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Educação Matemática Afrocentrada na formação inicial e continuada de professores de Matemática José Ivanildo Felisberto de Carvalho [email protected] UFPE Centro Acadêmico do Agreste Este texto apresenta uma reflexão sobre os desafios e possibilidades de abordagem dos saberes matemáticos na perspectiva da Educação Afrocentrada. Pretendemos vislumbrar alternativas para a desconstrução de uma visão que põe o conhecimento científico unicamente como uma construção eurocêntrica. Como método, desenvolvemos uma oficina formativa com quatro grupos diferentes constituídos por professores e futuros professores que ensinam matemática no estado de Pernambuco no ano de 2018. O ensino e aprendizagem da matemática numa perspectiva afrocentrada certamente possibilita processos idôneos com a nossa realidade brasileira, reverberando para a constituição de espaços democráticos e cidadãos mais conscientes com respeito às questões sobre identidade negra e racismo. Palavras-chave: História da Matemática; Formação de professores; Educação Afrocentrada; Legado Africano; Educação Matemática Afrocentrada. Introdução Este texto tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre os desafios e possibilidades de abordagem dos saberes matemáticos na perspectiva da Educação Afrocentrada (MADHUBUTI, 1990) que por sua vez está ancorada na teoria da Afrocentricidade (NASCIMENTO, 2009; ASANTE, 1987, 2015). Apresentamos ainda o registro de vivências formativas com professores de matemática em formação inicial e continuada. Embebidos das noções postas para uma pedagogia afrocêntrica e nos processos de ensino e aprendizagem da matemática optamos em didaticamente denominar tais reflexões e vivências como Educação Matemática Afrocentrada. Neste sentido, pretendemos vislumbrar alternativas para a desconstrução de um paradigma que valida o conhecimento científico unicamente como uma construção eurocêntrica. Concernente aos cursos de matemática-licenciatura as discussões sobre uma abordagem afrocentrada dos saberes ainda é muito principiante; de forma positiva, nos últimos anos há cursos de licenciatura que trazem essa temática em sua estrutura curricular, entretanto tal fato não é uma realidade na maioria dos referidos cursos que formam professores para o ensino de matemática na Educação Básica. No campo das pesquisas em Educação Matemática a abordagem da Etnomatemática desenvolvida por D`Ambrósio (D`AMBRÓSIO, 2005; VIEIRA E D`AMBRÓSIO, 2014) nos apresenta uma crítica sobre a hegemonia eurocêntrica nas

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Educação Matemática Afrocentrada na formação inicial e continuada de

professores de Matemática

José Ivanildo Felisberto de Carvalho

[email protected]

UFPE – Centro Acadêmico do Agreste

Este texto apresenta uma reflexão sobre os desafios e possibilidades de abordagem dos

saberes matemáticos na perspectiva da Educação Afrocentrada. Pretendemos vislumbrar

alternativas para a desconstrução de uma visão que põe o conhecimento científico

unicamente como uma construção eurocêntrica. Como método, desenvolvemos uma oficina

formativa com quatro grupos diferentes constituídos por professores e futuros professores que ensinam matemática no estado de Pernambuco no ano de 2018. O ensino e

aprendizagem da matemática numa perspectiva afrocentrada certamente possibilita

processos idôneos com a nossa realidade brasileira, reverberando para a constituição de

espaços democráticos e cidadãos mais conscientes com respeito às questões sobre

identidade negra e racismo.

Palavras-chave: História da Matemática; Formação de professores; Educação Afrocentrada; Legado

Africano; Educação Matemática Afrocentrada.

Introdução

Este texto tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre os desafios e

possibilidades de abordagem dos saberes matemáticos na perspectiva da Educação

Afrocentrada (MADHUBUTI, 1990) que por sua vez está ancorada na teoria da

Afrocentricidade (NASCIMENTO, 2009; ASANTE, 1987, 2015). Apresentamos ainda

o registro de vivências formativas com professores de matemática em formação inicial e

continuada. Embebidos das noções postas para uma pedagogia afrocêntrica e nos

processos de ensino e aprendizagem da matemática optamos em didaticamente

denominar tais reflexões e vivências como Educação Matemática Afrocentrada. Neste

sentido, pretendemos vislumbrar alternativas para a desconstrução de um paradigma que

valida o conhecimento científico unicamente como uma construção eurocêntrica.

