Em Busca de Experiências

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Em Busca de Experiências Eduardo Cidade INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, Número Especial 03, pp.1-16, 2012. Página 1 Em busca de experiências: o verdadeiro mochileiro é aquele que já passou por vários “perrengues”. Eduardo Cidade 1 Resumo O objetivo deste estudo é avaliar a função do sofrimento na elaboração da individualidade e da solidariedade. Alego que o sofrimento não é apenas uma condição necessária filosoficamente oriunda da fome, da sede, da doença, da velhice etc. É culturalmente valorizado, utilizado como parâmetro para a distribuição e o ordenamento de posições e bens culturais. Se, para Rousseau, o homem é dotado de amor-próprio e compaixão pelo outro, sobretudo mediante o reconhecimento do sofrimento alheio, então a valorização do “martírio” talvez seja uma construção “artificial” desta compaixão. Neste empenho, o planejamento seria salientar a importância exercida pelo sofrimento em contextos contemporâneos, questionando o caráter supostamente utilitarista da pós-modernidade. Em um trabalho de campo com mochileiros na China, busco identificar relações entre situações de sofrimento que legitimam o discurso do que faz “um verdadeiro mochileiro”. Palavras-chave: identidade, turismo, China, mochileiros, sofrimento. Abstract The aim of this study is to evaluate the role of suffering in the elaboration of individuality and solidarity. I claim that suffering is not only a philosophically necessary condition arising from famine, thirst, disease, aging etc. It is culturally valued, used as a parameter for the distribution of spatial positions and cultural goods. If, according to Rousseau, man is endowed with self-love and compassion for others, especially through the recognition of someone else’s suffering, then the appreciation of "martyrdom" may be way towards building a somewhat "artificial" compassion. I plan to emphasize the importance exercised by suffering in contemporary contexts, questioning the supposedly utilitarian character of postmodernity. In a field-study with backpackers in China, I seek to identify relations with suffering that legitimates the discourse of what makes “a true backpacker”. Keywords: identity, tourism, China, backpackers, suffering. 1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da UERJ.

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  • Em Busca de Experincias Eduardo Cidade

    INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, Nmero Especial 03, pp.1-16, 2012. Pgina 1

    Em busca de experincias: o verdadeiro mochileiro aquele que j passou por

    vrios perrengues.

    Eduardo Cidade1

    Resumo

    O objetivo deste estudo avaliar a funo do sofrimento na elaborao da individualidade e

    da solidariedade. Alego que o sofrimento no apenas uma condio necessria

    filosoficamente oriunda da fome, da sede, da doena, da velhice etc. culturalmente

    valorizado, utilizado como parmetro para a distribuio e o ordenamento de posies e

    bens culturais. Se, para Rousseau, o homem dotado de amor-prprio e compaixo pelo

    outro, sobretudo mediante o reconhecimento do sofrimento alheio, ento a valorizao do

    martrio talvez seja uma construo artificial desta compaixo. Neste empenho, o planejamento seria salientar a importncia exercida pelo sofrimento em contextos

    contemporneos, questionando o carter supostamente utilitarista da ps-modernidade. Em

    um trabalho de campo com mochileiros na China, busco identificar relaes entre situaes

    de sofrimento que legitimam o discurso do que faz um verdadeiro mochileiro.

    Palavras-chave: identidade, turismo, China, mochileiros, sofrimento.

    Abstract

    The aim of this study is to evaluate the role of suffering in the elaboration of individuality

    and solidarity. I claim that suffering is not only a philosophically necessary condition

    arising from famine, thirst, disease, aging etc. It is culturally valued, used as a parameter for

    the distribution of spatial positions and cultural goods. If, according to Rousseau, man is

    endowed with self-love and compassion for others, especially through the recognition of

    someone elses suffering, then the appreciation of "martyrdom" may be way towards building a somewhat "artificial" compassion. I plan to emphasize the importance exercised

    by suffering in contemporary contexts, questioning the supposedly utilitarian character of

    postmodernity. In a field-study with backpackers in China, I seek to identify relations with

    suffering that legitimates the discourse of what makes a true backpacker.

    Keywords: identity, tourism, China, backpackers, suffering.

    1 Mestrando no Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais (PPCIS) da UERJ.

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    Introduo: por um tipo ideal do sofrimento?

    Dentre as configuraes essenciais da condio humana, o sofrimento surge enquanto

    uma das foras motoras da civilizao. Uma considerao a priori dir que a cultura

    construda a partir da tentativa humana de evitar o sofrimento. Seja pelo vis do pacto

    social ou por uma dominao original, o homem se submete e aquiesa perante as leis da

    sociedade para, na unio, impedir as ameaas da fome, da sede e de demais potncias hostis

    da natureza. Uma vez domadas, real ou hipoteticamente, as foras da natureza cedem para

    um desafio to formidvel quanto: a dominao do homem de si mesmo. O processo

    civilizador construdo na tentativa de apaziguar os homens da guerra, liberando-os,

    supostamente de vez, do sofrimento oriundo pela violncia. No entanto, o princpio

    teleolgico de felicidade e prazer na Terra uma confabulao ocidental, no podendo ser

    prolongar a povos diversos. E o sofrimento pode se tornar em prazer, sendo um fim em si

    mesmo, sobretudo quando visto como belo e um ideal mesmo de civilizao. Ainda que

    fosse possvel retirar o sofrimento da vida dos homens, no creio que seja algo desejvel.

