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Sonia Maria Berbare Albuquerque Parente EM BUSCA DA COMUNICAÇÃO SIGNIFICATIVA: TRANSFORMAÇÕES NO OLHAR DE UMA ANALISTA NA CLÍNICA DA INIBIÇÃO INTELECTUAL Doutorado em Psicologia Clinica PUC/SP SÃO PAULO 2005

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Sonia Maria Berbare Albuquerque Parente

EM BUSCA DA COMUNICAÇÃO SIGNIFICATIVA: TRANSFORMAÇÕES NO OLHAR DE UMA ANALISTA NA

CLÍNICA DA INIBIÇÃO INTELECTUAL

Doutorado em Psicologia Clinica

PUC/SP SÃO PAULO

2005

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Sonia Maria Berbare Albuquerque Parente

EM BUSCA DA COMUNICAÇÃO SIGNIFICATIVA: TRANSFORMAÇÕES NO OLHAR DE UMA ANALISTA NA

CLÍNICA DA INIBIÇÃO INTELECTUAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutora em Psicologia Clínica sob a orientação do Prof. Doutor Luís Claudio Mendonça Figueiredo

PUC/SP SÃO PAULO

2005

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Banca Examinadora

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DEDICATÓRIA

À Sara Paín

Representante de tantos outros Mestres que, como ela,

ousaram criar a partir do pensamento de outros Mestres.

Esperando que o tempo de encontros entre Mestres

e discípulos continue...

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AGRADECIMENTOS

Neste momento especial tenho muito a agradecer às pessoas que vem me

acompanhando com carinho, generosidade e respeito neste caminhar, pessoas

que compartilham o gosto pela pesquisa e pela aventura da descoberta.

A vocês:

Crianças que atendo e que nos canteiros do seu sofrimento permitem que

sementes de esperança brotem para serem regadas e germinadas na experiência

compartilhada.

Pais das crianças, que quando olhados e compreendidos no seu sofrimento,

favorecem que processos de transformações aconteçam.

Luís Cláudio Figueiredo, por ter me dado a moldura para desenhar os traços e o

caminho da pesquisa.

Gilberto Safra, que com carinho me acompanha e permite compreender que o

fruto pode ser a causa do ramo.

Tânia Vaisberg e Nelson Coelho Junior pelas sugestões tão pertinentes no exame

de qualificação.

Leslie Marko, amiga de tantas interlocuções e com quem transito entre a arte, o

brincar e o aprender.

Sanny S da Rosa, amiga e parceira de tantas indagações e trocas significativas no

campo da aprendizagem criativa.

Regina Cruz e Creuz e Bia Mazzolini, amigas tão presentes e interlocutoras

entusiasmadas.

Winnicott e Sara porque se emprestaram e me permitiram estranhar, distanciar e

criar.

Meus pais, primeiros educadores da minha vida, meus irmãos, companheiros de

viagem, berço de raízes, de saudades, de movimento.

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Grupo de orientação: Ana Luiza Nogueira Vessoni, Alessandra Ribeiro, Beatriz

Rouco, Suzana Pastori, Daniele John, Regina Amaral, Nora Miguelez, Karin

Slemenson, Soraya Martins e Suzete Capobiano pelas discussões e

contribuições sempre instigantes.

Marilú Tassetto pela revisão cuidadosa.

CAPES por acreditar e incentivar a pesquisa no nosso país.

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RESUMO

Neste trabalho, tomo a experiência clínica desenvolvida ao longo de meu

percurso profissional como objeto de investigação, focalizando os momentos que

levaram a ampliações e/ou a mudanças de vértices na direção do meu olhar

clínico. Para tanto pretendo dar visibilidade aos dispositivos clínicos usados, às

intervenções realizadas e aos efeitos produzidos nos atendimentos de crianças

com sofrimento psíquico ligado a momentos e/ou a estados de inibição intelectual.

O objetivo é desenvolver uma reflexão sobre o processo de transformação no

modo de conceber e usar os referenciais teóricos de Sara Paín e D.W.Winnicott.

Inicialmente, o trabalho de aprofundamento em determinado referencial

permitia apropriar-me da teoria ou de aspectos dela e, num segundo momento,

aplicá-la para determinado objetivo, verificando a sua eficácia ou a sua

possibilidade de lançar luz sobre algum aspecto do fenômeno em jogo. Na minha

experiência, a teoria é útil e interessa quando serve para iluminar a clínica.

Proponho, portanto, um uso transicional da teoria na clínica.

No percurso realizado, pude estabelecer relação entre a inibição intelectual

e o tema da comunicação significativa, concepção que desenvolvi inspirada na

noção de espaço potencial de Winnicott. Essa concepção mostrou-se fundamental

em minha prática clínica, por ter favorecido a superação das dificuldades da

criança e também por ter se revelado como o fundamento ético de minha prática

como analista. A comunicação significativa acontece no campo terapêutico

intersubjetivo, transformando a subjetividade do pesquisador-analista em sua

prática clínica e em sua compreensão das teorias que usa, ao mesmo tempo em

que promove a superação da inibição intelectual das crianças atendidas.

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ABSTRACT

In this work, I get the clinical experience developed within my professional

life as an investigation object, focusing on the moments which guided to

enlargements and / or to vertex changes in the direction of my clinical view.

However, I intend to give visibility to used clinical devices, realized interventions

and produced effects in the attendance of children with phychic suffering closed

to moments and /or states of intellectual inhibition. The objective is to develop a

reflection about the process of changing as to conceive and use Sara Paín and

D.W.Winnicott’s theoric referencials.

Initially, the serious study in determined referencial allowed to assume its

theory or aspects and, later, to be applied to a determined objective, verifying its

efficacy or possibility of throwing light on some phenomenon aspect at stake. In my

experience, the theory is useful and it interests when it serves to make clear the

clinic I propose, therefore, a transicional use of the clinical theory.

In the realized path, I could establish the relation between the intellectual

inhibition and the theme of the significative communication, a conception which I

inspired developed in the notion of Winnicott potential space. This conception

revelead crucial in my clinical practice, for also having favored the overcoming of

the children’s difficulties and also for having disclosed how the ethinical bedding of

my practice as analyst. The significative communication happens in the

intersubjective therapeutical field, changing the subjectivity of the researcher-

analyst into his clinical practice and in his understanding of the theories which use,

at the same time that promotes the overcoming of the intellectual inhibition of the

attended children.

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SUMÁRIO

Introdução...............................................................................................................1 I. Viagem de Ida: Diálogo entre o quadro de inibição intelectual e diferentes contribuições teóricas........................................11 Estação 1. Contextualizando o percurso e o campo.....................................11 Estação 2. Contextualizando o quadro de Inibição Intelectual....................26 Estação 3. Compreendendo Carol à luz do confronto entre Klein e

Paín.................................................................................................44 Estação 4. Compreendendo Carol à luz de Paín e Winnicott.......................62 II. Baldeação: Repensando a Inibição Intelectual a partir de novas

indagações teóricas.....................................................................80 III. Viagem de Volta: Comunicação Significativa e Jogo Tridimensional na Clínica da Inibição Intelectual...........................................89 Estação 5. Compreendendo Eric à luz do fenômeno estético.....................89 Estação 6. Testemunhando o caminhar de Eric na criação da

externalidade do mundo.................................................................112 Estação 7. Transformações do Olhar..........................................................138 Considerações Finais....................................................................................161 Referências Bibliográficas............................................................................168

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INTRODUÇÃO

"A verdade é uma experiência

e cada um deve tentá-la

por sua própria conta e risco.” Tagore1.

Neste trabalho, pretendo tomar como objeto de investigação a experiência

clínica desenvolvida ao longo do meu percurso profissional, focalizando os

momentos que levaram a ampliações e/ou a mudanças de vértices na direção do

meu olhar clínico. Para tanto, pretendo dar visibilidade aos dispositivos clínicos

usados, às intervenções realizadas e aos efeitos produzidos nos atendimentos de

crianças com sofrimento psíquico ligado a momentos e/ou a estados de inibição

intelectual, com a finalidade de desenvolver uma reflexão sobre o processo de

transformação no modo de conceber e fazer uso de determinados referenciais

teóricos.

Um dado importante a ressaltar é que meu percurso profissional realizou-se

a partir de duas vertentes de formação e prática clínica: uma como psicóloga

institucional, nas áreas escolar e clínica, e outra, como psicanalista.

Desenvolvidas, inicialmente, de forma paralela, essas vertentes foram se

imbricando numa prática singular de atendimento a crianças com problemas de

aprendizagem. Enquanto a experiência institucional me levava a um

aprofundamento na Psicopedagogia Clínica, proposta por Paín, a partir das

contribuições da Psicanálise e da Escola de Epistemologia Genética de Genebra,

a experiência como psicanalista me levava a usar de forma mais flexível,

determinados referenciais teóricos na busca de compreensão sobre o

funcionamento psíquico de crianças com inibição intelectual.

1 TAGORE, R. Pássaros perdidos. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.

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Assim encontrei as contribuições de Klein e Luzuriaga, num primeiro

momento, e, num segundo, as de Winnicott. O diálogo com Paín constituiu-se

numa ponte que permitiu o trânsito entre esses dois momentos. Esse percurso é,

essencialmente, fruto do diálogo entre a prática desenvolvida com pacientes com

sofrimento psíquico ligado às queixas de problemas de aprendizagem e à minha

forma de compreender e fazer uso de aspectos presentes em tais referenciais

teóricos.

Considero importante esclarecer o uso que pude fazer dos referenciais em

jogo. Num primeiro momento, um trabalho de aprofundamento em determinado

referencial permitia apropriar-me da teoria ou de aspectos dela e, num segundo,

aplicá-la para determinado objetivo, verificando sua eficácia ou sua possibilidade

de lançar luz para algum aspecto do fenômeno em foco. Assim, é curiosa a

questão da teoria no caso de um terapeuta – pesquisador que pretenda construir

conhecimentos em Psicologia Clínica. Em minha experiência, a teoria é útil e

interessa quando serve para iluminar a clínica. Se com Paín, aprendi que é

preciso ser cético em relação à teoria e ingênuo em relação à prática, com

Winnicott, aprendi que a originalidade se dá a partir da tradição e da capacidade

de usar as contribuições de outros, para criar e desenvolver a própria.

Em trabalhos anteriores2, estabeleci um diálogo entre o atendimento clínico

de crianças com inibição intelectual e os referenciais teóricos de Sara Paín e D.

W. Winnicott. No primeiro, aprofundei-me na passagem da contribuição de Paín,

em Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem (1985), para a

teoria sobre a Função da Ignorância (1987, 1989), que trata das relações entre as

dimensões afetiva e cognitiva no pensamento do sujeito que aprende, focalizando

o atendimento de uma criança com inibição e outra com problema-sintoma de

aprendizagem. No segundo, levantei artigos e conceitos presentes na vasta obra

2 Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, 2000, e Pelos Caminhos da Ilusão e do Conhecimento, 2003, ambos publicados pela Casa do Psicólogo. No segundo livro, incluí parte da dissertação de mestrado: Inibição intelectual: o paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade. Defendida na PUC/SP, em 1996.

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de Winnicott3 — como o de espaço potencial, noção de uso de objeto e

fenômenos transicionais — e os usei para fundamentar uma clínica da

aprendizagem e, também, para lançar luz sobre o atendimento de outras duas

crianças com inibição intelectual.

Se nos dois trabalhos realizei um diálogo entre a prática e esses

referenciais teóricos, situados em momentos determinados, focalizando o tema da

aprendizagem e a relação da criança com os objetos da cultura, aqui desenvolvo e

aprofundo uma reflexão incluindo todo o meu percurso profissional, inclusive um

primeiro momento de passagem, ainda não analisado anteriormente. Refiro-me à

contribuição de Klein, patamar de onde parti na busca de compreensão sobre o

funcionamento mental das crianças com inibição intelectual. Esse referencial foi se

mostrando insuficiente, pois não respondia às questões suscitadas na clínica, o

que me levou à busca, ao uso e ao diálogo entre a prática e os referenciais de

Paín e Winnicott. Este percurso me levou a priorizar a abertura de um espaço de

troca e comunicação significativa entre a criança com inibição intelectual e o

mundo de realidade compartilhada, a partir da criação de símbolos,

testemunhando o seu caminhar em direção à criação da externalidade do objeto

do mundo compartilhado favorecendo, assim, a instauração de um processo de

autoria e apropriação de conhecimentos.

Ao dar visibilidade aos dispositivos clínicos que construí, e venho utilizando

a partir da transformação de determinados conceitos de Winnicott e Paín,

pretendo resgatar as aproximações, rupturas e conflitos entre estas heranças

teóricas, buscando recuperar, não apenas o fio que determinou essas passagens,

mas também acompanhar a reconstrução histórica desses dispositivos e a forma

como uso esses referenciais atualmente na prática que desenvolvo com crianças

com inibição intelectual.

3 WINNICOTT (1941, 1945, 1949, 1952,1954-5,1959,1960,1963-a,1963-b,1963-c, 1964, 1965-a,1965 b, 1968, 1959; 1967a ; 1969; 1975,1990, 1994).

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É preciso esclarecer um aspecto importante. Embora este trabalho

considere as diferenças epistemológicas existentes entre os referenciais

utilizados, o foco não é discutir essas contradições, mas sim considerá-las,

quando necessário, para acompanhar o percurso e os momentos de passagem

que levaram a transformações no olhar da minha escuta clínica. Com isso,

reafirmo que o meu objetivo é dar visibilidade aos dispositivos clínicos4 usados

atualmente na minha experiência de atendimento, para desenvolver uma reflexão

a respeito do processo de transformação no modo de conceber e fazer uso desses

referenciais teóricos. Embora considerados incompatíveis, ao mesmo tempo, do

ponto de vista da clínica, eles se apresentavam como ferramentas consistentes e

efetivas. Essa situação paradoxal trazia, para mim, um certo desconforto.

Uma questão, então, se impôs: seria possível conciliar duas teorias,

consideradas epistemologicamente distintas na prática clínica? Se sim, como? Em

caso afirmativo, será que esses dois referenciais, se usados durante um mesmo

atendimento, aconteceriam em tempos diferentes, concomitantemente, ou mesmo,

um posterior ao outro? E, mais! A contribuição de Winnicott apontaria para uma

ruptura ou para uma ampliação no campo de observações e intervenções

clínicas? Enfim, como pensar a clínica do desenvolvimento e da aprendizagem à

luz de Paín e Winnicott? Neste trabalho busco mostrar que, se do ponto de vista

teórico stricto sensu encontrávamos dificuldades, na clínica as diferenças

epistemológicas não representavam empecilhos para o desenvolvimento dos

atendimentos. Até pelo contrário, pareciam se complementar.

Encontrar palavras para expressar aquilo que, muitas vezes, intuía e

alcançava pela sensibilidade na experiência com crianças, especialmente aquelas

com severa inibição intelectual, tornou-se possível, à medida que pude usar

algumas noções de Klein, Paín e Winnicott. Como opero de forma intuitiva, pela

4 Uso o termo dispositivo clínico, neste contexto, para referir-me às funções exercidas pela analista buscando oferecer condições de a criança usufruir situações que permitam o desenvolvimento do seu potencial ativo e criativo.

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sensibilidade, estabeleço uma relação subjetiva, isto é, quando ouço a criança, é

como se eu fosse ela. Daí a necessidade de um conceito que atue como um

terceiro para operacionalizar a minha sensibilidade, permitindo traduzi-la em

pensamento, operações e intervenções, até para poder apropriar-me daquilo que

vivi na experiência. Assim, trata-se de uma forma de usar a teoria em que faço um

uso temporário dos conceitos que permitem lançar luz sobre aquilo que vivi na

experiência clínica.

Por isso mesmo, concordo com Figueiredo5 quando afirma que o fato de

não podermos explicar racionalmente as nossas escolhas teóricas não nos

dispensa de ter claro quais são elas e nem de dar visibilidade aos dispositivos

clínicos usados a partir delas. Além da nossa relação obscura com a escolha e

com as teorias, existe nelas um ethos6 subjacente que opera e tem efeitos,

determinando uma leitura, uma compreensão e conseqüentemente, um tipo de

intervenção. Daí a necessidade de um trabalho de reflexão e organização das

minhas heranças teóricas para verificar o uso que fiz e faço das contribuições

desses autores.

Muito tempo se passou até que pudesse estabelecer a relação entre a

inibição intelectual e o tema da comunicação significativa7 de fundamental

importância, já que no meu percurso, a experiência com essas crianças evoluiu,

também, de um registro não-verbal para um verbal.

A trajetória não foi fácil. Não bastasse a complexidade do campo, era

preciso nomear, dar palavras e inteligibilidade para o que acontece, sabendo de

saída que as palavras estariam aquém da pretensão de expressar o que se

5 FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as Psicologias: Da Epistemologia à Ética nas práticas e discursos psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 1996. 6 Segundo Figueiredo (1996): “(....) ethos - o objeto da ética tomada como reflexão ou “teoria” – se refere, à morada". (p.44) Neste contexto, ethos é usado como aquilo que fundamenta e dá sustentação à teoria. 7 Inspirada na noção de espaço potencial de Winnicott (1941, 1975), a comunicação significativa, como é usada neste contexto, permite a instauração do fenômeno da ilusão da onipotência mantendo a continuidade e estabilidade do ambiente e a entrada da criança no movimento do jogo tridimensional que abre o campo do brincar, conhecer e aprender.

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almejava. Disso sabem bem os que escrevem sobre os assim chamados casos

clínicos. Enfatizo, assim, que dar palavras e inteligibilidade para esse tipo de

acontecimento exige que um analista – pesquisador clínico –, suporte a tensão e

lide com pensamentos e sentimentos paradoxais.

Trabalhar a partir do modelo da intersubjetividade, tal como o entendo,

implica explicitar o processo de relação do terapeuta com ele mesmo, dele na sua

relação com os pacientes, dele com o seu processo singular de identificação com

as concepções e fundamentos teóricos adotados e, especialmente, a de um

trânsito entre todos esses eixos. Trata-se de um caldeirão de muitos ingredientes

que se tornam enriquecedores quando bem aproveitados e digeridos.

E não é só isso! No campo terapêutico intersubjetivo, cada experiência

clínica significativa contribui para transformar a subjetividade do pesquisador-

terapeuta e, conseqüentemente, a sua forma de ler e compreender seja as teorias,

seja a prática, o que transforma não só o diálogo que estabelece, mas também, a

sua própria maneira de compreender, fazer intervenções, dialogar e usar as

teorias.

Importante ressaltar que, neste campo, – o da intersubjetividade – tudo o

que acontece põe em xeque tanto o terapeuta quanto o paciente, já que é fruto da

história de uma relação e de uma experiência estabelecida num campo criado e

compartilhado por ambos. Essa perspectiva rompe com a noção de neutralidade

do analista e exige poder transitar num modelo que opera fora da dicotomia

sujeito-objeto, desenvolvida na perspectiva do pensamento racionalista. O que

organiza o campo de vivências no campo intersubjetivo é muito mais do que uma

lógica. Trata-se de um movimento, de processos ambíguos e paradoxais que

admitem, portanto, a existência simultânea de elementos contraditórios. Implica,

também, numa outra forma de compreender o vínculo transferencial: como

exercício de funções psíquicas para atender as primeiras necessidades da

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criança, sendo a primeira delas a da comunicação significativa. Que permite a

entrada da criança no movimento que caracteriza o jogo tridimensional8.

No meu caminhar da clínica dos problemas de aprendizagem que focaliza

as relações entre as dimensões afetiva e cognitiva do pensamento do sujeito que

aprende (PAÍN, 1985, 1989) para a da comunicação significativa, tema a ser

aprofundado neste trabalho, operacionalizei e flexibilizei a noção de Paín sobre a

Função da Ignorância por meio da noção de uso de objeto e de fenômenos

transicionais de Winnicott. Essa flexibilização se tornou possível devido a uma

forma pessoal de compreender e fazer uso dessas noções e, especialmente, a de

acolher a noção de Função da Ignorância como lugar, como ethos. Isso permitiu o

desenvolvimento de uma atitude que estou propondo chamar de espera receptiva

do analista.

Nesse caminhar, outras dimensões, para além da técnica, tornaram-se

importantes. Refiro-me às dimensões ética e estética. Como já disse, uso a

primeira noção, no sentido desenvolvido por Figueiredo9, de que há em cada

teoria um ethos que opera e tem efeitos. Da mesma forma, talvez seja a partir de

um ethos, isto é, de uma concepção de homem e visão de mundo, que o analista

compreende um fenômeno clínico, o que lhe permite identificar, escolher e usar

determinada teoria, ou aspectos dela, justamente porque ilumina tal fenômeno.

Já a dimensão estética, tal como é usada neste contexto, refere-se à

capacidade de o analista se deixar afetar pela ressonância que o modo de ser e

estar no mundo da criança provoca nele. Isso é possível graças à sua

disponibilidade genuína de ser testemunha do processo, deixar-se afetar de

forma visceral pela marca singular que a criança imprime na atmosfera do

ambiente e sustentar os encontros por meio da comunicação significativa que

8 O jogo tridimensional ao qual me refiro não se refere à triangulação, como comumente é abordada no campo psicanalítico, relacionada ao complexo edípico e à angústia de castração. 9 FIGUEIREDO, L. C. M. Revisitando as Psicologias: Da Epistemologia à Ética nas práticas e discursos psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 1996.

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acontece numa área em que não há diferenciação entre sujeito e objeto. Quando o

impacto em questão pode ser transformado e entrar no espaço de jogo, ele é, em

si, transformador, como veremos na apresentação dos atendimentos clínicos,

especialmente nas Estações 4 e 5.

Nada melhor do que fazer uso dos atendimentos clínicos que mobilizaram o

surgimento das questões que levaram às mudanças no modo como passei a

compreender e a fazer intervenções na clínica. Para acompanhar as

transformações nos vértices do olhar da escuta clínica, dividirei esta tese em dois

grandes momentos: A viagem de ida e A viagem de volta. As estações que as

compõem serão paradas, momentos para refletir sobre como os referenciais, ou

melhor, como algumas noções de Klein, Paín e Winnicott iluminaram aspectos da

clínica com essas crianças, permitindo a construção dos dispositivos clínicos.

Na viagem de ida, na Estação 1, apresento um histórico de como, a partir

da experiência desenvolvida como psicóloga em Escolas e Clínicas de Saúde

Escolar da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, recortei o campo dos

problemas de aprendizagem e o quadro de inibição intelectual como objeto de

investigação. Essa experiência levou-me à Psicopedagogia Clínica e à busca de

formação em Psicanálise.

Na Estação 2, contextualizo o objeto e as questões mobilizadas pelo

diálogo entre a prática e diferentes contribuições teóricas. Buscava resposta para

a indagação, geralmente feita pelos profissionais que atuam nessa área: por que

uma criança com potencial intelectual preservado, não pode fazer uso da sua

inteligência e aprender?

Na Estação 3, estabeleço um confronto entre as concepções presentes nas

contribuições de Luzuriaga, desenvolvidas de acordo com a perspectiva kleiniana,

e a de Paín, afastando-me da abordagem da primeira por meio de um diálogo com

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o atendimento de Carol, uma menina de 9 anos, com um quadro de inibição

intelectual.

Na Estação 4, aproximo determinadas noções de Paín de outras de

Winnicott, focalizando momentos do atendimento de Carol, usado aqui para

acompanhar a construção histórica dos dispositivos clínicos.

A seguir, faço uma pausa – Baldeação – para refletir sobre o que aprendi

na experiência de diálogo entre os referenciais de Luzuriaga (Klein) e Paín,

ressaltando as novas questões que se me impunham naquele momento,

preparando-me, assim, para fazer a viagem de volta por meio do diálogo entre o

atendimento de Eric, um menino de 7 anos e as contribuições dos autores

anteriormente citados.

Na estação 5, retomo o caminho trilhado após a defesa da dissertação de

mestrado10 e estabeleço um diálogo entre o atendimento de Eric e determinadas

noções provenientes do referencial de Winnicott que permitiram compreender a

participação do fenômeno estético como possibilidade de abertura do espaço de

comunicação significativa.

Na Estação 6, busco dar visibilidade aos dispositivos clínicos que

favoreceram a criação de condições para a instauração de um campo de

comunicação significativa e a entrada de Eric no movimento do jogo

tridimensional, que permitiu a abertura de um campo, no qual o brincar, o

conhecer e o aprender aconteceram.

Na Estação 7, apresento uma concepção de conjunto de meu percurso,

bem como uma compreensão sobre ele, explicitando como conceitos de Paín e

10Inibição intelectual: o paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade, defendida na PUC/SP, em 1996, sob a orientação do Prof. dr. Gilberto Safra.

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Winnicott, já transformados, permitiram desenvolver uma posição ética da qual

decorre a atitude de espera receptiva.

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I VIAGEM DE IDA: DIÁLOGO ENTRE O QUADRO DE INIBIÇÃO INTELECTUAL E DIFERENTES CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS Estação 1. Contextualizando o percurso e o campo

“Importa compreender melhor o passado, porque, além dele

apontar para o futuro, nele já se fecundam as sementes do

presente”.

Pretendo contar como a experiência institucional desenvolvida inicialmente

como psicóloga escolar, numa atuação preventiva nas escolas municipais da

periferia de São Paulo, de 1977 a 1980 e, posteriormente, como psicóloga clínica

com crianças de pré, 1ª e 2ª séries nas Clínicas de Saúde Escolar da Secretaria

Municipal de Educação, de 1981 a 1987, numa atuação terapêutica individual ou

em grupo, determinou o recorte do campo dos problemas de aprendizagem e o

tema da inibição intelectual como objeto de interesse e investigação. Na busca de

compreensão sobre o funcionamento psíquico de crianças com esta

sintomatologia, fui aproximando, aos poucos, duas vertentes de atuação e

formação: como psicanalista e como psicóloga escolar e clínica institucional, o que

me levou a psicopedagogia.

A experiência como psicóloga escolar O início do trabalho como psicóloga escolar aconteceu na mesma época

em que era professora supervisora de Técnicas de Exames Psicológicos – TEP,

na faculdade de Educação e Cultura de São Caetano – FEC, e fazia o curso de

especialização em Psicodrama. Recém-formada e cheia de sonhos, comecei a

atuar como psicóloga escolar. Não sei se por destino ou acaso, pois isso parecia

natural e dava continuidade a algo que havia começado muito antes. Filha de um

educador não-formal e de uma professora que considerava sua missão alfabetizar

crianças de 1ª série com dificuldade para aprender, cresci imersa num ambiente

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em que o campo de vivências era organizado por temas relacionados às questões

educacionais.

Na época, havia um mito que organizava o funcionamento familiar: o

famoso querer é poder. Como todos em minha família, creio que até

aproximadamente 1980, eu tinha uma leitura do mundo bastante linear, lógica e

que valorizava a dimensão da objetividade. Ainda não tinha constatado a

participação do inconsciente nos acontecimentos humanos!

Penso que fatores de ordem pessoal vividos na época, aliados,

especialmente, à experiência como psicóloga escolar, foram fundamentais para as

transformações que se seguiram. Fazer as intervenções no âmbito escolar não era

tarefa fácil, especialmente, devido à resistência à mudança que os educadores

apresentavam. Era inegável a distância entre o que falavam e o que faziam. Era

gritante o caráter de repetição das suas atitudes e, conseqüentemente, da

repetição dos acontecimentos. Era impossível não acreditar na existência de uma

força – e reconhecer que ela era interna – que impedia esses educadores de

fazer as transformações necessárias para que uma mudança real acontecesse na

realidade externa. Esse era um dos elementos, entre outros, que me levava a

reconhecer que mesmo pessoas inteligentes e sem problemas de aprendizagem

formal podiam emburrecer e não fazer uso do seu potencial intelectual, no caso,

mesmo se tratando de adultos e com formação em Educação.

A mesma questão que geralmente (pré) ocupa os que atuam no campo da

aprendizagem se colocava: como compreender o fato de que pessoas inteligentes,

em determinados momentos, podiam não ter a disponibilidade de fazer uso do seu

potencial e aprender?

Embora, na época, ainda não trabalhasse com a questão da patologia da

aprendizagem, já me interessava em observar momentos de paralisia e/ou inibição

intelectual, o que viria, posteriormente, a ser o meu tema de investigação. Só

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13

muito mais tarde, poderia associar essas experiências a dois dos pilares da

psicanálise: o de que o inconsciente opera e tem efeitos e que o caráter de

repetição é uma das propriedades fundamentais da pulsão.

A partir daí, não podia mais acreditar apenas na dimensão da objetividade,

nem que querer era poder. Tinha sido marcada de forma irreversível pela

consciência de que o inconsciente tinha uma participação decisiva nos

acontecimentos humanos. O reconhecimento de que pessoas brilhantes do ponto

de vista intelectual, às vezes, não podiam fazer uso do seu potencial, nem mesmo

para viver de forma criativa, cada vez mais me afastava da leitura ingênua, linear e

lógica que, até então, tinha da vida.

Trechos de um poema de Álvaro de Campos, um dos heterônimos do poeta

português Fernando Pessoa, talvez ajudem a comunicar o que pretendo:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto (...)

E a alegria de todos, e a minha,

Estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim”

(...)

Aniversário11

Na minha experiência, reconhecer a existência e a força do inconsciente,

significou, também, reconhecer que havia uma relação entre ele, a existência de

uma dimensão afetiva e o funcionamento da inteligência. Após reconhecer a força

11 CAMPOS, Álvaro de. Aniversário. In PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1997. p. 379-0.

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de algo que funcionava para além de uma possibilidade de conhecimento e

continência e que levava os educadores a um certo emburrecimento e à repetição

de mesmos padrões de comportamento e atitudes, não fazia mais sentido dar

continuidade ao trabalho de conclusão do curso de especialização em

Psicodrama, que, justamente, buscava demonstrar a possibilidade da eficácia

daquela técnica para mobilizar uma mudança de atitude nos educadores.

Talvez uma mudança já tivesse se operado em mim, acabando por

determinar dois movimentos de busca. Por um lado, iniciei um processo de análise

pessoal e, por outro, o curso de Mestrado em Psicologia da Educação na PUC-

SP. Nele buscava encontrar um referencial teórico que permitisse dialogar e

refletir sobre a prática escolar que desenvolvia. Infelizmente não era essa a linha

do curso de Mestrado em Psicologia da Educação, pelo menos, naquela época.

Com a abertura de mais duas Clínicas de Saúde Escolar ligadas ao Serviço de

Psicologia do mesmo departamento, transferi-me para uma delas para atuar como

psicóloga clínica.

Contextualizando a época e a experiência como psicóloga clínica Vale lembrar que o Serviço de Psicologia da Secretaria Municipal de

Educação, fundado em 1964, existiu até 1989 e chegou a contar com mais de 140

psicólogos, entre escolares e clínicos, especialmente nas décadas de 1970 e

1980, época em que o fracasso e a evasão escolar atingiram índices altíssimos,

determinando uma série de movimentos que implicaram várias mudanças,

inclusive a da concepção em relação à compreensão dos problemas de

aprendizagem e da intervenção sobre eles.

Em outro trabalho12, contei como a maioria dos profissionais (pedagogos,

educadores de saúde pública, médicos, fonoaudiólogos) que atuavam no campo

dos problemas de aprendizagem vivia um momento de transformação. Por

12 Ver PARENTE, S.M.B.A. Pelos caminhos da ignorância e do conhecimento - fundamentação teórica da prática clínica dos problemas de aprendizagem. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. cap. 1 e 2.

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motivos diferentes, buscavam definir os limites da sua atuação e apropriar-se de

uma identidade profissional. Buscavam libertar-se das funções normativas a eles

atribuídas até então, as quais favoreciam uma prática de exclusão social. Em

termos da Psicologia Escolar, era o caso, por exemplo, das avaliações

psicológicas usadas para a formação de classes: forte/média/fraca, o que, muitas

vezes, levava à construção de estereótipos que não favoreciam os processos de

desenvolvimento e aprendizagem.

Por outro lado, nas Clínicas de Saúde Escolar, era evidente que o tipo de

atendimento realizado não dava conta nem da demanda - era grande o número de

crianças em fila de espera - nem da problemática: embora houvesse um bom

desenvolvimento das crianças na área interpessoal (relacionamento na escola,

família), o mesmo não ocorria em relação ao motivo do encaminhamento, isto é,

do fracasso e repetência escolar. Isso, muitas vezes, contribuía para desistências

e abandonos durante o processo terapêutico. Vale lembrar que, na etapa do

tratamento, usávamos as técnicas da psicomotricidade e da ludoterapia,

especialmente na linha kleiniana e de forma individual, tal como desenvolvidas em

consultório. O objetivo da ludoterapia era a mudança nas relações no mundo

interno e na fantasia inconsciente da criança, sendo as questões da

aprendizagem, familiares, escolares, pouco consideradas.

O diagnóstico também era feito da maneira tradicional e geralmente

chegávamos à conclusão de que havia ”a presença de fatores emocionais

interferindo no possível rendimento intelectual”, o que pouco acrescentava ao que

já sabíamos. Falava-se uma linguagem a que os pais não tinham acesso. Mais de

uma vez, ouvi mães comentarem que não entendiam por que seus filhos não

aprendiam, o que estava sendo feito para ajudá-los e como elas poderiam

participar do processo. Não conseguíamos ajudar os pais porque também nós não

entendíamos porque as crianças não aprendiam. Era evidente que havia ali uma

questão ética. Nós nos comprometíamos com a questão dos problemas da

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16

aprendizagem e não a considerávamos. Isso porque a formação acadêmica não

fornecia elementos para o desenvolvimento da prática que precisávamos realizar.

Na esteira de todo esse movimento, no início da década de 1980, todo o

Departamento de Assistência ao Escolar passou por uma reformulação: era

preciso mudar as concepções e oferecer um tipo de atendimento condizente com

a demanda. A questão era: como atualizar o modelo de atendimento e adequá-lo

àquela realidade? Era preciso também demonstrar a eficácia do trabalho do

Serviço de Psicologia e desenvolver novas estratégias para resolver a questão do

fracasso e evasão escolar, que continuava com índices altíssimos.

Hoje, poderíamos dizer que as crianças continuavam a denunciar com seu

fracasso escolar, o fracasso do sistema educacional como um todo. Mas isso não

estava claro para nós naquela época! Já não se acreditava mais que as crianças

não aprendiam por problemas de carência social, desnutrição ou problemas

neurológicos. Esses mitos não mais se sustentavam e todo um movimento se

desenvolvia contrariando essas concepções.

No bojo desse movimento, de 1982 a 1985, passei a ser a coordenadora

técnica do Serviço de Psicologia Clínica e a observar a resistência à mudança,

agora, por parte de muitos psicólogos que não acreditavam na eficácia do trabalho

grupal e nem estavam abertos para conhecer referenciais que focalizassem a

questão da aprendizagem. Foi a chance para me aprofundar ainda mais na

compreensão sobre o funcionamento de crianças que, apesar de inteligentes, em

determinados momentos não tinham a disponibilidade de fazer uso da inteligência

e aprender.

Duas preocupações norteavam minha busca. Uma de ordem prática: dispor

de um modelo para fazer o diagnóstico e o tratamento dos problemas de

aprendizagem individual e grupal nas Clínicas de Saúde Escolar. Outra de

natureza teórica: encontrar um referencial que permitisse compreender a

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17

articulação entre afeto e inteligência no problema de aprendizagem através da

perspectiva psicanalítica. Além disso, havia a proposta de escrever trabalhos

sobre as experiências que vinham sendo desenvolvidas, até então, nas Clínicas

de Saúde Escolar, inclusive a que sistematizava passos para a consecução de um

diagnóstico grupal dos problemas de aprendizagem.

Aproximando as formações em psicanálise e em psicopedagogia A prática como psicóloga escolar naquela instituição aliada a de

atendimento como psicóloga clínica durante aproximadamente 7 anos definiu não

apenas o percurso, mas também o recorte do campo e do objeto de investigação.

Na minha experiência, uma reflexão crítica sobre o trabalho que fazíamos nas

Clínicas de Saúde Escolar e a abertura de um campo de interlocução voltado para

as interfaces entre a psicanálise, a aprendizagem e o trabalho grupal aconteceu

por meio da experiência de supervisão com Mary Carpossi13, iniciada durante o

curso de formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae. Os relatos de

trabalhos desenvolvidos por ela com grupos de crianças, juntamente com

psicopedagogos na Argentina, levou-me a buscar subsídios nessas contribuições,

já que a formação acadêmica brasileira não nos preparava para trabalhos

institucionais dessa natureza.

Algum tempo depois, por seu intermédio, conheci Ana Maria Muñiz14, com

quem comecei minha formação e supervisão em Psicopedagogia Clínica. Fazer

parte como psicopedagoga da equipe de profissionais coordenada por Muñiz, para

pôr em prática uma experiência pioneira, incentivou-me ainda mais a aprofundar

minha formação no campo dos problemas de aprendizagem.

13 Mary Carpossi, psicanalista argentina, com grande experiência em trabalho institucional residiu muitos anos em São Paulo, introduzindo muitos psicanalistas em abordagens psicodinâmicas de orientação psicanalítica, especialmente na de família e casal. Com ela fomos num grupo de aproximadamente 20 profissionais ao Primer Congreso Argentino de Psicoanalisis de Família e Pareja, em maio de 1987, em Buenos Aires. 14 Ana Muñiz, psicopedagoga argentina, residiu por aproximadamente 10 anos em São Paulo, onde realizava grupos de diagnóstico psicopedagógico, formando várias turmas de psicopedagogos. Foi responsável pela introdução da abordagem dinâmica na Psicopedagogia Clinica e faleceu em 13 de abril de 2002, em Buenos Aires.

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18

Na época, estudava, por um lado, as contribuições de autores como

Pichón-Rivière, Bleger, Dolto, Klein, Luzuriaga na vertente da psicanálise e, por

outro, Piaget, na vertente da psicopedagogia. Buscava entender as relações entre

o aspecto emocional e o funcionamento da inteligência, as relações entre

pensamento e linguagem, ação e percepção, indagando-me, também, sobre o que

fazer com a família e a escola, não apenas no diagnóstico, mas também no

tratamento. Note-se que a terminologia usada na época era a do modelo médico:

falava-se em distúrbios de problemas de aprendizagem, diagnóstico, tratamento e

prognóstico.

Foi nessa esteira que entrei em contato com a contribuição de Paín em

Diagnóstico e Tratamiento de los Problemas de aprendizaje, que viria a ser

publicado em português, em 1985. Tal contribuição permitiu não apenas focalizar

e nomear melhor minhas questões, mas também começar a refletir sobre um novo

projeto de atendimento. Nesse novo projeto, grupos de Intervenção

Psicopedagógica (os GIPPI) poderiam ser realizados nas escolas da Prefeitura e

utilizados de forma preventiva com pais e professores, enquanto os Grupos

Terapêuticos (GT) continuariam a ser feitos nas Clínicas de Saúde Escolar.

