Educação somática: limites e abrangências_Lima

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    Pro-Posies, Campinas, v. 21, n. 2 (62), p. 51-68, maio/ago. 2010

    Educao somtica: limites e abrangncias1 Jos Antonio de Oliveira Lima *

    Resumo: Este artigo faz consideraes sobre as interfaces que o recente campo da educaosomtica mantm com as reas da educao, da sade e da arte e sobre a dificuldade deestabelecer seus limites, tanto pela atuao daqueles que se denominam seus educadores

    quanto pelos profissionais que a disputam como campo de trabalho. O artigo prope, ainda,ampliao de seu conceito, em funo das premissas que a sustentam.

    Palavras-chave:tcnica corporal; expresso corporal; conscincia corporal; educao somtica.

    Somatic education: limits and reach

    Abstract: This article is about the interfaces that the young field of somatic education keepswith the areas of education, health and art. It also considers the difficulty of setting their limits,

    both through the performance of the so-called educators in the field and professionals whoare trying to work as educators. The article also proposes the extension of the somatic educationconcept from the assumptions that support it.

    Key words: body technique; body expression; body awareness; somatic education.

    Por mais facetadas que se apresentem como universos de conhecimento nomundo acadmico e por mais resistentes que possamos ser s relaes que exis-tem entre as reas de educao, sade e arte, no poderamos deixar de admitirpelo menos uma continuidade: o corpo que por elas transita.

    Os relatos da educao somtica, por sua vez, ocorrem propondo, por vriasrazes, uma nova continuidade entre elas, tambm manifesta sobre o corpo.

    Recentemente, Michle Mangione (1993) distinguiu trs pe-rodos no desenvolvimento da educao somtica: da virada dosculo aos anos 30, quando os pioneiros desenvolviam seusmtodos, geralmente a partir de uma questo de auto cura;

    * Pesquisador do movimento corporal humano no Projeto Oficina do Movimento, Campinas, SP,Brasil. [email protected]

    1. Este artigo oriundo de um captulo de minha tese de doutorado intitulada: Educao Somtica:dilogos entre educao, sade e arte no contexto da proposta da Reorganizao PosturalDinmica (Lima, 2010).

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    1930-1970, perodo que conheceu uma disseminao dosmtodos graas aos estudantes formados por estes pioneiros; e

    dos anos 70 at hoje onde vemos diferentes aplicaes se inte-grarem s prticas e estudos teraputicos, psicolgicos,educativos e artsticos (Fortin, 1999, p. 41)

    Sua delimitao como campo de interveno junto ao indivduo, j comcaractersticas definidas e fins especficos, relativamente recente e coincidecom a crescentevalorizaoe exposioda temtica corporal na sociedade oci-dental.

    Thomas Hanna (1928-1990), a quem se deve o termo, criado em 1976,

    define a educao somtica como sendo: a arte e a cincia de um processorelacional interno entre a conscincia, o biolgico e o meio ambiente, estes trsfatores sendo vistos como um todo agindo em sinergia (Fortin, 1999, p. 40) ecomplementa: [...] o campo de estudo que lida com o fenmeno somtico,i.e., o ser humano como experienciado por ele mesmo (ou ela mesma) de seuinterior. (Hanna apud Hanna, 2009)2.

    Sua aceitao fcil por aqueles que so prximos do fazer cnico ou das artesdo corpo, assim como dos que adotam as soluesalternativas como aborda-

    gem aos seus males, tende a tornar nebulosa sua solidez conceitual, cientfica efilosfica, em troca do convencimento fcil e da aceitao.Embora busque um espao especfico, disputa-o com as ginsticas de acade-

    mia, as tcnicas orientais, o ioga, ostep, o tai chi chuan, o lian kung , o body building e, se apresenta limites precisos de aplicao, corre o risco de, assimcomo eles, ser vendida como a panaceia que promete fechar a caixa de Pandora.

    Situao que no seu privilgio. Em 1973, Al Huang fazia, em livro re-cm-lanado, a seguinte queixa:

    Atualmente uma coqueluche de tai chi parece estar tomandoconta rapidamente de todas as grandes cidades. Todo mundo faztai chi e recebe diplomas at certificados para principiantes eadiantados. Estou contente que haja tanta gente interessada nesta bela prtica, mas ao mesmo tempo fico um pouco preocupadocom a degenerao do tai chi. (Huang, 1979, p. 83).

    Situada na confluncia de vrias reas de conhecimento, a educao somtica vem sendo tratada com uma enorme carga de simplificao e modismo.

    No escapam dessa armadilha, na disputa do mercado de trabalho, nemmesmo os profissionais que se apresentam como formados nas ditastcnicas de

    2. [...] the field of study dealing with somatic phenomena, i.e., the human being as experienced byhimself (or herself) from the inside.

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    educao somtica, quando as tratam como se, ao indivduo, fosse suficiente a prtica de um receiturio de movimentos e de um punhado de pensamentos

    para que se modifique sua relao com seu prprio corpo e seu estar no mundo,tarefa j suficientemente cumprida pelotai chi chuan, pelolian kung e outraspropostas semelhantes, nas quais o esoterismo do discurso no comprometesua eficcia e resultado, se conduzidos por mestres capazes na execuo de suatcnica.

