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2009 Língua Portuguesa VI: Concordância e Regência Elvira Lopes Nascimento

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2009

Língua Portuguesa VI: Concordância e Regência

Elvira Lopes Nascimento

© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

N244 Nascimento, Elvira Lopes. / Língua Portuguesa VI: Con-cordância e Regência. / Elvira Lopes Nascimento.

— Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009. 260 p.

ISBN: 978-85-387-0231-3

1. Língua Portuguesa – Concordância. 2. Língua Portuguesa – Sintaxe. 3. Língua Portuguesa – Gramática. 4. Língua Portugue-sa – Verbos. I. Título.

CDD 469.5

Capa: IESDE Brasil S.A.

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Elvira Lopes Nascimento

Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela USP. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Licenciada em Letras – Português/Inglês pela UEL.

Sumário

O objeto dos estudos linguísticos ...................................... 13

Sob o ponto de vista das manifestações linguísticas no texto situado ................. 13

O texto como unidade de ensino/aprendizagem da língua ..................................... 16

Sob o ponto de vista da língua como estrutura ............................................................ 21

Morfossintaxe ............................................................................ 31

Os estudos gramaticais ........................................................................................................... 31

As unidades linguísticas e os níveis de análise ............................................................... 34

Por que morfossintaxe ............................................................................................................ 38

Os critérios formal e sintático para a classificação morfológica ............................... 40

O estudo da Sintaxe ................................................................ 51

As leis sintáticas ......................................................................................................................... 51

O campo de atuação da Sintaxe .......................................................................................... 53

Frase e oração ............................................................................................................................. 56

A frase é uma estrutura ........................................................................................................... 59

A estrutura sintagmática do português ........................... 69

Constituintes imediatos .......................................................................................................... 69

Constituintes oracionais: os sintagmas ............................................................................. 71

Os tipos de sintagmas ............................................................................................................. 73

A estrutura do sintagma nominal ....................................................................................... 77

Síntese da estrutura do sintagma nominal ..................................................................... 78

Sintagma verbal ......................................................................................................................... 79

A significação na construção dos enunciados ............... 85

Componentes do significado ................................................................................................ 85

Ordem das palavras .................................................................................................................. 88

Ambiguidade .............................................................................................................................. 90

Redundância semântica ........................................................................................................ 94

Paráfrase sintática ..................................................................................................................... 94

Sintaxe e Semântica ..............................................................101

A ordem ......................................................................................................................................102

A ordem nas orações ..............................................................................................................103

A ordem nos sintagmas – constituintes .........................................................................108

Função semântica: os papéis temáticos .........................................................................110

Sintaxe de concordância nominal ....................................119

Relações de concordância: termo regente e termo regido ......................................119

Relações de concordância nominal: gênero e número ............................................123

Concordância nominal ..........................................................................................................124

Sintaxe de concordância verbal ........................................137

Concordância verbal ..............................................................................................................138

A abordagem tradicional da concordância verbal ......................................................139

As regras variáveis da concordância verbal: uma questão de estilo? ...................144

Estilo e concordância verbal ideológica..........................................................................146

Sintaxe de regência ...............................................................159

Os fatos sintáticos que geram os dados de análise ....................................................159

Manifestação da relação de regência...............................................................................162

Regência de alguns verbos ..................................................................................................165

Regência nominal ...................................................................................................................169

Crase: questão de sintaxe de regência ...........................179

Manifestação da relação de regência...............................................................................180

Crase: combinação e contração .........................................................................................183

Preliminares: o uso do artigo definido ............................................................................185

Preliminares: o emprego da preposição “a” ....................................................................188

Identificação do uso da crase ..............................................................................................189

Sintaxe de colocação ............................................................197

As funções sintáticas dos pronomes pessoais ..............................................................198

Posições do pronome átono junto ao verbo .................................................................200

Colocação pronominal em norma culta: pronomes átonos atrelados à forma simples do verbo .............................................202

Colocação pronominal em norma culta: pronomes átonos presos às formas compostas do verbo ........................................204

Colocação pronominal no uso coloquial da linguagem ...........................................205

Colocação pronominal: fatores ligados à sonoridade do enunciado ...................207

Pontuação .................................................................................221

A função básica dos sinais de pontuação .......................................................................221

Quando pontuar ......................................................................................................................223

Ambiguidades de sentido e pontuação..........................................................................225

O uso da vírgula no período simples ...............................................................................227

O uso da vírgula no período composto ..........................................................................230

O uso do ponto-e-vírgula .....................................................................................................232

O uso dos dois-pontos...........................................................................................................233

O uso das reticências..............................................................................................................234

O uso do travessão ..................................................................................................................235

O uso dos parênteses .............................................................................................................235

O uso das aspas ........................................................................................................................236

Gabarito .....................................................................................243

Referências ................................................................................251

Anotações .................................................................................259

Apresentação

Ao atribuirmos ao texto uma função central para o intercâmbio comunica-tivo realizado pelos usuários da língua, consideramos que as regras específicas de textualidade e textualização se apoiam nas unidades que compõem o texto – as frases. Estas, para comporem o texto, aceitam uma combinação múltipla de cons-tituintes do sistema linguístico, cuja finalidade e relevância consistem em preen-cher também uma condição de textualidade. A frase deve ser capaz de associar significados e sequências de sons, mas isso vai depender da escolha e do arranjo de seus constituintes hierarquicamente constituídos. Para isso, a frase submete- -se à força das leis que regem essa organização sintática, uma vez que a língua em uso pressupõe combinação, adaptações ao contexto de uso, observação de con-venções sociais por parte dos seus usuários, pois os sentidos das frases só tomam forma nos arranjos sintagmáticos.