Entretanto, essas considerações que deveriam constituir um projeto de

Psicologia Clínica Escolar foram literalmente varridas e não saíram do papel,

devido a mudanças administrativas e políticas. Estávamos em 1985. Com a

mudança política, Jânio Quadros assumiu a Prefeitura em 1986, dando início, por

um lado, ao processo que levou, num primeiro momento, à descaracterização

desse trabalho de Psicologia e, depois, à sua extinção na administração que o

sucedeu. Por outro lado, a questão do fracasso e evasão escolar foi curiosamente

“resolvida” em 1986, com a institucionalização do que viria a ser chamado sistema

de promoção automática tanto nas escolas estaduais, quanto nas municipais de

São Paulo. É possível compreender a deterioração do sistema de ensino público

que levou a educação ao que é hoje. Colhemos os frutos dessa política em vários

segmentos, inclusive na Educação Superior. Muitos são os universitários que

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19

apresentam defasagem na capacidade de abstração e reflexão crítica, o que

dificulta bastante o processo de ensino-aprendizagem e reconstrução de

conhecimentos.

Lamentavelmente, os ajustes e transformações que vinham sendo

discutidos pelos profissionais sobre as questões não apenas técnicas, mas

especialmente éticas, sobre a formação e desenvolvimento da Psicologia Clínica

e Escolar naquele Serviço focalizando o campo dos problemas de aprendizagem

foram sendo paulatinamente minados. Com a mudança de coordenação no

Serviço de Psicologia, enquanto alguns psicólogos eram deslocados para outras

áreas (Saúde, Cultura etc.), outros, desacreditados do trabalho, demitiam-se, não

sendo substituídos. Em 1989, o que hoje se denominaria Serviço de Psicologia

Clínica Escolar, já totalmente descaracterizado, foi transferido para a Secretaria

Municipal da Saúde.

Antes ainda da minha demissão em 1987, juntamente com o grupo que

sistematizava os passos para a consecução do diagnóstico grupal dos problemas

de aprendizagem, talvez numa tentativa de preservação do trabalho, lutamos e

conseguimos dar continuidade à proposta de escrever artigos sobre as

experiências que vinham sendo desenvolvidas, até então, nas Clínicas de Saúde

Escolar. Esses trabalhos, que acabaram por ser apresentados no II Encontro

Estadual de Psicopedagogos15, eram realizados pelos estagiários de psicologia,

pois era grande a resistência dos psicólogos clínicos para se envolver no tipo de

trabalho grupal proposto.

Vale lembrar também que, durante esse II Encontro Estadual de

Psicopedagogos de São Paulo, em 1986, foi fundada a Associação Brasileira de

Psicopedagogia, que tinha como preocupação central a questão do fracasso e

evasão escolar. É importante ressaltar que o primeiro curso de especialização em

15 Ver SCOZ, Beatriz Judith Lima et al. Psicopedagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. cap. 5, 12 e 13.

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Psicopedagogia tinha orientação reeducativa e começou em 1979, no Instituto

Sedes Sapientiae. E também que, segundo Rubinstein (1987), o grupo que fundou

a ABPP era “composto na sua maioria por pedagogos que fizeram o curso de

especialização em Psicopedagogia no Instituto Sedes Sapientiae16. Muitos deles,

igualmente, faziam grupos de formação com Ana Muñiz.

Interessante essa reflexão histórica, pois permite resgatar as heranças e as

marcas do percurso dos diferentes movimentos ligados à Psicopedagogia no

Brasil. No caso da Associação Brasileira de Psicopedagogia - ABPS-SP, ela se

formou na esteira da Psicopedagogia Reeducativa e, posteriormente, da

Psicopedagogia Clínica de orientação dinâmica, aqui, introduzida por Muñiz.

É preciso dizer que os psicopedagogos argentinos, formados, como Paín,

na tradição piagetiana e psicanalítica, influenciaram e marcaram a história da

Psicopedagogia brasileira de diferentes formas e em diferentes regiões. Se em

São Paulo foi importante a contribuição de Muñiz, no Rio de Janeiro o foi a de

Jorge Visca, com a introdução da abordagem convergente. Mais adiante contarei

como foi a chegada de Sara Paín a Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.

É preciso dizer que esse grupo que fundou a ABPS foi muito bem-sucedido

em algumas de suas propostas, especialmente a de afirmar e defender a atuação

do psicopedagogo. Basta ver o aumento do interesse por esse campo no final da

década de 1980, e a proliferação de cursos de Especialização Lato Sensu em

Psicopedagogia, na de 1990. Entretanto, a meu ver, pouco cuidado foi dispensado

ao aspecto da formação profissional, que implicaria necessariamente numa

reflexão e aprofundamento na discussão de questões éticas e técnicas ligadas às

dimensões do diagnóstico, acompanhamento e dos tipos de intervenção, seja na

prática institucional, seja na de consultório.

16 SCOZ, Beatriz Judith Lima et al. Psicopedagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. cap 1.

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Discriminando duas Modalidades de Psicopedagogia Em 1985, época em que as questões relacionadas ao tema do fracasso e

evasão escolar estavam em plena ebulição foi publicado, no Brasil, Diagnóstico e

Tratamento dos Problemas de Aprendizagem. Nesse livro, Paín defende – o que

não é pouco – a especificidade do campo, enfatiza a diferença entre a

Psicopedagogia Clínica e a Reeducativa e introduz a teoria psicanalítica na

análise do problema de aprendizagem entendido como sintoma. Além disso,

propõe uma classificação dos problemas de aprendizagem, que foi de extrema

importância não apenas no meu percurso, mas no dos que seguiram

acompanhando o desenvolvimento de seu pensamento. Cito, aqui, duas de suas

contribuições que, acredito, operaram uma transformação no pensamento desse

grupo. A primeira, refere-se à consideração da participação das dimensões

familiar e escolar na constituição do sintoma; a segunda, à ênfase de que há os

que não aprendem porque não lhe são dadas oportunidade para desenvolver os

instrumentos de pensamento adequados, o que produz sujeitos passivos, sem

autonomia e capacidade de reflexão crítica.

Gostaria que se compreendesse por que desde essa época, venho

assinalando tanto a importância de discriminar entre as duas modalidades de

Psicopedagogia: a Clínica Escolar, que encontra sua fundamentação em Sara

Paín e a Cognitivista ou Adaptativa, que encontra sua fundamentação em Piaget.

São vertentes que trabalham a partir de concepções diferentes17, o que não é

pouco, pois determinam diferentes leituras, compreensão e, conseqüentemente,

diferentes tipos de intervenção. E mais! Tanto uma modalidade de psicopedagogia

como outra podem ser usadas tanto na instituição (escolar, hospitalar, empresarial

etc.) quanto no espaço de consultório.

Assim, o dispositivo do profissional da aprendizagem, seja o psicopedagogo

clínico escolar ou o cognitivista, não se define pelo espaço físico no qual a sua

17 Ver cap. 1, 2, 3 e 4. In Pelos caminhos da ignorância e do conhecimento e Introdução. In Subjetividade e Objetividade: Relações entre desejo e Conhecimento. CEVEC.

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ação se realiza e, sim, pela escolha decorrente de sua identificação com uma ou

outra concepção. Na verdade, o que se tem de levar em consideração é a crença

na participação do inconsciente e na dimensão da subjetividade organizando o

campo de relações entre o sujeito e o objeto a ser conhecido e, doutra parte, a

desconsideração por essa dimensão. Claro que tudo isso tem relação com o

aspecto da formação do profissional. A meu ver, faz-se urgente uma reflexão a

esse respeito. Isso se queremos não apenas o reconhecimento da especificidade

de uma profissão, mas, mais do que isso, que ela seja ética e contribua para a

formação de sujeitos que possam apropriar-se e ser protagonistas da sua história.

Talvez, fique mais fácil de entender se eu afirmar que da mesma forma que

não se pode ser psicanalista sem estudar a contribuição de Freud, não se pode

ser psicopedagogo sem estudar a de Paín, desenvolvida a partir das contribuições

de Piaget e da Psicanálise. E isso não para concordar ou discordar da sua

construção teórica e, sim, porque se trata de uma abordagem que define e

defende a especificidade de um campo, apresenta um modelo teórico e uma teoria

da técnica, o que possibilita um ponto de partida para o desenvolvimento de uma

reflexão crítica.

É apropriado mencionar dois outros movimentos, a meu ver,

importantíssimos, nem sempre lembrados, quando se considera o

desenvolvimento histórico da Psicopedagogia. Refiro-me ao Grupo de Estudos

sobre Educação, metodologia de Pesquisa e Ação – GEEMPA-POA, fundado em

1970, que trouxe pela primeira vez Sara Paín a Porto Alegre, após o fim da

ditadura militar na Argentina, em 1982, e do Centro de Estudos Educacionais Vera

Cruz – CEVEC-SP que a trouxe a São Paulo.

No CEVEC, Paín realiza, de 1982 a 1987, assessorias, seminários e

conferências e, em 1987, ministra um curso18 em que apresenta as bases do seu

18 PAÍN, S. Subjetividade e objetividade: relações entre desejo e conhecimento. Centro de Estudos Educacionais Vera Cruz-CEVEC, 1996.

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pensamento de forma bastante acessível, pois, na época, estava reescrevendo o

que viria a ser a versão em francês, ampliada e atualizada, de A Função da

Ignorância (1987, 1989, 1999)19.

Nesse curso, fica claro o seu objetivo: a construção de um conhecimento

cientifico sobre o pensamento do ser humano que permita refletir tanto sobre a

prática educacional quanto a terapêutica. Além de “subverter a ordem vigente”,

reconhecendo que a ignorância não é o oposto do conhecimento, pois faz parte de

sua gênese, ela ressalta que mais importante do que ensinar é desenvolver a

capacidade do indivíduo de formular perguntas, sua capacidade de reflexão crítica

e autonomia de pensamento. Definia-se, assim, o campo teórico-prático da

Psicopedagogia Clínica Escolar. Nesse curso, apresentei o atendimento de uma

criança com sérios problemas de aprendizagem para ser supervisionado por Paín.

Essa experiência teve uma influência decisiva em todo o meu percurso, não

apenas como psicopedagoga, mas também como psicanalista.

Bem, mas o que interessa para este trabalho é que quando me demiti da

Prefeitura, em 1987, segui investigando as questões ali mobilizadas, em relação

aos problemas de aprendizagem, até porque recebia muitas crianças e

adolescentes com esse tipo de queixas no consultório. Então, comecei a observar

um fato curioso: o encaminhamento para a psicopedagogia passou a ser um meio

para driblar a resistência de pais em levar seus filhos ao consultório do psicólogo,

visto que este era um lugar de atendimento para “doidos”.

Atualmente podem-se observar práticas que começaram naquela época e

são comuns até hoje, como o encaminhamento, às vezes, indiscriminado de

crianças para os consultórios psicopedagógicos, deslocando-se para esse espaço

19 A primeira data refere-se à primeira publicação de A Função da Ignorância – na realidade, um seminário ministrado por Paín, antes do período de ditadura militar e do seu exílio em 1977, em Paris, onde reside até hoje. Foi publicado em 1985, em castelhano, sem a revisão da autora depois da abertura política, e em português em 1987, na esteira do movimento que levaria ao desenvolvimento do mercado de trabalho e a uma proliferação dos cursos de Psicopedagogia, na década de 1990. Em 1989, é publicada em francês revista e ampliada pela autora, com o mesmo título, vindo a ser publicada em 1999, no Brasil.

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o que, muitas vezes, poderia ser da competência da escola, da família, do

psicólogo ou de até outros profissionais.

Foi fazendo sentido, para mim, a crítica de colegas, especialmente, do

Serviço de Psicologia Escolar da Secretaria Municipal da Educação, assinalando o

fato de que alguns pais de crianças de classe social alta acreditavam estar

cuidando muito bem de seus filhos, porque, além de freqüentarem uma boa

escola, eram levados, quase sem fôlego, como pequenos executivos e pelos

motoristas, ao ortodontista, às aulas de natação, ao curso de Inglês e... ao

psicopedagogo. Isso me leva a refletir sobre a necessidade de não sermos

engolidos pelo sistema, evitando transformar os espaços “psi” em artigos de

consumo.

Hoje, reconheço que a minha dupla formação, talvez, tenha permitido

compreender o “mau uso” que começou a ser feito da psicopedagogia desde

aquela época. E, mais, talvez tenha preparado o terreno para que eu pudesse

compreender a importância da dupla escuta preconizada por Paín como

dispositivo para dar conta da relação entre a dimensão subjetivo-afetiva e a

cognitivo-inteligente no pensamento do sujeito que aprende.

Algumas Considerações

É possível até aqui dar-se conta de que na década de 1980 não era como

hoje, em que há tantos cursos de formação em Psicopedagogia ancorados nas

contribuições de várias disciplinas entre elas, a Psicanálise. Não era comum o

intercâmbio entre os profissionais das áreas da Educação, Psicanálise e

Psicopedagogia, que, aliás, como vimos, até o início dessa década, só existia na

linha da Reeducação. A aproximação dos psicopedagogos em relação aos temas

psicanalíticos voltados para a participação do inconsciente e da subjetividade no

processo de aprendizagem e construção de conhecimentos foi bastante lenta.

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Naquela época, mais do que a falta de troca e diálogo entre os profissionais

das áreas da aprendizagem e os da psicanálise, tratava-se, como bem apontado

por Paín, de dois campos, que além de se ignorar, não se valorizavam. A situação

não era diferente no meio psicanalítico que eu freqüentava. Era difícil a inserção

de questões ligadas ao campo dos problemas de aprendizagem. Não havia uma

reflexão sobre as possíveis relações entre as dimensões afetiva e cognitiva do

pensamento do sujeito, pois era como se o desenvolvimento emocional dirigisse o

psicomotor e cognitivo da criança. Na ludoterapia, o foco era o mundo interno de

relações objetais e a fantasia inconsciente da criança, mesmo quando havia

queixas de problemas de aprendizagem. Pouca importância se atribuía à

participação do ambiente familiar e escolar na constituição desse sintoma.

Por um lado, o aprofundamento nas contribuições de Freud e Klein na

tradição do modelo pulsional, intrapsíquico na vertente da Psicanálise, e, por

outro, na contribuição de Paín, na vertente da Psicopedagogia Clínica Institucional

possibilitou a aproximação entre ambas ao recortar o quadro de inibição intelectual

como objeto de investigação, como veremos no capítulo que se segue.

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Estação 2. Contextualizando o objeto e as questões

“Toda experiência é construída ou, melhor dizendo, toda

experiência é em construção”.Figueiredo.20

Neste capítulo pretendo contar como a busca de compreensão sobre o

funcionamento mental de crianças com inibição intelectual permitiu aproximar as

duas vertentes de formação e atuação como psicopedagoga e como psicanalista,

desenvolvidas inicialmente de forma paralela. Tenho claro que não falo do que

realmente aconteceu e sim daquilo que a memória – enriquecida por muitas outras

experiências pessoais e profissionais – alcança.

Recorte do quadro de inibição intelectual Desde o início do meu trabalho clínico tanto nas escolas quanto nas

Clínicas de Saúde Escolar e, também, no consultório, era o grupo de crianças com

inibição intelectual o de diagnóstico mais grave, o que mais me mobilizava a uma

reflexão, constituindo um objeto privilegiado de observação e questionamentos21.

O que me intrigava é que, além da dificuldade para fazer o diagnóstico

diferencial dessas crianças, elas apresentavam uma boa evolução e

desenvolvimento, principalmente, quando alguém da família e/ou da escola

apostava no seu potencial e se envolvia com elas de forma genuína. Entretanto,

não era isso o que a literatura psicanalítica, especialmente a kleiniana,

preconizava sobre o quadro.

20 FIGUEIREDO, L. C. (2002) O tempo nos processos de singularização (apostila usada em aula). 21 Isso foi tema do cap. 6 em Pelos caminhos da Ignorância e do Conhecimento e dos cap.4 e 5 em Pelos caminhos da Ilusão e do Conhecimento.

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Soifer conta que Pichón-Rivière cunhou o termo oligotimia ou inibição

cognitiva para estabelecer a diferenciação entre esse quadro e a oligofrenia

(deficiência mental). Na classificação que faz sobre os quadros psicopatológicos,

numa perspectiva psicanalítica, Soifer inclui esse quadro no grupo das psicoses

simbióticas e salienta um prognóstico bastante desfavorável para ele. Descreve as

características das crianças oligotímicas da seguinte maneira:

crianças com características autistas e, ao mesmo tempo,

simbióticas, que mostram retração e dependência (...)

apresentam persistência de situações orais primitivas

associadas a núcleos depressivos e a intensa ansiedade de

separação, a traços de fixação anal e elaboração deficiente

da problemática edípica. Excessiva ansiedade paranóide

constitucional ligada a ansiedade de aniquilação no início da

vida. (SOIFER, 1985, p.115)

Além do forte colorido kleiniano, trata-se de um prognóstico bastante

fechado. Note, caro leitor, que o meu interesse em investigar o quadro de inibição,

como psicopedagoga, nasce da distância entre o que observava a partir da

experiência especialmente na instituição e o que a literatura psicanalítica falava

sobre elas. Na busca de compreender tal distância, após 1987, época em que saí

da Secretaria Municipal de Educação, segui aprofundando o estudo sobre o

funcionamento mental dessas crianças que, apesar de inteligentes, não

aprendiam. Diferentes autores contribuíram para o meu caminhar.

Na realidade, o meu percurso no campo dos problemas de aprendizagem

foi influenciado por duas linhas que se desenvolveram, a partir da contribuição de

Freud e Klein, na Argentina, nas décadas de 1960 e 1970. Uma desenvolvida por

meio das contribuições de Pichón-Rivière, que cunhou o termo oligotimia ou

inibição cognitiva, e outra que continuou usando o termo inibição intelectual.

Enquanto Pichón-Rivière – perspectiva adotada por Paín – acrescentava a

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28

dimensão social à abordagem de Klein, Luzuriaga acrescentava a contribuição de

Bion à de Klein, cunhava a noção de contra-inteligência22 e seguia usando o termo

inibição intelectual. O uso de terminologias diferentes para nomear o mesmo

quadro já evidencia diferentes concepções e anuncia a complexidade do tema.

As questões mobilizadas pelo diálogo entre a prática e diferentes contribuições teóricas.

Na estação anterior, contei que na década de 1980, era difícil a inserção de

questões ligadas ao campo dos problemas de aprendizagem no meio psicanalítico

que eu freqüentava. A crença era de que a dimensão emocional, afetiva,-

organizava e dirigia o desenvolvimento psicomotor e cognitivo. A ludoterapia era a

técnica utilizada e o foco era o mundo interno de relações objetais e a fantasia

inconsciente da criança. Os fatores ambientais pouco contavam, mesmo quando

havia queixas de problemas de aprendizagem. O mesmo acontecia com os

psicopedagogos que mantinham um distanciamento em relação a temas

psicanalíticos voltados para a participação do inconsciente e da subjetividade no

processo de aprendizagem. Assim, era difícil o diálogo entre os profissionais

dessas áreas, o que dificultava uma interlocução significativa.

É preciso lembrar que durante a minha formação como psicanalista havia

começado minha análise pessoal e algumas supervisões na tradição do modelo

Kleiniano, sendo essa perspectiva uma das adotadas no curso que eu fazia no

Instituto Sedes Sapientiae – SP. Como era comum naquela época, me via muito

mais submetida à dimensão conceitual do que propriamente ao movimento

presente na experiência com o paciente. Como é sabido, a experiência vivida nas

supervisões clínicas e, especialmente, na análise nos marca profundamente.

Outra experiência, também marcante, foi proveniente de um grupo de

estudos formado por mais quatro psicanalistas. Nele, aprofundávamos o estudo da

leitura histórico-crítica da obra de M. Klein, realizada em dois volumes, por J. M

22 LUZURIAGA, I. La inteligência contra sí misma. Buenos Aires: Psique, Siglo XXI, 1972.

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29

Petot23. e, também, a leitura de A Pulsão de morte24, um livro resultante dos

trabalhos apresentados por vários autores, durante o Congresso de Marselha,

realizado em 1984. Ambos foram publicados no Brasil, em 1988.

A mola propulsora das indagações e do diálogo com tais publicações

provinha da clínica e se relacionava com o tema da repetição da pulsão e da

possibilidade de mudança psíquica dos pacientes. No meu caso, o das crianças

com inibição, especialmente, na experiência institucional.

A Contribuição de Green e Segal No final de março de 1984, foi realizado o Simpósio de Marselha em que

várias questões foram colocadas, acerca da pulsão de morte. “Seria tal noção

necessária para compreender a natureza conflitiva do jogo pulsional e a idéia de

morte na atividade psíquica? Permitiria ela explicar os limites da ação terapêutica

e daria conta das estruturas psicopatológicas?” (GREEN, p. 95). Em síntese, a

indagação era: qual a utilidade da teoria sobre a pulsão de morte, tendo em vista a

prática clínica? O que manter dela?

O curioso foi que dos pensadores ali presentes, os que mais se

aproximaram foram Hanna Segal e André Green. Ambos reconheciam a

importância da noção de pulsão de morte na clínica, relacionando-a com a noção

de desinvestimento. Em Hanna Segal, há uma fantasia de desinvestimento que

expressa um ataque contra o desejo. Para ela, todo narcisismo é uma expressão

da pulsão de morte, na medida em que é desobjetalizante, o que a aproximou de

Green, que já havia feito referência à noção de narcisismo de morte. Além de

reconhecerem que o desinvestimento das representações era obra do instinto de

morte, havia uma concordância em articular a pulsão de vida com a função

objetalizante e a de morte com a função desobjetalizante.

23 PETOT, Jen-Michel. Melanie Klein I e II. Estudos 96. São Paulo: Perspectiva, 1988. 24 GREEN et al. A pulsão de morte. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Escuta, 1988.

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Interessante resgatar os pontos que me mobilizaram na época e

determinaram a mudança que foi se operando, aos poucos, no meu modo de

pensar. O primeiro foi o salientado por Green: a compulsão à repetição é uma

propriedade fundamental da pulsão em geral e, em particular, da sexualidade. Em

toda pulsão, há uma tendência repetitiva, como já apontava Freud; assim, a

pulsão, conclui Green é conservadora e, portanto, ligada à compulsão e à

repetição. Esta é ainda mais forte quando ligada à pulsão de morte.

O exemplo apresentado por Green, para ilustrar tal idéia é brilhante e

inquestionável. Ele estabelece uma diferenciação entre o luto estruturante,

salientando o seu caráter de mudança e o luto impossível, sempre infiltrado por

elementos destrutivos, opondo a melancolia ao luto. Hanna Segal acrescenta, na

mesma linha de Green, que enquanto o instinto de vida permite a elaboração do

luto e a simbolização, sendo uma força de adaptação e de mudança, as forças de

morte são estáticas. Se são estáticas, levam a uma paralisia.

Durante um tempo, fez sentido, para mim, a idéia de Isabel Luzuriaga de

que a inibição intelectual seria fruto de um conflito em que a pulsão de morte

levaria a melhor, já que o que observava nas crianças com inibição era uma

impossibilidade de movimento, de brincar e de estabelecer trocas com o mundo

externo.

Não me aprofundarei, aqui, nas apresentações de Segal e Green.

Entretanto, um outro ponto assinalado por Segal é importante. Segundo Freud,

negociamos com a pulsão de morte desviando-a para dirigi-la contra os objetos.

Após ilustrar com o exemplo clínico do impulso de um paciente de querer matá-la,

como único meio de enfrentar a morte dentro dele, Segal afirma que Klein vai mais

longe:

(...) O ponto de vista de Melanie Klein, tal como o

compreendo, é que o desvio da pulsão de morte, contra os

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objetos, não é apenas uma transformação em

agressividade, mas antes de mais nada uma projeção. Ao

mesmo tempo, a pulsão de morte de dentro se torna

agressividade (o desvio de que fala Freud) dirigida contra o

objeto mau criado pela projeção original. Na situação

analítica, a projeção da pulsão de morte é freqüentemente

muito potente e afeta a contra-transferência. (p. 39-40).

(grifos nossos)

Isso significa que, se em Freud, a pulsão de morte opera de forma sutil,

disfarçada e silenciosa no próprio corpo do indivíduo, em Klein ela é

extremamente turbulenta, atingindo o ambiente, impedindo a discriminação e

lançando o indivíduo num estado confusional.

De qualquer forma, o ponto que interessa para este trabalho relaciona-se

ao aspecto de compulsão à repetição – propriedade fundamental da pulsão em

geral, e, em particular, da sexualidade, sendo mais forte ainda, quando ligada à

pulsão de morte, conforme ressaltado por Green.

A contribuição de Petot Ao resgatar anotações da época do grupo de estudos, verifiquei que as

questões significativas encontram-se no vol. II – mais especificamente, nos

capítulos 11, 12 e 13 da obra de Petot (1988). O primeiro trata da questão da

inveja e da gratidão, o segundo da relação entre a metapsicologia kleiniana e os

processos de mudança e o terceiro da atualidade das últimas concepções

kleinianas.

No capítulo 12, Petot assinala que, para Klein, o objetivo do trabalho

psicanalítico seria facilitar a integração no ego da parte destrutiva, invejosa e

voraz, até então, destacada pela clivagem e projetada no outro. Essa integração

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efetuar-se-ia na e pela depressão, bem como estaria relacionada com o

desenvolvimento da capacidade de reparação.

O encontro com Petot foi providencial. Ao focalizar a meta psicologia

kleiniana e a questão da possibilidade de mudança terapêutica do paciente, ao

longo de uma psicanálise, ele discute a importância do papel etiológico dos fatores

do meio, nas últimas concepções de Klein. Salienta que as declarações otimistas

rareiam a partir de 1946. Em 1952, em Inveja e Gratidão, ela admite que “a

existência de fatores inatos assinala os limites da terapia psicanalítica”.

Segundo Petot: “Mais preocupada em avançar sua prática do que

fundamentá-la em teoria, ela pôde simultaneamente formular as premissas de um

raciocínio que, levado a sua conclusão, afirmaria a imutabilidade da constituição

psíquica”. (PETOT, 1988, p.174)

Para Klein, a inveja implica a destruição do objeto e é uma expressão

sádico-oral e sádico-anal dos impulsos destrutivos a operar desde o início da vida.

Sabemos que tais impulsos provêm da intensa ansiedade persecutória despertada

pelo nascimento, sendo a sua base, portanto, constitucional. Dessa ansiedade

decorre a relação dupla com a mãe, isto é, com o seio bom e o seio mau. Essa

seria a projeção originária de que fala Segal.

Não bastasse o fato de a relação inicial com o seio ser já naturalmente

difícil, ela poderia, ainda, ser agravada por circunstâncias externas, tais como

parto difícil, falta de oxigênio etc. Nesses casos, a capacidade do bebê de

experimentar fontes de gratificação é prejudicada, pois ele não pode internalizar

suficientemente um objeto primário realmente bom.

Assim, tanto a inveja quanto a pulsão de morte atacam até mesmo a vida e

as fontes de vida. Klein nunca mudou seu pensamento em relação ao que afirmou,

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especialmente, entre 1929 e 1946: o verdadeiro amor objetal funda-se na culpa e

na necessidade de reparar.

Em 1952, ela reafirma, de forma categórica, o mesmo de 1946: "(...) o ego

está presente e ativo desde o começo da vida, o que deixa claro que o ego não se

forma, que ele dispõe de uma força constitucional, ou seja, inata e repartida de

forma desigual, segundo os indivíduos". (PETOT, 1988, p 163).

E quanto ao peso dos fatores do meio? Ele seria, por princípio, nulo: o

indivíduo teria apenas uma quantidade limitada de agressividade a gastar para

responder às privações ou aos acontecimentos que sinta como desagradáveis.

Ainda segundo Petot, Klein:

tende a sucumbir ao peso de uma verdadeira ideologia

constitucionalista, a qual parece não apreender o caráter

aporético. Após ter admitido que as privações reais podem

modificar um certo equilíbrio pulsional e dar lugar à avidez,

ela limita radicalmente o alcance desta afirmação,

assinalando que a avidez sobrevém tão mais facilmente na

medida em que o componente agressivo inato é mais

poderoso e não hesita em concluir: conseqüentemente a

força das pulsões destrutivas em sua interação com as

pulsões libidinais fornece a base constitucional da

intensidade da avidez. (PETOT, 1988, p.173).

Paín e o modelo pulsional de Klein Ao discutir o texto kleiniano de 1952, Paín (1989) aponta que, se o lugar do

sadismo na obra de Klein permanece o mesmo desde 1933, o mesmo não ocorre

em relação à angústia persecutória que passa a estar mais ligada ao medo de

aniquilamento vinculado ao instinto de morte do que ao medo da Lei de Talião.

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Paín assinala que, para Klein, o motor do interesse do bebê pelos objetos

novos e pela simbolização procede das pulsões destrutivas. Considera, também,

extremamente difícil sustentar a hipótese de um sadismo e de um narcisismo

primário, a menos que se veja aí a projeção do adulto. É ela quem afirma:

O sadismo é o prazer provocado pelo sofrimento de outrem.

Para ter um prazer sádico seria preciso, não somente, que

esse sofrimento fosse percebido claramente como estando

no outro, mas também que fosse diferente do prazer que o

sádico sente. Sabemos que a criança só tardiamente é capaz

de presumir no outro sentimentos que ela não sente

simultaneamente (...). Além disso, dado que a noção de parte

e de todo como continuidade interdependente é bastante

tardia, seria impossível para o bebê conceber uma idéia de

destruição sem ter, ao mesmo tempo, idéia de fragmento.

Ora, o bebê habita um universo absolutamente fragmentado,

à maneira de um quebra-cabeças disperso e variável, cuja

organização lenta e laboriosa é o resultado da ação sobre as

coisas. Como o despedaçamento, sendo anterior à noção de

objeto, não pode inicialmente ser imaginado como diferença.

A tensão que o adulto sente perante um lactente que grita é

acompanhada de uma urgência para acalmá-lo. O adulto

pode ser conduzido, então, a atribuir ao bebê intenções

agressivas, mas para o pequeno é a única maneira de

mobilizar o meio. O sadismo é instalado no bebê como uma

projeção do adulto que dá significação aos seus gestos e

comportamentos. “Que impaciente! Seja bonzinho! Como tu

és mau! Não chore!” introduzindo-o num universo ético.”25

(PAÍN, 1999, p.146-7)

25 PAÍN, S. A função da ignorância. As estruturas inconscientes do pensamento. vol. 1. A gênese do inconsciente. vol. 2. Foi publicado em 1985, por Ed. Nueva Visión, Buenos Aires; em 1987, pela Ed. Artes

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Paín assinala que o bebê demonstra mais curiosidade do que temor quando

ocorre a destruição de um objeto que ele manuseia, a não ser quando os pais

reagem violentamente. Ainda segundo Paín: “(...) o bebê é um pesquisador: ele

vai colocar o fantasma à prova inúmeras vezes para tentar conhecer a causa

eficaz da reação materna”.( PAÍN, 1999,p.146).

Penso que o encontro com Sara foi significativo. Ela dava ainda mais

sentido de realidade às contribuições trazidas por Petot sobre Klein, ligadas à

dificuldade de mudança psíquica; e por Green e Segal ligadas à função

objetalizante da pulsão de vida e a desobjetalizante da pulsão de morte. Na

realidade, por meio de Paín pude seguir aprofundando o estudo sobre a

importância do papel do meio ambiente na possibilidade de mudança psíquica das

crianças com inibição, como veremos, ao longo deste trabalho.

Assim, passo agora a focalizar o confronto que pude fazer das

contribuições de Klein e Paín no sentido de compreender o funcionamento mental

de crianças com inibição.

A noção de contra-inteligência de Luzuriaga

Luzuriaga (1972) desenvolve, em La inteligência contra si misma, a noção

de contra-inteligência, para se referir ao processo em que a criança usa o próprio

potencial intelectual para se manter numa atitude passiva, evitando, assim,

contato com conteúdos dolorosos. Segundo ela, esses seriam os efeitos dos

ataques destrutivos” da criança à própria inteligência e aos vínculos com a

realidade interna e externa, seja ao conteúdo, seja àquele que o transmite26.

Médicas, Brasil. Na França, essa obra deu origem a uma outra reescrita por Paín e publicada em um único volume pela Ed. Peter Lang, Berne, em 1989. Desta, houve uma tradução para o português, em 1999. 26 LUZURIAGA, I. La inteligência contra sí misma. Buenos Aires: Psique, Siglo XXI, 1972.

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Ela não considera que as dificuldades intelectuais das crianças se devam a

distúrbios orgânicos ou a uma inibição de seu desenvolvimento mental. Não

seriam, portanto, consideradas como uma detenção do desenvolvimento, mas sim

fruto de processos inconscientes que mantêm a criança isolada. Às vezes, a

percepção inteligente da realidade objetiva e de seu mundo interior mobiliza na

criança conflitos e sofrimento psíquico.

Além de assinalar que a contra-inteligência luta contra a percepção e a

compreensão do mundo externo e interno devido às vivências que ambas lhe

despertam, Luzuriaga reconhece que os conteúdos vividos como perigosos são

muitos e poderiam ser classificados, seguindo a denominação de Klein, em

ansiedades depressivas e paranóides. Mas, segundo essa estudiosa, como os

matizes tanto da perseguição quanto da culpa e da perda podem ser muitos,

propõe-se a fazer uma apresentação de alguns tipos de ansiedades, classificando-

as muito mais pelo conteúdo encontrado no material clinico, que pela sua

qualidade (persecutória ou depressiva). Entre esses conteúdos aponta a

rivalidade, a solidão e, especialmente, a inveja. É ela quem afirma:

Aprender do outro, significa que ele tem algo valioso, de

forma que não entender pode ajudar tanto a negar este

conteúdo que fere como a desvalorizá-lo já que é valioso,

porém, ininteligível. O tédio diante do saber dos outros é uma

forma de desprezo que constitui uma das melhores armas

contra a inveja. Todas essas fantasias são totalmente

inconscientes para o paciente, que somente vivencia delas

uma ansiedade, cuja origem não consegue compreender,

mesmo que busque explicações racionais. Essa origem só

pode ser desentranhada por meio do trabalho psicanalítico

porque se expressam de forma simbólica que cabe ao

psicanalista decifrar. (LUZURIAGA, 1972, p. 89) [tradução

livre do autor]

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Para melhor compreensão, sugiro os casos clínicos e a excelente descrição

fenomenológica por ela apresentados, pois não me deterei sobre eles, uma vez

que fugiriam ao objetivo desta estação. A pouca consideração atribuída aos

fatores ambientais, na perspectiva de Luzuriaga, empobrecia a possibilidade de

compreensão e de intervenção clínica, pelo menos, com essas crianças. Não

favorecia, também, a abertura do campo de relações da criança com o mundo de

realidade externa. Além disso, não ajudava a compreendê-la no seu contexto

ambiental mais amplo, suas repetências escolares e suas dificuldades de

relacionamento familiar e escolar. Talvez a experiência como psicanalista com

pacientes com outros tipos de queixas, tenha contribuído também, para que eu me

desse conta de que carregar nas tintas da destrutividade, levava -os a um estado

de isolamento e retração ainda maior. É importante notar que essa concepção não

aposta na saúde.

É possível imaginar o que significou para mim o encontro com a

contribuição de Sara, que se afinava mais com a linha de Pichón, buscando o

sentido do sintoma e considerando o ambiente familiar e escolar. Na minha

experiência, tal contribuição possibilitou, o que não foi pouco, definir a

especificidade do trabalho psicopedagógico, reconhecer a sua inserção no campo

da psicoterapia breve de orientação psicanalítica27 e discriminar que o olhar e a

escuta clínica poderiam ser usados não apenas no consultório, mas também no

contexto institucional.

Além disso, permitiu definir que o objetivo seria o resgate do prazer da

aprendizagem e o foco do trabalho voltado para a observação das relações entre

as dimensões afetiva e cognitiva do pensamento da criança reveladas pela sua

forma de aproximar-se do objeto de conhecimento. Mais do que isso permitiu

encontrar a primeira ponte para aproximar as duas vertentes de atuação

psicanalítica e psicopedagógica.

27 Trato do assunto em O difícil diálogo entre a prática e as teorias. (1995)07-18 In Boletim Formação em Psicanálise, vol. IV, n. 1.

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Vale lembrar que Paín (1985) não apenas adota o termo cunhado por

Pichón-Rivière em Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem,

como estende seu uso para referir-se à oligotimia social – situação de indivíduos

com aprendizagem mecânica, pobre e muito abaixo das suas possibilidades, que

além de não incomodar o sistema, contribuem para a manutenção da ignorância e,

conseqüentemente, do status quo. Assim, pode-se entender por que na década de

1980, a contribuição de Paín teve tanta importância não apenas no Brasil, mas

igualmente nos, assim chamados, países em desenvolvimento. Não por acaso,

Paín foi consultora da Unesco na área da Educação.

A contribuição de Sara Paín

O não-aprender não é o contrário de aprender e tem uma

função tão integradora quanto o aprender... Respeitar a

singularidade do sujeito fora das categorias certo-errado,

bonito-feio, normal-patológico, verdadeiro-falso, para que ele

possa fazer-se cargo de sua marginalização e aprender a

partir dela, transformando a si e à realidade... Mais

importante do que ensinar a responder é formular

perguntas... A ignorância não é o oposto do conhecimento

mas ela está na sua origem. (PAÍN, 1999, p. 12)

Paín trazia noções tão bombásticas que, de fato, subvertiam a ordem

vigente. E ressalte-se, não apenas na questão do conhecimento, mas, a meu ver,

também, na da psicanálise.

Em Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem, além de

insistir na necessidade de investigar o significado inconsciente que o aprender

tinha adquirido para a criança, oferecia, também, uma classificação dos problemas

de aprendizagem. Desenvolvida à luz das contribuições de Freud em Inibição,

Sintoma e Angústia (1925) afirma que o problema de aprendizagem pode se

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apresentar de duas formas: como oligotimia ou inibição cognitiva e como sintoma.

Assinala, ainda, que enquanto o termo inibição relaciona-se ao aspecto de

diminuição da função cognitiva28, o termo sintoma refere-se à transformação dessa função, porque as operações da rede cognitiva passam a ter um outro

significado no universo psíquico da criança, ficando aprisionadas nas teias da rede

afetiva.

Desde cedo, ficou evidente para mim, que as provas psicométricas pouco

ajudavam no caso das crianças oligotímicas ou com inibição. Muitas tinham

histórias anteriores de avaliação e desligavam-se, paralisando-se diante delas.

Embora fosse de fundamental importância diferenciar os "pseudos" e os

"verdadeiros" deficientes, avaliando o grau de deterioração da inteligência, como

fazê-lo? E, isso, não apenas para apostar no potencial intelectual da criança, mas,

especialmente, para mobilizar nos pais a crença e a esperança, já que eles,

geralmente, não tinham nenhum projeto para elas.

Na experiência clínica, após ter claro que não se tratava de um problema

escolar, relacionado ao aspecto da transmissão do conhecimento, portanto,

reativo a situações externas, era preciso estabelecer a diferenciação entre o

problema de aprendizagem como inibição ou como sintoma. Nesses casos, o que

está em jogo é o aspecto da recepção e elaboração do conhecimento. Trata-se de

um funcionamento intra-psíquico no qual a dimensão afetiva e a cognitiva não

fazem aquilo que seria a sua função, porque se mesclam, havendo uma quebra

onde se inscreve o problema de aprendizagem.

