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ENEIDA GOMES NALINI DE OLIVEIRA A INTERTEXTUALIDADE EM: A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS HARMONIOSOS, DE CLARICE LISPECTOR. Dissertação apresentada à Universidade de Franca, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Linguística. Orientador: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco FRANCA 2010

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ENEIDA GOMES NALINI DE OLIVEIRA

A INTERTEXTUALIDADE EM: A PECADORA QUEIMADA E OS

ANJOS HARMONIOSOS, DE CLARICE LISPECTOR.

Dissertação apresentada à Universidade de

Franca, como exigência parcial para a obtenção

do título de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco

FRANCA

2010

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ENEIDA GOMES NALINI DE OLIVEIRA

A INTERTEXTUALIDADE EM: A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS

HARMONIOSOS, DE CLARICE LISPECTOR

COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Presidente: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco

Universidade de Franca

Titular 1: Profa. Dra. Vera Lúcia Rodella Abriatta

Universidade de Franca

Titular 2: Profa Dra Ana Cristina Carmelino

Universidade Federal do Espírito Santo

Franca, ____/____/____

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DEDICO às pessoas mais presentes em minha vida: minha mãe,

exemplo de vida, meu marido, companheiro de todas as horas, e

meus filhos, razão primeira da minha luta.

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AGRADECIMENTOS

As conquistas têm um começo, e eu agradeço o meu:

a Deus, por todas as oportunidades,

ao meu orientador, Prof. Dr. Juscelino Pernambuco, que com palavras, indicações e

rumos deu a esta pesquisa um corpo consistente,

a todos os professores do curso de Mestrado em Linguística da Unifran, por terem

contribuído de forma especial em minha formação, especialmente às professoras Dras Vera

Abriatta e Ana Cristina Carmelino que me ajudaram a nortear minha pesquisa em minha

banca de qualificação e a minha ex professora, ex coordenadora e amiga, Maria Flávia Bollela

que me apoia sempre que preciso,

à Universidade de Franca, pelos auxílios concedidos,

a Lucia Nassim, coordenadora do curso de Letras, que está sempre ao nosso lado

tentando buscar conosco os melhores caminhos no nosso dia a dia,

a toda a minha família, cada um por ser insubstituível a seu modo, na figura de minha

avó Maria, pelas orações constantes à minha vida e ao meu avó, José dos Santos Gomes (in

memorian) que apesar de não estar de corpo presente, não se ausentou de minha vida e ao

meu pai, minha irmã e minha mãe, Edena Maria Gomes, exemplo constante de luta, sapiência

e solidez,

ao meu marido, Mateus Barbosa de Oliveira, incentivador de meus atos e companheiro

de todas as horas e aos meus filhos, Douglas e Aurélio, pacientes com minhas ausências e

essenciais nesta minha trilha,

a minha cunhada, Josiane Barbosa, pelas conversas que me abriram novos

pensamentos e possibilidades,

e por fim, ao iniciador de meus caminhos educacionais e acadêmicos, figura ímpar em

minha vida, meu tio, batalhador incansável, André Luis Gomes.

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Meu Deus, me dê a coragem de viver 365 dias todos vazios de sua

presença,

Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude...

Faça com que eu seja Tua amante humilde, entrelaçada a ti em

êxtase.

Clarice Lispector

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RESUMO

OLIVEIRA, Eneida Gomes Nalini de. A intertextualidade em: A pecadora queimada e os

anjos harmoniosos, de Clarice Lispector. 2010. 126 f. Dissertação (Mestrado em

Linguística) – Universidade de Franca, Franca.

Esta dissertação teve como tema A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos, única peça

teatral escrita e publicada por Clarice Lispector, e analisou os aspectos da intertextualidade e

do dialogismo que nela se fazem presentes. A peça tem duas publicações, uma datada de 1964

e outra de 2005, e poucos estudos foram realizados acerca dessa produção. O objetivo da

pesquisa foi contribuir para os estudos literários e linguísticos sobre a obra de Clarice

Lispector, ao trazer para o cenário acadêmico uma peça teatral pouco analisada. A pesquisa

embasou-se, nos trabalhos de Koch (1991, 1998, 1999, 2002, 2006, 2008), Bakhtin (1981,

1997, 2006) e Gomes (2006 e 2007) buscando fundamentação para verificar relações

intertextuais e dialógicas com as tragédias gregas e com a Bíblia e analisar aspectos literários

da peça. Justifica-se o tema pela riqueza literária deixada pela autora e pelo estudo que

permeou sua obra no que concerne às Tragédias Gregas e aos textos religiosos (a Bíblia),

além da importância do texto enquanto crítica sócio-política.

Palavras-chave: intertextualidade; linguística textual; dialogismo, Clarice Lispector; teatro.

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ABSTRACT

OLIVEIRA, Eneida Gomes Nalini de. A intertextualidade em: A pecadora queimada e os

anjos harmoniosos, de Clarice Lispector. 2010. 126 f. Dissertação (Mestrado em

Linguística) – Universidade de Franca, Franca.

This research has as a theme the Intertextuality in The Woman Burned at the Stake and the

Harmonious Angels (A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos), the only play written

and published by Clarice Lispector. This is a study that focuses on Clarice Lispector as a

dramatist and the usage of intertextuality and dialogism in her masterpiece. It seems

interesting to promote a study about the only Clarice Lispector‟s published play because few

articles or books have been published about it. As our aim is to contribute in the literary as

well as linguistic area, we sustain our research in the books written by Koch (1991, 1998,

1999, 2002, 2006, 2008), Bakhtin (1981, 1997, 2006) and Gomes (2006 e 2007). We justify

our theme not only for its richness and for the study of the Greek tragedies and religious texts

(the Bible), but also because of the social-politic criticism that surrounds it.

Key words: intertextuality; linguistics; dialogism; Clarice Lispector, drama.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Montagem da peça A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos

69

Figura 2 – Anima sola 87

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10

1 A TRAJETÓRIA DO TEXTO NA LINGUÍSTICA TEXTUAL ...................... 12

1.1 A LINGUÍSTICA TEXTUAL NO BRASIL .......................................................... 29

2 DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADE .................................................... 33

2.1 DIALOGISMO ........................................................................................................ 33

2.2 INTERTEXTUALIDADE ...................................................................................... 41

3 O TEATRO E A BÍBLIA ..................................................................................... 48

3.1 AS TRAGÉDIAS GREGAS ................................................................................... 48

3.1.1 Os seis elementos .................................................................................................... 53

3.1.2 As três unidades....................................................................................................... 55

3.2 A PEÇA E A BÍBLIA ............................................................................................. 59

4 INTERTEXTUALIDADE E DIALOGISMO NA PEÇA TEATRAL

CLARICIANA ..................................................................................................................... 64

4.1 O TEATRO DE CLARICE LISPECTOR............................................................... 64

4.1.1 Resumo da peça ....................................................................................................... 66

4.1.2 Estrutura da peça ..................................................................................................... 70

4.1.3 Personagens ............................................................................................................. 77

4.1.4 Símbolos .................................................................................................................. 85

4.1.5 Análise..................................................................................................................... 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 113

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 115

ANEXOS ............................................................................................................................. 119

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como objetivo a análise da peça teatral, A Pecadora

Queimada e os Anjos Harmoniosos, de Clarice Lispector, com o apoio teórico da Linguística

Textual e dos estudos de Bakhtin e Koch, especificamente no aspecto do dialogismo e da

intertextualidade. A escolha deste tema se deve à curiosidade de desvendar alguns aspectos

não explorados na obra teatral da escritora além da contribuição que esse estudo possa trazer

aos meios literários e linguísticos.

Clarice Lispector destaca-se no meio literário, sobretudo, por seus romances,

contos e crônicas, mas o fato de ter também escrito uma peça teatral é assunto ainda pouco

explorado e estudado. Descobrir Clarice como dramaturga, além de cronista, romancista,

contista, entrevistadora e tradutora ainda é uma surpresa. A autora continua merecendo a

atenção dos críticos e estudiosos de literatura, pela sua sempre surpreendente qualidade

artística e intelectual. Nesta pesquisa, efetuaremos uma leitura e construção de sentido de sua

única peça teatral publicada. Buscaremos apoio na Linguística Textual, para verificar a

intertextualidade com textos teatrais da Grécia Antiga e com a Bíblia, e nos estudos e

reflexões sobre o dialogismo bakhtiniano com o objetivo de analisar o fazer dramático e o

querer dizer de Clarice em A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos.

Quanto à metodologia deste trabalho, procedemos da seguinte forma: realizamos

uma pesquisa de todo o material sobre a peça, quando foi publicada, se houve uma montagem

para palco, quando isso aconteceu, quais as versões existentes e como a crítica literária tratou

esse assunto. Depois buscamos limitar a análise, voltando nosso estudo aos fenômenos do

dialogismo e da intertextualidade. Privilegiamos ainda, nesta pesquisa, a história do teatro em

linhas gerais, para que nosso leitor sinta-se familiarizado com os termos utilizados no decorrer

da análise. Fizemos uma leitura cuidadosa da Bíblia procurando os argumentos que sustentam

a peça. Destacamos alguns autores para demonstrar suas temáticas e linhas de pensamento

com o objetivo de analisar a peça de Clarice Lispector, comprovando que ela buscou o mesmo

caminho traçado pelos primeiros escritores da história da literatura greco-latina.

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Quanto à fundamentação teórica desta investigação, alguns autores

selecionados foram: Bakhtin (1981, 1997, 2006), Fiorin (2006, 2008), Bentes (2001, 2005),

Koch (1991, 1998, 2006, 2008), dentre outros. Para a análise do teatro de Clarice Lispector,

Gomes (2005, 2007), Moser (2009), Aristóteles (2003), assim como a Bíblia (tradução de

1964 e Bíblia online, das editoras Ave Maria e Jerusalém).

No primeiro capítulo abordaremos os caminhos da Linguística Textual, desde

os primórdios de sua concepção até os dias de hoje, conceitos e definições se farão presentes e

escreveremos sobre a Linguística Textual no Brasil. Esse capítulo é importante como

sustentação teórica para nosso trabalho.

No segundo capítulo discutiremos o dialogismo bakhtiniano e faremos um

estudo sobre os diferentes tipos de intertextualidade, seus aspectos e conceitos.

No terceiro capítulo discursaremos sobre o teatro e a Bíblia, e faremos um

estudo sobre as concepções dramáticas e sobre alguns textos, personagens e locais explorados

pelas escrituras bíblicas. Clarice Lispector preocupou-se com o formato, tema e

desenvolvimento de sua peça, e criou personagens fortes para seu enredo, trazendo assim,

uma dramaturgia que merece nossa atenção e estudo. Investigaremos o texto de Clarice para

desvendar a densidade de sua criação também como dramaturga.

Esses capítulos dão suporte ao quarto capítulo que se centra no estudo da peça

propriamente dito. Apresentaremos um resumo da peça, descreveremos sua estrutura e o

contexto na qual ela apresenta seus personagens e a simbologia usada por Clarice Lispector

no desenvolvimento do seu texto. Além disso, voltaremos às tragédias gregas e à Bíblia para

verificarmos a ponte intertextual e dialógica entre o texto produzido por Clarice Lispector, as

peças gregas clássicas e a Bíblia.

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1 TRAJETÓRIA DO TEXTO NA LINGUISTICA TEXTUAL

“Não é fácil escrever; é duro como quebrar rochas.”

Clarice Lispector

O objetivo deste capítulo é tratar do trajeto do texto pelas diferentes teorias até

chegar à Linguística Textual, que constituirá o embasamento teórico desta nossa pesquisa.

Abordaremos o motivo do surgimento das gramáticas textuais, conceituações e brevemente as

teorias que fizeram parte desta construção, auxiliando a compreensão do discurso e do texto:

antiga retórica, estilística e o formalismo russo. Procuraremos embasar este trabalho também

na pesquisa e busca dos linguistas que foram além dos limites do enunciado, traçando

paralelos entre a linha estruturalista e gerativista.

A Linguística Textual deu seus primeiros passos na Europa, mais

especificamente na Alemanha, na década de 60. Passou-se a trabalhar o texto, e não mais a

palavra ou a frase, acreditando que os textos fossem uma forma da manifestação da

linguagem, especificamente. A partir desta década surgem pesquisas que vão aos poucos

elucidando este campo que vai se abrindo aos estudos e descobertas. Segundo Fávero e Koch

(1998), o primeiro a usar o termo Linguística Textual, foi Weinrich1 (1966, 1967), embora

possamos encontrar a origem do termo também em Coseriu (1955)2, mas não com suas

atribuições atuais. Afirma Bentes (2005, p. 253) que “Weinrich (1971) ressalta que os textos

podem ser definidos a partir de aspectos diversos: a sequência coerente e consistente de

signos linguísticos, a delimitação por interrupções significativas na comunicação, o status do

texto como maior unidade linguística”. O texto, neste momento, era já visto como material de

pesquisa, mas não ainda em seu contexto de produção.

Percebemos, então, de acordo com a história da Linguística Textual, a

necessidade de uma gramática do texto pelo fato de existirem lacunas que não são

preenchidas pela falta de contexto. É relevante lembrar que de acordo com Koch (2006, p. 21)

“as concepções de contexto variam consideravelmente não só no tempo, como de um autor

para outro; e ocorre mesmo que um mesmo autor utilize o termo de maneira diferente, em

vários momentos, sem disso se dar conta”.

1 Harald Weinrich, linguista alemão, que postula toda linguística como sendo uma linguística do texto.

2 Eugênio Coseriu, linguista.

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Portanto, o estudo das frases sem a contextualização fica incompleto e

mecanizado, toda a gramática aplicada seria mais facilmente explicada e entendida com o uso

de textos. Assim, pensa-se em construir uma gramática textual, para que se possa atender às

necessidades de um estudo que fosse mais abrangente, dentro da gramática.

É importante ressaltar que o termo texto recebe e aceita diversas concepções e

essa diversidade aparece em diferentes tempos na história da linguística. Nomes distintos

dados à disciplina ou a tratados teóricos sobre o assunto aparecem, tais como: “análise

transfrástica e gramática do texto, Textologia (Harweg), Teoria do Texto (Schimidt),

Translinguistica (Barthes), Hipersintaxe (Palek), Teoria da Estrutura do Texto – Estrutura do

Mundo (Petofi), etc” (FÁVERO e KOCH 1998, p. 12).

Trataremos de correntes que distinguiram estes momentos dentro da

Linguística Textual, na história, buscando uma compreensão de como o texto passa a ser uma

preocupação vigente dentro destes estudos. Conte3 (1977 apud FÁVERO e KOCH 1998, p.

