quadro-síntese11, expõem o resultado da avaliação feita por seu grupo.

A exposição dos relatores à plenária deve girar em torno de dois pontos: apresentação resumida da discussão do grupo e relato das justificativas para a escolha das cores atribuídas a cada um dos indicadores” (SEB/MEC, 2009, p. 25).

Todos os participantes podem rediscutir as definições dos grupos, debater as dúvidas, visando a um retrato comum da qualidade da educação. Definido esse retrato comum, passa-se então para a definição das prioridades de ação que serão a base para a elaboração de um plano de ação, também de forma participativa.

É possível considerar que a proposta possui potencial de factibilidade: possibilita a avaliação da escola de ensino fundamental ou da instituição de educação infantil com a participação da comunidade em um tempo relativamente curto. Corrobora também esse potencial o fato de que os materiais necessários ao processo de autoavaliação (fotocópias, lápis de cor, papel, canetas) são de uso cotidiano de escolas e de instituições de educação infantil, além de pouco dispendiosos.

Ainda sobre essa fase (3), vale discutir a proposta de divisão de grupos de trabalho com a presença de todos os segmentos da comunidade escolar e a plenária, também composta por todos esses segmentos. Evidencia-se aqui a radicalização da proposta de participação de todos no processo avaliativo: pela metodologia, todos respondem perguntas, atribuem cores a elas e também aos indicadores. A atribuição de cores aos indicadores ocorre depois de serem atribuídas cores às perguntas vinculadas a um dado indicador. Não é uma média. A discussão e a negociação são um imperativo. Esse talvez seja o ponto mais forte da metodologia em relação à sua busca de responder adequadamente ao desafio 11 Orienta-se que esse quadro fique em local visível.

Análise de uma proposta de avaliação institucional para a escola e para instituições de educação infantil

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de envolver os stakeholders nos processos avaliativos; e também ao desafio de fazer com que, no processo de autoavaliação, se explicite as diferentes percepções desses stakeholders sobre a qualidade do que é avaliado (nesse caso, a qualidade da educação que se realiza na escola de ensino fundamental ou instituição de educação infantil que usa o material).

A fase 4 é o momento da elaboração do plano de ação. Os documentos sugerem que seja agendado outro dia para sua consecução a fim de

que o processo não seja cansativo. [...] Pode-se também tirar uma comissão representativa de todos os segmentos da equipe e da comunidade (incluindo familiares), que se reunirá em outro momento com o objetivo de elaborar o plano de ação” (SEB/MEC, 2009, p. 25).

A fase 5 e última diz respeito ao monitoramento do plano de ação. Sugere-se que seja criada uma comissão para acompanhar a realização do plano e os problemas que surgem no processo. Indica-se que uma nova autoavaliação seja organizada a cada um ou dois anos. E também que seja exposto, em local visível na instituição, um painel com as cores atribuídas aos indicadores trazidos nas publicações, visando a facilitar o acompanhamento dos resultados advindos do plano de ação pela comunidade.

As fases 4 e 5 - planejamento e monitoramento do plano de ação - remetem à discussão sobre a utilidade dos processos avaliativos. Fernandes afirma que:

[...] é preciso compreender que a avaliação, por si só, não resolve rigorosamente problema nenhum. Uma boa avaliação traduz com rigor uma dada realidade ou um dado fenômeno e, nesse sentido, ajuda-nos a compreendê-lo melhor. Conseqüentemente, a avaliação contribui para que as acções humanas destinadas a melhorar e a transformar a realidade social sejam mais informadas e inteligentes (FERNANDES, 2007, p. 3-4).

Vanda Mendes Ribeiro, Cláudia Oliveira Pimenta

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A presença de uma proposta de planejamento e de monitoramento que se alia à proposta de avaliação institucional reafirma o esforço da metodologia aqui analisada de dialogar com o critério de utilidade, com vistas a responder ao desafio de “melhorar a vida das pessoas e das instituições”. Além disso, aumenta o potencial de que, de posse dos resultados da autoavaliação participativa, as ações a serem definidas e implementadas coletivamente sejam “mais informadas e inteligentes”.

Quanto aos critérios relativos à propriedade (proteção das pessoas, consideração ao fato de que todas as pessoas estão implicadas de algum modo no processo avaliativo, questões éticas), é possível afirmar que ao convocar todos os segmentos da comunidade a participar da autoavaliação, a metodologia aqui apresentada considera que todos os membros de uma instituição estão necessariamente implicados quando o mesmo se inicia. Permitir que todos tenham voz pode ser um meio de “proteção de cada um”. Entretanto, em relação ao critério propriedade, é preciso ter em conta tratar-se de algo que se remete a conflitos próprios da aplicação de uma metodologia de avaliação. Para maiores considerações, há que se verificar como os processos de avaliação realizados por meio dos instrumentos aqui analisados ocorrem na prática e em diferentes contextos.

Conclusão

A análise da metodologia de avaliação institucional para escolas e instituições de educação infantil dos “Indicadores da qualidade na educação” e “Indicadores da qualidade na educação infantil” mostrou que a proposta metodológica de avaliação conta com alto grau de factibilidade/exequibilidade por não exigir um custo alto e nem muito tempo.

Foi também identificada a potencialidade dos referidos instrumentos envolverem os diferentes segmentos da comunidade escolar em momentos que podem levar à explicitação de suas

Análise de uma proposta de avaliação institucional para a escola e para instituições de educação infantil

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percepções sobre a educação que se efetiva no âmbito da escola ou da instituição de educação infantil; e a potencialidade desses instrumentos favorecerem o diálogo e a reflexão sobre as ações, atitudes e situações relevantes para o processo educacional. A metodologia aqui analisada pode também levar a soluções pensadas coletivamente às quais poderão subsidiar encaminhamentos “mais informados” no âmbito da escola ou da instituição de educação infantil rumo ao cumprimento do critério utilidade.

Verificou-se ainda que os instrumentos oferecem parâmetros para a avaliação (dimensões, indicadores e perguntas) com grandes chances de serem considerados legítimos pelos responsáveis pelas decisões no âmbito das instituições escolares e de educação infantil, ou mesmo no âmbito de órgãos dirigentes das redes de ensino, tendo em vista que foram construídos com base em consensos entre especialistas, representantes de instituições da área educacional e de usuários.

O modo como os sistemas de indicadores foram elaborados faz crescer o potencial de rigor dos processos avaliativos realizados por meio dos instrumentos aqui analisados por terem sido criados com a participação de especialistas em educação e por terem sido testados. Entretanto, somente a análise de aplicações da metodologia poderia mostrar com maior precisão como os instrumentos em questão reagem frente ao problema da parcialidade, risco próprio de processos de autoavaliação.

Em relação ao quesito propriedade, pode-se dizer que a metodologia denota esforço em dar voz a todos os membros das instituições escolares e de educação infantil. E que isso pode ser um fator de “proteção de cada um”. Porém, situações relativas à “ética e avaliação” são inerentes às tensões que se estabelecem no âmbito dos processos de operacionalização de autoavaliações, variando de acordo com os contextos, estando menos explícitas nos desenho das metodologias de avaliação.

Vanda Mendes Ribeiro, Cláudia Oliveira Pimenta

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Análise de uma proposta de avaliação institucional para a escola e para instituições de educação infantil

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Vanda Mendes Ribeiro, Cláudia Oliveira Pimenta

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Analyzing a methodology for institutional evaluation on pre-schools and elementary schools

Abstract:

This article discusses a methodology for institutional evaluation for schools and child education institutions present in two instruments: Indicadores da Qualidade na Educação (Quality Indicators of Education) and Indicadores da Qualidade na Educação na Educação Infantil (Quality Indicators of Early Education), whose use has been recommended by the Ministry of education. The analysis will be made in the light of international criteria for the critical evaluations (usefulness, feasibility, accuracy, and property) and also considering challenges to the field of evaluation (involvement of stakeholders; improving the lives of people and institutions; legitimacy front makers; sharing perceptions). It is concluded that the materials have the potential to respond to most of those criteria and challenges, and studies on their operation in different contexts are important to strengthen or bring new evidence.

Keywords: Retooling institutional; quality in education; evaluation methodology.

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Pacto Federativo e o Plano de Cargos, Carreira e Remuneraçãodos Profissionais da Educação: o

caso do estado do ParáRosana Maria Oliveira Gemaque1

Bruno Cordovil Picanço2

Danielle Cristina de Brito Mendes3

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Resumo

Atualmente há um retorno aos debates sobre o modelo federativo e as possibilidades e configurações de pacto entre os entes federados no que concerne ao provimento da educação pública. Nesse sentido, o texto objetiva analisar as possibilidades de pacto entre os entes federados em educação, a partir da análise do processo de elaboração e de negociações sobre o Plano de Cargos, Carreira e Remuneração (PCCR) do magistério no Estado do Pará. A análise processa-se no cotejamento entre as Diretrizes Nacionais para os PCCRs fixadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e a proposta de plano do Sindicado dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Pará (Sintepp) do Executivo e o produto final dessas, a lei n. 7.447/10. Concluímos que a definição de diretrizes para elaboração dos PCCRs se configura em medida incipiente para a efetivação do pacto federativo, e que a organização dos professores por meio do sindicato no

1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2004); professora do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA); orientadora de mestrado e doutorado.2 Pedagogo; aluno do Mestrado Acadêmico em Educação (UFPA); Bolsista INEP/CAPES.3 Pedagoga; especialista em Educação Classe I da Secretaria Executiva de Educação do Estado do Pará; aluna do Mestrado Acadêmico em Educação (UFPA).

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Pacto Federativo e o Plano de Cargos, Carreira e Remuneração dosProfissionais da Educação: o caso do estado do Pará

processo de elaboração do PCCR do Estado do Pará foi fundamental para assegurar alguns avanços na direção da valorização do magistério.

Palavras-chave: Pacto federativo; educação básica; plano de cargos, carreira e remuneração.

Introdução

O texto apresenta discussões acerca das possibilidades de um “novo” pacto entre os entes federados na área da educação, a partir da análise das propostas de Plano de Cargos, Carreira e Remuneração (PCCR) do governo do Estado do Pará, do Sindicado dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Pará (Sintepp) e do produto final dessas, a lei do PCCR dos Profissionais da Educação Básica da rede de ensino estadual (lei n. 7.442 de 02 de julho de 2010). Nossas análises cotejam-se com as Diretrizes Nacionais para os PCCRs dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública de Ensino do Estado do Pará, fixadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio da Resolução n. 02 de 20 de maio de 2010.

Essa discussão é parte integrante de um conjunto de investigações que vêm sendo processadas no âmbito do projeto de pesquisa sobre a “Remuneração dos professores da rede pública da educação básica: configurações, impactos, impasses e perspectivas”. O projeto objetiva analisar as configurações, os impactos, os impasses e as perspectivas decorrentes da implantação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e do Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) na estrutura de remuneração dos professores da Educação Básica de dez estados brasileiros, no período de 1996 a 2010.