Retomo o que já afirmava em Pelos Caminhos da Ignorância e do

Conhecimento:

Sara postula um modelo para pensar o funcionamento do

aparelho mental. Para ela, essas duas dimensões devem

28 Em A função da ignorância (1987, 1989), Paín não mais usará o termo inibição cognitiva, nem oligotimia.

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funcionar no sujeito de forma independente e simultânea

para que uma não aprisione o funcionamento da outra. Mas

como elas se unem? Através da função da ignorância, por

ela definida como “um espaço opaco e vazio” que, ao mesmo

tempo, separa e une essas duas dimensões, de forma que

uma desconhece, ignora a existência da outra, o que permite

que cada uma faça aquilo que é sua função29. Quando um

sujeito aprende bem, isso ocorre porque existe, entre essas

duas dimensões, uma cisão fundamental e constitutiva.

(PARENTE, 2000, p. 57)

Daí a necessidade de compreender o "não-aprender" que, por ter uma

função tão integradora, mantém a criança assujeitada em um lugar por onde o

prazer da aprendizagem não pode circular. O dispositivo clínico para desarmar a

armadilha que a dimensão afetiva fez à cognitiva e, assim, ajudar a criança a

ocupar um outro lugar e a resgatar o prazer da aprendizagem seria a dupla escuta

– escuta simultânea dessas dimensões.

Assim, foi, cada vez mais, fazendo sentido para mim a contribuição de Paín

sobre a questão de como um sujeito se constitui, ao mesmo tempo em que

constrói o conhecimento, e, também, a ênfase colocada na questão da busca de

autonomia e realização, bem como a da importância de uma aprendizagem com

significado para a criança, aspectos geralmente não-considerados pelos

kleinianos.

Concordava com Paín que não se podia focalizar apenas o mundo de

relações de objeto e a fantasia inconsciente do funcionamento mental das

crianças com queixas de problemas de aprendizagem, ainda mais se elas

estavam na época de serem alfabetizadas.

29 Em Subjetividade e objetividade, relações entre desejo e conhecimento, publicado pelo CEVEC (1996), p. 40-1, Sara apresenta sua concepção do funcionamento do aparelho mental e analisa os problemas de aprendizagem usando o modelo do tear.

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À medida que reconhecia o aspecto de urgência nessa modalidade de

atendimento, via sentido na terapia focalizada nos problemas de aprendizagem, o

que me levou a um aprofundamento na especificidade desse campo e no tipo de

noções (resistência, transferência, contra-transferência, regressão etc.)

necessárias para nele intervir.

Paín defende a validade do trabalho clínico centrado no sintoma:

Diz Freud que o que resta da doença depois da desaparição

(sic) do sintoma é apenas a disposição para formar novos

sintomas; entretanto, quando se trata da aprendizagem e das

atividades cognitivas, o reforço destas deixa o sujeito numa

melhor disposição para elaborar o seu trauma, caso se

submeta a uma psicanálise e para encontrar vias de

satisfação e sublimação na sua vida quotidiana. (Paín, 1985,

p. 77).

E afirma ainda que, para que alguém possa superar seu problema, "é

necessário devolver ao sujeito a dimensão de poder (poder escrever, poder saber,

poder fazer) para que ele possa dar credito às potencialidades de seu ego". (1985,

p. 78).

Ao enfatizar que a aprendizagem é uma função que dá prazer, que pode

ser perdida ou pervertida no triângulo edípico, mantendo o sujeito resistente a

entrar no princípio da realidade e pela preocupação com o fracasso escolar e suas

conseqüências para a criança e a família, recomenda uma atitude mais ativa por

parte do terapeuta no tratamento. Este seria operativo, situacional, devendo

constituir-se numa situação de realização para o sujeito.

Percebe-se, com isso, que Paín enfatiza não a interpretação dos conteúdos

destrutivos da criança, mas sim a compreensão do significado presente nos seus

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erros sistemáticos, relacionando-os com a sua história de vida, investigando,

assim, o lugar ocupado pela criança e o sentido do sintoma no triângulo edípico.

Além disso, oferece elementos para refletir sobre a dimensão do ambiente familiar

e escolar que tinham se mostrado tão importantes na minha experiência

desenvolvida na instituição.

Na busca de compreender o caráter de repetição presente nas crianças

com quadro de inibição intelectual e compreender a mudança que se operava no

meu pensamento nessa passagem da contribuição de Klein para a de Paín,

debrucei-me sobre o atendimento de Carol, uma menina de quase 9 anos, com

um quadro de inibição.

Algumas Considerações Hoje, com o distanciamento necessário, constato que o que mais me

incomodava naquela época, não era apenas a distância entre a minha prática

clínica institucional e a de consultório, mas, especialmente, a postura que adotava

a partir de uma e outra. Talvez elas refletissem o clima vigente na época. O fato é

que, como psicopedagoga, especialmente na instituição, sentia-me mais livre de

filiações teóricas podendo usar vários referenciais, desde que eles contribuíssem

para o desenvolvimento da prática e ampliassem a compreensão do campo e do

fenômeno em jogo. Já como psicanalista, tentava muito mais me adaptar à técnica

e ser fiel aos princípios e preceitos preconizados pela teoria, no caso, a kleiniana.

Vale lembrar que, refiro-me a um tipo de kleinismo que dominou alguns

lugares da Argentina e, de São Paulo, especialmente, na década de 1970 e 1980,

que é diferente das contribuições atuais ligadas à tradição kleiniana.

Penso que é compreensível que exista o desejo de que a teoria em que

acreditamos se cumpra na prática. Entretanto, se isso se torna mais forte do que a

experiência de relação com o paciente, há o risco de uma submissão à dimensão

conceitual e de tentar encaixar o paciente nessa dimensão. Nesse sentido, a

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razão pode ficar cativa, tornando-nos míopes como observadores, pois podemos

selecionar alguns dados da realidade clínica para adaptá-los ao referencial teórico

adotado. Isso implica uma forma de usar a teoria não para que ela favoreça a

abertura do campo de observação e, sim, para seu fechamento.

Hoje, penso que à medida que a Função da Ignorância começou a operar

no meu pensamento, fui podendo dar mais atenção às inquietações surgidas a

partir das observações provenientes da prática também no consultório, já que elas

colocavam em xeque não apenas o que a teoria preconizava, mas o meu próprio

processo de aprendizagem.

E, aqui, mais uma vez a referência é Paín. Nota-se que era como se sua

contribuição me autorizasse a ter maior flexibilidade também no consultório, pois a

minha forma de usá-la referendava a minha aposta na criança, abrindo o campo

de observações.

Penso que Klein e Paín foram muito convenientes neste momento, a que

nomeio de Estação 2 – tempo da passagem dos porquês ao como.

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Estação 3. Compreendendo Carol à luz do confronto entre Klein e Paín

Reconhecer o outro na sua busca. Apostar no seu potencial.

Será isso o que opera, tem efeitos e sustenta um campo de

experiências compartilhadas?

Neste capítulo, focalizo algumas questões surgidas durante o atendimento

de Carol, uma menina de 9 anos, de primeira série, com um quadro de inibição

intelectual e estabeleço um diálogo confrontando as concepções presentes nos

referenciais de Paín e Luzuriaga, apresentadas no capítulo anterior.

A título de esclarecimento

Em relação à terapeuta, esse atendimento marca um caminhar do modelo

intra-psíquico para o intersubjetivo devido à forma pela qual ela foi sendo

“afetada”, por um lado, pelo ritmo e impressão que Carol imprimia na atmosfera do

ambiente e, por outro, pela ressonância de determinadas afirmações de Paín e

Winnicott que iluminavam o que se revelava na experiência clínica. Marca,

também, uma mudança na forma de fazer o diagnóstico, de usar a teoria como

objeto transicional e o início do reconhecimento do que, mais tarde, viria a ser

chamado de fenômeno estético.

Creio que há situações que transformam, constituindo-se em verdadeiros

marcos de um antes e de um depois. Assim foi, para mim, a experiência com

Carol. Nunca mais duvidei de que o que opera e tem efeitos, o que permite manter

a esperança no horizonte, lidar com sentimentos ambivalentes e as agruras da

vida é a relação com alguém que, de fato, nos reconhece na busca, acolhe no

encontro e acompanha no percurso. E, isso, porque faz uma aposta. E toda

aposta exige uma crença. No caso, a crença na possibilidade de desenvolvimento

do ser humano. Creio que Carol foi fazendo uma opção pela vida, à medida que a

terapeuta foi fazendo uma aposta no desenvolvimento do seu potencial. Não sei

se tal movimento teria acontecido, pelo menos, dessa forma, sem a aposta que

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Sara também fazia no trabalho da terapeuta durante as várias supervisões desse

atendimento, recortado inicialmente para provar a eficácia do referencial de Paín.

Para este trabalho, vale ressaltar a importância do resgate de muitas

anotações escritas antes do exame de qualificação de mestrado “Inibição

intelectual: O paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade”,

defendida na PUC/SP, em fevereiro de 1996, sob a orientação do Prof. dr. Gilberto

Safra. Essas anotações apresentadas na estação anterior, nesta e na próxima

permitirão dar visibilidade e, ao mesmo tempo, contribuirão para sistematizar as

questões que impulsionavam o meu pensamento na época em que caminhei

também em direção a uma outra forma de construção de conhecimentos no

modelo desconstrutivista.

Embora as indagações surgidas durante o atendimento de Carol

impulsionassem o diálogo com os referenciais teóricos, não fez parte da

dissertação por sugestão da banca. Na ocasião, a opção foi estabelecer um

diálogo entre os atendimentos de outras duas crianças com inibição a partir do

pensamento de Winnicott. Aprofundo aqui, então, a reflexão lá pretendida e ainda

não realizada: acompanhar a mudança que se operava no meu pensamento, à

medida que me distanciava da contribuição de Luzuriaga (kleiniana) e me

aproximava da de Paín e da de Winnicott. O que permitia aproximá-las é que

ambas apostavam – o que não é pouco – na possibilidade de desenvolvimento do

ser humano, dando ênfase à noção de pulsão de vida, reconhecendo a

importância do fator ambiental e maturacional no funcionamento psíquico. Esta

reflexão permitirá também acompanhar o processo histórico de construção dos

dispositivos.

O atendimento de Carol foi paradigmático e permitiu repensar uma série de

questões, especialmente a das relações entre o desenvolvimento psíquico, o

jogar, o brincar, o conhecer e o aprender, ligadas, não apenas ao campo

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psicopedagógico, mas também ao psicanalítico, aproximando cada vez mais

minhas duas vertentes de atuação e formação clínica.

A compreensão da inibição a partir de Klein e Paín

A inibição intelectual seria mesmo a expressão do predomínio da pulsão de

morte que levaria a criança a fazer ataques invejosos e destrutivos aos vínculos,

levando a uma desconexão seja com o conteúdo, seja com aquele que o

transmite, como defendido por Luzuriaga? Ou a oligotimia seria o lugar ocupado

pelo sujeito "tornando possível a existência de uma estrutura equilibrada na qual

sua própria sobrevivência torna-se possível?" (PAÍN, 1985, p. 69).

Essas eram as duas grandes indagações que me fazia na época. A questão

era: como compreender a permanência da criança numa posição por onde o

prazer da aprendizagem não circula? Diferentemente da leitura de Luzuriaga,

criticada por Paín, não se trataria de interpretar os conteúdos destrutivos da

criança, e sim de compreender o significado presente nos seus erros sistemáticos,

relacionando-os com a sua história de vida, investigando, assim, o lugar ocupado

por ela no triângulo edípico.

Reforço que meu interesse aqui não é discutir a existência ou a validade

dos pressupostos presentes nestas teorias mas de refletir sobre a conveniência de

usá-las para favorecer a abertura do campo de relações da criança com os objetos

da cultura, entre os quais se encontra o assim chamado objeto de conhecimento.

Atendimento Clínico Importante salientar que comecei o atendimento de Carol sem acreditar que

ele pudesse realizar-se devido ao histórico de abandonos de tratamentos

anteriores e à ausência de esperança de cura por parte dos pais – aspectos

geralmente presentes no atendimento de crianças com inibição. Por isso, introduzi

algumas modificações em relação ao modelo de diagnóstico até então adotado,

propondo um período de aproximadamente dois meses para fazer o diagnóstico

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diferencial entre oligofrenia e oligotimia por meio de uma intervenção e não de

provas psicométricas.

Meu objetivo era também estabelecer a linha de conduta terapêutica e,

especialmente, avaliar o grau de envolvimento e compromisso dos pais, já que eu

parecia ser mais uma a ser posta à prova na longa lista de profissionais a ouvir

que “Carol não tinha jeito mesmo, apesar de todo nosso empenho” (sic mãe).

Intervenção Diagnóstica O meu primeiro contato com Carol se deu por meio de uma sessão de

observação familiar, prática que vinha adotando diante de situações em que havia

uma dinâmica familiar conturbada. Compareceram os pais, a menina e o seu único

irmão de 12 anos. Chamou-me a atenção o quanto ela destoava da família: os

pais e o irmão, além de bonitos, eram bem cuidados, ao contrário dela,

descabelada, mal vestida e usando um tipo de óculos que parecia enfeá-la.

Chamou-me a atenção, também, a sua forma de cumprimentar-me com a

mão esquerda, enquanto segurava uma boneca conhecida como bebê

moranguinho. Ela, de fato, parecia colocar-se no lugar de uma criança “bobinha”,

apresentando-se como aquela boneca.

Num determinado momento dessa sessão, observei que ela estava

prestava mais atenção nos pais do que na brincadeira de pega-varetas que jogava

com o irmão, que se esforçava para ajudá-la. Em determinado momento, ela

interrompeu a conversa que os pais estavam tendo comigo e, ao chamar a mãe,

mostrou que tinha conseguido tirar apenas dois palitos enquanto o irmão tinha

conseguido pegar todos os outros. Isso pareceu provocar uma expressão de

irritação, aliada a um certo ”ar de desprezo”, por parte da mãe, o olhar

compungido do pai e o mal-estar do irmão.

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Observei que a mãe olhou para mim, buscando uma aliança como se

dissesse: Viu? É assim que ela faz. Não é terrível? Era como se a mãe intuísse

que ela dava uma de boba para fazer o outro de bobo. A questão era: como

compreender a atitude de Carol?30

Sem dúvida, seria possível compreendê-la a partir do pensamento

kleiniano, isto é, como expressão da presença da pulsão de morte, o que levaria a

interpretar o desligamento e desprezo da menina em relação à ajuda que o irmão

queria lhe dar como efeito da sua inveja e da sua incapacidade de abrir-se para o

novo. Por outro lado, era inegável que Carol parecia ocupar o lugar de perdedora.

Ela tinha um “ar” de vitima, mas de certa forma triunfante, parecendo valorizar o

fracasso. Será que aquele era o lugar possível para sobreviver num tipo de

dinâmica familiar pouco favorecedora do seu desenvolvimento, perguntei-me a

partir da minha leitura de Paín?

O foco da minha observação era a dinâmica familiar e o lugar que a menina

ocupava no triângulo edípico (PAÍN) Era possível observar que a atitude de Carol

organizava grande parte da dinâmica daquela família. Era como se ela mantivesse

o controle sobre todos por meio das suas atitudes que perturbavam seus pais e

irmão: enquanto a mãe disfarçava seu desprezo e sua irritação, o pai e o irmão

tinham uma atitude disfarçadamente protetora em relação a ela.

Deixando operar a função da ignorância desloquei o eixo da tradicional

indagação de o porquê a criança não aprende para o como Carol fazia para

permanecer numa posição por onde o prazer da aprendizagem não podia circular,

passando, então, a observar a sua atitude diante do assim chamado objeto de

conhecimento.

Nos primeiros contatos, chamou-me a atenção a sua movimentação lenta,

seu andar arcado, como se carregasse o mundo nas costas. Usando a

30 Os trechos em itálico referem-se às reflexões, aos questionamentos ou lembranças da autora.

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terminologia dos neurologistas, diria que Carol era hipotônica. Entretanto, o que

mais me marcou, além de sua postura corporal, foi seu olhar observador e

"esperto", geralmente acompanhado de uma atitude entre a "gozação" e a

"expectativa", aliás, semelhante àquela já observada durante o atendimento

familiar. Especialmente no início das sessões, ela ficava sempre de olho em mim.

Mas muito mais do que numa linha de controle, parecia que ela me estudava.

Eu me indagava: O que queria dizer aquele olhar curioso, entre a gozação e

a expectativa, que parecia buscar algo e, às vezes, de forma disfarçada? Haveria

ali uma tentativa de comunicação ou de controle? Embora essa inquietação

persistisse, eu procurava ficar atenta ao que era passível de observação. Note-se

a capacidade da menina em “criar” uma atmosfera envolvente que mobilizava a

minha curiosidade. Hoje me dou conta de que surgia naquela época, o que mais

tarde viria a nomear como Fenômeno Estético, que será desenvolvido,

oportunamente, ao longo deste trabalho, especialmente durante o atendimento de

Eric.

O primeiro dispositivo clínico usado foi ficar atenta para não repetir o

tipo de vínculo transferencial observado na sessão familiar. De olho na contra

transferência, evitei permanecer no lugar ocupado pelos pais e irmão na relação

com a menina. Por outro, mantive-me atenta à atitude de Carol diante do objeto de

conhecimento, observando como ela fazia para evitar estabelecer contato com

ele. Ela tinha uma forma curiosa de não escolher, nem explorar os materiais, bem

como de cortar contato com o mundo externo e se desligar. Sempre que algo a

incomodava, cheirava a borracha (colocando-a entre o nariz e a boca – como no

desenho que tinha feito na primeira entrevista) ou ficava mexendo em algum

objeto, ou ainda encostando alguma parte do próprio corpo na mesa num

movimento rítmico e disfarçado.

Note-se que, se por um lado, ela cortava os receptores à distância (visão e

audição), incrementava os de contato. Nesses momentos, parecia devanear e sua

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expressão era de quase beatitude. Atitude típica, aliás, de crianças com inibição.

Entretanto, quando ela voltava desse vôo, eu não via atitudes que demonstrassem

as tais ansiedades paranóides ou depressivas, sugeridas por Soifer e Luzuriaga.

Seu ar não era nem mesmo de preocupação. Na verdade, ela parecia

reabastecida e ainda mais disponível e curiosa para me observar. Além do ar de

gozação, passei a observar outras nuances, porque parecia haver agora um ar de

expectativa e curiosidade.

Como compreender as atitudes de esquiva e desconexão de Carol? Estaria

ela lutando contra a percepção e compreensão do mundo externo e interno e

contra as vivências que elas lhe despertavam, como defendido por Luzuriaga?

Será que ela sentia o mundo como perigoso e ameaçador devido aos ataques

feitos ao bom objeto anteriormente? Seria o medo da retaliação o responsável

pela sua atitude de retração e evasão? Seria uma forma de evitar contato com

conteúdos vividos como perigosos ou dolorosos?

Retomando a descrição de Soifer e observando Carol, seria possível dizer

que ela, de fato, parecia apresentar as tais “características autistas e simbióticas,

a persistência de situações orais primitivas, ansiedade paranóide e elaboração

deficiente da problemática edípica” (SOIFER, 1985). Também se poderia dizer que

o mundo parecia ser sentido por ela como perigoso e ameaçador, devido aos

ataques feitos anteriormente ao bom objeto, e que o medo da retaliação

provocaria a atitude de retração e recolhimento como forma de evasão.

Essa leitura seria possível e reforçaria a idéia da existência da pulsão de

morte, mas, como disse, não observava atitudes que reforçassem essa

compreensão. Carol não parecia ansiosa nem com receio da retaliação ou de ter

perdido ou estragado alguma coisa. Falar de ansiedade paranóide e depressiva e

de conteúdos dolorosos não fazia sentido. Pelo contrário! O que eu observava

assemelhava-se muito mais àquele ar de gozação disfarçada, presente na sessão

de observação familiar.

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Gostaria de assinalar que reconheço a excelente descrição fenomenológica

dos kleinianos, porém as observações provenientes da experiência clínica não

coincidiam com elas. Em relação a Carol, o que me chamava a atenção, é que ela

parecia desempenhar um papel, cumprir uma tarefa. Sempre com aquele olhar

entre a gozação e a expectativa, parecendo estudar as minhas reações. Aos

poucos, foi se soltando mais, mas, mesmo assim, parecia procurar o tempo todo

um indício de qual era o efeito, o impacto de sua atitude sobre mim.

À medida que a Função da Ignorância operava no meu pensamento, mais

curiosa eu ficava, formulando perguntas que abriam ainda mais o campo de

observações e indagações. Mais do que seguir a técnica preconizada por Paín,

desenvolvia uma atitude mais crítica em relação à técnica e mais aberta à

experiência.

Carol criava uma série de jogos que, de fato, me deixavam curiosa. Neles, o

que ficava evidente era sua tendência de criar um "clima" permeado por um

cenário de confusão, segredo e dúvida, que ia se instalando em um "crescendo", e

que despertavam tanto a curiosidade dela, quanto a minha. Eu nunca sabia onde

ela estava e, às vezes, me sentia enredada num jogo de ”gato e rato” identificando

em mim, o mesmo sentimento de confusão, a que os pais tinham feito referência

na entrevista inicial. Como eles, eu também oscilava, entre a atitude de

superproteção e a de impotência. Como eles, eu também ficava em dúvida se ela

estava ou não entendendo a situação.

Será que eu poderia encontrá–la, descobri-la? Eu via acontecer aquilo que

Winnicott conseguiu descrever em um de seus paradoxos: "É um sofisticado jogo

de esconder em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser

encontrado" (WINNICOTT, 1963-a, p. 169).

Gostaria de contar que, de todos os textos que li de Winnicott, essa frase,

que se encontra no artigo de 1963 – Comunicação e falta de comunicação levando

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ao estudo de certos opostos – afetou-me sobremaneira e tem me acompanhado

desde então. Foi ela que me abriu a possibilidade de compreender o que hoje é,

para mim, o objetivo de uma terapia: superar a dissociação (no caso de pacientes

com outros tipos de problemática) e a cisão (no caso de pacientes com inibição)

entre as duas dimensões que nos constituem: a do ser, que permite o ponto de

repouso, a constituição do espaço de confiança – espaço potencial e do si

mesmo–, e a do fazer, que permite a inscrição do gesto pessoal no mundo, seja

para acolher o eu (o familiar) seja para repudiar o estranho (o não-eu). A base da

primeira dimensão (a do ser) é a constituição e desenvolvimento do elemento

feminino puro e a da segunda é a do elemento masculino puro, relacionado com a

agressividade e a área do fazer. Aprofundarei esse ponto ao longo deste trabalho.

Vi nela, também, a expressão do desejo da menina de sentir-se autora,

protagonista, sujeito de sua própria história e não mero objeto do desejo do outro.

Na realidade, eu já transitava entre Winnicott e Paín, tentando entender o que

brotava do movimento e na relação a partir de ambos.

Fez sentido o que Paín assinalou durante uma supervisão: quando uma

criança sentiu-se olhada como ilegítima, boba e confusa e "permaneceu" nesse

lugar, pode simbolizar em um objeto de seu uso essa relação. Isso a impede de

conhecê-lo e de transformá-lo em objeto de conhecimento. É a sua forma de

mostrar, atuando e invertendo por identificação a sua dramática inconsciente.

Penso que cada vez se instaurava mais o campo intersubjetivo, porque

muitos movimentos borbulhantes aconteciam e se entrelaçavam, não apenas na

relação com a garota, mas também no diálogo entre as teorias. Do lado das

leituras teóricas, além de confrontar Klein e Paín, tendo por eixo o tema da pulsão

de morte na compreensão da inibição, usava Winnicott, quase que sem perceber.

Como disse na estação anterior, o aprofundamento no pensamento desse autor

começou a ser feito no grupo de psicanalistas que, também como eu,

desencantados com Klein, tinham se debruçado sobre o estudo de Winnicott.

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De fato, passei a compreender Carol por meio de determinadas frases ou

aspectos do pensamento de Winnicott que se impunham, lançando luz e de

alguma forma referendando o que eu via, permitindo não apenas compreender,

mas também nomear e acompanhar o movimento da menina.

O leitor pode imaginar a situação. Na época, meu objetivo era estabelecer

um diálogo com a teoria de Paín para mostrar a sua eficácia, já que tinha sido

muito interessante fazer o diagnóstico focalizando a relação da menina com o

objeto de conhecimento. Entretanto, à medida que um campo de confiança foi se

instaurando na relação com Carol, algo de Winnicott se impunha diante de

determinados movimentos da garota, iluminando o que eu via. A supervisão com

Paín funcionava como uma segura cama elástica que dava continência a todo

esse movimento. Isso foi cada vez mais flexibilizando o meu pensamento,

permitindo o afastamento de Klein e uma aproximação e um trânsito entre Pain e

Winnicott.

Vale lembrar que Sara é uma filósofa e uma teórica por excelência. Tinha

se proposto e vinha realizando uma tarefa: a de construir uma teoria que

abarcasse as relações entre as dimensões dramática e cognitiva do sujeito que

aprende. Cá entre nós, eu sou uma pessoa da prática clínica e a teoria me

interessa quando é útil e permite realizar meu objetivo, que é compreender e

acompanhar o paciente.

Note-se que com Paín aprendi que o conhecimento pode ser elemento de

trânsito entre dois seres humanos, para que cada um possa realizar seu projeto

existencial no mundo. Não é à toa que digo que quem me apresentou Winnicott foi

Sara. Creio que isso se materializa por sua capacidade de respeitar o outro e

suportar a alteridade, já que na época ela usava o referencial de Lacan.

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Por isso, desde aquela época, reconheço que "não basta a busca! É

preciso o encontro. Este acontece quando se é reconhecido na busca, acolhido na

própria singularidade e acompanhado no percurso" (PARENTE, 2000).

À medida que a Função da Ignorância operava no meu pensamento, as

indagações impunham-se e ampliavam o campo de observação e eu me

entregava ao movimento. O foco não era mais apenas o das relações entre afeto e

cognição no funcionamento mental de Carol, revelados pelo tipo de vínculo e pela

distância que ela estabelecia com o objeto de conhecimento. Era, também,

acompanhar os movimentos psíquicos da menina na relação que se estabelecia

no campo intersubjetivo, incluindo a sua maneira de se comunicar de forma não-

verbal – trocas de olhares e comunicação silenciosa veiculada, às vezes, pela

presença do “bebê moranguinho”. Ilustro com um episódio que relato a seguir e

que implicou o fechamento de um contrato terapêutico.

O Fechamento do Contrato Terapêutico Na primeira das duas sessões que se seguiram, Carol parecia curiosa. Foi

até o armário e, enquanto escolhia um jogo para 12 anos, disse que o irmão tinha

esse mesmo jogo. Já havia observado que ela escolhia algo para fazer,

independentemente de estar dentro de suas possibilidades, passando a fazê-lo de

forma indiscriminada e desorganizada – atitude bastante comum nas crianças com

inibição.

Como entender essa sua atitude? Seria um ataque à sua percepção e ao

vínculo com o objeto? Seria a negação da diferença entre ela e o irmão, também

fruto do ataque à própria percepção, como diria Luzuriaga? Ou seria fruto da

permanência num lugar por onde o prazer da aprendizagem não podia circular

para salvar a pulsão, como diria, usando Paín? Será que ela se fazia de boba para

me fazer de boba?

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Vinha observando que assinalar a sua dificuldade e falta de discriminação –

seja numa linha da onipotência seja de ataque – mobilizava na menina uma

expressão de desesperança, levando-a a cortar o contato comigo. Assim, assinalei

e valorizei sua vontade de envolver-se com algo da realidade externa. Claramente

lhe disse que aquele jogo não era adequado para a sua idade, esclarecendo o

porquê e apresentei-lhe algumas atividades mais adequadas às suas

possibilidades cognitivas.

Observei que, ao escolher um jogo de encaixe, apesar do seu interesse e

envolvimento, Carol não conseguia realizá-lo, pela sua pressa em querer usá-lo e,

também, devido à sua dificuldade de pedir e aceitar instruções.

Novamente me indaguei: Como entender aquela sua vontade entusiasmada

que a levava a ter tanta pressa e a ir com tanta “sede ao pote”? Comecei a me

indagar se não haveria uma diferença entre ansiedade e angústia. A primeira

estaria relacionada ao anseio diante da possibilidade de ter uma ação significativa

no mundo e a segunda com situações de frustração, perdas e faltas. Comecei a

me indagar se o que até então parecia fruto da onipotência do seu desejo, não

poderia ser a expressão de um entusiasmo, o nascimento de um interesse e,

principalmente, a esperança diante da possibilidade de se realizar por meio de

uma troca significativa com algo do mundo. Somente depois disso é que se

poderia falar de desejo, falta e diferentes formas de lidar com a frustração.

Após testemunhar essa sua atitude, legitimei sua pressa e entusiasmo, o

que pareceu tranqüilizá-la. À medida que a ajudei a se organizar adaptando a

atividade às suas possibilidades, ela demonstrou um envolvimento genuíno,

montando várias vezes e, com grande satisfação, o jogo de encaixe.

É preciso dizer que, naquela época, entusiasmada com o desempenho de

Carol usei a terminologia de Paín nos registros que fiz. Talvez pudéssemos pensar

que os mecanismos da dimensão afetiva: projeção e identificação estivessem

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enlaçados e enriquecendo os mecanismos da estrutura cognitiva: assimilação e

acomodação. Talvez, Carol estivesse reconhecendo que, para aprender algo, é

preciso reconhecer que não se sabe e que há alguém que sabe, que pode e quer

ensinar. Até então, é possível que ela acreditasse mesmo que era possível nascer

sabendo. De alguma forma, esse é um tipo de teoria ignorante comum nas

crianças com problemas de aprendizagem e que determina uma certa leitura do

mundo.

Na terminologia de Paín (1989) diríamos que o funcionamento da garota é

projetivo e o mecanismo de assimilação encontra-se inibido. Fui observando

através do atendimento clínico de crianças com inibição cognitiva que elas tinham

poucas experiências concretas no sentido de uma ação, de um fazer propriamente

dito, ligado à realidade. O que significa também que têm poucas oportunidades de

se colocar em situações que envolvam, de fato, os riscos de saber ou não saber,

de poder ou não poder.

Note-se que são essas experiências concretas que possibilitam à criança

entrar em contato com a realidade objetiva e, inclusive, com as resistências que os

objetos da realidade oferecem. Assim, quando carecem dessas experiências, o

prazer da aprendizagem não circula, havendo então o predomínio na utilização

dos mecanismos de projeção e identificação – mecanismos próprios da dimensão

dramática, afetiva, com os quais não há possibilidade de regulação e articulação

com os mecanismos da dimensão cognitiva – assimilação e acomodação. Isso é o

que permite a construção de um universo objetivo e a constituição de um sujeito

que possa reconhecer-se nele.

Retomando a sessão que vinha narrando, observei que o envolvimento de

Carol no jogo de encaixe era tamanho que parecia esquecer-se da minha

presença.

Desde esse período, comecei a pensar na presença da terapeuta em

determinados momentos como testemunha, como um pano de fundo, como o

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invisível que organiza um campo31. Muito tempo depois viria a reconhecer nisso

um dispositivo clínico, como veremos adiante. Comentamos no final da sessão

como o tempo havia passado depressa e combinamos retomar a atividade, desde

que ela o quisesse. Aproveitei, também, para mostrar-lhe que havia outros jogos

semelhantes àquele usado por ela.

Notemos que naquela sessão havia, agora sim, uma situação de

aprendizagem – uma relação entre Carol e um objeto de conhecimento. Até então,

talvez fosse apenas o desejo da terapeuta de que ocorresse essa situação. Em

verdade, ainda não havia, pois não existia uma relação triangulada entre Carol,

necessária para a circulação da aprendizagem. Foi ali que fui me dando conta da

importância de existir diferenciação entre a criança, o outro e o objeto a ser

conhecido como entidades separadas para que uma situação de aprendizagem

tivesse lugar (PAÍN, 1985).

Talvez hoje possa dizer que, naquele momento, já intuía o que mais tarde

viria a chamar de movimento no jogo tridimensional – Carol podia se “esquecer”

da presença da terapeuta, relacionar-se com o objeto de conhecimento e a

terapeuta podia continuar presente,“em ausência”, como testemunha, sustentando

o campo de experiências.

Na sessão seguinte, fui chamar Carol bastante entusiasmada – quem sabe,

ela se envolveria com atividades semelhantes à da sessão anterior, exercitando,

assim, a circularidade necessária para o desenvolvimento da rede cognitiva

(PAÍN). Entretanto, encontrei-a novamente segurando a tal boneca, com o mesmo

ar de boba e o mesmo olhar entre a "gozação" e a expectativa dos primeiros

encontros.

31 Ver O difícil diálogo entre a prática e as teorias (1995)07-18 In Boletim Formação em Psicanálise, vol. IV n. 1.

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Comecei a me indagar: por que Carol se apresentava com essa atitude,

como se não houvesse o registro da experiência anterior? Isso era algo que me

chamava a atenção no atendimento de outras crianças com esse mesmo tipo de

problemática.

Seria um ataque agora não mais à percepção mas sim à memória, como

diria Luzuriaga? Ou seria a tentativa de permanecer num lugar de gozo, por onde

o prazer da aprendizagem não poderia circular, como diria Sara? Por que depois

de uma experiência de realização, envolvimento e interesse pelo objeto de

conhecimento, ela se apresentava com a tal boneca?

Observei que, naquela situação, apesar da presença da boneca, Carol

parecia atenta, com um certo ar maroto, mas sem a atitude de alheamento das

primeiras sessões – quando cortava os receptores à distância, fazia movimentos

rítmicos e ficava com o olhar ausente. Tentei resgatar o clima, apresentando o

mesmo jogo da sessão anterior. Ela ignorou o meu convite, mas me deu um sinal

de que se lembrava muito bem do que acontecera na sessão anterior, pois, após

se levantar, pegou no armário um outro jogo, também de encaixe, dentre os que

havíamos separado.

Sempre com aquele olhar, entre a "gozação" e a expectativa, ela o abriu e

silenciosamente acenou com a cabeça em direção a ele. Aos poucos, através de

suas expressões e de intensa troca de olhares, compreendi tratar-se de um

convite para que eu a ensinasse a usá-lo. Eu ficava cada vez mais curiosa e

intrigada, inclusive por testemunhar a liberdade que ela demonstrava naquela

sessão de poder escolher, usar a terapeuta, o corpo, o espaço e o tempo. Aos

poucos, ela se envolveu de tal forma com a atividade – passível de ser feita

individualmente – que pareceu se esquecer da minha presença.

Lembrei-me, então, do paradoxo de Winnicott sobre a capacidade da

criança de estar só na presença do outro (mãe). Segundo Winnicott (1958), a

capacidade de estar só depende da experiência de poder estar só na presença de

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alguém, ou seja, só ocorre dentro e a partir de uma relação de confiança. Passei a

pensar no meu papel como o de alguém que, em momentos como esse, apenas

deveria acompanhá-la, participando do seu processo como testemunha.

No final da sessão, Carol disse que não ia mais trazer o "bebê

moranguinho", que ele só fazia coisa errada, enquanto o abraçava e levava com

ela.

Uma coisa era certa: a hipótese de que Carol permanecia num lugar por

onde o prazer da aprendizagem não podia circular e que dava uma de boba para

me fazer de boba não mais se sustentava. Se assim fosse, ela não teria escolhido

o jogo, nem teria o envolvimento e interesse que demonstrou em relação a ele.

Algumas Considerações Até aqui é possível perceber que o movimento que aconteceu no campo

intersubjetivo, por um lado, levou Carol a sair do lugar por onde o prazer da

aprendizagem não circulava. Por outro, levou a terapeuta a usar um dos

paradoxos de Winnicott e a passar a exercer a função de testemunha,

distanciando-se, assim, da atitude técnica mais diretiva preconizada por Paín.

O curioso é que, na época, era possível, valendo-me também do

pensamento de Paín, compreender o movimento de Carol. Nós duas podíamos

ficar do mesmo lado, como se estivéssemos na mesma margem de um rio,

olhando para um mesmo objeto, surgindo, nessa relação triangular, o interesse e a

curiosidade – situação similar à do bebê que começa a olhar na mesma direção do

olhar da mãe, porque quer dividir e compartilhar com ela o objeto de seu olhar e

interesse. Na época, escrevi: "Em outras palavras, isso equivale a dizer que a

criança deixa de ser objeto de desejo para se constituir em sujeito desejante"

(PARENTE, 2000, p. 81).

Dados provenientes das sessões de acompanhamento familiar reforçavam

a compreensão de que o lugar ocupado, até então, por Carol, relacionava-se à

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forma de equilíbrio encontrada para sobreviver no triângulo edípico e, nesse

sentido, para salvar a pulsão (PAÍN).

Quando fechei o contrato terapêutico, combinei sessões de

acompanhamento quinzenais com a família, o que não aconteceu, porque sempre

havia algo que dificultava sua vinda. Desde os primeiros contatos, fui constatando

a dificuldade de a mãe aceitar o desenvolvimento da menina e o gradual

afastamento do pai, que, quando vinha às sessões de acompanhamento familiar,

literalmente dormia.

Eu me indagava: Por quê? O que levaria uma mãe a negar a evolução da

própria filha? Não seria essa uma maneira de assinar o atestado do seu próprio

fracasso como mãe? Se pensasse a partir de Klein, de fato, teria que reconhecer

que ela poderia estar atacando a sua percepção, pela dificuldade em reconhecer

que a terapeuta poderia estar fazendo algo de que ela não fora capaz: ajudar a

própria filha. Teria que reconhecer que a pulsão de morte estaria operando à

medida que ela se rendia à própria inveja.

E o pai, que dormia nas sessões a que comparecia e sofria de insônia em

casa? Usando Klein, teria que reconhecer que havia uma negação e um ataque de

tal ordem que ele parecia evitar qualquer vínculo verdadeiro com as questões da

própria filha.

Um outro episódio significativo ocorrido mais tarde, quando um trabalho da

menina foi elogiado na escola, confirmou, mais uma vez, a dificuldade da mãe em

aceitar a evolução da filha, pois ela duvidou de que Carol o tivesse feito. O mesmo

aconteceu quando a garota demonstrou o desejo de ficar bonita, colocar brincos,

mudar seus óculos, que constituiu um dos momentos marcantes de sua mudança

de uma posição de "bebê moranguinho" para a de menina–flor, como veremos na

próxima estação.

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Ao longo do atendimento, fui confirmando a impressão inicial de que o casal

parecia usar Carol para se manter junto e ocupado e, aparentemente, envolvido

com a filha. Não era à toa que a menina parecia ser a depositária das brigas,

acusações e desencontros dos pais. Pior, eles a usavam para justificar seus

desafetos.

