Enchente na fronteira? Noticiabilidade e cobertura ao vivo · as entradas ao vivo dos repórteres...

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410 Enchente na fronteira? Noticiabilidade e cobertura ao vivo Ada Cristina Machado da Silveira 232 Clarissa Schwartz 233 Resumo: O artigo faz uma análise dos critérios de noticiabilidade utilizados na cobertura televisiva ao vivo de uma calamidade climática ocorrida nas cidades limítrofes entre Brasil e Argentina, no inverno de 2014. O referencial teórico ocupa-se ainda da caracterização da narrativa de proximidade e da narrativa de reconstituição. O corpus de análise foi selecionado após a identificação das reportagens sobre enchentes exibidas no telejornal gaúcho RBS Notícias no mês de julho. A ênfase na estratégia de localização, com a finalidade de obter efeito de proximidade da região fronteiriça, e a utilização da cobertura ao vivo predominantemente como narrativa de reconstituição foram as mais exploradas discursivamente. Em que pese sua capacidade técnica, a cobertura limitou-se a abordar a enchente em solo brasileiro, a despeito de que consequências semelhantes ocorriam na Argentina, demonstrando a compreensão editorial do telejornal quanto à dimensão de proximidade para constituição dos critérios de noticiabilidade adotados. Palavras-chave: cobertura ao vivo; noticiabilidade; televisão; fronteira; ambiente. 1. Introdução O artigo analisa a cobertura televisiva ao vivo da enchente do inverno de 2014 no Rio Grande do Sul exibida pelo telejornal RBS Notícias. Trata-se de um telejornal produzido e veiculado em rede regional pela RBS TV no Estado (afiliada da Rede Globo) que apresenta um resumo dos principais fatos do dia. É exibido de segunda-feira a sábado por volta das 19 horas com dois apresentadores que chamam do estúdio reportagens produzidas pela rede de emissoras televisivas da capital e do interior, bem como as entradas ao vivo dos repórteres da rede. 232 Doutora em Jornalismo pela Universitat Autònoma de Barcelona com estágio pós-doutoral pela Universidad Nacional de Quilmes. Pesquisadora do CNPq. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] 233 Doutora em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora colaboradora e bolsista de estágio pós-doutoral PNPD Institucional Capes do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

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410

Enchente na fronteira? Noticiabilidade e cobertura ao vivo

Ada Cristina Machado da Silveira 232

Clarissa Schwartz233

Resumo: O artigo faz uma análise dos critérios de noticiabilidade utilizados na cobertura

televisiva ao vivo de uma calamidade climática ocorrida nas cidades limítrofes entre Brasil e

Argentina, no inverno de 2014. O referencial teórico ocupa-se ainda da caracterização da

narrativa de proximidade e da narrativa de reconstituição. O corpus de análise foi selecionado

após a identificação das reportagens sobre enchentes exibidas no telejornal gaúcho RBS

Notícias no mês de julho. A ênfase na estratégia de localização, com a finalidade de obter efeito

de proximidade da região fronteiriça, e a utilização da cobertura ao vivo predominantemente

como narrativa de reconstituição foram as mais exploradas discursivamente. Em que pese sua

capacidade técnica, a cobertura limitou-se a abordar a enchente em solo brasileiro, a despeito de

que consequências semelhantes ocorriam na Argentina, demonstrando a compreensão editorial

do telejornal quanto à dimensão de proximidade para constituição dos critérios de

noticiabilidade adotados.

Palavras-chave: cobertura ao vivo; noticiabilidade; televisão; fronteira; ambiente.

1. Introdução

O artigo analisa a cobertura televisiva ao vivo da enchente do inverno de 2014

no Rio Grande do Sul exibida pelo telejornal RBS Notícias. Trata-se de um telejornal

produzido e veiculado em rede regional pela RBS TV no Estado (afiliada da Rede

Globo) que apresenta um resumo dos principais fatos do dia. É exibido de segunda-feira

a sábado por volta das 19 horas com dois apresentadores que chamam do estúdio

reportagens produzidas pela rede de emissoras televisivas da capital e do interior, bem

como as entradas ao vivo dos repórteres da rede.