Focalizamos a discussão sobre o pacto federativo a partir de um ponto específico que são os PCCRs do Magistério Público da

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Educação Básica. Trata-se de um aspecto importante para discutir o pacto entre os entes federados, tendo em vista a heterogeneidade e complexidade envolta na situação da carreira e remuneração dos professores nos vinte e seis estados, um Distrito Federal e cerca de cinco mil e 565 municípios brasileiros, com regulamentações próprias.

Nessa direção, a questão central do texto consiste em discutirmos como se configura/expressa o pacto ou a possibilidade de pacto entre os entes federados acerca da educação a partir do PCCR do Magistério da Educação Básica?

Para tanto, analisamos as propostas de PCCR do Executivo do Estado do Pará juntamente com a proposta do Sintepp discutidas na Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa), bem como a lei n. 7.442/10 que regulamenta o PCCR dos Profissionais da Educação do Pará no cotejamento com as diretrizes nacionais para elaboração dos planos.

Educação e federalismo

Para Abrúcio, “o federalismo é uma forma de organização territorial do Estado e, como tal, tem enorme impacto na organização dos governos e na maneira como eles respondem aos cidadãos” (ABRÚCIO, 2010, p. 39). Além disso, o autor argumenta que nesse modelo, os entes federados gozam de autonomia e compartilham legitimidade no processo decisório sobre as políticas públicas. Por essa razão, é possível mais de um agente governamental atuar numa mesma direção em relação ao atendimento às demandas sociais, sendo, em alguns casos, pertinente a “ação conjunta e/ou a negociação entre os níveis de governo em questões condicionadas à interdependência entre eles” (ABRÚCIO, 2010, p. 39).

O princípio da autonomia, de acordo com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), perpassa questões de ordem financeira, legislativa e administrativa em que os entes federados gozam de autonomia para arrecadar impostos, definir seus orçamentos e normatizar

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sua forma de aplicação a partir dos seus legislativos (BRASIL, 1988, artigo 18). Isso, em certa medida, acentuou as desigualdades inter e intrarregionais, visto que, como diz Oliveira, na estrutura do federalismo no molde brasileiro, há “uma diferenciação acentuada na distribuição das receitas fiscais, no padrão das políticas públicas e, no caso da educação, grande diversidade na forma e nos meios de provimento desse direito” (OLIVEIRA, 2010, p. 09). Fato que decorre do desenvolvimento desigual dos estados e municípios e da falta de participação da União para garantir a redução das assimetrias por meio da transferência de recursos compatíveis com as necessidades regionais.

Oliveira acrescenta que a federação na República nasce na perspectiva da descentralização e que se trata de uma forma de organização:

[...] capaz de permitir aos entes federados gozar de maior autonomia do que no Império. Entretanto, à maior descentralização corresponde uma maior desigualdade, a menos que o centro exerça um contrapeso no sentido de implementar ações supletivas (OLIVEIRA, 2010, p. 14).

A contradição também se apresenta quando se associa descentralização à democratização. Abrúcio (2010) esclarece que, se de um lado, a primeira abre possibilidade para a efetivação da segunda por aproximar os governantes da população, de outro, complexifica o processo de decisão e sua legitimação, “uma vez que cresce o número de atores e de arenas capazes de definir os rumos da ação coletiva” (ABRÚCIO, 2010, p. 42).

Nesse cenário, a atuação da União na construção do pacto federativo é fundamental. Affonso (1995), ao partir do entendimento que a federação é uma forma de organização territorial do poder, fundada na articulação do poder central com os poderes regional e local e materializada em um conjunto complexo de alianças por meio dos fundos públicos, afirma que o “pacto federativo” se configura justamente por meio dos fundos

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públicos. Além disso, argumenta que nesse sistema, o equilíbrio é fundamental para viabilizar o pacto federativo, a contribuição deveria vir do ente federado responsável pela manutenção das relações, que dispõe de receitas específicas para desempenhar tal função – o governo federal – por meio dos fundos públicos (DALLARI, 1986; AFFONSO, 1995).

Embora com a promulgação da CF/88 tenha havido uma descentralização fiscal em favor dos estados e municípios, vários autores: Affonso (1995), Rezende (1997) e Fiori (1995) evidenciaram em suas pesquisas que a mesma foi acompanhada de aumento significativo da participação dos governos subnacionais nas despesas públicas e da diminuição da participação da União principalmente nos serviços como educação, saúde e saneamento. Além disso, esses autores têm evidenciado que a União recuperou as “perdas” financeiras com a instituição do Fundo Social de Emergência (FSE), posteriormente denominado Fundo de Emergência Fiscal (FEF) com a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e com as contribuições sociais e econômicas (ABRÚCIO, 1998; PINTO, 2000).

Na educação, o federalismo se expressa, segundo Abrúcio (2010), na “combinação da descentralização com diretrizes nacionais e cooperação intergovernamental maior” (ABRÚCIO, 2010, p. 40). Corrobora com isso Oliveira ao afirmar que uma compreensão da política educacional passa pelo reconhecimento da existência de uma “tensão entre centralização e descentralização e a forma de colaboração ou relacionamento entre a União e os entes federados” (OLIVEIRA, 2010, p. 14).

O Pacto Federativo em educação se faz necessário mediante a complexidade e diversidade existentes no Brasil entre suas unidades subnacionais. Isso se deve em parte ao modelo de desenvolvimento adotado no país no período compreendido entre os anos de 1950 a 1990. Esse modelo priorizou - em consonância às

4 Referente à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que foi criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC). É uma das cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas (ONU) criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da região latino-americana.

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ideias cepalinas4 - a equidependência entre as regiões. Acreditava-se que assim haveria aumento de produtividade e da renda regional (RODRIGUEZ, 1995).

Como consequência desse modelo, houve o aumento das tensões intra e inter-regionais com concentração de poder decisório em apenas uma das instâncias, nesse caso a União. No entanto, a execução de políticas públicas ficou a cargo dos municípios. Acerca disto Aghón argumenta que:

[...] la descentralización delega a las municipalidades, por lo menos em espíritu, la mayoria de las funciones y pretende hacer de éstas el centro de la vida ciudadana. Así ellas serán las encargadas de la provisión de bienes y servicios tales como los servicios urbanos y las actividades de educación y cordinación com las municipalidades bajo su jurisdicción (AGHÓN, 1995, p. 137).

Desse modo, estamos em face de uma fragmentação comandada por poderes locais em que Estados e municípios atuam de maneira predatória, ou seja, unidades subnacionais que disputam entre si recursos e investimentos. Uma das formas em que isso se traduz são as guerras fiscais, que se caracterizam por serem disputas entre Estados pela via da concessão de incentivos fiscais com a finalidade de atrair investimentos para seu território (SILVA; COSTA, 1997; REZENDE, 1995).

Em razão desse conflito entre os entes federados, são muitos os obstáculos para a efetivação do Pacto Federativo, seja na repartição de recursos ou na implementação de políticas sociais. Para que haja a consecução do pacto, deve haver a ação solidária entre os três níveis de governo na formulação e execução dos serviços públicos (SOUZA, 1997).

Diretrizes Nacionais para os Planos deCarreira e Remuneração dos Profissionaisdo Magistério da Educação Básica

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Pacto Federativo e o Plano de Cargos, Carreira e Remuneração dosProfissionais da Educação: o caso do estado do Pará

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As Diretrizes Nacionais para os novos PCCRs surgem da necessidade de adequar os novos planos às alterações advindas da Emenda Constitucional n. 53 de 06 de dezembro de 2006, da lei n. 11. 494 de 20 de junho de 2007 e da lei n. 11.738 de 16 de julho de 2008, que criaram e regulamentaram respectivamente o Fundeb e o Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN).

No CNE, a elaboração de proposta de reformulação da resolução n. 03/1997 e de novas Diretrizes Nacionais para os PCCRs dos Profissionais do Magistério da Educação Básica ficou sob a responsabilidade de uma comissão especial5 constituída para esses fins.

A comissão realizou três audiências públicas nacionais que aconteceram em: São Paulo (16 de outubro de 2008); Olinda (24 de novembro de 2008); e Brasília (05 de dezembro de 2008). Percebemos com isso a exclusão das outras regiões do país como espaço de discussão das propostas de diretrizes, reduzindo as possibilidades de construção de um pacto sobre a carreira do magistério na educação básica no país.

Nessas audiências, foram produzidas cinco versões em forma de minutas do projeto de resolução contendo, sobretudo, matérias abordadas no projeto de lei n. 1.592/2003 do deputado Carlos Abicalil, bem como das contribuições dos próprios conselheiros do CNE e dos participantes das audiências.

De acordo com o parecer da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB) n. 09/2009, a nova resolução prevê em seu artigo 4º a obrigatoriedade dos entes federados que oferecem qualquer etapa da educação básica, bem como suas modalidades correspondentes, de criarem seus Planos de Carreira para os profissionais do magistério a partir de princípios básicos apontados/contidos na resolução.

Apesar da obrigatoriedade da criação dos planos de carreira, não podemos perder de vista que se trata de uma resolução que

5 A referida comissão foi presidida pelos seguintes conselheiros: César Callegari (presidente); Maria Izabel Azevedo Noronha (relatora); Adeun Hilário Sauer; Clélia Brandão Alvarenga Craveiro e Raimundo Moacir Mendes Feitosa.

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contem diretrizes gerais, ou seja, não se trata de uma medida em que os entes federados estejam obrigados por lei a aderir e seguir integralmente todas as respectivas indicações, posto que iria de encontro ao principio de autonomia desses entes. Dentre os princípios básicos contidos na resolução e que deveriam compor os PCCRs dos estados e municípios brasileiros, subscreve-se: acesso; formação; progressão na carreira e avaliação de desempenho.

No que concerne ao aspecto “acesso”, a resolução se respalda na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996, mais especificamente em seu artigo 85, que estabelece como forma de acesso à carreira do magistério a prévia aprovação em concurso público de provas e títulos.

As diretrizes sugerem que o acesso à carreira do magistério se dê por meio do concurso público. Isso se relaciona diretamente à qualidade do ensino, visto que por serem submetidos a provas e provas de títulos, os candidatos aprovados podem ser considerados capacitados para as funções.

Em relação ao princípio do acesso à carreira do magistério, observamos que as indicações não são novas, mantendo-se as determinações legais da Constituição Federal de 1988 e da LDB, lei n. 9.394/1996. Apesar do tempo de promulgação dessas leis, vários estados e municípios continuam contratando professores sem concurso público, apoiando-se no argumento da urgência em suprir a falta de professores.

O artigo 4º da resolução prevê o incentivo à dedicação exclusiva (DE) do professor e sua respectiva vinculação a uma só unidade escolar com vistas a garantir a qualificação e continuidade do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola. Como forma para a viabilidade desse dispositivo, o referido parecer sugere que sejam criados benefícios salariais diferenciados aos DEs. Trata-se de uma medida inovadora que se acolhida pelos estados e municípios poderá contribuir tanto para qualificar o trabalho do professor quanto para facilitar a organização dos mesmos, tendo em vista que os professores poderão construir vínculos e identidade com o local de trabalho.