Em consequência, no estudo da linguagem, não se pode sufocar o fun-cionamento discursivo da língua, o sujeito, a história, a cognição, ignorando as-pectos que estão interligados nos estudos linguísticos, como os sentidos e a in-teração verbal, que dão margem a diferentes estilos e variedades de registro nos múltiplos contextos de uso da língua. Isso significaria um reducionismo do objeto – a linguagem. O enfoque para o estudo e a descrição da linguagem vai além de um enfoque nas estruturas formais da língua e deve caminhar em direção à lin-guagem e seu funcionamento, articulando e harmonizando os aspectos formais à função, à ação, ao social e ao histórico.

Inseridos nesse quadro da linguística moderna, organizamos os tópicos que constituem a disciplina Língua Portuguesa VI: Concordância e Regência. Você vai perceber que os fenômenos sintáticos analisados e descritos são considerados como desencadeadores da textualidade na superfície dos enunciados e, portanto, o conhecimento das estruturas e leis morfológicas e sintáticas da língua, consti-tui um importante instrumento para o aperfeiçoamento de nossa capacidade de produzir textos.

Na aula 1, discute-se o objeto dos estudos linguísticos, em que se analisa dois pontos de vista para a abordagem, a partir do texto-discurso e da língua como estrutura. Na aula 2, trata-se da abrangência dos estudos através do vínculo Morfologia e Sintaxe, a partir de uma abordagem da Morfossintaxe e na aula 3 estuda-se a estrutura sintagmática do português.

Na aula 4, percorre-se os caminhos da Semântica, discutindo-se a questão da significação na construção dos enunciados e aspectos a ela relacionados. Na aula 5, enfatiza-se aspectos do sentido, correlacionando Sintaxe e Semântica para enfocar a ordem nos sintagmas. Na aula 6, enfoca-se a problemática que envolve questões de Sintaxe e Semântica, uma vez que a compreensão da relação entre

forma, ordem e significado é princípio básico para a estruturação da língua. Na aula 7, o enfoque recai sobre os princípios de relacionamento e concordância entre as palavras na construção da frase. Na aula 8, trata-se especificamente da relação entre o sujeito e o verbo.

Na aula 9, o enfoque recai sobre a integridade da construção frasal e da relação entre termo regido e termo regente, e, na aula 10, aborda-se os aspectos ligados à crase como marca formal da sintaxe de regência. Na aula 11, o objetivo do enfoque é o de tratar da colocação dos pronomes átonos na frase em portu-guês. E, finalmente, na aula 12, o enfoque recai sobre as leis sintáticas, que dão ao usuário da língua diferentes possibilidades para a construção do ritmo do enun-ciado através da pontuação.

Você ainda pode contar com dicas de estudo para cada um desses assun-tos, sugestões de leituras complementares, uma farta referência que dará suporte a cada tema tratado e estudos linguísticos com os quais você irá praticar e testar os conhecimentos adquiridos.

Os estudos linguísticos na área aplicada ao ensino-aprendizagem cada vez mais têm entendido o texto como unidade fundamental da comuni-cação verbal. O objetivo maior das aulas de Língua Portuguesa deveria ser sempre ensinar e aprender o que pode ser usado, com a finalidade principal de melhorar a capacidade de expressão e de comunicação. Nessa perspec-tiva, o texto assume a posição central dentro da interação verbal e a frase ganha importância como unidade responsável pela boa forma linguística desses textos: “a frase, criação indefinida, variedade sem limite, é a própria vida da linguagem em ação” (BENVENISTE apud SAUTCHUK, 2004).

Sob o ponto de vista das manifestações linguísticas no texto situado

Com a finalidade de situar brevemente as posições adotadas pelos es-tudiosos da linguagem no âmbito da pragmática interacional e no âmbito do enfoque estruturalista – gramatical – iniciaremos esta reflexão com a abordagem que toma a linguagem como atividade interativa e não como forma ou sistema.

A língua como trabalho social, histórico e cognitivoPartindo do ponto de vista que toma a língua como um conjunto de

práticas enunciativas e não como forma abstrata, pensamos a linguagem em seu funcionamento no fenômeno textual, pois consideramos impos-sível qualquer manifestação de linguagem fora do texto produzido em uma enunciação.