Note-se que os dois dispositivos usados pela analista que operaram e

tiveram efeito foram, num primeiro momento, o corte da repetição do tipo de

vínculo familiar na transferência e, num segundo momento, o caminhar de uma

atitude diretiva para a de testemunha. Isso foi possibilitando o desenvolvimento

dos mecanismos das dimensões afetiva e cognitiva do pensamento de Carol, bem

como a comunicação e expressão da dramática na qual ela estava aprisionada, o

que permitiu a sua saída do lugar por onde o prazer da aprendizagem não

circulava.

Nesse atendimento, compreendi que a inibição era não apenas fruto de um

conflito pulsional, mas também resultado da ausência da presença psíquica (falha

ambiental) de um outro.

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Estação 4. Compreendendo Carol à luz de Paín e Winnicott

"Nem quero ser estanque como quem constrói estradas e

não anda. Quero no escuro como cego tatear estrelas

distraídas". Zeca Baleiro32.

Neste capítulo, veremos, por um lado, como a relação intersubjetiva que se

estabelecia no campo terapêutico e a forma paradoxal de Carol se relacionar com

os objetos oferecidos nas sessões, levavam a terapeuta, cada vez mais, a usar a

noção de uso de objeto e fenômenos transicionais, provenientes da teoria da

criatividade de Winnicott. Por outro lado, foi se revelando a situação de intenso

sofrimento psíquico em que a menina se encontrava devido à impossibilidade de

poder brincar de forma espontânea e, assim, usar seu potencial, seu corpo, o

tempo, o espaço e os objetos a ela oferecidos.

Atendimento terapêutico propriamente dito No primeiro encontro após as férias, eu estava curiosa. Será que Carol viria

com a sua boneca? Pois bem, além de não trazê-la, a menina tinha outra atitude:

animada, interessada, foi logo escolhendo um dos jogos já conhecidos. Durante

essa e várias outras sessões, ela aceitava e pedia esclarecimentos, respeitava

limites e queria entender as regras, envolvendo-se com jogos que favoreciam o

desenvolvimento da dimensão cognitiva. Mostrava que podia lembrar-se de fatos

acontecidos em outras sessões. O aumento de confiança na relação e o

envolvimento com os objetos oferecidos eram evidentes. Percebia-se assim uma

diferença considerável no tipo de atitude de Carol em relação à terapeuta e aos

objetos, destacadas pelos grifos acima, em oposição ao período anterior.

32 Música: minha casa. CD Líricas – MZA/Universal Music, 2000.

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Evidentemente, trabalhava numa linha psicopedagógica, buscando o

desenvolvimento do aspecto cognitivo, isto é, das dimensões do corpo e da

imagem. Pela assimilação ocorria a criação de novos esquemas de ação e pela

acomodação acontecia a internalização de imagens e do exercício da lógica. O

objetivo era "devolver à menina a dimensão de seu poder: poder escrever, poder

saber, poder fazer para poder dar crédito às potencialidades de seu ego". (PAÍN,

1985, p. 77) Jogos de se esconder ou esconder objetos, para depois achá–los,

eram também comuns nessa fase, ao lado de outros escolhidos por ela, como

pega-varetas, Ciclovia, Solta bichos, Cara a Cara, jogo-da-velha, forca etc. As

sugestões técnicas de Paín norteavam o projeto terapêutico e permitiam graduar

as propostas de atividades, segundo o desenvolvimento das possibilidades

cognitivas de Carol, que demonstrava grande interesse e envolvimento com elas.

Entretanto, não se tratava de um movimento linear e progressivo. Nos

períodos em que Carol ousava e experimentava mais, ora parecia feliz com suas

conquistas, ora voltava a criar a mesma atmosfera de suspense e segredo, ora

parecia bastante assustada. O brilho do olhar de Carol, os pequenos e sutis

"sinais" que ela expressava, eram o tempo todo um sinalizador para mim,

possibilitando as intervenções. Por exemplo, às vezes, Carol parecia desligada e

depois me dava um sinal de que estava ligada. Outras vezes, ocorria o oposto:

parecia atenta, mas, por algum sinal, deixava-me perceber que tinha estado no

mundo da lua. Gostava quando eu conseguia verbalizar e discriminar a diferença

entre essas situações para ela. Brincando, às vezes, eu lhe dizia: Ah! Querendo

brincar de dar uma de boba, para saber se eu estou atenta, né? Ela sorria feliz.

Note-se que essa intervenção é bem diferente de uma outra que poderia

interpretar que a menina dava uma de boba para fazer alguém de bobo. Na

primeira, assinala-se - o que não é pouco - um campo de experimentação e

investigação por meio de um brincar, o que abre ainda mais a criação do espaço

de jogo. Note- se ainda que a terapeuta está tão implicada no movimento quanto a

criança, o que reafirma a sua participação e interesse genuínos, diminuindo,

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inclusive, o clima de perseguição. Era gratificante observar como os olhinhos de

Carol brilhavam naqueles momentos em que se sentia compreendida, mostrando-

se, cada vez mais presente, envolvida e interessada.

Logo surgiria um outro tipo de jogo que evidenciava, ainda mais, o aumento

na relação de confiança: a menina me pedia para ficar fora da sala de atendimento

para que eu tentasse achar algum objeto que ela escondera. Hoje, diria que ela

estava lidando com a questão da ausência na presença e vice-versa, interpondo

espaço e tempo entre nós, apropriando-se do espaço físico e da presença da

terapeuta na sua ausência.

Ressalte-se a diferença de uma interpretação à moda de Klein em que se

poderia assinalar o ataque na forma de roubo do espaço da terapeuta.

Na esteira da técnica sugerida por Paín, numa situação ocorrida algum

tempo depois da abertura desse espaço de jogo, interesse e curiosidade de Carol,

apresentei-lhe um jogo semelhante a outros que ela sempre usava e gostava

muito. Usando Paín, o objetivo da minha intervenção era provocar o desequilíbrio,

o que permitiria o surgimento da falta e o caminhar da menina em direção ao

resgate do prazer da aprendizagem.

Quando apresentei o jogo para Carol, ela não só não se envolveu com ele,

como novamente começou a criar o tal cenário de confusão, segredo e dúvida.

Assinalei que talvez ela resistisse a continuar desenvolvendo-se para ficar como o

"bebê moranguinho". Seu olhar desvitalizou-se e pela primeira vez ela saiu da sala

de atendimento dizendo que ia ao banheiro.

Hoje posso nomear o incômodo sentido na época, enquanto a esperava e

indagar-me se a interpretação feita sobre a sua resistência em querer

desenvolver-se não teria a ver com a minha decepção por ela não ter se envolvido

com o jogo que eu havia lhe apresentado. Lembrei-me do movimento das duas

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sessões antes das férias, descrito no capítulo anterior, em que além de vir com a

boneca ignorou o jogo que eu lhe oferecia, impôs o seu e escolheu um, a partir de

um gesto que poderia ser visto como de oposição e resistência.

Cada vez mais me dava conta de que a sugestão de Paín, no sentido de

cortar a repetição do vínculo familiar na transferência, caracterizava uma atitude

mais diretiva do terapeuta, opondo-se ao que seria o exercício da função de

testemunhar e acompanhar o processo da criança como em Winnicott.

Uma outra observação interessante é que, embora na época não me desse

conta, estava lidando com a idéia de pulsão de morte e de vida, se considerar a

primeira como objetalizante e a segunda como desobjetalizante. Assinalar que,

talvez, ela resistisse a continuar desenvolvendo-se para ficar como o "bebê

moranguinho", enfatizava o não suportar lidar com o conflito e a tentativa de

reduzir o nível de tensão a zero (pulsão de morte). Observações desse e de outros

atendimentos foram mostrando o aspecto de desvitalização do olhar e a

expressão de desesperança das crianças com inibição diante de assinalamentos

como esses.

Na volta da sua ida ao banheiro, Carol propôs que fizéssemos um jogo – o

jogo da múmia. Não só concordei, como pedi que me ensinasse. Ela fecharia ou

tamparia seus olhos para não enxergar e não pensar. Só faria sons cavernosos e

de olhos fechados, tentaria me tocar. Quando isso acontecesse, eu também me

transformaria em múmia. Em outras palavras, “o contato” mumificava.

Temos, aqui, de forma belamente colocada, a metáfora de uma relação: o

olhar de medusa congela e paralisa não apenas as trocas na dimensão da relação

intersubjetiva, humana, mas também a da possibilidade de pensar. O jogo, além

de expressar a forma como Carol se sentia aprisionada em determinado lugar

(PAÍN), também revelava o intenso sofrimento psíquico que a mantinha em estado

de paralisia, sem poder brincar, usar a imaginação, os órgãos dos sentidos, seu

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corpo e, assim, comunicar-se e estabelecer relações com o mundo de realidade

externa. Sabemos que sem ação e troca com os objetos, não ocorre a atualização

e o desenvolvimento da rede cognitiva.

Com Carol também aprendi que, às vezes, um afastamento, a falta ou

atraso do paciente numa sessão, poderia ser a forma encontrada para sustentar o

campo de experiências compartilhadas, não sendo nem a expressão de um

ataque ao vínculo, nem o medo de uma retaliação (KLEIN). Note-se que, saindo

da sala, Carol pôde manter a presença da terapeuta na sua ausência, mantendo

viva a sua imagem no dentro e no fora do espaço físico. A menina não parecia

mais ser lançada num “buraco negro”, vivência sem tempo nem espaço, onde não

podia brincar, nem sonhar, nem usar seu corpo e órgãos dos sentidos.

No caso, sair da sala constituiu um gesto que pôde abrir o campo de

comunicação significativa, à medida que a terapeuta sustentou a continuidade da

relação. Percebe-se com isso que o gesto da criança ao mesmo tempo afasta e

repudia a terapeuta, que se tornou estranha e invasora. Ao ter liberdade para sair

da sala e encontrar tudo como antes, Carol permitiu a comunicação da situação

através da criação do jogo da múmia. Seu gesto não caía mais no vácuo. Havia

um outro para quem ela podia endereçar uma comunicação. Por meio do jogo, ela

pôde expressar o sofrimento que a impedia de se desenvolver e se realizar como

pessoa.

Quando eu estava como múmia comecei a falar da escuridão, do medo e

da solidão presentes. Penso que fui dando voz à sua vivência. Abria-se ainda mais

o campo da comunicação significativa na experiência compartilhada. O término do

jogo da múmia se deu através de um toque mútuo em que voltávamos a ser

humanas, após o que ela quis brincar de luta, podendo usar vários objetos (corda,

cadeira, almofada), estabelecer algumas regras para determinar a separação de

campos etc. Ela podia usufruir mais livremente do tempo e do espaço que lhe

eram oferecidos, bem como dos movimentos do próprio corpo.

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Na sessão que se seguiu, Carol entrou animada, comentando que havia

levantado sem fazer barulho, para não acordar o "bebê moranguinho", que de fato

nunca mais compareceu concretamente na sessão.

Em seguida, fez o desenho de um passarinho preso numa gaiola. Do lado

de fora havia uma bomba perigosa na entrada de um caminho. Fez também um

desenho com tinta branca e vermelha, dizendo que era neve pintada com

manchas vermelhas. Muito perigosa! Quem chegasse perto morria. O último

desenho feito, nessa sessão, foi de duas borboletas separadas por um traço.

Vale assinalar que até então Carol, como geralmente acontece com

crianças com a mesma problemática, preferia jogos e objetos com formas

definidas, evitando contato com material sem forma (plastilina, argila, tinta etc.).

Seguiu-se um período de várias sessões em que ela lidou com situações de

separação demonstrando cada vez mais autonomia. Até que em determinada

sessão, fez dois desenhos querendo usar tinta. No primeiro desenhou naves

perigosas que soltavam bombas. No segundo, após dividir a folha no meio, disse

que havia, de um lado, uma cidade escura, onde as pessoas tinham medo e, de

outro, uma cidade clara: era o mundo feliz.

Quando foi lavar os pincéis, enxugou-os na toalha branca, e não na que

deveria ser usada para enxugá-los. Ao observar o seu olhar provocativo,

comentou: “Ah! Como o 'bebê moranguinho', né?" Ela disse rindo: "Ele sempre

gosta de fazer o que não pode".

Veja-se como a dimensão da agressividade começou a entrar em cena com

o aumento da confiança e como ela foi podendo botar “as manguinhas de fora”,

estudando o que acontecia no ambiente externo.

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Durante muito tempo, indaguei-me sobre o significado daquela boneca.

Penso hoje que, desde o início, ela apresentava por um lado uma dimensão

dissociada de Carol e por outro revelava a busca e esperança de poder ser

reconhecida e, assim, desenvolver-se através de um novo encontro. Indaguei-me

também se a boneca não era usada para repudiar o outro, quando este se portava

como um estranho invasor, pois ela comparecera na sessão em que eu de fato

tinha aumentado as minhas expectativas sobre o seu desempenho e tentado

apressar o seu desenvolvimento cognitivo. Comecei a pensar na boneca como um

objeto subjetivo, já que ela era usada para ganhar tempo, estudar e testar a

fidedignidade do ambiente e, principalmente, para não ter que se submeter ao

desejo do outro.

Na sessão que se seguiu, Carol entrou dizendo que havia deixado o "bebê

moranguinho" de castigo, porque ele estava malcriado e tinha aprendido a cuspir.

Foi até o armário, e pegou um jogo de montar. De forma apressada, começou a

montá-lo sozinha. Rapidamente pegou outro, chamando-me para montar junto.

Novamente não me esperou. Disse: “Pronto. Ganhei!”.

Do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, vemos aí, um

funcionamento do tipo hiper-assimilativo e hipo-acomodativo que caracteriza,

segundo Paín (1985), o problema de aprendizagem como sintoma. Este é o

caminho de evolução no tratamento do quadro de inibição. A função cognitiva se

desenvolve, mas sob a égide da dimensão subjetivante, cuja lei é o desejo. Fui

aprendendo com Carol e outras crianças que é preciso que seja assim, o que foi

me levando, aos poucos, a reconhecer a importância do processo de regressão à

dependência e ao paradigma de mãe suficientemente boa (WINNICOTT, 1945,

1960).

Depois, Carol começou a rabiscar a mesa num movimento ao mesmo

tempo "disfarçado e provocativo", enquanto me observava com o mesmo olhar

entre a "gozação" e a expectativa.

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Assinalei que ela parecia estar me provocando e que eu sabia que ela sabia

muito bem disso. Nós duas sabíamos. Ela sorriu levemente. Depois, pegou uma

folha de papel, onde desenhou duas borboletas separadas. Ela vinha

desenvolvendo, cada vez mais, a capacidade de discriminar as suas próprias

ações das dos outros.

Hoje diria que a agressividade vai podendo ser usada de forma integrada à

ação para inscrever o gesto e se realizar no mundo, à medida que um processo de

separação, vai acontecendo. Carol, às vezes, ficava assustada quando podia

repudiar ou apossar-se de algo. "A integração traz consigo a expectativa de um

ataque (...).A reunião dos elementos do self associada à constituição de um

mundo exterior produz por algum tempo um estado que poderia ser rotulado de

paranóide"" (WINNICOTT, 1990, p. 141). Através do atendimento de Carol e

outras crianças com inibição observei que isso é tanto mais verdadeiro quanto

mais tardiamente acontece. Note-se que o uso da "boa" agressividade, ou seja,

aquela que não se confunde com destrutividade, permite o desenvolvimento da

capacidade de discriminação, que é a base do processo de aprendizagem formal.

Em todos esses movimentos, é possível reconhecer a idéia apontada por

Winnicott (1975) de que ao longo do processo de desilusão gradativa do bebê, é

preciso a oposição do meio, para que a agressividade entre em cena. À medida,

que surge um lado mais ativo da menina e sua agressividade vai surgindo, ela vai

querendo deixar sua marca no ambiente. Assim acontece a passagem do estágio

de "relação de objeto para a de uso de objetos", o que vai permitindo uma

mudança em termos de princípio de realidade. Isso será aprofundado no

atendimento de Eric, o Homem-Aranha.

Outra tomada de sessões ocorridas mais adiante, mostra como Carol

começou a transitar entre e nos diferentes espaços através do brincar.

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Em determinada sessão, ela disse que ia me mostrar uma coisa que tinha

aprendido na escola, durante a aula de artes. Misturou algumas tintas num papel,

depois o dobrou, apertando os dois lados. Ao abri-lo, apareceram manchas com

formas. Enquanto colocava o papel para secar disse que era uma cidade cheia de

morcegos e que lá tinha um morcego que vivia sozinho, que podia até morrer de

tanto medo que tinha dos outros que, por sua vez, também, tinham medo dele.

Em seguida, pintou uma folha com tinta preta, dizendo que ia fazer a

escuridão. Enquanto passava o cabo do pincel, fazendo sulcos na tinta, disse que

estava fazendo a cidade ficar mais clara.

Quando foi lavar tudo, pareceu assustada ao ver que tinha sujado a blusa

da escola e disse que a mãe ia ficar brava. Foi até o banheiro, para limpá-la.

Lembro que já havia solicitado à mãe de Carol que a trouxesse com roupas velhas

e adequadas para o tipo de atividade que vínhamos realizando. Não entendia por

que ela a trazia pronta para ir à escola, embora voltasse com a menina para

almoçar em casa, antes de ir para lá.

Ao voltar para a sala de atendimento, Carol quis brincar. Ela seria a mãe.

Eu, a filha de quatro anos que ia ficar vendo TV, enquanto ela (mãe) saía para

comprar brinquedos de montar, de números e palavras, que era o presente que a

filha gostaria de ganhar.

Vemos a mudança e a ampliação na natureza no modelo de relação. Carol

não fala mais por meio de um objeto subjetivo (bebê moranguinho) nem de um

modelo de relação, cuja base é a sujeira e o desencontro e nem faz o papel de

uma mãe brava e retaliadora. Na sua dramatização, ela expressa a possibilidade

de um movimento de busca, encontro e prazer com alguém continente.

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Na sessão seguinte, continuou querendo brincar de mãe e filha. Mas,

diferentemente das vezes anteriores, quando ela determinava o tipo de filha que

eu deveria dramatizar, disse que eu podia ser uma filha do jeito que eu quisesse.

Começou, então, a representar uma mãe que duvidava o tempo todo e não

largava do pé da filha, o que nos permitiu conversar sobre a sua dificuldade de ter

mais autonomia e fazer amizades.

Veja-se que foi ela quem me autorizou a dramatizar uma filha do jeito que

eu quisesse, porque, até então, ela era a diretora da cena e determinava como e o

quê eu deveria ou não fazer. Mais tarde relacionaria e compreenderia a

necessidade de crianças com inibição que sofreram invasões desde muito cedo de

poderem ter o outro sob seu controle onipotente e usufruírem situações de

continuidade do ser. (WINNICOTT, 1945, 1960).

Mais adiante, Carol dramatizou uma mãe que lia estórias para a filha. Fiquei

impressionada com o envolvimento, interesse e fluidez da menina, durante a

leitura. No início dessa mesma sessão, a mãe havia tentado entrar na sala. Isso,

às vezes, ocorria e eu via – diferentemente de hoje – como uma invasão da mãe.

Nos últimos 10 minutos, quando então a mãe entrou, contou sobre um

episódio que "reforçava a inadequação" da filha. Carol, então, pegou o livro

tentando mostrar-lhe a sua conquista na leitura. Isso não pareceu interessar à

mãe que a apressava para ir embora, alegando estarem atrasadas.

Não quero generalizar, nem estou dizendo que Carol era assim ou assado

por "culpa" da mãe. Mas um fato era inegável: ela carecia da presença de um

"bom" olhar que sustentasse o seu desenvolvimento.

Fazia sentido, para mim, a letra da música de Suely Costa e Abel Silva:

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Só o que me cega / O que me faz infeliz

É o brilho do olhar que eu não sofri.

As sessões alternavam-se: Carol, às vezes, queria trabalhar com jogos de

classificação e de azar, noutras com atividades plásticas e psicodramáticas. Estas

últimas permitiam que a menina expressasse, por um lado, a solidão, tristeza,

medo, confusão, paralisia e sujeira associadas com a escuridão e, por outro, a

alegria, felicidade e beleza associadas com a claridade, luz e movimento. Ela

parecia continuar resgatando vivências anteriores ao início do andar e enxergar

em torno dos dois anos, época em que começou a usar óculos.

Havia uma diferença sutil nas suas diferentes formas de expressão e de

ação, seja ao desenhar, pintar seja ao contar sobre fantasmas bravos que

assustavam e deixavam crianças apavoradas. O mesmo acontecia quando

desenhava cidades e casas que entravam em curtos circuitos que deixavam todos

na escuridão. Entretanto, na relação comigo, já não ficava mais tão assustada e

podíamos conversar sobre sua produção e sobre os sentimentos dos seus

personagens. Em suas dramatizações apareciam cada vez mais mães e

professoras continentes que ajudavam o desenvolvimento da criança.

Naquela época, ela e a mãe passaram a se referir a experiências novas:

Carol podia ficar com o irmão sozinha em casa e aceitar sua ajuda; podia ser

convidada e ir a aniversários. Paralelamente, demonstrava o desejo de querer

ficar bonita: quis furar as orelhas para colocar brincos, mudar seus óculos e cortar

o cabelo.

Todo esse movimento coincidiu com a época de seu aniversário, quando

pediu, e ganhou, uma outra boneca de nome Menina-Flor. Talvez esse momento

simbolizasse, e foi nessa linha que conversamos, a morte da menina Bebê

Moranguinho e o nascimento de uma outra Carol – a Menina-Flor, que podia

confiar em si mesma e nas pessoas, queria crescer e se desenvolver. Transcrevo

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suas palavras ao referir-se, então, ao "bebê moranguinho": "malcriado, gostava de

cuspir nos outros, fazer coisas erradas. E, também, sujava a calcinha, porque não

sabia se limpar direito".

Na mesma época, ela trouxe também dois ursinhos de sua casa e, usando

um carrinho do consultório, dramatizou um pai e um filho que passavam por

muitas aventuras, sendo bem-sucedidos. Na sessão seguinte, trouxe mais um

ursinho, colocando-o no banco de trás do carrinho. Disse então que era o pai, a

mãe e o filho.

Como nas sessões que se seguiram, brincou usando vários animais, em

situações em que sempre havia um que fazia shows para o casal de pais,

compreendi que talvez ela estivesse dramatizando a situação de exclusão que

continuava a viver na família. Talvez, percebesse a relação de proximidade e o

bom olhar, especialmente do pai para o irmão, tanto que pareciam formar uma

dupla, e como nem o pai, nem a mãe ou o irmão formavam par com ela.

Bem, mas acompanhemos a finalização do atendimento de Carol. Sua mãe

comunicou-me que não iria mais trazer a menina para suas sessões. Isso porque

ela já estava bem na escola e o pai estava com problemas econômicos. Talvez,

tivessem até que mudar para um bairro muito distante. Pela primeira vez, vi Carol

dizer alto e em bom som que se ela saísse dessa escola, não estudaria em

nenhuma outra.

Nas três últimas sessões concedidas pela mãe para a finalização do nosso

trabalho, Carol contou sobre as brigas entre seus pais. Embora ela não fosse mais

o motivo delas, continuava a ser envolvida pois, às vezes, tinha que ceder seu

quarto para o pai e dormir com a mãe. Na época, ela falava muito de medo e

insônia, contando como era a noite na sua casa. Desenhava fantasmas bravos,

que gostavam de assustar crianças.

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Numa dessas sessões, a menina criou um jogo bastante interessante que,

aliado à sua atitude de se recusar a mudar de escola, levou-me a pensar que

Carol já podia marcar uma posição própria, defendendo-se de invasões externas,

talvez, pela possibilidade conquistada de transitar entre espaços diferentes – o da

casa, o da escola e o da terapia.

O jogo era o seguinte: ela fazia dois esconderijos usando caixinhas de

papelão como tampas. Em um deles, ela esconderia um objeto enquanto eu

permaneceria de olhos fechados e de costas para ela. Em seguida, eu teria que

adivinhar qual esconderijo estava vazio. A minha aposta nunca se realizava, já

que ela colocava sempre um objeto embaixo dos dois esconderijos.

Embora essa questão tenha sido levantada na época do atendimento de

Carol, só muito tempo depois é que comecei a pensar sobre esse complexo e

sofisticado jogo que geralmente surge nas crianças quando se abre o campo

transicional no qual a Função da Ignorância, que permite fazer observações e

indagações, começa a operar.

Na época, Carol, após divertir-se muito vendo que eu nunca acertava,

mostrou-me que havia um objeto debaixo dos dois esconderijos, dizendo que ela

era mesmo uma mentirosa e gostava de enganar os outros. Achei importante

deixar claro que se ela quisesse me enganar, de verdade, não teria me contado.

Só depois é que me daria conta de que ela fazia um exercício da “boa”

agressividade, necessária para a inscrição do gesto no mundo, para se apossar

de um escudo que permitisse se defender de invasões e, ao mesmo tempo,

conquistar sua própria espada para afastar intrusos, marcando e defendendo

posições.

Na última sessão, ela desenhou uma menina punk, dizendo que ela possuía

dois lados: em casa era boazinha e obediente e, tanto na rua, como na escola,

tinha amigos e era diferente. A meu ver, isso confirmava a hipótese da capacidade

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conquistada de transitar entre e nos espaços diferentes. E mais, marcava a

possibilidade de usar a "boa" agressividade, para discriminá-los e poder cuidar de

si mesma.

Algumas Considerações A propósito: a hipótese inicial levantada na primeira sessão em que Carol

veio com sua família, confirmava-se. Como disse, os pais e o irmão eram bonitos

e bem cuidados e ela feia, descabelada, com a tal boneca na mão e os óculos que

pareciam enfeá-la ainda mais.

A partir deste atendimento e do de outras crianças com inibição, fui

compreendendo como, muitas vezes, os pais apresentam o filho de uma forma em

que ele destoa da família, o que revela já a sua situação de exclusão. Isso os

lança numa situação de isolamento psíquico. Adianto que a percepção desse

destoar se dá por uma experiência de impacto estético, ou seja, pela ressonância

que a composição física e psíquica da criança inserida na família, naquele

momento, provoca no terapeuta.

Aproveito para salientar que, ao trazer várias avaliações com diagnósticos

graves e prognósticos desfavoráveis (deficiência mental, psicose, comportamentos

fóbicos e autistas etc.), os pais geralmente assinalam a gravidade e a

impossibilidade de uma mudança dessa situação. Além de tratar a criança como

uma coisa, um objeto, a situação de impotência é mantida e embora os pais

pareçam procurar ajuda, na verdade, muitas vezes, marcam a impossibilidade da

sua concretização, o que acaba mantendo o precário equilíbrio conseguido por

todos, até então.

Por isso, a meu ver, uma das funções do terapeuta que trabalha com essas

crianças é a de re-apresentá-las aos pais. Fez sentido, para mim, a idéia de Paín,

durante uma supervisão, de que elas sentem-se ilegítimas no desejo dos pais,

situação que as leva a ocupar um lugar marcado, como vimos no atendimento de

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Carol. E, paradoxalmente, para sobreviver, ficam aprisionadas nesse lugar a elas

destinado. Aos poucos, fui me dando conta da participação do falso-self

(WINNICOTT, 1945, 1960) no funcionamento psíquico de crianças com inibição33,

tema que será aprofundado na estação 5.

Note-se que a passagem de Paín para Winnicott não constituiu uma ruptura

tão brusca e marcada como a anterior de Luzuriaga (Klein) para Paín. Em

determinados momentos do atendimento de Carol, pude usar a noção de objetos e

fenômenos transicionais de Winnicott para flexibilizar determinadas noções de

Paín, especialmente a de Função da Ignorância.

Mais do que uma ruptura, houve uma ampliação do campo, já que a

inibição seria compreendida não apenas como fruto de conflitos pulsionais, mas

também de falhas do ambiente no atendimento às necessidades primitivas da

criança. Com Carol, fui me dando conta de que a Função da Ignorância operava e

permitia o desenvolvimento da rede cognitiva e o seu casamento com a rede

afetiva, à medida que o campo transicional se abria para ela e para mim. Assim,

fui podendo operacionalizar a contribuição de Paín através de Winnicott. Descobri

que era no movimento paradoxal e ambíguo que caracteriza o campo onde

acontece o brincar, que a situação de aprendizagem significativa acontecia. Aliás,

eu mesma podia usufruir disso durante as supervisões com Paín. Reconheço que

só se pode fazer pelo outro o que podemos viver na relação com alguém. Usufruir

isso é condição para exercer determinadas funções, já que elas são introjetadas a

partir do movimento presente no campo de experiências compartilhadas numa

relação de confiança. É isso que permite transitar no jogo de um e de três.

Aproximar-se, distanciar-se na medida justa e no tempo certo, dão condições para

que um jogo espontâneo tenha lugar, favorecendo a abertura do campo do

conhecer e aprender.

33 Aprofundo essa noção também nos capítulos 3 e 4, respectivamente, o atendimento de João - o Porco-Espinho e de Cacá - a Cobra-Naja em Pelos caminhos da ilusão e do conhecimento, 2003.

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A partir de Winnicott foi possível compreender que há diferentes graus de

inibição intelectual e que esta ocorre como resultado da falha ambiental, ou seja,

devido à ausência da presença psíquica do outro ao longo do seu processo

maturacional e não apenas como fruto de conflitos pulsionais, seja pelo

predomínio da pulsão de morte (KLEIN), seja pelo da pulsão de vida (PAÍN).

Quando mais cedo o meio ambiente falhar no atendimento das primeiras

necessidades do bebê, mais cedo poderá ocorrer uma situação de não

desenvolvimento do potencial intelectual, a qual poderá ir desde uma situação de

quase paralisia até uma outra em que paira a ameaça de um colapso da

inteligência.

O fato de a defesa intelectual não se constituir ou falhar, indica que a

criança não pôde desfrutar de experiências constitutivas que permitiriam o

surgimento da memória (criada a partir das experiências na mutualidade aliada ao

uso da capacidade imaginativa). Daí a necessidade de favorecer um processo de

regressão a esse estágio de dependência, buscando colocar em marcha as

potencialidades "congeladas" do seu vir-a-ser.

A teoria sobre a criatividade de Winnicott ancorada na noção de uso de

objeto e fenômenos transicionais ampliou o meu foco de observação e

intervenção, permitindo encontrar respostas e sentido para algumas noções de

Paín, entre elas a da Função da Ignorância. Pude também aproximar ainda mais

as duas vertentes de atuação clínica como psicopedagoga e psicanalista e

estabelecer relações entre as contribuições de ambos os autores, tendo no

horizonte a questão do desenvolvimento do brincar, pensar, conhecer e aprender.

O foco também se ampliou, já que não era mais possível pensar a clínica da

aprendizagem, sem considerar a clínica do desenvolvimento psíquico.

Vale ressaltar a diferença da contribuição de Winnicott e a de Paín, que

focaliza as relações do sujeito com o objeto de conhecimento e ancora-se numa

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compreensão intrapsíquica segundo um modelo pulsional e opera com noções de

desejo, falta e frustração. Pressupõe a separação entre sujeito e objeto desde o

início da vida.

Na sua perspectiva, o objetivo da intervenção seria resgatar o prazer da

aprendizagem devido à possibilidade de a criança encontrar um outro lugar,

tornar-se sujeito, protagonista e não somente objeto de desejo do outro. Sugere

uma atitude mais ativa por parte do terapeuta.

Já Winnicott (1945), como vimos, supõe um estado inicial de não-

diferenciação entre eu e não-eu, ou entre sujeito e objeto, sustentado pela

adaptação ativa da mãe que, basicamente, respeita o tempo de tolerância do

bebê, adaptando-se e suprindo as suas necessidades.

À medida que fui compreendendo que Carol adotava a máscara de boba,

especialmente em situações de fracasso, permitiu-me, também, aos poucos,

perceber que se tratava de uma defesa. Penso que foi aqui que comecei a fazer

uso do conceito de falso-self de Winnicott, reconhecendo a sua participação nos

casos de pacientes que apresentam sofrimento psíquico ligado às queixas de

problemas de aprendizagem. Fui compreendendo que, num ambiente inóspito, era

melhor ocupar esse lugar do que não ter lugar nenhum no mundo.

Os versos de Fernando Pessoa passaram a fazer cada vez mais sentido

para mim:

O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente /

Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.

Conforme fui utilizando as contribuições de Winnicott para acompanhar os

movimentos psíquicos de Carol e mergulhar com ela num campo de experiências

intersubjetivas, uma outra compreensão tornou-se possível.

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Fui fazendo outro tipo de intervenção, o que levou a menina a sair do lugar

ocupado até então. Isso foi levando a uma ampliação no campo de observação, já

que fui ficando atenta não só à relação intrapsíquica entre as dimensões

dramática e cognitiva do funcionamento mental de Carol, mas especialmente ao

contato humano que se criava entre nós no campo intersubjetivo.

A experiência com Carol abriu a possibilidade de que eu pudesse, mais

tarde, nomear comunicações dessa natureza, assinalando para as crianças com

severa inibição que eu podia compreender que elas sorriam e falavam com os

olhos, ouviam com a nuca etc. Isso foi me levando a reconhecer a importância da

função de testemunha do terapeuta - papel de espelho, participação do fenômeno

estético – WINNICOTT (1963a, 1967 a,1971a, 1971b, 1975) que, ao lado da

função de discriminação do analista, possibilita o início do longo processo de

constituição da ilusão de contato. E, posteriormente, de separação e constituição

das fronteiras entre o eu e o não-eu.

Poder inscrever o gesto aceitando o familiar e/ou repudiando o não-familiar

(invasão) além de inaugurar a possibilidade de estabelecer as fronteiras entre eu e

não-eu, permite o sentimento de autoria, condição para o desenvolvimento do

processo de apropriação criativa de conhecimentos.

Hoje, penso que muitas das atitudes de Carol que, na época eu não podia,

ainda, nomear e que me intrigavam, favoreceram a abertura do espaço de jogo, de

uma área de experiências na mutualidade, sustentando a criação da ilusão e de

um brincar compartilhado, organizado pelo movimento paradoxal que caracteriza o

campo transicional.

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II. BALDEAÇÃO

Repensando o objeto e contextualizando novas questões

Nos capítulos anteriores, na busca de compreender o funcionamento

psíquico das crianças com inibição, focalizei determinados momentos do

atendimento de Carol, estabelecendo um diálogo com as concepções presentes

nas abordagens de Klein, Paín e Winnicott. Na Estação 3, confrontei a concepção

de Luzuriaga desenvolvida na perspectiva Klein-Bion e a de Paín, afastando-me

da concepção da primeira que opera a partir da defesa do predomínio da pulsão

de morte no funcionamento mental. Na Estação 4, estabeleci uma aproximação

entre Paín e Winnicott, autores que rompem com a crença na pulsão de morte e

reconhecem a importância de considerar dados do desenvolvimento e do

ambiente da criança no diagnóstico e no atendimento.

Assim, foi possível operacionalizar e flexibilizar a noção de Paín sobre a

Função da Ignorância por meio da teoria da criatividade de Winnicott ancorada na

noção de objetos e fenômenos transicionais. Foi possível, também, reconhecer a

partir do atendimento de Carol, que a inibição seria fruto não apenas de um

conflito pulsional (PAÍN), mas também resultado de uma falha do ambiente em

atender as primeiras necessidades da criança (WINNICOTT).

No caso de Carol, observei que seus pais não tinham fantasia de cura, seu

discurso era organizado pela dúvida em relação à existência do potencial

intelectual da menina e acompanhado de uma alta carga de intensidade

dramática. Observei, também, troca mútua de acusações entre eles. Além disso,

as primeiras relações entre mãe e criança foram marcadas por problemas que

começaram muito cedo, nos dois primeiros anos de vida da menina. Embora não

lesivos, esses problemas foram supervalorizados ou negados pelos pais, o que

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provocou graves desencontros na relação mãe-bebê, entre o casal e, também, na

dinâmica familiar.

Sabemos que há crianças que nascem com problemas semelhantes, mas

esse desencontro entre pais e filhos não acontece, assim como há situações em

que mesmo sem esse tipo de problemas, a criança pode ser olhada como não

legítima, como veremos no atendimento de Eric. Paín e Winnicott reconhecem a

importância do olhar da mãe na história de desenvolvimento da criança.

Quando o desencontro acima mencionado acontece, segundo Paín, o que

está em jogo é a questão da legitimidade da criança no desejo dos pais, e não o

fato de ela ter, ou não, problemas mais ou menos lesivos. O fato de um bebê ser

legitimado no desejo dos pais depende da capacidade do casal poder lidar com as

características do bebê, aceitando-as ou não. A aceitação permite a resignação e

a ressignificação frente a distância entre o bebê desejado e o encontrado. Dito de

outra forma, a resignação depende da capacidade de os pais poderem lidar com a

sua própria frustração34. Para exercer a função de espelho, é preciso que a mãe

se relacione com um bebê sem a distorção que a lente do desejo impõe. Quando

não há ressignificação, a mãe se relaciona com um filho imaginário. Assim, num

primeiro momento, durante o atendimento de Carol estabeleci uma aproximação

entre Paín e Winnicott em relação ao reconhecimento da importância do olhar da

mãe na história de vida da criança.

Uma indagação foi fundamental e apresentada na passagem de Klein para Paín: a inibição intelectual seria fruto de problemas de detenção no

desenvolvimento ou de conflitos intrapsíquicos?

34 Nesse sentido, o leitor poderá ler Esquema Corporal e Imagem do Corpo. In DOLTO, Françoise. A Imagem Inconsciente do Corpo. Trad. Noemi Moritz Kon e Marise Levy. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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Retomemos Luzuriaga. Ela não considera a inibição intelectual como uma

parada ou uma inibição do desenvolvimento e, sim, como fruto de processos

inconscientes que mantêm a criança isolada, evitando, assim, entrar em contato

com a realidade interna e a objetiva, o que provoca situações de conflito e

sofrimento. Além de assinalar que a contra-inteligência luta contra a percepção e a

compreensão do mundo objetivo e do interno, reconhece que os conteúdos vividos

como perigosos são muitos e os classifica, a partir de sua relação com a

rivalidade, a solidão e, especialmente, a inveja. O pensamento desenvolvido na

tradição de Klein está ancorado na noção de destrutividade, medo e culpa,

defende a existência de um ego desde o início da vida, e opera num modelo que

pressupõe a separação entre sujeito e objeto.

Retomemos Paín. Ela opõe-se à tradição kleiniana, criticando muitos

aspectos presentes nesse referencial como as noções de narcisismo e sadismo

primário, pulsão de morte etc., bem como a pouca importância dada aos fatores

ambientais – familiar, escolar e social. Ao assinalar que o não-aprender não era

apenas o contrário de aprender e tinha uma função tão positiva quanto o aprender,

Paín insiste na necessidade de entender o porquê e o para quê do problema de

aprendizagem, propondo considerar também os fatores ambientais no processo

diagnóstico das crianças.

Na compreensão kleiniana, a inibição seria resultado de conflitos pulsionais,

devido ao predomínio da pulsão de morte no funcionamento mental (LUZURIAGA,

1972), o que justificava a pouca consideração dada aos fatores ambientais.

Diferentemente, Paín, na tradição freudiana, entendia a inibição como fruto de um

conflito entre a pulsão de vida e as exigências da cultura, o que implicava uma

outra compreensão e intervenção diferente da de Klein.

