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ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: APROXIMANDO AGENDA E AGENTES 23 A 25 DE ABRIL DE 2013, UNESP, ARARAQUARA (SP) “SEGURANÇA PÚBLICA NÃO É SÓ POLÍCIA!” - SEGURANÇA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO Gleise Prado da Rocha Passos Universidade Federal de Sergipe

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ENCONTRO INTERNACIONAL

PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: APRO XIMANDO

AGENDA E AGENTES

23 A 25 DE ABRIL DE 2013, UNESP, ARARAQUARA (SP)

“SEGURANÇA PÚBLICA NÃO É SÓ POLÍCIA!” - SEGURANÇA E

PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO

Gleise Prado da Rocha Passos

Universidade Federal de Sergipe

“SEGURANÇA PÚBLICA NÃO É SÓ POLÍCIA!” - SEGURANÇA E

PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO 1

Gleise Prado da Rocha Passos2

O aumento da criminalidade nas últimas décadas provocou respostas

em duas direções no que se refere às políticas públicas de segurança: de um

lado, houve o endurecimento da ação dos poderes públicos; de outro, a

abertura à participação comunitária na efetivação da segurança pública.

Exemplo dessa segunda tendência, o policiamento comunitário aposta na

integração com a comunidade e na prevenção como solução para os

problemas de segurança, incorporando uma nova dinâmica de reciprocidade e

corresponsabilidade entre sociedade e polícia.

O presente artigo pretende, então, discutir os desafios, limites e

potencialidades desta política de segurança pública à luz do referencial

empírico do policiamento comunitário na cidade de Aracaju, capital de Sergipe,

que fora o primeiro estado do Nordeste brasileiro a implantar este tipo de

policiamento. Trata-se, na verdade, de uma discussão resumida de uma

pesquisa de doutoramento sobre o policiamento comunitário em Aracaju entre

os anos de 2007 e 2010, cujo objetivo principal foi analisar a estruturação

desse estilo de policiamento comunitário na cidade e caracterizar o perfil das

demandas por segurança, assim como a participação social na

implementação dessa política pública.

“Segurança Pública como responsabilidade de todos”

No Brasil contemporâneo, o Estado tem conclamado a sociedade a

assumir sua parte na promoção de uma vida comum menos violenta. A

segurança pública, conforme o Art. 144 da Constituição de 1988, além de 1Este artigo trata-se de uma versão resumida da minha Tese de Doutorado intitulada “’Segurança Pública não é só Polícia!’ - “Segurança e Participação Social em relação ao Policiamento Comunitário na cidade de Aracaju”. 2 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora/Bolsista do CNPq e da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (Fapitec-SE), atuando na Universidade Federal de Sergipe.

“dever do Estado”, passou a ser entendida como “responsabilidade de todos”,

sofrendo um processo de redefinição nos seus aspectos conceituais e no

campo prático de suas políticas, trazendo mudanças no relacionamento entre o

Estado e a sociedade.

As sociedades contemporâneas têm apresentado uma série de

mudanças nas relações entre Estado e sociedade, especialmente devido às

alterações dos papéis clássicos do Estado (promotor do desenvolvimento,

protetor e redistributivo, regulador, investidor) para novos paradigmas que

envolveram ajustes neoliberais e conduziram à ruptura do pacto corporativo do

Estado popular desenvolvimentista, à austeridade na política salarial e ao

desmonte da política social transformando uma política redistributiva, produtora

de justiça social, em política compensatória pontual de atendimento aos mais

pobres. Na ausência do Estado enquanto provedor de serviços públicos e

sociais básicos, os cidadãos passaram a expressar suas demandas através de

movimentos sociais, de formas alternativas em gestão de bens públicos (redes

de solidariedade social) ou até mesmo através de diversas formas de anomia,

como a violência e o crime organizado (IVO, 2001).

A categoria sociedade civil foi incorporada ao debate político nacional

mediante a luta de movimentos sociais pela democratização do país. Antes de

1970, categorias como “classe trabalhadora” ou “classes populares” eram

usadas para designar os grupos mais expressivos da sociedade civil. Nos anos

1970 e 1980 o termo foi introduzido no vocabulário político e passou a significar

um amplo conjunto de organizações que reivindicavam mais liberdade e justiça

social a partir de uma demanda comum de derrubada do regime autoritário e

democratização do país (TEIXEIRA et al.,1998-99). Os chamados “movimentos

populares urbanos”, que na década de 70 eram vistos como agentes

transformadores sociais e detentores da força social, estavam fundamentados

numa oposição ao Estado e na busca de uma autonomia em face dos

aparelhos estatais, bem como dos partidos. Alguns estavam também

vinculados às práticas da Igreja católica, motivadas principalmente pela

Teologia da Libertação (GOHN,1997).

Enquanto nos anos 1970 a busca por autonomia frente ao Estado e a

demanda comum de supressão do regime autoritário contribuíram para uma

visão homogeneizadora da sociedade civil, nos anos 1980 a diversidade de

demandas e projetos políticos abriu a percepção da pluralidade que forma a

sociedade civil no país. Surgiram novos tipos de movimento, tais como, o

movimento das Diretas Já; movimentos que lançavam questões relativas ao

campo da moral e da ética na política; e os movimentos por demandas

universais (de igualdade racial, feministas, indígenas, ecologistas, etc.). São os

chamados “novos movimentos sociais” cuja estratégia se fundava não mais na

demanda de ação estatal, mas na reivindicação de respeito da autonomia das

“arenas societárias” por parte do Estado (AVRITZER, 1994).