    a construo mesma da vida humana e seu valor que so postos em jogo. A relao do

    homem com a ecologia determina certas prticas culturais, mas no determinista quanto

    aos valores empregados num ideal de vida e organizao de conduta. possvel que as

    percepes de sofrimento moldem o certo e o errado na construo da ordem do mundo. O

    objetivo desse artigo investigar a valorizao cultural do sofrimento, em uma espcie de

    esttica da tica em um estudo de caso especfico, a citar, mochileiros na China2. Sob esta

    perspectiva, lembro que os mochileiros esto, temporariamente, distantes de suas relaes

    sociais ordinrias. Seus hbitos e comportamentos so oriundos do enraizamento moral,

    no de coero social externa: embora esta ltima exista, de modo sutil, nos locais de

    sociabilidade caractersticos do mochileiro. Ainda assim, so frequentados sem nenhum

    tipo de obrigatoriedade.

    2 Quando o artigo foi escrito originalmente, em outubro de 2011, ainda no havia realizado o campo. Manterei

    as hipteses inalteradas para, neste artigo, no confundir minhas intenes prvias com os resultados

    adquiridos ao longo da pesquisa efetuada entre dezembro de 2011 e maro de 2012. Apenas por referncia,

    tambm estive, neste perodo, em quatro pases do sudeste asitico (Laos, Vietn, Tailndia e Camboja), cujas

    expectativas revelaram distintas experincia chinesa.

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    Para pensar o sofrimento enquanto valorizao cultural preciso delimitar uma

    abordagem com possveis rupturas tericas da necessidade prtica e materialista. Embora

    no seja factvel desassociar princpios, afetos e interesses na teoria da ao social, minha

    inteno pesquisar o sofrimento nos termos mais abstratos, qui suprfluos, possveis.

    Quais procedimentos legitimam o hedonismo, o prazer e o cio? Como funciona a ideia de

    merecimento e, para alm do trabalho, como o princpio de causalidade do mrito justifica

    demais prticas sociais? E como separar a vontade da necessidade? Foi ento que surgiu a

    ideia dos mochileiros; mas, antes, quero aprofundar um pouco mais as prerrogativas

    O sofrimento tradicionalmente abordado em seu aspecto fsico, exatamente pelo

    vis da dor, da doena e demais debilidades corpreas. H, ademais, ilustres estudos sobre

    o sacrifcio e a relao do homem com o sofrimento no mbito religioso. Embora qualquer

    generalizao seja perigosa, talvez seja seguro afirmar que o sacrifcio uma das poucas

    instituies sociais presente maciamente em variadas culturas, ainda que sob uma forma

    simblica, entrincheirada pelo processo civilizador. Para fora da esfera religiosa, o

    sacrifcio e o sofrimento costumam se secularizar a partir do Renascimento sob a forma do

    trabalho como valor tico. Diz um ditado popular de que h certo prazer no sofrimento: at

    que ponto ascetismo e hedonismo se mesclam, surgindo um do outro num processo cclico

    difcil de estabelecer a causa originria? Renuncia e recompensa so susceptveis de

    metamorfosear em orgulho/ reconhecimento e culpabilidade/ vergonha respectivamente. O

    sofrimento fsico seria o mais ntido encontrado entre os mochileiros, indicando

    peculiaridades deste tipo de viagem que supe contenes econmicas em alimentao,

    alojamento e transporte. Portanto, mesmo a perspectiva do trabalho seria de difcil

    abordagem, por enquanto, sob o prisma do sofrimentoainda mais quando a necessidade

    imperativa, como falar de uma valorizao cultural, enquanto algo teoricamente da ordem

    do suprfluo3?

    Em outras palavras, mochileiros escolhem voluntariamente um estilo de vida menos

    confortvel ao usufrudo no pas natal em situaes cotidianas, ao contrrio de um turista

    tradicional, no qual um dos principais atrativos da indstria do turismo oferecer

    hospedagens e restaurao luxuosas para este pblico. Uma das minhas hipteses principais

    3 Por suprfluo no quero dizer desnecessrio, deriva, mas denoto uma ao derivada puramente do livre-

    arbtrio, se que isto possvel. Talvez o sentido fique mais claro adiante. Os mochileiros no so obrigados

    a viajar China; muito menos viajar durante tanto tempo. uma escolha deliberada.