A partir da experiência clinica, constatei a não conveniência de usar o

cenário kleiniano no atendimento de Carol, o que já vinha observando, também,

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em outros atendimentos de crianças com inibição e com outros tipos de

problemáticas. Isso porque o tipo de compreensão e de interpretações apontando

para os aspectos destrutivos da criança geralmente as lançava, ainda mais, num

estado confusional e numa situação de isolamento psíquico.

Retomemos alguns aspectos do atendimento de Carol. Num primeiro

momento, segui a sugestão de Paín no sentido de cortar a repetição do tipo de

vínculo familiar na transferência e adotei uma atitude mais diretiva. À medida que

um campo de confiança se abriu, Carol começou a inscrever um gesto pessoal de

oposição à atitude diretiva da terapeuta que foi se colocando mais no papel de

testemunha, acompanhando os movimentos da menina. Com a abertura do

campo de comunicação significativa, ela foi criando jogos por meio dos quais

estudava os efeitos de suas ações no ambiente, especialmente, na terapeuta. Nos

jogos e cenários criados por ela, mais do que mostrar, atuava seu drama pessoal,

fazendo a terapeuta de co-personagem deles. Num desses jogos, o da múmia,

ficou evidente a situação de paralisia e sofrimento psíquico em que a criança se

encontrava pela ausência da presença real de um outro ser humano que a olhasse

e com quem pudesse estabelecer uma relação de troca e comunicação

significativa, tema que será aprofundado na Estação 7.

Assim, fui reconhecendo que o vínculo de confiança e troca com Carol foi

acontecendo à medida que ocorria um encontro por meio do olhar e da

comunicação não-verbal da menina. Ser testemunha dos movimentos favorecia a

criação do espaço de comunicação significativa e permitia que a função da

ignorância operasse no pensamento da terapeuta. Poder ser vista e reconhecida

como autora dos jogos que criava sem ser mal interpretada por pais, escola ou

terapeutas, ser olhada e encontrada num lugar diferente, do que até então estava

acostumada, poder jogar com os símbolos criados até aquele momento, permitiu

que Carol pudesse tomar consciência da sua possibilidade de jogar e ser autora.

Aos poucos, ela foi se sentindo incluída na relação e dela participante. Digamos

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que a minha atitude foi norteada, por um lado, pela noção de função da ignorância

e, por outro, pelo que está belamente colocado na frase "É um sofisticado jogo de

esconder em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser

encontrado”. (WINNICOTT, 1963a, p.169).

Gostaria de usar o cenário bíblico, para refletir sobre a situação de exclusão

que observei na dinâmica da família de Carol e de outras crianças com inibição

que acompanhei35. Poderíamos dizer que Carol e crianças com essa

sintomatologia, geralmente, encontram-se identificadas no lugar de Caím.

Retomando o mito, vale lembrar que Javé teve bons olhos para os presentes de

Abel, o que provocou a inveja e a hostilidade de Caim, que não pôde dominá-las.

Depois de matar Abel, Caim foi amaldiçoado: expulso do solo fértil, andaria errante

e perdido pelo mundo, cultivaria o solo e este não lhe daria nada. Após admitir sua

culpa e tormento, diante de Javé, expressou o medo de ser perseguido e morto.

Javé, então, colocou-lhe um sinal para que, mesmo reconhecido, não fosse morto

por quem o encontrasse.

A partir do atendimento de Carol e de outras crianças com inibição, fui

compreendendo como, muitas vezes, os pais apresentam o filho de uma forma em

que ele destoa da família – o sinal de Caim – que já revela a sua situação de

exclusão. Isso geralmente o lança numa situação de isolamento psíquico. No

primeiro encontro com Carol, notei que os pais e o irmão eram bonitos e bem

cuidados e ela feia, descabelada, com a tal boneca na mão e os óculos que

pareciam enfeá-la ainda mais. A hipótese inicial levantada na primeira sessão,

pela terapeuta, de que Carol era a depositária das brigas e desencontros

familiares, bem como a de que encarnava o aspecto negativo, negado e

dissociado da família, confirmou-se. A percepção desse destoar deu-se por uma

experiência de impacto estético, ou seja, pela ressonância que a composição

35 Ver João - o Porco-Espinho e Cacá - a Cobra-Naja. In PARENTE, Sonia. Pelos Caminhos da Ilusão e do Conhecimento.

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física e psíquica da criança inserida na família, naquele momento, provocou na

terapeuta.

Hoje diria que por meio da boneca e da máscara de boba, a menina podia

manter um tênue contato com o mundo externo, estudar a reação do ambiente,

mapeá-lo e, assim, fugir dos perigos. O problema é que isso a afastava de um

contato verdadeiro com ela mesma e com o outro, o que foi me levando a

reconhecer a participação do falso self no funcionamento das crianças com

inibição intelectual, como vimos na Estação 4. Além disso, por meio da boneca,

Carol conseguia provocar efeitos e afetar, não apenas, o ambiente familiar e

escolar, mas também a terapeuta, o que foi me levando a reconhecer o que mais

tarde viria a nomear como fenômeno estético, tema que será aprofundado na

Estação 5, por meio do atendimento de Eric.

A leitura sobre a história de desenvolvimento de Carol à luz de Winnicottt

levou-me a compreender que os momentos iniciais de desencontro surgidos entre

os pais e a menina desde as primeiras situações de amamentação, no episódio de

convulsão até as dificuldades visuais associadas ao pequeno atraso no

desenvolvimento psicomotor, embora não lesivos, implicaram em paradas no seu

desenvolvimento, evidenciando a falta de condições ambientais favorecedoras de

um processo de aprendizagem.

A aproximação entre Paín e Winnicott, permitiu operacionalizar e flexibilizar

o conceito de Paín sobre Função da Ignorância. Ou melhor, à medida que se abriu

o campo dos fenômenos transicionais, a Função da Ignorância começou a operar

no pensamento da terapeuta, sendo possível, num primeiro momento, reconhecer,

que a inibição seria fruto não apenas de um conflito pulsional (PAÍN), mas também

resultado de uma falha do ambiente em atender as primeiras necessidades da

criança (WINNICOTT).

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Havia outros pontos importantes relacionados à clínica da inibição que

permitiam aproximar Paín e Winnicott e marcavam o distanciamento em relação a

Klein. Nem um, nem outro usam a interpretação como Klein. Seria mais adequado

usar a palavra “intervenções”. Uma outra diferença marcante é que tanto Paín

como Winnicott consideram a etapa de diagnóstico de fundamental importância, o

que não ocorre com os Kleinianos.

Entretanto, apesar dessas aproximações entre Paín e Winnicott, (ambos

rompem com a pulsão de morte, reconhecem a participação do ambiente etc.)

havia diferenças importantes. Vimos na Estação 4 que o pensamento de Paín em

relação ao processo de constituição do sujeito e da reconstrução de

conhecimentos ancora-se na noção de desejo que é investida no objeto e

pressupõe a separação entre este sujeito e o objeto. Já Winnicott (1945),

reconhece a existência de um estado inicial de indiferenciação entre mãe e bebê,

sustentado pela adaptação ativa da mãe que basicamente respeita o tempo de

tolerância, alimenta sua onipotência e supre as necessidades do bebê. Nesse

estado, ainda, não se poderia falar de desejo.

Uma outra diferença marcante é que, para Paín, o prazer da aprendizagem

poderia ser perdido ou pervertido no triângulo edípico, enquanto para Winnicott a

aprendizagem seria algo a ser conquistado na relação com a mãe suficientemente

boa a partir do respeito às determinadas condições maturacionais e ambientais ao

longo do desenvolvimento.

No início do atendimento de Carol, ficou evidente que ela não estabelecia

relação com o objeto a ser conhecido, ou melhor, que não havia relação de

triangulação, que caracterizaria o campo da aprendizagem. Carol ainda não havia

se constituído em sujeito desejante e não se relacionava com o objeto de

conhecimento. Portanto, o quadro de inibição, não poderia ser incluído no campo

psicopedagógico.

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Buscando aprofundar as diferenças acima mencionadas, recortei o

atendimento de Eric, um garoto, que segundo a escola, parecia viver isolado numa

bolha. Ele veio encaminhado por queixas de problemas de aprendizagem

apresentando um quadro de severa inibição intelectual. Esse atendimento permitiu

aproximar, ainda mais, as vertentes como psicanalista, cujo foco era voltado para

indagações sobre o desenvolvimento e/ou funcionamento psíquico das crianças

com inibição intelectual, e como psicopedagoga, voltada para a questão da

aprendizagem, entendida como processo de autoria de conhecimentos.

Várias indagações se me impunham: quais conceitos de Paín e Winnicott

seriam usados na construção dos dispositivos clínicos que permitiriam a abertura

do campo de relações entre Eric e o mundo de realidade externa? Será que a

aproximação entre Paín e Winnicott teria se constituído num momento de

passagem ou as contribuições dos dois autores estariam presentes nos

dispositivos clínicos usados atualmente?

Como disse na introdução, havia um incômodo por usar dois referenciais

com pressupostos incompatíveis do ponto de vista epistemológico. Mas a minha

indagação era: seria possível articulá-los na prática? Em caso afirmativo, será que

essas duas abordagens, se usadas durante um mesmo atendimento,

aconteceriam em tempos diferentes, concomitantemente, ou mesmo, em dois

tempos subseqüentes?

Havia, ainda, mais indagações, agora em relação às questões técnicas:

como pensar a dupla escuta proposta por Paín que opera num modelo

intrapsíquico e pulsional à luz do modelo intersubjetivo de Winnicott? Como

conciliar a atitude mais diretiva sugerida por Paín no sentido de focalizar as

relações da criança com o conhecimento e fazer o corte da repetição do tipo de

vínculo familiar na transferência e, ao mesmo tempo, acompanhar seus

movimentos não-verbais exercendo a função de testemunha até que um sentido

se constituísse?

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Como compreender o que a criança buscava comunicar por meio da

repetição? Com Carol e outras crianças, eu havia aprendido que desrespeitar um

movimento que não partisse delas, adotando uma atitude mais ativa e diretiva,

provocava uma ruptura na relação intersubjetiva, incrementando a situação de

resistência e paralisia.

E mais! A contribuição de Winnicott apontaria para uma ruptura ou para

uma ampliação no campo de observações e intervenções clínicas? Enfim, como

pensar a clínica do desenvolvimento e da aprendizagem à luz de Paín e

Winnicott?

Agora, posso retomar a viagem de volta com Winnicott, Paín e Eric.

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III. VIAGEM DE VOLTA: COMUNICAÇÃO SIGNIFICATIVA E JOGO TRIDIMENSINONAL NA CLÍNICA DA INIBIÇÃO INTELECTUAL Estação 5. Compreendendo Eric à luz do fenômeno estético

(...) O encontro com o objeto da cultura que presentifica o

estilo de ser de um determinado indivíduo é também

estabelecido pelo reconhecimento de si no objeto assinalado

pela experiência estética. Safra, 199936

Nesta estação, retomo o caminho trilhado após a defesa da dissertação de

mestrado37 e estabeleço um diálogo entre o atendimento de Eric e determinadas

noções provenientes do referencial de Winnicott que permitiram compreender a

participação do fenômeno estético como possibilidade de abertura do espaço de

comunicação significativa.

Diagnosticando Eric e sua família No primeiro contato com Eric, encontrei um garoto desvitalizado, triste e

desesperançado, que destoava da família, como Carol e tantas outras crianças

com inibição. Na entrevista inicial, os pais haviam contado que Eric tinha

quase sete anos, freqüentava a pré-escola e apresentava dificuldades de

adaptação escolar, comunicação e relacionamento. Segundo eles, em casa só

fazia o que queria, não aceitava, nem seguia "voz de comando", resistia ao

contato e preferia ficar sozinho. Não era competitivo, mas não gostava de

perder. Era desleixado e cuidava pouco de sua higiene corporal.

1 Safra, 1999, p. 143-4. 37Inibição intelectual: o paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade, defendida na PUC/SP, em 1996, sob a orientação do Prof. dr. Gilberto Safra.

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Pela escola, foi descrito como um garoto desligado, desatento, dócil,

"fechado no próprio mundo", com problemas de compreensão, expressão,

comunicação e linguagem. Evitava contato com crianças. Segundo a orientadora

da escola: "Eric não acumulava experiência e não conseguia transferir os

conteúdos aprendidos. Na sala de aula, às vezes, fazia desenhos de monstros e

em momentos inadequados. 'Parecia viver num mundo imaginário e dentro de

uma bolha', dizia a coordenadora da sua escola". (sic)

O pai de Eric não havia sido aceito pela família da mãe porque era mineiro

e, não alemão, já que essa é a origem da família. A gravidez que a mãe tanto

esperava, apesar do pouco interesse do pai, ocorreu quase 5 anos após o

casamento. Os pais relataram ter tido altíssimas expectativas em relação ao

menino, esperando inclusive, com esse nascimento, reatar relações com os avós

maternos, rompidas por ocasião do casamento, o que de fato acabou ocorrendo.

Segundo a mãe, Eric passou um pouco da hora de nascer, não pegou o

seio facilmente e não era guloso. "Muitas vezes, não queria mamar na hora certa

e depois ficava chorando" (sic). A partir do 3º mês, a mamadeira foi introduzida

porque era tempo de a mãe voltar a trabalhar. Os pais não ofereceram chupeta

para evitar problemas futuros, como demorar em deixá-la, estragar os dentes etc.

A mãe relata um acontecimento curioso: com quase dois anos, Eric

ameaçou jogar fora o seu crocodilo de estimação porque tinha brigado com a

mãe. Além de não impedi-lo, a mãe o desafiou a fazê-lo. Depois de jogá-lo, o

menino se arrependeu. A mãe explicou que havia coisas na vida irreversíveis. O

pai se mostrou preocupado com o aspecto emocional e interpretou a atitude do

menino à sua maneira: “Para ferrar com a gente, ele ferra com ele mesmo. O que

me preocupa é que ele puxou a mim, que também sou assim e só me ferro” (sic).

Além de ter tido muitas babás e de diferentes nacionalidades, até 4 anos,

o garoto só falava alemão. Como era o único neto, sobrinho e filho, havia sido

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muito paparicado. Passou a ficar muito tempo com os avós maternos, depois que

as relações familiares foram reatadas. Duas tentativas fracassadas foram feitas

para alfabetizá-lo: a primeira em inglês e a segunda em espanhol. Os pais

acreditavam que o aprendizado se daria melhor, quanto mais cedo ocorresse.

Desde os 4 meses, Eric viajava com os pais para diferentes países, sendo

bombardeado com um arsenal de informações.

Na ocasião do nosso encontro, a mãe se mostrava muito preocupada com

o desempenho do menino. O pai se acusava de ter sido omisso, fraco e

submetido à família da esposa, deixando até mesmo que a língua falada na casa

fosse o alemão, língua que ele não falava. Na verdade, os pais pareciam

perdidos, brigavam muito e era possível perceber que eles haviam começado a

duvidar de tudo, inclusive da capacidade intelectual do menino.

Relatarei o desenrolar do primeiro contato com Eric e a compreensão que

tive dos seus movimentos psíquicos a partir da minha experiência com ele.

Conhecendo Eric Como já disse anteriormente, encontrei um garoto desvitalizado, triste e

desesperançado que destoava da família. Submeteu-se à ordem dos pais de ser

educado e tentou agradar, beijando-me, num contato robotizado e superficial. De

repente, saiu caminhando para o fundo do consultório. Parecia alheio a este

mundo (uma alma penada).

Foi curioso observar a aproximação de Eric da analista e dos objetos a ele

oferecidos. No primeiro contato que tivemos, após entrar na sala, ele ficou de

costas para mim, parecendo querer esconder com seu corpo, os movimentos que

fazia ao mexer na caixa de brinquedos. Parecia não querer estabelecer contatos

e, sim, evitar aproximação. Fundamental para compreender e respeitar Eric foi

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observar a sua postura corporal: ele brincava, mas de forma defensiva num

estado de isolamento e retraimento.

Já tinha aprendido com Carol, com João, o Porco-Espinho e com Cacá, a

Cobra-Naja38, que, em determinados momentos, até um olhar poderia ser

invasivo para essas crianças, de forma que observava Eric à distância e com

muito cuidado.

Lembrei-me de alguns episódios vividos com João e que, creio, permitiram

que eu devaneasse, suspendendo temporariamente a minha presença39. É

preciso dizer que a inspiração para essa atitude vinha do paradoxo descrito por

Winnicott sobre a capacidade de estar só por estar em presença de alguém.

(WINNICOTT, 1958)

A capacidade de brincar da criança depende da situação ambiental

fornecida pela mãe, que mesmo envolvida com algo de seu interesse, mantém

potencialmente a sua disponibilidade para a criança que brinca ao seu lado,

também envolvida com algo de seu interesse. Trata-se assim de uma via de mão

dupla, já que a mãe mantém sua presença em suspensão, à medida que a

criança vai se tornando independente e desenvolvendo seus próprios interesses.

E esse é o grande paradoxo, a criança está bem e só, porque, mesmo à

distancia, sente-se acompanhada. O paradoxo é aquilo que está para além da

opinião, qualquer tentativa de resolvê-lo reduziria a complexidade do fenômeno,

já que admite a presença de dois elementos que se excluiriam no campo da

lógica, a qual opera numa relação de causa e efeito.

38 Ver O bote da naja em Pelos caminhos da Ilusão e do Conhecimento e A história de um porco-espinho em Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, ambos publicados pela Casa do Psicólogo. 39 Os trechos em itálico referem-se às reflexões teóricas, aos questionamentos e lembranças da autora.

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A atitude de poder estar ausente em presença de Eric pela suspensão da

minha presença, tornava-se possível graças ao movimento presente no que

chamo de jogo tridimensional. Isso permite exercer a função de holding, ser

testemunha, o que permite alimentar a onipotência da criança e instaurar o

fenômeno da ilusão.Disso decorre a possibilidade do desenvolvimento de seu

potencial alucinatório e a criação do sentimento de ser real, a partir do qual se

pode criar, também, posteriormente, o sentido de realidade dos objetos do

mundo compartilhado.

Para que Eric pudesse transformar-se num ilusionista, era preciso contar com o

apoio e disponibilidade genuína da analista. Esta, por sua vez, precisava

reconhecê-lo como um objeto do mundo compartilhado, com características,

ritmo e estilo próprio e, ao mesmo tempo, identificar-se com ele na área dos

fenômenos subjetivos, para tomar a forma necessitada por ele. Trata-se de uma

capacidade para transitar num movimento, cuja natureza é ambígua e paradoxal,

da ordem da tridimensionalidade. Isso é algo aprendido pela experiência na

relação com um outro significativo.

A atitude à distância e cuidadosa pareceu surtir efeito, pois Eric se ajeitou

melhor, sentando-se no chão e ficando de lado, o que permitiu que eu pudesse

observar seus movimentos e a sua forma singular de se aproximar dos objetos da

caixa lúdica. Ele fazia uma classificação, cujo critério era separar os super-heróis,

dos animais domésticos e selvagens.

Disse algo que não consegui entender direito. Acho que ele nem ouviu,

quando perguntei o que havia dito. Aliás, era como se eu não existisse na sala.

Parecia muito envolvido na sua busca. Apresentava sérias dificuldades de fala,

expressava-se mal, cortando rapidamente o tênue contato, quando não era

compreendido.

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Perguntou novamente algo e aí consegui entender que ele estava

procurando pelo Homem-Aranha. À medida que tirava um a um dos super-heróis,

ia olhando-os bem e dizendo: "neste falta boca, neste falta nariz; neste falta boca

e nariz".

Lembrei-me, também, de que a orientadora tinha dito que ele parecia viver

numa bolha. Comecei a me indagar: Será que ele era como aqueles super-heróis

que não tinham boca nem nariz? Será que ele não tinha estabelecido ou perdido

a relação com esses órgãos, não podendo usá-los como aberturas para

estabelecer contato significativo com o mundo externo? Será que ele não podia

usar nem seus receptores à distância e nem os de contato? Lembrei-me de Carol

que, num primeiro momento, usava seus receptores à distância (visão e audição)

e os de contato (cheirava a borracha, encostava partes do seu corpo na mesa)

para defender-se e evitar contato, usando-os depois para criar um jogo de

esconde-esconde até brincar de jogo da múmia. Pois bem! Será que Eric

apresentava a si mesmo ou um arremedo de si? Alguém que não tem boca, nem

nariz, nem a disponibilidade de fazer uso de seu corpo, de se comunicar e

interpretar os sinais do ambiente, estando, portanto, sujeito a vivências de

desintegração?

Finalmente encontrou o Homem-Aranha, com quem manteve uma relação

de fascínio, colocando-o na asa de um avião. Depois começou a fazer um

solilóquio, falando das viagens, das peripécias e da coragem do Homem-Aranha.

Este lutava contra o mal que era muito forte, não morria e era cheio de truques.

Depois surgiam vários aliados, até que, após muitas lutas, era levado para o

hospital para ser cuidado. Quando saía do hospital tinha que consertar um monte

de coisas quebradas.

Eu me indagava: qual o significado do encontro com o Homem-Aranha,

super-herói corajoso, que vivia para lutar contra o mal e consertar coisas

quebradas? Eu pensava no clima de preocupação do seu brincar defensivo e no

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significado dentro de sua história. Seria o Homem-Aranha a expressão idealizada

dele mesmo, o bebê super–herói esperado pela família materna, que não tinha

correspondido às expectativas e tinha sido banido, como Caim? Era evidente que

o mundo externo era sentido como ameaçador e a presença do outro era

disruptiva. Seria o Homem-Aranha, paradoxalmente, a expressão de uma ruptura

e, ao mesmo tempo, a de uma ponte que poderia estabelecer ou restabelecer a

relação com o mundo? Através do Homem-Aranha, ele podia falar. Será que

apontaria para a possibilidade de integração do self?

Não sei quanto tempo se passou. Tal era o seu envolvimento no seu

brincar que eu evitava até respirar para não interrompê-lo. Lembrava-me da

experiência vivida com João, o Porco-Espinho. Note-se que, continuei mantendo

a minha presença em ausência, enquanto pensava na experiência vivida em

outra situação, que ajudou a dar sustentação ao ambiente e que relato, a seguir.

Naquela sessão, João estava absolutamente alheio e retraído. Em

determinado momento em que ele, de costas para mim, estava envolvido no seu

brincar, ocupado em provocar choques e trombadas entre dois carrinhos, eu me

movimentei na cadeira, o que provocou a queda de um objeto. João deu um pulo,

ficou de pé rápido e pegou algo da sua caixa apontando-o na minha direção,

como se fosse uma arma. Sua expressão era de tal susto e medo que,

espontaneamente, levantei-me da cadeira enquanto erguia os braços numa

atitude de rendição. Alguns momentos que pareceram eternos se passaram. Ele,

então, foi relaxando os ombros, suspirando e lentamente desfazendo o gesto

defensivo e agressivo, sem desviar os olhos de mim. Aos poucos, enquanto ele

se voltava, lentamente para os carrinhos, eu abaixava os braços retornando à

minha posição. Naquele momento, eu me dei conta, de quão estranha e invasora

era a presença de um outro para ele.

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Retomemos o que se passou com Eric. Um momento significativo ocorreu

e um encontro real foi estabelecido entre nós. A tampa da caixa de brinquedos

que estava perto dele caiu, fazendo um barulhão. Eu me assustei. E o garoto que

estava de costas, levantou-se de um salto enquanto se virava para mim,

parecendo extremamente assustado. Na sua expressão havia um misto de pavor

e medo.

Naquele momento, senti que o que ele via em mim era um ser terrível e

ameaçador. Evitei até respirar. Por duas ou três vezes, ele me olhou virando-se

de costas, como que para certificar-se de que estava tudo bem. O mundo externo

e invasor provocavam-lhe a vivência de um estado de susto, alerta e quase

pânico.

Até que trocamos um olhar, levantei o polegar fazendo um sinal de "tudo

bem?" Lenta e cuidadosamente ele pareceu concordar através do olhar e de um

leve sinal de cabeça. Senti que respirávamos aliviados e que era possível

conversar. Eu disse, então, que achava que a gente tinha se assustado tanto,

quando a tampa da caixa caiu porque parecíamos estar em outro mundo.

Eric (enquanto caminhava na minha direção, parecendo interessado),

perguntou: "qual mundo?”

Analista: Talvez na 4ª dimensão porque, para mim, a terceira é quando eu

vou para o mundo da lua.

Eric: "Às vezes, também vou para o mundo da lua... E, às vezes, pra 5ª

dimensão".

Analista: "Nessa eu nunca estive... Como é lá?"

Eric: "Só tem monstros e fantasmas... sempre em guerra. ... No mundo da

lua é bom".

Analista: "Então, talvez a gente possa se encontrar, de vez em quando, no

mundo da lua". Seus olhos pareceram iluminar-se e ele sorriu levemente.

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Estávamos próximos do fim da sessão e antes de ir embora, ele olhou-me

perguntando onde eu tinha comprado aquele Homem-Aranha, diferente, mas

igual aos vários outros que ele tinha em casa.

Eric parecia um ser em estado de isolamento e não num mundo de

realidade compartilhada e humana. Ele estava presente na vigilância. Este

parecia ser o seu ponto de vitalidade, que lhe permitia esboçar um padrão de

defesa e interação com o meio ambiente. Essa relação era extremamente tênue

e feita numa linha defensiva. Um encontro na área dos fenômenos subjetivos

permitiu a comunicação significativa... a possibilidade de um encontro... ainda

que no mundo da lua.

Estive com Eric mais três vezes. Na época, o máximo que sua mãe pôde

aceitar em relação às minhas orientações, foi sua mudança para uma outra

escola que respeitasse mais as suas características e o seu ritmo. Reforcei o

pedido da escola de uma avaliação fonoaudiológica. Após alguns encontros, sua

mãe disse claramente que não gostaria que o menino começasse uma terapia

agora, nem que era o caso de fono. Ela acreditava que tudo se resolveria com a

mudança de escola e de atitude da família em relação a Eric.

Frente à preocupação e ao pedido dos pais, expliquei-lhes que uma

avaliação intelectual quantitativa só deveria ser feita, se fosse o caso, depois que

Eric pudesse brincar e estabelecer uma outra modalidade de relação com a

realidade. Sugeri que fosse dada continuidade ao trabalho de expressão ligado à

arte-educação que o menino havia iniciado e da qual estava gostando muito,

colocando-me à disposição para acompanhá-los à distância.

No nosso último encontro, ofereci, mas ele não quis levar, o Homem-

Aranha, pedindo que eu o guardasse para quando ele voltasse. Somente depois

de aproximadamente um ano, voltei a ter notícias de Eric e sua família.

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Dialogando com Winnicott na construção do primeiro dispositivo clínico

Na concepção de Winnicott (1975, 1990), o bebê é, desde o início, ativo e

afortunado, se, e somente se, puder transformar-se num ilusionista, isto é, se a

onipotência da ilusão de contato for alimentada. Assim, o seu potencial criativo

que é alucinatório pode atualizar-se. Para isso, ele necessita contar com o apoio

da mãe em estado de devoção a qual estabelece uma relação com seu bebê, a

partir de um movimento que é, desde o início, ambíguo e paradoxal, da ordem da

tridimensionalidade.

Por isso, ela pode relacionar-se com um bebê que, ao mesmo tempo, é e

não é ela mesma, pois ele é também um objeto do mundo compartilhado, com

características, ritmo e estilo próprios. Isso é algo que se aprende pela

experiência e não pode ser ensinado apenas de forma intelectual, mecânica. E,

assim, a mãe alcança o estado de devoção, de preocupação materna que

permite a identificação primária com o bebê. Nesse estágio, não há separação

entre sujeito e objeto.

Essa experiência pode ser pensada segundo um modelo estético

(SAFRA, 1999), já que ocorre numa situação de indiferenciação entre sujeito e

objeto, num estado de dependência absoluta do bebê. Aqui reside a relação com

o ser, com o elemento feminino puro, base da identidade. Esta é também a base

do elemento criativo presente em qualquer atividade do cotidiano e do campo

cultural em que o indivíduo esteja, posteriormente, pessoalmente envolvido.

Nas primeiras situações de amamentação, a cada encontro, a mãe coloca

o seio no momento e no lugar em que o "gesto” do bebê o coloca (objeto

subjetivo). Tem início a experiência de onipotência estabelecendo-se, assim, a ilusão do contato.

Desse modo, para que a potencialidade criativa do bebê se atualize, o

objeto precisa ser encontrado. Não se cria no vácuo. Penso que essa é uma das

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novidades trazidas por Winnicott: é no bojo de um movimento paradoxal que o objeto é criado, porque pode ser encontrado. Atente-se para o fato de que o

objeto não é colocado no mundo pelo ser humano e que o momento do encontro

com o objeto coincide com o primeiro contato com algo exterior. Essa foi a

natureza do encontro de Eric com o Homem-Aranha.

A função da apresentação de objetos aliada a de holding e manejo,

exercidas pela mãe devotada comum, de forma simultânea e complementar põe

em marcha o início do desenvolvimento das relações com o mundo de realidade

externa. Para que a ilusão se constitua é preciso, inicialmente, certa dose de

experiência de onipotência. Daí decorre poder experimentar o sentido de ser real,

de identidade, de se poder apreender a realidade e o significado da experiência.

Se a mãe é alguém que É e não que Faz, até o bebê estar pronto para começar

a fazer, ele experimenta o sentido de ser ou identidade. (WINNICOTT, 1971a,

1975).

A mãe suficientemente boa presentifica o ser do bebê na apresentação

que faz de si mesma durante as experiências de amamentação, fornecendo

também, um ambiente perfeitamente adaptado às suas necessidades. Temos ai

uma concepção em que a ilusão é “o meio de acesso ao real”40. O bebê encontra

um ponto de descanso, de quietude e a possibilidade de um estado de não

integração e relaxamento, que permite a continuidade do ser.

O potencial ativo e criativo e a comunicação silenciosa

Winnicott (1975, 1990) ressalta que o bebê nasce com um potencial de

força vital e que este é a base da criatividade. Portanto, trata-se de uma

tendência inata que impulsiona o ser humano na busca do próprio

desenvolvimento. Por diferentes formas e vértices, Winnicott falou desse

potencial criativo.

40 Anotações de aula ministrada por Loparic no Programa de Estudos em Pós Graduação em Psicologia Clínica na PUC-SP/1995.

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No artigo, A comunicação e A falta de comunicação levando ao estudo de

certos opostos afirma que, desde o início, e, ao mesmo tempo, o bebê

desenvolve dois tipos de relacionamento: "com a mãe-ambiente que é humana e

com a mãe-objeto, que é uma coisa e é também parte da mãe-humana".

(WINNICOTT, 1963a, p. 166)

Assim, o potencial de força vital ou potencial criativo que, no início é uma

coisa só, dá origem a dois estados, a duas modalidades de relação com a mãe

suficientemente boa:

a) por um lado, o relacionamento com a mãe-objeto no estado excitado,

no qual predomina no bebê a agressividade instintual que é parte do amor

instintivo ou da atividade ligada ao erotismo muscular já presente no feto. Essa

está ligada ao gesto espontâneo cuja fonte é a liberdade da vida instintiva.

“Se as experiências instintuais são sentidas como partes de

si próprio, por causa do apoio egóico da mãe, o elemento

agressivo (que nesta etapa é destrutivo por acaso) funde-se

com as experiências de força vital e contribui para a sua

intensidade”. (DAVIS, 1982, p. 83).

No início, a motilidade contribui para exercitar a separação entre o bebê e

a mãe. Posteriormente, dá origem à relação com o elemento masculino puro, o

fazer que permitirá a criação da externalidade e o caminhar em direção à

consecução de um senso de permanência do objeto do mundo compartilhado,

quando ocorrer a separação entre eu e não-eu, através do pensar e brincar

criativo. Tema de fundamental importância para quem trabalha com as questões

do desenvolvimento e da aprendizagem humana, ancorada na noção de criação

de símbolos.

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E importante diferenciar esta primeira modalidade de agressividade usada

para a separação e colocação do objeto subjetivo fora da área de controle

onipotente e que permite a destruição criativa do objeto subjetivo na fantasia, de

uma outra relacionada à frustração e ligada à raiva. Para Winnicott, esse

sentimento é muito mais sofisticado e só surge, posteriormente, quando já existe

separação entre eu e não-eu. Na saúde, o motor da agressividade não é só

frustração, mas especialmente a busca ativa do objeto, pois quando a mãe não

vem imediatamente, o bebê tem como enfrentar a sua ausência real e concreta

fazendo uso de algo que pode ser uma sensação, um gesto, um objeto que

presentifica o movimento do campo que ele introjetou a partir da experiência com

a mãe. Se ela volta dentro do seu tempo de tolerância o sentimento de

continuidade do ser fortalece-se.

b) Paralelamente, o bebê se relaciona com a mãe-ambiente no estado de quietude, no qual predomina o amor não instintual e onde ocorrem as

experiências de comunicação na mutualidade.Essas geralmente são tranqüilas,

ligadas a batimentos cardíacos, respiração, fortalecendo a identificação da mãe

com o bebê, permitindo que o bebê tenha a experiência da continuidade do ser.

Essa é a área do sagrado, de toda a experiência satisfatória do ser

humano ligado à consciência de estar vivo que se desenvolve a partir do

processo de apercepção criativa, que significa um colorido pessoal de

apreender o significado do mundo e organiza até mesmo a capacidade de

perceber aquilo que será, posteriormente, a externalidade do mundo, quando

ocorrer o início da separação entre o eu e o não eu.

O potencial alucinatório vai sendo enriquecido pelas experiências

ocorridas no espaço de mutualidade sustentado pela mãe ainda num estado de

indiferenciação e o self vai habitando o corpo, à medida que vai havendo a

elaboração imaginativa das funções somáticas, ou dito de outra forma, à medida

que o bebê vai desenvolvendo a fantasia, que permite a integração psique-soma

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– personalização. Note-se que a fantasia vai sendo criada pelo bebê, não para

suportar as frustrações da realidade externa, posto que ainda não foi

estabelecida uma diferenciação entre eu e não-eu. A fantasia precede a

percepção da realidade e faz parte do potencial criativo, que vai sendo

enriquecido pelas experiências da magia, ou seja, do viver criativo.

Na saúde, existe eventualmente um estado no qual as

fronteiras do corpo são também as fronteiras da psique. O

círculo que uma criança de três anos desenha e chama de

pato é tanto a pessoa do pato como o seu corpo. Isso é algo

que vem a ser alcançado juntamente com a capacidade de

usar o pronome na primeira pessoa do singular.

(WINNICOTT, 1990, p.144)

A criação da externalidade do objeto depende da constituição de um

vínculo de confiança que acontece quando o início da vida foi suficientemente

bom. O bebê confia que a realidade poderá trazer a satisfação de suas

necessidades e se a mãe não some do seu campo perceptivo sustenta o campo

de experiências. Assim, ele vai criando a externalidade do objeto e o princípio da

realidade não será uma afronta. A ansiedade do bebê ligada à preocupação

pelos efeitos de seus gestos nos momentos em que sente receio de consumir a

mãe dos estados excitados diminui, se ela continua presente, viva, aceitando a

contribuição que ele oferece para a mãe-ambiente.

Algo de fundamental importância é a existência da terceira área da

existência humana, a área dos objetos e fenômenos transicionais em que se

desenvolve o brincar e os fenômenos culturais (WINNICOTT, 1971b, p. 150).

Essa é a área que a mãe devotada comum, ao mesmo tempo, habita e transita,

quando está bem e tem a retaguarda ambiental daqueles que ama. Assim ela

pode estar no movimento que caracteriza o jogo tridimensional e dar sustentação

para a constituição, integração e desenvolvimento harmônico da dimensão ética,

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estética, afetiva e cognitiva presente no potencial do seu bebê, se tudo continua

a correr bem. Note-se que ela está num movimento, num jogo organizado pela

capacidade genuína de se relacionar com o bebê podendo, ao mesmo tempo,

discriminar-se e reconhecê-lo como alguém do mundo objetivamente percebido.

É o encontro de um "(...) lugar de repouso (...) na perpétua tarefa humana

de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-

relacionadas" (WINNICOTT, 1975, p. 15) que permite a entrada no que estou

chamando de movimento no jogo tridimensional. Aí, um objeto transicional pode

ser adotado. Trata-se de uma matriz do símbolo da união e da separação, isto é,

da capacidade de o ser humano transitar e criar a presença de um outro

significativo na sua ausência e de poder estar consigo mesmo, portanto, de

ausentar-se na sua presença. (WINNICOTT, 1958, 1963-a e 1963-b)

Na transição para o estágio de dependência relativa, ou passagem da

continuidade para a contigüidade, a capacidade de espera e de manter a imagem

da mãe recebe a ajuda do intelecto, lugar das representações que se desenvolve

voltado para os objetos externos por meio da percepção.

Não se pode esquecer ainda que o intelecto começa a organizar a

experiência desde o início e dessa forma surge o pensamento. Com a transição

da dependência absoluta para a relativa, o intelecto em evolução do bebê torna

possível uma crescente consciência do cuidado materno e da necessidade desse

cuidado. Assim, na época da separação, é o pensamento aliado ao brincar

criativo que ajuda a compensar os fracassos de adaptação da mãe convertendo

um ambiente suficientemente bom num ambiente perfeito. (DAVIS, 1982, p. 70)

Note-se que o desenvolvimento cognitivo que enriquece o self é aquele

que permite estabelecer uma ponte entre a realidade pessoal e a externa,

servindo, portanto, às necessidades do self. O pensar que se desenvolve a partir

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da integração psique-soma, morada do ser, serve à sobrevivência da experiência

da onipotência e é um ingrediente da integração.

Note-se, também, aqui, o papel determinante do ambiente externo não

apenas para a atualização da capacidade de criar (encontro com o objeto

subjetivo), mas também para o desenvolvimento da capacidade de relacionar-se

com e usar o objeto.

Um outro ponto de fundamental importância nessa contribuição é que não

apenas o objeto subjetivo é criado. Também a externalidade do mundo de

realidade compartilhada é fruto do movimento paradoxal dessa relação inicial do

bebê com a mãe. É assim que entendo a afirmação de Winnicott (1945) de que

"qualquer falha de objetividade relaciona-se ao estágio de dependência

absoluta". (p. 280)

O espaço potencial, o brincar e o pensar criativo Quando o bebê coloca o dedo na boca da mãe aos 3 meses, ele está

comunicando e vivenciando a mutualidade. O bebê está brincando e o jogo

pertence ao lugar de transição onde "a continuidade está cedendo lugar à

contiguidade". Winnicott ressalta a importância da retro-reflexão ou do olhar

mútuo entre mãe e bebê nessas experiências. Penso que aqui reside o ponto

fundamental, pois, "pode-se pensar na separação como sendo a causa da

primeira idéia da união; antes disso há união, mas não há idéia da união e aqui

os termos bom e mau carecem de função". (MILNER, 1991, p. 116)

Assim, o espaço potencial é preenchido pelo brincar criativo que surge

naturalmente do estado relaxado através do uso dos objetos transicionais. O

primeiro objeto possuído e adotado pelo bebê, a primeira posse não-eu, vem

nas esteiras das formas primitivas de se relacionar e brincar. Ele antecede o teste

da realidade e retém qualidades mágicas, possuindo também, permanência e

vida próprias vinculadas a seu valor de sobrevivência. O bebê tem agora o

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controle pela manipulação, através do brincar. Veja-se que o sentido de realidade

do objeto e de poder ser usado, relaciona-se à sua capacidade de sobreviver à

destruição.