Na década de 1990 manifesta-se uma nova forma de associativismo no

país, marcada por uma postura mais aberta e propositiva da sociedade civil

diante do Estado, pelo crescimento das ONG’s, pela articulação dos

movimentos entre si em redes, pela “profissionalização” de boa parte dos

movimentos e por maiores possibilidades de atuação da sociedade civil nas

esferas pública e estatal. Surge, então, um novo entendimento de sociedade

civil, como produto das reivindicações por direitos e espaços de participação

social.

Em fins dos anos 1970 tem-se, portanto, a formação de uma esfera

societária que demandou direitos civis, políticos e sociais e de esferas

autônomas de negociação com os atores do Estado e do mercado. A partir da

transição do regime autoritário para a democracia, a sociedade civil se

apropriou gradualmente dos instrumentos do Estado de Direito para exigir

estruturas públicas e legais voltadas para o cidadão e a consolidação da

sociedade de forma democrática.

Esse processo pelo qual os atores da sociedade civil surgiram,

adquiriram uma nova identidade democrática e passaram a pressionar o

Estado e o sistema político a se adaptarem a nova concepção de

institucionalidade democrática (AVRITZER,1994) trata-se de um processo de

“democratização da democracia” no qual os movimentos e organizações

sociais têm o papel de colaboradores através da busca pelo resgate do caráter

privado às esferas privadas e do caráter público às questões públicas, em

contraposição aos Grupos de Interesse que “atuam buscando ‘feudalizar’ os

espaços públicos, servindo-se destes para a implementação de seus próprios

interesses particularistas” (COSTA, 1994, p.47). Essa “democratização da

democracia” é o que Boaventura de Sousa Santos (1999) chamou de luta por

uma democracia redistributiva, isto é, por uma democracia participativa e por

uma participação democrática.

No campo da segurança pública, a ideia é que o aumento do controle

social sobre a polícia, ao lado de uma maior abertura da instituição policial,

representaria um salto rumo à democratização da sociedade, do Estado e da

polícia. Aqui se situam as novas experiências de cogestão da segurança,

dentre elas, o policiamento comunitário através do qual a sociedade passa a se

envolver com um novo padrão de segurança e de policiamento para a

diminuição da violência. Esse novo modelo de policiamento propõe uma

segurança pública em parceria entre o Estado e a comunidade. Segundo Dias

Neto (2002), a pedra de toque que nos permite avaliar a consistência de um

programa de policiamento comunitário é justamente o grau de democratização

da função policial. Assim sendo, seu principal indicador é a participação do

público. Ela determinará em que medida esse tipo de policiamento tornar-se-á

uma forma mais democrática e eficaz do exercício da função policial.

Vimos que os diversos atores da sociedade civil vêm adotando uma

postura mais dialógica com o Estado. Em contrapartida, a participação traz

vários dilemas. Um deles é o de como a sociedade civil pode tornar-se mais

propositiva sem se transformar em substituta do papel estatal, uma vez que

essa nova relação entre Estado e sociedade caminha em paralelo à postura

dos valores neoliberais que transferem para o setor privado a responsabilidade

de políticas e serviços que antes eram garantidos e realizados pelo setor

público.

Nessa direção, a abertura do Estado à participação social tem sido

usada como estratégia de desresponsabilização. E isso também tem

acontecido com a Segurança Pública. Avaliações sobre a implantação do

policiamento comunitário em Minas Gerais (SOUZA,1999; BEATO, 2006), por

exemplo, mostram que o Estado fornece uma estrutura material precária para a

polícia comunitária nos bairros, restando à população local arcar com o que

falta para viabilizar as condições de trabalho dos policiais. A comunidade acaba

servindo à diretriz neoliberal de redução de custos do poder público, ou seja,

torna-se uma excelente forma de multiplicar os recursos disponíveis para a

polícia sem necessariamente aumentar o orçamento policial (RODRIGUES,

2009).

Além do neoliberalismo, outros fatores associados à globalização como

a expansão do comércio internacional, o terrorismo em escala mundial, os

problemas ecológicos e ambientais, a expansão de instituições supranacionais

de regulação (Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do

Comércio, Banco Mundial) tendem a diminuir a importância do Estado nacional

como um referente para os atores sociais (COHEN, 2003). Porém, mesmo

aqueles que reconhecem a necessidade de repensar esse conceito advertem

para o fato de que o Estado nacional ainda é uma referência importante. Numa

democracia, o Estado possui funções que são insubstituíveis: “[...] uma

democracia robusta necessita tanto da presença do Estado como de uma

sociedade civil forte” (YOUNG apud PINTO, 2004, p. 110).

A segurança pública no Estado democrático deve ter como objetivo

assegurar as condições de vida digna ao cidadão. Sob a perspectiva de

responsabilidade compartida, ela se torna um direito e um dever de cidadania.

Nesse sentido é que se destaca a participação da sociedade na concepção, no

planejamento, fiscalização e correção das políticas de segurança (AGUIAR,

2001).

Policiamento Comunitário: a cooperação entre políci a e sociedade

O policiamento comunitário apareceu como uma alternativa ao modelo

tradicional de polícia defendida tanto por conservadores quanto por reformistas.

Os conservadores viam nele a oportunidade de restabelecer a ordem moral e a

segurança nos bairros; já os reformistas viam a oportunidade de atacar as

causas mais profundas do crime, de revitalizar as comunidades mediante a

participação e de melhorar a capacidade de resposta da polícia.