    Num folder do Departamento de Dana de uma universidade brasileira,lia-se que iria ser ministrada oficina na qual seriam utilizados elementos da educao somtica, muito embora a ministrante no tivesse formao em ne-

    nhuma rea que lhe pudesse conceder tal competncia. Aps uma descriosimplria, incluindo a definio de que se tratava de uma abordagem corporalalternativa, afirmava a educao somtica como uma proposta teraputica desade que podia ser utilizada em vrias reas.

    Ouamos o que tem a dizer Marcia Strazzacappa (2009, p. 52) a respeitodos assuntos tratados acima:

    Embora trabalhos srios de Educao Somtica j sejam realiza-dos no Brasil h mais de quatro dcadas por inmeros profissi-

    onais formados em diferentes linhas, a Educao Somtica, vi-timada por um modismo (como tantos outros que j presenciamos no pas), passou a ser vista como um selo degarantia ou um certificado de qualidade das tcnicas corpo-rais. Isso levou a uma tentativa desenfreada de intitular traba-lhos corporais como pertencentes gama de tcnicas de Educa-o Somtica. Sob esse ponto de vista, professores das maisvariadas tcnicas corporais se auto-intitularam educadoressomticos ou, ainda, passaram a chamar e divulgar suas ativida-

    des como Educao Somtica, no intuito de aumentar a clien-tela e o valor bruto de sua hora de trabalho.

    Ainda que os preceitos da educao somtica tenham fundamento em pre-ceitos cientficos que tambm norteiam os conhecimentos da rea das cinciasda sade, a educao somtica no terapia . Tal afirmao encontra eco nosprembulos do Cdigo Deontolgico do R.E.S.3, adotado em outubro de 2003e revisto em novembro de 2004.

    3. R.E.S. (Le Regroupement pour lducation somatique), Reagrupamento pela educao somtica:organismo sem fins lucrativos fundado em 1995, em Quebec, Canad. Lugar de troca, depesquisa e de aes pelo avano e pela prtica da educao somtica. Reconhece comomtodos de educao somtica: a Tcnica de Alexander, o Mtodo de Feldenkrais, a AproximaoGlobal do Corpo e Mtodo de Liberao das Couraas e a Ginstica Holstica da Dra. Ehrenfried.

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    Mesmo admitindo que haja benefcios que se manifestam em sensaes debem-estar no plano fsico ou psicolgico, o posicionamento do grupo muito

    claro: A educao somtica no em si uma terapia.Ainda que possa claramente haver benefcios no plano teraputico, ela no per-tence ao campo mdico. Ela no detm o discurso sobre a pato-logia, no estabelece o diagnstico, no faz tratamento nemmesmo prognstico de resultado, seja no plano fsico, psicolgi-co ou comportamental. Alis, a educao somtica no substi-tui nenhuma forma de aproximao centrada diretamente so-bre odiagnstico, o tratamento e a cura, seja em se tratando da fisioterapia, da psicoterapia, da massoterapia, da ergoterapia atmesmo da osteopatia e de toda outra forma de tratamento desintomas e de doenas. Os mediadores em educao somtica respeitam os limites de seu trabalho no envolvendo seus alu-nos em investigaes do tipo mdico ou teraputico. (R.E.S.,2009, grifos do autor).4

    Posicionamento semelhante tem, nos Estados Unidos, o Ismeta 5, que prevem seu Cdigo de tica que: O profissional filiado ao Ismeta no pode diag-nosticar ou prescrever para condies de cunho mdico6(Ismeta, 2009).

    Terapia, do latimtherapia , derivado do gregotherapeia , , em qualquer di-cionrio, leigo ou especializado, do Ocidente: o exerccio da teraputica, quesignifica a parte da medicina que se ocupa da descoberta e da aplicao demtodos adequados na cura ou no alvio das doenas.

    Esse conceito exige que a atividade dita teraputica se relacione a uma afecocujo diagnstico, uma vez estabelecido, associe-se a um mtodo cientfico eeficaz de abordagem do mal, com a inteno de cura ou de minimizao de

    seus sintomas. A simples associao da vivncia, em propostas de educao somtica, com aexperienciao de sensaes que possam ser definidas como positivas no a torna

    4. Lducation somatique nest pas en soi une thrapie. Quoiquelle puisse clairement avoir des beneficesau plan thrapeutique, elle na rien de medical. Elle ne tient pas de discours sur la phatologie, netablit

    pas de diagnostic, ne fait pas de traitement ni meme de prognostic de rsultat et ce la fois au plan physique, psychologique ou comportemental. Dailleurs, leducations somatique ne remplace aucune forme dapproche axe directement sur le diagnostic, le traitement et la gurison, quil sagisse de la physiothrapie, de la psycothrapie, de la massothrapie, de lergothrapie voire de lostophatie et detoute autre forme de traitement de symptmes et de maladies. Les intervenants em ducation

    somathique respectent les limites de leur travail en nengageant ps leurs eleves dans ds dmarchesde type medical ou thrapeutique.

    5. ISMETA: International Somatic Movement Education and Therapy Association.6. ISMETA practitioners may not diagnose or prescribe for medical conditions.

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    uma proposta teraputica. Essa no sua tarefa. Por outro lado, no obstantetenha sido introduzida, disseminada, cultivada e apresentada como base para

    tcnicas relacionadas s artes do corpo, tambm no arte . Antes, por no ter a inteno de s-la (Best, 1974) e, ainda, por no se tornar substncia como pro-duto do movimento corporal; e, sim, como reflexo sobre esse movimento, diri-gindo-se ao indivduo mesmo e tornando-se, de imediato, seu aspecto.