Interessante acompanhar como Winnicott entende a constituição e,

especialmente, a integração das dimensões do self. Para ele, à medida que o self

se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter lembranças do

cuidado ambiental e, portanto, cuidar de si mesmo, a integração se transforma

num estado cada vez mais confiável. Dessa forma, a dependência diminui

gradualmente. Ele afirma: "em minha descrição dos primeiros momentos de

integração a partir dos estados de não integração, as palavras eram extraídas da

aritmética. Tratava-se de saber se os núcleos do ego individual iriam ou não

somar-se para fazer uma unidade, que representa o próprio self". (WINNICOTT,

1990, p. 138)

Winnicott fala de algumas possibilidades de integração relacionando-as

com os tipos de personalidades. Quando a integração é proporcionada pelo bom

cuidado ambiental, a personalidade poderá revelar-se bem-estruturada. Quando

o acento recai sobre a integração por meio de impulsos e experiências instintivas

e de uma raiva associada ao desejo, a personalidade será interessante; quando

não há o bastante de nenhuma das duas, a integração jamais se estabelece, por

inteiro ou se estabelece de uma forma fortemente defendida, impedindo que

ocorra o relaxamento ou a não integração repousante. Há, ainda, um terceiro

modo: quando a integração aparece cedo e o acento recai sobre uma excessiva

reação à intrusão de fatores externos. Isso é conseqüência da falha do cuidado

da criança..Aqui a integração é adquirida “mediante um alto preço, visto que a

intrusão passa a ser esperada, tornando-se até necessária, e é possível

encontrar nessa estrutura o fundamento muito precoce para uma disposição

paranóide (não herdada)". (WINNICOTT, 1990, p. 140). Sobre as conseqüências

do próprio ato da integração, ele afirma que ela traz consigo a expectativa de um

ataque, que será tanto mais forte, quanto mais tarde for adquirida.

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O abandono precoce e a atrofia do processo criativo Entretanto, quando a mãe não consegue adaptar-se ativamente às

necessidades da criança, desrespeitando o ritmo do bebê e impondo o seu gesto,

há um processo de atrofia da criatividade e a perda do uso da capacidade

imaginativa. O desenvolvimento do pensar, conhecer e aprender pode ocorrer,

então, de forma não-integrada e não se constituir em uma dimensão do self,

implicando vivências disruptivas. (WINNICOTT, 1949, 1960, 1963a,1963b, 1963c,

1965a, 1971a, 1971b,1988)

No artigo, Uma nova luz sobre o pensar infantil, afirma que quando a mãe

fracassa rápido demais, o bebê pode sobreviver por meio da mente (...) Se o

bebê possuir um bom aparelho mental, esse pensar transforma-se num substituto

para o cuidado e adaptação maternos (WINNICOTT, 1965 a, p.122). Assim, um

relacionamento caótico pode provocar não apenas um tumulto intelectual, mas

também uma deficiência mental. Quando ocorre o fracasso do contato inicial, o

bebê se desenvolve sem a experiência de ser, ou então, a experimenta de forma

deficiente. Interessante assinalar que:

"o sentido do ser tem precedência à descoberta do self que

também se relaciona à consciência do corpo. (...) Para

Winnicott o sentido do self provém apenas de uma atividade

desconexa e sem forma, ou rudimentos do brincar (de um

estado de não-integração), e mesmo assim, só se houver

uma retro-reflexão." (MILNER, 1991, p. 248).

Quando ocorre o fracasso do contato inicial e o bebê se desenvolve sem a

experiência de ser, não se pode falar em frustração, castração ou destrutividade.

Só se pode falar em mutilação. Mutilar significa perder um processo e

conseqüentemente a função a ele associada. Ocorre também, o split nas

relações objetais.

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"Com uma metade o self se adapta à forma com que o objeto

se apresenta (falso-self). Com a outra metade do split, o self

se relaciona com o objeto subjetivo, ou com fenômenos

baseados em experiências corporais, sendo estes

dificilmente influenciados pelo mundo objetivamente

percebido. Exemplo: o balançar do autista, o funcionamento

esquizóide." (WINNICOTT, 1990, p. 167)

Se o ambiente não é confiável, nem fidedigno, o bebê tem que cuidar de si

mesmo através do desenvolvimento exacerbado de alguma função mental, numa

linha de organização do falso-self. Estudar o atendimento das primeiras

necessidades do bebê equivale a estudar a etiologia do falso-self, já que "(...) o

verdadeiro self aparece assim que ocorre qualquer organização mental e o

sentimento de ser real é fortalecido a cada período em que não se interrompe a

continuidade do ser". (WINNICOTT, 1960, p.136). Já o falso-self é reativo, carece

de originalidade criativa e é formado a partir das vivências de rupturas do ser, a

partir do desenvolvimento exacerbado de alguma dimensão da personalidade em

detrimento de outras que podem nem mesmo chegar a constituir-se.

Winnicott (1945, 1949, 1960, 1965 a, 1968) salienta que quando a falha

ocorre no estágio de dependência absoluta, como no caso da inibição intelectual,

há desespero em relação à integração. Nesse caso, a defesa intelectual não se

constitui. Nessa situação, há um "elemento desintegrador na dinâmica familiar",

sendo necessária, também, uma intervenção junto aos pais (WINNICOTT, 1959;

p. 192).

Compreendendo Eric a partir de Winnicott Algumas hipóteses são possíveis: Será que Eric pôde contar com a

adaptação ativa e sensível da mãe em estado de devoção? Será que houve o

estabelecimento do contato nos primeiros encontros com o objeto subjetivo, a

partir do gesto espontâneo e potencialmente criativo? Será que houve o encontro

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com a mãe-ambiente dos estados de quietude, que possibilita a experiência de

continuidade do ser, experiências de troca e comunicação na mutualidade e,

assim, a criação e desenvolvimento do espaço potencial?

Eric não constituiu o sentimento de continuidade do ser, já que as

vivências de ruptura parecem ter ocorrido muito precocemente na sua vida. Ele

vivia na área dos fenômenos subjetivos, mantendo-se num estado de retraimento

e isolamento Havia um colapso da inteligência devido a não-possibilidade de

constituição do self e ele padecia de ansiedades em relação à integração.

A integração alcançada a partir de um padrão de reação às intrusões

parece ter ocorrido por meio do desenvolvimento exacerbado da dimensão da

imaginação. Esta parecia ter vida própria alienando-o de um contato com o

externo. A sua aprendizagem era feita numa linha adaptativa, de submissão ao

externo; o que aprendia não tinha significado. Brincava, mas de forma defensiva,

tentando sobreviver e defender-se frente ao mundo sentido como invasor.

Ele não sentia o cheiro, o gosto do mundo. A boca podia ser usada para

comer e sobreviver, mas não para se comunicar e estabelecer relações de

contato e troca significativas que permitiriam criar o self e a externalidade do

mundo. Sem o contato com um outro que apresente o mundo dando a ilusão da

onipotência de contato não há apetite, nem mundo apetecível. Sem a ilusão de

ser o criador do mundo, não há experiência de mutualidade, nem comunicação

significativa. Para Winnicott (1963-c) esta é a base do comer e do aprender: "(...)

a base de toda aprendizagem (assim como do comer) é o vazio. Mas se o vazio

não é experienciado como tal, desde o começo, ele aparece então como um

estado que embora temido, é compulsivamente buscado" (WINNICOTT, 1963c,

p. 76).

Nesse mesmo artigo, assinala que o paciente teme o horror do vazio e

poderá, então, organizar um vazio controlado. Como defesa, poderá não comer

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ou não aprender ou, então, "impiedosamente o encherá por uma voracidade que

é compulsiva e parece louca". (Idem, p. 75)

A questão com Eric era: como atender a sua necessidade de usufruir

experiências que permitissem descongelar aspectos do verdadeiro self que não

tinham se constituído devido à ausência da presença real de um outro ser

humano?

Suas questões fundamentais eram, por um lado, desenvolver um escudo

que permitisse defender-se da invasão do ambiente, já que alcançava uma

integração por um padrão de reações às intrusões. Por outro, precisava ter

acesso ao que se passava com ele e desenvolver a capacidade de comunicar–se

num mundo de realidade compartilhada, isto é, precisava simbolizar e encontrar

canais de expressão.

Dispositivos clínicos usados no diagnóstico Quando conheci Eric, observei a mesma situação de exclusão já

observada com Carol e sua família, bem como de outras crianças com inibição.

Eric correspondia à descrição que seus pais faziam dele: estava mal vestido e

bastante desleixado. Destoava de seus pais. Seu olhar transparente parecia

atravessar-me. Reconheci nele o sinal de Caim – revelador da situação de

isolamento psíquico em que vivia.

O atendimento de Eric confirmou o que vinha constatando sobre a

importância de deixar-me afetar pela atmosfera do ambiente e usar a ressonância

que a apresentação da criança na composição de sua família provocava em mim

para fazer o diagnóstico. No primeiro contato, ainda na sala de espera observei o

“destoar” e a exclusão de Eric e, no consultório, o que me impressionou, além de

sua atitude e postura corporal, foi a sua busca e relação de fascínio ao encontrar

o Homem-Aranha.

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Quando a tampa da caixa de brinquedos caiu, vi refletido nos seus

olhos o susto e o pavor exagerado, característicos de vivências de rupturas do

ser que alteravam até mesmo a sua percepção. Por meio de uma troca de

olhares e gestos, a intervenção silenciosa aconteceu. Quando foi possível uma

intervenção, comentei que o nosso susto talvez tivesse acontecido porque

estávamos em outra dimensão, o que operou e teve efeito, pois ele aproximou-

se, abrindo assim, a possibilidade da comunicação significativa. Eric pôde

contar de suas vivências em diferentes dimensões e visualizamos a possibilidade

de novos encontros no mundo da lua. Compartilhar uma vivência dessa natureza

com Eric, criou a experiência do encontro.

O menino parecia ainda nem ter constituído ou ter perdido aberturas

significativas com o mundo por meio de seus receptores de contato e à distância.

Cada vez mais relacionava esse fato a falhas no atendimento à primeira

necessidade do ser humano: a da comunicação significativa que decorre de

sentir-se incluído, isto é, ter sido um no outro, para depois poder ser um com o outro. Por não ter desfrutado da presença real de um outro disponível para olhá-

lo e reconhecê-lo na sua singularidade, o mundo não era apetecível, e sim,

estranho e invasor. Eric podia usar seus receptores de contato, bem como os

receptores à distância para sobreviver, mas não para criar o mundo real a partir

de experiências compartilhadas. Ele apresentava um nível de organização de self

muito incipiente e vivia em estado de alerta, ligado aos possíveis ataques do

mundo externo sentido como disruptivo e ameaçador.

Algumas Considerações Tenho observado, na experiência clínica, a potencialidade transformadora

do fenômeno estético, especialmente, com crianças com inibição intelectual. Na

minha prática, essa dimensão relaciona-se com a capacidade do analista de se

deixar afetar pela ressonância que o modo de ser e estar da criança provoca

nele. Está relacionada com a reação psicossomática que testemunho no

paciente e acompanho por um processo de identificação.

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Uma questão, então, se coloca: como o analista acompanha o seu

paciente na vivência estética? Se ambos sofrem os efeitos e são co-autores na

criação desse fenômeno, como o analista acompanha a criança sem sair do seu

papel? Para acompanhar essas crianças nos momentos em que o fenômeno

estético se dá, tenho feito uso do movimento ambíguo e paradoxal que

caracteriza o campo dos fenômenos transicionais (WINNICOTT, 1971a, 1971b,

1975). Penso que é o empréstimo que o analista faz da transicionalidade de seu

campo psíquico que dá sustentação ao campo de experiências compartilhadas,

como veremos, especialmente na apresentação do atendimento de Eric.

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Estação 6. Testemunhando o caminhar de Eric

Há um brincar

E há outro a saber

Um vê-me a brincar

E outro vê-me a ver41

Nesta estação, busco dar visibilidade aos dispositivos clínicos que

permitiram acompanhar os movimentos e a comunicação, especialmente, a não-

verbal de Eric. Isso favoreceu a criação de condições para a entrada do garoto no

movimento que caracteriza o jogo tridimensional e permitiu a abertura do campo

do brincar, conhecer e aprender criativos.

O reencontro Os pais de Eric o trouxeram novamente, aproximadamente um ano depois

da etapa do diagnóstico, dizendo que ele, agora, com quase 8 anos, estava na 1ª

série e vinha tendo um atendimento fonoaudiológico há seis meses, por solicitação

da orientadora da escola, que havia solicitado, também, um acompanhamento

psicoterapêutico ou psicopedagógico. Segundo a mãe, ela teria dito que ele

estava um pouco mais participante, apesar da dificuldade de atenção,

concentração e lentidão. Havia um outro dado, acrescentado a esses pela própria

orientadora: Eric vinha buscando contato com outras crianças sendo rejeitado por

elas, que diziam que ele cheirava a alho. Demonstrava, também, "exagerada

sensibilidade" a qualquer comentário, inclusive dos professores, parecendo senti-

los como crítica. A hipótese levantada é que talvez os aspectos da rejeição e a

extrema sensibilidade do menino tenham determinado o retorno dos pais, naquele

momento, para o atendimento psicoterapêutico.

41 PESSOA, Fernando. Brincava a criança. In Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 510.

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Primeiro Momento: Saindo do estado de alerta Na primeira sessão, Eric se animou ao encontrar o Homem-Aranha, como

se não tivesse se passado quase um ano. O curioso é que começou a usar

barbante e a construir várias teias, fazendo pontes, por exemplo, entre uma

cadeira e a maçaneta da porta. Nelas, o Homem-Aranha se segurava, salvando-se

e também a outros personagens ameaçados pelo mal. Aos poucos, outros super-

heróis chegavam, entre eles a Mulher-Maravilha. Eles eram seus aliados na luta

contra o Mal, representado pelo Curinga e seus comparsas.

Na terceira ou quarta sessão, o garoto movimentava-se de forma mais livre,

parecendo cada vez mais à vontade. Às vezes, trazia de sua casa um crocodilo ou

algum outro animal ou super-herói. O curioso é que eles faziam alianças com o

Mal, isto é, com a turma do Curinga. Muitas sessões se passaram em que a luta

era permanente: o Homem-Aranha nunca morria, mas o Mal também nunca

acabava e parecia sempre se fortalecer.

Um dado curioso é que era como se a analista fosse transparente ou não

existisse no consultório.

O que chama a atenção é como ele logo encontra o familiar – o Homem-

Aranha no ambiente que nem parece mais tão estranho como da primeira vez,

apesar de ter se passado tanto tempo. Às vezes, eu me indagava quanto tempo

duraria esse período e esse padrão de sessões, mas não tinha dúvida sobre a

importância de sustentar o lugar de testemunha, exercendo a função de holding

até que se abrisse o movimento no jogo tridimensional para que Eric pudesse

alcançar um mínimo de integração. Ele vivia sob a ameaça constante de ser

invadido, que o levava a estar num estado de retraimento e alerta. Compreendi

que Eric necessitava estabelecer uma relação com a analista que fosse tão real

como era, para ele, a sua relação com o Homem-Aranha. Era preciso alimentar a

onipotência da ilusão de que éramos um só, evitando vivências de

desintegração, (achar um lugar, um ponto em comum de união com ele que

permitisse instaurar um espaço de encontro na área dos fenômenos subjetivos.)

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A questão era: como me tornar para ele tão familiar quanto o Homem-

Aranha? Como fazer parte do seu mundo e não ser uma estranha invasora? Se

ele pudesse incluir-me no seu mundo e apresentá-lo a mim, para que eu pudesse

conhecê-lo, talvez depois ele quisesse conhecer o mundo em que eu habitava.

Assim, o que me parecia fundamental era dar sustentação a esse processo ao

longo do tempo e manter a atitude de espera receptiva, tomando a forma da

necessidade de Eric.

Quanto mais Eric saía do estado de isolamento, mais me chamava para

participar das brincadeiras. Começou a me mandar personificar a voz e/ou fazer o

papel da Mulher-Maravilha. Ele determinava como seria a minha participação no

papel, não tendo a mínima paciência para ensinar-me como fazê-lo. Aliás, parecia

esperar que eu adivinhasse o que estava em sua cabeça, como se eu fosse, de

fato, uma continuação dele.

Em determinado momento de uma sessão, eu não entendi o que a Mulher-

Maravilha – papel desempenhado por mim, naquele momento – deveria fazer. Não

sei se ele não ouviu ou ignorou a minha pergunta, de forma, que tentei fazer o que

era possível para complementar o gesto que ele – Homem-Aranha – fazia. Ele,

então, me olhou e disse bravo e com ar de desprezo: "Hei, não é para fazer assim.

Você é burra?" E me ensinou, então, o que eu deveria fazer com tom autoritário e

exigente.

Impressionante como ele pôde usar sua boca, sua voz e articular as

palavras de modo tão claro naquele momento. Cada vez mais compreendia que a

minha participação, como se fosse uma extensão dele, além de não ameaçá-lo,

alimentava a ilusão de contato não só com os objetos, mas especialmente com

ele mesmo, trazendo o senso de continuidade do ser, de integração. Assim, ele

podia ser e mostrar-se, apresentar seu modo de ser e suas questões – no caso, a

da burrice, reconhecendo-a na analista, portanto, fora dele.

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Aqui é importante trazer a noção desenvolvida por Winnicott de falha da

analista, já que, ao colocar-se fora da área de onipotência de Eric, ocorre a

reedição da deficiência do ambiente em atender à primeira necessidade do

menino – a de estar em comunicação significativa que, no início, é silenciosa –

de estar em comunhão consigo mesmo e com o mundo. Ao colocar-se fora da

área de onipotência e não sustentar a continuidade do ambiente, a analista

apresenta-se como alguém que tem uma existência própria, o que rompe o

espaço potencial que dava sustentação do campo. Eric é levado a enxergar o

mundo, não a partir da realidade subjetiva – organizada pela ilusão, dimensão da

apercepção, a que, até então, sustentava a experiência da onipotência e sim, a da

realidade objetiva e não compartilhada.

Note-se que a passagem da comunicação silenciosa para a significativa

ocorre graças aos fracassos reparados que permitem a simbolização e

desenvolvimento de dimensões do self. Estes podem, então, ser experienciados

na relação com a analista, encontrando, assim, o caminho da transicionalidade.

Muitas sessões se passaram em que tanto o Homem-Aranha como seus

comparsas saíam machucados. Algumas vezes, iam para o hospital, saindo de lá

enrolados na fita adesiva – usada como esparadrapo. Noutras, eram lançados

num precipício por um alienígena que não gostava do cheiro de alho que

exalavam. Noutras, ainda, tinham que participar de lutas sangrentas com monstros

no coliseu de Roma. Nessa fase, geralmente na hora de ir embora, depois de

guardar o Homem-Aranha, seus comparsas e inimigos na sua caixa, ele dizia:

"Tchau, Caixa-Maravilha!"

Após várias sessões com esse padrão de acontecimentos ele comunicou –

espontaneamente – que haveria uma festa dos super-heróis para comemorar a

vitória do Homem-Aranha sobre o Mal e que a Mulher-Maravilha o acompanharia à

festa para encontrar os outros super-heróis, também aliados do Homem-Aranha.

Foi contando isso enquanto pintava o cabelo da Mulher-Maravilha com tinta

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amarela, imprimindo assim a sua marca pessoal em algo da cultura externo a ele:

um não-eu.

Veja-se que por meio do brincar, ele vai apresentando suas questões: a

eterna luta entre o Bem e o Mal e o tema da rejeição pelo cheiro de alho, até

poder chegar a comemorar a vitória do Bem, que talvez se relacione ao fato de

estar acompanhado da Mulher-Maravilha que tem os cabelos marcados com seu

gesto. É importante colocar-se agora na posição de observador da cena para

acompanhar o movimento de Eric. Alimentar a sua onipotência permitiu que ele

alcançasse uma mínima integração a partir de um movimento que partiu de sua

criação e não de um padrão de reações às intrusões do ambiente. Do ponto de

vista do menino, o estatuto da analista seria de um objeto subjetivo. O fato de Eric

sentir que ela estava sob o seu controle onipotente operava e tinha efeito, pois o

deixava livre da ameaça de ser invadido. Do lado da analista, justamente por ter

clareza de que não estava sob o controle onipotente do garoto, podia jogar como

se estivesse. Para ela, Eric era um objeto do mundo compartilhado com uma

singularidade própria. Ao mesmo tempo, podia identificar-se e discriminar-se dele,

entrando no jogo e transitando entre diferentes pólos e lugares da relação, a partir

do movimento que caracteriza o jogo tridimensional.

Segundo Momento – O Sono e o estado de relaxamento Outra seqüência de sessões seguiu-se à festa de comemoração da vitória

do Bem sobre o Mal e trouxe vários dados significativos. Na primeira, Eric

começou a tirar o tênis, quando chegava. Na hora de ir embora, pedia e gostava

que eu o ajudasse a colocá-lo. Duas sessões mais adiante, ele chegou parecendo

muito cansado e desvitalizado. Deitou-se no sofá e dormiu. Isso aconteceu em

outras sessões, como veremos adiante. O dormir na sessão parecia associado ao

cansaço e, também, à vivência de algum momento significativo. Vale dizer que o

cansaço do menino justificava-se, pois parecia um pequeno executivo entre aulas

de Inglês, alemão, natação etc.

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Se cada encontro ocorre a partir do gesto pessoal e a analista é uma

extensão dele mesmo, uma relação de confiança vai se instaurando, um estado

de relaxamento pode ser alcançado, ele pode estar próximo fisicamente e até

dormir. Um ponto de descanso permite o estado de não-integração. Se não há a

presença demandante de um outro é possível dormir sem susto. Note-se que o

dormir significa poder estar ausente em presença de outro. Para isso, o outro não

pode ter uma presença excessiva como parece ter sido a da mãe e nem tênue

como parece ter sido a do pai, que até mesmo permitiu que o filho aprendesse a

falar alemão, antes do português; língua, aliás, que o pai não dominava e que era

falada dentro de casa.

Um momento significativo ocorreu na sessão seguinte àquela em que ele

dormiu. Eric começou a contar de uma viagem que havia feito nas férias

anteriores. À medida que falava, pegou uma folha e caneta e foi desenhando a

Caverna dos Morcegos em que havia o Deus da Morte. Enquanto mostrava a

entrada da caverna, contou ter sentido tanto medo que até precisou "segurar o

pinto para o xixi não escapar" (sic). No momento em que falou sobre isso foi ao

banheiro.

É possível o enfrentamento do mal, a expressão e comunicação do

sentimento. O medo só pode ser humanizado, portanto, simbolizado na

experiência e na relação com um outro que acolhe. Note-se que há uma

triangulação, um trânsito entre a ressonância daquela situação (o medo que sentiu

na caverna) e a da situação vivida no aqui e agora que lhe dá tranqüilidade e

segurança. A presença da analista que testemunha e sustenta um campo na

distância necessitada (na medida certa e no tempo justo) permite que Eric transite

não apenas entre os dois momentos vividos por ele, mas também entre o espaço

dentro e fora do consultório. Note-se que até mesmo o trânsito no espaço físico

decorre da possibilidade do trânsito no espaço psíquico. Assim, Eric vai

aumentando a distância entre o que acontece aqui e agora na relação comigo e o

que tinha acontecido com ele em outro tempo e lugar. E o que é fundamental: ele

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pode sair da sala e ir ao banheiro. Começa a desfrutar da liberdade da vida

instintiva.

Note-se que, nesse processo ele se torna narrador, isto é, ele se transforma

em testemunha do que viveu porque a analista sustenta o conteúdo e a

veracidade da sua narrativa, o que dá legitimidade à história. Tornar-se narrador

é ganhar distância em relação ao vivido, é poder ocupar o lugar de terceiro,

daquele que testemunha. Aos poucos, Eric vai podendo criar distância em

relação aos sentimentos, o que permite reconhecer, apropriar-se e descobrir

formas de lidar com eles. Pode representar seu medo por meio de desenhos e

falar sobre seus fantasmas. Isso constitui o próprio processo de simbolização.

A partir daí, seu corpo foi se apresentando cada vez mais. Ele passou a

apresentar certo maneirismo observado também na escola e em casa: ele

suspendia a calça e apertava muito o cinto. Quando falava dos medos e situações

de excitação corporal, geralmente ia ao banheiro, o que, aliás, é bastante comum

em crianças que estão começando a habitar o próprio corpo, a construir um dentro

e um fora corporal delimitado pela pele. Outras vezes, durante alguma

dramatização ele me olhava, parecendo assustado e dizia: "é faz de conta, viu;

não é de verdade!".

O brincar assusta devido à "inter-relação entre o que é subjetivo e o que é

objetivamente percebido" (WINNICOTT, 1975, p. 71). Isso porque até mesmo as

fronteiras entre a realidade pessoal, subjetiva (que abarca o eu e o não-eu) e o

mundo de realidade externa ou objetivamente percebido vão sendo criadas por

meio do brincar em estado de relaxamento quando o ambiente dá sustentação ao

processo.

Enquanto brincava, Eric ia dominando idéias, controlando impulsos,

entrando em contato com sentimentos e experienciando as fantasias que o

mantinham, até então, em estado de alerta. O potencial alucinatório vai sendo

enriquecido pelas experiências ocorridas no espaço de mutualidade enriquecida,

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agora, por tantas informações de que dispunha. Assim, Eric vai habitando o

próprio corpo (personalização) por meio da elaboração imaginativa das funções

somáticas.

É tempo de começar o processo de desilusão. Eric já tem um lugar de

descanso (integração), habita o próprio corpo, portanto, tem um dentro e um fora.

Pode passar do estágio de dependência absoluta para o de dependência relativa,

com a ajuda do intelecto em evolução. O espaço potencial-herdeiro da ilusão que

começa a existir na época da separação permite caminhar em direção à criação

da externalidade do mundo, estabelecer ainda mais os limites entre realidade

subjetiva e externa com o uso da agressividade e, assim, caminhar em direção ao

reconhecimento da qualidade de permanência dos objetos, (base da aceitação da

lei própria que rege o funcionamento do universo objetivamente percebido).

Terceiro Momento – Descobrindo que o Mundo pode ser apetecível

Algumas sessões mais adiante, Eric novamente chegou bastante

desvitalizado e dormiu. Na sessão que se seguiu, outro movimento e tema

surgiram: ele não abriu a sua caixa e caminhou em direção ao armário onde havia

jogos. Parou e ficou certo tempo quieto, ora olhava para mim, ora para o armário.

No caso de Eric, talvez a sua questão fosse: podia ou não abrir o armário?

Será que haveria algo de interessante lá? Não me parecia que sua hesitação

fosse pelo medo de alterar a estabilidade do ambiente, isto é, por medo da reação

da analista. Considero que aqui a Função da Ignorância começou a operar, se a

entendemos como a possibilidade de se fazer perguntas e estudar o ambiente.

Eric parecia, ao mesmo tempo, curioso e cauteloso.

Na trilha de Winnicott, segui evitando qualquer interferência. Para Eric

tornar-se protagonista de sua história, é preciso que ele continue a dirigir a

experiência. Com a abertura do campo transicional, a indagação é: quanto Eric

quer e pode assimilar daquilo que está buscando?

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Após algum tempo, lentamente abriu o armário e pegou um jogo – "Caça às

bruxas". Após chamar-me para sentar perto dele, espalhou as peças na mesa e

começou a criar um cenário por meio da narrativa. Disse que estávamos num

mundo onde as bruxas dominavam e como havia muitos perigos: cobras,

escorpiões, nós deveríamos ficar juntos, o tempo todo. Mostrou, então, o espaço

na própria cartela do jogo onde deveríamos permanecer. Só assim poderíamos

vencer as bruxas. Éramos um só, ameaçados pelo mal, que estava fora e era

representado pelos objetos. Cada vez mais eu fazia parte do seu mundo pessoal,

"diferente do início em que eu era parte do mundo repudiado e ele estava só".

A nossa tarefa era encontrar a chave da esperança que nos daria a

salvação. Após a encontrarmos, éramos perseguidos pela bruxa, esperta e

malvada que novamente a roubava de nós. Após novas lutas, conseguíamos

reavê-la novamente, através da astúcia e, assim, vencíamos as bruxas que iam

para a cadeia.

Já somos mais humanos estamos num mundo mais terreno. Apesar de

tantas desgraças, Eric pôde conceber uma outra modalidade de relação com a

realidade externa, pois há esperança e salvação. Assim, é possível usar a

inteligência e a astúcia para proteger-se até mesmo criando novas armas, para

além da espada e do escudo, no caso, a chave da esperança e, assim, proteger-

se das bruxas.

Seguiu-se um período em que Eric continuou a usar outros jogos de

forma semelhante à usada com o jogo "Caça às bruxas". Ele agora tinha

vitalidade, chegava parecendo muito alegre. Algumas sessões ocorridas mais

adiante, entusiasmado com uma situação que criou, jogou um monte de coisas

para cima, misturou tudo, gritou e subiu no sofá. De repente, parou quando algo

que havia jogado veio na minha direção. Olhou-me parecendo assustado, mas

não como da primeira vez quando a tampa da caixa de brinquedos caiu.

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Note-se que na primeira sessão o susto foi provocado por algo do ambiente

externo, enquanto nesta, o susto vem, não com a mesma intensidade, de algo que

brota de dentro dele, isto é, do seu próprio gesto. Como os gestos do menino

foram desde muito cedo mal interpretados, parecia existir na cabeça de Eric uma

equivalência entre fazer, usar os objetos, isto é, entre exercer uma ação sobre

eles e destruí-los. Aqui ele vai entrando no estágio da preocupação pelos efeitos

dos seus gestos no mundo. Se os impulsos agressivos que permitem a inscrição

do gesto não se integram com os amorosos devido à ausência do olhar do outro, a

criança não pode criar uma imagem e ver a si mesma na relação com a realidade

externa.

Ou se uma intenção destrutiva é atribuída ao seu gesto, pode ocorrer uma

inibição da ação no mundo e da agressividade, o que impede o desenvolvimento

do processo de criação do self e da externalidade do mundo. Isso equivale a uma

mutilacão, pois leva, também, à inibição do desenvolvimento do potencial

conquistado até então. Quanto mais cedo isso acontecer, maior o dano. Não se

pode ser, nem fazer. O poder do olhar do outro é enorme. Basta lembrar o poder

de congelamento por meio do olhar representado pela figura da medusa.

Com Eric, a questão era: Como manter a continuidade do ambiente e o

campo de experiências compartilhadas evitando a re-atualização de situações de

desintegração? Para criar condições para Eric criar e estabelecer fronteiras entre

sua subjetividade nascente e a realidade externa, era preciso dar sustentação à

continuidade do espaço potencial.

Aguardei um pouco e, enquanto nos olhávamos, lentamente peguei uma

almofada, dizendo que agora eu tinha um escudo e podia me defender e lutar a

seu lado se fosse preciso. Isso pareceu acalmá-lo, pois voltou a brincar. No final

da sessão, ele quis ajudar a arrumar a sala. Diante da sua preocupação pelo

estado dos objetos, assinalei que tínhamos feito uma bagunça e não um estrago.

(Seu gesto foi aceito).

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Note-se que a função de manejo, aliada à de testemunha, ajuda a manter a

estabilidade do ambiente e permite a entrada no estágio de preocupação pelo

dano feito ao objeto. Ser testemunha permite legitimar o processo perceptivo da

criança, enquanto exercer a função de manejo possibilita manter a continuidade

do ambiente e do campo de experiências evitando a ruptura do espaço potencial.

Concordo com Winnicott: a realidade põe freios à fantasia. Aqui novamente

apresenta-se a questão de estabelecer as fronteiras entre o eu e o não-eu,

colocada num outro patamar, pois se trata, agora de uma criação de si mesmo no

mundo dos objetos compartilhados (e não-subjetivos) que operam uma outra

transição diferente da anterior. Agora a questão não é mais como lidar com o outro

que não é eu. Aqui a tarefa é: Como lidar com o outro que tem uma existência

própria e diferente da imaginada? Dito de outra forma, é chegado o tempo de

caminhar em direção à criação da externalidade do mundo, quando o ser humano

se torna desejante e tem que dar conta dos efeitos dos próprios gestos sobre a

realidade externa.

Trata-se, agora, de um trabalho voltado para a criação das características

da realidade objetiva dos objetos e do olhar que Eric tem para si mesmo.

Poderíamos nos perguntar: Por que ele tem que viver para salvar o mundo?

Concordo com Winnicott, quando afirma que se a invasão é precoce, além de não

poder criar as fronteiras entre o eu e o não-eu e repudiar o fracasso do ambiente,

o indivíduo ainda se sente responsável pelo que acontece. Eric tinha sido

desautorizado também no seu processo perceptivo que permitiria a criação das

representações de si, do mundo e de si na relação com o mundo. O

reconhecimento que a analista faz de que os objetos estão inteiros, e não

quebrados, o tira do lugar daquele que tem que viver para consertar, o que

permite o diálogo entre a imaginação e a realidade compartilhada. Após

verificarmos que não havia danos irreparáveis, guardamos tudo.

No caso de uma criança invadida, quando o mundo se torna apetecível,

abrem-se o interesse e a curiosidade para conhecer como o outro funciona por

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meio dos objetos que estão no campo de relação com ele. Percebe-se que aqui,

sim, estamos no campo do conhecimento, da aprendizagem informal e do

surgimento de uma outra dimensão: a desejante.

Usando, agora, Paín, reconheço que quando se abre o campo em que se

podem fazer indagações sobre a realidade externa, começa a operar a Função da

Ignorância.Note-se que quando Eric jogou coisas na minha direção, isso foi

transformado num jogo. O importante é que ele pôde usufruir uma experiência

com início, meio e fim em função da continuidade do ambiente.

Interessante o tema das sessões que se seguiram a essa. Estávamos no

mundo do inferno e éramos ladrões de bancos disfarçados de ajudantes e

policiais. Dávamos pistas falsas do esconderijo dos bandidos a alguns policiais

verdadeiros, que acabavam engolfados pela areia movediça enquanto outros

caíam num rio e eram comidos pelas piranhas.

Observe-se que o desenvolvimento de capacidade simbólica e de

movimento psíquico permitem que Eric ganhe distância e possa divertir-se,

brincando até mesmo de experimentar estar do lado do Mal sem se confundir com

ele. Aqui ele está no movimento do jogo tridimensional, o Bem permanece ao

longo do tempo, como pano de fundo, mesmo ele brincando (ampliando as

fronteiras) de estar do lado do Mal. O tempo e o espaço se constituem como

formas de sensibilidade a partir da experiência na relação com o outro.

Na sessão seguinte, ele me chamou para brincar: tínhamos que desligar

uma bomba que podia destruir o mundo todo. Era chegado o tempo de poder

acompanhá-lo no trânsito entre os absolutos positivo e negativo, tudo ou nada.

Logo em seguida, vieram as férias.

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Quarto Momento: Regressão e Retraimento Na primeira sessão após as férias, ele estava novamente arredio,

desconfiado e brincando em estado de isolamento. Diferentemente da situação em

que há a regressão, no retraimento não há o reconhecimento e a aceitação da

dependência e a presença do outro geralmente é sentida como disruptiva.

Mantive a atitude de espera receptiva, aguardando que Eric novamente

conquistasse a confiança no ambiente e nos seus processos internos e ativos. Um

aspecto observado ao longo do processo de Eric reflete o que geralmente ocorre

no trabalho clínico feito a partir da perspectiva de Winnicott: aspectos do

verdadeiro self vão se expressando, são perdidos e novamente resgatados até

serem simbolizados. Concordo com Safra ao afirmar que o self não se constitui de

uma vez e nem de forma linear. Trata-se de um movimento contínuo de

transformação e vir a ser. Enquanto ele brincava em estado de isolamento, eu me

indagava: qual seria o cenário desta vez?

Nas sessões que se seguiram, Eric começou a trancar a porta e fechar

janelas e cortinas. Mais uma vez era necessário esperar para que uma

compreensão se fizesse a partir da experiência. Mais uma vez, o Homem-Aranha

retorna para travar uma luta entre o Bem e o Mal. Desta vez, o Mal estava mais

forte do que antes. Um pesquisador havia soltado o morcego da morte e o

Homem-Aranha logo foi parar no hospital.

As sessões se alternavam: ora ele brincava só, ora eu participava, mas

como sua extensão, isto é, na área dos fenômenos subjetivos. Até que ele isolou o

Deus das Trevas. Pudemos, então, conversar. Ele contou que, nas férias, tinha

estado no México e visitado um labirinto onde os astecas enterravam os mortos

que viravam, então, espíritos do mal. Passou tão mal lá dentro que até ficou com

enjôo, sendo ajudado por seu pai, que saiu com ele do labirinto. Pôde também

falar de várias outras situações que sentiu como muito ruins na viagem.

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Note-se como as áreas da existência – as da realidade subjetiva e as da

realidade objetivamente percebida se misturam e como Eric desenvolveu a

capacidade de identificar o que sentia: medo e enjôo (personalização) e, de

alguma forma, expressá-lo podendo ser ajudado pelo pai. A experiência clinica

tem mostrado que não há mudança psíquica que não venha acompanhada de

mudanças corporais. Compreendi aquele seu movimento de fechar portas, janelas

e cortinas como necessidade de delimitar um espaço de intimidade e desenvolver

uma barreira de proteção às invasões ambientais. Neste lugar, seu mundo podia

ser compartilhado com a analista, os objetos podiam ser transformados e usados

a partir de um movimento pessoal.

Nessa época, uma reunião foi feita com ele e seus pais, a pedido da mãe.

Segundo ela, Eric lhe teria dito que talvez não conseguisse passar de ano, o que

não tinha respaldo na realidade. Isso permitiu que se falasse sobre seus medos,

sobre o incidente da viagem e sobre a confusão que ele, às vezes, fazia entre o

que estava na sua cabeça e o que estava fora dela. O pai o entendia bem,

enquanto a mãe não via com bons olhos o que ela achava ser exagerada

sensibilidade e fragilidade.

Na época, a escola estudava o encaminhamento de Eric para um

acompanhamento escolar, mas como o pai fazia as lições com o filho, julgou

melhor esperar mais um pouco. Era evidente a dificuldade, agora do pai, de incluir

um outro na vida do menino.

Outro movimento significativo ocorreu, algumas sessões adiante, sempre às

portas trancadas. Até então, era Eric quem determinava o quê e como eu devia

fazer este ou aquele personagem e, sempre, de maneira autoritária. Dessa vez,

porém, ele me disse para fazer o personagem que ele determinava, mas do jeito

que eu quisesse.