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Pacto Federativo e o Plano de Cargos, Carreira e Remuneração dosProfissionais da Educação: o caso do estado do Pará

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No que se refere ao princípio “formação do professor”, a resolução prevê, nos incisos XI, XIV, XV e XVI do artigo 5º, a formação inicial e continuada de forma permanente. Cabe aos entes federados estabelecer incentivos como licença remunerada e programas de qualificação, inclusive em nível de pós-graduação.

O artigo 5º, inciso XI, prevê ainda, a exemplo da LDB, como forma de prover a formação dos professores, que em exercício, eles tenham tempo reservado durante a jornada de trabalho para o estudo, planejamento e avaliação. São observações que em alguns PCCRs de estados e municípios já vinham sendo contemplados. Citamos, por exemplo, o Estatuto do Magistério do Estado do Pará e do município de Belém, aprovados em 1986 e 1991, respectivamente. Todavia, essas garantias decorreram de reivindicações dos professores e não de orientações do Executivo.

Outro principio que norteia a elaboração das diretrizes refere-se à “progressão na carreira e à avaliação de desempenho” dos profissionais do magistério. O documento sugere que a avaliação de desempenho se institua de forma plena, de modo a promover a qualidade do processo de ensino-aprendizagem e não como mecanismo de punição aos profissionais.

Ainda sobre a avaliação de desempenho, a resolução estabelece em seu artigo 5º, alínea “c”, que tal avaliação deve ser pautada em dois aspectos complementares: da “objetividade”, que considere a escolha de requisitos que possibilitem a análise de indicadores quantitativos e qualitativos; na “transparência”, “que assegura que os resultados da avaliação possam ser analisados pelos avaliados e avaliadores com vistas à superação das dificuldades detectadas para o desempenho profissional ou do sistema”.

As diretrizes prevêem também que a avaliação do desempenho seja pautada no princípio de “participação democrática”, que se traduzirá na construção coletiva dos processos de avaliação entre os profissionais do magistério e o órgão executivo responsável pelo processo avaliativo. Essas indicações, apesar de em termos teóricos não serem novas, na prática, parecem ainda serem poucos

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os PCCRs que a contemplam ou que a operacionalizam. Sobre isso, Gatti e Barreto (2009), ao procederem a um levantamento sobre a carreira do magistério em dez estados e trinta municípios brasileiros, revelaram dentre outros pontos que a avaliação por desempenho não apareceu em nenhum deles.

Avaliamos que as diretrizes apresentam-se como “ensaios” de coordenação ou direcionamento de políticas para carreira dos docentes por parte da União. No entanto, tornam-se frágeis ou sem efeito jurídico diante da autonomia dos estados e municípios que podem acatar ou não, sem que isso seja ilegítimo.

Além disso, as diretrizes fixam datas para aprovação dos Planos de Carreira e Remuneração que não foram cumpridas pela maioria dos entes federados. Ademais abrem a possibilidade de um plano unificado dos trabalhadores em educação, mas deixam a critério dos estados e municípios. Como isso representa possibilidade de aumento da folha de pagamento, por certo serão poucos os que seguirão a orientação de incorporação dos demais trabalhadores da educação.

Plano de Cargos, Carreira e Remuneraçãopara o Magistério da Educação Básicada Rede de Ensino do Estado do Pará

O PCCR do estado do Pará começou a ser elaborado em 2008, por uma comissão formada por representantes da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc) e do Sintepp, dando origem a duas propostas: uma proveniente do governo do Estado via Seduc e outra formulada pelo Sintepp. Ambas foram debatidas em audiências públicas na Alepa.

O início das discussões sobre o PCCR, por parte do governo estadual, foi feito por meio do diálogo entre os secretários adjuntos de Logística e Gestão da Seduc, com doze dirigentes das unidades Seduc na escola (USEs) que administram escolas da região metropolitana de Belém e os dirigentes das Unidades Regionais de Educação (UREs), que gerenciam escolas no interior

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do estado. Esses sujeitos representavam a categoria docente de suas respectivas regiões de atuação nos debates promovidos pela Seduc. Nos debates foi apresentada aos profissionais representantes da categoria docente a proposta de PCCR do Executivo estadual.

A proposta do governo apresentava muitos pontos divergentes à proposta formulada pelo sindicato. A proposta do Sintepp previa que todos os trabalhadores da educação da rede estadual do Pará fossem incluídos no PCCR. No entanto, a proposta do governo estadual só incluía no plano, os profissionais do magistério, excluindo cerca de quatorze mil funcionários de escola - auxiliar administrativo; assistente administrativo e operacional; merendeira; porteiro e outros (SINTEPP, 2009).

Outra divergência entre as propostas se refere à valorização dos profissionais da educação. Como a proposta do Executivo estadual contemplava apenas os profissionais do magistério, nada se mencionava a esse respeito na proposta de PCCR. Assim, excluíam-se os demais trabalhadores da educação, entendidos na proposta do sindicato como “todos aqueles profissionais que direta ou indiretamente atuam na escola, seja desenvolvendo as funções do magistério, seja na atividade ‘meio’, dando suporte administrativo e operacional” (SINTEPP, 2009, artigo 6º, inciso I).

A proposta do Sintepp pleiteava que os demais trabalhadores da educação também fossem incluídos não só no PCCR, como também em garantias de valorização profissional. Cabe esclarecermos que o item “valorização” congregava em ambas as propostas questões relativas à remuneração digna, melhoria do desempenho profissional e da qualidade do ensino prestado à população do estado (SINTEPP, 2009, artigo 2º, incisos I a VI).

Sem a inclusão de todos os profissionais da educação estadual no PCCR do Executivo, o avanço na carreira via progressão funcional seria garantido somente aos profissionais do magistério. Na proposta do Sintepp, esse direito seria estendido a todos os trabalhadores da educação, juntamente com a garantia de

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participação na elaboração, execução e avaliação do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola.

Outra dissonância entre governo e sindicato na elaboração do PCCR que merece ser destacada foi o que se refere aos professores enquadrados nas categorias AD1 e AD26. A proposta do governo previa a criação de uma “classe especial” que agregaria esses profissionais, fato que impossibilitaria a progressão funcional deles devido à sua formação. Com isso, cerca de quatro mil professores seriam prejudicados (SINTEPP, 2009).

A progressão na carreira para os demais profissionais do magistério se daria, na proposta do governo, em doze níveis definidos de “A” a “L” e a evolução seria mediante “critérios de avaliação de desempenho e participação em programas de desenvolvimento profissional” (SINTEPP, 2009). Na contraproposta do Sintepp, essa progressão aconteceria a cada dois anos, de maneira automática e em quinze níveis definidos de “A” a “O”. Isso porque no entendimento do sindicato, a avaliação de desempenho, como possível mecanismo de progressão na carreira, poderia se caracterizar em uma forma de punição ao servidor.

A Avaliação de Desempenho Funcional aparece na proposta do governo estadual, artigo 10, entre as alíneas “a” e “h”, como condição necessária ao desenvolvimento na carreira e é definida como:

[...] um processo global e permanente na rede pública de ensino mediante o qual a administração afere a eficiência do servidor, avaliando-o no exercício de suas atribuições mediante critérios objetivos, dentre os quais: assiduidade; pontualidade; participação efetiva na elaboração do PPP e de planejamento pedagógico; aplicação do PPP; produção em cursos de formação continuada; eficiência; responsabilidade; e cumprimento de metas (SINTEPP, 2009).

O Sintepp reivindicou a supressão na íntegra desse artigo

6 Professores que ingressaram na rede estadual apenas com a escolaridade em nível de magistério, mas que atualmente possuem nível superior e continuam enquadrados como profissionais de nível médio.

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por entender que tais critérios possuíam caráter punitivo e não formativo, visto que criariam barreiras para a progressão funcional dos trabalhadores da educação básica da rede estadual. A inclusão de medidas de avaliação por desempenho ainda não eram frequentes nos Planos de Carreira e Remuneração mais antigos, como revelam Gatti e Barreto (2009) no estudo sobre os professores. Porém, nos mais recentes, são comuns e decorrem de orientações teóricas em nível macro. Uma das discussões em favor da incorporação dessas medidas decorre da proposição de haver relação entre qualidade de ensino e desempenho dos professores, ou seja, a melhoria da qualidade de ensino demandaria mudanças no desempenho dos professores, introduzindo-se mecanismos de mercado com vistas no resultado. Uma das mudanças seria responsabilizá-los pelos resultados dos alunos e da escola.

Morduchowicz, em estudo realizado sobre carreira e salários docentes em alguns países da América Latina, observou em relação à avaliação por desempenho que: “quando existe, constitui mera formalidade. Não há sistemas estruturados de avaliação de desempenho docente” (MORDUCHOWICZ, 2003, p. 20). Sobre essa constatações incidem as maiores críticas sobre a estrutura de remuneração dos professores que não faz distinção entre desempenhos “bons”, “maus”, “medíocres”.

O tema é polêmico e a tão propalada relação entre qualidade de ensino e desempenho docente não se manifesta de forma nítida nos estudos. Além disso, a avaliação por desempenho se revela como mecanismo revestido de conflitos de interesses entre os gestores dos sistemas educativos e os professores (ISORÉ, 2010)

Quanto à progressão na carreira, observamos nas duas propostas, que ela poderia se efetivar em dois níveis: horizontal7 ou vertical8. Em relação à progressão dos professores AD1 e AD2, a proposta do governo previa que eles, por fazerem parte da

7 Progressão horizontal é aquela que se dá por classes, que é o conjunto de cargos de mesma natureza funcional, mesma escolaridade e/ou titulação e de mesmo grau de responsabilidade.8 Progressão vertical é aquela que se dá por níveis, que se trata do símbolo alfabético indicativo do valor do vencimento-base fixado para a classe, que representa o crescimento funcional do servidor no plano e/ou na carreira.

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chamada “classe especial”, teriam direito somente à progressão horizontal (artigo 14, §1º). O Sintepp, em sua proposta, reivindicava que esse item fosse suprimido, pois se permanecesse, impediria os professores com magistério de nível médio de ascenderem na carreira mediante sua escolaridade, ou seja, mesmo concluindo o curso de nível superior, não garantiriam sua progressão funcional.

O artigo 14, §2º, da proposta do governo afirmava queos processos de progressão funcional só seriam iniciados após autorização expressa da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Finanças (SEPOF), a qual indicará a disponibilidade orçamentária específica para este fim (PARÁ, 2008).

Mais uma vez o Sintepp sugeriu a supressão desse parágrafo, alegando que sua manutenção deixaria os trabalhadores à mercê da vontade política do governo, que sempre alegava em negociações com o sindicato, não dispor de recursos para valorização dos trabalhadores da educação.