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    gira em torno de que a concepo de cio est mais relacionada coma ausncia de

    atividades tidas como desagradveis do que coma falta total de ao. Algum pode realizar

    muitos atos, mas se forem todos considerados prazerosos seja para o sujeito ou para o

    imaginrio dos circundantes, essa pessoa ociosamesmo que a gama de suas atividades

    seja mais ampla do que uma segunda pessoa, considerada ocupada. A percepo dessa

    viso pejorativa, se a hiptese for confirmada, visaria apontar que existem mais razes do

    que a mera propenso ao consumismo capitalista que estimulam as pessoas a produzir, o

    que talvez no seja totalmente explicado pela tica protestante weberiana. Ainda que

    impulsionado pelo consumo, a apropriao de dado objeto precisa adquirir certa

    legitimidade frente aos demais atores sociais. Para tanto, torna-se uma atividade desejvel

    mesmo para aqueles que teoricamente no precisam realiz-la, ao menos em termos

    pragmticos. uma necessidade subjetiva, enraizada no sujeito, mas oriunda da coao

    social como quase todas as necessidades. Na dicotomia entre esforo e cio, o mochileiro

    encontra seu contraponto: o turista clssico4, aquele que, aos olhos do primeiro grupo,

    julgado como preguioso, sem iniciativa e desinteressado pela novidade e a cultura local. A

    falta de obstculos a superar, a busca pelo conforto e o pagamento por servios que

    facilitam a experincia da viagem depreciam os turistas clssicos aos olhos do

    mochileiro, alguns culminando ao extremo de no querer ser confundido com um turista.

    De certa forma, parece que quanto piores forem os hotis, restaurantes, trens e nibus,

    mais legtima a afirmao de que, de fato, se conhece o Outro, o nativo do pas visitado.

    O nativo em questo se trata do homem mdio, visto, do ponto de vista europeu ou norte-

    americano, como invariavelmente mais pobre. provvel que os mochileiros busquem

    meios de transportes desconfortveis e restaurantes simples na tentativa de simular o estilo

    de vida acessvel maioria dos nativos. Ser tal simulacro condizente com a realidade do

    chins mdio? Quais outras aes os mochileiros adotam e quais outras acusam os

    turistas de realizar ou no?

    A ao humana baseada em ps-conceitos de avaliaes interligadas na noo de

    causa e consequncia adquirida em experincias pretritas. Ela fatalmente subjetiva.

    Afinal, baseada na experincia sensvel e dela no se pode desprender-se das noes de

    tica e Moral. Talvez exista uma ruptura na tentativa de conciliar o certo lgico com o

    4 No que consiste o estereotipo do turista clssico algo a ser perguntando aos meus entrevistados.

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    certo tico, uma vez que, normalmente, o ltimo incorporado quase que

    automaticamente na agncia do ator social, orientando para uma espcie de esttica da

    tica. Diante qualquer situao-problema complexa, inevitvel que uma ideologia seja

    pautada nos valores ticos e morais e, ento, procura-se por algum raciocino lgico a fim de

    justific-la. A subjetividade levar em conta ora uma tendncia positivista ora pessimista,

    ora emprica ou racionalista. Nunca a coisa em si inteligvel, mas naquilo que

    conspcuo.

    Sempre me chamou a ateno fenmenos considerados menores da vida cotidiana

    como o fato de, quase invariavelmente, so os artistas e msicos consagrados que

    desdenham inovaes tecnolgicas capazes de permitirem leigos a produzir efeitos

    semelhantes em programas de computador; so costumeiramente os intelectuais que se

    prostram, alegando banalizao do conhecimento, contra veculos da indstria cultural; os

    atletas que buscam identificar efeitos colaterais em remdios e tcnicas medicinais no

    aprimoramento do corpo etc. Trata-se de uma questo de legitimidade: o atalho anula o

    sofrimento, ento no pode ser legtimo e reconhecido, o sofrimento do processo de

    aquisio que legitima a reivindicao de dado bem ou privilgioquase como se o

    sofrimento incorporasse o reconhecimento desejado no ser do agente. No obstante,

    crucial interrogar at que ponto pode-se transformar tal postulao numa mxima social.

    Ainda impossvel escapar da arbitrariedade do meu juzo de valor.

    Considero a existncia de dois nveis de percepo e interpretao do agente, um

    social, ou seja, como a sociedade julga, com maior ou menor unicidade, a ao do

    indivduo. Inserindo-se nas estruturas estruturadas estruturantes do Pierre Bourdieu,

    impossvel dar conta de tudo, mas talvez o seja do todo. O todo depende do arranjo dos

    elementos. Por exemplo, uma das grandes surpresas do capitalismo tardio que as culturas

    tradicionais no so inevitavelmente incompatveis com ele, tampouco vulnerveis deste.