Nos estudos da linguagem na atualidade, essa concepção está situa-da na chamada linguística enunciativa. Concepção esta em consonância

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com os estudos de Mikhail Bakhtin e Valentin Volochinov, autores fundamentais para esse quadro epistemológico. Para os autores, mesmo a mais elementar das enunciações humanas se “organiza fora do indivíduo pelas condições extraor-gânicas da vida social” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1929/1982, p. 107). Em nossas palavras, a enunciação humana é sempre um ato social, é produto da interação social. Vejamos essa tese dos autores:

A verdadeira substância da língua não é constituída pelo sistema abstrato de formas linguís-ticas nem pela enunciação monológica e isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua pro-dução, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1929/1982, p. 109)

Refletindo sobre a posição dos autores quando, na mesma obra, afirmam que “A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1929/1982, p. 121) (grifo nosso).

A “comunicação verbal concreta” configura textos – formas empíricas do uso da linguagem verbal, oral ou escrita, no interior de práticas sociais contextuali-zadas histórica e socialmente. Esta perspectiva de língua/linguagem leva o ana-lista a tomar como ponto de partida o texto na interação, associando-o, a partir das pistas materiais que se encontram em sua superfície, às práticas sociocul-turais no interior das quais surgiu e que chamamos de contexto. E ao se referir à “comunicação verbal concreta” que “evolui historicamente”, os autores estão se referindo à relativa estabilidade no modo de configuração dos enunciados, que permite o seu reconhecimento (por exemplo, conseguimos reconhecer uma fábula, uma bula de remédio, em meio a outros textos).

A interação verbal: a língua na prática socialA importância do que acabamos de discutir se deve a uma dicotomia muito

comum entre professores de língua portuguesa quando se deparam com a di-visão: aspectos gramaticais e/ou aspectos textuais da fala e da escrita, o que os leva a pensar que “o que é textual não é gramatical e que o que é gramatical não é textual” (TRAVAGLIA, 2003), posição com a qual não podemos concordar.

Se partirmos da concepção de que a interação verbal é a realidade da língua, o enunciado concreto (que tem um autor e um interlocutor) é a unidade mínima da comunicação verbal. A partir desse momento, estaremos assumindo uma po-sição da linguística enunciativa, ponto de vista do qual se estudam os fatos de

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“fala”, ou seja, a produção concreta de enunciados por locutores na situação real de comunicação.

A interação entre um locutor (ou mais de um) e seu(s) interlocutor(es) produz um efeito de sentido que configura uma unidade semântica, ou seja, uma uni-dade de uso da linguagem (um texto) e não uma unidade gramatical. Um texto deve produzir sentido, ou então será apenas um amontoado aleatório de ele-mentos da língua – o que significa que o texto deve apresentar textualidade. Para Adam (apud BONINI, 2005) e Bronckart (2003) essa textualidade teria um nível microestrutural (o das unidades semânticas de base, isto é, das frases), um nível macroestrutural (o dos segmentos maiores constituídos pelos tipos de discurso que constituem o texto) e um nível superestrutural (que organiza a produção e a interpretação dos discursos em gêneros de texto).

O que a interação verbal configura não é uma estrutura morfológica ou sin-tática, é um texto estruturado em vários planos, tais como: fonológico, sintático, semântico e cognitivo, interdependentes e organizados no processo de enun-ciação pelo qual se dá a interação verbal. Assim é que “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN; VO-LOCHINOV, 1929/1982, p. 113) (grifos do autor).

Percebeu por que não podemos tratar a língua como um código ou um sis-tema de sinais autônomos, sem história e fora da realidade social dos falantes? A língua é muito mais que um mero sistema de formas fonológicas, sintáticas e lexicais. Como afirma Franchi (1992), a língua é uma atividade constitutiva com a qual podemos construir sentidos. Não pode ser confundida com gramática, ortografia ou léxico, pois ela se manifesta nos processos discursivos, concreti-zando-se em variados gêneros de texto e recorrendo a diferentes linguagens (verbal e não-verbal).

Marcuschi (2001) considera a língua como uma forma cognitiva porque com ela expressamos sentimentos, ideias, desejos; como uma forma de ação social, pois com ela podemos agir realizando coisas; e, também, como um sistema sim-bólico, uma vez que é constituída por um conjunto de signos que pode significar muitas coisas, mas cujos significados não podem ficar “prisioneiros” no interior das estruturas morfológicas ou sintáticas, ou seja, apreendidos de forma descon-textualizada. Para esse linguista, a atividade comum entre produtor e receptor engajados na interação oral ou escrita não pode ser reduzida a um simples pro-cesso de codificação (na produção) e de decodificação (na recepção).

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A linguagem é vista por esse linguista (que apresenta seu postulado a partir de uma abordagem sociointeracionista), sobretudo, como forma de ação e, nesta perspectiva, deve ser analisada como atividade e não como estrutura. Entretanto, o autor nos adverte para um problema que demanda muita reflexão: como cons-truir uma teoria que equacione estrutura e atividade, que case adequadamente, por exemplo, sentença e enunciado ou sentença/enunciado/enunciação?