Em relação à progressão funcional horizontal (artigo 15, §2º) e vertical (artigo 18), a proposta do governo estadual previa que essas se dariam somente mediante disponibilidade orçamentária. O Sintepp pedia em sua proposta a supressão desses itens por compreender que o Executivo tem obrigação de assegurar a progressão funcional horizontal a todos os trabalhadores, desde que eles tenham cumprido os prerrequisitos de merecimento exigidos em lei. Essa medida condiciona a progressão dos professores à previsão orçamentária, o que demanda dos professores organização permanente para prevê o número e valores necessários e incluí-los no orçamento anual de modo a garantir que não haja impedimento de progressão por falta de previsão orçamentária.

O artigo 43 da proposta do governo sugeria que “as despesas decorrentes da aplicação desta Lei correrão à conta da dotação orçamentária proveniente do FUNDEB” (PARÁ, 2008). A proposta do Sintepp indicava que esse artigo fosse suprimido,

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pois reduziria para 20% os investimentos em educação. Isso porque a subvinculação ao fundo não incorpora todos os recursos vinculados à educação (os impostos próprios dos municípios não fazem parte do Fundeb) e o percentual é inferior ao que determina a Constituição Federal de 1988.

O processo de aprovação do PCCR da rede estadual do Pará foi tumultuado, pois houve resistência do Legislativo estadual em acatar as mudanças sugeridas pelo Sintepp nos artigos considerados polêmicos. Diante disso, no dia 07 de maio de 2010, os professores da rede estadual de ensino paralisaram suas atividades docentes por meio de greve. Eles reivindicavam: a aprovação imediata do PCCR; aumento salarial; melhores condições de trabalho; efetivação da gestão democrática nas escolas. A greve deixou 800 mil alunos sem aulas e cerca de 84% das escolas estaduais aderiram ao movimento, que durou 26 dias, finalizando após assinatura de um acordo entre o sindicato e a Alepa. Na assinatura do acordo, houve a aceitação por parte dos deputados de itens reivindicados pelo Sintepp para o PCCR.

No dia 15 de junho de 2010, os deputados aprovaram por unanimidade o projeto do PCCR dos servidores estaduais da educação, que teve por relator o deputado Marcio Miranda (Partido Democratas - DEM). No plano aprovado, foram incluídas nove emendas acordadas entre o Sintepp e o governo estadual.

O PCCR foi sancionado no dia 02 de julho de 2010, sem vetos, pela governadora Ana Júlia Carepa (Partido dos Trabalhadores - PT) através da lei n. 7.442 de 2010. O plano deveria começar a vigorar em outubro de 2010, porém como se tratava de ano eleitoral, a efetivação ficou para o ano seguinte, 2011.

A lei n. 7.442 de 2010 congregou os seguintes pontos referentes à proposta do sindicato: inclusão de todos os trabalhadores da educação; definição de quem são e o que fazem os trabalhadores da educação; estabelecimento dos procedimentos de avaliação que deverão ser regulamentados por lei específica; criação de Comissão Permanente de Avaliação de Desempenho Funcional;

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determinação de que a progressão horizontal funcional se dará de forma alternada, ora automática, ora mediante avaliação de desempenho a cada interstício de três anos; definição das vantagens salariais com acréscimo de 50% para o servidor que exercer atividades na Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado (Susipe) e na Fundação da Criança e do Adolescente do Pará (Funcap), e 100% para servidor que exercer função no Sistema de Organização Modular do Ensino (Some); estabelecimento do regime de 40 horas semanais para os professores fora da regência de classe; determinação da nomenclatura de especialista em educação para o cargo de técnico em educação com flexibilização da jornada de trabalho em 30/40 horas; definição que as despesas decorrentes da aplicação do PCCR não virão das dotações orçamentárias pertencentes ao Fundeb, e sim daquelas destinadas à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE).

De certa forma, consideramos que o PCCR aprovado subscreve-se como um plano de construção coletiva e que contemplou a maioria das reivindicações dos trabalhadores da educação estadual do Pará. Notamos ainda, que o PCCR da rede estadual de educação foi norteado em alguns pontos pelas Diretrizes Nacionais aqui abordadas, principalmente no item que se refere à avaliação de desempenho.

Considerações finais

A concepção de políticas educacionais deve perpassar a instituição de espaços políticos de construção coletiva e democrática. Contudo, observamos que no processo de elaboração das diretrizes, as demais regiões do país não foram escolhidas como espaço de debate e construção das mesmas. Assim, uma relação entre os entes federados que não contemple todas as unidades subnacionais na concepção e elaboração de suas próprias políticas não se configura como tão coletiva e democrática e vai na contramão da efetivação de pacto entre os entes federados.

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Como sinalizamos no desenvolvimento deste texto, as Diretrizes Nacionais para os PCCRs não figuram como uma obrigação legal. Devemos considerar ainda que as unidades subnacionais são autônomas politicamente, podendo aderir ou não a tais diretrizes, ou seja, não há nenhuma garantia de que os aspectos precípuos à valorização dos profissionais do magistério contidos nas diretrizes sejam efetivamente contemplados nos planos dos Estados, dos municípios e do Distrito Federal.

Ainda assim, reconhecemos que a criação de Diretrizes Nacionais para subsidiar a elaboração dos PCCRs se constitui em relativo esforço da União em prover os novos planos com princípios que balizem a valorização dos profissionais do magistério. Todavia, a mera definição de diretrizes sem assessoramento técnico-financeiro do ente federado proponente, neste caso, a União, que constitucionalmente exerce essa função supletiva, não garante que a valorização docente propalada nessas diretrizes se efetive na implementação das políticas para esse fim. Portanto, só a definição de diretrizes, sem a cooperação principalmente financeira para que haja melhorias salariais, condições dignas de trabalho (com todos os insumos necessários), formação inicial e continuada, não se constitui como efetivação do pacto entre os entes federados.

Avaliamos que as Diretrizes Nacionais foram medidas importantes para a consolidação da carreira do magistério, mas em função da ausência de coordenação da União de uma política nacional para o magistério - que não apenas diga o que tem que ser feito, mas que colabore para sua efetivação, disputando politicamente e/ou colaborando financeiramente -, tornam-se frágeis diante do quadro de acentuadas desigualdades regionais.

No que se refere à aprovação do PCCR do Estado do Pará, é válido ressaltar que os nove itens que compunham a proposta do sindicato, descritos anteriormente neste texto, foram incluídos no produto final, a lei n. 7.442 de 2010. Consideramos isso como um ponto positivo do processo de elaboração. No entanto, é preciso situar o contexto em que essas reivindicações foram atendidas, pois

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a aprovação do PCCR aconteceu em ano de eleições, o que favoreceu o uso de medidas populistas por parte do governo estadual. Isso fica claro ao atentarmos para a nomenclatura do plano que trata “dos profissionais da educação” como um todo, mas que em seu teor apenas versa sobre os profissionais do magistério.

Outro aspecto que também merece atenção é o fato de mesmo que o PCCR do Estado do Pará tenha levado em consideração em seu produto final algumas determinações das Diretrizes Nacionais, certos aspectos apontados por este documento como negativos prevaleceram no referido plano, por exemplo: os instrumentos que podem vir a ser punitivos na progressão funcional dos profissionais. Dentre eles, citamos critérios presentes na avaliação de desempenho como assiduidade, pontualidade, eficiência, responsabilidade e cumprimento de metas.

Ante o exposto, é necessário considerarmos que a implementação de políticas públicas no Estado brasileiro, em que os entes federados gozam de relativa autonomia, não deve e não se dá de maneira uniforme e/ou homogênea e não têm os mesmos efeitos em todas as unidades subnacionais. Contudo, levando-se em consideração que as discussões em torno da instituição de um sistema nacional de educação medeiam as questões relacionadas à organização federativa do Brasil, também não se pode deixar de vislumbrar a necessidade da colaboração entre os mesmos entes federados não só para a implementação de tais políticas, mas também em sua elaboração com vistas à efetivação de fato do pacto federativo.

Por fim, consideramos que no caso do estado do Pará, a elaboração do PCCR dos profissionais da educação foi um processo de diálogo que apesar das peculiaridades mencionadas, se constituiu em esforço para construir políticas públicas balizadas pela participação dos agentes imbricados por elas, bem como da sociedade de modo geral.

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Federative Pact and Career Plan, Careerand Remuneration of Education Professionals: the case of Pará

Abstract:

Nowadays there is a return to the debates about the federative mode the possibilities and configurations of pact among the federative entities when it comes to providing public education. Taking into account these bases, the text aims at analyzing the elaboration and negotiation process related to the Office, Career, and Remuneration Plan (PCCR) of Pará States Mastership. The analysis takes place comparing National Policies for PCCR made by the National Education Council (CNE), and Pará’s Union of Public Education Workers (Sintepp) Plan’s proposal, government’s proposal and the final result of these ones, the law n. 7.447/10. We conclude that the definition of policies for PCCR elaboration is not enough for putting into effect the federative pact, and that the struggle and organization of teachers, trough their Union on the Pará State’s PCCR elaboration process was important for assuring progress of the so called mastership valuation.

Keywords: Federative pact; basic education; office, career and remuneration plan.

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Violência na infância:caminhos trilhados em

discursos de “grito mudo”Lucileide Malaguth Colares1

[email protected]

Daniela Aparecida Oliveira2

[email protected]

Isabela Parada3

[email protected]

Resumo

Este artigo traz resultados da pesquisa “Análise do discurso da infância vitimizada pela violência e a interface com o seu entorno” do grupo Conhecimento, Trabalho e Violência na Infância (CONTRA - Violência na Infância) da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), cujo lócus foi o município de Sabará. Na pesquisa-ação para esta investigação etnográfica, montou-se um laboratório da infância em uma organização não-governamental (ONG) para intervenções e escutas. Os estudos de Arendt, Bauman, Foucault e Souza Santos levaram à estratégia metodológica do que se denominou: “grito mudo”, eixo norteador de abordagem da violência. Após ações em campo, percebeu-

1 Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenadora do grupo de pesquisa Conhecimento, Trabalho e Violência na Infância (CONTRA - Violência na Infância), professora de sociologia no curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (FaE/UEMG).2 Graduanda de Pedagogia FaE/UEMG, bolsista em iniciação científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig).3 Graduanda de Pedagogia FaE/UEMG, bolsista em iniciação científica pela Fapemig.

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Violência na infância: caminhos trilhados em discursos de “grito mudo”

Introdução

Caminhos trilhados em discurso de “grito mudo”Olha professora, sei não, mas eu acho que você não pode parar com este trabalho seu aqui. A gente tava muito sozinho, e o que vocês estão fazendo é muito bom pra nós. A gente era chamado de lixo. Hoje “os meninos do projeto”. Mas eu quero ser mais que isto4.