232 Doutora em Jornalismo pela Universitat Autònoma de Barcelona com estágio pós-doutoral pela

Universidad Nacional de Quilmes. Pesquisadora do CNPq. Professora do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] 233 Doutora em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora colaboradora e

bolsista de estágio pós-doutoral PNPD Institucional Capes do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

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A cheia do rio Uruguai em julho de 2014 deixou mais de 20 mil pessoas

desabrigadas, atingiu 163 municípios gaúchos (DEFESA CIVIL RS, 2014) e em muitos

lugares foi considerada a maior enchente dos últimos trinta anos (ELY, 2014). A

análise detém-se nas notícias elaboradas sobre os municípios gaúchos de São Borja,

Itaqui e Uruguaiana na fronteira com a Argentina, onde se concentrou o maior número

de desabrigados do Estado. As três cidades limitam-se com os municípios argentinos de

Santo Tomé, Alvear e Paso de Los Libres, respectivamente.

Estudos sobre a cobertura nacional das fronteiras internacionais produzida pela

mídia de referência e sua repercussão sobre o noticiário produzido localmente indicam

que a mídia alimenta um imaginário de cidade dividida como uma forma de prevenir a

contaminação pelo que é estranho (SILVEIRA, 2012). Observamos que a cobertura da

enchente realizada pelo telejornal se concentrou na captação de notícias referentes a

acontecimentos ocorridos no Brasil. É neste aspecto que foi detectado um silêncio na

cobertura que caracteriza elementos da linha editorial do telejornal e um entendimento

dos critérios de noticiabilidade. Para compreender tais processos, elaboramos as

seguintes questões: Como se desenvolveram as narrativas resultantes da cobertura ao

vivo? Como foi explorada a dimensão de proximidade na enchente de 2014?

Acreditamos que, com tais perguntas, teremos elementos narrativos que podem apontar

para os critérios de noticiabilidade adotados.

2. Análise de uma cobertura ao vivo de telejornal

Fechine (2008, p. 26) lembra que “a transmissão direta é, antes de mais nada, um

fato técnico” porque permite simultaneidade entre produção, transmissão e recepção.

Com alto custo tecnológico e de pessoal, os “vivos”, como se denominam tecnicamente

as entradas ao vivo dos repórteres durante a programação, constituem-se em forma de

privilegiar determinados fatos na cobertura jornalística, segundo a autora.

O corpus de pesquisa foi selecionado após a identificação das inserções sobre o

tema enchente exibidas no telejornal RBS Notícias durante o mês de julho de 2014 e

postadas no site de notícias G1 RS, conforme se expõe a seguir:

412

Tabela 1 – Assunto enchente no telejornal RBS Notícias no mês de julho/2014

No. Edições 27

Presença do tema

enchente

21

Inserções do tema

enchente

Notas

cobertas

Notas ao vivo com

imagens

Reportagens

gravadas

Reportagens ao

vivo

45 6 8 14 17

Fonte: elaboração das autoras

Os quatro formatos identificados são descritos por Maciel (1995), Siqueira e

Vizeu (2014) e Curado (2002) nos seguintes termos: a) nota coberta: composta por uma

cabeça234 lida pelo apresentador ao vivo e um texto gravado em off coberto por imagens;

b) nota ao vivo com imagens: composta por cabeça lida pelo apresentador ao vivo e um

texto lido também ao vivo coberto por imagens; c) reportagem gravada: registro de

imagens e entrevistas que são posteriormente editados e d) reportagem ao vivo:

simultaneidade entre fato e transmissão.

Cada reportagem ao vivo foi analisada segundo cinco características:

1) estrutura: entrada ao vivo seguida de reportagem gravada, entrada ao vivo com

inserção de imagens gravadas (ilustração), entrada ao vivo com entrevista, entrada ao

vivo apenas com a imagem do repórter;

2) ambiente: vivo transmitido ou não do local do acontecimento;

3) duração: até 30”, entre 30” e 1’; entre 1’ e 2’, mais de 2’;

4) tempo relatado: tempo real ou tempo atual e

5) visão da espacialidade: modo de identificar a fronteira.