13):

distingue três momentos fundamentais na passagem da teoria da frase para a teoria

do texto (...), apresenta como primeiro momento, o da análise transfrática, que

procede à análise das regularidades que transcendem os limites do enunciado; o

segundo é o da construção das gramáticas textuais; o terceiro, finalmente é o da

construção das teorias de texto.

Os estudiosos denominam este primeiro período, que se estendeu na década de

60 dentro dos estudos da Linguística Textual, de análise transfrástica, “(...) em que se

procede à análise das regularidades que transcendem os limites do enunciado (...)” (FÁVERO

e KOCH, 1998, p. 13). Bentes (2005, p. 247) observa que nesta fase da análise transfrástica

“parte-se da frase para o texto” e continua explicando que:

Exatamente por estarem preocupados com as relações que se estabelecem entre as

frases e os períodos, de forma que construa uma unidade de sentido, os estudiosos

perceberam a existência de fenômenos que não conseguiram ser explicados pelas

teorias sintáticas e/ou pelas teorias semânticas... (BENTES, 2005, p. 247).

A Linguística Textual teve como primeira preocupação descrever os

fenômenos sintático-semânticos ocorrentes entre enunciados ou sequência de enunciados. Há

3 Conte, Maria Elizabeth (apud VAL, 1999, p. 1) “apontou, no desenvolvimento da LT, três „momentos

tipológicos‟, isto é, três perspectivas de estudos, mais do que três etapas cronológicas, já que muitas reflexões e

discussões ocorreram até simultaneamente, embora privilegiando enfoques e objetos diferentes.”

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também que se pensar, nesta fase, no fenômeno da correferenciação4 (retomada pronominal e

repetição lexical) e a conexão entre enunciados, de forma que estas frases construíssem uma

unidade de sentido. Correferenciação é um termo usado em linguística, especialmente na

gramática gerativa, “para indicar constituintes de uma mesma sentença que tenham a mesma

referência” (DIAS, 2000, p. 70). O objetivo principal dessa fase “é o de estudar os tipos de

relação que se pode estabelecer entre os diversos enunciados que compõem uma sequência

significativa” (FÁVERO e KOCH, 1998, p. 13). As propriedades definidoras de um texto

estariam expressas principalmente na forma de organização do material linguístico e na

quantidade de elementos, o contexto era tido como “um entorno verbal ou co-texto5” (KOCH,

2006, p. 23), levando-se em consideração a coesão e a coerência, ambas vistas como

qualidades ou propriedades do texto.

A coesão pode ser definida como um conceito semântico que se refere às

relações de sentido existentes no interior do texto e que o definem como texto, e ainda

podemos dizer que a coesão ocorre quando a interpretação de algum elemento do discurso é

dependente da de outro. Um pressupõe o outro, no sentido que não pode ser efetivamente

decodificado a não ser por recurso a outro.

Koch (apud BENTES 2005, p. 256), define coesão como “o fenômeno que diz

respeito ao modo como os elementos linguísticos presentes na superfície textual encontram-se

interligados, por meio de recursos também linguísticos, formando sequências veiculadoras de

sentido”.

A coerência, por sua vez, de acordo com Koch (apud BENTES, 2005, p. 256)

“diz respeito ao modo como os elementos subjacentes à superfície textual vêm constituir, na

mente dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos”.

Devemos destacar que os limites na análise transfrástica também existiam,

como por exemplo, necessidade de considerar, na construção do sentido global do enunciado,

o conhecimento intuitivo do falante acerca das relações a serem estabelecidas entre sentenças,

além do fato de nem todas as produções apresentarem o fenômeno da correferenciação.

4 No capítulo em que Koch (2006, p. 79) explica os processos de referência e referenciação no livro

Desvendando os Segredos do Texto a autora diz que “a referência passa a ser considerada como o resultado da

operação que realizamos quando, para designar, representar ou sugerir algo, usamos um termo ou criamos uma

situação discursiva referencial com essa finalidade: as atividades designadas são vistas como objetos- de-

discurso e não como objetos- de- mundo”. 5 Co-texto: termo usado por alguns linguistas britânicos em uma tentativa de solucionar a AMBIGUIDADE da

palavra CONTEXTO, que pode fazer referência a AMBIENTES tanto LINGUÍSTICOS como SITUACIONAIS.

Preferem reservar “co-texto” para os ambientes linguísticos e “contextos” para os ambientes situacionais. Ver

Lyons 1977b: Cap. 14 (dicionário de Linguística e fonética, 1985, p. 71).

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Preparava-se, assim, um terreno para a construção de uma gramática textual, que superasse os

limites da frase.

Na fase inicial das pesquisas sobre o texto (...) o texto era conceituado como uma

sequência ou combinação de frases, cuja unidade e coerência seriam obtida através

da reiteração dos mesmos referentes ou do uso de elementos de relação entre

segmentos maiores ou menores do texto. Paralelamente, os pragmaticistas

chamavam a atenção sobre a necessidade de se considerar a situação comunicativa

para a atribuição de sentido a elementos textuais como os dêiticos e as expressões

indiciais de modo geral (KOCH, 2006, p. 23).

Na década de 70, o interesse em se construir uma gramática do texto começa a

crescer, mas alguns ainda se sentiam comprometidos com as gramáticas estruturais ou com a

gramática gerativa. Acreditando-se que um texto não é só um acumulado de frases, e que para

se construir sentido são necessárias coerência e coesão, a probabilidade da construção de

tratados que abrangessem tais ideias foi crescendo, pois havia a necessidade de tratar a

gramática dentro de um contexto que fizesse sentido. Então, podemos afirmar que “a

gramática textual surgiu com a finalidade de refletir sobre os fenômenos linguísticos

explicáveis por meio de uma gramática do enunciado. O que a legitima é, pois, a

descontinuidade existente entre enunciado e texto” (KOCH e FÁVERO, 1998, p.14). Nesta

fase priorizou-se o texto como objeto da Linguística, buscando suas especificidades dentro

dos estudos da gramática, neste momento, mas “apesar da ampliação do objeto dos estudos da

ciência da linguagem, ainda se acreditava ser possível mostrar que o texto possuía

propriedades que diziam respeito ao próprio sistema abstrato da língua” (BENTES, 2005, p.

249), ou seja, antes a gramática era prioridade e o texto dependia dela, agora, o que é aceitável

num texto é a construção de seu corpo numa coerência, coesão e sentidos próprios. Para

Koch (2006, p. 12), na segunda metade da década de 60 e primeira metade da década de 70:

Em função do conceito de texto então majoritário, a maioria dos estudiosos estava

debruçada sobre a análise transfrástica e/ou construção de gramáticas de texto, de

modo que o objeto privilegiado de estudo era a coesão, ou seja, a propriedade de

cohere (hang together), muitas vezes equiparada à coerência (coherence), já que

ambas eram vistas como qualidades ou prioridades do texto.

Mais tarde entenderíamos que a coerência, como a própria autora explica, pode

ser vista da seguinte maneira: “a coerência não constitui uma propriedade ou qualidade do

texto em si: um texto é coerente para alguém, em dada situação de comunicação específica”

(KOCH, 2008, p. 21). De acordo com ela:

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para construir a coerência, deverá levar-se em conta não só os elementos linguísticos

que compõem o texto, mas também seu conhecimento enciclopédico, conhecimentos

e imagens mútuas, crenças, convicções, atitudes, pressuposições, intenções

explícitas ou veladas, situação comunicativa imediata, contexto sociocultural e

assim por diante (KOCH, 2008, p. 21).

Os autores que acreditavam em alguns postulados em comum com relação às

gramáticas textuais defendiam as ideias de que: não havia continuidade entre frase e texto;

devia haver a percepção de que um texto é muito mais do que uma sequência de enunciados

(diferença de ordem qualitativa e quantitativa). Relatavam ainda que havia reflexões sobre os

fenômenos linguísticos inexplicáveis por meio de uma gramática do enunciado, e

consideravam o texto como a mais alta unidade linguística, “a partir da qual seria possível

chegar, por meio de segmentação, as unidades menores a serem classificadas” (BENTES,

2005, p. 249), e, além disso, que um falante nativo possuía conhecimento acerca do que é um

texto – conhecimento que não é redutível a uma análise frasal, um falante nativo tem

competências com relação a um texto que vão desde parafraseá-lo até perceber se este texto

atingiu sua completude ou não. Então, o falante possui uma competência textual a ser levada

em conta, que vem do fato de ter regras internalizadas sobre a língua.

Houve uma influência gerativista em todo esse processo. Gerativismo ou teoria

gerativa é uma tentativa de formalização dos fatos linguísticos aplicando um tratamento

matemático preciso, explícito e finito às propriedades das línguas naturais. Isto é, a linguagem

purista pode ser compreendida e com isso facilitar o aprendizado de idiomas. Essa teoria foi

construída por Noam Chomsky em oposição ao estruturalismo bloomfieldiano. Chomsky

acreditava no inatismo e nas propriedades universais da linguagem. “Para Chomsky,

portanto, a linguagem é uma capacidade inata e específica da espécie, isto é, transmitida

geneticamente e própria da raça humana” (PETTER, 2006, p. 15):

Amplia-se o conceito chomskyano de competência linguística para o de competência

textual, capacidade que habilitaria os falantes a reconhecer textos coerentes, a

resumir e parafrasear textos, a perceber os limites e a completude ou incompletude

de um texto, a atribuir título a um texto, identificando seu tópico central, bem como

produzir textos a partir de um título ou tema dado. (VAL, 1999, p. 2.)

Então, definimos a gramática textual como um sistema finito de regras, comum

aos usuários da língua, que lhes permite reconhecer se uma sequência linguística é ou não um

texto. Portanto, todo falante tem a capacidade de distinguir um texto coerente de um

aglomerado de enunciados. A gramática textual assume, portanto, a tarefa de determinar os

princípios de constituição de um texto; verificar as características que fazem de um texto, um

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texto; identificar fatores responsáveis pela sua coerência e as condições em que se manifesta a

sua textualidade, levantar critérios para a delimitação de assunto, considerando sua

completude; distinguir os diferentes tipos de textos.

Porém, houve alguns limites neste processo, como por exemplo, as dificuldades

em estabelecer regras capazes de descrever todos os textos possíveis em uma determinada

língua natural; a preocupação em descrever a competência textual de falantes idealizados e

não em investigar a constituição do texto; e finalmente o funcionamento, a produção e a

compreensão dos textos em uso. Quanto aos sujeitos, os falantes, é preciso destacar suas

capacidades textuais básicas, segundo Charolles (1989 apud BENTES, 2005, p. 250), que são:

“a capacidade formativa, ligada à produção e a compreensão; a capacidade transformativa,

ligada à habilidade de reformular ou resumir um texto, parafrasear ou avaliar; e, por último, a

capacidade qualitativa, relacionada à tipificação”.

No momento seguinte a esse, defendido pelos autores que acreditavam na

gramática textual, mais um passo foi dado rumo às Teorias do Texto, uma vez que se

ampliavam novas conquistas com relação ao entendimento. Apesar de a ideia do uso do texto

para compreensão de outras áreas ser bem parecida, a Linguística Textual apresenta muitas

vertentes.

A teoria do texto envolvia uma investigação da constituição, do funcionamento,

da produção e da compreensão dos textos em uso, tornando o trabalho mais investigativo com

base nos textos propostos, para que se pudesse realmente estabelecer uma teoria do texto.

Então, neste terceiro momento “adquire particular importância o tratamento dos textos no seu

contexto pragmático: o âmbito de investigação se estende do texto ao contexto” (FAVERO e

KOCH, 1998, p. 15). Isso inclui o momento de produção, as condições internas e externas, a

interpretação entre outros fatores.

Fávero e Koch (1998) esclarecem ainda que para o aparecimento dessas

teorias, outras foram necessárias: as dos atos da fala, a lógica das ações e a teoria lógico-

matemática dos modelos. A pragmática6 também constitui disciplina importante na construção

desta teoria, mas não para todos os estudiosos. Para Dressler (apud FÁVERO e KOCH, 1998,

p. 15) “a pragmática constitui apenas um componente acrescentado a posteriori a um modelo

pré existente de gramática textual, cabendo-lhe tão somente dar conta da situação

comunicativa na qual o texto é introduzido”. Alguns outros teóricos, como Schmidt,

6 “No modelo pragmático o sentido é produzido por um agente, por meio de ação comunicativa. Uma ação é

sempre animada por uma intenção. Por isso, na busca pelo sentido, é preciso levar em conta a intenção do

produtor do texto” (KOCH, 2006, p. 18).

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acreditam na competência comunicativa, e não na competência textual, somente. “Para

Schmidt, o ato de comunicação, como forma específica de interação social (...), de modo que

a competência que constitui a base empírica da teoria de texto deixa de ser a competência

textual, para ser a competência comunicativa” (FÁVERO e KOCH, 1998, p. 16). Ainda sobre

a pragmática, é importante lembrar que ela pode definir-se como a ciência do uso linguístico,

e que “estuda as condições que governam a utilização da linguagem, a prática linguística”

(FIORIN, 2008, p. 161).

As motivações para se levarem adiante esses estudos foram principalmente a

percepção da realidade de se estender a investigação do texto ao contexto, de tratar o texto

numa situação comunicativa e ao contexto pragmático, como citado acima. Como contexto

pragmático, entenda-se conjunto de condições externas ao texto, da produção, recepção e

interpretação dos textos. A investigação da constituição e do funcionamento, a produção e a

compreensão dos textos em situações de uso concretas, o estudo dentro de seu contexto de

produção (pragmático) e o entendimento de que o texto não é um produto acabado, mas

resultado de operações comunicativas e processos linguísticos em situações

sociocomunicativas são objetivos das Teorias do Texto. Os objetos de estudos são: a

coerência, dentro de uma perspectiva pragmático-enunciativa, e fatores de textualidade, que

são a informatividade, a situacionalidade, a intertextualidade, a intencionalidade, a

aceitabilidade, a contextualização, a focalização, a consistência e a relevância.

A coerência é responsável pela unidade semântica, pelo sentido do texto,

envolvendo não só aspectos lógicos e semânticos, mas também cognitivos; a coesão é a

unidade formal do texto que se dá por mecanismos gramaticais e lexicais. A intencionalidade

está ligada ao empenho do autor em construir um texto coerente, coeso, e que atinja o

objetivo, relacionando-o com o valor ilocutório, ou seja, o que o texto pretende falar.