Para desfazer possíveis confusões acerca da filosofia, do gerenciamento

e da organização do novo policiamento, Skolnick e Bayley (2002, p.18)

propõem que

só se considere a existência efetiva de ‘um policiamento comunitário’ quando forem realizados novos programas para elevar o nível de participação do público na manutenção da ordem pública, ou melhor, apenas se estiver ligado a um distanciamento das práticas operacionais passadas, e somente se ele refletir uma nova realidade tática e estratégica.

Os programas de policiamento comunitário são diversos entre si, mas é

possível destacar alguns elementos comuns: redefinição do papel da polícia;

resolução de problemas baseada na comunidade; operacionalização enfatizada

na prevenção e nos serviços não emergenciais; maior reciprocidade entre

polícia e comunidade; gerenciamento flexível; participação da sociedade nas

soluções dos problemas que a afetam (CERQUEIRA,1999; GREENE, 2002;

ROSENBAUM, 2002). Serão destacados aqui dois desses elementos que, em

certa medida, englobam os outros, a saber: a prevenção do crime baseada na

comunidade e a cooperação entre polícia e comunidade.

O conceito de policiamento comunitário implica mudanças na

legitimação da polícia: junto com a competência no controle da violência, a

satisfação da comunidade torna-se uma base importante de legitimidade.

Nessa perspectiva, a comunidade é vista não apenas como um meio para

chegar aos objetivos de controle do crime, mas também como um fim a ser

alcançado (MOORE, 2003). A resolução de problemas mediante a prevenção

comunitária do crime é, portanto, um dos elementos fundamentais desse

policiamento. A ideia é que o crime e a violência nas comunidades podem ser

reduzidos a partir de um cuidadoso estudo dos problemas na área e da

aplicação dos recursos apropriados para solucioná-los. Assim, a participação

da comunidade será essencial para uma efetiva resolução de problemas.

A ação preventiva é entendida nesse novo policiamento como toda ação

voltada a evitar que a violência e o crime ocorram, promovendo a segurança

não apenas através do sistema formal de justiça criminal, mas também dos

diferentes sistemas indiretos de prevenção, como os colégios, instituições

religiosas e a sociedade em geral. Podemos distinguir duas formas de política

preventiva no campo da segurança pública: a “política preventiva estrutural”,

que ataca as raízes da violência criminal, resultando em melhorias a médio e

longo prazo; e a “política preventiva tópica” que ataca causas mais localizadas

e apresenta efeitos mais imediatos. Ambas podem ser implantadas

simultaneamente, porém, claro está que se as políticas preventivas não focam

os problemas profundos da criminalidade, elas podem até reduzir as taxas,

mas não impedem que os problemas retornem (RODRIGUES, 2009).

O policiamento comunitário traz como estratégia a união de esforços da

polícia e da comunidade para a manutenção da ordem e o controle do crime

(CERQUEIRA,1999). A polícia, em parceria com a comunidade, concentra-se

no que pode ser feito para lidar com os problemas por ela nomeados:

A filosofia fundamental da prevenção comunitária do crime está incorporada na noção de que os meios mais eficazes de combater o crime devem envolver os moradores na intervenção proativa e na participação em projeto cujo objetivo seja reduzir ou prevenir a oportunidade para que o crime ocorra em seus bairros (MOORE, 2003, p.153).

A comunidade tem sido buscada cada vez mais como fonte de

segurança. O viver em comunidade ou o pertencer a uma comunidade sempre

transmitiu uma boa sensação e uma ideia de proteção, embora muitas

comunidades hoje existentes tornem cada vez mais presente a contradição

entre segurança e liberdade (BAUMAN,2003).

Outro pilar do policiamento comunitário é a cooperação entre polícia e

comunidade, aliada aos mecanismos de confiança e respeito, um modelo que

fortalece os laços sociais na comunidade. Possibilita relações de maior

proximidade entre moradores e a polícia e motiva a população a sair do

individualismo que empobrece a convivência na vida pública. Permite também

enfrentar a desconfiança, o isolamento institucional e a indiferença que abalam

significativamente as estruturas de solidariedade e cooperação.

Nessa perspectiva, a polícia cidadã provoca impactos de cultura política

importantes como a superação de estereótipos e preconceitos que impedem a

cooperação e o relacionamento mais construtivos entre agentes públicos e

sociedade e ainda contribui para um maior esclarecimento dos poderes,

tarefas, recursos e limites da instituição policial, desfazendo falsas expectativas

sobre a capacidade da polícia de resolver todos os problemas relativos à

violência de imediato.

No policiamento tradicional o contato dos policiais com os cidadãos

geralmente está restrito às situações pontuais tensas e adversas. É justamente

essa situação de ausência de comunicação mais direta e cotidiana entre o

policial e o cidadão que gera desconfiança, acirra conflitos e promove

preconceitos. No policiamento comunitário, ao contrário, a polícia se faz

presente não apenas nas situações emergenciais, mas como presença

cotidiana na vida local. Logo, o policial deixa de ser um simples aplicador da lei

e passa a ter uma visão mais ampla e integrada de suas funções como

discernir em situações de conflito, solucionar problemas, organizar a

comunidade e ser elo de informações (DIAS NETO, 2000); um verdadeiro

prestador de serviços públicos à comunidade. Isso resulta de uma

descentralização do poder de decisão e de operacionalidade que não somente

contribui com a nova função do policiamento, mas institui nas bases dessas

funções públicas uma democratização dos espaços de decisão, de

responsabilidade e ação consequente.