Concernente aos cursos de matemática-licenciatura as discussões sobre uma

abordagem afrocentrada dos saberes ainda é muito principiante; de forma positiva, nos

últimos anos há cursos de licenciatura que trazem essa temática em sua estrutura

curricular, entretanto tal fato não é uma realidade na maioria dos referidos cursos que

formam professores para o ensino de matemática na Educação Básica.

No campo das pesquisas em Educação Matemática a abordagem da

Etnomatemática desenvolvida por D`Ambrósio (D`AMBRÓSIO, 2005; VIEIRA E

D`AMBRÓSIO, 2014) nos apresenta uma crítica sobre a hegemonia eurocêntrica nas

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ciências e nos alerta para a importância de um trabalho aportado em um paradigma não-

eurocêntrico para o ensino e aprendizagem da Matemática. Tais estudos e discussões já

somam mais de três décadas, se considerarmos como marco inicial do programa de

pesquisa Etnomatemática os anos de 1984 quando da realização do V Congresso

Internacional de Educação Matemática no qual o professor Ubiratan D`Ambrósio

apresenta alguns das pesquisas já desenvolvidas e em 1985 é criado o ISGEm –

International Study Group on Ethenomathematics (D`AMBRÓSIO, 2008). Na formação

de professores de matemática se torna emergente repensar as estruturas curriculares dos

cursos em face dos estudos etnomatemáticos, uma vez que não há uma discussão

sistematizada no seio dos referidos cursos, como por exemplo, se compararmos com

outras teorias de ensino e aprendizagem da matemática.

Fernandes, Lima, Araújo e Lima (2017) realizaram uma pesquisa com oito

docentes licenciados em Matemática e que lecionam em um curso de matemática-

licenciatura. Os autores apontam que apenas 37,5% dos professores deste estudo,

tiveram contato com a etnomatemática, revelando assim que uma prática docente em

sala de aula baseada numa pedagogia nessa linha é dificultada pelo o desconhecimento

sobre os conceitos etnomatemáticos. E ainda, discorrem que 75% dos docentes

pesquisados não relacionam saberes etnomatemáticos com o cotidiano dos seus alunos,

isto é, mesmo acreditando que os conceitos etnomatemáticos são importantes e que

deveriam ser inseridos no currículo escolar, os professores não praticam o saber/fazer

etnomatemáticos. Lucas e Cordeiro Moita (2017) descrevem que, de uma maneira geral,

quando orientado pela Etnomatemática, o ensino tende a distanciar-se de práticas

predominantemente tradicionais, assim contribuindo para a superação de alguns

desafios que o ensino de matemática tem enfrentado ou imposto aos alunos, aos

educadores e ao próprio conhecimento matemático. Em Rosa e Orey (2017) temos

exemplos que nos ajudam a pensar alternativas pedagógicas e as influências da

etnomatemática nas salas de aula da Educação Básica. Trazemos à baila a

etnomatemática por contribuir com enfrentamento às visões científicas do

eurocentrismo. Passaremos agora para um recorte mais específico que põe em cena uma

reflexão sobre educação, legado matemático africano e a formação de professores.

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Como bem aponta Silva, Farias e Silva (2017) os movimentos sociais negros

brasileiros lutaram arduamente e sistematicamente para inclusão do estudo da história

do continente africano e a luta dos negros no Brasil desde 1950. Em 2003 com a lei

10.639 promulgada no Brasil e complementada pela lei 11.645 em 2008 fica

estabelecida a obrigatoriedade do estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e

Indígena nos estabelecimentos de ensino públicos e privados. Chama-nos atenção

quando encontramos docentes das ciências exatas se eximindo da responsabilidade de

aplicar as referidas leis em que determinam o estudo da história e da cultura afro-

brasileira e dos povos indígenas em todo o currículo escolar. O professor de

matemática, salvo exceções, parece não ter sido formado e sensibilizado nesta

perspectiva. Santos e Souza (2018) corroboram a necessidade emergente de uma

reformulação curricular que atenda a implantação da Lei 10.639/03 requerendo uma

ampliação no plano prático, conceitual e epistemológico do que significa construir um

currículo sob a perspectiva racial, considerando, ainda para as áreas de conhecimento,

as epistemologias africanas que descolonizam os currículos.