Explica Koch (2006, p. 42) que “a intencionalidade refere-se aos diversos

modos como os sujeitos usam os textos para perseguir e realizar suas intenções

comunicativas, mobilizando, para tanto os recursos adequados à concretização dos objetivos

visados”; aceitabilidade é a expectativa do leitor de que o texto tenha coerência e coesão,

além de ser útil e relevante, ou como menciona Koch (2006, p. 42) “a aceitabilidade é a

contraparte da intencionalidade (...) em sentido restrito refere-se à atitude dos interlocutores

de aceitarem a manifestação linguística do parceiro como um texto coeso e coerente, que

tenha para eles alguma relevância”; a situacionalidade diz respeito à pertinência e à

importância do texto no contexto, ou seja, situar o texto é adequá-lo à situação

sociocomunicativa, assim como Koch (2006, p. 40) define:

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A situacionalidade pode ser considerada em duas direções: da situação para o texto e

vice e versa. No primeiro sentido, a situacionalidade refere-se ao conjunto de fatores

que tornam um texto relevante para uma situação comunicativa em curso ou passível

de ser reconstruída. Trata-se neste caso, de determinar em que medida a situação

comunicativa, tendo o contexto imediato de situação, como o entorno sócio-político-

cultural em que a interação está inserida, interfere na produção/recepção do texto,

determinado escolhas em termos, por exemplo, de grau de formalidade, regras de

polidez, variedade linguística a ser empregada, tratamento a ser dado ao tema, etc.

No segundo sentido, é preciso lembrar que o texto tem reflexos importantes sobre a

situação, visto que o mundo textual não é jamais idêntico ao mundo real (...) há

sempre uma mediação entre o mundo real e o mundo construído pelo texto.

A informatividade, por sua vez, traz ao texto a suficiência de dados para que o

texto seja aceitável e entendível. A intertextualidade concerne aos fatores que ligam a

utilização de um texto dependente do conhecimento de outro(s) texto(s). Um texto constrói-se

em cima do "já-dito". Aprofundando mais os conceitos que embasam essa terminologia

segundo Koch (2006, p. 41) “a informatividade diz respeito, por um lado, à distribuição da

informação no texto, e, por outro, ao grau de previsibilidade/redundância com que a

informação nele contida é veiculada”. É preciso ainda que exista um equilíbrio entre

informação dada e informação nova.

As simples incorporações dos interlocutores ao estudo dos enunciados não é o

suficiente, pois os sujeitos movem-se no interior de um tabuleiro social, que tem suas regras

que lhes impõem condições, limitando a ação, e como toda manifestação acontece inserida

numa cultura as suas adequações devem ser respeitadas. Koch (2006) usa o termo tabuleiro

social para explicar que há regras a serem seguidas quando falamos em liberdade de

expressão, sabendo que essa liberdade é relativa, dentro da sociedade. Koch (2006, p. 23) diz

que:

A simples incorporação, porém, ainda não se mostrou suficiente, já que eles se

movem no interior de um tabuleiro social, que tem suas convenções, suas normas de

conduta, que lhes impõe condições, lhe estabelece deveres e lhes limita a liberdade.

Além disso, toda e qualquer manifestação de linguagem ocorre no interior de

determinada cultura, cujas tradições, cujos usos e costumes, cujas rotinas devem ser

obedecidas e perpetuadas.

Para compreendermos melhor todo este caminho traçado em busca de

definições sobre o texto, refletiremos, brevemente sobre cada uma das disciplinas que fizeram

parte da construção do trajeto percorrido pela Linguística Textual: a antiga retórica, a

estilística e o formalismo russo.

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A antiga retórica data da antiguidade clássica e compreendia a inventio que

significava achar o que dizer; a dispositio, pôr em ordem o que se encontrou; a elocutio,

acrescentar o ornamento das palavras ou das figuras; a actio, tratar o discurso como um ator,

utilizando-se de gestos e dicção; e a memória.

Indursky (2006, p. 35-36) explica que Quintiliano, buscando um efeito para um

discurso fundador nas reflexões sobre o texto, confirma: “Adam registra que o conceito de

„texto‟ começou a tomar consistência a partir das reflexões de Quintiliano”. Assim, lendo

Quintiliano através de Adam e das relações que o autor estabelece com alguns teóricos,

podemos ver que esta é uma preocupação que tem atravessado muitos séculos. Indursky

(2006) ainda cita, para efeito de ilustração, as seguintes informações, que julgamos pertinente

ressaltar:

No Livro IX da Instituição Oratória, Quintiliano associa o texto – textus e textum – a

compositio, isto é a inventio (escolha de argumentos), a elocutio (colocação em

palavras) e a dispositio (colocação em ordem ou plano do texto), todas reunidas. O

textum (IX, 4, 17) está próximo da bela „conjunctura‟ (...) é o que reúne, junta ou

organiza elementos diversos, e mesmo, díspares, o que os transforma em um todo

organizado‟ (Vinaver, 1970 apud Indursky) (...) o texto, assim é definido desde a

origem, tanto por sua unidade quanto por sua abertura e compete a nós não esquecer

deste duplo funcionamento constitutivo. (ADAM, 1999, p. 5-6 apud INDURSKY,

2006, p. 36).

É relevante esta volta ao passado para que possamos compreender como o

desenvolvimento se processa. A retórica está ligada à persuasão do outro dentro do discurso e

tem um caráter pragmático. A retórica era também uma matéria que se ensinava nas escolas

devido às grandes disputas jurídicas da época, “porém foi no século IV a.C. que o assunto

ocupou a atenção de Aristóteles” (FÁVERO e KOCH, 1998, p. 29). Nos primórdios clássicos,

a retórica compreendia as partes citadas acima: a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a

memória. As três primeiras eram tidas como as mais importantes. Com o passar do tempo, das

cinco partes destacadas, e das três mais importantes; dentro da linguística do texto, podemos

dizer que restaram duas com interferência nas construções textuais: a ordenação do

pensamento – a dispositio – e a sua formulação linguística – a elocutio. Confirmam Koch e

Fávero (1998, p. 28) que “A importância da retórica se torna, atualmente, visível em dois

aspectos: - na definição precisa de operações linguísticas subjacentes à produção do texto

(microestrutura); - na localização do texto no processo global de comunicação

(macroestrutura)”.

Já a segunda etapa dessas disciplinas integrava a estilística, que compreendia as

relações além da frase como seu objeto de estudo. A estilística é definida como um ramo da

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Linguística que estuda a língua na sua função expressiva, analisando os processos fônicos,

sintáticos e a criação de significados que individualizam estilos, sua característica principal é

sistematizar as propriedades inerentes à estrutura dos textos em geral, não os diferenciando

em gêneros, como o faz a retórica.

Koch e Fávero (1998, p. 29) esclarecem que “a estilística, alimentada pela

retórica, pela gramática e pela filosofia, surge como um segundo precursor”,

complementando, ainda sobre a estilística que dentro da história das construções de estudo de

texto “até pouco tempo atrás, a frase era considerada a unidade linguística mais alta e, assim,

todas as relações acima do nível da frase deviam constituir objeto da estilística (...) o plano de

texto ficava-lhe, pelo menos teoricamente reservado”. Entendemos, então, que a estilística

veio para complementar a retórica dentro dos estudos da palavra enquanto texto, cabendo à

Linguística fornecer a ela os fundamentos necessários para saber se seu uso vem da

necessidade da gramática ou da escolha do autor. Tudo isso contribuindo para a formação dos

estudos posteriores sobre a linguística do texto. No entanto, a Linguística Textual não limita

seu campo de atuação a somente alguns tipos de textos, mas abre esse campo para analisar

estruturas de textos em geral.

Os formalistas russos fundam o “Círculo Linguístico de Moscou” (KOCH e

FÁVERO, 1998, p. 29). Os teóricos envolvidos com os estudos linguísticos da época tentam

“estudar a estrutura do texto em si e por si mesmo rejeitando toda e qualquer consideração

exterior a ele em busca da literariedade7.” (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 29). Koch e Fávero

(1998) citam ainda C. Levi Strauss8 e M. Bakhtin

9 como importantes nomes dentro do

trabalho estruturalista que antecipa alguns pressupostos da Linguística Textual.

A seguir citaremos como alguns desses importantes autores definem o texto, já

que este primeiro capítulo se propõe a diferenciar e estabelecer relações entre os distintos

momentos que permearam o caminho até a Linguística Textual.

Hjelmslev (1899-1965 apud FÁVERO e KOCH, 1998, p.30), define texto

como “toda e qualquer manifestação da língua, curta ou longa, escrita ou falada,

correspondendo, de certo modo, à parole de Saussure”. Hjelmslev não estaria fundando uma

7 “literaturnost”, termo usado para definir propriedades existentes nos textos literários que se caracterizariam por

propriedades universais no interior do texto. – literariedade. 8 Claude Levi Strauss (1908 -2009), um dos grandes pensadores do século XX, conhecido na França por seus

estudos que ajudaram a desenvolver o campo da antropologia. 9 Mikhail M Bakhtin (1895-1975) “uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas da cultura epopéia de meados

do século XX (...) obra rica e original à qual nada pode ser comparado na produção soviética em matéria de

ciências humanas” (prefácio à edição francesa, tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão – A

estética da criação verbal, 2006).

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Linguística Textual neste momento, pois descrevia “sistema linguístico subjacente a ele: a

todo processo (texto) subjaz um sistema que por meio dele se manifesta. Através do texto,

passível de observação imediata, pode-se chegar à descoberta do sistema, para formular uma

teoria da langue” (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 30).

Jakobson, membro do Círculo Linguístico de Praga, redefine e amplia os

estudos da Linguística com a definição das funções da linguagem. Segundo Barros (2006, p.

28):

Para Jakobson, na esteira de estudos sobre a informação, há na comunicação um

remetente que envia uma mensagem a um destinatário, e essa mensagem, para ser

eficaz requer um contexto (ou um referente) a que se refere, apreensível pelo

remetente e pelo destinatário, um código, total ou parcialmente comum a ambos, e

um contato, isto é, um canal físico e uma conexão psicológica, entre o remetente e o

destinatário, que os capacitem a entrar e permanecer em comunicação.

As funções de linguagem resolvem em grande parte, para os estudiosos da

língua, o entendimento do modo como a comunicação se processa. Embora Jakobson não

tenha teorizado diretamente sobre os problemas da textualidade, sua contribuição construía os

caminhos que a teoria do texto estava percorrendo. Segundo BARROS (apud Fiorin 2006, p.

32), “Jakobson mostrou que a linguagem deve ser examinada em toda a variedade de suas

funções”.

Benveniste estudou o discurso e o sujeito. A subjetividade era, para ele,

relevante, pois pela subjetividade, o homem se constituía, usando sua linguagem e sua

comunicação. Benveniste, (apud Fávero e Koch, 1998, p. 31), assinala que “a língua combina

dois modos de significação distintos: o semiótico e o semântico”, e que “... o semiótico

designa o modo de significação própria do signo linguístico (...), o semântico é o modo

específico de significação engendrada pelo discurso” (apud KOCH e FÁVERO, 1998, p. 31).

Então, é necessário que o momento da enunciação seja levado em conta, quando da análise do

discurso ou do texto. Benveniste ressalta a diferença entre emprego das formas, procurando

mostrar como e quando as condições diferem em cada caso. “Visto que a enunciação supõe a

„conversão individual da língua em discurso‟, processa-se uma atualização sobre o plano

semântico, ou seja, a „semantização da língua‟. A partir da manifestação individual que a

atualiza, é possível detectar, no interior da língua, os caracteres formais da enunciação (...)”

(KOCH e FÁVERO, 1998, p. 31).

Outro linguista que se dedicou ao estudo do discurso foi M. Pêcheux (1983).

Na análise do discurso encontraremos algumas regiões de conhecimento científico:

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ideológica, linguística e discursiva. Também defendia a subjetividade, de natureza

inconsciente ou psicanalítica juntamente com a importância das condições de produção. Para

diferenciar este momento de um anterior, poderíamos ilustrar com a seguinte citação:

O conceito de condições de produção é fundamental na análise do discurso. Se, para

Benveniste, o falante se apropria da língua, num movimento individual, para a

análise do discurso, devido à consideração que se faz das condições de produção, o

que existe é uma forma social de apropriação da linguagem, na qual se encontra

refletida a ilusão de sujeito, isto é, a sua interpretação feita pela ideologia (KOCH e

FÁVERO, 1998, p. 32).

Podemos também citar, neste tratado sobre definições de textos por diferentes

autores, outro estudioso que contribuiu para esta corrente de conceitos sobre a textualidade.

Zellig Harris “foi o primeiro linguista moderno a considerar o discurso como objeto legítimo

da linguística” (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 33). Para ele, o discurso está além da frase e das

palavras em si, ele usou a expressão „alocuções conectadas‟ para definir como pensava o

texto. Harris apresenta, pois, um modelo de análise que se define por um método de pesquisa,

que ele chamou de discourse analysis, no qual o discurso inteiro entraria nesta análise.

Van Djik complementa esses estudos, com uma visão mais completa. Em seus

trabalhos, principalmente nos dos de 1980, como menciona Koch (2008, p. 18), Van Djik diz

que o “planejamento pragmático de um discurso (...) requer a atualização mental de um

conceito de ato de fala global”, correlacionando a produção textual escrita ou falada a uma

organização interna para que sua feitura seja coerente e coesiva.

Zellig Harris merece destaque, pois “foi o primeiro linguista (...) a realizar uma

análise sistemática de textos (...) a linguística descritiva deve estender-se para além dos

limites do enunciado e a oração não pode ser destacada da estrutura na qual está inserida...”

(KOCH e FÁVERO, 1998, p. 33). O autor acreditava também que a linguagem não acontece

com palavras e frases isoladas, mas em „alocuções conectadas e deixa registrado o discourse

analysis. Como discourse analysis entendemos a análise do texto, segmentando-o em

proposições, semelhanças semânticas e ordenação de frases do texto. Porém, apesar da quase

completude deste processo, Van Dijk formula algumas questões quanto à limitação desta

análise:

O discurso é concebido como uma estrutura linear na qual, aparentemente, não

podem ser descobertas relações hierárquicas; parece excluir um grande número de

textos, frequentes na linguagem coloquial, formados de uma só oração (...) a

possível coincidência entre texto e período será motivo, para tomar, mais tarde, a

gramática da frase como modelo para o desenvolvimento da gramática do texto, já

que parte do pressuposto de que texto e enunciado estão na mesma relação que

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sintagma e morfema, ou morfema e fonema (...) a diferença entre enunciado e texto

não é apenas uma diferença de nível – quantitativa – mas, sim, qualitativa, visto que

se trata de unidades heterogêneas (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 34).

Para compreender a complexidade desta terminologia, quando tratamos de

tentar definir o que é um texto, vale a pena lembrar as palavras de Bentes (2005) quando

reforça que Koch (1997) já havia buscado organizar estas definições do objeto da Linguística

Textual. Bentes (2005, p. 255) afirma que “sempre teremos à nossa disposição mais de uma

definição de texto ou daquilo que se postula ser o objeto da Linguística Textual, importando,

então, escolher aquelas que compartilhem pressupostos teóricos e que sejam passíveis de

serem reconhecidas como estabelecendo relações de proximidade e complementariedade”.