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O cenário era o seguinte: estávamos na Grécia e éramos escravos da

Rainha Atena. Não podíamos dormir, comer ou descansar. Ficávamos o tempo

todo submetidos à sua cruel tirania. Ele sempre fazia o papel de um escravo

totalmente submisso e obediente. Eu comecei, então, a representar um escravo

rebelde que se defendia, sempre que possível, afirmando que até mesmo um

escravo tinha seus direitos. Ele fez, então, o papel da rainha, defendendo sua

posição tirânica, mas prestando muita atenção aos meus argumentos para contra

argumentar.

Percebe-se que aqui, sim, a função de apresentação de objeto pode ser

exercida, pois ele me autoriza a poder sair da sua área de controle onipotente.

Com a ampliação do campo transicional, amplia-se também o campo do

conhecimento e ele começa a poder se alimentar (aprender) de outro que é

“não-eu” e perceber que a analista existe com as suas próprias características.

Na dramatização seguinte, Eric propôs que fôssemos escravos que

construíam as pirâmides dos astecas. Foi ele que passou, então, a fazer o papel

de escravo rebelde, desenvolvendo argumentos próprios em defesa da liberdade

possível. Em determinado momento, cortou a brincadeira, pegou papel, caneta,

lápis, tesoura e fita adesiva. Disse que essas eram as "nossas armas". Desenhou,

então, dois tipos de pirâmides, explicando por que a dos astecas era diferente da

dos egípcios. Quando falou sobre a dos astecas, desenhou labirintos, campos

magnéticos, armadilhas, ciladas.

O mesmo movimento apresentado pelo menino no contexto terapêutico de

construir uma barreira de proteção frente às invasões do ambiente e começar a

defender a liberdade possível começou a ocorrer também em outras situações. Os

pais e a escola relataram episódios que mostravam que Eric expressava e

comunicava melhor suas necessidades, possibilidades e limites, o que permitia

que a realidade externa fosse se adaptando ao seu ritmo e necessidades.

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Um exemplo disso foi como a escola deu retaguarda ao processo de Eric.

Como ele era um garoto bastante diferente, que chamava a atenção, alguns

cuidados foram dispensados. Por exemplo, não seria feita nenhuma intervenção

para socializá-lo e ele poderia estar sempre no mesmo grupo do colega com quem

parecia sentir-se mais seguro. À medida que foi ficando mais confiante, começou

a levar coisas que lhe eram significativas. Por exemplo, um dia foi vestido de

vaqueiro, noutro, levou coisas da cultura alemã e se pôs a contar sobre isso. A

escola extremamente habilidosa sempre dava um jeito de incluir suas propostas,

ainda que estranhas, dentro de alguma atividade, dando-lhe um espaço para falar

sobre elas, o que o fazia sentir-se bastante importante. Numa das vezes foi

vestido de tirolês e a escola usou esse episodio para iniciar um trabalho em que

cada aluno falaria sobre a cultura de seus ascendentes, num determinado dia da

semana.

Quinto Momento: O encontro nos estados excitados A partir da sessão seguinte, Eric já chegava num estado de excitação.

Assim que me via, já ia subindo as escadas. Como ele costumava chegar muito

antes do seu horário, geralmente, reclamava do que definia como "meus atrasos".

Assim que entrava na sala, desenvolvia uma espécie de ritual: trancava a porta,

fechava janelas e cortinas. Enquanto batia na mesa, dizia para eu pegar nossas

armas: papel, caneta, lápis, tesoura e fita adesiva. Depois graduava o abajur

chamando-o de "a luz de nosso sol" e aí uma cena podia acontecer. A graduação

do abajur marcava diferentes períodos. À noite, ele desligava o abajur e

dormíamos. Interessante o que dizia: "Agora é hora do lugar escurinho e gostoso.

É hora de descanso".

Em qual mundo estamos? Aqui os limites corporais se expandem até as

paredes. Há todo um movimento de transfiguração, em que os objetos do mundo

compartilhado são e não são eles mesmos, porque são transformados a partir da

forma singular imprimida pelo olhar e gesto de Eric. Estamos num mundo em que

o movimento é da ordem do paradoxo e da ambigüidade.

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Quando uma cena ficava muito dramática e amedrontadora, ele dizia:

"Corta!!" Éramos, então, diretores de um filme, estávamos em Hollywood, a cena

podia, ao mesmo tempo, continuar se passando na África, no Egito, aqui ou em

Hollywood mesmo.

Outra seqüência de sessões mostra como para Eric o bom rapidamente

podia se transformar em algo ruim. Numa determinada sessão, ele era médico e

eu enfermeira. Após salvarmos 200 pessoas machucadas durante uma tragédia,

íamos para a sala de descanso. Mas não podíamos tomar café ou relaxar, porque

o telefone tocava, anunciando mais desgraças e nos chamando para o trabalho

que era ininterrupto.

Eric perde novamente o ponto de descanso que permite o estado de

relaxamento. Mostra o padrão de reações, desenvolvido para se defender das

exigências ambientais. Era época de provas na escola e ele de fato estava sendo

mais exigido.

Aos poucos, comecei a representar uma enfermeira que se cansava e

reclamava de tantas tragédias, através de verbalizações no próprio papel. Dizia,

então: "A gente nem pode descansar. Só vêm desgraças. Nem café se pode tomar

em paz. Só cuidar dos outros e trabalhar, trabalhar. Assim não dá para agüentar!".

Ele me olhava, então, longa e fixamente, mudando um pouco o ritmo e oferecendo

momentos de descanso.

Atente-se novamente para a função de apresentação de objetos e a sua

capacidade de colocar-se no lugar do outro e atender seu pedido.

Mais adiante, o mesmo tema voltou com outro colorido. Agora a tragédia

quase acontecia, porém podíamos obter êxito. Éramos cozinheiros. Ganhávamos,

então, o concurso e éramos eleitos os melhores cozinheiros do mundo. Mas

tínhamos que cozinhar para um general que visitava o Brasil. Se ele não gostasse

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da nossa comida, seríamos guilhotinados. Não tinha jeito. Havia sempre uma

nuvem negra, pois a desgraça sempre pairava no ar. Creio que ele mostrava como

seu espaço psíquico tinha sido organizado em torno da exigência, da doença e de

como se sentia machucado.

As sessões começaram a ter outras variações. Eric, às vezes, pegava

alguns jogos e usava-os de maneira singular. Inventava jogos e regras com leis

próprias ditadas pela dimensão desejante, subjetiva, mas considerando também

dados das leis próprias dos objetos externos. Por exemplo: 6 bichos concorriam

para ser presidente e mandar nos outros. Após a nossa votação, o jacaré

ganhava, mas não podia assumir porque não era um animal da África, país onde a

eleição acontecia. Ganhava o elefante, segundo classificado, porque era da África.

Depois, ganhava o tigre porque era da Ásia, etc.

Aqui ele fazia uso de informações e conhecimentos objetivos sobre países

e capitais associadas à origem dos animais, para fazer ganhar os animais de que

mais gostava. Entretanto, desenvolvia argumentos e estabelecia relações a partir

das leis do mundo da realidade objetiva compartilhada. Numa determinada sessão

mais adiante, éramos cientistas investigadores no Mundo Perdido. Depois me

contou que havia assistido ao filme: "O mundo perdido".

Suas fantasias giravam em torno do filme, a partir de um colorido pessoal.

Tínhamos armas antivelociraptor e antitiranossaurus, por isso podíamos

descansar, tomar cafezinhos, enquanto discutíamos sobre nossas possibilidades

de defesa num mundo tão perigoso. Ele apagava o abajur para simular que era

noite e o acendia para anunciar o dia. Ele construiu com objetos de montar de

plástico, uma forma de cruz e disse que era a imagem, o símbolo de Cristo que

tinha poder e nos protegia, enquanto a empunhava.

O pensamento desenvolve-se aliado ao brincar criativo e permite ir criando

uma ponte entre o mundo pessoal e a realidade externa. A mente é produto da

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integração psique-soma e ajuda a passar da relação de objetos para a de uso dos

objetos.

Disse, então, que não precisávamos mais nos preocupar porque o Deus da

magia, da água, do fogo, do ar e da terra era nosso aliado. Em seguida, fez um

desenho de dois dinossauros, um grande, outro pequeno, falando das diferenças

entre eles. Depois, enquanto montava uma outra cena em Nova York, transformou

a forma que havia construído e usado para representar o Deus da magia, dando-

lhe agora uma outra forma e função: era um arma antitiranossaurus.

Pode-se destruir o objeto-símbolo que perde seu significado porque os

fenômenos transicionais se esparramam pelo território intermediário entre a

realidade psíquica interna e o mundo externo. O mesmo material permite a

construção da cruz, como símbolo de proteção, descanso e contato com o

Absoluto e da arma, símbolo da defesa que permite afastar o outro que ameaça.

Sexto Momento: O Conhecimento e o desenvolvimento da lógica

Na sessão antes das férias, Eric constituiu um tribunal para julgar um aluno

que tinha tirado conceito B, em Português no 1º semestre e C, no 2º, algo que

tinha acontecido com ele e sido considerado pelos pais como um retrocesso

imperdoável. Ele representava o juiz e eu, as diferentes testemunhas: os pais e

suas críticas, os colegas e sua compreensão, a professora e suas ponderações.

Para responder às suas perguntas, fazia uso das informações dadas por ele na

sessão anterior. Quando estava no papel da professora remeti-me às dificuldades

anteriores dos pais em ajudar o aluno, colocando-o em escolas inadequadas e

invadindo o seu ritmo. Em seguida, no papel de colega, falei de como ele estava

mudado: estava mais comunicativo e companheiro.

Após depoimentos de várias testemunhas, ele chegou a uma interessante

decisão: o aluno foi absolvido e os pais considerados culpados. A mãe foi

perdoada e o pai condenado a 100 anos de prisão, já que sem a presença de um

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pai, disse ele, uma mãe não poderia sozinha, mesmo com a ajuda dos avós, dar

conta da educação de um filho.

Note-se que por meio do seu brincar, Eric expressa o desejo de saber mais

sobre si mesmo e de como os outros o vêem por meio do espelho do olhar da

analista. Pode, assim, reconhecer a si mesmo como um objeto objetivo bem como

as características dos pais dentro de um mundo compartilhado. Fez sentido, para

mim, afirmação de Milner (1991) de que "o objeto transicional é o símbolo de uma

jornada. Parece mesmo ser uma jornada de ida e volta; ambas voltadas para a

descoberta da realidade objetiva do objeto e para a descoberta da realidade

objetiva do sujeito – o eu sou". (p. 248).

Observe-se, também, que é como se Eric fosse recriando as concepções

teóricas de tantos autores e, particularmente, de Winnicott, sobre a importância da

presença de um casal e da presença do pai no sentido de manter a

indestrutibilidade do ambiente. Esta seria condição para a mãe exercer as funções

no atendimento das primeiras necessidades de seu filho. Cada vez mais, o garoto

distancia-se de uma situação podendo apropriar-se da sua experiência por meio

de um pensamento reflexivo.

Na mesma sessão, ainda, desenhou dois ETs, um grande e outro pequeno

assinalando não as semelhanças, mas as diferenças entre eles. Depois, passou a

falar de experiências que havia feito no sítio com o pai. Contou que jogou sal

numa lesma e ela derreteu. No final de semana que se seguiria, pretendia jogar

açúcar, acrescentando que tinha certeza que ela iria endurecer. Não apenas

respondeu às minhas indagações sobre suas certezas, mas refletiu sobre várias

questões relacionadas ao tema, trazendo, inclusive, situações discutidas em sala

de aula. No final, reconheceu que talvez os cientistas tivessem certeza do que

poderia acontecer com a lesma, pois já deviam ter feito essa experiência, mas ele

precisaria ainda testar sua hipótese, aliás, firmemente ancorada num raciocínio

lógico do mundo objetivo: se o sal derretia a lesma e era o contrário do açúcar,

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este também deveria causar o efeito oposto. Trouxe outras situações em que

podia refletir sobre o efeito de dois elementos diferentes e complementares sobre

um terceiro e mesmo elemento.

Note-se que o prazer da aprendizagem podia circular. A base do

desenvolvimento da atitude científica relaciona-se à possibilidade que vemos

surgir em Eric de que a Função da ignorância comece a operar. Na época, ele

estava na 3º série e pediu para iniciar o acompanhamento das tarefas escolares já

proposto pela escola com o objetivo de ajudá-lo a organizar-se e ampliar sua

capacidade de expressão oral e escrita. O reconhecimento e a aceitação de suas

próprias características pessoais coincidia com o aumento da sua capacidade de

reconhecer a existência e a qualidade de permanência dos objetos externos.

Veja-se, também, que o estabelecimento da tridimensionalidade, o início

das questões triangulares edípicas coincidiu com o desenvolvimento do

pensamento criativo e com a capacidade de observação da experiência num

mundo de realidade compartilhada. Podia usar o pai no que ele tinha de melhor e

fazer experiências cientificas com ele. Winnicott (1956) aponta que a possibilidade

de que a criança possa usufruir e experimentar a vida instintiva e pulsional num

ambiente seguro e indestrutível, faz parte da função paterna. Aponta, também,

que o pai representa o primeiro terceiro que entra na vida do filho, sendo um ser

absolutamente diferente e com autonomia, o que vai permitir que a criança se

perceba como um ser integrado e também autônomo, acentuando, ainda mais o

distanciamento da mãe. (WINNICOTT, 1969)

Dispositivos usados no atendimento de Eric

A atitude de espera receptiva basicamente ancorada na função de

testemunha, que permitiu o encontro e a criação do vínculo de confiança no

momento do diagnóstico, continuou a dar sustentação ao campo de experiências.

O Homem-Aranha, objeto-símbolo com que Eric se relacionava na área dos

fenômenos subjetivos, apresentava a ausência da presença de um outro, ou

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melhor, a história de uma relação não-humana. O campo de comunicação significativa abriu-se por meio desse objeto que ao ser humanizado, permitiu o

caminhar do menino em direção ao jogo tridimensional. Assim Eric foi podendo

usufruir experiências necessárias para estabelecer um outro tipo de relação com o

mundo de realidade externa.

Observe-se, também, a importância da noção de fracassos reparados. Foi

quando a analista saiu fora da área de onipotência de Eric que ele pôde repudiá-

la, usando a boca para restabelecer a comunicação significativa. No terceiro

momento, quando Eric dirigiu-se ao armário, surgiu a hesitação relacionada à

curiosidade em saber se o mundo podia ser apetecível, ou seja, se podia existir

alguma coisa boa para ser experimentada, conhecida.

Quando Eric abriu o armário e pegou o jogo "Caça às bruxas" continuou a

trabalhar as suas questões fundamentais: Como se defender diante de um mundo

estranho e ameaçador? O jogo foi usado na área dos fenômenos subjetivos

continuando a expressar aquilo que era objeto de seu interesse: a eterna luta

entre o Bem e o Mal, ajudado agora pela sua astúcia (sic) podendo, assim,

proteger-se e caçar as bruxas.

NO artigo A observação de bebês numa situação estabelecida

(WINNICOTT, 1941) são descritos os três momentos em que um bebê entre cinco

a treze meses pode se relacionar com um objeto – a espátula – e usá-lo. Num

primeiro momento, o bebê é atraído pela espátula e começa a salivar (experiência

psicossomática, visceral). Ele tem uma questão: pode ou não pegar a espátula?

Encontra-se em conflito. Num segundo, toma posse e usa a espátula na área do

faz de conta: brinca de alimentar a mãe como se a espátula fosse uma colher. E,

num terceiro momento, o bebê passa a jogar a espátula no chão e desfruta do ato

de se livrar dela. Se a espátula lhe é devolvida, ele novamente a joga no chão até

se desinteressar por ela. Pode, então, voltar-se para outros objetos. Trata-se de

uma experiência com início, meio e fim que enriquece o self, pois decorre de uma

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escolha e de um gesto espontâneo e é acompanhada do sentimento de autoria e

realização pessoal.

Na minha experiência tenho feito uso desse modelo que opera como um

dispositivo e permite investigar em que área da existência o paciente transita e

habita: a dos fenômenos subjetivos, a dos fenômenos culturais (transicionais) ou a

da realidade objetivamente percebida.

No caso de Eric, à medida que se abriu o campo de relações entre ele e o

mundo de realidade compartilhada, o manejo e a noção de apresentação de

objetos tornaram-se importantes, permitindo também incluir e ajudar a organizar a

retaguarda do ambiente familiar e escolar.

O mesmo movimento apresentado pelo menino no contexto terapêutico de

construir uma barreira de proteção frente às invasões do ambiente e começar a

defender a liberdade possível começou a ocorrer também em outras situações.

Tanto os pais quanto a escola relataram episódios em que ele comunicava suas

necessidades, possibilidades e limites, o que permitiu que a realidade externa

fosse se adaptando ao seu ritmo e necessidades.

Winnicott (1975) afirma:

É no brincar, e talvez apenas no brincar que a criança ou o

adulto fruem sua liberdade de criação (...). Se o terapeuta

não pode brincar, então ele não se adequa ao trabalho. Se é

o paciente que não pode, então algo precisa ser feito para

ajudá-lo a se tornar capaz de brincar, após o que a

psicoterapia pode começar. (p. 79-0)

Algumas Considerações Reconhecer a importância de investigar a constituição e o desenvolvimento

do campo onde a comunicação significativa acontece levou-me a considerá-la

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como a primeira necessidade psíquica do ser humano e a incluir, cada vez mais e

de diferentes formas, os pais nos processos terapêuticos dos filhos. Na minha

experiência com Eric reconheci a importância de aprender a respeitar o tempo, o

que significou fazer uso da própria noção de Função da Ignorância como ethos,

como lugar que permitiu acolher e suportar o meu próprio não saber.

Vale lembrar que as necessidades do paciente e da família variam muito

de caso para caso e em diferentes momentos do processo. No primeiro ano de

atendimento de Eric, houve vários encontros com os pais, deles juntamente com

Eric e, também, com algum dos pais separadamente. Acompanhar e conversar

com os pais sem criticá-los, permitiu abrir um campo de comunicação significativa.

Dar retaguarda aos pais é torná-los um multiplicador para que eles possam fazer o

mesmo com seus filhos.

Assim como muitos outros pais, os de Eric puderam falar dos sentimentos

que acompanharam a chegada e o começo de vida do garoto, os quais variavam

entre culpa, vergonha, medo, susto por ter uma criança tão diferente e distante da

esperada. Tenho ressaltado42 a importância da função de re-apresentação da criança aos seus pais, como sendo de fundamental importância no atendimento

de crianças com inibição.

A capacidade de trânsito no movimento que caracteriza o jogo

tridimensional permitiu que a analista pudesse identificar-se com Eric e seus pais

e, ao mesmo tempo, diferenciar-se deles exercendo as funções necessitadas e

facilitando, assim, a comunicação significativa entre eles.

A finalização do atendimento: transformação do self e da realidade

compartilhada

Na terceira série a escola encaminhou Eric para um trabalho

psicopedagógico. Acompanhei o menino até a 7º série quando ele resolveu “dar

42 PARENTE, 2000, 2003.

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um tempo” e interromper o seu processo terapêutico, porque se sentia preparado

para andar sozinho. Continuei a ter notícias dele por intermédio de seus pais e de

sua psicopedagoga.

Depois de três anos, cursando já o primeiro ano do ensino médio, a mãe de

Eric telefonou-me pois ele havia pedido para conversar comigo. Deparei com um

rapagão. Contou que tinha superado o Homem-Aranha, pois havia se tornado um

herói. Explicou-se: havia dentro dele, agora, um Eric mais forte que administrava

todos os outros lados que habitavam dentro dele, inclusive, o que poderia ficar sob

o domínio do Mal porque queria o poder. "O poder é corruptor, como o anel",

disse-me ele, referindo-se ao livro O Senhor dos Anéis, que vinha lendo

apaixonadamente. "Quanto maior o poder, maior a responsabilidade. O herói é

quem usa o poder com responsabilidade, ao contrário do vilão". Ele poderia se

tornar um ou outro. Contou ter conquistado, também, o poder das palavras, o

controle e domínio de si mesmo, inclusive do seu lado animal que sob o domínio

do Mal, isto é, quando descontrolado e dominado pela raiva poderia até matar

alguém, contando alguns episódios desta natureza.

Após várias reflexões sobre o desejo do ser humano de ser bom e de que

só existisse o Bem, reconheceu a necessidade de controlar e alcançar o equilíbrio

entre eles, já que o Bem não existiria sem o Mal, assim como a luz não existiria

sem a sombra. Disse-me de seu apreço pela questão do livre arbítrio, do seu

desapego pelas coisas materiais, de suas conversas com o professor de filosofia,

assim como das leituras que costumava fazer, inclusive da Bíblia. Falou de sua fé

e como vinha aprendendo que o homem tem tempo para tudo: dormir, acordar,

passear e, até, para viver bem e, também, para morrer. Aos poucos, fui

compreendendo o motivo de sua volta naquele momento, quando comentou que

queria estudar numa outra cidade e sabia do embate que teria que travar com

seus pais. Era claro para ele que seus horizontes pessoais, profissionais e

econômicos eram organizados em torno de valores diferentes. Mas como tinha

controle sobre suas emoções e tinha adquirido a coragem porque conhecia os

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seus medos, achava que teria condições de adaptar-se e transformar as

situações.

Contou que a característica que mais admirava nos seres humanos que se

transformavam em heróis, porque cumpriam sua missão na vida, era a criação e a

habilidade de tirar o véu da cegueira. Falou sobre as defesas que vinha

desenvolvendo para poder ser ele mesmo e sobre o combate de vontades que

travava com os pais e com os avós maternos para ser respeitado. Aprendeu o

poder da esquiva: faz de conta que concorda que vai fazer o que os pais querem

que ele faça, finge ser seu aliado até que eles possam entender e aceitar o que

ele quer. Tem uma vida boa, mas preza o desapego porque quanto mais a pessoa

precisa de coisas materiais para ser feliz, mais insatisfeita é. Pensa que, se

encontrar uma mulher que o ame e tiver um filho, vai ensinar-lhe que o bem maior

do ser humano é o livre arbítrio. Contou que, uma vez, a mãe se arrependeu de ter

ameaçado tirar seu computador e outros bens materiais para castigá-lo, ao ver

sua tranqüilidade e perceber que isso não o abalava.

Aliás, na conversa que tive com os pais constatei a sua gratidão pelo

trabalho realizado com o filho e o quanto tinham aprendido a admirar o seu jeito

diferente, mas interessante de ser.

Vemos ai, belamente ilustrada, a introjeção da função transicional do campo

intersubjetivo desenvolvido no espaço analítico espalhando-se por diferentes

áreas do cotidiano de Eric. Não só o menino transformou-se a partir do diálogo e

troca com a realidade, mas provocou a transformação da realidade compartilhada

(ambiente familiar, escolar e analítico).

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Estação 7. Transformações do Olhar

“Se não houvesse o ponto, o ponto em repouso

não haveria nenhuma dança. E só há dança”. T.S. Elliot

Nesta estação, retomo o problema apresentado na Baldeação e que é a

mola propulsora deste trabalho: como conceitos provenientes de duas teorias

consideradas epistemologicamente distintas puderam ser articulados na prática

clínica? Qual a herança de Paín e Winnicott no desenvolvimento do meu

pensamento e no trabalho clínico que desenvolvo atualmente com crianças com

inibição?

Pretendo dar visibilidade ao ethos que organiza a concepção de Paín sobre

as relações entre o ser humano e o mundo de realidade externa e sobre o papel

da aprendizagem e do conhecimento, buscando marcar diferenças entre a sua

contribuição e as transformações que fiz em alguns dos seus conceitos,

especialmente no de Função da Ignorância, a partir do atendimento de Carol, já

sob a influência do de Winnicott.

Buscando apresentar não só uma concepção de conjunto do meu percurso,

mas também uma compreensão sobre ele, é preciso, agora, examinar como essas

teorias permitiram a construção de dispositivos clínicos43. Considerando que Paín

opera a partir de um modelo intra-psíquico e Winnicott de um campo

intersubjetivo, é preciso examinar como um e outro concebem a participação do

ambiente e do fator maturacional no desenvolvimento do ser humano. E, também,

como esses autores concebem as relações entre a criança e a realidade externa.

Procurarei salientar, aqui, muito mais as diferenças entre eles, já que o

43 Uso o termo dispositivo, neste contexto, para referir-me às funções exercidas pela analista buscando oferecer condições de a criança usufruir situações que permitam o desenvolvimento do seu potencial ativo e criativo.

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aprofundamento e as aproximações entre eles foram realizados em trabalhos

anteriores44.

Sobre os Fundamentos de Paín e Winnicott - Marcando diferenças Concordo que “(...) em nenhum campo cultural é possível ser original,

exceto numa base de tradição“ (WINNICOTT, 1967b, p.138). Assim, é preciso

considerar o percurso, o contexto histórico e o cenário cultural em que cada um

desses autores desenvolveu o seu pensamento para explicitar como pude articulá-

los e usá-los na experiência clínica.

Paín, filósofa e psicopedagoga argentina, mora em Paris desde 1977.

Profunda conhecedora da Epistemologia Genética de Piaget interessou-se

inicialmente pelo desenvolvimento das estruturas de pensamento voltadas para a

construção do conhecimento. Faço, a seguir, um resumo do que escrevi em Pelos

Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, para marcar algumas diferenças

entre o seu pensamento e o uso que fiz dele. Para tornar mais preciso, é preciso

dizer que após realizar um levantamento dos livros de Paín, recortando os temas-

objeto de suas pesquisas, classifiquei-os em três eixos dominantes, encontrando,

assim, o que é, para mim, a linha de continuidade do seu pensamento: a questão

do par conhecimento-ignorância.

No primeiro eixo, temos a Paín piagetiana, com quatro livros publicados e

voltados para a construção do conhecimento. No segundo, temos a Paín

psicopedagoga e filósofa, diretamente interessada no par conhecimento-

ignorância, com dois livros publicados. E, no terceiro, temos a Paín-

psicopedagoga – arte terapeuta, investigando a ressonância da ignorância no

corpo e interessada nas relações entre a cognição e a atividade artística, com um

livro publicado. Isso sem contar com os inúmeros artigos e seminários publicados

em cada um desses eixos.

44 Parente, 1995, 1996, 2000 e 2003.

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Em Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, focalizei o segundo

eixo do pensamento de Pain, movida por dois objetivos. Por um lado, pretendia

introduzir o leitor-estudante no pensamento da filósofa e psicopedagoga franco-

argentina, buscando a linha de continuidade entre seus dois livros publicados

nesse período: Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem e A

Função da Ignorância. Buscava, também, apresentar o meu pensamento

desenvolvido a partir do dela, explicitando a forma como pude apreendê-lo e usá-

lo para estabelecer um diálogo entre o atendimento de Carol– o Bebê

Moranguinho, que tinha um quadro de inibição cognitiva e de Olga, a menina que

não podia ser fração, cujo diagnóstico era problema de aprendizagem como

sintoma.

Neste trabalho continuo a focalizar o segundo eixo do pensamento de Paín,

época em que ela estava reescrevendo a Função da Ignorância45 e passou a ser

minha orientadora-supervisora, o que reforçou ainda mais o meu distanciamento

do pensamento de Luzuriaga. Como vimos na Estação 2, na viagem de ida, Paín

não concordava com a concepção presente na tradição kleiniana sobre o

predomínio da pulsão de morte no funcionamento mental, nem com a noção de

sadismo primário, já que, para ela, o bebê é um pesquisador. Gostaria de

reafirmar que me refiro a um tipo de “kleinismo” que dominou alguns lugares da

Argentina e de São Paulo, especialmente, nas décadas de 1970 e 1980, muito

diferente das contribuições atuais ligadas à tradição kleiniana.

À medida que Paín atende crianças com potencial intelectual preservado,

porém, sem a disponibilidade para usá-lo, vai reconhecendo a participação da

dimensão dramática, subjetivante no pensamento do sujeito que aprende e

voltando-se para a busca de um referencial na Psicanálise que permitisse

compreender a articulação entre o potencial intelectual afetado e a dramática

inconsciente na qual a criança estava enredada.

45 Em Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, cap. 3, aprofundo o contexto histórico e o cenário cultural em que Paín desenvolveu seu pensamento.

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Em seu primeiro livro desse período, defende a especificidade do campo

psicopedagógico, operacionaliza um modelo de diagnóstico e tratamento e

introduz a teoria psicanalítica na análise do problema de aprendizagem

considerado por ela como um sintoma. Apresenta uma teoria da técnica que

abarca o enquadre, o diagnóstico, a orientação terapêutica, o tratamento,

objetivos, técnicas e a direção da intervenção na clínica.

Na mesma esteira de Freud, Paín desenvolve seus pressupostos a partir da

noção de desejo, falta e frustração, buscando construir um modelo de

funcionamento do aparelho mental ancorado na dimensão pulsional, incluindo,

também, o funcionamento da dimensão cognitiva. Na mesma tradição de Freud,

reconhece que: "foi preciso escolher entre a pulsão e a civilização, e a civilização

venceu. Através da educação a civilização pretende manter a pulsão em seus

trilhos, e aproveitar sua energia em obras culturais". (PAÍN, 1985, p. 18)

Salienta o aspecto de reprodução da aprendizagem que torna o outro

semelhante. Aprendemos para fazer parte da cultura a que pertencemos. É assim

que ocorre a transformação do filhote biológico em ser de cultura. Por isso, a

aprendizagem está muito mais ligada ao instinto de reprodução – porque produz

um outro semelhante – do que à função de adaptação. Diferentemente dos

animais – que trazem inscritos na sua bagagem genética aquilo que precisam para

sobreviver – o ser humano não nasce com conteúdos inscritos geneticamente.

Para ele, tudo deverá ser aprendido na relação com um outro que transmite os

modos de ser e os valores do grupo social e da cultura a que pertence.

A curiosidade intelectual não decorre da curiosidade sexual relacionada à

cena primária: "Não é que haja um prazer de aprender porque o aprender esteja

significando a sexualidade propriamente dita e, sim, porque há um prazer próprio

da função, assim como há o prazer de respirar" (PAÍN, 1999)46. Entretanto, essa

46 Uma conversa com Sara Paín. Boletim Associação Brasileira de Psicopedagogia, São Paulo, julho 99, número 17.

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função pode ser perdida ou pervertida no triângulo edípico, mantendo assim o

sujeito num lugar por onde o prazer da aprendizagem não pode circular e, desta

forma, resistente a entrar no princípio da realidade.

Reconhece a importância de proceder a uma investigação para verificar

qual estrutura possibilita a disfunção da inteligência e como ela ocorre. O seu

modelo de diagnóstico envolve o uso de testes e técnicas específicos da formação

e do campo de atuação do psicólogo, no Brasil. Propõe, também, uma

classificação, desenvolvida à luz das contribuições de Freud (1925) em Inibição,

Sintoma e Angústia, que permite fazer o diagnóstico diferencial do problema de

aprendizagem. Enquanto o termo inibição relaciona-se ao aspecto de diminuição

da função cognitiva, o termo sintoma refere-se à transformação desta função. Em

A Função da Ignorância assinalará que nos momentos em que a estrutura

objetivante cai nas garras da subjetivante, o objeto de conhecimento é convertido

em objeto de pulsão e o sujeito fica aprisionado na rede do desejo47.

Assinala que o trabalho psicopedagogico é operativo, situacional, devendo

constituir-se numa realização para o sujeito. Assim, o tratamento é desenvolvido

em torno de uma proposta, exclusivamente a partir do que ocorre na sessão. Ao

salientar a importância dos enquadramentos reais, assinala:“O aspecto

fundamental não recai sobre a relação transferencial que o psicopedagogo deve

sempre levar em consideração, ainda que não a explicite, a não ser que perturbe a

tarefa e que esteja tão evidente que precise apenas de uma confirmação verbal

para ser assumida”. (PAÍN, 1985, p. 78).

O objetivo do tratamento, como já foi dito, seria o resgate do prazer da

aprendizagem, devido à mudança da criança para uma posição na qual o prazer

da aprendizagem possa circular. Note-se que, de alguma forma, o aspecto de

urgência é contemplado, sem deixar de lado o respeito aos processos de

47 Ver cap. 7 A menina que não podia ser fração - O problema de aprendizagem como sintoma. In Pelos caminhos da Ignorância e do Conhecimento.

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subjetivação da criança. E tudo para que ela descubra o prazer e a autonomia do

exercício da função do conhecimento. A ignorância, órgão fundamental do

inconsciente e a dimensão subjetivante do pensamento da criança são o foco para

Paín, enquanto possibilidade de “levar“ o sujeito para o conhecimento.

Na esteira de Freud, reconhece que a fantasia permite lidar com a

frustração e que resignação e integração são duas caras do mesmo processo de

realização. O sujeito pode resignar-se quando compreende e sistematiza, “mas

necessita certa resignação, certa conformidade com a realidade para despedir-se

dos prazeres da fantasia” (PAÍN,1985, p. 81).

A partir dessas noções, recomenda, durante o tratamento, uma atitude mais

ativa e diretiva por parte do terapeuta, o que, como vimos durante o atendimento

de Carol, levou-me a contrapor essa atitude com outra, inspirada em Winnicott, já

que a menina parecia necessitar de alguém que a acompanhasse exercendo a

função de testemunha. A partir daí, foi se operando o meu distanciamento da

atitude clínica preconizada por Paín e uma apropriação singular dos seus

conceitos48, especialmente o de Função da Ignorância, à medida que me

aproximava da contribuição de Winnicott, o que levou a muitas outras

transformações, como veremos, ao longo desta Estação.

Em A Função da Ignorância (1987, 1989, 1999), Paín afasta-se da clínica e

elabora uma teoria unitária do pensamento concreto, ou seja, uma teoria das

relações entre a dimensão do pensamento do sujeito capaz de objetividade e a

dimensão do pensamento do sujeito capaz de significar a ignorância.

É preciso salientar que diferentemente do que alguns acreditam, Paín

(1987) não pretende conciliar, juntar ou mesclar Freud e Piaget e, sim, articulá-los,

na construção de uma teoria que dê conta do campo dos problemas de

aprendizagem. De certo modo, sigo na sua esteira e apresento, aqui, o mesmo

48 Ver especialmente Cap. 3, 4 e 5. In Pelos caminhos da Ignorância e do Conhecimento.

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que fiz em relação ao uso de sua contribuição e da de Winnicott com uma

preocupação essencialmente voltada para a clínica da inibição intelectual, tema

que não foi diretamente o foco da preocupação de nenhum deles.

É preciso salientar, também, que temos em Paín uma teoria do pensamento

e da aprendizagem. Para ela, o pensamento é o equivalente funcional do instinto

no ser humano e a aprendizagem, lugar de articulação entre a estrutura

subjetivante e a objetivante. Trata-se de um livro eminentemente teórico,

reaproximando a autora da Filosofia. É ela quem afirma na contracapa da edição

francesa da Função da Ignorância (1989/99): "(...)foi no contato com os problemas

concretos da prática pedagógica e da clínica dos problemas de aprendizagem

que a questão fundamental da epistemologia - como o conhecimento é possível?-

apresentou-se na forma de sua inversão dialética: Como é possível a ignorância?”

Mais adiante veremos que essa preocupação direciona-se, também, para o

aprofundamento nas relações entre o corpo e o pensamento, pois a ignorância se

dá no corpo. Este será o tema do que chamei de terceiro eixo do seu percurso.

Para explicitar a concepção de Paín sobre as relações entre o ser humano

e o mundo de realidade objetiva, retomemos Freud, já que o pensamento de Paín

desenvolve-se na mesma perspectiva. Para ele, a primeira situação de

atendimento a uma necessidade – amamentação – levaria ao surgimento do

desejo, definido como a busca alucinatória da repetição dessa primeira situação

de satisfação. Assim, o desejo seria investido no objeto. Esse é o paradigma do

funcionamento de toda a vida pulsional do ser humano para Freud e, também,

para Paín.

Concordo com Safra49 quando assinala que, para Freud, o psiquismo se

organiza a partir do desejo investido no objeto. Assim, a ênfase é colocada na

relação do sujeito com a realidade e do manejo que ele faz dela em termos de

49 Faço, aqui, um uso livre das anotações feitas durante supervisões e cursos de Gilberto Safra no Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica – PUC/SP, 2002 -2003.

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satisfação ou frustração do desejo. Ao assinalar o aspecto da realidade, enfatiza-

se também – o que não é pouco – uma concepção na qual o indivíduo necessita

se adaptar à realidade, apesar da frustração, já que disso depende a sua

sobrevivência. Nessa perspectiva, a busca do conhecimento da realidade seria

resultado da frustração. Trata-se, assim, de uma relação à qual o ser humano tem

que se submeter para poder sobreviver. Essa concepção presente em Paín é

muito diferente da de Winnicott que, como vimos nas Estações 3 e 4, favoreceu

compreender e acompanhar os movimentos e a comunicação não-verbal de Carol.

Se Paín, como Freud, desenvolve seus pressupostos a partir da noção de

desejo e falta, buscando construir um modelo de funcionamento do aparelho

mental abarcando, também, a dimensão cognitiva, a preocupação de Winnicott é

outra, já que ele opera um deslocamento da ênfase colocada na noção de objeto e

de representação para a de campo, paradoxo e ilusão.

A partir do encontro com Winnicott uma nova indagação se impôs: seria o

ser humano para sempre alienado no desejo do outro ou isso aconteceria devido a

uma falha do ambiente no atendimento do que estou chamando, inspirada em

Winnicott (1958, 1963-a, 1975) de primeira necessidade pois a integração

depende dela: a de ser visto e reconhecido o que permitiria a criação da

comunicação significativa que se dá por meio da troca de olhares ou experiências

na mutualidade.

No atendimento de Carol vimos que o distanciamento de Paín se deu em

relação a função de testemunha. Quando ela refere-se ao olhar, está

considerando a questão da legitimidade do bebê no desejo dos pais, segundo uma

concepção de um sujeito para sempre alienado no desejo do outro. Assim, o ato

projetivo é inerente a todo e qualquer ato de construção do mundo, incluindo-se

aqui também a construção do conhecimento. Isso significa que ela funda as bases

do seu conceito de Função da Ignorância no mecanismo da projeção.

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Já para Winnicott, os mecanismos de projeção não podem ser

considerados antes de existir uma separação entre o eu e o não-eu. Mesmo

quando essa separação começa a ocorrer, a primeira idéia é a da união e não a

da separação. Assim, a meu ver a ignorância seria condição para a ilusão. A

primeira ignorância seria a da consciência do estado de desamparo e impotência

com que se nasce. E isso devido à disponibilidade genuína da mãe desenvolvida

durante a gestação que permite estar no movimento que caracteriza o jogo

tridimensional e ver o bebê como ele é, isto é, como um objeto externo,

reconhecendo, assim, seu estilo e singularidade e, ao mesmo tempo, podendo

identificar-se com ele, alimentando a sua onipotência.

Para Paín, a aprendizagem supõe um ato de renúncia e é possível devido à

capacidade de resignação e ressignificação. Teríamos aí a noção da modificação

do princípio do prazer em princípio da realidade. Ela usa a experiência clínica para

construir uma técnica e uma teoria e opera no modo de pensamento racionalista,

característico do iluminismo. Trata-se de uma concepção de homem e de mundo

que envolve noções de aparelho e funcionamento mental.