Posteriormente, partimos para a análise das características discursivas dos textos

audiovisuais.

234 Texto lido pelo apresentador que serve de introdução dos assuntos.

413

3. Acontecimentos, linha editorial e noticiabilidade

Charaudeau (2013) discute a questão da hierarquia dos acontecimentos a partir

de dois tipos de critérios adotados pela mídia: externos e internos. Os externos referem-

se à forma de surgimento dos acontecimentos: inesperados, programados ou provocados

e os internos englobam as escolhas que a mídia faz, para despertar interesse ou provocar

emoções no público que podem até se sobressair aos critérios de proximidade temporal

ou espacial e, muitas vezes, resultam em contradição: “O acontecimento é selecionado

em função de seu potencial de saliência, que reside ora no notável, no inesperado, ora na

desordem” (CHARAUDEAU, 2013, p. 141).

Buscando sistematizar os estudos sobre a noticiabilidade, apresentamos o

Quadro 1:

Atualidade Proximidade Importância e

interesse

Ruptura Anormalidade

Charaudeau

orienta

escolhas

temáticas

feitas pela

mídia

notícia adquire

interesse

diferenciado

quando ocorre

no mesmo

espaço da

instância da

recepção

mais do que a

localização

geográfica,

forma de tratar a

notícia resulta

em aproximação

ou

distanciamento

com o lugar do

acontecimento

mídia utiliza

critérios

internos para

escolher

assuntos que

despertem

interesse ou

provoquem

emoções no

público

notícia

precisa

sempre de

um elemento

recente e

também

inesperado

para evitar a

saturação

potencial de

“imprevisibili-

dade”, a

instância

midiática

evidencia o

extraordinário,

o estranho

414

Wolf traz a

contribuição

de Golding e

Elliot (1979)

de que notícias

escolhidas

devem fazer

referência aos

aconteci-

mentos

próximos ao

momento dos

noticiários

proximidade

não se limita à

questão

geográfica,

abrange também

a semelhança

cultural

nível

hierárquico dos

envolvidos,

impacto sobre o

país, número de

pessoas

envolvidas e

significado do

acontecimento

em relação à

situações futuras

interferem na

importância da

notícia

interesse da

história ligado à

imagem que

jornalista faz do

público

trabalho

jornalístico

seria

dirigido para

captar fatos

pontuais

a notícia é o

que altera a

rotina

Franciscato

pondera que a

noticiabilidade

de um

acontecimento

não pode estar

somente

ligada ao polo

do

imediatismo.

local onde o

meio de

comunicação

circula define os

valores

noticiosos que

serão adotados

importância

refere-se

àquelas

informações que

as pessoas

necessitam

saber na vida

pública e

privada e a

dimensão do

interesse teria

um significado

mais leve.

notícias

movem-se

entre os

polos de

continuidade

e ruptura.

bastante

semelhante ao

anterior,

restringindo-se

às rupturas com

padrões de

comportamento,

de objetos e

também de

situações

consideradas

normais.

QUADRO 1 – Critérios de noticiabilidade Fonte: elaboração das autoras a partir de Charaudeau (2013), Wolf (2001) e Franciscato (2014).

4. A transmissão direta

Calamidades climáticas enquadram-se em transmissões sem planejamento

prévio. “As próprias equipes de TV não têm como prever o que poderão mostrar quando

sua participação é levada ao ar” (FECHINE, 2008, p. 69-70). A autora comenta as

marcas de continuidade que enfatizam a atualidade e a autenticidade das transmissões e

salienta que reduzir o tempo entre a ocorrência dos fatos e sua divulgação é um dos

principais desafios dos telejornais. Nesse sentido, Fechine (2008) lembra que a

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transmissão direta é uma estratégia utilizada pelos editores para buscar essa

proximidade, mesmo quando o tempo relatado não é o tempo real, ou seja, quando o

momento do acontecimento é diferente do momento de sua narração.