    Pedro de Alcntara (1997), em seu livro sobre a Tcnica de Alexander, reve-la que este supunha quecorpoe mente fossem partes separadas do mesmo orga-nismo, s tendo mudado de opinio durante suas experincias no desenvolvi-mento de uma tcnica de trabalho pedaggico. Preferindo falar da totalidade

    do organismo psicofsico humano, utilizava o termo o eu.Mathias Alexander achava que o mal advinha da m utilizao que o indiv-duo fazia de si mesmo. Discordava de que a m utilizao de si pudesse serdevida educao, vida moderna, civilizao, religio ou sua ausncia, famlia ou ao estresse. Acreditava que o mal no estava no que os outros, inclu-indo o outro sociocultural, pudessem nos fazer, mas naquilo que fazamos a nsmesmos (Alcntara, 1997).

    Face estimulao constante da vida, vs podeis reagir sadia-

    mente (utilizando-se dos meios que cada situao exige para a sua perfeita resoluo), ou duma forma mals (ignorando osmeios exigidos e precipitando-se em direo ao almejado, noimportando o preo a pagar) (Alcntara, 1997, p. 23, grifos doautor).7

    Concluso que expe de imediato que, para um bom resultado na utilizao desi, no necessrio fazer-se bem, mas parar de fazer-se mal. (Alcntara, 1997)

    Alexander demonstrou que certa relao dinmica entre a cabe-a, o pescoo e as costas determina a coordenao global de todovertebrado. Ele nomeou esta relao controle primrio. A boa utilizao do controle primrio a condiosine qua nonpara a boa utilizao de si e, por consequncia, para o bom funciona-mento do organismo como um todo (Alcntara, 1997, p. 32)8

    7. Face la stimulation constante de la vie, vous pouvez ragir sainement (en utilisant les moyens quechaque situation exige pour son parfait dnouement), ou dune faon malsaine (en ignorant les moyensexigs et en fonant droit au but, quel quen soit le prix payer). La cause ultime du mauvais usagede soi, dans la vision dAlexander, est cette habitude universelle de foncer droit au but .

    8. Alexander a dmontr quune certaine relation dynamique entre la tte, le cou et le dos dtermine lacoordination globale de tout vertbr. Il a nomm cette relation le contrle primaire . Le bon usagedu contrle primaire est la condition sine qua non pour le bon usage de soit et, par consquent, pour lebon functionnement de lorganisme tout entier .

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    A despeito de entrever certo absolutismo na afirmao da cabea comodeterminante da coordenao global de todo vertebrado, a neurofisiologia

    afirma haver uma inter-relao especial entre os movimentos de cabea e colu-na, processo que seria iniciado, todavia, pela relao entre o movimento dosolhos e as cavidades orbitais, qual responderiam a cabea, a coluna cervical eo restante da coluna vertebral, todos imediata e sequencialmente conectadospor movimentos ditosconjugados 9.

    Algumas questes suscitam reflexes nas propostas de Alexander: a afirma-o de que o ambiente e a histria no interferem nas reaes dos indivduos enas respostas corporais s contradies a existentes; e, decorrente da anterior, a

    afirmao de que basta no fazer o incorreto para que as reaes positivas come-cem a manifestar-se, reforando a ideia de desinsero do indivduo do contex-to sociocultural que o circunda.

    Postulamo-nos pela crena, definitiva, de que o ser humano seu corpoinserido num contexto sociocultural e histrico; assim, no vamos estendernossas contradies s posies de Alexander e seguidores. No obstante, seri-am os resultados da tcnica eficazes diante de sua proposta de recuperao dobom funcionamento do organismo como um todo?

    No foram colhidos dados objetivos sobre esta questo, mesmo porque se-cundria em relao ao que nos propomos. Podemos citar que, no Brasil, a repercusso da tcnica diminuiu em relao aos meados da dcada de 1980, oque no nos informa, por si s, se a tcnica tinha ou tem, entre ns, bonsresultados ou no. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde essa tcnica considerada processo teraputico, vrios artigos em terapia fsica citam seusbenefcios, e os departamentos de artes de vrias universidades americanas,assim como conservatrios musicais do Reino Unido, utilizam-na como ferra-menta para preveno e cura dos males de ofcio.10

    Moshe Feldenkrais, por sua vez, parte de outros ngulos para sustentar seusprincpios:

    Ns agimos de acordo com a nossa auto-imagem. Esta, que, porsua vez, governa todos os nossos atos condicionada em grausdiferentes por trs fatores: hereditariedade, educao e auto-educao.

    9. Denominam-se movimentos conjugados aqueles que, uma vez que um seja feito, produz-se,

    em seguida, uma induo automtica para que o outro o acompanhe. Citaremos como exemploos olhos em relao cabea: ao virarem-se os olhos para um dos lados, retirando-os do centroda rbita, temos a imediata reao dos msculos rotadores, flexores e extensores da cabea paralev-la a uma posio em que os olhos voltem ao centro da rbita.

    10. As informaes foram colhidas na internet, em pesquisa no Google, sob o verbete: Alexander Tecnique academic research, com a apresentao de vrios sites especializados.