A polícia necessita de informação para agir, pois essa é a base do

trabalho de investigação, mas ela só é fornecida cooperativamente se os

cidadãos confiam na polícia. Por isso, é necessário um esforço contínuo por

parte da polícia para construir esta confiança numa parceria com a

comunidade. A confiança é um elemento fundamental das interações sociais e,

consequentemente, da cooperação entre indivíduos e grupos: a confiança

promove a cooperação e a cooperação gera confiança.

Qualquer sociedade, “moderna ou tradicional, autoritária ou democrática,

feudal ou capitalista, se caracteriza por sistemas de intercâmbio e comunicação

interpessoais, tanto formais quanto informais” (PUTNAM, 2000, p.182). Na

sociedade moderna ela envolve diversas expectativas, pressupondo um

engajamento dos indivíduos nas questões mais diretas ou indiretas da vida

social. No entanto, a confiança envolve muito mais do que compromisso e

participação; ela engloba “uma compreensão do sistema social por parte dos

atores”, isto é, “uma percepção dos valores e das representações sobre a

ordem social e a forma de internalização dos seus princípios, como a

reciprocidade e a cooperação” (LANIADO, 2001, p.159).

Como visto, o policiamento comunitário propõe uma segurança pública

em parceria entre o Estado e a comunidade, capacitando o mapeamento dos

problemas e a proposição de soluções de caráter preventivo. O novo modelo

de policiamento reconhece que a segurança não é sua alçada exclusiva,

porém, essa proposta de coprodução da segurança não significa o habitual

jogo de empurra pelo qual os serviços públicos colocam um no outro as

responsabilidades. Trata-se da ideia de que a polícia tem um papel direto de

animação e apoio às organizações comunitárias e que, no tocante à prevenção

cabe-lhe assegurar a liderança e o controle.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 definiu que a segurança

pública é “direito e responsabilidade de todos”. A fazer isso, ela estabeleceu o

fundamento jurídico dos arranjos institucionais que permitem a participação

popular na formulação e no controle da gestão das políticas de segurança. É o

que ocorre, por exemplo, nas experiências de policiamento comunitário ou,

ainda, na dos conselhos de segurança. A gestão da segurança pública passa,

então, a ser concebida não somente como função exclusiva do Estado, mas

como responsabilidade de toda a sociedade.

A implantação do policiamento comunitário no país coincidiu com o

período de reabertura democrática. Para além de uma mudança de estratégia,

o modelo comunitário de policiamento representava certo apelo social e moral

pela mudança que introduz na relação da polícia com a sociedade. Ele foi

implantado no país sob várias denominações: Policiamento Interativo,

Policiamento Solidário e Polícia Cidadã. Em sua maioria, os programas

brasileiros foram implantados pela Polícia Militar, mas divergem bastante entre

si.

Os primeiros programas comunitários de policiamento surgiram nas

cidades de Guaçuí e Alegre, no Espírito Santo em 1988 e em Copacabana no

Rio de Janeiro entre 1994 e 1995.

No estado de São Paulo o policiamento comunitário foi iniciado em 1997.

Em 1998 foi instalado no Jardim Ângela, situado no município de São Paulo,

que dois anos antes havia sido considerado pela Organização das Nações

Unidas (ONU) o lugar mais violento do mundo. Na Bahia, o programa de

policiamento comunitário foi implantado através da criação do “Projeto Polícia

Cidadã”, iniciado na segunda metade dos anos 1990. O Projeto foi

paulatinamente substituindo os Batalhões de Polícia Militar pelas Companhias

Independentes de Polícia Militar e introduziu na corporação uma nova cultura

policial fundamentada na integração com a sociedade (SILVA JÚNIOR, 2007).

Em 2000, o novo policiamento foi implantado em Belo Horizonte mediante a

criação de 25 conselhos comunitários de segurança. O programa de

policiamento comunitário adotado pela Polícia Militar de Minas Gerais fez parte

de um projeto mais amplo chamado “Polícia de Resultados” (BEATO, 2002).

O Policiamento Comunitário na Cidade de Aracaju

No caso de Sergipe, o policiamento comunitário foi implantado em

fevereiro de 1996, tendo como bairro-piloto um bairro popular da cidade de

Aracaju, o Bairro América. A partir daí estendeu-se por outros bairros e

atualmente tem-se tentado implantar em alguns municípios do interior, porém,

tal iniciativa ainda é muito incipiente, estando limitada à tentativas de

aproximação, por exemplo, através de cursos com a comunidade e a polícia

sobre polícia comunitária. Hoje, abrange a chamada “Grande Aracaju”, que

compreende os municípios de Aracaju, Nossa Senhora do Socorro, São

Cristóvão e Barra dos Coqueiros.

Capital do menor estado do país, a cidade de Aracaju é constantemente

apresentada em campanhas publicitárias voltadas para o turismo como cidade

muito tranquila, livre da violência que grassa em outras paragens.

Contraditoriamente à divulgação de tranquilidade, as estatísticas mostram um

aumento preocupante dos índices de violência no estado e na capital,

especialmente dos homicídios.

Em 1980, Sergipe teve um coeficiente de mortalidade por homicídio (por

100 mil habitantes) entre jovens de 15 a 24 anos de 8,4, índice maior do que

estados como Bahia (4,2), Piauí (3,2), Maranhão (2,7) e Mato Grosso (2,0).