Charaudeau (2013, p. 133) destaca que a “cotemporalidade enunciativa” entre o

acontecimento e sua divulgação é uma das principais tarefas da mídia. Abordando as

características da narrativa midiática, ele cita a narrativa de simultaneidade (quando o

acontecimento e a narrativa são simultâneos) e a narrativa de reconstituição (quando o

acontecimento é anterior à narrativa). Comparando a cobertura realizada pela rádio

francesa France-Info e os canais de televisão LCI e CNN, o autor avalia que a televisão

ainda tem dificuldades para combinar os tempos do acontecimento, da enunciação e da

transmissão, estando atrás das rádios neste aspecto.

5. A caracterização da cobertura ao vivo

No período da pesquisa, o telejornal foi apresentado por Elói Zorzetto e Simone

Lazzari e contou com a participação do repórter André Azeredo, também de Porto

Alegre, que fez as entradas ao vivo de Itaqui, além da equipe da RBS TV Uruguaiana,

especialmente da repórter Josiane Pimentel, responsável pelas entradas ao vivo de

Uruguaiana. A análise das participações ao vivo pode ser visualizada no Quadro 2:

Nº Dia Estrutura Ambiente Dura-

ção

Assunto

principal

Tempo Visão da

espacialidade

1 3 Vivo com

entrevista,

inserção de arte e

seguido de

reportagem

gravada

Local do

acontecimento

(Itaqui)

+ 2’ Casas volantes Real e

atual

Fronteira oeste

2 3

*

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

1 a 2’ Rio Uruguai

sobe em

Uruguaiana

Atual Prefeitura naval

da Argentina

3 3

*

Cidade do

acontecimento

(Brasília)

30” a

1’

Governo vai

fazer pedido

coletivo de

ajuda

Atual -

4 3

*

Local do

acontecimento

(Itaqui)

1’a 2’ Situação da

enchente em

quatro regiões

Real e

atual

Fronteira oeste

5 4 Cidade do 1’a 2’ Prefeitura Atual -

416

* acontecimento

(Uruguaiana)

decreta situação

de emergência

6 4 Vivo seguido de

reportagem

gravada

Local do

acontecimento

(Itaqui)

1’a 2’ Moradores

fazem vigília

para evitar

saques

Real e

atual

Fronteira Oeste

País vizinho

Cidade de Alvear

7 5

*

Local do

acontecimento

(Itaqui)

30” a

1’

Nível do rio

Uruguai baixa

Real e

atual

Fronteira oeste

8 5

*

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

30” a

1’

Nível do rio

Uruguai sobe

Atual Ponte Intern.

9 7 Vivo seguido de

reportagem

gravada

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

30” a

1’

Retorno para

casa

Atual Fronteira Oeste

10 7 Vivo apenas com

imagem do

repórter

Local do

acontecimento

(Porto Alegre)

Até

30”

Artistas fazem

show solidário

Real e

atual

-

11 7 Vivo seguido de

reportagem

gravada

Cidade do

acontecimento

(Porto Alegre)

Até

30s

Solidariedade

dos gaúchos

Atual -

12 8

*

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

1’a 2’ Rio Uruguai

baixa

Atual Fronteira oeste

13 9

*

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

30” a

1’

Rio Uruguai

baixa

Atual Fronteira Oeste

14 10

*

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

30” a

1’

Rio Uruguai

baixa

Atual -

15 17

*

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

30” a

1’

Chuva volta a

preocupar

Real e

Atual

Fronteira Oeste

16 23

*

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

30” a

1’

Prefeitos

discutem

prioridades

Atual Fronteira Oeste

17 25 * seguido de

reportagem

gravada

Cidade do

acontecimento

(Uruguaiana)

30” a

1’

Prejuízos do frio Real e

Atual

Fronteira Oeste

* vivo com ilustração

QUADRO 2 – Análise das entradas ao vivo da cobertura no telejornal

Fonte: elaboração das autoras

5.1 Vivos: uma transmissão de simultaneidade ou uma reconstituição?

A análise identificou a predominância de entradas ao vivo com inserção de

imagens gravadas (ilustração). Dos 17 vivos analisados, 11 seguiram a referida

estrutura, três foram seguidos de reportagem gravada, um foi realizado apenas com a

imagem do repórter, um reuniu duas estruturas: vivo com inserção de imagens gravadas

417

seguido de reportagem gravada e outro reuniu três estruturas: entrevista, inserção de

imagens gravadas e ainda reportagem gravada.