Há uma carência na formação dos professores de matemática o que os faz em

muitas situações acreditar que a África não tem nada haver com a matemática (FORDE,

2017) desconhecendo a história da matemática que deveria ser abordada desde a sua

formação inicial. A história da África está indiscutivelmente atrelada a história do povo

brasileiro e com, o desenvolvimento de atividades e situações por meio de um estudo

matemático de base africana será possível solidificar conhecimentos mais autênticos

além de possibilitar uma postura crítica dos estudantes. Sem contar que, muitas dessas

atividades e jogos da matemática africana, podem ser trabalhadas ludicamente e que

aproximem os estudantes de matemáticas socialmente referenciadas, onde todos que

estão em sala de aula podem desenvolver os saberes matemáticos.

Educação Afrocentrada e a luta pelo reconhecimento do legado africano

O pesquisador Molefi Kete Asante1 (2015) nos apresenta algumas reflexões, ao

tonificar o fato de que a influência africana sobre a Grécia antiga, a mais velha

1 Molefi Kete Asante é professor titular do departamento de Estudos Afro-americanos da Universidade de Temple na

Filadélfia (EUA), onde fundou e implantou o primeiro programa de doutorado em Estudos Afro-americanos dos

Estados Unidos. Fundou e foi curador do Museu de artes e antiguidade africanas na cidade de Búfalo, NY.

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civilização européia, foi profunda e significante na Arte, Arquitetura, Astronomia,

Medicina, Geometria, Matemática, Direito, Política e Religião. Entretanto há diversos

fatores que contribuem para que tal influência não seja revelada, que não venha à tona.

Dentre estes fatores destacamos a necessidade de perpetuar a dominação sobre

os povos e países que alguns grupos hegemônicos consideram inferiores, disseminando

que as culturas dos referidos povos são inferiores e sem desenvolvimento. Na escola

desde a Educação Infantil somos bombardeados por uma infinidade de situações que

nos faz acreditar na supremacia européia e que nada que exista antes ou fora do mundo

ocidental possa ser levado em consideração. Fazendo um recorte para os saberes

matemáticos, exemplificamos com a pesquisa de Silva, Farias e Silva (2017) ao qual

discorrem que a tradição do cálculo mental sempre esteve viva e presente no cotidiano

dos brasileiros sem que a escola reconhecesse que nesse aspecto fomos fortemente

influenciados pelos africanos.

Adentrando sucintamente na Teoria da Afrocentricidade, Asante (2009) nos

apresenta que a afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que

percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria

imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos. (ASANTE, 2009,

p.93). Convém ressaltar que nos textos sobre afrocentricidade se compreende os

africanos da África e da Diáspora africana. Santos Júnior (2010) aponta que a

afrocentricidade consiste num paradigma, numa proposta epistêmica e também num

método que procura encarar quaisquer fenômenos através de um conceito chave, o

conceito de localização, o qual promoverá a agência dos povos africanos em prol da

liberdade humana. Lima, Reis e Silva (2018) reafirmam que não se deve considerar

afrocentricidade, necessariamente, sinônimo da assunção de alguns costumes africanos.

A abordagem afrocentrada reconhece as pessoas negras enquanto sujeitos epistêmicos

(LIMA, REIS E SILVA, 2018).

Outra característica fundamental que quero destacar neste texto é que a

afrocentricidade não é uma versão negra do eurocentrismo (ASANTE, 1988) por isso

não usamos o termo afrocentrismo. O eurocentrismo impõe sua realidade como uma

verdade universal e induz à uma crença de que todo não-branco é visto como um grupo

específico, por conseguinte, como não-humano (SANTOS JÚNIOR, 2010). Ao

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contrário, a afrocentricidade estabelece uma perspectiva de que é possível a existência

de um pluralismo de culturas sem hierarquia, mas isto exige igualdade cultural e

respeito. A passagem a seguir esclarece ainda mais esta questão,

Ninguém pode tirar as dádivas da Europa, nem isto deve ser jamais um

objetivo de estudos, mas a Grécia não pode impor-se como uma cultura

universal que se desenvolveu inteiramente do nada, sem as fundações que

recebeu da África. (ASANTE, 2015, p...)