Essa questão nos remete para a problemática da interação social – enfoque que vai além dos fenômenos estruturais da língua. O estudo da interação verbal, mediada pela linguagem, é essencial para que possamos entender não apenas o funcionamento da linguagem, mas também o sujeito que se constrói na intera-ção. Nesse quadro é que estudiosos como Bakhtin retiram a estrutura da língua do foco de suas reflexões para situar a linguagem na esfera de uso, em seu con-texto sociointerativo. Esse é o ponto em que ocorre a “virada pragmática”, no enfoque dos estudos da linguagem, ou seja, analisam-se muito mais os usos e funcionamentos da língua em situações concretas do que os elementos das es-truturas do sistema da língua.

Atualmente, muitos linguistas têm discordado da tese de que o objeto da sua ciência seja o sistema, o código abstrato imune às circunstâncias de uso em cada situação de interação. Cada vez mais tentam descrever, no quadro dos es-tudos linguísticos, a língua (e a gramática que a constitui) não mais como um objeto estático composto por estruturas do sistema, mas como manifestação intencional de sentido, deslocando-se o fenômeno linguístico do ponto de vista do sistema para o da atividade comunicativa.

Nesse quadro, não podemos concordar com a posição estruturalista na qual a língua é considerada um sistema estável de formas normativamente idênticas. Isso seria uma abstração científica que pode servir a certos fins teóricos e práti-cos particulares, mas não para o estudo da língua e da linguagem em funciona-mento na prática social.

O texto como unidade de ensino/aprendizagem da língua

Não podemos ignorar uma série de aspectos que hoje são considerados fundamentais nos estudos linguísticos aplicados ao ensino/aprendizagem da língua. Os aspectos que estão ligados à linguagem na interação social lembram ao professor a necessidade de reflexão sobre:

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O que é que se ensina ou se estuda quando se ensina ou se estuda língua?

A questão faz emergir tomadas de decisões quanto ao ponto de vista a ser adotado na elaboração de materiais didáticos, na organização de currículos, ementas e programas, nos procedimentos de avaliação (vestibulares, por exem-plo), e nos cursos de formação de professores. Enfocar a língua sob o ponto de vista da gramática descritiva? Da gramática normativa? Nos eixos do uso (produ-ção e leitura/compreensão)? No eixo da reflexão linguística (análise linguística)? No uso oral? No domínio de uma variedade linguística prestigiada socialmente?

A partir disso surgem outros questionamentos: O ensino será do tipo pres-critivo? Será um ensino descritivo? Ou será um ensino produtivo em torno de capacidades de uso?

Dependendo das respostas dessas questões, outras surgirão sobre os objetos de ensino, os objetivos, a perspectiva da abordagem. Contudo, todas as respos-tas podem ser enquadradas em uma única denominação: ensina-se ou estuda- -se a língua portuguesa.

No entanto, há hoje um consenso entre linguistas teóricos e aplicados: o ensino de língua deve se dar por meio de textos – e essa é a orientação central dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa.

Diante das mudanças na seleção e na abordagem do objeto de estudo/apren-dizagem da língua, temos nos deparado com o problema:

Como se pode conduzir o trabalho com a língua por meio do texto?

O texto tomado como unidade empírica dos estudos de linguagem aplicados ao ensino apresenta muitas possibilidades, como salienta Marcuschi (2001), ao preconizar um trabalho com base em textos. Veja algumas dessas possibilidades:

a língua em seu funcionamento autêntico e não-dissimulado; �

as variantes linguísticas; �

as relações entre fala e escrita no uso real da língua; �

a organização fonológica da língua; �

os problemas morfológicos em seus vários níveis; �

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o funcionamento e a definição de categorias gramaticais; �

os padrões e a organização de estruturas sintáticas; �

o funcionamento dos processos semânticos da língua; �

a organização das intenções e os processos interacionais; �

a progressão temática e a organização tópica; �

o treinamento do raciocínio e da argumentação; �

o estudo da pontuação e da ortografia; �

os problemas residuais da alfabetização; �

o estudo dos gêneros de texto. �

O autor deixa em aberto outros possíveis enfoques pois, como ele afirma, essa relação não é exaustiva e nem obedece a uma ordem lógica de problematização.

Contudo, devemos fazer uma ressalva: ainda que pensemos a linguagem como um conjunto de práticas sociais, cognitivas e interacionais, isso não sig-nifica que estamos ignorando o sistema, a gramática da língua. Como afirma Antunes (2005, p. 85), todas as pessoas falam conforme as regras particulares da gramática de sua própria língua. Isso porque toda língua tem sua gramática, seu conjunto de regras. [...]. Quer dizer, não existe língua sem gramática.

O argumento da autora é pertinente e relevante. O problema que vemos é fazer da metalinguagem e da análise formal o centro do trabalho com a língua ou, em outra abordagem, reduzir a língua às regras gramaticais, dentro de um objetivo pedagógico prescritivo e normativo. Uma educação linguística deve estar centrada em capacidades a serem desenvolvidas nos aprendizes: o pro-fessor deve decidir se objetiva desenvolver capacidades de linguagem para as práticas sociais ou desenvolver a competência para o reconhecimento da língua como sistema delimitado em diferentes níveis estruturais.