Quanto ao ambiente, mais da metade dos vivos (12 entradas) foram transmitidos

da cidade do acontecimento em cenário sem identificação direta com o fato. A

localização dos vivos nos auxilia a compreender o uso intenso da inserção de imagens

gravadas: como o repórter, na maior parte dos casos, não estava posicionado no local do

acontecimento, foi necessário inserir imagens para ilustrar o texto narrado. Cinco vivos

foram transmitidos direto do local do acontecimento (Fig. 1). Nessas entradas,

predominou a narrativa de simultaneidade, com o repórter descrevendo fatos que

estavam acontecendo no momento da enunciação, demonstrando que o telejornal tinha

condições técnicas de realizar uma cobertura em tempo real da enchente,

complementadas por imagens gravadas de um helicóptero que mostravam as áreas

ilhadas.

Figura 1 – Entrada ao vivo direto do local do acontecimento Fonte: Reprodução RBS Notícias 03/07/2014

Como a maior parte dos vivos utilizou a narrativa de reconstituição, o relato do

tempo atual prevaleceu sobre o tempo real. Em dez inserções foi identificado apenas o

tempo atual e em sete entradas foram encontradas algumas marcas de continuidade de

tempo real como informações sobre o clima e a temperatura. No entanto, nenhum vivo

relatou apenas o tempo real.

418

O tempo dos vivos concentrou-se entre 30 segundos e um minuto (nove

entradas) e entre um e dois minutos (cinco entradas). Dois vivos tiveram até 30

segundos e um deles teve mais de dois minutos.

Quanto à visão da espacialidade, nove entradas usaram apenas “fronteira oeste”

e cinco não fizeram nenhuma referência à fronteira. Termos como prefeitura naval da

Argentina, país vizinho, cidade argentina de Alvear e ponte internacional foram

encontrados em três inserções.

5.2 Unilateralidade da visão de fronteira

A análise das entradas ao vivo permitiu identificar que a proximidade e a

atualidade estabeleceram-se como os principais critérios de noticiabilidade adotados

durante a cobertura da cheia na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Verificamos, no

entanto, que as dimensões de importância e interesse, ruptura e anormalidade também

pautaram as inserções de forma complementar. A descrição está a seguir.

O RBS Notícias de três de julho concentrou sua cobertura na enchente. Das oito

reportagens postadas no site G1, cinco tinham relação com a cheia, além da previsão do

tempo. Esse dia também deu início à cobertura ao vivo na fronteira oeste (entrada ao

vivo nº1). Uma cabeça dividida entre os apresentadores anunciou a transmissão:

Já são 110 municípios atingidos pelas enchentes no estado, 58 estão

em situação de emergência e dois decretaram estado de calamidade

pública. E a situação mais grave agora é na fronteira oeste. Só em

Itaqui são quase dez mil pessoas fora de casa. É pra lá que a gente vai

ao vivo conversar com o repórter André Azeredo. André, como é que

essas famílias todas estão acomodadas? Boa noite! (RBS Notícias,

03/07/2014)

O repórter relatou que a maioria dos desabrigados foi para a casa de parentes e

que foram disponibilizados ginásios para os atingidos. Em seguida, descreveu o cenário

onde estava destacando a dimensão do interesse:

419

A gente está num local onde tem a questão mais curiosa em relação à

Itaqui, que são essas casas chamadas volantes. São aproximadamente

300 casas, Simone [referindo-se à apresentadora do telejornal], que

são casas que podem ser transportadas. Elas ficam normalmente do

lado de lá do rio que a gente não tem como mostrar porque está muito

escuro. A energia elétrica foi devidamente cortada por causa do risco e

elas estão aqui, foram trazidas com o auxílio de tratores, correntes,

elas que são montadas em cima de troncos de árvores, justamente por

já estarem acostumados com níveis de cheia, não tão altos como esse

agora. (RBS Notícias, 03/07/2014)

O repórter relatou que continuava a chover forte e entrevistou moradores que

reclamaram da situação. Depois, o jornalista explicou, com o apoio de uma ilustração,

que o leito do rio é mais raso naquela região e, por isso, a gravidade da cheia é maior.