Como aponta Asante (2015) começar uma discussão sobre mundo antigo

somente em 800 a. C. é, certamente, um saber pobre. As classes no poder sempre

procuram promover e manter as mitologias que justificam seu domínio. Na maioria de

casos, conhecimento constrói-se sobre conhecimento e por meio dos estudos e pesquisas

afrocentradas é possível articular que os gregos eram estudantes dos egípcios. Cunha

(2015) também discorre sobre esse assunto ao afirmar que

a negação do passado científico e tecnológico dos povo s africanos e a exacerbação do seu “caráter lúdico” foi uma das principais façanhas do

eurocentrismo e que ainda hoje abala fortemente a auto-estima da população

africana e da diáspora, pois os “métodos”, “conceitos” e muitos cientistas

europeus deram a impressão ao restante do mundo, de que as populações

africanas não tiveram uma contribuição relevante para a construção do

conhecimento universal.

Como percebemos urge a necessidade de uma revisão histórica e epistêmica, que

inclusive inclui os conhecimentos matemáticos, para trincar a “suposta história oficial

da humanidade”. Em D´Ambrósio (2008) e Nascimento (2009) os autores indicam a

apropriação indébita do patrimônio cultural africano pela civilização Greco-romana.

Esse movimento de contestação científica é fortalecido por cientistas e historiadores que

tem dedicado suas pesquisas para trazer à cena questões cruciais com relação aos males

causados pela visão eurocêntrica do conhecimento, dentre eles citamos Cheick Anta

Diop e Kabengele Munanga.

A hegemonia eurocêntrica mundial tão impregnada em nossa sociedade vai

contribuir para atitudes e práticas racistas, e conseqüentemente, deságua nas práticas

educacional, se revela no chão da escola, tomando corpo uma educação eurocêntrica,

com significativos prejuízos sociais. Inclusive em suas pesquisas Lima, Reis e Silva

(2018) advogam que a hegemonia eurocêntrica está presente nos estudos educacionais,

invisibilizando outras perspectivas teóricas. Somando-se a este fato, Madhubuti (1990)

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descreve que uma pedagogia afrocentrada é necessária para oferecer suporte à linha de

resistência à essas condições. Ainda corroborando com Madhubuti (1990) com uma

pedagogia afrocentrada é possível produzir uma educação que contribua para alcançar

orgulho, equidade, poder, riqueza e continuidade cultural para os africanos na América

e noutros países.

Em um dos seus estudos com crianças afro-americanas Madhubuti (1990) nos

questiona quais as características que seriam necessárias para que as experiências

informais com a matemática compartilham atributos suficientes da matemática da escola

formal e que possa servir como base para a aprendizagem na escola.

Pensando na motivação dos estudantes, que inclusive na disciplina de

matemática se deve ter um cuidado ainda maior, quais efeitos a incorporação das

contribuições africanas na matemática, ciências e tecnologias no currículo escolar

podem se constituir como elementos motivadores dos referidos estudantes? Neste

sentido, construímos dois questionamentos/reflexões, a saber: Como professores de

matemática em formação inicial e continuada compreendem a epistemologia/história

dos conhecimentos matemáticos? Como ampliar o conhecimento didático e matemático

do professor e possibilitar um trabalho com a matemática numa perspectiva dos

princípios de uma Educação Afrocentrada?

Vivências Formativas com professores e futuros professores de matemática

Nesta seção apresentamos as vivências formativas com professores e futuros

professores de matemática. A proposta deste trabalho surgiu como a necessidade de

enfretamento à processos formativos que não dão conta ainda de uma abordagem

afrocentrada com o referido grupo de professores envolvidos. Como método,

desenvolvemos oficinas formativas com quatro grupos diferentes constituídos por

professores e futuros professores que ensinam matemática no estado de Pernambuco no

ano de 2018. No total as oficinas envolveram 55 participantes distribuídos entre

professores em formação inicial (20 participantes), ou seja, estudantes da graduação em

licenciatura em matemática e professores já graduados e em exercício (35 participantes).

As oficinas foram construídas para em um primeiro momento levantar dados

concernentes às concepções dos professores sobre a história da matemática e

posteriormente, vivenciar um jogo de origem africana – o Igba-Ita do povo Igbo da

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Nigéria, que foi adaptado como recurso didático para o fortalecimento de vínculos de

identidade africana. Em ambos o momento a interação nas oficinas se deu de forma

dialógica com espaço para as falas e debates. Utilizamos recortes teóricos e resultados

de pesquisa para permear as discussões e contribuir com uma nova perspectiva teórica e

prática concernente ao ensino e aprendizagem da matemática.