    Logo, se o mundo atual se diz utilitarista, termo cunhado por Stuart Mill, creio que ainda

    exista algo de tradicional envolto pelo pragmatismo contemporneo. Por isso mesmo,

    argumenta Sahlins contra ideia convencional que a cultura sui generis, um objeto dito

    superorgnico, independente dos sujeitos humanos que o atualizam5. Mesmo que use

    5 SAHLINS, Marshall. Experincia Individual e Ordem Cultural. In: Cultura na Prtica. Rio de Janeiro,

    Editora UFRJ, 2004. Rio de Janeiro. O autor possui um interessante comentrio sobre a dicotomia entre

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    valores monetrios para medir todos os tipos de bens e servios, a sociedade ocidental

    ainda dotada de outras lgicas inscritas nas intenes.

    extremamente recorrente entre mochileiros, conforme observei em viagens

    pretritas, a busca por autenticidade, de sair do beaten track turstico. O autntico exige

    uma elaborao de conhecimento pessoal, de busca por experincias inditasapesar da

    improvvel efetivao prtica, a tentativa permanece. uma averso do que fcil, do

    dado, como os servios oferecidos pelas agncias de viagens e indstria do turismo. Para

    ser um verdadeiro viajante e ter experincias autnticas, preciso se esforar.

    De qualquer maneira, para se ter algo de modo legtimo, a ideia de sacrifcio

    imprescindvel. antagnica noo capitalista sob a abordagem utilitarista e materialista,

    pois, se o que importa o produto final, seus meios deveriam ser irrelevantes. Logo, o

    utilitarismo apresenta sua contradio no til. As emoes dos atores anulam o

    pragmatismo terico, consolidando, na prtica, uma afirmao oposta do ideal conceitual.

    Se por utilitarismo, entende-se que o fim irrelevante aos meios, ideias como mrito,

    esforo e outras denotando recompensas pelo sacrifcio realizado transportam aos

    meios uma importncia talvez at maior que o prprio fim. Isso , afinal, o rito de

    passagem, necessrio para reafirmao da nova identidade.

    At que ponto os homens visam somente um fim utilitrio, despreocupado com o

    meio para alcan-lo? Devo lembrar que, para Simmel, a burocracia contempornea torna-

    se um fim em si mesmo. a valorizao do meio em prol do fim que pauto minha pesquisa.

    Ao longo deste estudo, elaborarei outras problemticas com os mochileiros, mas evidente

    na relao entre tempo e dinheiro e o antagonismo com a categoria turista que no

    possvel desconsiderar tais questes. Em um esquema micropoltico, os ideais de

    mochileiros e turistas podem divergir, mas ambos dialogam com situaes de realidades

    parecidas no pas de origem. A condio mochileiro ou turista dura um tempo determinado,

    findada a viagem, tanto um quanto o outro retomam atividades da vida cotidiana. A viagem

    vivida enquanto carter excepcional. No se trata, portanto, de identidades permanentes,

    como religio, gnero e etnia. Se for possvel fazer uma principal distino prvia entre

    mochileiros e turistas, que os primeiros possuem bastante tempo e pouco dinheiro

    individualismo utilitrio e determinismo cultural, porm, para efeitos desta dissertao, no me aprofundarei no assunto. No obstante, reproduzo aqui uma pertinente citao utilizada no texto de Sahlins: a utilidade domina o estudo da cultura porque domina a cultura que estuda (A. M. Hocart).

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    enquanto os segundos, vice-versa. Tempo e dinheiro so considerados bens necessrios

    para realizar uma viagem, mas a primazia de um sobre o outro determina, justamente, quem

    faz mochilo e quem faz turismo. Nota-se de antemo que um mochilo de longa

    durao pode exigir mais dinheiro que uma viagem curta de turista: para que sessenta dias

    custe menos que seis, o mochilo precisa ser bem econmico e/ ou o turismo, bem luxuoso

    E o prprio fato de dispor de mais tempo pode significar uma condio social mais alta do

    mochileiro do que a do turista, mas voltemos agora ao aparato terico pelo qual me guio.

    A relatividade do sofrimento: o que faz um verdadeiro mochileiro?

    Por mais que transformaes culturais provoquem reestruturas, prescindidas por

    eventos histricos como a reforma protestante e revoluo industrial, ela no sobrepuja o

    ideal de sacrifcio expiatrio. Alis, a prpria palavra remonta ao sagrado: o que no se

    deve infringir, inviolvel. Entretanto, sacrifcio no sinnimo de dor no sentido

    fsico, tampouco sofrimento smbolo de sacrifcio. Existe uma tnue diferena entre o

    sofrimento necessrio para a recompensa e o masoquismo. Alego, em linhas gerais, que a

    linha divisora social, em relao intrnseca com as concepes do til e do intil. O

    sofrimento til sacrifcio enquanto o intil, masoquismo. Porm, como distinguir? Evento

    e estrutura no esto separados, mas articulados. Determinadas aes repercutem em uma

    estrutura, mas no a transformam como um evento. O evento extraordinrio no uma

    ruptura, ainda que transformea ao extraordinria emerge na estrutura existente. O

    mesmo evento gera expresses subjetivas diferentes em contextos diversos. Um padro de

    comportamento oriundo de um evento extraordinrio se desenvolve precisamente do padro

    de comportamento j existente. O evento no molda o comportamento, este se d pela

    articulao com a estrutura determinante, Talvez se deva seguir por estas pistas para

    distinguir as concepes do sofrimento. um limite da minha pesquisa, porque no terei

    acesso aos turistas. Possivelmente, para estes, viajar sob as condies de certos

    mochileiros retira o sentido da prpria viagem. Se for para passar perrengue, melhor ficar

    em casa. Mas ser que o objetivo de qualquer turismo, seja o mochilo ou o resort,

    sempre o lazer?