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    A parte herdada a mais imutvel. [...] Sua auto-imagem de-senvolve-se de suas aes e reaes no curso normal da experi-

    ncia. A Educao determina a lngua e estabelece um padro deconceitos e reaes comuns a uma sociedade especfica. Estesconceitos e reaes variaro de acordo com o ambiente no quala pessoa nasceu; [...]. A Educao determina amplamente a direo de nossa autoeducao, que o elemento mais ativo no nosso desenvol-vimento e socialmente de uso mais frequente que os elementosde origem biolgica. Nossa autoeducao influencia o modopelo qual a educao externa adquirida, bem como a seleodo material a ser apreendido, e a rejeio daquilo que no pode-mos assimilar. (Feldenkrais, 1977, p. 19)

    Para Feldenkrais (idem, p. 20), o indivduo desenvolve-se no interior de umambiente sociocultural que participa na determinao de seu desenvolvimentoe estabelece seu alvo quando diz, mais adiante, que: Dos trs fatores ativos noestabelecimento da nossa auto-imagem, somente a auto-educao est em al-guma medida em nossas mos.

    Para este terico, a autoimagem, em princpio, espelha-se no modo como oindivduo enxerga sua aceitao pelo ambiente social em que vive, com a gera-o de conflitos em todos aqueles que, ou no conseguem alcanar os ideaissupostamente adequados pelos que a compem, ou no se conformam s im-posies que lhes so dirigidas, de qualquer modo resultando em mscarassociais que escondem a ansiedade, o remorso, a frustrao pelos processos vivi-dos. Como consequncia, h o possvel aparecimento de conflitos e perturba-es que se manifestam em toda a esfera de relaes do indivduo. nessecontexto que Feldenkrais prope que a ao de recuperao da autoimagemdeve dar-se, essencialmente, sobre a autoeducao, nico fator que pode serapreciavelmente sujeito vontade.

    Uma vez estabelecido o alvo, como agir para alcan-lo?...Pelo movimento:

    O movimento a base da conscincia. A maior parte do que vai dentro de ns, permanece embotadoou escondido de ns, at que atinge os msculos. Sabemos oque est acontecendo dentro de ns, logo que os msculos da face, corao ou do aparelho respiratrio, se organizam em pa-

    dres, conhecidos por ns como medo, ansiedade, riso ou qual-quer outro sentimento (Feldenkrais, 1977, p. 56).

    Com exerccios efetuados em tempo, modo e sequncia adequados, as ten-ses musculares decorrentes do modo de insero do indivduo em seu ambi-

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    ente podero ser, com perseverana, desfeitas, modificando o padro at entoadotado como autoimagem.

    Thrse Bertherat (1981, p. 65-66) tece os seguintes comentrios a respei-to do trabalho de Feldenkrais:

    Da minha experincia s posso tirar uma concluso: a arte deMoshe Feldenkrais consiste em adotar o caminho mais curtopara a realizao do movimento, caminho que se acha contor-nando os obstculos que so as tenses profundas do corpo.[...].

    Como esses discpulos chegam a novas proezas? Eis um exem-plo: a finalidade do movimento proposto apenas de abaixar-se para frente, encostando as palmas das mos no cho. Muita gente no consegue fazer isso no porque tenha pernas compri-das demais, braos curtos, barriga saltada ou porque as mensa-gens cerebrais se embaralham; a impossibilidade vem do fato dea musculatura posterior estar presa e encurtada, o que rouba ocomprimento necessrio. Mas para que o aluno consiga fazer omovimento, Moshe Feldenkrais prope que ele efetue uma

    rotao interna do quadril, joelho e finalmente do p, isto , queele dirija o p para o movimento compensatrio que todos nsfazemos, no de forma consciente, quando queremos fora encostar no cho.

    Embora duras, as palavras de Bertherat atingem um ponto delicado e crucialdo trabalho de Feldenkrais: ser possvel que, reforando movimentos ou pos-turas inadequadas, o indivduo consiga melhorar sua autoimagem?

    Bertherat (1981, p. 66) refora suas crticas com as seguintes inferncias:

    Quem consegue fazer com facilidade esse movimento tem, seja uma rotao interna das coxas ou dos braos, seja a nuca cnca-va (em lordose), seja um hallux valgo exagerado, seja uma rota-o externa dos ps, seja um recurvado da perna: o joelho noeixo do astrgalo. No precisa, portanto, aprender essas com-pensaes com um professor; j chegou l sozinho.

    A intensidade da crtica no impede que Bertherat (1981, p. 67) trate otrabalho de Feldenkrais com respeito, embora se restrinja aos exerccios queenvolvem a coordenao das ligaes nervosas e cerebrais com a ao musculare os mecanismos pelos quais o corpo aprende; aos exerccios que propemmovimentos contraditrios para diversos segmentos corporais, cabea deslo-cando-se para a direita e ombro para a esquerda, e ainda os movimentos em

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    que o aluno no possa se valer de pontos de referncias espaciais (Bertherat,1981, p. 68).

    No posso deixar de concordar com Bertherat nas duas afirmaes; entre-tanto, novamente surge a questo: quais so os resultados da Tcnica Feldenkrais?Quanto sua penetrao, podemos, sem dados concretos, citar que, desde sua entrada no territrio nacional, essa tcnica vem paulatinamente ganhando adep-tos, principalmente nos meios universitrios e entre profissionais que portamdiplomas universitrios. Sua aceitao e prevalncia, nos Estados Unidos e na Alemanha, so, provavelmente, os principais motivos para o grande nmero deartigos em jornais e revistas cientficas na rea da dor e da reabilitao fsica.