Quando Koch (2008) propõe um olhar para a interioridade do texto no contexto

da Linguística Textual, ela explica que Isenberg (1976) descreve um método apto para

descrever a geração, a interpretação e a análise de um texto “desde a estrutura pré-linguística

da intenção comunicativa até a manifestação superficial, incluindo fundamentalmente as

estruturas sintáticas...” (2008, p. 16) e complementa sua explicação, dizendo que, segundo

Isenberg (1976), um texto pode ser encarado sob oito aspectos: “legitimidade social,

funcionalidade comunicativa, semanticidade, referência à situação, intencionalidade, boa

formação, boa composição e gramaticalidade” (ISENBERG apud KOCH, 2008, p. 16-17) e

lembra anda que um estudo do texto deve respeitar e considerar os diferentes aspectos citados

acima. Isenberg diz ainda, segundo Koch (2008, p. 17-18), que “o plano geral do texto

determina as funções comunicativas que nele irão aparecer e estas, por sua vez, determinam

as estruturas superficiais. A relação existente entre os elementos do texto deve-se à intenção

do falante”, ou seja, o falante deve descobrir o „para quê‟ do texto. Koch (2006, p. 18-20)

continua seu trabalho levantando importantes questões e definições sob outros pontos de vista

acerca da definição de texto. Destacaremos algumas, por exemplo, a de Schimidt que se funda

na teoria do ato verbal, a de Wunderlich que se centraliza em redescobrir o objetivo da teoria

da atividade, a de Beaugrande e Dressler que falam em ações discursivas, considerando a

atividade verbal como uma instância de planejamento interativo. “Por isso, incluem, entre os

critérios ou padrões de textualidade, a intencionalidade/aceitabilidade”. Segundo esta

afirmação, podemos entender a importância da coerência e coesão como fundamentais para a

construção de sentidos. Como diz Koch (2008, p. 21):

Nunca é demais lembrar que a coerência não constitui uma propriedade ou qualidade

do texto em si: um texto é coerente para alguém, em dada situação de comunicação

específica (...) para construir uma coerência, deverá levar em conta não só os

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elementos linguísticos que compõem o texto, mas também seu conhecimento

enciclopédico, conhecimentos e imagens mútuas, crenças, convicções, atitudes,

pressuposições, intenções explícitas ou veladas...

Dando continuidade às diferentes concepções de textos, temos ainda Motsch &

Pasch (apud KOCH, 2008, p. 21) que “concebem o texto como uma sequência

hierarquicamente organizada de atividades realizadas pelos interlocutores”, o que significa dar

ao leitor chances de compreensão, pistas atividades linguístico-cognitivas para que a

compreensão aconteça. Koch (2008, p. 24) conclui que “na atividade de produção textual,

social/individual, alteridade/subjetividade, cognitivo/discursivo coexistem e condicionam-se

mutuamente...” Então, para o entendimento do texto lido/escutado, temos que desenvolver

nossas habilidades para que possamos tirar deste objeto, o máximo que nos é permitido.

No início da década de 90, o vigor de uma abordagem cognitiva do texto

começa a se delinear. Destacamos estudiosos como Van Dijk e Kintsch (1994). Há uma

tendência sócio-cognitiva de grande expressão que perpassa as preocupações com o texto e

com seus estudos. Pesquisas no campo da cognição são realizadas e pontuadas para que se

possam explicar os aspectos estruturais e processuais da cognição humana. Questões

relevantes foram apontadas durante esse processo, tais como: de que conhecimento do ser

humano precisa dispor para poder realizar tarefas como pensar, ler, falar e agir socialmente;

como este conhecimento está organizado e representado na memória; como este

conhecimento é utilizado e que processos e estratégias cognitivas são postas em ação na

ocasião do uso. Todas estas questões são dados que interessam à Linguística Textual em seus

contextos de estudos e pesquisas. Nas teorias clássicas em Ciência Cognitiva, podemos

encontrar informações que nos levam a deduzir que a cognição é baseada em modelos de

informação que podem ser representados por símbolos, os quais podem ser manipulados.

Confirma Schwarz, (1992 apud KOCH, 2006, p. 35) que “a preocupação central das pesquisas

na área de Cognição tem sido de propor teorias empiricamente comprováveis, capazes de

explicar os aspectos estruturais e processuais da cognição humana, a partir de três

questionamentos básicos”.

Estes questionamentos girariam em torno de reflexões sobre o pensar humano,

organização do conhecimento adquirido/aprendido e quando utilizamos este conhecimento

das estratégias de que dispomos. A arquitetura da mente é similar a dos computadores, a

mente humana é um processador, ou seja, o processamento da mente implica um uso de regras

explícitas, lógicas, dispostas em hierarquia, que determina a manipulação destes símbolos de

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modo sequencial. Além disso, a mente recebe a informação, armazena-a, recupera-a,

transforma-a e a transmite. Estas informações são inferências, deduções que se apresentam

sob a forma de representações, conhecimentos estabilizados na memória, acompanhados de

interpretações que lhe são associadas e tratamentos ou formas de processamentos da

informação voltados para a compreensão e a ação.

A memória opera em três fases, como parte integrante do conhecimento: a

estocagem, a retenção e a reativação. Como estocagem, entendemos “que as informações

perceptivas são transformadas em representações mentais, associadas a outras” (KOCH, 2006,

p. 37); a retenção refere-se ao “armazenamento das representações” (KOCH, 2006, p. 37); e

por fim a reativação onde se “opera, entre outras coisas, o reconhecimento, a reprodução e o

processamento textual” (KOCH, 2006, p. 37).

O desenvolvimento cada vez maior das investigações na área da cognição

aumenta o interesse ao processamento do texto enquanto produção e compreensão; às formas

de representações do conhecimento na memória, à ativação de tais sistemas de conhecimento

por ocasião do processamento citado anteriormente; às estratégias sócio-cognitivas e

interacionais nele envolvidas. Indursky (2006, p. 47) explica que:

De tudo quanto precede, pode-se afirmar que há três conceitos fundamentais

formulados pelos linguistas textuais que sempre devem ser considerados

inicialmente, é necessário examinar a textualidade de um texto que consiste em sua

propriedade intrínseca. E para avaliá-lo é preciso analisar este texto a partir de sua

coesão e coerência. Ou seja, estes três conceitos representam o cerne dos estudos

textuais para esta área do conhecimento. E é através das relações internas, coesivas,

que se realiza o que Ingedore Koch, estudiosa brasileira que inscreve sua reflexão

sobre texto na linguística textual, chama de “processamento de texto” e, através

dele, chega-se à operação semântica que determina a unidade de significação que um

texto deve apresentar para ser entendido como texto, a coerência.

Os principais objetivos deste momento é o de se considerar o contexto sócio-

cognitivo, buscando-se um conjunto de suposições baseadas nos saberes dos interlocutores,

mobilizadas para a interpretação de um texto, e que para as pessoas se compreenderem

mutuamente é preciso que seus contextos cognitivos sejam parcialmente compartilhados. Na

interação os contextos se misturam causando um aparecimento de novos contextos que vão

sendo criados a partir dessa colocação.

Os objetos de estudo que permeiam esta fase estão ligados à ênfase e aos

processos de organização global dos textos; envolvem questões de ordem sócio cognitiva,

juntamente com a referenciação, a inferenciação, e o acesso ao conhecimento prévio. O

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tratamento da oralidade e da relação oralidade/escrita e os estudos de gêneros textuais ganham

mais destaque com o passar do tempo.

Os estudos da Linguística Textual estão voltados para definir como o texto é

um lugar de interação entre sujeitos sociais, ativos, empenhados numa atividade

sociocomunicativa, que pode ser definida como um „projeto de dizer‟, e da parte do intérprete

ou leitor/ouvinte uma participação ativa na construção de sentido, por meio da mobilização do

contexto a partir de pistas e sinalizações que o texto oferece. A competência

sociocomunicativa, como explica Koch (2006, p. 53) “dos falantes/ouvintes leva-os à

percepção do que é adequado ou inadequado em cada uma das práticas sociais”. Há também

uma ativação de nossos conhecimentos e sabemos reconhecer um texto como uma piada, uma

notícia, entre outros. Podemos ainda averiguar se um texto tem caráter narrativo, descritivo ou

expositivo.

Por essas pistas podemos desvendar o sentido e os segredos do texto.

É importante mencionar a presença dos interlocutores como produtores e

interpretadores na ação da linguagem, pois mobilizam estratégias de ordem sociocognitiva,

interacional e textual com vistas à produção de sentido. O interlocutor viabiliza o que dizer

recorrendo a estas estratégias de organização textual e usa sinalizações textuais para isso, para

a construção de possíveis sentidos.

O texto, então, é organizado estrategicamente de dada forma, em decorrência

das escolhas feitas pelo produtor entre as diversas possibilidades de formulação que a língua

lhe oferece, e assim, estabelecem-se limites quanto às leituras possíveis acerca do que foi dito.

O leitor/ouvinte, por sua vez, precede à construção do sentido a partir do modo

como o texto se encontra linguisticamente construído, das sinalizações que lhe oferece e pela

mobilização do contexto relevante à interpretação. Nesse momento é indubitável que temos

que levar em conta os aspectos utilizados para que a comunicação aconteça.

O contexto sociocognitivo, então, considera o que foi visto anteriormente e

engloba todos os tipos de conhecimento arquivados na memória dos actantes sociais, que

necessitam ser mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal e abrange os demais contextos,

ou co-textos ou situação mediata e imediata. Na situação mediata podemos ter todos os

conhecimentos possíveis acionados. Podemos constatar então que esse processo é uma

atividade complexa de produção/construção de sentidos, que na superfície textual abrange os

elementos linguísticos presentes, na sua forma de organização, mas que requer a mobilização

de saberes na sua reconstrução no interior do evento comunicativo. Lembrando Koch (2008,

p. 31) sobre o caráter sociocognitivo da comunicação:

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O texto é considerado como uma manifestação verbal, constituída de elementos

linguísticos de diversas ordens, selecionados e dispostos de acordo com as

virtualidades que cada língua põe à disposição dos falantes no curso de uma

atividade verbal, de modo a facultar aos interactantes não apenas a produção de

sentidos, como fundear a própria interação como prática sociocultural.

De acordo com Koch (2008), registramos que “para o processamento textual

contribuem três grandes sistemas de conhecimento: o linguístico, o enciclopédico e o

interacional.” (cf. Heinemann & Viehweger10

).

O conhecimento linguístico abarca conhecimento de gramática e do léxico, e é

o responsável pela construção relacionada ao som e ao sentido. “É ele o responsável, por

exemplo, pela organização do material linguístico na superfície textual, pelo uso dos meios

coesivos que a língua põe à nossa disposição para efetuar a remissão ou a sequenciação

textual, pela seleção lexical adequada ao tema e/ou aos modelos cognitivos ativados”.

(KOCH, 2008, p. 32). O conhecimento de mundo, chamado também de conhecimento

enciclopédico é aquele que vamos construindo à medida que vamos conhecendo e construindo

percepções do mundo a nossa volta. Ele pode ser declarativo, ligado aos fatos do mundo, ou

episódico, modelos socioculturalmente adquiridos através da experiência. Koch (2008, p. 32)

relata que:

é com base em tais modelos, por exemplo, que se levantam hipóteses, a partir de

uma manchete; que se criam expectativas sobre o(s) campo(s) lexical (ais) a ser (em)

explorado (s) no texto; que se produzem inferências que permitem suprir as lacunas

ou incompletudes encontradas na superfície textual.

Quanto ao conhecimento sócio-interacional, dizemos que este conhecimento

está relacionado às ações verbais, às inter-ações pela linguagem. Como menciona Koch

(2006, p. 32) “engloba os conhecimentos do tipo ilocucional, comunicacional,

metacomunicativo e superestrutural”.

Sobre as superestruturas, assim denominadas por Van Dijk (1983 apud Koch

2008), há como reconhecer por elas as sequências textuais de diversos tipos. A estrutura de

um texto está diretamente conectada a seu conteúdo, podendo, portanto variar com diferentes

tipos e níveis. Nesse sentido as estruturas passam a ser denominadas superestruturas que

caracterizam os tipos de texto, e essa superestrutura é a forma de um texto e sua

macroestrutura, o conteúdo. Van Dijk (1983 apud Koch 2008), ainda ressalta que os tipos de

10 1991

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textos se distinguem entre si, não só por suas diferentes funções comunicativas, mas também

por suas funções sociais, sendo que possuem tipos de construção distintos. Véron (1980 apud

Koch 2008) diz que um texto tem as operações produtoras de sentido, universos discursivos

diferentes e relação com outros textos.

As superestruturas mais estudadas são a narrativa, a descritiva, a injuntiva, a

expositiva, a preditiva, a explicativa e a argumentativa (stricto sensu). As superestruturas

podem ser representadas por três tipos de estruturas textuais: narrativa, argumentativa e

institucional. Segundo Van Dijk (1992) a narrativa é a estrutura mais básica, pois se

caracteriza pela comunicação cotidiana, sendo que as descrições das circunstâncias e objetos

ou fatos são subordinados às ações dos sujeitos da narração contados por apenas um. A

estrutura argumentativa se baseia na sequência hipótese-conclusão e atua com um diálogo

persuasivo. De acordo com Van Dijk (1992) existem estruturas textuais que não são

convencionais (narrativas e/ou argumentativas), mas institucionais porque se baseiam em

regras/normas de uma determinada instituição social.

O conhecimento superestrutural, isto é, sobre esquemas textuais, permite reconhecer

textos como exemplares adequados aos diversos eventos da vida social; envolve,

também, conhecimentos sobre as macrocategorias ou unidades globais que

distinguem os vários tipos de textos, sobre a sua ordenação ou sequenciação, bem

como a conexão entre objetivos e estruturas textuais globais. (KOCH, 2006, p. 49).