Como dissemos, no primeiro momento os participantes foram indagados sobre

quais seriam para eles os grandes heróis da matemática presentes na sala de aula e a

concepção sobre o propósito do ensino da matemática na Educação Básica, a figura 1

apresentamos um registro com um dos grupos participantes.

A reflexão dos professores durante os encontros nos ajudou a compreender as

ideias que circulavam durante os encontros formativos. À luz dos princípios defendidos

por Zeichner (1998), as falas, os pensamentos, os posicionamentos individuais, podem

ser interpretados como manifestação do crescimento de cada professor no grupo

formativo.

Figura 1: Registro de uma das oficinas formativas

Fonte: o autor, 2018

Neste sentido, os dados, constituídos pelo registro das discussões, apontaram que

os professores ainda apresentam uma lacuna com relação aos conhecimentos sobre o

legado africano matemático; na maioria do discurso dos professores identificamos

exemplos que fortalecem a noção errônea de que, por exemplo, os saberes matemáticos

foram constituídos por alguns poucos europeus como Pitágoras e Tales de Mileto, estes

inclusive são os mais citados por ambos os grupos, quer sejam professores em formação

inicial ou professores em exercício.

Outro dado que constatamos é de que não há referências dos professores

participantes à matemática originada e desenvolvida na África. Há algumas citações

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com respeito às pirâmides do Egito, entretanto sem uma sólida relação com os povos

negros que contribuíram com a sistematização dos referidos saberes.

Vale salientar que por meio do espaço dialógico das oficinas formativas, tal

como afirma Zaichner (1998), os professores ampliaram o seu arcabouço de

compreensões sobre a temática em questão.

As lacunas que os professores e futuros professores apresentam estão

diretamente relacionadas com os currículos dos cursos de formação inicial, em nosso

caso, licenciatura em matemática. Santos e Souza (2018) ao realizarem um estudo com

as ementas de cursos de licenciatura em matemática discorrem que,

podemos inferir que o Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em

Matemática (re)produz discursos pedagógicos que mantém os professores/as

em formação presos a formações discursivas e ideológicas de marcos

civilizatórios eurocentrados, impedindo que esses sujeitos tenham acesso a

outros gestos de leitura e interpretação de discursos que também fazem parte

da sua história.

Neste sentido, acreditamos que uma abordagem fidedigna e idônea dos saberes

matemáticos nas salas de aula deve considerar o legado matemático africano. Inclusive

como enfrentamento a abordagens eurocêntricas que não contribuem para o

reconhecimento das identidades africanas e afro-brasileiras. Na próxima seção

apresentamos o Jogo Igba-Ita como parte integrante da oficina formativa.

Jogo Igba-Ita

O contato inicial com o jogo se deu por meio da leitura do livro Jogos e

atividades matemáticas do mundo inteiro da pesquisadora Cláudia Zaslavsky.

Procedemos a um levantamento bibliográfico de textos que mapeassem as práticas

desenvolvidas pelo povo Igbo da Nigéria localizada no continente africano (localização

em verde na Figura 2), entrando em contato com o livro original Among the Ibos of

Nigeria de George T. Basden com edição do ano de 1921 no qual discorre sobre o jogo

em referência e alguns outros jogos. Em seguida aprofundamos o estudo dos conceitos

probabilísticos que permeiam o jogo e as possíveis articulações com situações da

historicidade do conceito de probabilidade.

Figura 2: Localização do Povo Igbo da Nigéria (em verde no mapa)

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Fonte: http:// cp2.g12.br/blog/saocristovao2/files/2019/04/SociedadesReinosAfricanos.pdf

Um dos objetivos do trabalho com o Jogo Igba-Ita é que conceitos fundamentais

para o ensino e aprendizagem da probabilidade, tais como espaço amostral e

aleatoriedade, sejam revisitados por meio de uma construção significativa deste

conhecimento.

Outro objetivo é oferecer aos professores outros contextos possíveis de

desenvolvimento do raciocínio probabilístico para o trabalho em sala de aula com a

ideia de acaso, espaço amostral e quantificação de probabilidades, sob o ponto de vista

de sua gênese histórica. Contudo o objetivo primordial é a vivência de uma prática

matemática de base africana, particularmente, do povo Igbo da Nigéria (Figura 3).