Este artigo é fruto da pesquisa do grupo Conhecimento, Trabalho e Violência na Infância (CONTRA – Violência na Infância) ligado à Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Belo Horizonte (FaE/UEMG/CBH). O principal intuito do grupo foi analisar o discurso da infância vitimizada pela violência antes e depois do seu envolvimento com a rede social em torno dela, considerando também o trabalho infantil como uma das formas de violência e violação de direitos. A cidade de Sabará em Minas Gerais foi o lócus escolhido.

A pesquisa teve suas atividades iniciadas a partir de questionamentos que permeiam o tema violência na infância, gerados logo após o desenvolvimento da pesquisa de mestrado da coordenadora do grupo, cujo objeto foi a relação de cooperação e conflito dos atores de proteção da infância vitimizada pela violência doméstica. A busca docente e discente de compreensão do estatuto e do papel da educação na sociedade contemporânea, bem como sua articulação com vários aspectos contidos nesse

4 Trecho do depoimento de uma menina de 12 anos que foi retirada do projeto pela avó para ir morar com o pai fugitivo da prisão em outra cidade em 2009.

se alteração dos discursos. Propõe-se a continuidade da investigação da prática discursiva e sua manteneção no contexto em que se insere o sujeito pesquisado e a análise mais aprofundada sobre a dicotomia entre autonomia e emancipação.

Palavras-chave: Violência; infância; discurso; grito mudo.

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universo, inclusive e mais especificamente com o mundo da infância vitimizada pelas mazelas sociais de violência efetivou a formação desse grupo para a investigação.

Após as discussões iniciais, decidiu-se pela investigação de uma forma de violência que se faz silenciosa, evidente, mas sem solução imediata, perpetrada à luz do dia, aos olhos da sociedade e das autoridades, que, porém, se encontram impotente ao combate efetivo.

Meu pai? Não conheci. Minha mãe foi embora de medo do meu padrasto. Me deixou aqui porque senão ela ia morrer. Ele brigou e disse que eu tinha que ficar. Ele é forte aqui, a comunidade tem medo dele e muita gente deve pra ele. A escola já viu meu pescoço marcado, mas ele fala que é meu “paizinho”5.

Impotente, mesmo que verbalizada, registrada, reconhecida, denunciada. Mesmo sob a proteção dos atores responsáveis pelos direitos da infância, a menina citada à cima ainda reside próximo ao agressor por não ter parentes ou para onde ir. A cidade de Sabará, onde vive, ainda não tem abrigo de proteção ou encaminhamento temporário. Ela vive atualmente com uma madrinha. O sujeito agressor é reconhecido pela comunidade como “poderoso” pelas situações a que se filia financeiramente, e sua punição movimentaria uma série de outras instâncias, inclusive questões policiais em que ele também está envolvido, dificultando a ação dos conselhos tutelares e afins.

Das diversas faces com que a violência se lança contra a infância e juventude, buscou-se aquela em que o sujeito é enclausurado e perde a voz diante de sua existência com um “grito mudo”, ou seja, impotente e não menos indignado, mas ainda sem saída. Essa infância deveria ser ouvida? Buscou-se escutá-la de uma maneira oposta à social e historicamente estabelecida, a qual remete às crianças como infans, ou seja, aqueles que não têm voz, ou ainda no interior de instituições educativas, como alumni, aqueles sem luz (KRAMER, 2008).5 Trecho do relato de uma criança de 11 anos, vítima visível de violência física e de provável abuso (2009).

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Para tanto, entregou-se a palavra a quem frequentemente não é escutado, com uma atenção voltada à percepção das entrelinhas do discurso infantil, que foi a deambulação (PAIS, 2006), o caminho escolhido. Deambular é perscrutar o outro sob um olhar integral, em uma visão de sua complexidade humana, corpo, gestos, olhares, expressões, silêncios, suspiros, falas inteiras ou entrecortadas. Essa foi a ação vigente escolhida para a pesquisa realizada e aqui exposta.

Na modernidade, a liquefação foi um “processo desde o seu começo”, sendo o “derretimento dos sólidos seu maior passatempo e principal realização” (BAUMAN, 2001, p. 8). Como consequência, a destruição do passado, da tradição, pois o intuito era substituir aquilo que se considerava sólido em demasia, “deficiente e defeituoso”, que impedia a construção de um mundo novo: uma sociedade limpa, cuja ordem e progresso pautassem todas suas dimensões.

Diante disso, em uma dita pós-modernidade, vive-se com os legados deixados por heranças da modernidade de modo que as duas épocas se confundem em ações (BAUMAN, 1999), não se sabendo onde começa uma e termina a outra. Os desafios propostos fazem com que todos que lidam com educação ou projetos sociais enfrentem situações adversas repletas de instabilidades, as quais corroboram as características da liquefação, apesar de fazerem parte do status quo das pesquisas ação. Como legados da modernidade, encontram-se concepções de educação e de infância e maneiras de lidar com crianças “impregnadas de Rousseau” (ARENDT, 2005). Através desses legados ainda se espera que o projeto de sociedade moderna venha à tona a partir da educação e das crianças, ambas vistas como redentoras da sociedade.

Questões relativas à infância têm exigido respostas firmes e muitas vezes complexas. Uma delas concerne à violência, mal que assola a história da humanidade, mas poucas vezes foi estudado com profundidade (ARENDT, 1998). Quando ainda vem carregada de assombrar a infância, torna-se mais devastadora e de difícil

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solução. Kramer indaga: “De que modo as pessoas percebem as crianças? Qual é o papel social da infância na sociedade moderna? Que valor é atribuído à criança por pessoas de diferentes classes e grupos sociais?” (KRAMER, 2003, p. 37).

O significado ideológico da criança e o seu valor social são motivos de estudo da sociologia e de várias outras ciências. Nesse contexto, pergunta-se, juntamente com Kramer (2003), “de que infância falamos?” Faz-se imprescindível, portanto, a observação da infância em seu contexto e uma análise deste para o entendimento de suas particularidades e especificidades, pois há uma perniciosa visão a-histórica e descontextualizada de infância e a consequência disso é a banalização da violência contra a criança. Assim, a infância vulnerável é encontrada nas ruas, em total miserabilidade, inserida na exploração do trabalho infantil, também visto como uma forma de violência.

O estudo da pesquisa do grupo CONTRA - Violência na Infância se deu, portanto, sobre essa perspectiva da violência infantil. Da visão da sociedade enquanto valorização daquele que pode produzir cada vez mais após processos de disciplinarização e docilização de corpos, na desvalorização para desautorização (FOUCAULT, 1987) da infância destruída pelos novos valores do descontínuo mencionado por Bauman (1999).

Pensar sobre a infância vulnerável implica o conhecimento do poder sobre as crianças, o qual visa à maior produtividade e futura inserção em um mercado de trabalho da sociedade atual regida pela economia e pautada pelo consumo, produtora de estranhos excluídos que devem ser tratados sempre pela relação de alteridade (BAUMAN, 1998). No entanto, numa concepção advinda de Arendt (1998), de deslocamento do poder em relação à violência, percebe-se que a violência se instaura a partir de quando o poder já não está mais estabelecido. Sendo o poder cedido por consenso, a desestabilização do consenso acaba na retirada do poder que, não cedendo à desautorização, torna-se violência.

Dessa forma, a violência contra a infância é uma instância que

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demonstra a sociedade pós-moderna liquefeita e carente de um poder que protegeria a infância. A educação formal, ainda pautada pela necessidade de um poder disciplinar, acaba sendo um lócus que afasta a infância de sua própria segurança, especialmente se este local conceber a infância como momento a partir do qual se determina a sociedade pela educação.

Arendt (2005) acrescenta ainda a essa discussão que há um equívoco quando a educação tem como propósito a construção de uma nova sociedade, pois “preparar uma nova geração para um novo mundo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém chegados a sua nova oportunidade face ao novo” (ARENDT, 2005, p. 84). As crianças devem ser educadas para a tradição, ainda segundo essa autora, mas a sociedade líquida rechaça essa tradição (BAUMAN, 2001): a educação permanece sem chão.

Além disso, a pesquisa foi fundamentada em Souza Santos (2005, 2006) a partir de um entendimento da importância essencial de uma rede social coesa que se situe para além de uma razão indolente, cuja principal consequência é o fortalecimento do pensamento excludente. O autor também trouxe à pesquisa a aceitação da diferença como outro modo de lidar com os excluídos que não seja a relação de alteridade observada por Bauman (1998). Assim, os movimentos sociais tomam força na visão de Souza Santos (2006), sendo fundamental para a pesquisa realizada.

Concepções de movimentos sociais, de educação e de infância para além do empreendimento moderno com seu projeto de sociedade pautaram a análise do discurso infantil nesta pesquisa. O discurso enquanto, de acordo com Foucault (2005), modo de entendimento da sociedade em que está inserido, pois, segundo o autor, “analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras próprias da prática discursiva” (FOUCAULT, 1986, p. 65), ou seja, a busca da compreensão da violência a partir dos discursos infantis se caracteriza também no desejo de maior conhecimento da sociedade.

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Com seu início em 2008, partiu-se para a escolha metodológica de uma pesquisa ação cujo caminho aqui se encontra relatado desde a criação do grupo de pesquisa CONTRA- Violência na Infância, passando pelas ações, fundamentação teórica, relatos encontrados ao longo do trajeto, bem como resultados e discussões.

Metodologia ou a interpretação dos dados de campo

Primeiros passos

A percepção de que a pedagogia tem como um de seus objetos o conhecimento não somente abordado nas perspectivas cognitivistas, epistemológicas ou gnosiológicas, mas também em seu contexto social, político, econômico e cultural foi o mote a partir do qual se pautou a pesquisa do grupo CONTRA - Violência na Infância.

Essa pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) no período de março de 2009 a fevereiro de 2010 e também pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre agosto de 2009 e julho de 2010. Pretende ainda prorrogação indefinida.

O grupo de pesquisa optou pelo município de Sabará como lócus, pela exequibilidade do projeto e a facilidade de articulação com uma organização não governamental ONG de Sabará, devido a um trabalho de 25 anos realizado nessa entidade pela orientadora da pesquisa. Encontrou-se a ONG Núcleo Assistencial Veleiro da Esperança (Nave) de portas abertas para receber a pesquisa, transformar-se em laboratório da infância e o lócus onde oficinas seriam realizadas no intuito de envolver as crianças investigadas em ações da rede social de acordo com as concepções da pesquisa. O lugar definido para a pesquisa já era bastante conhecido em seus aspectos sociopolíticos e econômicos, sendo outro fator facilitador para a realização da pesquisa em Sabará. Assim, a Prefeitura Municipal de Sabará e sua Secretaria Municipal de Educação se dispuseram a uma parceria com a FaE/UEMG/CBH através do

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grupo de pesquisa e do NAVE.Sabará é um município que ainda guarda traços interioranos,

apesar da proximidade com a capital, Belo Horizonte. Porém, a cidade apresenta como característica a vulnerabilidade social dos sujeitos, o que traz à tona as dificuldades inerentes às situações de risco e traduz a carência econômica e afetiva em que estão envolvidos.