    H, tambm, notvel nmero de artigos relacionados dana.11

    O trabalho de Bertherat, denominado Antiginstica, originrio de seusextensos contatos com o mtodo de Franoise Mzires12 de cujo conceito aquela se apropria e o reputa como revolucionrio: A nica causa de toda deformaocorporal o encurtamento (inevitvel) da musculatura posterior (Bertherat,1981, p. 8), considerando-se que musculatura posterior so todas aquelas quepodem ser vistas na face posterior de um indivduo em postura ortosttica natural.

    A estrutura determina o comportamento (Bertherat, 1981, p. 10), o quesignifica que a forma que seu corpo apresenta determina o modo como vocfunciona. Tanto sob o aspecto fsico quanto sob o comportamento psquico, osquais considera indissociveis (Bertherat, 1981, p. 11-12).

    Movida pela crena inabalvel nesses preceitos e em outros no citados aqui,recuperados a todo instante em seus livros, com grande destaque ao primeirodeles, prope, para a soluo desse mal, que no se faam exerccios que possamfortalecer a musculatura posterior e que se faam exerccios de relaxamento,utilizando-se do movimento corporal como argumento e acessrios como: bo-linhas, bastes e outros.

    Surgida na dcada de 1970, a Antiginstica tornou-se, rapidamente, uma febre. Adotada por um nmero significativo de fisioterapeutas, foi utilizada como a soluo primeira para um grande nmero de desconfortos corporais. J no final da dcada de 1970 e no incio da dcada de 1980, comearam a surgiros primeiros casos de entorses e estiramentos de articulaes, principalmente

    11. Informaes colhidas na internet, em pesquisa pelo Google, sob o verbete: Feldenkrais academicresearch, com a apresentao de vrios sites especializados

    12. Franoise Mzires (1909-1991), fisioterapeuta francesa, criadora do conceito de cadeiasmusculares e iniciadora do Mtodo Mezires, considerada por um segmento de profissionais

    franceses como tendo promovido uma revoluo na reeducao e trazido uma nova viso damecnica humana. Outra tcnica derivada de seu mtodo e ensinamentos a RPG, criada por Philippe Souchard.

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    de membros inferiores (tornozelo e joelho), por insuficincia de sustentaodevida ao excesso de relaxamento muscular.

    Bertherat sempre se queixou de que sua tcnica era muito confundida comtcnicas de relaxao, s quais, generalizando, considerava tcnicas de sugestcomo as originadas da hipnose (Bertherat, 1981, p. 70). Das sesses de que par-ticipei, com profissionais da tcnica, nos meados de 1970, sempre sa com a im-presso de que o nico benefcio tinha sido a sensao de musculatura relaxada.

    Pelo menos quatro comentrios merecem ser feitos s teses de Bertherat:primeiro, as tenses musculares, em resposta s condies do meio ambiente,ocorrem tambm em musculaturas da face anterior do corpo; vide as mos

    crispadas, os braos em flexo, os troncos em flexo anterior. Segundo, a mus-culatura das pernas, embora se encontrem nas faces posteriores do corpo, somusculaturas flexoras que tendem a manter um gradiente de contraposio smusculaturas extensoras e um gradiente de aposio s musculaturas flexoras.Sua tenso provocaria uma flexo de pernas, que jogaria o corpo para frente,fazendo-o perder a curvatura lombar e diminuir a tenso sobre o psoas, fatosveementemente defendidos por Bertherat como resultantes do processo de cris-pao muscular. Terceiro, o encurtamento da musculatura posterior no troncolevaria a uma hiperextenso com resultados diferentes dos apontados no seudiscurso. Quarto, a todo instante a postura humana um jogo de equilbrioentre musculaturas posteriores e anteriores: no h como estar em p, porexemplo, sem o concurso em tenso das musculaturas posteriores do tronco edo quadril e das musculaturas anteriores das pernas. A falta de tenso podeocasionar queda para diante do tronco e rotao interna das pernas, com perda do cavum do p e consequente tendncia ao geno-valgo.

    Atualmente, perdendo espao e pouco difundida, a Antiginstica no classificada como educao somtica pelas organizaes internacionais j cita-das, e no h dados objetivos que expliquem sua perda de utilizao.

    Vale citar que, nestes ltimos anos, a febre ocorre em torno da tcnica dePilates13.

    Entre as vrias tcnicas corporais ainda poderiam ser citadas: o BMC, oFundamentals de Bartenieff, a Eutonia, a Ideokinesys, a Ginstica Holstica que, embora discretas no Brasil, mantm na Europa e nos Estados Unidos forteaceitao.

    As tcnicas chamadas de educao somtica no caminham pelas mesmasveredas, nem propagam os mesmos preceitos.13. O mtodo Pilates foi criado por Joseph Hubertus Pilates (1883-1967). Durante a I Guerra, no

    ano de 1914, exilado e trabalhando em hospital com doentes e mutilados de guerra, Pilatesiniciou o uso de molas como processo auxiliar na recuperao. Em 1923, abriu seu primeiroEstdio Pilates em Nova Iorque.

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    Se as diferenas so devidas aos mais variados conceitos, destacaramos ospontos comuns mais frequentemente encontrados:

    1. A defesa da indivisibilidade do ser: corpo/esprito, alma/matria, corpo/mente, etc.

    2. A defesa de que as relaes que o indivduo mantm com o seu fazer nomundo podem criar situaes que se fixariam sobre o comportamentopsicomotor, impedindo seu adequado desempenho, cuja recuperaocada uma das tcnicas, a seu modo, prope.