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    O oposto de trabalho no lazer. Lazer pode gerar mais sofrimento do que o

    prprio trabalho na acepo geral de profisso (jogar futebol com amigos mais cansativo

    que passar um fax no escritrio). O lazer no necessariamente prazeroso (vide o famoso

    tdio do domingo). Acima de tudo, o lazer no apenas moralmente aceito na

    contemporaneidade, mas necessrio para o bem estar do indivduo. Logo, ele to til

    quanto o prprio trabalho. Portanto, por que o filho de um homem rico, ao completar 18

    anos e ganhar um carro de valor $$$, no to valorizado, em termos ticos e morais,

    quanto um self-made man que, aps muito trabalho e esforo, compra um carro de valor

    apenas $? Do ponto de vista econmico, o rapaz mais til que o trabalhador: sem ele o

    pai no compraria o carro, e o valor de $$$ faz mais capital circular na economia do que o

    valor de somente $. Acredito que a resposta seja o cio, visto como falta de sofrimento.

    Diga-se de passagem, o turismo mais recorrente entre pessoas mais velhas e o mochilo,

    das mais jovens. Quando um jovem faz turismo ao invs de mochilo, costumeiro

    justificar a falta de tempo por conta de trabalho e demais responsabilidades, indiretamente

    classificando o mochileiro como ocioso. Por outro lado, ser que os mochileiros no

    revidam e pensam os turistas e, acima de tudo, aos que no viajam apesar de possurem

    recursos para isso, como ociosos tambm?

    cio tem sua etimologia no grego skol: escola: denotando criatividade,

    contemplao, ideias. Enfim, uma atividade heurstica. Julgar o ocioso como intil

    sempre relativo ao contexto, pois o intil absoluto somente coerente na idia do Nada

    absoluto. Ou seja, o prprio Khos. Caos no somente o incio da Criao, mas tambm

    o apocalipse. Pode-ser-ia pensar na pesquisa inicial de Lvi-Strauss, pautada nas

    instituies sociais, como o parentesco. A partir do Pensamento Selvagem, Lvi-Strauss

    buscou o inconsciente. O suposto do estruturalismo que o Homem no convive com a

    ausncia de Ordem. Como as diferentes sociedades ordenam, por mais dspares que sejam,

    so potencialmente traduzveis. O mochileiro, por sua vez, acusa o turista de falta de

    criatividade, de intensa necessidade de ordem. No h conhecimento do local se o roteiro

    da viagem no permite improviso, se previamente determinada. Entretanto, o

    ordenamento do turista que anula o sofrimento do qual o mochileiro se submete, oriundo

    da imprevisibilidade. O conforto do turista se traduz num contexto de alienao capitalista.

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    Tal desordem, por outro lado, evitada pelo turista, vista como masoquismo: por que viajar

    se para passar por situaes difceis?

    O que posso fazer por prazer pode ser um martrio a outrem e vice-versa. Como

    buscar por universalidade em algo que h de to subjetivo? Diversos ritos de passagem

    tribais incitam processos dolorosos (como ser picado por formigas entre os ianommi ou

    perfurar os mamilos entre o sioux). O limiar entre a dor fsica e o sentimento de prestigio

    pode deixar a interpretao do gesto imprecisa. Talvez seja essa a lgica por trs do orgulho

    que o mochileiro sente pela superao, do cansao em passar trs dias dentro do trem de

    Pquim ao Tibete ao invs de sacar o avio.

    Mary Douglas, no captulo Abominaes do Levtico6, realiza uma racionalizao a

    posteriori. Qual a lgica que estrutura tal ordenamento que o faz que seja com ? O

    modelo parte do consciente para alcanar o inconsciente. A pena de um condenado tambm

    dolorosa, porm em um contexto drasticamente diverso do rito que visa conferir uma

    posio de maior privilgio ao agente. O que num caso ntida penalidade honra e mrito

    noutro, longe de ser visto como condenao, embora os processos constituintes possam ser

    quase to dolorosos quanto.

    A anlise estrutural deve ser feita em relao realidade, do contrrio seria delrio.

    S se pode comparar o que comparvel entre si: eis o problema, como saber exatamente o

    que comparvel? Para comparar preciso conhecer a histria das coisas. Ainda que o

    conceito de cultura seja unificador e errneo, se trabalharmos como se tal no existisse,

    nenhuma interpretao seria possvel7. Todos os povos desenvolveram estruturas

    simblicas nos termos das quais as pessoas so percebidas exatamente como tais: no como

    simples membros sem adorno da raa humana, mas como representantes de certas

    categorias distintas de indivduos8.

    a concordncia entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas, entre a

    conformao do ser e as formas do conhecer, entre o curso do mundo e as expectativas a

    esse respeito, que torna possvel esta referncia ao mundo que Husserl descrevia com o

    nome de atitude natural, ou de experincia dxicadeixando, porm, de lembrar as

    6 Pureza e Perigo.

    7 WAGNER, Roy. A inveno da cultura. Cosacnaify, 2010.

    8 GEERTZ, Clifford. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropolgico: In: O Saber

    Local. Petrpolis, Vozes, 1997. Pgina 228.