A partir de setembro de 2008, iniciaram-se os levantamentos de dados sobre a cidade e a definição da escola municipal que se tornou parceira da pesquisa, onde foram selecionados os sujeitos da investigação. A sugestão partiu da Secretaria de Educação, que indicou a região do Barraginha, que açambarca vários bairros em seu perímetro.

Concomitantemente, pesquisas bibliográficas e estudos teóricos dos autores que fundamentaram a pesquisa foram realizados. O caráter sociológico dessa investigação deixou de lado a vertente clássica de Marx, Durkheim e Weber para a perspectiva de teóricos pós-modernos como Bauman, Boaventura, Santos, Foucault e Arendt. Como recorte do conhecimento, foi proposta a reflexão sobre a violência na infância em sua relação com as instâncias do poder e este, um agente do conhecimento. A infância interpenetra essas ações como atriz e protagonista, fazendo parte de uma maquinaria de poder. Assim, um mundo em crise esteve no contexto para discussão da pesquisa.

Caminhos percorridos: o “grito mudo”

Toda metodologia tem inerente a si concepções bem estabelecidas que norteiam o trabalho de pesquisa (MINAYO, 1997). Pelos estudos teóricos realizados, durante o segundo semestre de 2008, juntamente com levantamento de dados através de uma pesquisa documental sobre o lócus da investigação, a partir do princípio de 2009, foi possível uma ação mais intensa para se chegar aos sujeitos da pesquisa.

A abordagem qualitativa para além dos pressupostos

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positivistas que rechaçam a interação do sujeito com o investigador (TRINDADE, 2001) foi considerada a melhor maneira de realizar essa pesquisa educacional, em cuja averiguação exploratória foi observada a inexistência de estudos que tratam o tema proposto do ponto de vista abordado pela pesquisa (MINAYO, 1997).

A investigação buscou o conhecimento da violência na sociedade atual, pós-moderna, através dos significados subjetivos dos relatos da infância vitimizada pela violência. Houve, portanto, a necessidade de delimitar o foco de modo progressivo (LUDCKE; ANDRÉ, 1986) com a formulação de questões que puderam contribuir com essa meta.

Inicialmente a percepção e concepção de violência da própria infância vitimizada foi vista como o problema central da pesquisa. Esse viés veio depois a se unir a outros questionamentos como as percepções e concepções de violência contra crianças também dos adultos que lidam diretamente com essas crianças em sua educação, a escuta do sujeito e dele de si mesmo, as causas e consequências desse universo para a infância, a ação da rede social de proteção à infância e o modo como se dá sua intervenção. Dessa maneira, os questionamentos transformaram-se em investigações que deram subsídios para a análise do discurso infantil antes e após o envolvimento dessas crianças pela rede de proteção e seu entorno.

Para tanto, ao longo de toda investigação, mas especialmente no momento inicial da pesquisa de campo, foram realizadas observações em lócus fundamentadas pela metodologia de deambulação proposta por Pais (2006). Segundo a metodologia, se constata o discurso não somente nas palavras, ou até menos nestas, mas também nos gestos, olhares, silêncios em que se encontram as concepções de forma mais contundente e menos velada. Assim, foram vistas as não palavras sobrecarregadas de símbolos e como entrelinhas delas: choros, posturas ensimesmadas, cabisbaixas, olhares dispersos, mãos trêmulas, corpos tensos. De acordo com Pais: “As tramas da vida decifram-se através de vínculos de sentido que nos sugerem que a vida nem sempre se esconde por

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detrás de palavras ou de silêncios, ela também está nas palavras e nos silêncios” (PAIS, 2006, p. 124).

As palavras das crianças, bem como os silêncios e toda simbologia que permeia tanto as palavras quanto os silêncios, foram analisadas pela pesquisa do grupo CONTRA – Violência na Infância em busca do discurso infantil.

Optou-se pelas categorias de violência utilizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), órgão que qualifica também essas categorias por ser o representante da área e meio pelo qual passa diretamente o sujeito quando atendido pela agressão que sofre. As violências pelas quais se optou para estudo formam, portanto, as mais vivenciadas, ou seja, violência de natureza física, psicológica, negligência e/ou omissão e abuso e/ou exploração sexual. No entanto, questionamentos sobre a distinção dessas formas de violentar a infância foram realizados pelo grupo de pesquisa. As discussões levaram ao entroncamento das diversas naturezas de violências e com isso, a opção por um caminho sobre a violência, norteando o trabalho de modo mais focado.

No momento inicial de seleção das crianças partícipes do projeto, a partir de maio de 2009, o campo apresentou crianças emergindo na necessidade de apoio através de bilhetes com pedidos de socorro, de abraços carentes de carinho, de histórias contadas com riqueza de detalhes sobre as vivências nas situações de exclusão e vulnerabilidade. Isso enquanto as crianças ainda não conheciam os pesquisadores. “Você tem filha? Não? Então você quer ser minha mãe? Ah! Minha mãe? Ela grita, bate, sai toda noite pro baile e me deixa com meu irmão [de 1 ano]. De vez em quando minha vizinha vai lá” (trecho de relato de criança de cinco anos, vítima de violência física e de negligência). “Eu queria que minha mãe gostasse de me abraçar assim, igual eu estou te abraçando” (trecho de relato de criança de cinco anos, vítima de violência psicológica).

Eu tenho muitos parceiros aqui no bairro, mas ninguém liga pra esse negócio de estudar, não. A gente quer é dinheiro e o

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que a gente aprende na escola não vai dar dinheiro pra gente. Aí a gente faz o que precisa fazer né. E todo mundo sabe o que eu faço, não escondo de ninguém não, olha só minha sobrancelha, todo mundo sabe quem sou eu, tá na cara!6

Dessa maneira, devido à grande quantidade de crianças com o mesmo perfil e a todas as categorias escolhidas pela pesquisa, foi preciso um eixo a partir do qual a seleção se realizasse, surgindo então: “o grito mudo”.

Com a busca pelo discurso, foram priorizadas, na seleção, crianças que se mantinham na situação de violência pela complexidade da experiência que fazia com que seu grito ecoasse mudo, apesar da vivência já ter sido verbalizada ou expressa em ações violentas e silenciosas, advindas de uma maior violência sofrida. Assim, o modo de selecionar as crianças partícipes da pesquisa não se deu de forma aleatória, mas através da observação deambulatória com a acuidade que lhe é característica.

Essas deambulações foram realizadas na escola municipal já mencionada durante os meses de maio e junho de 2009. Foram selecionadas 20% das crianças de cada turma observada para participação no projeto, sendo duas turmas do ensino infantil e quatro dos anos iniciais do ensino fundamental.

Concomitantemente, a ONG parceira do projeto foi reestruturada de modo a receber as crianças enquanto laboratório da infância, com adequação do espaço para futuras oficinas e com a articulação entre os profissionais da ONG e os pesquisadores. Dessa maneira, foram discutidas e elaboradas as concepções de infância que permeariam todo o trabalho lá realizado, da mesma forma que as metodologias empregadas nas oficinas, as quais trariam inerentes a si essas mesmas concepções.

A partir de então, realizaram-se os primeiros encontros no laboratório da infância na busca da demanda das oficinas que ocorreriam naquela ONG como mais um local da rede social 6 Trecho do relato de uma criança de 13 anos, vítima de negligência e utilizada como “avião” do tráfico.

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envolvida na luta em favor da infância. Porém, já nas oficinas, de maneira inesperada, as concepções de violência das crianças e seus relatos de vivências vitimizadas foram manifestados.

Eu quero uma coisa bem legal, divertida, porque de chato já tem a escola, tem lá em casa. Ah, é tudo muito difícil lá em casa. Minha mãe brigava com meu pai, meu pai também brigava com minha mãe, minha irmã também entrava na briga e eu ali, no meio de tudo, sem saber o que fazer. Fico muito nervosa e acho que no fim é tudo por culpa minha. Agora minha mãe mora longe e eu sinto muita falta dela, a gente quase não se encontra. [...] Eu vou pra escola só porque eu quero, mesmo, meu pai não liga pra isso. Mas às vezes eu vou sem nem comer antes, porque o que tem em casa eu deixo pra minha irmã mais nova7.

Nos primeiros encontros, foi possível mapear a natureza da violência em que se enquadravam essas crianças e entender a busca delas pela ludicidade perdida em sua infância vulnerável.

Optou-se, advindo do desejo das mesmas, pela realização de uma oficina de música, gerando daí a formação de uma orquestra infantil. Foi sugerido para a escola, além disso, oficinas que auxiliassem no aprendizado de conteúdos escolares, “o reforço escolar”. Apesar do entendimento do grupo da pesquisa de que o termo “reforço escolar” retrata a incapacidade da instituição de educar as crianças, esse foi mantido por ser próprio ao discurso escolar e, assim, mais bem aceito. Porém, as ações dessas oficinas de encontro com as concepções de infância e educação mostraram que as crianças consideradas com dificuldades de aprendizagem pela escola são mais capazes do que julga a instituição.

Eu preparei uma aula para discutir com as crianças sobre a importância da escrita, levando elementos da história da evolução da escrita pela humanidade, e qual não foi minha surpresa quando eu vi que elas já sabiam tudo! Elas entendiam muito bem

7 Trechos de relato de uma criança de 10 anos, vítima de violência psicológica e negligência.

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sobre esse aspecto histórico e também sobre a importância da escrita. Eu fiquei abismada, porque essas são as crianças que a escola chama de “burras!”8

Assim foi definido o início do trabalho das oficinas em conjunto com as crianças.

Ao longo do recesso escolar do mês de julho, a rede social no entorno da escola onde as crianças estudam foi sistematicamente mapeada e contatada, de modo que se formou de fato uma rede social integrada através da intercomunicação. Os atores sociais, mesmo muito próximos uns dos outros, não se conheciam e foram os pesquisadores que mobilizaram esse elo. A partir daí, a pesquisa tomou corpo de pesquisa ação tanto pela articulação da rede social, quanto pelas oficinas realizadas na ONG com o intuito da percepção das crianças de uma concepção de infância diferente da habitualmente vivenciada por elas.

A pesquisa ação, no entanto, abarca o risco do “fascínio da ação” (ANDRÉ, 1995) e consequente negligenciamento do viés teórico. Para que tal não ocorresse, os autores que fundamentaram a pesquisa foram continuamente revisitados e houve ainda a ampliação de estudos sobre suas obras através de reuniões mensais de um grupo de leitura e discussão, bem como pequenos eventos, visando discussões teóricas, ambos organizados pelo grupo de pesquisa e ocorridos na FaE/UEMG/CBH com ampla participação da comunidade acadêmica, de modo que enriqueceram e solidificaram os alicerces das ações do campo.