Dezenove anos mais tarde, esse coeficiente aumentou para 30,1, levando o

estado a ocupar a 14ª posição no ranking de violência juvenil. Na cidade de

Aracaju o coeficiente de violência juvenil passou de 13,3 em 1980 para 39,9 em

1999, a posição de 18ª capital mais violenta para os jovens (POCHMANN,

2002).

O "Mapa da Violência 2010 - Anatomia dos Homicídios no Brasil",

baseado em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do

Ministério da Saúde, entre os anos de 1997 e 2007, mostra uma queda de

homicídios nas capitais e um aumento no interior. No período analisado,

morreram no Brasil 512 mil pessoas vítimas de homicídio. O número desses

casos passou de 40.507 em 1997 para 47.707 em 2007, equivalendo a 131

vítimas por dia. Todas as regiões, exceto o Sudeste, apresentaram crescimento

no volume de homicídios superior à média nacional de 17,8%: Norte (97,9%),

Nordeste (76,5%), Sul (62,9%), Centro-Oeste (33,8%). Na região Nordeste, a

pesquisa indicou que Sergipe está entre os estados que ostentam os mais

elevados índices de crescimento: 176,8%. A taxa de homicídios subiu de 11,5

para 25,9 nesse mesmo período (elevação de 125,6%), fazendo com que o

estado subisse de 21o colocado no ranking de homicídios em 1997 para 13o em

2007 (WAISELFISZ, 2010).

A Polícia Militar de Sergipe não é totalmente direcionada como polícia

comunitária. O policiamento fica a cargo de algumas unidades operacionais

(Batalhões e suas subunidades- as Companhias) que convivem com outras

unidades como, por exemplo, o COE (Comando de Operações Especiais) e a

CPChoque (Companhia de Polícia de Choque), setores da polícia reconhecidos

socialmente como bastante repressores.

O policiamento comunitário em Sergipe está estruturado a partir dos

PAC’s (Postos de Atendimento ao Cidadão) instalados em alguns conjuntos e

bairros da “Grande Aracaju”. O PAC funciona como um ponto de apoio para a

polícia e ponto de referência do serviço policial para a comunidade. Em 2011,

existiam aproximadamente 25 PAC’s, mas não há um número exato devido a

inconstância no que se refere à sua permanência e funcionamento.

Os PAC’s funcionam 24 horas com guarnições (grupos de policiais,

geralmente três) que se revezam nos dias da semana a partir de uma escala

feita pela Companhia Comunitária a qual o posto pertence. A guarnição que

está escalada no dia divide-se entre o atendimento no posto e o atendimento

externo a partir das solicitações feitas por telefone ou para efetuação de

vigilância na área. Geralmente, dois policiais ficam na viatura, enquanto um fica

responsável pelo posto. Quando o efetivo é insuficiente para o atendimento

externo, o PAC fica fechado até que os policiais possam retornar.

Os PAC’s situados na Zona Norte de Aracaju são os mais precários

(exceto nos bairros em que a participação da comunidade é ativa): falta de

material de higiene pessoal; viaturas quebradas, pouco combustível,

instalações inadequadas etc.. Os localizados na Zona Sul são mais

estruturados e os da Zona Centro-Oeste estão em condições intermediárias.

Os Conselhos Comunitários de Segurança e a particip ação comunitária

A exacerbação da violência e o medo nas comunidades foram, sem

dúvida, a grande motivação para o surgimento dos Conselhos Comunitários de

Segurança. Porém, outro elemento precisa ser levando em conta no que diz

respeito a um novo momento nas formas de participação: a pretensão de

interferir junto ao poder público para garantir o provimento da segurança. Além

disso, o policiamento de orientação comunitária supõe que a participação

comunitária não se dê apenas em termos de fiscalização, mas, sobretudo, de

corresponsabilidade na promoção da segurança da comunidade.

Os Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEG’s)3 distinguem-se

dos conselhos de segurança. Os primeiros são entidades públicas ou privadas,

cuja finalidade é emprestar apoio material e de mobilização da sociedade à

atuação das polícias, principalmente a militar; por isso são sempre vinculados

ao policiamento comunitário. Os conselhos de segurança, por sua vez, são

órgãos governamentais de caráter deliberativo, consultivo ou de

assessoramento do Poder Executivo municipal ou estadual nas políticas de

segurança pública e de justiça (LYRA, 2008).

Em 2011, existiam em Sergipe 37 Conselhos de Segurança, sendo 32

na capital Aracaju e 5 distribuídos pelo interior do estado. Desde 2006, criou-se

uma Federação visando integrar esses Conselhos, a FECONSEG (Federação

dos Conselhos Comunitários de Segurança de Sergipe).

Em geral, os CONSEG’s possuem 13 ou 14 membros que podem ser

representantes do Estado, profissionais liberais, membros de associações civis

e desportivas, lideranças religiosas, dentre outros. A Polícia Militar de Sergipe é

a responsável pela coordenação desses Conselhos; o que hoje é feito pela

Coordenação Estadual de Polícia Comunitária.

Os CONSEG’s reúnem-se em reuniões ordinárias (geralmente uma vez

por mês) e extraordinárias. Como apenas um desses conselhos tem sede

própria (CONSEG do Bairro Lamarão), os outros fazem suas reuniões nas

casas dos seus membros, em espaços cedidos pela Igreja Católica do bairro,

em salões de festas de condomínios etc.