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    condies sociais de sua possibilidade. Essa experincia apreende o mundo social e suas

    arbitrrias divises, a comear pela diviso socialmente construda entre os sexos, como

    naturais, evidentes, e adquire, assim, todo um reconhecimento de legitimao. por no

    perceberem os mecanismos profundos, tais como os que fundamentam a concordncia entre

    as estruturas cognitivas e as estruturas sociais, e, por tal, a experincia dxica do mundo

    social (por exemplo, em nossas sociedades, a lgica reprodutora do sistema educacional),

    que pensadores de linhas filosficas muito diferentes podem imputar todos os efeitos

    simblicos de legitimao (ou de sociodicia) a fatores que decorrem da ordem da

    representao mais ou menos consciente e intencional (ideologia, discurso etc)9.

    O suposto prestgio alcanando por um rito de passagem no necessariamente

    oficializado, institucional. Suponhamos duas pessoas no Rio de Janeiro contemporneo que

    almejam emagrecer. Aps certo tempo x, ambas perderam cerca de dez quilos. No h

    nenhuma regra burocrtica estipulando como deve ser o mtodo oficial para o

    emagrecimento. No obstante, possvel que aquela que perdeu peso mediante certos

    sacrifcios, como dietas, ou melhor, reeducao alimentar (o que denota um forte carter

    disciplinar) e exerccios fsicos regulares provavelmente receber mais crditos e louvor do

    que a outra que simplesmente tomou medicamentos de tarja preta. Ainda que para a

    segunda pessoa o discurso seja dos possveis malefcios do medicamento, suspeito que o

    fator realmente agravante seja um suposto merecimento, como se o remdio pulasse uma

    etapa necessria para usufruir a conquista, uma falta de legitimidade.

    No caso acima, o empecilho que posso ter enquanto pesquisador pr-julgar que

    fazer exerccio necessariamente menos prazeroso do que no faz-lo e que as comidas da

    reeducao alimentar, menos prazerosas do que as demais. H pessoas que deveras

    desfrutam desse estilo de vida, embora eu julgue difcil compreender que elas o faam sem

    visar o fim esttico acima de tudo, sendo o discurso da sade apenas um mtodo menos

    ftil para legitim-lo, justific-lo. Por outro lado, no caso dos mochileiros, considero-me

    um estabelecido neste grupo, podendo ser influenciado positivamente pelo discurso.

    Diante o Outro, a tentativa no impor meus prprios juzos de valor para identificar seu

    9 BORDIEU, Pierre. A dominao masculina. Cap. I. Uma Imagem Ampliada. Rio de Janeiro, Bertrand

    Brasil, 2005.

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    hupokeimenonliterally, that which stands or is placed underneath, the material of which

    things are made10

    .

    Para Amlie Oksenberg, subjetividade consiste em seis aspectos pilares.

    Our history reveals several distinctive strands in conceptions of

    subjectivity: it was constituted as a (1) first-person, (2) individuated,

    (3) self-referential, (4) authorative veridical report (or expression) of

    na (5) ocurrent (6) mental state (sensation, emotion, thought)11

    .

    O discurso no reproduo da realidade. O discurso age, produz e produtor da

    realidade, do formas experincia. Se os homens representam as coisas como reais, elas

    so reais em sua consequncia. No se pune o crime atualmente, mas o criminoso, fazendo

    que as pessoas sejam catalogadas entre as que merecem ou no uma ddiva especifica.

    um pensamento pensando na individualidade em relao totalidade; o que produo de

    subjetividade. O ceticismo surge quando determinada forma de ver o mundo entra em crise

    por alguma razo, como uma falncia da gramtica do ordinrio. Essa fragilidade afeta o

    sentimento de segurana ontolgica. A ordem simblica que d sentido ao mundo frgil

    (Giddens), sobretudo diante mega eventos. As palavras podem ser distanciadas do seu

    contexto de origem, naturalmente situacionais na dialtica fala e contexto.

    Consideraes sobre a experincia e o desejo de conhecimento

    Segundo a razo instrumental de Horkheimer, o trabalho uma forma de dominar da

    Natureza independente da poca, o que pressupe uma relao de dominao entre os

    homens, e entre o indivduo e sua natureza subjetiva, seus instintos e desejos. Para esse

    domnio e essa auto-represso so necessrios clculos de meios e fins. O motivo para fazer

    tantas menes ao trabalho deve ficar claro agora. Alego que situaes de prazer, como

    uma viagem, precisam de certa justificativa de merecimento. O turista pode justificar seu

    conforto pelo trabalho rduo realizado no pas de origem. O mochileiro transforma a

    prpria viagem em trabalhosa. Manter uma viagem longa necessita disciplina, uma vez

    10

    RORTY, Amlie Oksenberg. The vanishing subject: the many faces of subjectivity. In: BIEHL, Joo ET AL (orgs). Subjectivity: ethnographic investigations. Berkely, University of California Press, 2007, pgina 35. 11

    IDEM, pgina 44.