1.1 A LINGUÍSTICA TEXTUAL NO BRASIL

No final da década de 70 surgem os primeiros trabalhos sobre a Linguística

Textual no Brasil. Algumas obras, a partir daí, foram sendo traduzidas e nosso acesso a elas

ficou bem mais fácil. Alguns estudos foram estruturados e transformados em obras

publicadas, e o acervo sobre a Linguística Textual vem sendo aumentado notavelmente. As

pesquisas sobre texto no Brasil inspiram-se em estudos realizados na Alemanha, na Holanda,

na França, na Inglaterra e nos EUA, tanto por linguistas como por psicólogos e pesquisadores

em inteligência artificial. Alguns estudos foram feitos também em Praga e na Suíça. As obras

traduzidas Semiótica Narrativa e textual e Linguística e Teoria do Texto (Schmidt, 1978)

contribuíram com os estudos que começavam a se desenhar no Brasil. Na UNICAMP também

começa a ser desenvolvido um trabalho sobre o discurso e a Semântica Argumentativa,

resultando em publicações de livros e artigos, Koch (1999, p. 169) cita Osabake (1979) e

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Vogt (1977) como os primeiros a publicarem suas obras sobre o assunto. Ela também registra

os trabalhos de Pontes “sobre as estruturas de tópicos no português brasileiro, posteriormente

coletadas nas obras Sujeito: da Sintaxe ao Discurso (São Paulo, Ed. Ática, 1986) e O Tópico

no Português do Brasil (Campinas, Ed. Pontes, 1987)”.

Nos anos de 1980, esses estudos ganham força, e é publicado Linguística

Textual: Introdução (Fávero e Koch, 1983) e Linguística de texto: O que é e como se faz

(MARCUSCHI, 1983). Em anais e congressos trabalhos sob essas perspectivas ganham

dimensão. Pesquisas sobre o texto vêm sendo desenvolvidas em universidades, cursos de

extensão têm sido criados, teses de mestrados e doutorado dão margem à sedimentação dessas

descobertas com relação aos estudos do texto, como será citado mais adiante.

Os aspectos mais enfatizados têm sido os padrões de textualidade propostos

por Beaugrande e Dressler (1981), enfocando a coesão textual, seguindo a perspectiva de

Halliday e Hasan (1976) e seguindo as propostas da escola de Praga quanto à progressão

temática, à coerência textual, à intertextualidade, à tipologia de textos, aos mecanismos de

conexão, à produção, à compreensão e sumarização de textos e a outros processos linguísticos

que levam em conta a ótica textual como fator principal no desenvolvimento de sua teoria.

Os autores brasileiros têm contribuído sobremaneira para estudos da

Linguística do Texto, pois, suas pesquisas têm aprofundado questões relacionadas à coerência

dentro da textualidade. Devemos a Harald Weinrich as fundamentações sobre o emprego

textual dos tempos verbais; a Van Dijk a tipologia dos textos, além do conceito desenvolvido

sobre macroestrutura, descrição das estratégias de sumarização, entre outros. Importante

ressaltar que a macroestrutura semântica, segundo Val (1999) está ligada à representação

geral da significação do texto; enquanto na microestrutura se manifestariam relações

localizadas de conexão mútua entre os enunciados.

Num segundo momento, outras obras foram publicadas para acrescentar ainda

mais a esse processo de descobertas e estudos: A coesão textual (Koch, 1990), Texto e

coerência (Koch e Travaglia, 1989) e A coerência textual (Koch e Travaglia, 2002). Os

aspectos que ganham dimensão nesses dois primeiros momentos são: progressão temática;

coerência textual; intertextualidade; tipologia de textos; produção, compreensão, sumarização

de textos; como citados acima, juntando-se a mecanismos de conexão (conectores, semânticos

e pragmáticos) e outros processos linguísticos vistos sob a ótica textual: topicalização,

referenciação, nominalização, tempos verbais e emprego do artigo. Koch (1999, p. 168)

enfatiza que:

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Em várias universidades brasileiras vão-se formando núcleos de pesquisas sobre

texto. A pesquisa na área frutifica em cursos de extensão, aperfeiçoamento e

especialização, ministrados em diversos pontos do país, bem como em dissertações

de mestrado e teses de doutorado, cujos autores, subsequentemente, vão

implantando esse tipo de enfoque em suas instituições de origem.

Num terceiro momento11

, na década de 90, a perspectiva sócio-interacional

começa a tomar conta dos estudos no tratamento da linguagem (Geraldi, 1991; Koch, 1992), e

os estudos se voltam para as estratégias de contextualização sócio-cognitivas dentro do

processamento textual, na produção e na compreensão dos textos. A linguística então serve e

se serve de outras ciências, complementando sua importância e ampliando seus propósitos. Os

principais objetos de pesquisa têm sido o funcionamento da memória, a representação dos

conhecimentos, seu acesso, utilização, recuperação e atualização desses conhecimentos, as

principais estratégias de ordem sócio-cognitiva, interacional e textual, colocadas em ação na

produção e compreensão dos textos, e por último o balanço entre o implícito e o explícito.

Outra tendência que se observa é a dedicação aos estudos de gêneros textuais, retomando a

questão da tipologia textual. A referenciação também é outro ponto que notamos crescer, das

diversas formas de remissão textual, e os recursos anafóricos e seu processamento sócio-

cognitivo.

Observamos também, educadores aplicando noções da Linguística Textual em

suas aulas, no processo de alfabetização e aquisição da língua, tanto materna quanto

estrangeira, de modo geral. Essa forte inclinação tende para a abordagem sócio-interacional

que envolve o processamento textual em termos de compreensão e produção. Marcuschi, “na

metade da década anterior, havia desenvolvido um projeto sobre a produção de inferências,

financiado pelo CNPq, cujos resultados, foram parcialmente divulgados, através de artigos”

(KOCH, 1999, p. 171)12

.

Não podemos deixar de citar a importância dos estudos e pesquisas sobre o

texto falado, outra vertente relevante concernente a essa área. Marcuschi (2008, p. 25) fala em

sua obra da fala para a escrita, atividades de retextualização sobre a importância da fala no

processo de registro, exemplificando que “a fala seria uma forma de produção textual-

discursiva para fins de comunicação na modalidade oral”.

11 Podemos verificar essa divisão nos estudos da Linguística Textual no Brasil, num primeiro momento de 1981-

1985 e num segundo momento de 1989 – 1991. 12

Koch (1999) escreve um artigo sobre o desenvolvimento da Linguística Textual no Brasil, na revista DELTA

(Desenvolvimento/Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada).

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Alguns postulados teóricos da Linguística Textual fundamentarão a análise que

faremos do texto teatral de Clarice Lispector.

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33

2 DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADE

2.1 DIALOGISMO

Este capítulo tratará do dialogismo e da intertextualidade de acordo com os

estudos e reflexões de Bakhtin e os princípios teóricos da Linguística Textual. Segundo Fiorin

(2008, p.18) “O teórico russo enuncia esse princípio e, em sua obra, examina-o em seus

diferentes ângulos e estuda detidamente suas diferentes manifestações”. Pontuaremos alguns

desses diferentes ângulos no decorrer deste capítulo.

Diferentes posições teóricas possibilitam distintos olhares sobre o mesmo

objeto de estudo, desse modo, é necessário expressar nosso entendimento acerca do tema

escolhido, destacando o lugar teórico de onde se fala e consequentemente, nosso ponto de

vista.

Dialogia não é uma teoria científica, mas sim uma filosofia, um conjunto de

conceitos. Segundo Fiorin (2008) Bakhtin (2006) também não é um teórico do diálogo face-a-

face, interessa-lhe pouco o diálogo tal como é tradicionalmente conhecido. Ele chega mesmo

a dizer que essa forma composicional do discurso é uma concepção estreita do dialogismo.

As relações dialógicas que se estabelecem entre dois enunciados quaisquer

postos em contato é o que lhe interessa. A lógica das relações dialógicas não é, portanto, de

natureza linguística stricto sensu, o que nela ocorre é a defrontação. O termo diálogo em

Bakhtin (2006) designa a grande metáfora conceitual que organiza sua filosofia; é o nome

para o simpósio universal que define o existir humano e não para uma forma específica de

interação face-a-face e menos ainda para uma forma composicional do texto:

a vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar,

ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com

toda a vida: com os olhos, com os lábios, com as mãos, a alma, o espírito, todo o

corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra e essa palavra entra no tecido

dialógico da vida humana, no simpósio universal. (BAKHTIN, 2006, p.348)

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Para Bakhtin (2006) a língua é na essência dialógica; todo enunciado propõe

uma atitude responsiva. Por atitude responsiva podemos entender a relação entre o homem

habitado pelo signo e ideologicamente marcado pelas estruturas sociais e o mundo habitado

por ele. É nessa relação que se cria a perspectiva de diálogo que gera a possibilidade de

modificação recíproca. Na concepção bakhtiniana o diálogo não se limita à comunicação face

a face, mas abrange todo o processo de comunicação verbal e não verbal, incluindo o texto

falado ou escrito. O discurso é, portanto, um espaço marcado por diversas vozes vindas de

outros discursos. A responsividade pode ser ativa ou passiva. Afirma Bakhtin (p. 271, 2006)

que:

...o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso ocupa

simultaneamente em relação a ele uma atitude responsiva: concorda ou discorda dele

(total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa

posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo processo de audição e

compreensão desde o seu início, às vezes literalmente, a partir da primeira palavra

do falante. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza

ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda

compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera

obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante.

Uma atitude responsiva ativa implica uma ação concreta dotada de

intencionalidade voluntária praticada por alguém, responder a alguém ou a alguma coisa.

Nesse caso, há uma ruptura com as idéias de assujeitamento ou sujeito-fonte trazidas pelo

dialogismo. Bakhtin (2006) explica que a linguagem nunca está completa, ela é uma tarefa,

um projeto sempre em construção, sempre inacabado. O discurso está ligado à vida em si e

não pode ser separado dela sem perder sua significação. A palavra pode, então, tornar-se

prioritária nos estudos sócio-históricos somente se a analisarmos e analisarmos seus signos

isoladamente. Como a palavra está inserida num contexto, num conjunto de valores ou fatores

que a fará tornar-se enunciado, a resposta ao discurso se dará de diversas maneiras.

O ato responsivo deve ser entendido, portanto, como aquele realizado por um

sujeito social em interação com um ou mais sujeitos, e pode ser executado de maneira verbal

ou através de gestos. Se for uma comunicação verbal ou escrita, podemos chamar essa atitude

de responsiva ativa. Para Bakhtin (2006), o falante está decidido, ele não espera uma

compreensão passiva, por assim dizer, que duble seu pensamento em voz alheia, mas uma

resposta, uma concordância ou até uma participação. A atitude responsiva, para Bakhtin

(2006) está ligada à questão de formação do sujeito, na sua consciência, revelada por sua

forma de pensar e agir.

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Para Fiorin (2008) o primeiro conceito de dialogismo é aquele que se funda em

contradição, réplicas de vozes sociais que divergem. Essas vozes podem ser individuais ou

sociais, incluindo grandes discussões filosóficas ou diálogos do dia a dia. De acordo com

Fiorin (2008, p. 27):

ao tomar em consideração tanto o social como o individual, a proposta bakhtiniana

permite examinar, do ponto de vista das relações dialógicas, não apenas as grandes

polêmicas filosóficas, políticas, estéticas, econômicas (...) mas também fenômenos

da fala cotidiana, como a modelagem do enunciado pela opinião do interlocutor

imediato ou reprodução da fala de outro com uma entonação distinta da que foi

utilizada, admirativa, zombeteira (...). Todos os fenômenos presentes na

comunicação real podem ser analisados à luz das relações dialógicas que os

constituem.

O segundo conceito de dialogismo é o que traz uma forma composicional ao

mesmo, mostrando visivelmente vozes distintas nos discursos. Bakhtin chama essa forma de

composição estreita de dialogismo. Conforme Fiorin (2008, p. 33), “com esse adjetivo, o que

o filósofo pretende mostrar é que o dialogismo vai além dessas formas composicionais, ele é o

modo de funcionamento real da linguagem, é o próprio modo de constituição do enunciado”.

Bakhtin (apud Fiorin 2008) coloca duas maneiras de inserir o discurso do outro

no enunciado: o discurso objetivado e o discurso bivocal. O primeiro é o discurso citado e

mostrado em que se usam o discurso direto e indireto; aspas; negação; e o segundo,

internamente dialogizado, em que não há separação nítida entre quem cita e quem enuncia,

nesse aparecem as paródias, a estilização e a polêmica. Bakhtin (2006, p. 275) explica ainda

que:

Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande

romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim

absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os

enunciados responsivos de outros ou amo menos uma compreensão ativamente

responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa

compreensão.

O terceiro conceito de dialogismo está ligado diretamente ao sujeito que

professa o discurso. Para Bakhtin não existe o assujeitamento, mas o sujeito não é, também,

autônomo em relação à sociedade. Fiorin (2008, p. 55) menciona que:

o sujeito não é assujeitado, ou seja, submisso às estruturas sociais, nem é uma

subjetividade autônoma em relação à sociedade. O princípio geral do agir é que o

sujeito age em relação aos outros; o indivíduo constitui-se em relação ao outro. Isso

significa que o dialogismo é o princípio de constituição do indivíduo e o seu

princípio de ação.

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O princípio básico dessa ideia é que o ser humano está em constante

transformação, constituindo-se de vozes sociais que o formam e que o formarão, construindo

o seu arsenal de ações e discursos. Não há indivíduo acabado, e não recebemos de uma só voz

social, mas de muitas. Somos e estamos integrados num contexto de ações e reações. Temos

atitudes responsivas diante dos fatos e das falas, respondemos a isso o tempo todo. Portanto, o

indivíduo é totalmente dialógico. Há diferentes tipos de vozes: a de autoridade e as vozes

persuasivas. Quanto mais nossa consciência for formada por essas vozes de autoridade,

explica Fiorin (2008), mais ela será monológica ou ptolomaica. Quanto mais for constituída

de vozes persuasivas, mais ela será dialógica ou galileana. Esses dois tipos de vozes se

debatem e aí acontece a inter-relação das diferentes vozes que nos constituem. Segundo

Fiorin (2008, p. 56):

Bakhtin qualifica de ptolomaica a consciência mais rígida, mais organizada em torno

de um centro fixo, como era o sistema planetário de Ptolomeu, em que a Terra era

fixa. Já a galineana é a consciência mais aberta, mas móvel, não organizada em

torno de um centro fixo, como é o sistema de Galileu, em que a Terra de move.

Segundo Fiorin (2008, p.19) nos enunciados “existe uma dialogização interna

da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente

também a palavra do outro”. Portanto, os textos são sempre ecos de outros textos, e os

discursos de outros discursos. Ainda em Fiorin (2008, p.19):

Não há nenhum objeto que não apareça cercado, envolto, embebido em outros

discursos. Por isso, todo discurso que fale de qualquer objeto não está voltado para a

realidade em si, mas para os discursos que o circundam. Por conseguinte, toda

palavra dialoga com outras palavras, constitui-se a partir de outras palavras, está

rodeada de outras palavras.

Na filosofia bakhtiniana há diferenças entre a unicidade do ser e do evento,

distinguindo-os em unidades da língua e enunciados. Os enunciados se caracterizam

dialógicos, não existem fora das relações dialógicas, pois são unidades reais de comunicação,

irrepetíveis, estão ligados ao evento, pois têm um acento, uma apreciação e entonação própria.