A abordagem textual-discursiva da línguaComo você percebeu, estamos nos referindo a abordagens da língua que

estão relacionadas a diferentes concepções de língua(gem).

O objeto dos estudos linguísticos

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A conscientização do professor de língua é importante, uma vez que o en-foque didático vai depender da natureza do objeto de ensino-aprendizagem, qualquer que seja ele:

a língua considerada em seu contexto de uso, nesse caso, os textos e os �seus níveis de organização são objeto de estudo; ou

a língua funcionando como um sistema de regras com sua fonologia, morfo- �logia, sintaxe, léxico e semântica sem indagação sobre os seus usos sociais.

Bronckart (2003), dentro de uma perspectiva textual para o ensino de língua, lembra que os textos são um objeto legítimo de estudo e que a análise de seus níveis de organização permite trabalhar a maioria dos problemas relativos à língua em todos os seus aspectos. O autor apresenta três níveis superpostos que definem o que ele, metaforicamente, denomina de folhado textual.

A proposta do autor representa uma boa contribuição por se prestar adequa-damente à nossa necessidade metodológica de desvendar a trama pela qual se dá a organização dos textos. Por ela, temos uma visão geral daquilo que pode constituir o objeto que desejamos enfocar no estudo da linguagem, ou seja, em qual “camada” do folhado textual se encontra a questão que desejamos abordar. Qualquer que seja o objeto de estudo (no nível da microssintaxe ou da macros-sintaxe), ele estará sempre lá, na relação de interdependência que todos os ele-mentos mantêm entre si e entre as representações do produtor sobre o contexto de produção.

No que se refere ao folhado que constitui a arquitetura interna dos textos, Bronckart (2003), considera três níveis:

A infraestrutura geral � do texto – que compreende os tipos de discurso (narrar/expor) e os tipos de sequências (narrativa, descritiva, argumentati-va, explicativa, injuntiva e dialogal).

Os � mecanismos de textualização – compreendendo a conexão, a coe-são verbal e a coesão nominal.

Os mecanismos enunciativos � – nesta camada do folhado se localizam as questões pertinentes às vozes e às modalizações.

Por ora, fiquemos apenas na camada dos mecanismos de textualização: aqui as marcas de textualização são observáveis tanto no nível da microssinta-

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xe quanto no nível da macrossintaxe, ou seja, o texto coeso, tecido, articulado, “amarrado” pelos mecanismos de textualização que lhe dão coesão.

Assim, para Bronckart, (2003), os três níveis da arquitetura textual resultam das operações de linguagem acionadas pelo produtor de um texto oral ou escrito em determinadas condições externas de produção de linguagem, que envolvem, por um lado, a situação de ação (as representações sobre o contexto físico, social e subjetivo de seu agir, sobre suas próprias capacidades e sobre o conteúdo temático mobilizado). Do outro lado, essas condições externas envolvem a preexistência de espécies de texto que ele deve selecionar para a sua ação de linguagem – gêneros textuais – que implicam operações de linguagem específicas para a sua textualização.

Essa articulação da abordagem das condições externas de produção e da ar-quitetura interna dos textos permite mostrar que as operações de linguagem são determinadas pelas representações sociais relativas às atividades de lin-guagem em uma esfera de comunicação humana, mas deixam aos produtores certa margem de decisão e liberdade para a escolha adequada dos mecanismos de textualização que atendam às especificidades intencionais e interacionais (BARROS; NASCIMENTO, 2007).

Isso significa que as pessoas, para exercer a linguagem, para usar a língua e para produzir sentidos devem manter o cuidado com a adequação social do produto linguístico em conformidade com as suas representações da situação de produção.

Como afirma Neves (2000, p. 53), “só haverá exercício pleno da linguagem se as escolhas e arranjos estiverem adaptados às condições de produção, incluin-do os participantes do ato linguístico”. Para a autora, quanto mais a interpreta-ção estiver próxima da intenção, mais bem sucedida terá sido a comunicação, incluindo-se até a possibilidade de que a intenção tenha sido uma interpretação ambígua. Dentro dessa “moldura pragmática que governa a interação”, afirma a autora que o que se faz é produzir sentido, tanto quem produz o enunciado quanto quem o recebe.

Dessa forma, o que fazemos em relação à gramática da língua é:

ficarmos submissos a um � núcleo duro que governa a parte estrutural dos arranjos;

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manejarmos um conjunto de decisões entre os possíveis, com as quais �ajustamos nossas produções para compor sentido, para obtermos sucesso na interação, e conseguirmos, realmente, manter a comunicação.

Sintetizando: ensinar e aprender a língua implica a adoção de um ponto de vista teórico e metodológico que vai dirigir o enfoque em duas direções: ou para uma análise dos fenômenos linguísticos relacionados à organização interna da língua em seus vários níveis de abordagem (fonológica, morfológica, semântica e sintática), independentes do contexto de uso; ou para uma análise que reco-nhece na superfície dos textos as pistas ou marcas deixadas pelos processos in-teracionais de produção de sentidos.