A pesquisa ação é considerada por Barbier (2006) como única maneira de se fazer pesquisa de qualidade nas ciências humanas. Essa investigação deparou-se com uma situação em que foi imprescindível a pesquisa ação, à medida que os atores sociais foram encontrados desarticulados e, portanto, sem constituir de fato uma rede social. Ações de atores sociais com a infância vulnerável como público alvo já existiam, mas de forma independente umas das outras. Como a pesquisa buscava a

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8 Trecho do relato da pedagoga responsável pelo reforço escolar na ONG (2009).

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infância envolvida em uma rede, foi necessário verificar se seria possível a articulação desta.

Uma estratégia utilizada que serviu de reconhecimento da rede social e união entre os atores envolvidos em prol da infância vulnerável vitimizada pela violência foi a organização de uma caminhada pela paz no bairro onde a pesquisa vinha ocorrendo. Grande parte das crianças selecionadas para escuta do discurso infantil participou da caminhada.

Após o recesso escolar, foi realizado um cadastramento mais sistemático das crianças pelo Nave e uma maior participação delas na rede social. Houve, no entanto, uma pequena evasão, parte dela devido às famílias não permitirem a continuidade das crianças nas oficinas. Então, houve o questionamento do motivo do ocorrido e percebeu-se que foi por discordarem da concepção de infância, do laboratório da infância. Outra parte, especialmente das crianças mais novas, devido às oficinas ocorrerem no turno da tarde, quando elas se encontravam na creche, a qual teve como postura a não participação na rede social. Como forma de repor a amostragem das crianças, retornou-se à escola para novas observações e seleções somente no ensino fundamental.

A parceria com o Nave também se deu à medida que naquele local se realiza um trabalho relacionado à saúde pelas medicinas complementares e integrais da saúde e por acompanhamento psicológico: as crianças passaram a ser atendidas e as consultas se tornaram locais onde o discurso infantil foi capturado. Discussões acerca desse discurso e das reações de cada criança relativas aos tratamentos e às oficinas foram elaboradas e mobilizadas pelos pesquisadores em ação semanal. A rede social no entorno do contexto dessas crianças vitimizadas relacionadas à investigação também foi convidada a participar e a dialogar, fato, no entanto, que não ocorreu.

Ao longo do segundo semestre de 2009 e início do ano de 2010, percebeu-se uma leve mudança no discurso das crianças: de uma visão de conformismo da vitimização pela violência e até mesmo de uma crença na violência como educativa, passou a um

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discurso de esperança e de outra visão de si mesmos. “Eu estou saindo daqui com mais força do que antes” (trecho de relato de criança de 13 anos, 2009).

Com a necessidade de solidez inerente à pesquisa acadêmica, o tripé da investigação foi completado com questionários e entrevistas. Assim, observação, participação e entrevista formaram, conforme palavras de Pais (2006), o triângulo cuja força de suporte constitui a estrutura básica também dos procedimentos de pesquisa.

Entrevistas semiestruturadas foram realizadas com as crianças, os professores, os gestores da escola parceira da pesquisa e os agentes da rede social, bem como questionários foram enviados para esses mesmos professores e agentes sociais, ambos - entrevistas e questionários - na busca das concepções de infância e violência. No entanto, muitos desses questionários não foram respondidos, silêncio que por si só já demonstra um desinteresse pela pesquisa e seu objeto de estudo.

A pesquisa do grupo CONTRA - Violência na Infância teve um caráter de modalidade etnográfica enquanto modo aberto de encarar a pesquisa, cujas análises sistemáticas dos conjuntos e relações dinâmicas das situações encontradas nas observações levaram a novos ângulos do problema pesquisado (ANDRÉ, 1995). A pesquisa durou mais de um ano com contato semanal com as crianças e com alguns de seus familiares, além de uma relação constante com os profissionais da escola parceira e dos agentes das redes sociais, corroborando assim com essa modalidade etnográfica.

O caminho dos discursos

Ao longo da pesquisa, escutou-se uma grande quantidade de relatos tanto infantis quanto adultos, através dos quais se analisou a violência na sociedade atual, as visões da escola sobre as crianças e a educação, a atuação das redes sociais no entorno do lócus da investigação. Aqui serão explicitadas algumas falas que demonstram a visão de infância por parte dos gestores da escola e de alguns

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atores sociais, a situação vivenciada pelas crianças, bem como suas próprias falas antes e depois da atuação do Nave. De maneira a preservar a identidade de todos que participaram e colaboraram com a pesquisa, não haverá qualquer forma de identificação.

Nos primeiros contatos com os gestores da escola, os pesquisadores notaram falas que caracterizavam uma visão de infância reducionista no sentido exposto por Bazílio e Kramer: “ a infância é vista ora a extratos sociais, ora a níveis de escolaridade, ora a estratos ou grupos sociais que têm alguma marca em comum” (BAZÍLIO; KRAMER, 2008). Dessa forma, retira-se toda historicidade do termo infância, cujo significado foi constituído através de uma conjunção de aspectos sociais, políticos e econômicos (BAZÍLIO, 2008) e se utiliza a palavra irrefletidamente.

Esse aspecto foi identificado claramente na fala de uma das gestoras da escola. Segundo ela, as crianças que lá estudam são “bichos”. Quando questionada sobre o hábito daquela instituição de fazer excursões extraescolares, sua resposta foi a seguinte: “ Você acha que seria possível ir, por exemplo, a uma biblioteca pública com esses bichos?” (trecho de relato da diretora da escola, 2009).

Falas como essa, dos adultos que lidam com a infância no lócus da pesquisa, permitiram a contextualização dessa infância desvalorizada e desautorizada, mas não escutada, bem como o entendimento das concepções de infância e educação. De acordo com uma das coordenadoras:

A escola não deve se envolver com questões sociais, senão não dá conta de passar os conteúdos escolares. Este é o trabalho da escola, lidar com questões sociais é tarefa de assistente social. A escola não pode pegar essa tarefa para si, senão os assistentes sociais ficam sem serviço e a escola não consegue fazer seu trabalho de passar conteúdos9.

Da mesma forma, as falas dos atores sociais e a percepção por parte de pais das crianças sobre as ações desses agentes (de um

9 Trecho de relato da coordenadora da escola (2009).

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grupo de Guardas Mirins) demonstram o que se espera de uma criança. “Olha só, aqui as crianças são todas disciplinadas. Fazem tudo o que eu mando do jeito certinho. Nem demonstram mais expressão de cansaço, porque até isso eu já ensinei a elas” (trecho do relato de um agente social, 2009). “É uma beleza ver essas crianças que fazem parte deste trabalho, todas alinhadas, comportadas, limpinhas. Isso sim é bonito de ver!” (trecho de relato de uma mãe a respeito das ações do agente social acima citado, 2009).

A rede social no entorno da infância vulnerável, além de pouco articulada, apresentou ações que visam mais a disciplinarização e docilização dos corpos (FOUCAULT, 2002) do que o enfrentamento e combate à violência contra crianças.

As analises dos discursos adultos permitiram o entendimento do discurso infantil, o qual se encontra permeado de palavras adultas nas vozes infantis como, por exemplo, quando três crianças consideraram correto apanhar quando agem de forma que não agrada aos adultos. Os relatos foram acompanhados de risos nervosos, corpos tensos, respirações ofegantes e olhares para o chão:

Teve uma vez que eu quebrei um relógio da minha mãe, ela me bateu tanto que eu até aprendi a contar as horas, de tanto apanhar. Mas ela tava certa, né, fui eu que fiz coisa errada, eu merecia apanhar. Eu fiquei triste, mas achando que não podia ficar triste, porque eu não podia ter quebrado o relógio dela10.

A agressão física como punição, no entanto, é ainda considerada educativa não só no interior da educação informal, mas até mesmo dentro de instituições escolares, haja vista a reunião em que os pesquisadores tiveram a oportunidade de participar como ouvinte durante a pesquisa. A mãe de uma criança que não estava correspondendo às expectativas, ou seja, a criança já não se encaixava nos modelos de produtividade, foi chamada para uma reunião com a professora e os gestores

10 Trecho do relato de uma criança de 10 anos (2009).

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pedagógicos da escola. A pergunta, seguida de um conselho, feita pelo supervisor foi a seguinte: “A senhora dá umas palmadas no seu filho? Não faz mal, não, de vez em quando bater faz bem” (fala do supervisor da escola, 2009). A fala foi corroborada pela coordenadora: “Não é pra espancar, só dar uns tapas” (fala do coordenadora da escola, 2009).

O que se pode inferir é que, quando a criança não se encaixa em moldes preestabelecidos do que se espera por infância, a criança pode apanhar. Deixa-se de fazer parte da infância por não corresponder a certo modelo desejado? Percebe-se claramente o quanto essas falas dos gestores acima mencionadas são acompanhadas de uma concepção de criança como sujeito sem individualidade, mas sujeitado. Esse relato explicita uma relação de violência do adulto sobre a criança e ilustra como a iminência da punição já traz como resultado a disciplinarização (FOUCAULT, 2002). O choro da criança naquela reunião demonstrou isso.

Eram cinco adultos em torno da criança, alguns dizendo que o ideal seria que ele apanhasse. Sua reação foi encolher-se em torno de si mesmo, fechando os ombros sobre o peito e pressionando um joelho contra o outro, mãos tensas entre as pernas e olhar para o chão. A um momento, quando não pode mais encolher-se, chorou baixo. Por fim, chegou a soluçar.

Eu não sei mais o que fazer com este menino. Ele acha ruim porque é assim, mais escurinho que os primos. Ele fica querendo um computador, um livro, um monte de coisas que eu não posso comprar. O pai dele agora está sem emprego e eu sozinha não dou conta de comprar essas coisas. Aí ele fica nervoso, irritado, mas eu não posso fazer nada11.

O aluno vive em sofrimento por uma situação de exclusão marcada pelos principais aspectos da modernidade líquida (BAUMAN, 2001), o que evidenciava que, tanto a escola quanto a mãe não sabiam como educá-lo. Afinal, a educação do excluído

11 Trecho do relato da mãe de uma criança de 9 anos (2009).

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quando o projeto de sociedade quer bani-lo só faz sentido quando o processo de disciplinarização cumpre seu papel para posterior inserção da criança em um mercado de trabalho como um profissional já previamente desvalorizado pelas ações educativas que a tornou sujeitada.

As situações pelas quais essas crianças vulneráveis passam fazem parte de um rol de experiências relatadas pelas professoras que permitiu a análise da condição da infância no lócus da pesquisa. Atentou-se para uma fala bastante elucidativa: “Eu tive um aluno que na sexta-feira, comia uns cinco pratos de merenda. A mãe dele o mandava fazer isso porque ele só comeria outra vez aqui na escola, na segunda-feira” (trecho de relato de professora da escola, 2009).

A concepção de educação como redentora da sociedade e de infância e como possibilidade de uma futura sociedade melhor se esvai diante dessa situação.