    3. Os conhecimentos que do suporte s teses so de carter cientfico efazem parte das cincias biolgicas e humanas.

    4. Todas trabalham no sentido de desenvolver no indivduo a conscincia de seus prprios atos como instrumento de mudana. ainda de Fortin, Vieira e Tremblay (2008, p. 119) o discurso que segue,

    antes de serem complementadas as consideraes sobre o tema:

    No plano filosfico e tico, Guimond (1999) deixa claro que a educao somtica prope uma relao nova a si e aos outros:aprender a sentir o que fazemos, a saber o que ns sentimos, nomais se considerar como um objeto, mas como a criadora de sua

    prpria vida (p. 6). Deste modo, os mtodos de educaosomtica permitem resistir s tecnologias da dominao, uma vez que, segundo Johnson (1983), o exerccio do poder no seiodo discurso social ocidental dominante se observa por uma desconexo sensorial imposta por uma idia fantasmagrica docorpo ideal, frequentemente distante do corpo vivido. Reen-contrar a capacidade de sentir isto que escapava conscincia crtica permite ao indivduo livrar-se parcialmente das ideologi-as da dominao. Esta idia confortada por Shusterman (1992)que explica: Se verdade que as relaes opressivas do poderimpem uma pesada identidade codificada no nosso corpomesmo, ento estas relaes de opresso podem ser colocadasem xeque pelas prticas somticas alternativas14.

    14. Au plan philosophique et thique, Guimond (1999) prcise que lducation somatique propose unerelation nouvelle soi et aux autres : apprendre sentir ce que lon fait, savoir ce que lon sent, ne

    plus se considrer comme un objet, mais comme la cratrice de sa propre vie (p.6). Ce faisant, lesmthodes dducation somatique permettent de rsister aux technologies de la domination puisque,

    selon Johnson (1983), lexercice du pouvoir au sein du discours social occidental dominant sobserve par

    une dconnexion sensorialle impose par une ide fantasme du corps idal, souvent loin du corps vcu.Retrouver la capacit de sentir ce qui chappait la conscience critique permet alors lindividu de

    saffranchir partiellement des idologies de la domination. Cette ide se trouve conforte par Shusterman(1992) qui explique : Sil est vrai que des relations de pouvoir oppressives imposent une identit

    pesante encode dans notre corps mme, alors ces relations doppression peuvent tre mises enquestions par des pratiques somatiques alternatives (p. 68).

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    Como mdico e educador, agrada-me sustentar a tese de que toda aoteraputica s se completa ao manifestar-se tambm como ao pedaggica,

    educativa, assumindo, como contrapartida, que toda ao educativa s estar completa se apresentar como resultado circunstancial uma faceta teraputica .Por mais que isto possa parecer contraditrio com o que foi dito antes, com

    relao definio de terapia, cumpre entender que a ideia traz como analogia:a ignorncia como doena a ser tratada e o processo educacional como mtodoteraputico a ser aplicado.

    Ao mdico, imprescindvel que sua ao no negligencie que um indiv-duo, com articulaes especficas no mundo, o objeto de seu interesse. Que

    no saia de seu horizonte de preceitos que sua ao profissional sobre a queixa a qual adquire substncia em possvel e eventual afeco trazida por esseindivduo mero complemento da extenso de seu entendimento de comose d a manipulao daquelas relaes e, em oferenda, no compartilhamentodeste entendimento que, submetido ao tratamento do portador, cria o mo-mento em que a relao se torna educativa por excelncia, tanto para o solicitantequanto para o solicitado.

    A terapia s se completar no momento em que o paciente tiver formadouma compreenso suficiente dos estados que o levaram s manifestaes apre-sentadas e quando tiver se apropriado, ele mesmo, dos mecanismos ou dasdecises de como enfrentar o fato desnudado, independente doestado da do-ena .

    Nesse momento, a conscincia de ambos do processo que se deu ter criadoum conhecimento novo que ser compartilhado, doravante, por ambos emseus prximos contatos-contratos sociais, um aprendizado insubstituvel desuas aes nomundo dos homens .

    O mdico pode sanar uma febre ou uma dor custa de medicamentosespecficos; pode enfrentar uma populao inteira de micro-organismos, comaes clnicas ou cirrgicas, na inteno de debelar uma infeco; pode resolverdefinitivamente uma afeco inflamatria, extirpando um rgo de um indiv-duo. A terapia, entretanto, s se concretizar se o caminho tiver sido trilhadointeiramente por ambos os atores, o que, por si s, pode s vezes ser passosuficiente para o novo estado, prescindindo de artifcios teraputicos comple-mentares.

    Em contrapartida, ao educador cumpre entender que o processo educacio-nal s se completa, se tiver em conta todo o contexto em que se inserem oscircunstantes, pela conscincia desse contexto e de como ele se modifica diantedos novos dados. Informao necessria para preservar o indivduo nessa nova realidade preservao antecipao, dado teraputico por excelncia; pre-veno.