Basicamente, o funcionamento dos CONSEG’s fundamenta-se nas

reuniões ordinárias com seus membros. A partir delas, eles discutem os

problemas de segurança da área e elaboram estratégias de mobilização junto à

3 Em Sergipe, é mais comumente utilizada a sigla CONSEG para os Conselhos Comunitários de Segurança, inclusive pela FECONSEG-SE (Federação dos Conselhos Comunitários de Segurança de Sergipe). Porém, é possível encontrar em alguns Conselhos no estado a sigla CONSEC (Conselho de Segurança Comunitário). Aqui se optou pela primeira forma.

polícia e à própria comunidade. Observou-se que nessas reuniões, os

representantes do policiamento comunitário são convidados, mas na maioria

dos casos não comparecem.

Os CONSEG’S também organizam extraordinariamente assembleias

com a comunidade e a polícia. Essas assembleias são o único lócus de

interação mais amplo entre a polícia e a comunidade, onde podem fazer um

balanço da segurança no bairro e elaborar estratégias direcionadas à realidade

local. O problema é que as assembleias ocorrem num intervalo de tempo muito

grande entre uma e outra e a parcela de pessoas presentes é pouco

significativa em relação ao total de moradores.

Há cerca de cinco anos as arrecadações dos Conselhos Comunitários

de Segurança serviam diretamente como fonte de financiamento do

policiamento nas comunidades, gerando muitos conflitos pelas relações

clientelistas que delas se valiam: quem contribuía mais, cobrava mais

policiamento. Houve caso até em que determinado Presidente de Conselho

ficava com a chave da viatura policial porque era o CONSEG quem custeava o

combustível. Houve também noutra localidade a compra de armas e coletes

com dinheiro arrecadado dos sócios do Conselho (PASSOS, 2005). No

entanto, com o aumento dos investimentos do Governo Estadual nos últimos

anos, exemplos como estes se tornaram cada vez mais raros.

Sobre a representatividade que os CONSEG’s expressam, o que se vê é

pouca representação da diversidade da comunidade (nos bairros América,

Grageru e Luzia, por exemplo, a maioria faz parte de grupos da Igreja Católica

dessas localidades) e há pouca rotatividade na participação dos membros (em

geral, como o interesse da comunidade em participar é baixo, forma-se apenas

uma chapa comum que se candidata à eleição. Numa nova eleição, mantêm-se

praticamente os mesmos membros, mas alternam-se as funções).

O desinteresse da comunidade em participar atinge também

internamente o Conselho. Mesmo tendo sido eleitos, alguns membros quase

não se comprometem e os demais acabam assumindo responsabilidades de

forma dobrada.

Assim como outros programas de policiamento comunitário, a Polícia

Cidadã em Sergipe tem dificuldades para motivar e manter a participação

comunitária. Geralmente, o interesse em se envolver nas questões de

segurança do bairro só surge quando as pessoas tornam-se vítimas da

violência.

Embora a baixa participação social no policiamento comunitário seja um

problema que atinge todas as áreas onde está implantado na cidade, em geral,

nos bairros de população mais elitizada a participação é menor que nos bairros

mais populares. Nos bairros periféricos, onde a vida social é relativamente

intensa nas ruas, a segurança é mantida pelo engajamento (“olhos sobre a

rua”), enquanto nos de classe média é pelo isolamento que se busca estar

seguro. Por isso mesmo, nos bairros elitizados o principal tipo de habitação são

os “enclaves fortificados”: espaços privatizados, fechados e monitorados para

residência, consumo, lazer e trabalho, cuja principal justificação é o medo da

violência. Incluem-se condomínios fechados, shoppings centers, conjuntos de

escritório etc. (CALDEIRA, 2000).

No fundo, o que os moradores das “comunidades cercadas” querem é

manter distância da “confusa intimidade” da vida comum da cidade e para isso

estão dispostos a pagar caro para terem “o direito de manter-se à distância e

viver livre dos intrusos” (BAUMAN, 2003, p.52). Contudo, a preocupação de um

enorme número de pessoas com a história de suas próprias vidas e com suas

emoções pessoais tem se mostrado mais uma “armadilha” do que uma

“libertação”, pois a vulgarização da “busca romântica” da personalidade e de

autorrealização traz à sociedade um custo muito elevado, qual seja: “a erosão

da vida pública”. Uma das características da vida pública moderna é

justamente o fato de que o espaço público urbano passa a destinar-se à

passagem e ao movimento e não mais à permanência. Com esse destino, esse

espaço fica desprovido de sentido e torna-se um “espaço público morto”

(SENNETT, 1998).

Diante das dificuldades de participação social, na tentativa de atrair mais

pessoas para as reuniões e o engajamento, alguns Conselhos criaram

informativos ou jornais que são distribuídos na comunidade. É o caso do “Bota

a boca no trombone, Zé!”, jornal mensal criado pelo CONSEC/ZE (Conselho

Comunitário de Segurança da Zona de Expansão)4. O jornal traz reportagens

sobre as reivindicações da comunidade com relação à segurança, as

4 Zé é uma referência à abreviatura da Zona de Expansão- ZE.

atividades da SSP, as ações do Conselho, telefones de utilidade pública

(Disque Denúncia, por exemplo), dentre outros. Na semana que antecede

assembleias ou encontros com a polícia é comum também a divulgação desses

eventos através de panfletagem nas casas e carros de propaganda que

circulam pelos bairros em horários estratégicos.