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    que o dinheiro dirio limitado e os improvisos se multiplicam. Essa adaptao ao

    improviso com meios limitados evidentemente varivel e o prestgio deriva da maior

    habilidade de lidar com possveis adversidades. Tal prestgio sutil: para quem ele surte

    efeitos? Passar fome por falta de dinheiro, encarar dias dentro do nibus por ser mais barato

    que um avio, dormir na casa de desconhecidos, na praa pblica, na ferroviria etc so

    sinais de experincia, mas qual o limite para no se tornar excessivo? Quando o excessivo

    faz do mochilo no valer a pena? Quando se trata de uma atitude masoquista, de vontade

    de sofrer, ou seja, a negao desta vontade que naturaliza e transforma o suprfluo/ excesso

    em necessrio?

    A rigor, ningum mais poderia ainda fundamentar de maneira racional os fins em si

    mesmos. Eles se confundem cada vez mais com meras preferncias. No entanto, somente

    nessa inconstncia caracterstica das sociedades industriais modernas a racionalidade

    instrumental ganha predominncia, como se ganhasse autonomia em relao aos

    indivduos. S o que til ganha o status de racional para a maioria das pessoas nessas

    sociedades, enquanto os fins podem variar conforme a situao pessoal.

    Entrementes, no h sociedade sem dispositivo de poder. A disciplina um ato de

    auto-punio. O controle significa a substituio da luta inconsciente pela inteno

    consciente. O desencaixe para Giddens uma sensao como se o tempo transcorresse

    mais rpido. Isto gera insegurana ontolgica vide a flexibilidade gerar ansiedade

    existencial. O Indivduo egocntrico, mas sem centro.

    Nesta perspectiva, h um pressuposto de interioridade, especificidade e

    autenticidade do self para sempre vedada ao antroplogo, sobretudo em relaes to

    pessoais quanto ao que agrada e desagrada, entre prazer e sofrimento. Os meios que

    justificam os fins para uns no o fazem para outros, sejam pelas sensaes provocadas ou

    juzos morais. Como saber se existe uma razo mais profunda para uma ao, como se

    aquilo que aparente fosse to somente ilusrio? Ou melhor, em termos do Richard

    Sennett: as fices que negam a luta individual pelo poder ou o conflito mtuo servem para

    fortalecer a posio dos que esto em cima12

    .

    12

    SENNETT, Richard. A corroso do carter: as conseqncias pessoais do trabalho no novo capitalismo.

    Rio de Janeiro, Record, 2003.

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    INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, Nmero Especial 03, pp.1-16, 2012. Pgina 13

    Entre turistas e mochileiros, os ltimos costumam insinuar que o excesso de

    conforto e ordenamento, aliados ao tempo demasiado curto, faz com que os primeiros

    tenham bem-estar do corpo ao preo da alienao da alma. como se somente o corpo se

    deslocasse de pas/ cidade. As privaes de conforto, gerando sofrimento do corpo,

    providenciam a imerso da alma. Pode-se, ento, vivenciar a cultura local

    verdadeiramente. O conforto anttese da experincia nativa, o turista se coloca num

    patamar social acima do nativo, o que anula a possibilidade de conhecimento.

    Evidentemente, isto somente pelo pressuposto do nativo mdio, pois sempre possvel

    interagir com os nativos abastados. Depende, justamente, dos locais de preferncia a

    circular e os objetivos da viagem. Entretanto, h sempre o risco do excesso, de fazer

    guerra demais13. Mochileiros mais experientes costumam narrar suas peripcias aos

    menos experientes num tom relativamente paternal, como em programas de televiso com

    atores em situaes perigosas estampando a mensagem: somos profissionais, no tentem

    reproduzir os feitos em casa. Esse discurso ao mesmo tempo preventivo, visando o bem-

    estar alheio, e tambm uma forma de segregar o prestgio: perigoso e no recomendo aos

    outros, mas eu j fiz isso. Certas peripcias so reservadas aos verdadeiros mochileiros,

    mas qual seria ento o processo ritualstico da iniciao? Qual o delineador que faz um

    inexperiente se tornar iniciado?

    Ademais, essas adversidades denotam uma separao temporal. Os erros acontecem

    pela falta de experincia e planejamento, so to mais legtimos quanto menos recursos o

    agente dispe, ressaltando o carter aventureiro. Certos erros so permitidos nos primeiros

    mochiles, a recorrncia identificando falta de aprendizagem. Ou seja, se as maiores

    adversidades ocorrem quando ainda no se um iniciado, so justamente elas o rito de

    passagem. Uma vez superadas, torna-se um verdadeiro mochileiro, experiente o

    suficiente para preveni-las. Como manter, portanto, a dimenso da aventura? Radicalizando

    ainda mais as viagens, com menos recursos/ mais tempo nos lugares? E o processo de

    envelhecimento para este pblico? Mochileiros so costumeiramente representados jovens.