Sob o ponto de vista da língua como estrutura No tópico anterior, você percebeu que o foco era a língua relacionada ao con-

texto social de uso, aos textos e/ou discursos e aos interesses diversos dos inter-locutores na produção textual-discursiva.

Nesta seção vamos discutir a tese assumida por Saussure (1975) ao definir o objeto da linguística como sendo a língua (e não a linguagem) definida como um sistema, cujas unidades são, para o autor, de natureza relacional no encadeamento linear, ligadas por “relações sintagmáticas”.

Nos meados do século XX, predominou a visão formal da língua, culminan-do com o estruturalismo formal introduzido por Ferdinand de Saussure, linguista que é considerado o “pai” da linguística moderna. Essa abordagem da língua se fundamenta em princípios teóricos, entre os quais podemos citar:

a língua é uma totalidade organizada; �

a língua é um sistema autônomo de significação; �

a língua pode ser estudada em si e por si mesma. �

Esses postulados instituíram um novo modo de fazer linguística e fizeram eclodir diferentes vertentes dos estudos da linguagem que, mesmo sem negar que as línguas tenham seu lado social e histórico, não consideram esses aspec-tos como seu objeto de estudo específico.

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O estruturalismo saussuriano volta-se para a descrição das regularidades internas ao sistema, ao código da língua (a langue, e não a parole). Para os es-tudiosos da língua nesse modelo teórico, a fala/parole não é “controlável” pelo analista, portanto não pode constituir objeto de estudo científico. Hoje, a visão de língua/linguagem evita a visão estruturalista e a descrição puramente formal, e caminha em direção a uma perspectiva do funcionamento do sistema em seus aspectos funcionais, situacionais e contextuais do uso.

São imensas as contribuições da abordagem “estruturalista”, que polarizou o enfoque da linguagem em dicotomias que ainda são utilizadas nos estudos linguísticos, especialmente os de cunho formal ou estrutural. Veja algumas dico-tomias saussurianas:

língua X fala

sincronia X diacronia

significante X significado

sintagmático X paradigmático

social X individual

As dicotomias saussureanas representam um valioso repertório de possibili-dades para os estudos linguísticos e constituem fundamentos que precisam ser bem compreendidos por quem se propõe a estudar o sistema da língua.

Texto complementar

Ensino de língua materna – gramática e texto: alguma diferença?

(TRAVAGLIA, 2003)

[...]

Antes de tudo é preciso acreditar que o homem se comunica por meio de textos. Assim, comunicar-se significa de alguma forma (linguística ou não) produzir um efeito de sentido entre o(s) produtor(es) de um texto e o(s) receptor(es) desse mesmo texto. Se nos restringirmos aos textos linguísti-

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cos, podemos dizer que uma sequência linguística só se transforma em texto quando produz um efeito de sentido entre seu produtor e seu receptor, ou seja, quando faz/tem sentido para alguém. Caso contrário, o que temos é só um amontoado de elementos da língua, mas não um texto. Essa é a lição que aprendemos com a Linguística Textual ao tratar da coerência. Sabe-se também que o sentido que uma sequência linguística faz (e que a transfor-ma em texto) depende de uma série de recursos, mecanismos, fatores e prin-cípios internos e externos à língua. Todos esses elementos estão, de alguma forma, inscritos e regularizados na língua, constituindo sua gramática. Por isto é que se pode afirmar que a gramática de uma língua é o conjunto de condições linguísticas para a significação. Portanto, o conjunto desses recur-sos, mecanismos, fatores e princípios que usamos para produzir efeitos de sentido é a gramática de uma língua.

Todos os recursos da língua – em todos os seus planos (fonológico, mor-fológico, sintático, semântico, pragmático) e níveis (lexical, frasal, textual-dis-cursivo) – em termos de unidades e estruturas (sejam elas fonológicas, morfo-lógicas, sintáticas, textuais), funcionam como pistas e instruções de sentidos que são coadjuvados nesta função por mecanismos, fatores e princípios. Dessa ação conjunta surgem os efeitos de sentido possíveis para uma dada sequência linguística usada como texto numa dada situação de interação.

A seguir daremos, utilizando os recursos da língua que muitos chamam de artigo, um exemplo que pode evidenciar que não há uma separação sus-tentável entre gramática e texto.

[...]

No final de um estudo sobre o chamado artigo nosso aluno pode saber:

dizer o que é um artigo;1.

dizer qual a classificação dos artigos;2.

listar os artigos;3.

classificar os artigos;4.

identificar artigos em sequências linguísticas;5.

discutir se o artigo é uma classe de palavras à parte ou um tipo de 6. pronome, inclusive apresentando argumentos como, por exemplo, o fato de que, na sequência linguística, não se pode usar essa unidade

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Língua Portuguesa VI: Concordância e Regência

da língua junto com alguns tipos de pronomes (como os demonstra-tivos e os indefinidos, naturalmente por razões diferentes) (exemplos 1a, b), mas pode-se usá-la como outros tipos de pronomes como os possessivos (exemplos 1a, b), mas pode-se usá-la com outros tipos de pronomes como os possessivos (exemplo 1c). Pode-se discutir ainda se ele nem é uma classe de palavras, mas apenas um morfema.