A fim de dar visibilidade a sua atuação, todos os anos os CONSEG’s

participam do desfile oficial da cidade divulgando o policiamento comunitário,

no dia 7 de setembro, data em que se comemora a Independência do Brasil.

A mídia é outro recurso utilizado pelos CONSEG’s para expressar suas

demandas e pressionar as autoridades públicas a solucionar os problemas de

segurança e investir no policiamento comunitário.

A “Interação policial-cidadão” e seus desafios no p oliciamento

comunitário

Historicamente, a relação entre polícia e sociedade foi marcada pelo

isolamento entre esses atores. Agora, no modelo comunitário de policiamento,

a polícia, que outrora entrava em contato com a população apenas em

situações esporádicas, precisa “sair” das viaturas e “entrar” na vida da

comunidade. Dessa forma, a presença da polícia na comunidade precisa ser

mais próxima e duradoura.

“Interação policial-cidadão” é o slogan da Polícia Cidadã em Sergipe.

Espera-se que a parceria polícia-comunidade funcione, entretanto, um dos

grandes desafios é resgatar a confiança da comunidade na polícia. Por isso

mesmo, o isolamento entre polícia e comunidade precisará dar lugar à

perspectiva de que ambas são corresponsáveis na preservação da ordem e

promoção da segurança. Também a conduta violenta da polícia terá que ser

substituída por uma postura de legalidade e de respeito aos direitos dos

cidadãos.

Notou-se que a desconfiança em relação à polícia é ainda muito

presente nas comunidades onde o policiamento comunitário está instalado. Por

outro lado, há relatos de quebra de preconceitos e aumento da confiança por

parte da comunidade, mas notou-se que essa experiência só ocorreu com

aqueles diretamente envolvidos no policiamento comunitário, isto é, com os

conselheiros. De qualquer forma, tais registros tornam-se relevantes posto que

eles são disseminadores da filosofia comunitária de policiamento nas suas

comunidades.

Seja como for, esse relacionamento entre polícia e comunidade continua

bastante difícil porque o distanciamento entre as partes permanece muito forte.

Nos bairros mais elitizados isso é ainda mais visível. Impressionou na pesquisa

o fato de que praticamente ninguém da população entrevistada dos bairros de

classe média e alta - exceto aqueles que faziam parte do Conselho - sabia

onde ficava o PAC do seu bairro; ao contrário do que ocorreu nos bairros

populares. A única referência que essa população mais abastada tem é a do

policiamento tradicional. A maioria vê frequentemente viaturas fazendo rondas,

mas não sabe diferenciar o tipo de policiamento, pois não existe nenhum tipo

de diálogo entre a polícia e eles.

Para piorar a situação, a polícia nessas comunidades permanece

reclusa nos seus postos. Nos bairros Jardins e Atalaia, porteiros de

condomínios (alguns trabalham há anos nessas áreas) e comerciantes

entrevistados disseram que a polícia nunca os abordou para perguntar algo

sobre a área ou convidou para alguma reunião ou projeto sobre a segurança da

região. No Grageru, o jornalista da Rádio Comunitária informou que esta nunca

foi procurada pela polícia local para utilizar o espaço como recurso de interação

com a comunidade, embora a mesma já tivesse sido disponibilizada para esse

fim.

Não obstante a formalização da parceria polícia-comunidade, na prática,

esses atores ainda comportam-se de forma bastante unilateral. A polícia quase

sempre decide sozinha quais serão as estratégias de policiamento aplicadas no

bairro por acreditar que a comunidade não tem condições de opinar sobre a

segurança. Recorde-se que a polícia local quase sempre está ausente nas

reuniões dos CONSEG’s. A comunidade, por sua vez, quando colabora

materialmente com a polícia ou com o Conselho, sente-se no direito de indicar

como e onde quer que o policiamento seja feito5.

5 Trata-se da comunidade provedora, isto é, aquela comunidade que busca resolver seus problemas proporcionando os meios materiais necessários para que o Estado garanta a segurança, mas tende a exigir privilégios quanto à segurança, comprometendo o princípio universalizante do serviço de segurança pública (RODRIGUES, 2009). Sobre outros tipos de comunidade, conferir o Capítulo 5 da tese.

As dificuldades de interação entre polícia e comunidade refletem-se

ainda no relacionamento dos Conselheiros com os gestores comunitários -

especialmente com o Comando Geral da PMSE - e com a Secretaria de

Segurança Pública. Dependendo da visão que essas autoridades tenham a

respeito do policiamento comunitário, esse relacionamento melhora ou piora.

Atualmente, os conselheiros afirmam que o diálogo com os gestores da

segurança pública está melhor, mas o apoio ao policiamento comunitário ainda

é muito superficial.

Vê-se, portanto, que as resistências da própria polícia ao modelo

comunitário de policiamento ainda são muito fortes. Mas o que justificaria tanta

oposição? Certamente, um dos motivos é o controle social sobre a atividade

policial. O contato estreito entre policial e comunidade tem sido defendido como

instrumento de controle relevante segundo alguns argumentos, dentre eles, o

de que a perda do anonimato torna o policial mais responsável por suas ações

e ajuda o seu supervisor na obtenção de informações sobre a atuação policial

na localidade.

Essas resistências estão relacionadas também ao fato desse tipo de

policiamento pretender uma perspectiva mais preventiva em relação ao crime e

a violência e uma postura mais respeitadora dos direitos da pessoa humana.