Podemos dizer que os enunciados revelam um posicionamento, pois têm um autor, são

completos e aceitam uma resposta; além disso, os enunciados têm um destinatário, portanto

estão carregados de juízo de valor e possuem sentido. Segundo Brait (2008, p. 63):

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O enunciado, nessa perspectiva é concebido como unidade de comunicação, como

unidade de significação, necessariamente contextualizado. Uma mesma “frase”

realiza-se em um número infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos,

dentro de situações e contextos específicos, o que significa que a frase ganhará

sentido diferente nessas realizações “enunciativas”.

Por sua vez, as unidades da língua, que são os sons, as palavras e as frases,

podem ser repetidas e não se caracterizam como dialógicos. Estão ligadas às relações

semânticas e têm significação. Segundo Fiorin (2008, p. 21), num enunciado “estão presentes

ecos e lembranças de outros enunciados, com que ele conta, que ele refuta, confirma,

completa, pressupõe e assim por diante. Um enunciado ocupa sempre uma posição numa

esfera de comunicação sobre um dado problema”.

As consciências centrípetas não se deixam influenciar por discursos abertos às

novas possibilidades. No nosso mundo interior há o debate dessas vozes sociais, heterogêneas

que vão se colocando ideologicamente para nós. O sujeito não é assujeitado, pois ele participa

desse diálogo de vozes sociais colocando-se como ser singular. A realidade é centrífuga

porque os sujeitos vão se constituindo não organizadamente em torno de um centro único,

mas sim em várias direções.

Se numa sociedade há vários enunciados que ocupam seu lugar, incitando

respostas, ou atitudes responsivas, nesses enunciados atuam forças centrípetas e centrífugas.

As primeiras querem uma centralização do discurso, enquanto a outra se sujeita à dispersão

dele mesmo. “Com os conceitos de forças centrípetas e forças centrífugas, Bakhtin (2006)

desvela o fato de que a circulação das vozes numa formação social está submetida ao poder”

(FIORIN, 2008, p. 31). As vozes estão confinadas a esse exercício, e quando se fala em

dialogismo constitutivo os enunciados são anteriores, do passado. O dialogismo classifica-se,

então, na esfera das relações entre os enunciados, não se revelando claramente no fio do

discurso.

Afirma Brait (2008, p. 106) que “como princípio geral do agir – só se age em

relação de contraste com relação a outros atos de outros sujeitos: o vir-a-ser, do indivíduo e do

sentido, está fundado na diferença”. Brait (2008) esclarece que Bakhtin empregou ao

dialogismo três sentidos, e a primeira implicação foi citada acima.

É importante esclarecer que “o problema do diálogo começa a chamar cada vez

mais a atenção dos linguistas e, algumas vezes, torna-se o centro das preocupações em

linguística” (BAKHTIN, 1981, p. 145). Explica ainda Bakhtin (2006) que a unidade real da

língua é realizada na fala, “não é a enunciação monológica da fala individual e isolada, mas a

interação de pelo menos duas enunciações, isto é o diálogo” (BAKHTIN, 1981, p. 146).

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Sobre a presença de outros no discurso, Bakhtin (1981, p.144) afirma:

o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao

mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação

(...) o discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso e na sua

construção sintática, por assim dizer „em pessoa‟, mas uma unidade integral em

construção. Assim, o discurso citado conserva sua autonomia estrutural e semântica

sem por isso alterar a trama linguística do contexto que o integrou.

Marchezan (2006, p.117) afirma que “o verdadeiro diálogo, o diálogo “real”,

concreto, não é aquele que já se fez letra morta, decorada mecanicamente, repetida sem razão

e sem vontade. Diálogo e enunciado são assim, dois conceitos interdependentes”. Ela ainda

menciona que em um diálogo, sempre há a perspectiva da réplica, numa “alternância de

vozes”. Como também lembra a autora e faz-se necessário registrar “a reflexão bakhtiniana

reúne sujeito, tempo e espaço – e o diálogo o mostra de maneira modelar -, mas,

diferentemente de outras perspectivas, lhes conserva e revela a constituição histórica, social e

cultural, também explorada por meio de conceito de cronótopo”13

(MARCHEZAN, 2006,

p.117).

Com relação à presença ou ausência do outro, Bakhtin fala em sua obra do

espelho gerando a imagem que faço de mim mesmo. Quando eu olho no espelho, não me

vejo, mas vejo a imagem que faço do meu externo. Essa definição também é importante, pois

sabemos que é pela linguagem e pelo outro que nos constituímos. Bakhtin desenvolveu

também, dentro da teoria do romance, a diferença entre autor criador e autor pessoa,

distinguindo as vozes nesses contextos. Portanto, para Bakhtin (1998) a segunda voz que fala

em meu nome é o autor criador. Não há julgamentos das vozes que se expressam. Nesse

contexto chamamos de autor-contemplador, o leitor.

Para Bakhtin o romance é inconcluso, assim como a vida e a linguagem. Da

vinculação às filosofias da existência também decorre o fato de que o pensamento de Bakhtin

é radicalmente histórico e hermenêutico. Para Bakhtin viver é posicionar-se diante de valores.

Nós nos constituímos e agimos sempre num universo de valores. Viver para Bakhtin é

responder, é assumir, a cada momento, uma posição diante de valores, viver é participar desse

diálogo inconcluso que constitui a vida humana. A dialogia é, portanto fundante do nosso ser

no mundo e da nossa própria consciência, conviver é assumir posição de valores e responder

13 Cronótopo – “Cronótopo e exotopia são dois termos que falam da relação tempo-espaço. O primeiro foi

concebido no campo restrito do texto literário; o segundo se refere à atividade criadora em geral” (BRAIT, 2006,

p. 95).

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ao mundo, ter uma atitude responsiva (apud Pernambuco, 2009)14

. “Ser significa ser para o

outro, e através dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e

sempre na fronteira, olhando para dentro de si, ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do

outro”. (BAHKTIN, 2006, p.341)

A expressão consciência individual é, na concepção bakhtiniana, uma

contradicto in adjecto, porque a consciência é sempre plural, no sentido de que é povoada por

diversas vozes sociais que ali estão como efeito do nosso existir no diálogo. Uma resposta ao

outro ou uma resposta a mim mesmo: heteroglossia, plurivocalidade. Mas a consciência de

cada um não é um mero repositório dessas vozes, um tesouro acumulado. A consciência é um

universo em movimento contínuo, na medida em que funciona sob o comando da dialogia. A

consciência é então plurivocal (heteroglóssica) porque a sociedade em que ela se constitui e

vive é plurivocal (heteroglóssica).

Para Bakhtin (2006) não interessa a língua no seu estatuto, isto é como

gramática, sistema de signos (ou sistema de signos), embora ele a reconheça como relevante.

Ele deixa-a para os linguistas. Interessa-lhe as manifestações verbais concretas (ora chamadas

de enunciados, ora chamadas de texto, na costumeira variabilidade terminológica

característica desse pensador e mesmo por ele reconhecida).

As vozes sociais são complexos verbo-axiológicos (completos de valores) cuja

existência decorre do fato inescapável de que as nossas relações com o mundo ao mesmo

tempo em que o refletem, o refratam. Nossa cognição é necessariamente historicizada e

semioticizada. Em conjunto com essas vozes sociais há uma heterogeneidade axiológica.

Definem-se como dialogização essas vozes sociais, pela boca dos falantes. São contatos

contínuos e múltiplos na imensa teia dialógica (heteroglossia dialogizada).

Em cada uma de suas manifestações verbais, ele se coloca diante da

necessidade de se orientar ativamente nessa rede plurivocal, de ocupar uma posição, de eleger

uma voz social, de construir relações dialógicas, de orquestrar dialogicamente a

plurivocalidade social. Mesmo quando selecionamos palavras, estruturas sintáticas, recursos

coesivos, não o fazemos tendo como referência o estoque da língua, mas os valores que

impregnam estes elementos linguísticos no contexto em que estamos. São o que chamamos de

forças centrípetas e centrífugas. Como a consciência linguística é plurivocal e sua atividade

verbal depende, a cada vez, de um posicionamento diante da heterogeneidade, o autor do texto

14 Anotações feitas em aulas do curso O Texto em Perspectiva Dialógica ministrado por PERNAMBUCO,

Juscelino no ano de 2008-2009, na Universidade de Franca no curso de Mestrado em Linguística.

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não se confunde com a pessoa física que o enuncia, mas é entendido como uma função interna

do texto, como o elemento ordenador da totalidade de sentido do texto. Para se transformar

em autor, a pessoa física tem de assumir sempre uma posição axiológica, fruto de uma escolha

entre as muitas que transitam em sua consciência, isto é, tem de assumir uma voz social. A

partir dela, construirá seu produto verbal, mobilizando enunciados heterogêneos vindos de

diferentes vozes sociais que ressoarão explicitamente e/ou implicitamente no texto.

Organizará esses enunciados e responderá a eles de diferentes modos15

.

Todo texto é então, marcado pela bivocalidade, isto é, pela voz que o ordena e

pelas vozes mobilizadas que ali ressoam:

minha última palavra carece de todas as energias conclusivas e positivamente

afirmativas, é esteticamente improdutiva. Nela eu me volto para fora de mim e me

entrego ao perdão do outro (é o sentido da confissão da hora da morte). Sei que

também há no outro a mesma loucura da não-coincidência de princípio consigo

mesmo, esse mesmo inacabamento da vida, mas para mim esta não é a última

palavra dele, não é para mim que ela soa: eu estou situado fora dele, e a palavra

última e conclusiva me pertence. Essa palavra é condicionada e exigida pela minha

distância concreta e plena com relação ao outro, pela distância no tempo, no espaço

e no sentido com relação à vida do outro em seu todo, à sua diretriz axiológica e sua

responsabilidade (BAKHTIN, 2006, p. 117).

Para Bakhtin (2006) a língua é uma visão de mundo e se realiza efetivamente

no discurso.

A enunciação é definida como o ato de manifestação, a posição do enunciador

diante do enunciado. A voz que enuncia e o contexto social no qual é enunciado, o extra

verbal é importante para Bakhtin, pois segundo ele não podemos analisar um texto fora do

contexto verbal e não-verbal no qual ele foi proferido.

Os pressupostos teóricos abordados neste capítulo servirão de base para a

análise proposta do corpus desta pesquisa. A teoria será aplicada à medida que se fizer

necessária a aplicação dos pressupostos desenvolvidos e estudados nos primeiros capítulos

desta dissertação.

15 Anotações feitas em aulas do curso O Texto em Perspectiva Dialógica ministrado por PERNAMBUCO,

Juscelino no ano de 2008-2009, na Universidade de Franca no curso de Mestrado em Linguística.

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2.2 INTERTEXTUALIDADE

Pretendemos mostrar na peça A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos a

intertextualidade com a tragédia Grega e com passagens bíblicas. Daí a importância de

tratarmos a intertextualidade com fundamentação na Linguística Textual.

Afirma Koch (2008, p.11) que:

se pretendemos lançar um olhar sobre o fenômeno da intertextualidade, faz-se

necessário ter claro em mente o conceito de texto sobre o qual iremos debruçar, já

que esse conceito não é de consenso não só entre as diferentes disciplinas teóricas

que o tomam como objeto, mas, inclusive no interior da Linguistica Textual, pelo

fato de, nas várias etapas de seu desenvolvimento, ter ele passado por uma série de

transformações, conforme a perspectiva adotada em cada momento.

Retomando as considerações finais do item anterior, ainda se faz necessário

distinguir termos como a intertextualidade e a intratextualidade. Bakhtin (apud Fiorin, 2008,

p. 52) pontua que “há relações entre textos e dentro dos textos”. Portanto, quando há o uso de

discurso direto, indireto e indireto livre, não devemos falar em intertextualidade:

Intertextualidade deveria ser a denominação de um tipo composicional de

dialogismo: aquele em que há no interior do texto o encontro de duas materialidades

linguísticas, de dois textos. Para que isso ocorra, é preciso que um texto tenha

existência independente do texto que ele dialoga (FIORIN, 2008, p.52-53).

Ainda é necessário também explanar e desvendar termos como

autotextualidade, diferenciando-o da intertextualidade. Explica Koch (2008) que, quando

temos num texto citações implícitas ou explícitas de autoria alheia, chamamos de

intertextualidade e quando a autoria é do próprio autor do texto, com co-incidências e

intersecções retomando o texto em questão, chamamos de autotextualidade. De acordo com

Koch (2008, p. 121):

na primeira categorização, quando se trata de autoria alheia, o intertexto, ou seja, as

co-incidências de fragmentos de textos se constroem pela inserção no texto da voz

de um outro locutor, nomeado ou não, e introduzido ou não por expressões

prototípicas (segundo fulano, de acordo com cicrano, etc).

Koch (2008) exemplifica o uso do intertexto de outro autor que não o autor do

texto referido e em contraposição fala do intertexto do mesmo autor, ou intertexto próprio, nas

quais “as co-incidências, ou interseções, são elaboradas pela retomada de segmentos de texto

do próprio autor, numa espécie de autotextualidade” (KOCH, 2008, p.122).

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É relevante destacar a diferença entre alusão e referência nos processos de

referenciação. A referência é feita de maneira explícita, no entanto sem marcas tipográficas,

ela pode ser auto-evidente, dependendo às vezes do conhecimento prévio do leitor. Alguns

autores, entretanto, colocam esse tipo de referência como uma citação não literal, que pode ser

confundida com uma alusão, só que nesse caso há a implicitude de referência. A menção

direta às personagens constitui um caso de intertextualidade explícita por referência. Koch

(2008) esclarece que o intertexto em sentido estrito é uma espécie particular de dialogismo.

Conforme Koch (2008, p. 127) “na alusão, não se convocam literalmente as palavras nem as

entidades de um texto, porque se cogita que o co-enunciador possa compreender nas

entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe sem expressar diretamente”.

Genette16

(apud Koch, 2008) coloca o plágio como o último tipo de

intertextualidade. De acordo com Koch (2008, p.128) “o plágio é uma situação de apropriação

indébita, pois se usa a passagem, que pode ser de extensão variada, do texto de outrem como

se fosse da própria autoria”. Dentro da tipologia proposta por Genette, encerramos essa

primeira discussão acerca da transtextualidade.

Segundo Koch (2008, p. 131):

Genette descreve o segundo tipo de transtextualidade, que chama de

paratextualidade, como o conjunto das relações que o texto “propriamente dito”

estabelece com os segmentos de texto que compõem uma obra – no caso a literária,

à qual toda a classificação do autor se aplica.