Em seguida, chamou uma reportagem gravada que, utilizando imagens áreas, buscou

dimensionar a enchente.

A mesma edição apresentou um vivo de Uruguaiana (nº 2). O local em que a

repórter estava posicionada não foi identificado, mas não tinha relação direta com a

enchente. Ela estava em uma calçada e o cenário, escuro em função da noite, mostrava

um prédio, um carro estacionado e uma rua. A repórter relatou que o rio continuava a

subir e mil pessoas tinham abandonado as casas. Ela usou a prefeitura naval da

Argentina como fonte para atualizar o nível do rio em São Borja, mas não trouxe

informações sobre a cheia no país vizinho. Ao resumir fatos do dia relacionados à

enchente, a entrada ao vivo destacou a dimensão da atualidade.

O mesmo telejornal apresentou nova entrada ao vivo de Itaqui (nº 4). O repórter

disse que alguns desabrigados faziam vigília em frente às casas com medo de saques.

Nesse momento, a câmera mostrou um morador em frente a uma residência. Depois, o

repórter trouxe informações relacionadas com a chuva em outros pontos do estado. A

segunda inserção ao vivo de Itaqui pouco acrescentou informações sobre a cheia na

região. Serviu para o repórter narrar fatos de outras regiões, reunidos por critérios de

proximidade e atualidade por abordarem o mesmo assunto naquele dia.

Na edição seguinte foi feita nova entrada ao vivo de Uruguaiana (nº 5). A cabeça

destacou que o município havia decretado situação de emergência. A repórter atualizou

o número de desabrigados em Uruguaiana, trouxe dados de uma ponte interrompida e

420

continuou com informações de São Borja: “o rio Uruguai já baixou dois metros. Mesmo

assim, a orientação é de que os três mil moradores atingidos ainda não voltem para casa

porque é preciso verificar a segurança das estruturas e da rede elétrica”. Apesar de não

ter citado a fonte da orientação, esse vivo destacou a dimensão da importância ao

repassar uma informação relevante para a proteção das famílias atingidas.

Na mesma edição, a situação de Itaqui foi atualizada (vivo nº 6). Posicionado em

frente a várias casas alagadas, o repórter descreveu o local valorizando um critério de

anormalidade. “A gente tá bem no centro E. [apresentador do programa] nesse momento

justamente pra mostrar que é a área da cidade que também tá alagada, viu? Não é só na

questão ribeirinha”. O repórter continuou mostrando um churrasco dos moradores: “A

gente pensa assim, tá um clima tranquilo, o pessoal fazendo um churrasco, a casa toda

debaixo d’água, mas não é bem por aí, não é seu Henrique?” Os moradores

responderam que passavam as noites em vigília para evitar os saques nas residências.

No dia em o Brasil venceu a Colômbia em jogo da Copa do Mundo, o repórter ainda

perguntou aos moradores: “Tem como ter clima de copa num momento como esse?

Chegaram a acompanhar o jogo do Brasil ou não?” Com essa pergunta, que teve uma

resposta negativa, o repórter buscou explorar o afastamento midiático que a enchente

provocou naquela comunidade. Uma reportagem gravada mostrou o exército auxiliando

os moradores a desocupar as casas e abrigos lotados. A passagem da reportagem foi

feita de um prédio em Itaqui.

Do alto deste prédio é possível ter um panorama de como está a

situação no centro de Itaqui, uma região bem atingida pela cheia do

rio Uruguai. Muitas casas e ruas debaixo d’água. Lá atrás a gente vê o

rio Uruguai, correndo naquela direção. Do outro lado da margem,

aquela construção branca que aparece no fundo, já é a cidade

argentina de Alvear, ali é o porto e a gente pode perceber que no país

vizinho também tem alagamento. (RBS Notícias, 04/07/2014).