(1)

a. * Os estes/alguns meninos estão alegres.

b. * Uns estes/alguns meninos estão alegres.

c. * Os meus meninos estão alegres.

saber usar na construção e compreensão de textos os recursos da lín-7. gua chamados de “artigos”, com base no conhecimento das instruções de sentido com as quais estes recursos são capazes de contribuir para a produção de sentido em um texto, permitindo a comunicação numa situação de interação comunicativa. Neste caso, podemos trabalhar com os alunos as seguintes questões:

a. as instruções de sentido básicas desses recursos da língua nor-malmente especificados na teoria linguística, inclusive nas cha-madas gramáticas tradicionais, seriam os artigos definidos pois apresentam entidades como definidas, conhecidas dos interlo-cutores e os indefinidos as apresentam como indefinidas, des-conhecidas. Assim, só se pode usar o artigo definido para algo que apareceu no texto ou que está disponível de alguma forma em nossa cultura;

b. alguns efeitos de sentido mais frequentes derivados desses va-lores básicos.

[...]

A seguir são comentados, mesmo que sumariamente, esses efeitos de sentido.

(2)

a. O preço da entrada é X.

b. O preço de uma entrada é X.

c. O preço de entrada é X.

O objeto dos estudos linguísticos

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O texto em (2a) poderia ser usado em qualquer situação em que se pre-tende dizer quanto custa a entrada, o ingresso para alguém, por exemplo, para um show, inclusive poderia responder à pergunta: “Qual é o preço da entrada?”. Já (2b) só poderia ser usado, por exemplo, em uma situação em que se discute o valor da entrada para se comprar uma só ou muitas. Em (2c) não se refere ao ingresso, mas a outro tipo de entrada: é o começo de parti-cipação em algo, como ser sócio de um clube, por exemplo: “– Quanto paga para ser sócio de seu clube?/ – O preço de entrada é R$1.000,00 depois você paga uma mensalidade de R$30,00.”

(3)

a. João levou seu sobrinho ao parque. O menino pulou no lago para nadar.

b. João levou seu sobrinho ao parque. Um menino pulou no lago para nadar.

Nos textos de (3) a diferença entre a e b é de referência e é causada pelo uso de recursos diferentes (artigo definido ou indefinido) na segunda frase do texto: em a “sobrinho” e “menino” são a mesma pessoa, mas em b “sobri-nho” e “menino” são duas pessoas diferentes. Inclusive, o sobrinho de João pode não ser um menino, pode ser um rapaz.

(4)

a. O grupo do Rio, composto pelos países latino-americanos, deci-diu que...

b. O grupo do Rio, composto por países latino-americanos, decidiu que...

Em (4) a diferença entre a e b é consequência do uso ou não do artigo definido contraído com a preposição (pelos x por). O texto de a significa que o grupo do Rio é formado por todos os países latino-americanos, enquan-to o de b significa que o grupo do Rio é formado apenas por alguns países latino-americanos. Dessa forma, se confrontarmos com a realidade, apenas um texto é verdadeiro: o texto b.

(5)

a. A menina de ontem trouxe este recado para você.

b. (?) Uma menina de ontem trouxe este recado para você.

c. Uma menina trouxe este recado para você.

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Língua Portuguesa VI: Concordância e Regência

Em (5) observamos que (5a) só pode ser usado com o artigo definido por causa do identificador (de ontem) que se coloca para menina, o que marca que é uma menina conhecida dos interlocutores. É por isso que (5b) soa estra-nho, se tivermos uma situação em que “ontem” só se conheceu uma menina. Para que (5b) seja visto como um texto bem construído, adequado, é preciso que “ontem” os interlocutores tenham tido contato ou conhecido várias me-ninas. Neste caso (5b) é adequado e indica que uma das meninas de ontem trouxe o recado, mas se especifica com precisão qual delas. O texto (5c) só poderá ser usado em uma situação em que o falante teve contato anterior com a menina, o ouvinte não. Neste caso a menina é conhecida do falante, mas não foi referida anteriormente para o ouvinte; assim, usa-se o artigo in-definido para apresentá-la no texto, como desconhecida ou de forma impre-cisa (se considerarmos que os dois tiveram contato com várias meninas no dia anterior, mas não há como especificar qual delas).

(6)

a. João dançou com uma menina.

b. Jô-ão-dan-çou-com-U-MA-me-ni-na.

c. Is-so-vai-dar-UM-bo-de.

d. O- Jô-ão-tem-UM-na-riz.