Subtítulos, prefácios, posfácios, notas marginais, finais ou de rodapé, epígrafes,

ilustrações e outros sinais que podem estar num texto são chamados de paratexto.

Entendemos assim que alguns dos itens mencionados acima podem se constituir como

intertextualidade, mas nem sempre.

A intertextualidade restrita de Genette (apud Koch, 2008) é tratada como

transtextualidade, e fala das relações entre textos, principalmente quando há a presença de um

texto em outro texto. Mencionam-se as citações com aspas, em negrito ou itálico, com ou sem

referência, nesse caso “elas instruem o co-enunciador a identificar uma divisão de vozes, de

alteridades...” (KOCH, 2008, p. 120). As citações exercem funções discursivas que podem

denotar autoridade e ornamentação. Segundo Koch (2008, p. 120) “uma citação apropriada

pode cumprir o objetivo de reforçar o efeito de verdade de um discurso, autenticando-o”.

16 Gérard Gennette

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A intertextualidade restrita de Genette também inclui a intertextualidade

implícita, na qual são feitas alusões às vozes, e o enunciador pode ser genérico. Ainda sobre

esse tipo de intertextualidade Koch (2008) menciona a intertextualidade com intertexto alheio,

com intertexto próprio e com enunciador genérico. Ainda assim, dependendo se a autoria é ou

não marcada, temos a intertextualidade explícita e implícita, como já explicado anteriormente.

Conforme Koch (2008, p. 124) “a intertextualidade explícita seria marcada por um código

tipográfico ou por uma menção, enquanto que a implícita dependeria exclusivamente do leitor

para recuperá-la”.

Já a arquitextualidade está ligada à estrutura e superestrutura do texto, se assim

podemos dizer, seu tipo ou gênero, grosso modo. O termo se distancia da intertextualidade

em sentido estrito, pois se caracteriza com uma espécie de filiação do texto a outros textos,

como em alguns documentos que se autonomeiam, como por exemplo, uma declaração ou

requerimento. No próprio título vemos aparecer a designação do que vem a ser o que vai ser

lido, por exemplo: “Soneto da Separação, de Vinícius de Moraes”. Usualmente um texto não

informa o tipo que é, portanto, quando o faz, podemos dizer que houve uma

arquitextualidade. Explica Koch (2008, p. 132) que:

o fenômeno não constitui exatamente uma intertextualidade, isto é, uma relação

entre textos, mas se configura isto sim, como um processo de enquadramento de um

texto em outras instâncias ou categorias maiores, como o gênero e o discurso. A

competência sobre a arquitextualidade contribui, no entanto, para que se possa

identificar a intertextualidade intergenérica.

Nos estudos desenvolvidos por Genette (apud Koch, 2008), podemos explicitar

ainda a metatextualidade, que é uma relação de comentário ou crítica que junta um texto ao

outro que dele fala. Essa crítica vem, às vezes, como forma de alusão; podemos chamá-la,

então, de processos intertextuais de presença. Há também que se destacar que essa

metatextualidade pode se classificada como intertextualidade temática, pois estamos lidando

com temas concernentes à mesma área, é preciso atentar-se, no entanto, ao fato de que, apesar

de poderem ser parecidas, não são a mesma coisa.

Koch (2008, p. 134) ainda explica que:

Genette constata que, por vezes, são as indicações paratextuais que revelam o

gênero ou o discurso a que o texto pertence. Nota-se que o autor já admitia que os

tipos de transtextualidade não eram mutuamente excludentes e que alguns se

mostravam essenciais para a definição do outro. O prefácio e o posfácio de uma

obra, por exemplo, que seriam manifestações de paratextualidade, também se

construiriam como um metatexto, ou seja, como um comentário crítico sobre a obra,

que por sua vez, se estranha de citações, de referências, de alusões.

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Genette (apud Koch, 2008) apresenta o último tipo de transtextualidade que é a

hipertextualidade que se descreve por uma relação de derivação. Um texto deriva de outro

anterior de forma direta ou indireta, pela transformação ou imitação. Segundo Koch (2008, p.

135) “é dessa relação entre o texto-fonte, que Genette chamou de hipotexto e o texto derivado,

que tratou por hipertexto”. Hoje essa terminologia mudou completamente e o termo hipertexto

é usado no sentido inverso que Genette usava. Dentro da arquitextualidade há uma espécie de

filiação do texto a outras categorias, como o tipo de discurso, o modo de enunciação, o gênero

e outras, nas quais o texto se insere e por isso sua unicidade.

Veremos a seguir outros tipos de intertextualidade e como ela se manifesta.

De acordo com Koch (2008) a intertextualidade pode acontecer entre universos

discursivos diferentes, como por exemplo, a televisão e o cinema. E completa esclarecendo

que há relação intertextual com outros textos/discursos relativamente autônomos. É o que

Véron17

(apud Koch 2008) chama de intertextualidade profunda. Também podemos encontrar

a intertextualidade de caráter tipológico, que abrange as propriedades formais ou estruturais,

comuns a gêneros ou tipos de texto, por isso o nome relacionado à tipologia. Koch (2008, p.

75) afirma que:

a intertextualidade tipológica decorre do fato de se poder depreender, entre

determinadas sequencias ou tipos textuais - narrativas, descritivas, expositivas, etc.,

um conjunto de características comuns, em termos de estruturação, seleção lexical,

uso de tempos verbais, advérbios (de tempo, lugar, modo, etc.) e outros elementos

dêiticos, que permitem reconhecê-los como pertencentes a determinada classe.

Ainda sobre a intertextualidade tipológica, dentro da divisão proposta,

encontramos a seguinte explicação, segundo Koch (2008):

As sequências narrativas são a sucessão temporal/causal de eventos. Há sempre

um antes e um depois. Há predominância de verbos de ação, bem como advérbios. Há a

presença do discurso relatado: indireto, direto e livre.

Nas sequências descritivas há a caracterização pela apresentação de

propriedades, qualidades, elementos componentes de uma entidade, sua situação no espaço,

etc. Há predominância dos verbos de estado e situação, ou aqueles que indicam propriedades,

qualidades, atitudes, que aparecem no presente quando é um comentário e no tempo

imperfeito quando é um relato. Predominam articuladores de tipo espacial/situacional.

17 Eliseo Véron

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Nas sequências expositivas há a análise ou sínteses de representações

conceituais numa ordenação lógica. Os tempos verbais são os do mundo comentado e os

conectores, predominantemente do tipo lógico. Já nas sequências injuntivas são apresentadas

prescrições de comportamento ou ações ordenadas, tendo como marcas os verbos no

imperativo, infinitivo ou futuro do presente, e articuladores adequados ao encadeamento

sequencial de ações prescritas. As seqüências argumentativas stricto sensu apresentam uma

ordenação ideológica de argumentos nas quais predominam elementos modalizadores, verbos

introdutores de opinião, operadores argumentativos, etc.

Koch (2008, p. 62) também define a intertextualidade em sentido restrito como

“a relação de um texto com outros textos previamente existentes, isto é, efetivamente

produzidos.” Ainda esclarece, que “a intertextualidade stricto sensu ocorre quando, em um

texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória

social de uma coletividade...” (KOCH, 2006, p. 146). Essa intertextualidade é explícita

quando aparece em textos em que há a referência das citações, seja ela oral ou escrita,

referindo-se aos autores do discurso registrado ou não, e implícita quando essa referência ou

retomada não existe, “cabendo ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido

do texto, como nas alusões, na paródia, em certos tipos de paráfrase e na ironia” (KOCH,

2008, p. 63). Neste caso, o leitor/ouvinte recorre a sua memória discursiva, assim como a

memória que se refere ao conhecimento de mundo, ou enciclopédica. As manifestações da

intertextualidade, em seus vários aspectos, nos servem de guia na construção da coerência de

um texto, visto que está ligado a fatores extras para sua compreensão.

Com relação ao tema, de acordo com Koch (2008, p. 18):

a intertextualidade temática é encontrada, por exemplo, entre textos científicos

pertencentes a uma mesma área do saber ou uma mesma corrente de pensamento,

que partilham temas e se servem de conceitos e terminologia próprios, já definidos

no interior dessa área.

Quando falamos de intertextualidade estilística não queremos nos referir à

forma do texto, mas sim quando o autor repete ou imita estilos linguísticos. Conforme Koch

(2008, p. 19) “são comuns os textos que reproduzem a linguagem bíblica”.

Há também a intertextualidade genérica, intergenérica ou intergenerecidade,

que é entendida como a penetração de um gênero em outro, tornando o texto um texto híbrido.

Os gêneros de discurso se definem como uma forma composicional, de conteúdo temático,

estilo e circunstância de uso e propósito comunicativo. O leitor ativa sua memória para

reconhecer e construir sua intimidade com cada um destes textos, mesmo que de forma

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inconsciente. Quando os reconhecemos e fazemos uso desses gêneros de maneira adequada,

chamamos esse processo de competência metagenérica.

De acordo com Koch (2008, p. 64):

os modelos de contexto, portanto, são usados para monitorar os eventos

comunicativos. Eles representam as intenções, propósitos, objetivos, perspectivas

expectativas, opiniões e outras crenças dos interlocutores sobre a interação em curso

ou sobre o texto que está sendo lido ou escrito, bem como sobre propriedades do

contexto tais como tempo, lugar, circunstância, condições, objetos e outros fatores

situacionais que possam ser relevantes para a realização adequada do discurso.

Apoiamo-nos em Koch (2008) para completar essas elucidações sobre a

intertextualidade quanto às suas semelhanças e diferenças. Quando falamos em

intertextualidade de semelhanças, referimo-nos ao texto incorporado no intertexto para que a

ação argumentativa se faça presente, Maingueneau (apud Koch, 2008) menciona o valor de

captação nesse tipo de recurso. Nesse caso podemos pensar em paráfrases, enunciados

paródicos e/ou irônicos, apropriações, formulações de tipo concessivo; na intertextualidade

implícita com valor de subversão, a descoberta do intertexto é crucial para a construção de

sentido, por serem esses trechos de obras literárias, de músicas populares, ou textos de ampla

divulgação, provérbios, ditos populares, entre outros.

Quanto à intertextualidade de diferenças, o texto incorpora outro texto, e

Maingueneau (apud Koch 2008, p. 123) explica que neste caso temos o valor de subversão.

Isso acontece porque a intertextualidade de diferenças se propõe a ridicularizar, ironizar ou

questionar o texto que a usou. De acordo com Koch (2008, p. 123): “saliente-se que, ao

contrário dos tipos até então examinados, este se deixa guiar por um olhar mais funcional, em

direção a certos propósitos argumentativos elaborados em um dado gênero afinado a um dado

discurso”.

Existe também o tipo de intertextualidade chamado de détournement.

Sobre o termo détournement, Koch (2006) acha prudente não traduzi-lo para

explicar os diversos tipos de desvio na intertextualidade. Esse termo é usado, segundo Koch

(1991), por Grésillon e Maingueneau (1984, p. 537):

para designar a alteração (na forma e no conteúdo) de provérbios ou frases feitas, a

título lúdico ou militante, com o objetivo de captação ou, mais comumente de

subversão. Trata-se de uma estratégia comum na publicidade e bastante frequente

em outras formas de linguagem, como por exemplo, o humor e a música popular.

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Détournement é a produção de um enunciado que produz as marcas linguísticas

de uma enunciação proverbial, mas que não pertence ao estoque de provérbios conhecidos,

portanto, consistindo um détournement de tipo lúdico ou militante. Segundo Koch (2008, p.

45) esse jogo de palavras visa a “levar o interlocutor a ativar o enunciado original para

argumentar a partir dele; ou então de ironizá-lo, ridicularizá-lo, contraditá-lo, adaptá-lo a

novas situações, ou orientá-lo para outro sentido, diferente do sentido original”.

Os tipos de détournement organizados por Koch (2008) são os seguintes:

substituição de fonemas; acréscimo de formulação adversativa; supressão; transposição, de

provérbios; de textos ou títulos de textos literários; de provérbios, frases feitas, clichês,

passagens bíblicas; de hinos e canções populares e por fim, de fábulas tradicionais. Não nos

aprofundaremos nesse tipo de intertextualidade, pois não usaremos na nossa análise, que

ficará restrita à intertextualidade stricto sensu (temática, estilística, explícita e implícita),

intertextualidade genérica, a tipológica, a de diferenças e semelhanças. Apontaremos o

détournement na peça de Clarice Lispector no que se refere ao uso de frases bíblicas que ela

usa em determinados momentos, especificando este uso dentro de outros tipos de

intertextualidade.

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3 O TEATRO E A BÍBLIA

“Tragédia é a representação de uma ação elevada,

de alguma extensão e completa,

em linguagem adornada,

distribuídos os adornos por todas as partes,

com atores atuando e não narrando;

e que, despertando piedade e temor,

tem por resultado a catarse dessas emoções.”

(ARISTÓTELES, Poética, VI – 26)

Conhecer o teatro e suas características é essencial para complementação do

entendimento desta pesquisa, visto que trataremos do dialogismo e da intertextualidade de

uma peça teatral escrita na modernidade e verificaremos a intertextualidade com uma tragédia

da Grécia antiga e com a Bíblia. Neste capítulo abordaremos o teatro e a seguir o teatro de

Clarice Lispector, de uma maneira sucinta escreveremos sobre sua origem e organizaremos as

características e temas das peças escritas na Grécia. Destacaremos alguns autores para

demonstrar suas temáticas e linhas de pensamento com o objetivo de analisar a peça de

Clarice Lispector, comprovando que ela buscou o mesmo caminho traçado pelos primeiros

escritores da história da literatura greco-latina.

3.1 AS TRAGÉDIAS GREGAS

A tragédia grega nasceu do culto ao deus Dionísio. Há várias histórias

mitológicas que circundam a vida de Dionísio. A tragédia e a comédia nasceram para que o

povo tivesse oportunidade de ver atos da vida cotidiana ou histórias que pudessem suscitar o

terror e a piedade encenados. Os tragediógrafos de destaque são: Ésquilo, Sófocles,

Eurípedes.

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Classificam-se as características da tragédia por: presença de um fator

transcendental; unidade de salvação e aniquilamento: o herói, com a intenção de salvar-se,

acaba sendo responsável pelo seu fim; clima de tensão permanente e indícios do final trágico.

Algumas peças são compostas por mais de um ato. As tragédias Gregas

Clássicas, segundo Aristóteles (2003), apresentam: o prólogo, o episódio e o êxodo. Segundo

ele, a parte do coro se divide em pároclo e estásimo. A ordem seria o prólogo precedendo o

pároclo (primeira entrada do coro), seguido de cinco episódios alternados com os estásimos e

a conclusão com o êxodo, a intervenção final do coro, que não era cantada.