Esse foi o único registro de referência à enchente no país vizinho encontrado

pela pesquisa. Apesar da proximidade espacial, algumas marcas do discurso (“lá”, “do

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outro lado da margem”, “aquela”) indicaram um distanciamento com a cheia do outro

lado da fronteira.

A cobertura ao vivo em Itaqui terminou no dia 5 de julho (nº7). A pergunta do

apresentador sugeriu uma mudança no fluxo da cobertura: o rio começava a baixar na

cidade mais atingida pela enchente.

O volume de chuva aumentou na fronteira oeste. Já são 19 mil e 600

pessoas desabrigadas ou desalojadas em 117 municípios. A situação

mais crítica segue em Itaqui e é para lá que a gente vai ao vivo onde

está o repórter André Azeredo. O nível do rio baixou por aí André?

Boa noite! (RBS Notícias, 05/07/2014)

Posicionado em frente a uma rua alagada, o repórter informou que o rio baixou

sete centímetros. Também forneceu dados sobre a situação do tempo e resumiu

ocorrências do dia relacionadas à enchente como distribuição de remédios e de

alimentos. No mesmo dia foi feito um vivo de Uruguaiana (nº 8) em que o critério

predominante foi a atualidade. A repórter relatou que o número de desabrigados havia

triplicado.

Na semana seguinte, os vivos passaram a ser ancorados exclusivamente de

Uruguaiana. O assunto principal passou a ser a volta para casa dos desabrigados,

indicando nova ruptura na cobertura (nº 9). A repórter atualizou informações sobre o

nível do rio em Uruguaiana. Após o vivo, foi exibida uma reportagem que atualizou a

situação da enchente também em São Borja e Itaqui. Mapas foram usados para localizar

as três cidades, mas o texto não fez referências à fronteira e a arte se restringiu ao

território brasileiro (Fig. 2).

422

Figura 2 – Mapa inserido sobre imagem da Ponte Internacional Fonte: Reprodução RBS Notícias 07/07/2014

A entrada ao vivo de nº 12 valorizou mais uma vez a dimensão do interesse (Fig.

3). “Em São Borja, o rio Uruguai baixou 7 metros [...] e lá a carcaça de uma vaca foi

encontrada em cima de um poste de energia elétrica”.

Figura 3 – Carcaça de vaca é encontrada em poste de luz Fonte: Reprodução RBS Notícias 08/07/2014

Os vivos nº 13 e nº 14 forneceram dados sobre a quantidade de desabrigados e o

nível do rio. Nas edições seguintes, houve uma redução na cobertura da enchente que

passou a ser feita principalmente por notas cobertas.

Uma semana depois, houve nova entrada ao vivo (nº 15) que destacou a

dimensão da ruptura: “A chuva que voltou a cair no estado colocou em alerta a Defesa

Civil gaúcha. Vamos até Uruguaiana, na fronteira oeste, que ainda tem moradores fora

423

de casa. Josiane Pimentel, a chuva voltou aí? Boa noite!”, destacou o apresentador. A

repórter relatou como estavam as condições do tempo e esse foi o primeiro registro de

tempo real verificado nas participações ao vivo de Uruguaiana. “Boa noite Elói. Agora a

chuva parou, mas durante toda a quinta-feira o tempo ficou bastante instável por aqui”.

O vivo nº 16 aconteceu na semana seguinte e abordou uma reunião de prefeitos

para discutir as prioridades de investimento de verbas de auxílio do governo federal.

A última inserção sobre a enchente no mês de julho aconteceu no dia 25 e teve o

frio como o assunto principal. A repórter fez o segundo registro de tempo real dos vivos

de Uruguaiana, ao descrever as condições do tempo no momento da enunciação: “E

agora a temperatura à noite vai caindo, o frio vai se intensificando, o que fica mais

difícil ainda pra essas pessoas que perderam quase tudo”. A entrada ao vivo foi seguida

de uma reportagem gravada sobre os prejuízos que o frio trouxe para as cerca de duas

mil pessoas que seguiam desabrigadas.