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    Todo novo conhecimento deve ter o indivduo como referncia, deve ensejara sua modificao, deve servir para harmonizar o seu estar no mundo, para

    manifestar-se em novos caminhos a serem percorridos e em novas possibilida-des a serem exploradas.Quantos no sero os vrios significados de 2+2 que podem estar sendo

    preteridos, quando a preocupao apenas o resultado matemtico, e no oindivduo e o caminho que deve ser percorrido na busca das possveis respos-tas? A cada novo dado, transforma-se o mundo percebido e transforma-se osujeito no mundo; a conquista desse novo equilbrio que o coloca conforme,em conformidade mas no conformado ao estado do todo, ao novo esta-

    do do todo que a sua nova tica criou, numa aoteraputica que se estende portoda essa nova realidade, embora centrada no indivduo mesmo, como educan-do e como educador.

    frequente a surpresa que nos assoma, ao sabermos que ensinar e aprenderso vertidos para o francs em um s verbo:apprendre , fato que supera qualquerdiscurso que pretenda estabelecer a unicidade que h entre o aprendizado e oensino. Fato que restabelece a ideia acima expressa de caminho e equilbrio na criao de um novo estado, de um novo ser.

    Percorridos os caminhos que, dentro de nossos propsitos, interligam osdilogos entre a sade, a educao e a arte, uma nova pergunta, diante dosvrios desdobramentos surgidos do discurso, impe-se:

    Ainda que exemplificada e descrita sob a designao de tcnica em vriaspropostas conceituadas de experincias em aprendizado corporal, seria a edu-cao somtica, no plano pedaggico, uma tcnica ou mesmo um conjuntodelas?

    Poderamos citar a educao somtica, como tantos o fazem, como tcnica para minimizao e mesmo recuperao de situaes posturais inadequadasou, ainda, como facilitadora dos processos de aprendizado de movimentos cor-porais de cunho tcnico (Fortin, 1998). Esta tica recupera o valor de cada uma das propostas tcnicas citadas e suas nfases especficas, mas apenas umaparte da resposta.

    Se subvertssemos a questo colocada, teramos: O que podemos considerarcomo uma tcnica de educao somtica?

    As afirmaes feitas em pargrafos anteriores j nos forneceram certas pistas:quando elencam as similaridades flagrantes presentes nas variadas proposies;quando se referem s crticas dirigidas, seja s tcnicas em si, seja aos descuidocometidos em fazeres corporais do cotidiano ou de cunho especfico, cujasconsequncias so o objeto de trabalho dessas mesmas tcnicas. Mas no res-pondem a nossa questo subvertida.

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    Como mdico, como educador e como artista, mesmo que sem dados obje-tivos para saber o quanto de valor foi adicionado ao mundo por cada uma

    dessas atuaes ou quanto essas intervenes se aproximaram do medocre;enfim, como experimentador e circunstante prximo desses eventos, se meapresenta que permanecer nas explicaes oferecidas permanecer na superfi-cialidade do que essa proposta, enxergar apenas a sua funcionalidade, a sua utilidade (Dumouchel, 2009).

    Strazzacappa (2009, p. 52) prope-se a uma resposta:

    O que permite a uma determinada tcnica ser considerada comoEducao Somtica no o fato de ser realizada com maiorpreocupao e ateno com o corpo, e sim, como vimos nopresente texto, sua gnese, seus fundamentos, suas metas e asmetodologias empregadas para chegar a esses objetivos.

    O R.E.S. (2009) manifesta-se quanto natureza da educao somtica, oque utilizaremos na falta de uma definio do que consideram uma tcnica deeducao somtica:

    A educao somtica um jovem campo disciplinar que seinteressa pela aprendizagem e a conscincia do corpo em movi-mento no interior de seu meio. A educao somtica propeuma descoberta pessoal de seus prprios movimentos, de suasprprias sensaes. Este processo educativo oferecido em cur-sos ou lies onde o orientador prope pela palavra, ou ainda pelo gesto ou o tocar, atividades pedaggicas de movimento ede percepo do corpo.15

    A quantas tcnicas conhecidas, conceituadas e no reconhecidas pelo R.E.S.poderiam ser aplicadas essas palavras?

    O Ismeta, tambm j citado, descreve os benefcios que podem ser obtidospelas tcnicas aceitas pela instituio, tais como: coordenao, percepo e cons-cincia pelo movimento; mas tambm no descreve quais tcnicas considera como educao somtica. Cumpre relembrar que seu catlogo muito maisextenso que o apresentado pelo R.E.S., mantendo, ainda assim, diferenas en-tre seus afiliados.

    Mesmo Fortin, nas obras consultadas, no se manifesta sobre que tipo detcnica consideraria como de educao somtica.

    15. Leducation somatique est un jeune champ disciplinaire qui sintresse lapprentissage et laconscience du corps en mouvement dans son environnement. Leducation somatique propose unedcouverte personelle de ses propres mouvements, de ses propres sensations. Ce processus ducatif estoffert lors de cours ou leons o lintervenant propose par la parole, ou encore par le geste ou le toucher,des activis pdagogiques de mouvement et de perception du corps.