Isso tem gerado alguns discursos, dentro e fora da corporação, de que a polícia

comunitária seria uma “polícia fraca” por ser menos repressora e mais aberta

ao diálogo com o público. Segundo o Coordenador Estadual de Polícia

Comunitária, os policiais resistentes a essa filosofia, criaram o mito no qual a

Polícia Cidadã é “a polícia que não prende” ou “a polícia que entrega flores ao

bandido”. Algumas pessoas, policiais ou não, podem preferir e reivindicar

modos mais tradicionais de policiamento, em parte por estarem acostumados

com isso, ou por pensarem que o policiamento comunitário pode estar

interferindo no padrão das capacidades de combater o crime (SKOLNICK e

BAYLEY, 2002).

Considerações Finais

O policiamento comunitário tem tido relevante destaque em debates no

mundo inteiro a respeito dos problemas de segurança pública. Mas é verdade

também que muitas análises têm questionado o seu potencial, afirmando que

ele não tem surtido o efeito que todos esperavam. Portanto, não há consenso

quanto aos seus efeitos nem resultados unívocos que demonstrem seu

sucesso ou o fracasso. Por outro lado, já se pode ver um efeito positivo no que

diz respeito à melhora das relações entre a polícia e a população. Uma forte

potencialidade do policiamento comunitário é que ela tece relações sociais e

motiva a população a sair do individualismo que mata a vida pública,

demonstrando uma inegável capacidade de mudança e despertando, assim,

um interesse maior.

O policiamento de orientação comunitária toma como elemento

fundamental a resolução de problemas de segurança a partir da prevenção

comunitária do crime e da violência, reconhecendo que a segurança não é

alçada exclusiva da polícia.

Com efeito, o policiamento comunitário insere-se numa “estratégia de

responsabilização” adotada pelas agências estatais visando redistribuir com

atores do setor privado e da comunidade a tarefa de controlar o crime. Nesse

sentido, está sempre presente o risco de que a comunidade seja vista como

mero meio para se chegar ao controle do crime (GARLAND, 2008). Por outro

lado, também a comunidade pode tentar manipular a polícia exercendo, por

exemplo, pressões sociais indevidas e cobrando privilégios para aqueles que

colaboram materialmente para a operacionalização da polícia na área onde

vivem.

Como se vê, faz-se necessário uma compreensão mais aprofundada dos

papéis da polícia e da comunidade correspondentes à especificidade e às

atribuições que cada uma assume na própria sociedade. Com efeito, a

instituição policial “deve ter autonomia para realizar julgamentos e conciliar as

expectativas sociais às prioridades, aos recursos disponíveis e às restrições

legais de sua autoridade” (DIAS NETO, 2000, p.72), não devendo servir a

interesses puramente privados de grupos, associações ou conselhos de

segurança. Entretanto, isso não pode servir como desculpa da instituição para

barrar as interferências possíveis e legítimas da comunidade no

desenvolvimento do policiamento comunitário.

De modo geral, os desafios da parceria polícia-comunidade estão

ligados a problemas estruturais e políticos que têm sido historicamente

obstáculos à consolidação de um modelo de gestão participativa ativa da

segurança pública no Brasil, dentre os quais se podem destacar: um padrão

tradicional de atuação policial marcado pelo uso da força e dinâmica voltada

para reação ao crime; o perfil dos gestores das políticas de segurança pública,

fazendo com que a eficiência dos processos participativos dependa da posição,

favorável ou refratária, das autoridades administrativas; e o fato de que as

polícias são organizações fortemente hierarquizadas e pouco abertas ao

debate (RATTON et. al., 2008).

Ainda é forte nas forças policiais brasileiras a concepção de que

segurança pública é “coisa de polícia” e que nesse assunto o “civil” não pode

ajudar, pois não foi preparado para isso. A permanência dessa visão afasta a

comunidade e impede o fomento de qualquer iniciativa que envolva ações

integradas de diminuição da violência: “quando a segurança pública é encarada

por meio de referência exclusiva ao trabalho policial, dificilmente a participação

popular pode figurar como sinônimo de eficiência para a redução do crime e da

violência” (RATTON et. al., 2008, p.125).

Através da pesquisa percebeu-se também a resistência dos gestores

públicos, inclusive da cúpula dos órgãos de segurança pública do Estado, em

relação ao policiamento comunitário e a participação da população nessa

política, ficando evidente a falta de apoio logístico e político a esse tipo de

policiamento.

Sobre a resistência dos policiais em relação ao policiamento comunitário

em Aracaju, a pesquisa mostrou que, além da possibilidade de controle social,

essa resistência baseia-se também na concepção de que esse policiamento

seria mais “fraco” por inspirar-se numa perspectiva mais preventiva e

respeitadora dos direitos do cidadão.

Piorando a situação, vê-se que a população também resiste bastante em

participar das ações que envolvem o policiamento comunitário.

A participação social na segurança pública através de conselhos, fóruns,

conferências, dentre outros, reflete a importância que tem sido conferida ao

papel da sociedade civil na gestão pública, contudo, ela tem sido um grande

desafio. A parcela da população que se envolve é muito pequena. Por isso

mesmo, as queixas dos conselheiros sobre a falta de apoio da comunidade são

constantes.

Uma das explicações para a baixa participação é a falta de confiança da

população na polícia e no seu trabalho. Outro fator é o desinteresse para com

as questões públicas; o que não é exclusivo ao policiamento comunitário.

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