6. Narrativas de reconstituição e proximidade restringida

Apesar de se estender por um mês, a cobertura não avançou no sentido de trazer

informações sobre a cheia no país vizinho. Sendo assim, interpretamos que a divulgação

da enchente apenas do lado brasileiro estabeleceu a dimensão da proximidade com um

dos principais critérios de noticiabilidade adotados, tornando o outro lado da fronteira

um lugar distante e sem conexão com a realidade abordada, reforçando o imaginário de

cidade dividida.

Outro critério de noticiabilidade verificado de forma recorrente em nossa análise

foi a atualidade. Até mesmo por ser um telejornal noturno que apresenta um resumo dos

principais fatos do dia, as notícias relacionadas à enchente eram factuais. No entanto, a

cobertura ao vivo, especialmente de Uruguaiana, ficou bastante restrita às informações

de órgãos oficiais, como número de desabrigados, nível do rio e distribuição de

donativos para as famílias atingidas, uma escolha editorial que pode conduzir a

cobertura para a saturação. Mesmo assim, consideramos que as entradas ao vivo foram

válidas, uma vez que privilegiaram o tema na cobertura jornalística, marcando a

424

presença dos repórteres e do telejornal no fato, apesar das limitações de tempo impostas

em função da cobertura já prevista e planejada da Copa do Mundo.

7. Considerações finais

Os resultados encontrados após a análise da cobertura ao vivo realizada durante

um mês apontam que a ênfase na estratégia de localização com a finalidade de obter

efeito de proximidade da região fronteiriça e a utilização da cobertura ao vivo

predominantemente como narrativa de reconstituição foram as mais exploradas

discursivamente.

Sobre a questão da narrativa, não acreditamos que a televisão brasileira tenha

dificuldades de combinar os tempos do acontecimento, da enunciação e da transmissão

como o caso descrito por Charaudeau (2013). As entradas ao vivo diretamente do local

do acontecimento são cada vez mais comuns nos telejornais brasileiros, principalmente

a partir dos avanços tecnológicos que permitem o envio de imagens ao vivo por

dispositivos móveis.

O período analisado coincidiu com a realização da Copa do Mundo no Brasil.

Um acontecimento mobilizador de toda a energia midiática e que, nas fronteiras, prova

as mais básicas regras de convivência frente à paixão futebolística, convertendo-se em

capital simbólico de uma cobertura, como o caso da rivalidade no futebol.

Especialmente a situação da cidade de Uruguaiana foi explorada em reportagens sobre a

tradicional rivalidade entre Brasil e Argentina. Em que pese a presença desse elemento,

em todas as edições do telejornal analisadas, apenas uma reportagem fez referência à

cheia no país vizinho (nº 6).

Talvez a dificuldade decorra de uma especial relação com a Argentina, dado que

a fronteira Brasil-Uruguai apresenta maior convivialidade. Reportagem exibida em 24

de julho relatou que comerciantes uruguaios de Rio Branco estavam com suas lojas

ameaçadas pela cheia do rio Jaguarão. Vale a pena trazer a reflexão de um de nossos

autores e sua experiência no Hemisfério Norte:

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Mas essa questão do aqui e do fora daqui é relativa, pois também tem

a ver com o imaginário. Quando existiam os chamados países da

“cortina de ferro”, a Iugoslávia, para os ocidentais, era tão longínqua ,

no imaginário, quanto a Chechênia. A partir do conflito na ex-

Iugoslávia, esses países estão situados na Europa, “às portas de Paris”,

como destacaram alguns jornais em suas manchetes [...]

(CHARAUDEAU, 2013, p. 136).

Quanto às coberturas televisivas ao vivo, em que pese seu custo, elas ainda

oferecem e demandam grande autonomia dos repórteres. Elas podem ser um espaço

apropriado para propor mudanças nos critérios de noticiabilidade ainda restritos à noção

de fronteira da Guerra Fria.

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