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    Um caminho possvel assumir a definio do que seja educao somtica,quanto sua natureza, includo o conceito emitido por Thomas Hanna, j

    citado no incio deste artigo, e circunscrev-la na definio da tcnica emitida por Strazzaccapa.No obstante, creio que a este respeito so possveis mais algumas palavras.Benoit Lesage (1998, p. 79), adiante da quantidade de nomes que se es-

    condem por trs do que hoje denominado educao somtica e, poderamosincluir, da quantidade de tcnicas, assim se manifesta:

    Esta pletora de nomes , por ela mesma, muito instrutiva. Ela nos indica um movimento multifocal e em plena efervescncia,

    e nos introduz, a partir das conotaes das expresses emprega-das, a uma referncia ao corpo especfico. , de fato, questo deentranamento psicossomtico, de construo individual, dedoura, de sensorialidade, de conscincia, de natureza... As influ-ncias do movimento potencial humano parecem evidentes, ens podemos pressentir uma ideologia alternativa subjacente(grifo do autor)16

    Uma ideologia a ser modelada, a ser preenchida pelos nossos princpios.Cada indivduo um evento entre os vrios eventos do universo, e talvez

    esta considerao seja a proposta mais honrosa da educao somtica: propor-cionar-lhe, proporcionar ao indivduo os mecanismos de aprofundar essa sua relao com os outros eventos que o cercam, no apenas por meio de suas aes,mas tambm no modo como elas so concludas e de sua conscincia sobreesses fatos.

    Ao influir sobre um indivduo por meio de aes sobre seu corpo, estamosagindo sobre toda a sua histria, isso em qualquer circunstncia. Nesse contex-to, incluem-se as aes mdicas, as aes pedaggicas, as aes religiosas, aaes artsticas. Qual seria, ento, a especificidade da educao somtica? Acre-dito, particularmente, que essa especificidade esteja relacionada ao projeto deapropriao, pelo indivduo, da ao que lhe proposta. Ser essa apropriaoque provocar as mudanas no universo em que as aes esto se dando e, porconsequncia, como uma onda, manifestar-se- em todos os seus limites.

    Essa apropriao conhecimento, no seu mais profundo significado; li-berdade, no seu mais singelo significado; e, sob esses aspectos, processoteraputico de cunho social.

    16. Cette plthore de noms est en elle-mme fort instrutive. Elle nous signale un mouvement multifocal eten pleine effervescence, et nous introduit, de par les connotations des expressions employes, unrapport au corps spcifique. Il est en effet question dintrication psychosomatique, de construtionindividuelle, de doucer, de sensorialit, de conscience, de nature...Les influences du mouvement du

    potenciel humain paraissent videntes, et on peut pressentir une idologiealternative sous-jacente.

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    A inteno projetar a ideia de que somtica um conceito relacionadoao modo de fazer, e no a uma tcnica especfica. A educao somtica no

    uma tcnica: , antes, uma proposta deum modo particular de como aprender ,decomo trocar conhecimento, um mtodo, uma proposta pedaggica ; e, como aopedaggica mpar, insere-se nos processos de transformao do indivduo e,por consequncia, da sociedade.

    As tcnicas ditas somticas no seriam outra coisa seno a objetivao deuma parcela desse conceito com abrangncia especfica, e sempre haveria ummodo de, buscando numa tcnica, a princpio no somtica, os princpiosoriginais da somtica, encontrar um modo de perceb-la e pratic-la

    somaticamente. A partir desse entendimento, somos levados a crer que, uma vez assumidosesses princpios, a somtica como forma de pensar tem condies de permeartodas as nossas aes sobre o corpo, sejam elas mdicas, pedaggicas, artsticastcnicas, entre outras.

    significante terminar este artigo com uma frase de Michel Dertouzos,diretor do Laboratrio de Informtica do MIT17, durante uma entrevista imprensa em outubro de 2000 e citada pelo R.E.S. em sua pgina na internet:Eu gostaria que ns tivssemos uma quarta revoluo, na qual ns tentaramoscompreender o mais precioso recurso que ns possumos: ns mesmos.(Dertouzos, 2000, apud R.E.S., 2009).18

    Dois contos:

    Primeiro conto. Conta-o Al Huang:

    Uma das minhas amigas treinou jud durante anos e anos. Ela estava esperando uma oportunidade de poder usar o que tinha aprendido, mas por muito tempo ningum tentou atac-la. Atque um dia algum a agarrou num estacionamento e ela revidou batendo com a bolsa! E ento pensou, Mas o que foique aconteceu com o meu jud? Ela certamente praticou judcomo se fosse uma coisa isolada. (Huang, 1979, p. 91)

    Segundo conto. Conto-o eu mesmo:

    Em minhas idas a Salvador, antes de iniciar minha tarefa diria

    de professor convidado na universidade federal local, acostu-

    17. M.I.T.: Massachusetts Institute of Technology.18. Jaimerais que nous ayons une quatrime rvolution, dans laquelle nous essaierions de comprendre la

    plus prcieuse ressource que nous possdions: nous-mmes.

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    mei-me a levantar bem cedo, enquanto ainda se fazia escuro,para andar ou correr na praia. Em vrias ocasies eu tive oportu-

    nidade de ver cenas que me levavam reflexo: na praia quasedeserta um capoeirista experimentado fazia seu treinamentoabsorto a tudo. A alguns metros de distncia um punhado decrianas, predominantemente na faixa dos 10 aos 14 anos deidade, repetia seus movimentos, sem perturb-lo, sem pergun-tar um ao outro como faz-lo. No sei se isto se dava numa constncia que poderia ser suficiente para a transformao da-quelas crianas em capoeiristas, mas ali eu enxergava com clare-za uma fantstica situao de aprendizado-ensino. As academi-as tm pressa e transformam esse processo em um punhado deexerccios e formas.

    Referncias bibliogrficas

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    Recebido em 10 de maro de 2010 e aprovado em 11 de maio de 2010.