Nos textos de (6) temos uma oposição entre um texto que tanto pode ser escrito quanto oral (6a), com entonação normal de uma sequência de-clarativa e textos que só podem ocorrer na língua oral (6b, c, d), em que se tem uma pronúncia/entonação silabada com ênfase entonacional no artigo (tom de voz mais alto), geralmente com um certo alongamento da vogal “u”. Assim, (6a) significa que João dançou com uma menina X, que o locutor não sabe quem é. Já em (6b), pela entonação silabada e ênfase, tem-se mais o sentido de que a menina é muito especial em algum aspecto (beleza etc.). É uma espécie de superlativo que aparece também em (6c) (o problema que vai ocorrer é muito grande) e (6d) (o nariz de João é um nariz muito grande, notável, muito feio). Para Nunes J. (2001), em casos semelhantes a (6c), em que se tem uma expressão idiomática, a entonação silabada é obrigatória. A entonação comum só aconteceria sem o artigo (Isso vai dar bode). O texto de (6d) também não pode ocorrer sem esta entonação a não ser que se vá qualificar explicitamente o nariz: (*João tem

O objeto dos estudos linguísticos

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um nariz) parece não ocorrer no português, mas “João tem um nariz feio/bonito/chato/aquilino” ocorre normalmente.

(7)

a. O meu lar é o botequim.

b. O meu lar é um botequim.

Em (7a) o texto significa que o falante mora em dado botequim específico que ele e o ouvinte conhecem (7b), pode-se ter o sentido de que o falante mora em um botequim qualquer que o ouvinte não conhece, mas pode-se também ter o sentido de que o lar do falante, em sua casa, por alguma razão, parece com um botequim em alguma característica (é desarrumado? vive cheio de gente? o falante tem muita bebida em casa e vive bebendo só com amigos? seu lar é popular? etc.). Nesse segundo caso, temos uma compara-ção e uma metáfora.

Os aspectos apresentados nos itens 1 a 6, no início deste artigo, constitui-riam uma parte da teoria linguística ou gramática que se preocupa basica-mente com a identificação dos tipos de unidades e recursos de que a língua dispõe, sua classificação, identificação, estruturação. Já o que foi apresenta-do em 7 e nos comentários dos exemplos constituiria uma parte da teoria linguística ou gramatical que se preocupa basicamente com o funcionamen-to dessas unidades e recursos na constituição de textos para produção de determinados efeitos de sentido, pode-se dizer num plano mais semântico e pragmático e no nível textual-discursivo. Pode-se afirmar que a primeira parte é apenas um requisito para a segunda, ou melhor ainda, faz parte da segunda, e não precisa necessariamente ser conhecida pelos usuários de uma língua para que sejam usuários competentes dessa língua.

Desta forma, acreditamos que se deixarmos de dividir essas duas partes em gramatical e textual como se fossem coisas distintas e estivermos con-vencidos de que texto é apenas um resultado da aplicação da gramática da língua em funcionamento, para comunicar por meio da produção de efeitos de sentidos, deixaremos de ter no ensino de língua materna a ati-tude, pode-se dizer, perniciosa, de achar que gramática e texto são coisas distintas e que têm de ser tratadas separadamente por terem pouca rela-ção entre si. Tal atitude tem criado a síndrome da incompetência que leva tantos falantes de português a dizerem “não sei português”.

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Língua Portuguesa VI: Concordância e Regência

Dicas de estudoA Prática de Linguagem em Sala de Aula: praticando os PCNs � , organizado por Roxane Rojo (São Paulo, EDUC/Campinas (SP), Mercado de Letras, 2000).

Este livro é especialmente dedicado aos professores em pré-serviço e em ser-viço, identificados com as propostas presentes nos Parâmetros Curriculares Na-cionais (PCN), que preconizam os gêneros de textos como objetos de ensino.

Dicionário de Linguística e Gramática � , de Joaquim Mattoso Câmara Jr. (São Paulo, Editora Vozes, 2001).

Neste dicionário, Mattoso Câmara Júnior, considerado o mais ilustre represen-tante do estruturalismo linguístico no Brasil, oferece noções gramaticais como base para a compreensão estrutural, funcional e histórica da língua portuguesa, além de informar sobre fatos da língua, verbetes gramaticais, termos técnicos, entre outros temas.

Ferdinand de Saussure: escritos de linguística geral � , de Simon Bouquet e Ru-dolfo Emgler (São Paulo, Cultrix, 2004).

Este livro trata das novas descobertas de textos inéditos de Saussure que estão provocando a (re)discussão sobre aquilo que se considerava a visão saus-suriana de língua, na forma como foi interpretada pelos discípulos que publica-ram o Curso de Linguística Geral. Os novos manuscritos de Saussure demonstram que ele não fechou as portas para o sentido, o uso, o texto ou a enunciação. Ao contrário, ele tinha uma visão ligada à análise da língua em uso que ia além daquela que seus discípulos deixaram entrever no curso. Nestes novos textos, Saussure lembra que a linguagem é discurso, ainda que para ele a unidade de análise vá até o item lexical ou o sintagma.

Estudos linguísticos1. Explique com suas palavras por que a língua enquanto prática social tem o

enunciado concreto como realidade fundamental.

O objeto dos estudos linguísticos

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2. A partir do que foi tratado, complete a tabela com alguns traços diferencia-dores das concepções de língua que foram discutidas nesta aula e que con-duzem a diferentes abordagens.

Concepção da língua como estrutura formal

Concepção da língua como interação