Apesar dessas experiências, a visão da escola parceira do projeto ainda carrega os legados modernos que esperam uma sociedade melhor a partir da educação e da infância, mas por não encontrarem soluções diante dos excluídos, os gestores os chamam de “bichos”. Logicamente as crianças percebem essas relações e as explicitam em falas que demonstram dificuldade de estar na escola: “Eu não gosto da escola, lá eles tratam a gente mal, dizem que a gente é lixo” (trecho do relato de criança de 11 anos, 2009).

Essas palavras foram ditas em nítido tom de indignação, acompanhadas de gestos bruscos. Falas das crianças como essa foram encontradas previamente à sua inserção nas redes sociais, quando seus relatos vieram à tona até mesmo anteriormente ao esperado. Uma criança, abusada sexualmente pelo pai, que se encontra preso, e depois pelo padrasto, relatou, cabisbaixa, com voz trêmula em um tom bastante reduzido: “Pai? Não tenho nem quero ter!” (trecho do relato de criança de 9 anos, 2009).

Em seguida, lacrimejando, virou o rosto na direção contrária das pessoas presentes. Outra situação presenciada foi com uma

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criança de 5 anos de idade, cujos cabelos são pintados de loiro pelo fato dela não ter nascido negra como a mãe. A responsabilidade da manutenção da limpeza da casa sempre foi dessa criança por ser a filha mais velha, porém, em um momento em que cuidava da casa, deixou seu irmão mais novo cair. Sofreu agressões físicas a ponto de chegar à escola com muitos hematomas nas costas e no rosto. Questionada sobre o que acontecera, a criança relatou que apanhara por querer ir à casa de uma colega, ou seja, não foi capaz de entender o motivo de ter sofrido agressões.

Minha mãe me bateu. Ela puxou meu cabelo, me jogou no chão, foi me arrastando puxando meu cabelo, chutou aqui [nas costas] e jogou um negócio branco na minha cara. Ela não fica feliz quando eu faço atividade [escolar] bonita, ela só me bate, me dá murro12.

O papel onde estava desenhando enquanto relatava ficou todo amassado. A ponta do lápis se quebrou de tanto pressioná-lo sobre o papel. Essa foi uma das crianças que não pôde continuar participando do projeto e das oficinas oferecidas na ONG parceira.

Contudo, outra criança que mudou de cidade após participar das primeiras oficinas despediu-se logo após um encontro na ONG Nave quando foi plantada uma flor por cada criança, de uma maneira em que foi possível observar a alteração em sua fala no sentido de uma maior percepção de si mesma após as ações da ONG parceira.

Eu sei da importância deste trabalho que vocês estão fazendo, continue fazendo isso com as outras crianças. Eu vou levar essa florzinha e depois vou plantar várias outras. Assim tudo o que eu aprendi aqui vai ser plantado junto e eu vou ficar cada vez melhor13.

Acreditou-se que sua idade fez com que sua percepção das ações da pesquisa fosse bastante rápida e clara, bem como a alteração de seu discurso.

12 Trecho do relato de criança de 5 anos (2009). 13 Trecho do relato de criança de 13 anos (2009).

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Outra situação vivenciada no laboratório da infância possibilitou a análise de que concepções de infância para além da infans e do alumni foram enxergadas pelas próprias crianças quando uma delas chegou ao reforço escolar com uma flor na mão: “Essa flor é roubada. Eu sei que é errado isso, mas eu achei que era melhor ela ficar aqui pra enfeitar a nossa mesa do que lá fora. Aqui a gente merece uma mesa enfeitada” (trecho de relato de criança de 12 anos, 2009).

As oficinas foram organizadas de forma que fosse realizado um atendimento com as crianças que não exigisse delas a produtividade, mas sim a valorização do processo para que pudessem aprender. Então as ações violentas de resposta às violências previamente sofridas deixaram de fazer parte do modo como reagiam. As oficinas fizeram com que as crianças mais apáticas passassem a participar das atividades propostas, cada qual se expressando a seu modo. Elas deixaram de ser sujeitadas e foram respeitadas em sua individualidade. “Aquele menino não queria fazer nada aqui, mas de repente transformou o hino nacional em um samba. Essa outra, em pouco tempo vai conseguir tocar cavaquinho. A capacidade dessas crianças é incrível!” (trecho do relato de professor de música da ONG parceira, 2009). Essas atitudes e outros relatos possibilitaram a análise das ações extensionistas da pesquisa como responsável pela mudança do discurso infantil. Já as ações da rede social existente no lócus da pesquisa, no entanto, mesmo após a articulação pelas ações da pesquisa, se mostraram ineficientes e ineficazes para combater e enfrentar a violência na infância, visto que o intuito não era de fato esse.

Dessa forma, faz-se necessária a aquisição e o aprofundamento de diferentes concepções de infância e educação por parte de segmentos da sociedade observados no lócus da pesquisa, de maneira que descartem os modos modernos e abracem uma nova visão: foi este o local em que chegou a caminhada do grupo CONTRA - Violência na Infância.

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Considerações finais: caminhos a percorrer

Não podemos conceituar dignidade, mas sabemos quando não a temos (Santo Agostinho, 1997).

Ao longo de todo o percurso percorrido, questionou-se como é possível trabalhar a dignidade do outro e se esta estava no desejo consciente da conquista desse outro, mas fundamentou-se a compreensão da ação da pesquisa como um local de semeadura, onde as ações foram percebidas pelos próprios pesquisadores e atores sociais como uma ferramenta para que a dignidade fosse alcançada pela percepção do próprio sujeito. Viu-se então que a criança poderia criar outro entendimento de si mesma fora ou em paralelo da concepção de infância imposta pela escola e por outros redutos sociais.

Notou-se, de fato, uma alteração no discurso das crianças de modo geral. Ainda há o que trabalhar com algumas delas que ainda não chegaram a essa alteração do discurso, mas como a interpretação do individual leva a uma perda da capacidade de mensuração, entendeu-se que, no contínuo envolvimento das crianças na rede social como escape da razão indolente, a alteração do discurso pode vir a ocorrer.

Como se deu a mudança? Ela se deu na medida em que houve um modo de se entender as crianças não como “bichos ou lixos”, mas como sujeitos, individualidades que têm características e pensamentos próprios e que merecem ser escutados e respeitados em sua subjetividade. Uma forma diferente de ver e lidar com a infância trouxe, assim, um suporte para que a criança criasse e passasse a ter força interna para vir a ser seu próprio suporte. “Olhe professora eu trago o biscoito para repor o que está faltando, eu não sou lixo. A gente podia era fazer uma merenda para todo mundo, aí a gente ia merendar junto e ia aprender a respeitar o que é dos outros”14.

14 Trecho do relato de um aluno do reforço escolar ao saber que o biscoito trazido pela professora para ser distribuído entre todos havia desaparecido.

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Compreendeu-se a ação da pesquisa como um instrumento para tal suporte. Falta, no entanto, compreender agora a prática do discurso, o qual se encontra sob uma nova ótica. Mas será que as ações da ONG parceira têm amplitude suficiente para absorver a mudança do discurso enquanto práticas ativas após essa intervenção? O que a criança fará com a nova visão de si mesma? Até quando as crianças que não alteraram o discurso necessitarão de suporte externo até vir a ser realmente seu próprio suporte? Até quando se manterá o discurso alterado? Até onde autonomia e emancipação são distanciadas por uma ação dicotômica?

Além disso, há crianças que foram obrigadas a sair da pesquisa pela discordância de seus familiares por estarem vivendo as ações que vinham sendo desenvolvidas. No entanto, em alguns casos, isso ocorreu após a alteração do discurso, quando se perceberam segmentos da sociedade em desacordo com a criança enxergando a si mesma como indivíduo, sujeito não simplesmente sujeitado como massa coletiva. Há como mensurar as novas ações dessas crianças que evadiram fundamentadas em uma nova ótica? Questionamentos dessa natureza permeiam a pesquisa após suas ações.

Dessa maneira, percebeu-se a necessidade da continuidade da proposta com novas maneiras de analisar não só a alteração do discurso, mas a prática e a função social dessa mudança ocorrida ou a prática discursiva de Foucault, bem como a discussão sobre as concepções de infância e educação com outros atores sociais que fazem parte da rede e que poderão vir a envolver a infância vulnerável a partir de fundamentos já estabelecidos pela postura acadêmica e ou cultural social.

Entendeu-se também a necessidade de se estabelecer e consolidar novos núcleos e linhas de pesquisa de modo que se tornem referências institucionais com que alunos e professores possam identificar e aliar interesses acadêmicos. Assim, a importância de um núcleo que conjugasse várias instâncias de estudos sobre a infância no interior da FaE/UEMG/CBH se fez presente de modo que se finalizou esta pesquisa com

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um projeto de criação de um núcleo de pesquisa, qual seja identificado como “Núcleo da Infância: concepções, direitos, violações e redes de proteção”.

Esta pesquisa tem o projeto de se tornar um programa de longa data pelos resultados obtidos até então. Com a criação de um núcleo da infância, a continuidade ficaria abrigada por uma linha de estudo mais adequada para união docente e discente, de modo a manter-se como constitutiva da formação de professores e das discussões científicas sobre educação e infância, da mesma forma que o foi para todos que puderam participar da investigação. Mas é especialmente através das crianças vitimizadas pela violência que se fazem necessários estudos e ações desse porte. Ainda há muito a caminhar.

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Violence in childhood: paths taken in discourses of “silent cry”

Abstract:

This article presents results of research “Discourse analysis of children victimized by violence and the interface with its surroundings” about Knowledge, work and violence at childhood whose locus was the municipality of Sabara. In action research for this ethnographic research was set up a laboratory of childhood in an NGO for assistance and listening. The study by Arendt, Bauman, Foucault and Souza Santos led the methodological strategy of what is called: silent scream, a guiding approach to violence. Once there was action on the research, the speeches changed. It is proposed to continue the investigation of discursive practice and its maintenance at the context in which are the subject. And the analysis further on the dichotomy between autonomy and emancipation. Keywords: Violence; childhood; speeches; silent scream.

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REVISTA DA FACULDADEDE EDUCAÇÃO/CBH/UEMG

Título do artigo: __________________________________________

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Número de páginas: _______________________________________

Análise do parecerista: _____________________________________

________________________________________________________

Parecer n. ______ Recebido em: ___/___/___ Devolvido em: ___/___/___

Indique sua recomendação para esta matéria:

______ é aceitável ______ sem revisão ______ com revisão no teor ______ com revisão na forma ______ com sugestões______ não é apropriado para a revista

Se necessário, favor listar alguns comentários ou sugestões específicas em uma folha separada.

EDUCAÇÃO EM FOCO

CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS DO ARTIGO SIM NÃO

Assunto tratado adequado à revista

Claramente apresentado e bem organizado

Referências adequadas e relacionadas ao trabalho

Resumo informativo, cobrindo todo o conteúdo (100 a 150 palavras)

Palavras-chave (máximo de cinco)

Número de páginas satisfatório (máximo de 20 laudas)

Conclusões justificadas

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