    Nestas condies, a pobreza voluntria, que jamais se confunde com a involuntria,

    aceitvel. O mesmo serve para as pessoas consideradas mais velhas?

    13

    Mochileiros costumam se denominar guerreiros, que realmente conhecem a cultura local. A confuso com o turista pode ser ofensiva. curioso, mas j escutei diversas vezes o protesto: I am not a tourist!

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    Para Foucault, o discurso que pretensamente libera repressor. Afinal, de quem a

    verdade? Se a ideologia falsa, ento qual a conscincia verdadeira? um pensamento

    evolutivo. Achamos que nos liberamos quando no fundo nos reprimimos. Se retirarmos o

    aquilo que nos reprime, surge logo outro aquilo para punio.

    No sei at que ponto vlido encarar prazer como liberdade e sofrimento como

    represso. O sofrimento pode ser recompensador. Insisto que este o principal dilema de

    minha pesquisa. O que martrio para mim pode ser agradvel para o outro. O que vlido

    se sacrificar para conseguir algo posteriormente ou mesmo enquanto fim em si mesmo para

    os sujeitos muda, embora, creio, em escalas menores dentro de uma mesma sociedade do

    que em relao ao Outro geograficamente distante, em outro locus.

    Indivduos so sujeitos constitudos por multiplicidades, com posies em discursos

    e prticas abrangentes muitas das vezes contraditrias e conflitantes. O indivduo no tem

    uma postura nica, no sentido aristotlico da dialtica no-contraditria. O processo

    criador de subjetividade no se esgota, fazendo com que o self adquira posies diferentes e

    atribua significados antagnicos para os mesmos significantes atravs do tempo, conforme

    variaes de poder e ideologia. O valor de uma teoria do sujeito providenciar um meio

    para compreender como um self complexamente constitudo se identifica com e/ ou e

    transforma vrias posies subjetivas disponveis dentro de um contexto particular

    simultaneamente social, cultural, econmico e poltico14

    .

    Antroplogos ps-modernos so objetos transformados em sujeito-que-fala. A

    Subjetividade no Representao, a produo desta constante, algo implicado. No

    possvel demonstrar o ponto de vista do nativo mediante o autor. O antroplogo sempre

    objeto de estudo. Forma e contedo no se separam na narrativa. O paradigma do texto

    antropolgico tem a ver com a interpretao, no mais na produo e sim na representao.

    O que me autoriza enquanto intelectual deter uma verdade superior verdade daquele que a

    proferiu? Tentar fazer Antropologia no se colocar como algum com o ponto de vista do

    nativo, mas como algum capaz de compreender o Outro. No meu trabalho, o nativo um

    transeunte, to difuso quanto o antroplogo. Mas no so os mochileiros antroplogos em

    potencial? Finalizo esse esboo com uma piada que escutei certa vez de um mochileiro

    14

    MOORE, Henrietta. The subject of anthropology. Cap. 2 A genealogy of the anthropological subject.

    Cambridge, Polity Press, 2007. Adaptao livre do texto em ingls.

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    iniciado: a diferena entre o mochileiro e o turista que, nas fotos, o primeiro est em

    vrios lugares com a mesma roupa. O segundo est no mesmo lugar com roupas diferentes.

    Referncias bibliogrficas:

    MOORE, Henrietta. The subject of anthropology. Cap. 2 A genealogy of the

    anthropological subject. Cambridge, Polity Press, 2007.

    RORTY, Amlie Oksenberg. The vanishing subject: the many faces of subjectivity. In: BIEHL, Joo ET AL (orgs). Subjectivity: ethnographic investigations. Berkely,

    University of California Press, 2007.

    SENNETT, Richard. A corroso do carter: as conseqncias pessoais do trabalho no

    novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record, 2003

    WAGNER, Roy. A inveno da cultura. Cosacnaify, 2010.

    GEERTZ, Clifford. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropolgico: In: O Saber Local. Petrpolis, Vozes, 1997

    SAHLINS, Marshall. Experincia Individual e Ordem Cultural. In: Cultura na

    Prtica. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004.

    Durkheim, mile. Da Diviso Social do Trabalho. Traduo: Eduardo Brando. Martins

    Fontes, 2010

    Durkheim, mile. As formas elementares da vida religiosa. So Paulo, Martins Frontes,

    2003.

    SAHLINS, Marshall. Cultura na Prtica. Rio de Janeiro, editora da UFRJ, 2004.

    GIRARD, Ren. A violncia e o sagrado. So Paulo, Paz e Terra, 2008.

    BORDIEU, Pierre. A Distino: crtica social do julgamento. So Paulo, Editora da

    Universidade de So Paulo, 2005.

    WEBER, Max. Economia e Sociedade I. Braslia, UNB, 1991.

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    INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, Nmero Especial 03, pp.1-16, 2012. Pgina 16

    -- Para o estudo, sero consultados sites e guias de viagem do O Viajante, Lonely Planet e

    Le Guide du Routard. Para contrapor o mochileiro com o turista, revistas de viagens

    tambm sero utilizadas.