Já Winnicott opera no modo de pensamento que admite a noção de

paradoxo e ambigüidade. Corta com a tradição do pensamento cartesiano que

supõe a separação entre a subjetividade e a objetividade. Não acredita na

neutralidade do observador, garantida pelo setting e pela abstinência do analista,

mito da ciência natural, no final do século XIX e começo do XX. Ele passeia pelas

teorias, usando-as como quem rabisca, tendo a experiência clínica e a dimensão

ética e estética, sempre no horizonte, privilegiando a experiência, a relação com o

outro. Trata-se de uma teoria da forma e não do conteúdo, o que traz à baila os

temas do manejo do tempo e da ampliação do espaço (MILNER, 1991; DAVIS,

1982). Sua concepção de setting permite modificações, quando necessárias, em

relação à freqüência ou ao tempo da sessão.

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Quando Winnicott fala do olhar da mãe é no sentido de uma metáfora.

Evidentemente ele não nega que a mãe tenha desejo, mas acredita que ela pode

olhar e ver o bebê como um objeto do mundo compartilhado, podendo refleti-lo.

Segundo Winnicott num primeiro momento, o bebê não olha para perceber e sim

para "aperceber", olha para comunicar e não para ver. Se o bebê tem que

começar a ver para perceber o estado do "humor" da mãe, por exemplo, ele tem

que abrir mão da ilusão da onipotência muito cedo, não havendo lugar para que

ele possa criar a mãe, o que equivale a dizer que já começa um processo de

"atrofia" da criatividade. Essa é a base do desenvolvimento do falso-self. Se a mãe

está bem, ela pode ver a criança como um objeto do mundo compartilhado e

assim refleti-la a partir do que ela é, e não a partir do que ela (mãe) projeta nela.

(WINNICOTT, 1975, p.155). A meu ver, está ai claramente colocado qual seria o

protótipo da posição ética de um analista, independentemente do tipo de

sofrimento psíquico que o paciente apresenta.

Diferentemente para Paín, o olhar da mãe está diretamente relacionado à

questão da legitimidade da criança no seu desejo. Temos então a noção de um

sujeito alienado no desejo do outro. Importante ressaltar que Paín apresenta,

como afirma Melo: “uma teoria unitária do pensamento e uma teoria dualista do

sujeito”. (MELO, 1987)

Aos poucos fui me dando conta de que entender o sentido do sintoma no

triângulo edípico é bem diferente de tentar compreender o que a criança busca

comunicar, inclusive de forma não-verbal, por meio dele. Da mesma forma, foi

ficando claro, para mim, a diferença entre compreender a repetição que

caracteriza o sintoma como expressão da permanência da criança num lugar por

onde o prazer da aprendizagem não pode circular e de compreender a repetição

como busca da presença de um outro ser humano que possa oferecer condições

ambientais para o desenvolvimento das potencialidades do self.

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Uma outra diferença importante é que Winnicott não trabalha com as

noções de desejo, falta e frustração como Paín. Isso tem sérias implicações na

clínica. Na sua perspectiva, a transferência é entendida como exercício de funções

psíquicas necessárias ao atendimento das primeiras necessidades – integração,

personalização e realização do bebê, e não como projeção de conteúdos ou

fantasias numa linha de deslocamento no tempo.

Gostaria de assinalar, à moda do que fiz em relação a Paín, alguns pontos

apresentados em Parente, 200350, para explicitar a minha forma atual de

apreender a noção de espaço potencial e paradoxo de Winnicott, e como pude

usá-la durante o atendimento de Eric, a partir, também, das transformações

realizadas sob a influência do diálogo com a teoria de Paín sobre a Função da

Ignorância.

Já na introdução, localizo o leitor, explicitando o meu objetivo: num primeiro

momento, levantar na obra desse autor o que, a meu ver, poderia ser uma

fundamentação teórica interessante na Clínica da Aprendizagem e, num segundo,

mostrar como ela poderia ser usada no atendimento de duas crianças com

inibição intelectual, que fizeram parte da Dissertação de Mestrado51, aprofundando

algumas noções teóricas. Enquanto nesses atendimentos propunha o uso de

jogos e atividades cognitivas no campo transicional, buscando favorecer o

caminhar das crianças em direção à criação da externalidade do mundo, no

atendimento de Eric, meu objetivo era acompanhar a criação e constituição do

fenômeno da ilusão e do seu herdeiro, o espaço potencial – espaço de troca e

jogo que abre o campo de relações significativas entre a criança e outro ser

humano, como aquele que presentifica e apresenta a realidade externa.

50 Pelos Caminhos da Ilusão e do Conhecimento – Uma Fundamentação Teórica na Clínica da Aprendizagem a partir de D. W. Winnicott 51 Inibição Intelectual: o Paradoxo no sintoma expressando a paralisia e a busca da criatividade, apresentado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, PUC/SP, 1996

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Ressalto, também, o uso que fiz da teoria da criatividade de Winnicott

(1975) para refletir, por um lado, sobre a participação da ilusão, imaginação e

capacidade simbólica na constituição da subjetividade e, por outro, sobre a

dimensão da agressividade na criação da externalidade do objeto do mundo.

Quando há a integração entre essas dimensões: a do amor dos estados tranqüilos

e a do amor do estado excitado é possível a constituição de um ser que, por

sentir-se real e integrado em termos psicossomáticos, pode ir para um mundo de

realidade compartilhada e nele se realizar.

Assinalo, ainda, que no artigo de 1941 – Observação de bebês numa

situação estabelecida – em que Winnicott descreve os três momentos de relação e

uso de um objeto – a espátula, por um bebê entre cinco e treze meses de idade-

encontrei o que é, para mim, o protótipo do movimento presente no brincar,

conhecer e aprender criativos52 e que seria a matriz da relação do ser humano

com o conhecimento e a aprendizagem.53 Por meio do jogo da espátula,

compreendi as implicações do uso da noção de espaço potencial e dos

fenômenos transicionais, na clínica. Na minha experiência atual, o diagnóstico e o

atendimento propriamente dito são feitos a partir do que chamei de atitude de

espera receptiva inspirada na noção de espaço potencial54 e da minha forma de

usar o modelo proposto por Winnicott no jogo da espátula. Esses conceitos

operam como dispositivos e permitem investigar em que área da existência, o

paciente transita e habita: a dos fenômenos subjetivos, a dos fenômenos culturais

(transicionais) ou a da realidade objetivamente percebida. Na experiência clínica,

se o paciente está na área dos fenômenos subjetivos, trata-se de uma situação de

inibição intelectual e a relação com o mundo é disruptiva ou até mesmo

ameaçadora, como vimos com Eric. Já com Carol, pudemos observar que já podia

usar um objeto subjetivo - o Bebê-Moranguinho – de forma transicional.

52 Ver Parente, 2003, cap. 1, p.28-30, em que a relação entre o jogo da espátula e a aprendizagem é apresentada. 53 Ver Parente, 2003, cap. 2, em que aprofundo as relações entre criatividade, aprendizagem e conhecimento. 54 Ver Winnicott, 1941 e 1951 retomado em 1971, especialmente nos cap. 5, 7 e 8 do Brincar e a Realidade.

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150

Ao reconhecer os dois eixos presentes na teoria da criatividade de

Winnicott: o da comunicação significativa, que no início, além de incomunicável é

silenciosa e que permite a criação do espaço potencial e o da agressividade que

se desenvolve voltado para as representações e permite a criação da

externalidade do mundo, compreendi a importância dada por Winnicott ao estágio

do EU SOU, aliás, muito bem compreendido por (Milner,1991) “o objeto

transicional é o símbolo e o fim de uma jornada. Parece mesmo ser de uma

jornada de ida e volta; ambas voltadas para a descoberta da realidade objetiva do

objeto e para a descoberta da realidade objetiva do sujeito - o "EU SOU" (p.249).

Nesse estágio, é possível a integração dessas duas dimensões que permite a

relação de alguém consigo mesmo. Essa integração vem acompanhada de um

sentimento de medo e perseguição e depende sobremaneira da presença da mãe-

ambiente que sustenta a continuidade da experiência simplesmente por manter-se

inalterada e disponível, o que dá sustentação ao senso de continuidade do ser –

espaço potencial, como vimos com Eric.

Penso que embora essas noções atravessem a obra de Winnicott desde

1941, é na década de 1960 que ele caminha em direção à possibilidade de

integrá-las, como se pode ver em Brincar e a Realidade de 1971. Reconhecer o

estado de indiferenciação entre mãe e bebê e a noção de ilusão da onipotência

permitiu a Winnicott desenvolver uma forma singular de conceber a relação entre

o ser humano e a realidade externa que opera a partir da noção de movimento e

paradoxo no campo intersubjetivo. Não é mais apenas o seio (mãe), como objeto

parcial ou como objeto de desejo, e sim como objeto subjetivo e a presença da

mãe ambiente – isto é, a presença de um clima, de uma atmosfera, de uma

estética, o que importa. Assim o que conta é a disponibilidade materna no sentido

de tecer um campo de acontecimentos no qual se torna possível a criação do self,

e, posteriormente, da exterioridade do mundo pelo bebê. E, isso graças a gestos

de busca gerados pela necessidade do bebê que encontram o objeto

subjetivamente concebido no momento e no lugar certo, no tempo e no espaço

justo. Simultaneamente à realização dessa necessidade, que se dá por uma

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experiência, acontece a criação de um espaço de comunicação silenciosa, numa

área não diferenciada por meio da troca de olhares e experiências na mutualidade.

A ilusão organizada pela apercepcão do bebê vai cedendo lugar ao espaço

potencial, palco de um outro acontecimento: o desenvolvimento da percepção e do

início do reconhecimento de que a mãe é não-eu e, posteriormente, de que ela

tem uma existência separada. Quando a mãe começa a introduzir o processo de

desilusão de forma gradativa, movimentando-se no espaço dentro do tempo de

tolerância do bebê, ele tem a ilusão de que ela continua sob o seu controle e

domínio apesar de suas idas e vindas. Para fazer frente a essa situação, o bebê já

terá adotado algo, oferecido por ela, que se tornou significativo, pois presentifica a

história de uma relação de encontros e desfrutes vividos de forma genuína, graças

à capacidade oblativa da mãe que sustenta a primeira ignorância: a da situação de

desamparo, impotência e finitude, características do ser humano. Assim, o bebê

vai desenvolvendo a capacidade simbólica, isto é, a capacidade de manter viva a

imagem da mãe enquanto dá tratos à sua própria imaginação na espera do

encontro certo e garantido.

Assim, o objeto transicional, a meu ver, ao mesmo tempo em que é a prova

cabal da criação do espaço potencial, também ajuda a mantê-lo. Aqui, o intelecto

em evolução do bebê ajuda a passar da situação de dependência absoluta para a

relativa e a operar passagens, não apenas em relação a situações em que a mãe

está presente como, também, naquelas em que está ausente. Assim, o bebê pode

transitar entre situações de sono e relaxamento e de vigília e entusiasmo porque

introjetou a mesma atmosfera que é criada na presença da mãe-ambiente do

estado de quietude (atmosfera receptiva e tranqüila) após o encontro com a mãe-

objeto (seio, objeto subjetivo) dos estados de excitação. Note-se a importância da

presença da mãe que sobrevive e se mantém inalterada, tanto ao atender as

necessidades do bebê no estado de excitação (entusiasmo), quanto na promoção

do estado de relaxamento.

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152

Talvez essa seja a tarefa maior do ser humano: a integração entre esses

dois estados ao longo de toda a vida, em diferentes estágios e áreas da

existência. Começa na relação com um outro que alimenta a onipotência de uma

ilusão de contato. Talvez essa seja a primeira ignorância e seja justamente ela

que permite o senso de continuidade do ser, pois é possível ser um no outro. Se e

somente se, a mãe continua a dar sustentação, é possível ser um em si mesmo e

com ela, para finalmente, se as condições maturacionais estão dadas e as

ambientais são mantidas, ser um no mundo. Winnicott (1945, 1960, 1967a, 1967b,

1971b,1990) chamou o primeiro de integração, o segundo de personalização e o

terceiro de realização.

Quando falo em criação, constituição, desenvolvimento e integração, refiro-

me à introjeção de um movimento presente num campo de relações ao longo de

um tempo a partir da presença do outro. E isso antes mesmo que um processo de

identificação possa ter lugar. Assim, talvez o ser humano introjete o modo de olhar

e se relacionar daqueles que o amam e a quem ele ama sem disso ter

consciência. Talvez seja a partir desse lugar, desse ethos que os encontros

aconteçam e que escolhemos inclusive as teorias ou aspectos de teorias. Talvez

seja a partir da sensibilidade, isto é, de uma atmosfera, que nos identificamos com

o movimento que intuímos fora de nós por sua ressonância e possibilidade de

refletir algo que existe dentro de nós. Ainda que não tenhamos a consciência

disso! Assim, não se trata de projeção, pois primeiro introjetamos a modalidade de

relação, isto é, o movimento presente num campo de relação com um outro.

Daí a importância de um olhar que nos reconheça, que olhe para ver e não

para entender ou, o que é pior, para atribuir uma intenção interpretando o que

fazemos, dizemos ou pensamos. Assim, quando os pais olham o filho como objeto

subjetivo, não podendo reconhecê-lo na sua singularidade, o cenário será o do

desencontro. O que passa a fazer parte do mundo pessoal da criança carrega o

germe da atmosfera do espaço compartilhado nas primeiras relações, que envolve

a relação do casal que o gerou, dos que os geraram e do campo cultural em que

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todos estão inseridos. No caso de Eric, vimos que a sua tarefa era a de um super-

herói: ele seria aquele que viria para salvar a família, resgatar as relações entre os

avós e os pais rompidas por ocasião do casamento devido a um choque entre

culturas. Vimos, também, como a sua identificação com o Homem-Aranha

procedia, porque esse objeto da cultura parecia simbolizar o tipo de relação

introjetada por ele a partir da atmosfera presente na dinâmica familiar. Quanto a

Carol, o Bebê Moranguinho, parecia simbolizar o lugar a ela destinado dentro da

família.

Sobre o fenômeno Estético

Na Estação 5, vimos que, com Eric, a experiência de encontro se deu por

meio de uma vivência de impacto estético, quando a tampa da caixa de

brinquedos caiu e ele teve uma reação de pavor exagerado. Compartilhar uma

vivência dessa natureza, criou a experiência do encontro. Tenho observado, na

experiência clínica, a potencialidade transformadora do fenômeno estético,

especialmente, com crianças com inibição intelectual.

Na minha prática, essa dimensão relaciona-se com a capacidade do

analista se deixar afetar pela ressonância que o modo de ser e estar da criança

provoca nele. Está relacionada com a reação psicossomática que testemunho no

paciente e acompanho por um processo de identificação. Ou seja, quando escuto

o paciente, eu sou o paciente. O impacto em questão pode ser transformado,

sendo em si transformador, quando é possível acolher o que emerge no campo

intersubjetivo acompanhando o movimento pulsante desse encontro.

Estabeleço aqui um paralelo entre o uso do objeto transicional e o que

estou chamando de objeto símbolo55. Enquanto o primeiro carrega a história de

uma relação de encontros entre mãe e bebê e desfrutes de necessidades – o

objeto-símbolo - no caso de Eric, o Homem-Aranha e no de Carol, o Bebê

55 Inspiro-me, aqui, na contribuição de Gilberto Safra (1999) de que não é o significado de um símbolo que importa, mas “a sua possibilidade de veicular uma experiência , uma vivência” (p. 23).

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Moranguinho, o segundo apresenta a história dos desencontros e, talvez, da

atmosfera presente no campo de relações dos primeiros desencontros.

No caso de Eric, o Homem-Aranha abriu a possibilidade do encontro.

Reconhecer a sua presença em determinados momentos foi de fundamental

importância para instaurar o espaço de jogo e comunicação significativa em que o

menino pôde, ao mesmo tempo, conhecer e desvelar seus segredos, mostrando

onde e como poderia ser encontrado.

Gostaria aqui de salientar que, com crianças com severo grau de inibição

intelectual, é preciso, antes de exercer a função de apresentação de objetos - que

se torna importante depois que se abre o campo transicional - estar disponível e

sintonizada para captar a apresentação que a criança faz do objeto que carrega a

potencialidade do encontro e da abertura do campo de relações entre ela e o

mundo de realidade externa.

Sobre crianças com Inibição Intelectual e o trabalho com seus pais Na minha experiência confirmo o mesmo que Winnicott (1958,1963a, 1975):

criança que não brinca de forma espontânea, não se comunica, não constitui a

dimensão da subjetividade, nem estabelece pontes entre a realidade pessoal e a

externa não podendo, assim, usufruir experiências significativas e necessárias à

criação do self e a da externalidade do mundo.

Quem trabalha com elas, sabe como são assustadas e vivem num estado

de desconfiança e isolamento, não se sentem confortáveis na própria pele, não se

envolvem e nem se interessam por nada que lhes é oferecido por um outro que,

no início, além de estranho, não passa de um invasor.

O fato de a criança sentir-se incluída na dimensão humana, alcançar a

integração e entrar no movimento que caracteriza o jogo tridimensional tem

relação direta com a aprendizagem, pois relaciona-se com o desenvolvimento de

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determinadas capacidades intelectuais, como, a de seriar e classificar os objetos,

por exemplo, reconhecer que uma laranja faz parte do grupo das frutas, um porco-

espinho está incluído no dos animais etc. Antes de a criança classificar os seres

humanos, é preciso a integração e o sentimento de se sentir participante da

dimensão humana.

Notemos que as situações de Eric e Carol são muito diferentes.

Retomemos o que acontecia com a menina tendo no horizonte o tema da

comunicação significativa. Ela tinha certo movimento psíquico e conseguia

provocar efeitos e afetar não apenas o ambiente familiar e escolar, mas também a

terapeuta. Adotava um objeto-símbolo, a boneca, que parecia funcionar como uma

espécie de escudo, permitindo estabelecer um tênue contato com o mundo

externo. Por meio dele podia estudar a reação do ambiente, mapeá-lo e fugir dos

perigos. O problema é que isso a afastava de um contato verdadeiro com ela

mesma e com o outro.

No início, ela podia ligar-se e desligar-se no e do que acontecia fora dela,

ligando e desligando os receptores à distância (visão e audição) por meio do

incremento dos receptores de contato (cheirava a borracha, encostava partes do

seu corpo na mesa). Se, por um lado, podia defender-se do que sentia como

invasão, por outro, ficava aprisionada num lugar por onde o prazer da

aprendizagem não circulava. À medida que a confiança na relação cresceu, pôde

transitar ainda mais entre dois estados: estar ausente (desligada) e estar presente

(ligada) na presença da analista, mas criando um jogo em que podia fazer de

conta que estava desligada-ausente, quando havia estado ligada-presente e vice-

versa.

O que operou e teve efeito com Carol foi poder ser vista e reconhecida

como autora do jogo que criava sem ser mal interpretada por pais, escola ou

terapeutas. Ser olhada e encontrada num lugar diferente do que até então estava

acostumada, poder jogar com os símbolos criados até aquele momento, permitiu

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tomar consciência da sua possibilidade de jogar, sentir-se incluída, participante e,

aos poucos, tornar-se autora, apropriando-se de seu próprio processo. Isso está

belamente colocado na frase "É um sofisticado jogo de esconder em que é uma

alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado". (WINNICOTT,

1963a, p. 169).

Diferentemente, Eric parecia ainda nem ter conquistado a chance de

constituir aberturas significativas para o mundo por meio dos órgãos dos sentidos

ou tê-las perdido, devido a invasões e falhas de atendimento à primeira

necessidade do ser humano: a da comunicação significativa, que decorre de

sentir-se incluído, isto é, ter sido um no outro, para depois poder ser um com o outro. Por não ter desfrutado da presença real de um outro disponível para olhá-

lo, reconhecê-lo como diferente e acompanhá-lo, o mundo não era apetecível, e

sim, estranho e invasor. Assim, seus receptores de contato, bem como os

receptores à distância podiam ser usados para sobreviver, mas não para criar o

mundo real a partir de experiências compartilhadas.

Acho oportuno assinalar, neste momento, a diferença entre o trabalho

realizado com os pais de Eric e de Carol, pois se trata de um aspecto de

fundamental importância, especialmente, no trabalho com crianças com inibição

intelectual em que a falha ambiental se dá muito cedo e a criança padece de

ansiedades impensáveis num mundo sentido como disruptivo e ameaçador. No

atendimento de Carol houve um tom de quase indignação quando a analista

relatou o episódio em que a mãe da menina não a trazia com roupas adequadas

para suas sessões, duvidando do seu desenvolvimento e da autoria dos trabalhos

realizados por ela e elogiados pela escola. Era evidente que, assim, a mãe

desautorizava o processo da menina, sua percepção e a da própria escola. Isso

parecia mobilizar a insegurança e a confusão de Carol, levando-a a adotar uma

atitude mais regredida e infantilizada, usando a boneca como um escudo.

Mobilizava, também, a raiva em alguns educadores da escola.

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Minha aprendizagem, a partir da experiência com Carol e outras crianças56

crianças com inibição permitiu-me adotar uma outra atitude com Eric e sua família:

podia estar no movimento que caracteriza o jogo tridimensional, identificar-me com

as necessidades do garoto e de sua família e, ao mesmo tempo, discriminar-me

delas, acompanhando o movimento no jogo estabelecido no campo intersubjetivo.

Assim, podia exercer as funções necessitadas, facilitando a troca e comunicação

significativa entre todos.

Aproveito, também, para salientar a importância que os pais possam, de

fato, ser incluídos no trabalho e desfrutar de um espaço de confiança, podendo

contar, não apenas fatos, mas experiências, resgatando, assim, a atmosfera que

organizava o campo de relações na época do nascimento da criança. É muito

diferente a situação de uma mãe que passe por uma situação de luto ou descubra

que o marido tem uma amante, um filho, ou que seja alcoólatra durante a

gestação, de uma mãe para quem esse período transcorra como ela sempre

sonhou.

Lembrando que as necessidades do paciente e da família variam muito de

caso para caso e em diferentes momentos do processo, no atendimento de Eric,

vimos que a retaguarda dada a seus pais permitiu que eles pudessem fazer o

mesmo com o garoto, modificando, inclusive, a sua maneira de vê-lo.

Aproveito, também para assinalar outra diferença em relação ao trabalho

com os pais, agora em relação ao modelo de diagnóstico de Paín, que faz uso de

provas projetivas e psicométricas. Na minha experiência, mesmo pais ansiosos, e

que solicitam avaliações, entendem e aceitam que tal procedimento só poderá

acontecer, se necessário, depois que a criança puder brincar, isto é, depois do

desenvolvimento da capacidade simbólica e do estabelecimento de uma outra

modalidade de relação com o mundo de realidade externa. Sem relação com um

mundo apetecível não se abre o campo transicional nem o do conhecimento, já

56 Ver Cap. 3 e 4. In Parente, 2003.

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que um é acompanhado pelo outro. O conhecimento é função da transicionalidade

e carrega o germe das primeiras relações interpessoais (JONES, 1992).

Nessa mesma linha, (MILNER, 1991) ressalta que o processo de

identificação, subjacente à formação simbólica, não é resultado de forças

proibitivas e nem da necessidade de reparar os objetos. Ele seria fruto da

necessidade de estabelecer uma relação com a realidade externa. Assim, usa a

"palavra símbolo não apenas para se referir a uma função defensiva, com

finalidades de distorção". (MILNER, 1991, p. 110).

Usando Paín, compreendi que a aprendizagem implica um movimento

dialético e complementar entre a subjetividade e a objetividade e envolve a

dimensão da autoria por parte do sujeito. No período do percurso de Paín, que

focalizo neste trabalho, portanto, antes de sua preocupação voltar-se para a

questão da relação entre a ignorância e o corpo presentes em Seguindo as

pegadas do sujeito, infelizmente traduzido para o português com o título Teoria e

Técnica da Arte Terapia – a compreensão do sujeito, a sua concepção sobre o

conhecimento desenvolve-se na perspectiva filosófica e pedagógica, o que é

coerente com a sua formação, percurso, interesse e, especialmente, com seu

passado piagetiano. Diferentemente, o meu encontra-se mais próximo da clínica

psicanalítica em que o conhecimento estaria relacionado às experiências de vida

consigo mesmo, com os outros e com os objetos da cultura.

Nessa perspectiva, na experiência clínica, muito mais do que o objeto

interessa o uso que se faz dele. Nesse sentido, o conhecimento não é uma

qualidade do objeto e, sim uma criação do sujeito. Assim, a minha concepção de

aprendizagem amplia, ainda mais a de Paín, pois se trata da capacidade de

aprender de si e da realidade externa que inclui o outro e os objetos da cultura, a

partir da experiência de vida. Somos seres no mundo e a aprendizagem que

enriquece o self é a que permite a inscrição do gesto e a realização de um projeto

existencial o mundo.

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Lembro o que afirmei na introdução deste trabalho e que na verdade é a

minha tese: no campo terapêutico intersubjetivo, cada experiência clínica

significativa contribui para transformar a subjetividade do analista e,

conseqüentemente, a sua forma de ler e compreender, seja as teorias, seja a

prática, o que transforma não só o diálogo que estabelece, mas também a sua

própria maneira de compreender, fazer intervenções, dialogar, transformar e usar

as teorias.

A noção de Função da Ignorância e de paradoxo como posição ética Após a transformação feita na noção de Função da Ignorância, ela passou

a constituir-se na sustentação de uma posição ética. É esta posição que permite

estar num movimento, transitar e recortar conceitos de diferentes teorias, usando-

os na construção de dispositivos para iluminar um fenômeno clínico ou aspectos

dele e assim poder comunicá-lo. Quando me refiro a acolher a Função da

Ignorância e de paradoxo como morada, como ethos, refiro-me, também, a uma

forma de usar essas noções, que dá sustentação e permite ao analista manter a

atitude de espera receptiva, acolhendo o seu próprio não-saber, o do paciente e o

de sua família, deixando, desse modo, que o tempo trabalhe e a “luz” se faça. É

essa atitude que permite identificar as questões do paciente e exercer as funções

necessitadas para descongelar aspectos de seu self que podem variar desde uma

atitude de acolhimento até a de colocar condições para iniciar ou manter a

continuidade de um atendimento.

Um outro aspecto importante é que, em cada atendimento, é possível

levantar os dispositivos usados como vimos com Eric, em que determinadas

funções, especialmente a de testemunha, holding, manejo e apresentação de

objetos, foram exercidas e permitiram que ele usufruísse situações que colocaram

em marcha o desenvolvimento das potencialidades do seu self, até então

congeladas. Entretanto, o que pretendo, neste trabalho, não é apresentar um

modelo que segue uma seqüência. Aliás, nada mais distante do que acredito!

Reafirmo tratar-se de uma posição, de uma postura ética que no meu percurso

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tornou-se possível pelo encontro e recorte de determinadas noções provenientes

dos referenciais de Klein, Paín e Winnicott e que dá sustentação à atitude de

espera receptiva.

Reconheço em Paín, a disponibilidade genuína que caracteriza e ilustra o

que é ser um profissional suficientemente bom. E este é mais um dos paradoxos,

porque foi ela que me apresentou o paradigma de terapeuta inspirada na noção de

mãe suficientemente boa de Winnicott, pois ofereceu a sua própria contribuição

para ser usada e transformada, não à luz da epistemologia e sim à moda das

crianças e do uso transicional que elas fazem dos objetos da cultura, realizando,

assim, seu projeto pessoal no mundo.

Para acompanhar a transformação feita no conceito de Paín, transcrevo o

último parágrafo de Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento:

Usando a linguagem de Sara, aliada à de Winnicott, diria que

neste espaço transicional em que a função da ignorância

opera, porque somos e não somos, porque estamos aqui e

lá, porque suportamos o movimento paradoxal da vida, os

mistérios, os enigmas, podemos, à medida que nos

apropriamos de nossas questões pessoais, aprender da e

pela experiência. Isso permite, também, estar

permanentemente num diálogo, num trânsito, num entre,

inclusive entre a prática e a teoria. Note-se que isso implica,

não apenas na criação e/ou reconstrução de conhecimentos,

mas também na participação de um processo de

aprendizagem de si, do outro, do mundo, que tem na função

da ignorância a sua mola propulsora.

(Parente. 2000, p. 115-116)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A cultura é como a lente através da qual o homem vê o

mundo”.57

Há viagens que nos deixam cansados e que, por isso mesmo, desejamos

que acabem logo. Outras nos encantam e desejamos que nunca se acabem. Claro

que no plano do impossível, porque nada é mais terrível do que o sempre ou o

jamais, o tudo ou o nada. Na experiência com Paín, aprendi que sem relativizar

permanecemos no absoluto positivo ou no negativo. Concordo, pois em ambos os

casos, não podemos estar no movimento que caracteriza o que há de mais

humano em nós: o interagir com a cultura!

Numa viagem, após comprar os bilhetes–passagens, embarcamos! Muitas

vezes, sabemos onde queremos chegar, em outras, os rumos se modificam. Há

momentos da vida que isso nos incomoda, noutros nos encanta. No percurso aqui

apresentado, o primeiro bilhete que comprei na viagem de ida foi Klein, ou melhor,

um certo kleinismo do final dos anos 1970 e 1980, muito diferente do uso que se

faz atualmente das contribuições kleinianas. Por meio do referencial de Luzuriaga,

desenvolvido nessa tradição e diretamente voltado para o quadro da inibição

intelectual, recortei o objeto de investigação.

Com Paín, focalizei o campo voltado para a clínica dos problemas de

aprendizagem e para uma teoria que dava conta das relações entre as dimensões

afetiva e cognitiva no pensamento do sujeito que aprende (PAÍN, 1985, 1989) e

comecei a estabelecer um diálogo com a prática institucional e de consultório.

Com Winnicott, compreendi que o problema de aprendizagem precisaria levar em

consideração o desenvolvimento psíquico global da criança, o que implicou

reconhecer o papel determinante do fator maturacional e do ambiente na inibição

57 R. Benedict apud Laraia, 1997, p.69.

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intelectual. Compreendi que a ilusão de criar o mundo de realidade compartilhada

era condição para o brincar, conhecer e aprender criativos, como vimos, na

viagem de ida, no atendimento de Carol, o que me levou, aos poucos a

reconhecer a importância de exercer a função de testemunha e a admitir o

processo de regressão à dependência. Aos poucos, fui reconhecendo a

importância de usar jogos e atividades cognitivas no campo da transicionalidade.

Isso porque respeitar o gesto e o tempo da criança, por meio da suspensão dos

parâmetros da lógica linear ajudava a abrir, ainda mais, o campo de relações entre

ela e o mundo de realidade externa. Aqui as noções de uso de objeto e de

fenômenos transicionais foram fundamentais.

Entretanto, o aprofundamento no estudo e na compreensão da noção de

espaço potencial – espaço de confiança, troca e comunicação significativa levou-

me a usar o jogo da espátula tal como descrito por Winnicott (1941) e apresentado

na Estação 7, como um dispositivo não só para fazer o diagnóstico, mas também

para acompanhar todo o processo de intervenção, buscando favorecer a

constituição de uma outra modalidade de relação da criança com um mundo que

pudesse ser sentido como apetecível. Atualmente, reconheço que exercer a

função de apresentação de objetos torna-se importante somente depois que se

abre o campo dos fenômenos transicionais, que permite o caminhar da criança em

direção à criação do objeto objetivamente percebido, base da aprendizagem

formal.

Na minha experiência, as crianças com inibição intelectual habitam a área

dos fenômenos subjetivos, portanto, padecem de ansiedades impensáveis; sua

organização de self é incipiente e a relação que estabelecem com o mundo é

disruptiva ou, até mesmo, ameaçadora. A integração, geralmente, é alcançada por

um “padrão de reações às intrusões”. Nessa situação, houve muito mais do que

frustração ou privação, pois elas foram mutiladas, por não desfrutarem das

condições que permitiriam constituir e usar seus receptores de contato e/ou à

distância como canais de abertura para o mundo, isto é, para uma comunicação

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significativa, como vimos nos atendimentos de Carol e Eric. O que operou e teve

efeito para que o menino entrasse no jogo tridimensional foi a atitude da analista

de manter-se em estado de relaxamento e, ao mesmo tempo, de atenção para

captar a apresentação que ele fazia do objeto que carregava a potencialidade

transformadora do seu self (SAFRA, 1999).

No meu caminhar da clínica dos problemas de aprendizagem passando

pelo da criatividade e desenvolvimento psíquico até chegar ao da comunicação

significativa, fui me apropriando de uma forma transicional de usar as teorias,

mantendo no horizonte aquilo que, para mim, é o importante: a experiência de

encontro significativo com o paciente, na qual o acontecimento humano se dá.

Retomando o meu percurso, reconheço que uso determinado conceito ou teoria

como objeto transicional, como um terceiro, como ponte que permite transitar e

ganhar distância em relação ao que se revelou na experiência clínica. Como opero

de forma intuitiva, pela sensibilidade, estabeleço uma relação subjetiva: ou seja,

quando ouço o paciente é como se eu fosse ele.

Trata-se, assim, de uma forma transitória de usar as teorias, não como um

sistema ou rede que revele significados que poderiam ser remetidos aos

pressupostos epistemológicos das teorias, mas para explicitar o que se revelou

num encontro significativo.

Por isso, o que defendo neste trabalho é que no campo terapêutico

intersubjetivo, cada experiência clínica significativa contribui para transformar a

subjetividade do pesquisador-terapeuta e, conseqüentemente, a sua forma de ler

e compreender seja as teorias seja a prática, o que transforma não só o diálogo

que estabelece, mas também a sua própria maneira de compreender, fazer

intervenções, dialogar, transformar e usar as teorias.

Se com Paín aprendi a atitude conveniente para uma investigação: ser

ingênua na clínica e cética em relação à teoria; com Winnicott aprendi a liberdade

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de poder usar a teoria priorizando a clínica, bem como a de fazer uso do

pensamento de outros para criar o próprio.

Assim, quando me refiro à noção de Função da Ignorância e de paradoxo,

deparo com mais uma situação paradoxal, pois, ao mesmo tempo, falo e não falo

do mesmo lugar de Paín e de Winnicott, já que o foco, o objeto de interesse e o

meu percurso são diferentes do deles, mas sem o diálogo com eles e entre eles e

a prática clínica, talvez não tivesse feito a viagem que fiz, nem chegado onde

cheguei. Este, mais do que um ponto de chegada se constitui, creio, numa nova

baldeação para reflexões em percurso:

Quais as implicações deste trabalho num repensar o campo

psicopedagógico? Qual a contribuição desses dispositivos ao psicopedagogo que

trabalha na e/ou com a instituição?

Quais as implicações contidas na afirmação de que a falha na comunicação

significativa poderia relacionar-se diretamente com a inibição intelectual? Será que

outras crianças com inibição intelectual não elegem também um objeto da cultura

buscando não perder contato com um outro? Será que esse objeto guarda as

marcas da atmosfera e da história de desencontros vividas por outras crianças,

como Eric, nas primeiras relações vinculares? Será que o tema da comunicação

significativa estaria relacionado com outros tipos de inibição, por exemplo, a

sexual?

E assim termino este percurso de autoria e apropriação de conhecimento a

partir da experiência, remetendo-me ao que escrevi em 1995, no artigo: O difícil

diálogo entre a prática e as teorias58:

58 Boletim Formação em Psicanálise, vol. IV, n. 1, p.7-17.

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Acredito que buscamos um referencial teórico para melhor

compreender os fenômenos estudados (dimensão

conceitual) e para operar no campo de atividade a que nos

dedicamos (dimensão das práticas). Não é qualquer teoria

que tem ressonância dentro de nós e que nos faz sentido. O

sentido (tem a ver com o conhecimento tácito, a crença e a

vivência pessoal)‚ algo construído a partir de uma dramática

inconsciente (articulada, desenvolvida e construída a partir

de um percurso que envolve a nossa própria história).

Descobrimos uma teoria com a qual nos sentimos

identificados a partir de algo que é da ordem da

subjetividade. Brincando um pouco a partir de Winnicott: as

crianças brincam com os objetos como se eles não fossem

apenas parte da realidade objetiva, mas também parte da

realidade subjetiva. Será que o que nós adultos fazemos é

sonhar com a teoria? Será que brincamos com as teorias que

criamos e descobrimos?

Penso que podemos estabelecer um paralelo entre o que

ocorre com a criança ao usar o objeto transicional e o que

ocorre conosco (pesquisadores analistas) no processo de

uso e escolha de uma teoria.

Quando usamos a teoria como pano de fundo, como o

invisível que organiza um campo, podemos privilegiar a

comunicação e a relação humana com o paciente. Podemos

estabelecer um diálogo entre a teoria e o fenômeno que

pode, então, ser observado e não reduzido a partir de um

modelo teórico.

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Quando a forma de relação que se estabelece com a teoria é

feita nesta terceira área da experiência, podemos reconhecer

quando ocorre uma fratura. Quando a teoria não dá conta do

observado, cria-se o espaço vazio.

A partir dos desencontros entre teoria e prática é possível

(quando o vazio pode ser tolerado) mobilizar o pensamento e

estabelecer um novo diálogo entre teorias ou aspectos de

teorias e a realidade clínica.

Quando é possível fazer algo com a falta e transformá-la a

partir do que a realidade oferece, há também a possibilidade

de se poder fazer um tipo de articulação na qual se pode

usar a própria subjetividade e enriquecê-la através do

contato com a objetividade. É possível desenvolver um

diálogo com a realidade e um enriquecimento da dimensão

da objetividade, a partir da própria subjetividade.

Podemos buscar e encontrar uma teoria (ou zonas de

superfícies ou recortes entre diferentes teorias) para estudá-

la e usá-la, estabelecendo um diálogo com a realidade que a

prática clínica nos oferece. Podemos, também, fazer uso da

teoria como se ela fosse a verdade, a certeza, como fazia o

conhecimento científico na vertente positivista do século XIX.

Ou seja, podemos fazer como as crianças que usam os brinquedos para

não brincar.

Volto para o que já estava anunciado, só que agora enriquecida pelo

caminho trilhado e pelas experiências nele vividas, e ainda mais convencida dessa

forma de usar a teoria para dar visibilidade àquilo que se revelou no encontro

significativo com o paciente e que acaba por permitir a transformação, tanto dele

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quanto da analista; que permite a inscrição de um gesto no mundo, que permite

que o conhecimento seja um elemento de trânsito para que cada um realize os

seus projetos existenciais no mundo. E, termino, tomando emprestadas as

palavras de Guimarães Rosa:

Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas

experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de

raciocínios e intuições. Tomaram-me tempo, desânimos,

esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-

me, porém, um tanto à parte de todos, penetrando

conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por

exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tem idéia do que

seja na verdade – um espelho? Demais, de certo, das

noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica.

Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um

mistério. Inclusive, os fatos ou a ausência deles. Duvida?

Quando nada acontece, há um milagre que não estamos

vendo.

ROSA, Guimarães. O Espelho. In Primeiras Estórias. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1972, p. 71-8.

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