Figura 3: Igbos

Fonte: http://igboupf14.blogspot.com/p/sociedade.html

Os jogadores apostam uma, duas ou três conchas no centro, chamando de

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“bolo”. O desafiador lança as quatro conchas. O desafiador ganha o bolo de apostas

quando as conchas caírem de uma das seguintes maneiras:

Quatro conchas com as aberturas para cima

Quatro conchas com as aberturas para baixo

Duas conchas para cima e duas conchas para baixo

O desafiador pega todas as conchas do bolo e continua a lançar quatro

conchas. Se o desafiador perder, o “bolo” permanece no centro. E a vez passa para o

próximo jogador que se torna o novo desafiador. Se a qualquer momento um jogador

não tiver no mínimo 4 conchas para apostar, sairá do jogo. O vencedor é aquele que

tiver mais conchas. Por fins didáticos é necessário decidir antecipadamente a quantidade

de rodadas, caso contrário o jogo poderá se estender por um tempo maior. Para uma

melhor compreensão do jogo e dos conceitos probabilísticos abordados indicamos a

leitura do artigo O Jogo Igba-Ita e a construção do conceito de probabilidade (SILVA E

CARVALHO, 2014). Na figura 4 temos o registro de partidas do jogo com os

participantes das oficinas.

Figura 4: Partida do Jogo Igba-Ita

Fonte: o autor, 2018

Chamamos a atenção para a importância de recursos didáticos que sejam

desencadeadores de maiores reflexões no chão da sala de aula. Umas das reflexões que

fizemos no grupo, e que, como já dissemos anteriormente, amplia as possibilidades que

o professor de matemática pode lançar mão, seria o significado simbólico de levar para

o espaço escolar as conchas. As referidas conchas podem se constituir como um

elemento que revele preconceito e resistência por parte dos estudantes; um dos

participantes em uma das oficinas pontuou que os estudantes podem associar as conchas

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com “macumba” e revelar uma compreensão embebida por discursos que não respeitam

as religões de matriz africana.

Destacamos ainda que ao mesmo tempo em que jogamos estamos vivenciando

uma forma de conhecimento e de prática cultural de um grupo étnico-racial, tal ação nos

fortalece enquanto práticas negras de imenso valor cultural e científico. É necessário o

enfrentamento ao que Silva, Farias e Silva (2017) nos apontam como o estabelecimento

de uma positivação da racionalidade dos europeus bem como a negação de outras

formas de conhecimentos matemáticos como as dos índios e as dos africanos na escola.

Considerações finais

Nos tempos atuais, particularmente no contexto brasileiro, se torna importante a

valorização de atividades com professores e futuros professores de matemática para

fortalecimento e reconhecimento de suas raízes, culturas, e não menos importante, uma

compreensão significativa sobre as origens do conhecimento matemático.

Salientamos, por exemplo, que o modo ocidental de contar não é o único e

diferentes povos e civilizações desenvolveram métodos particulares de resolver os

problemas matemáticos, até hoje utilizados por diferentes povos (SILVA, FARIAS E

SILVA, 2017). Como enfatiza Cheikh Anta Diop, a matemática pitagórica, a teoria dos

quatro elementos de Tales de Mileto, o materialismo epicureano, o idealismo platônico,

o judaísmo, o Islã e a ciência moderna têm suas raízes na cosmogonia e na ciência

africana do Egito (NASCIMENTO, 2007).

A partir da imersão nas oficinas formativas com professores em exercício e

futuros professores de matemática e a vivência de abordagens didáticas que localiza os

conhecimentos africanos da África e da diáspora africana acreditamos que há caminhos

possíveis para o enfrentamento ao racismo, inclusive por meio do reconhecimento

histórico e cultural do legado do povo negro na ciência. Para Nascimento (2009) uma

abordagem afrocentrada colaborará na transmissão de geração em geração de crenças,

costumes, hábitos, conhecimentos e valores afro-brasileiros sem culpa, medo e

distanciamento.

Reafirmamos que conhecer, discutir e refletir, por meio de espaços de formação

inicial e continuada, pode possibilitar um rebatimento em nossas propostas

metodológicas para construção do conhecimento matemático no chão da sala de aula,

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reverberando para a constituição de espaços democráticos e cidadãos mais conscientes

com respeito às questões sobre identidade negra e racismo.

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