O ato é definido por Vasconcellos (1987, p. 58-59) como:

a maior subdivisão de uma peça. Trata-se de uma convenção cuja principal

característica é a interrupção do espetáculo. A primeira referência à divisão de uma

peça em atos foi feita por Horácio (65 a C. -8ª C.) na “Ars Poética” e de forma

bastante dogmática: “uma peça (...) deve possuir cinco atos – nem mais nem menos”

(transcrito por Bernard Dukore, Dramatic Theory and Criticism, p. 71). É possível

que esse número tenha sido sugerido pela estrutura da COMÉDIA NOVA, que se

supõe tenha sido organizada em cinco cenas, mas esta é uma mera conjetura. O fato

é que a regra horaciana foi observada por Sêneca e transformada em norma a partir

do TEATRO RENASCENTISTA. Algumas variações no número de atos ocorreram

de lá para cá, sendo que no século XIX, principalmente por influência das peças de

Henrik Ibsen (1828-1906), foi refixado o número ideal de atos em três. O século XX

tem-se mostrado bastante liberal e diversificado quanto à fixação de número e

mesmo quanto ao uso da divisão em atos.

A tragédia surge com a comédia, no teatro grego, porém possuía um caráter

nobre dentro das comemorações ao deus da fertilidade, pois capturava a essência humana e a

sua relação com os sentimentos profundos de amor, ódio, medo e traição. A comédia surgiu

das canções fálicas e tratava de assuntos do cotidiano, da vida comum dos homens. As

tragédia é constituída pelo o mito, o caráter, o pensamento, a linguagem, a melodia e a

encenação e suas unidades dividem-se em tempo, espaço e ação.

O herói trágico era apresentado sempre como um exemplo a ser seguido em

certas características, mas não em outras. Surge quando o Estado começa a utilizar o teatro

para fins políticos de coerção do povo. Não podemos esquecer que o Estado, diretamente ou

através de mecenas, pagava as produções. O herói, ao contrário do que se pensa, não possuiu

somente um bom caráter, ele pode estar envolvido com a purificação do seu erro, e retidão de

conduta com seus ideais.

Na construção do personagem e da sua atuação encontramos dois aspectos:

ethos e dianóia. Juntos constituem a ação desenvolvida pelo personagem. São inseparáveis,

porém, poderíamos dizer que o ethos é a própria ação e a dinóia a justificação dessa ação, o

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discurso. O ethos também pode ser definido como o conjunto de faculdades, paixões e

hábitos. No ethos do herói trágico, todas as tendências devem ser boas, menos uma. Apenas

uma tendência deve ser má, reprovável e condenável. É o que se chama harmatia. Como dito

acima, o herói pode errar. Esclarece Vasconcellos (1987, p. 167) que:

Reconhecimento é o termo correspondente ao grego anagnorisis. Segundo

Aristóteles (384-322 a.C.), o reconhecimento é um dos elementos essenciais para

que uma TRAGÉDIA possua uma AÇÃO COMPLEXA. O reconhecimento é a

parte que “faz passar da ignorância ao conhecimento” (cap. XI da Poética, p. 282)

Trata-se do reconhecimento do erro que originou a AÇÃO do personagem, ou de sua

“HARMATÍA”. Conhecendo a verdade dos acontecimentos, menos um detalhe

importante, o personagem trágico estabelece sua ação; num determinado momento

ele é elevado a reconhecer aquele erro, o que provoca a mudança no curso da ação

(PERIPÉCIA) e o leva ao sofrimento (CATÁSTROFE).

Concluindo, a harmatia é conhecida também como uma falha trágica. É a única

impureza que existe no personagem. A harmatia é, portanto, a única coisa que pode ser

destruída, para que a totalidade do Ethos do personagem se conforme com a totalidade do

Ethos da sociedade. Nessa confrontação de Ethos (individual e social) a harmatia é causadora

do conflito. É a única tendência que não se harmoniza com a sociedade, com o que quer a

sociedade.

A empatia, no teatro, é a relação emocional que se estabelece entre personagem

e espectador. Esta relação tem características bem definidas: o espectador assume uma atitude

passiva e delega o poder de ação ao personagem. Como o personagem se parece a nós

mesmos, como indica Aristóteles, nós vivemos, de certa maneira, tudo o que vive o

personagem. Sem agir, sentimos que estamos agindo; sem viver sentimos que estamos

vivendo. Amamos e odiamos quando ama e odeia o personagem. A empatia opera

fundamentalmente em relação ao que o personagem faz, a sua ação, ao seu ethos. Mas existe

igualmente uma relação empática diano-ética: dianóia-razão (personagem – espectador), que

equivale à relação ethos-emoção. O ethos estimula a emoção e a dianóia estimula a razão.

Assim, entende-se que personagem e platéia comungam dos mesmos sentimentos. Para a

construção de personagens que possam causar sentimentos tão opostos e vindos da vida real,

precisamos analisar como isso acontece. Por isso o autor busca a completude de seus

personagens, em sua criação.

Quando tratamos de personagem, o arquétipo, termo mais moderno também

explorado no teatro, importante para conceituarmos os tipos criados ao longo da história do

teatro e dos personagens criados por Clarice Lispector em A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos. Então, arquétipo de acordo com Vasconcellos (1987, p. 22) é:

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termo usado pela CRÍTICA literária para se referir às imagens psíquicas oriundas do

inconsciente coletivo, conforme mencionado por Karl Jung (1825-1861). O conceito

de inconsciente coletivo implica duas operações básicas: a retenção, pela memória,

de “imagens primordiais” gravadas através de um processo de repetição por nossos

ancestrais e a expressão dessas imagens em forma de MITO, RITUAL, RELIGIÃO,

etc. O resultado dessas operações constitui um arquétipo. Um arquétipo, pois, atinge

ondas profundas da emoção humana porque se relaciona às imagens conservadas

pela memória inconsciente. Na opinião do crítico Northrop Frye (1912) que foi

quem formalizou essa conceituação em termos de crítica literária, o mito é a mais

essencial das imagens-arquétipo.

Não há como explicar a gênese do trágico sem passar pelo elemento satírico.

Por sátiro entendemos, dentro da mitologia helênica, entidades naturais metade humanas e

metade bode.

O princípio da tragédia já aparece na história do representante que merece o

culto da explicação primeira da tragédia. A vida de Dionisio, ligada a traições de seu pai e de

morte e compaixão, já demonstra algumas das características presentes na tragédia. Zeus

apaixonou-se por Sêmele, uma simples mortal, que se tornou mãe do segundo Dionísio. O

primeiro Dionísio era filho de Zeus e Perséfone. Dionísio estava predestinado a suceder o pai

no governo do mundo, mas a esposa ciumenta Hera tenta impedir, então, Zeus deixa Dionísio

aos cuidados de Apolo e Curetes, que o criaram nas florestas do monte Parnaso. Hera

descobre e encarrega os Titãs de raptá-lo. Apesar de várias metamorfoses, Dionísio é

devorado pelos Titãs, mas seu coração se salva. Sêmele engole o coração e torna-se grávida

do segundo Dionísio. Dionísio tem mais de um nome, encontramos os seguintes: Iaco, Zagreu

ou Baco. Hera, ao saber do nascimento do segundo Dionísio, e dos amores de Zeus e Sêmele,

resolve eliminá-la. Zeus termina de gerar Dionísio em sua coxa. Nascido o filho, Zeus o

confiou aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros do monte Nisa. Certa vez, Dionísio espremeu o

suco de umas frutas que nasciam por ali em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de

sua corte. O vinho acabava de nascer. Bebendo-o, dançavam e ficavam embriagados.

Por ocasião da vindima (colheita da uva), celebrava-se a cada ano, em Atenas,

a festa do vinho novo, em que os participantes se embriagavam e começavam a cantar e

dançar vertiginosamente, à luz se tochas, até caírem desfalecidos. Esses adeptos do deus do

vinho disfarçavam-se de sátiros, que eram concebidos pela imaginação popular como

„homens-bodes‟. Teria nascido assim o vocábulo tragédia.

Outros acreditam que tragédia vem do fato de sacrificarem um bode a Dionísio,

pois fugindo dos Titãs, o deus ressuscita na figura de trágos theios, de um bode divino.

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Seu séquito era composto por diversas figuras míticas dentre elas Sileno, as

Bacantes e os Sátiros, que o acompanhavam carregando troncos de videira, coroas de hera,

taças cheias de vinho, cachos de uva e o tirso enlaçado com folhagens. As Bacantes ou

Mênades eram as jovens que envolvidas por uma loucura mística, pareciam tomadas pelo

deus; Sileno vivia embriagado e era dotado de grande sabedoria e do dom da vidência; os

Sátiros simbolizavam as forças incontroláveis da natureza vegetal e animal. Deus do êxtase e

do entusiasmo, Dionísio levava com seu cortejo alegria e felicidade por toda a Grécia onde

também era considerado protetor das belas artes.

No estado de vertigem que se encontravam após a bebida, acreditava-se que

eles saíam de si mesmos, numa superação da condição humana, num processo de entusiasmo.

O homem, simples mortal, em êxtase e entusiasmo, comungado com a imortalidade, tornava-

se anér, isso é herói, um varão que ultrapassou o métron, a medida, e ultrapassando-a o anér é

um ipso facto, um hypócrites, ou seja, aquele que responde em êxtase e entusiasmo em nome

de um outro, o ator. Essa ultrapassagem do métron pelo hypócrites é considerada uma

violência feita aos deuses e a si próprio, o que provoca a fúria dos deuses, então, contra o

herói é lançado a ira da Moira, ou seja, do destino cego. O maior legado deixado pelos gregos

são as tragédias.

Na tragédia, um herói luta contra um fator transcendental que controla o fluxo

dos acontecimentos. Tamanha é a força desse fator, que sempre chegamos a um final trágico:

o herói sofre todas as consequências por tentar controlar o poderoso destino ou o fado.

Segundo Aristóteles (2003, p. 35):

falemos da tragédia e, segundo o que deixamos dito, formulemos a definição de sua

essência própria. A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de

certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de

suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa,

mas por atores, que suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a

purgação dessas emoções.

A tragédia possui, então, um fator transcendental, um destino, comandado por

forças superiores (em alguns casos deuses), há uma unidade de salvação e aniquilamento: o

herói, com a intenção de salvar-se, acaba sendo responsável pelo seu aniquilamento; clima de

tensão permanente e indícios do final trágico: diferentemente do dramático, não há

ambiguidade em relação ao fim, desde o início há a ameaça da catástrofe que acaba sendo

inevitável.

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A tragédia tem sua origem no mesmo contexto em que surgiu o teatro, quando

os rituais primitivos eram o elo entre homens e deuses. Esses rituais eram realizados em

forma de catarse, na qual todos os praticantes se envolviam no transe sem distinção de papéis.

Na medida em que os rituais primitivos vão se estilizando e tornando-se litúrgicos, vai

surgindo uma hierarquia, indispensável para a organização dos cultos aos deuses e em se

tratando de teatro ao deus Dionísio. Essa hierarquização vai criando os papéis dos sacerdotes

e celebrantes dos cultos, surgindo nesse processo pessoas centralizadoras do “culto” e as

participantes do mesmo, dando início aos elementos atores e público. A tragédia surge

juntamente com a comédia, no teatro grego, sendo que a primeira possuía um caráter nobre

dentro das comemorações ao deus da fertilidade, capturava a essência humana e a sua relação

com os sentimentos profundos de amor, ódio, medo e traição, enquanto que a comédia surgiu

das canções fálicas e tratava de assuntos do cotidiano, da vida comum dos homens. Acredita-

se que a origem da palavra tragédia tenha vindo de tragos, que em grego significa cabra ou

bode, animal que era sacrificado para o ritual dionisíaco. Há outra possibilidade sobre sua

origem, que poderia ter surgido da palavra tragoi, que em grego significa „adoradores‟ ou

„seguidores de Dionísio‟.

Baseando-se na observação crítica das tragédias, Aristóteles (384-322 AC)

construiu a primeira estética da arte dramática: a Poética.

A tragédia é dividida em seis partes: o mito, o caráter, o pensamento, a

linguagem, a melodia e a encenação; e em três unidades: tempo, espaço e ação.

3.1.1 OS SEIS ELEMENTOS

Mito (enredo ou mythos) é a composição dos atos. O elemento mais importante

da tragédia é a trama dos fatos, pois a tragédia é a imitação de ações e de vida. Na tragédia as

personagens não agem para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas

ações. Por isso ações e mito constituem a finalidade da tragédia. Não é ofício do autor narrar o

mito tal qual aconteceu, mas sim o de representar o que poderia acontecer; os mitos

tradicionais não devem ser alterados mas o poeta deve achar e usar artisticamente os dados da

tradição conforme a verossimilhança e a necessidade. O mito complexo é aquele que a

mudança se faz através do reconhecimento e da peripécia. O reconhecimento é a passagem do

ignorar ao conhecer e peripécia é a mutação dos sucessos no contrário, e essa mutação deve

acontecer de forma verossímil e necessária. A outra parte do mito é a catástrofe, uma ação

perniciosa e/ou dolorosa. Segundo Aristóteles (2003, p.66):

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em toda tragédia há o nó e o desenlace. O nó consiste muitas vezes em fatos alheios

ao assunto e em alguns que lhe são inerentes; o que vem a seguir é o desenlace. Dou

o nome de nó à parte da tragédia que vai desde o início até o ponto a partir do qual

se produza a mudança para uma sorte ditosa ou desditosa; e chamo desenlace a parte

que vai desde o princípio desta mudança até o final da peça. (ARISTÓTELES, 2003,

p. 66).

O caráter surge na tragédia como imitação de uma ação que se executa mediante

personagens que agem e que se apresentam conforme o pensamento e o caráter. As tragédias

devem suscitar a piedade e o terror. O homem não deve ser nem de todo mau, nem de todo

bom, mas um homem que não se distingue nem pela justiça nem pela virtude, pois se cai no

infortúnio é por força de algum erro. Reflitamos sobre quatro importantes pontos sobre o

citado acima: o caráter deve ser bom, deve ser conveniente, ter semelhança e por último a

coerência (e nesse caso se for incoerente, que seja um incoerente coerente – dentro das

possibilidades ditadas como tais).

O pensamento diz respeito a tudo quanto dizem as personagens para

demonstrar suas decisões, inclui todos os efeitos produzidos mediante a palavra; os

personagens podem aceitar ou refutar; daí emoções são despertadas e eles podem majorar ou

minorar o valor das coisas. Na tragédia as ações e as palavras valem muito.

A linguagem ou elocução é o enunciado (em verso ou prosa) dos pensamentos

por meio das palavras. Uma das qualidades essenciais da linguagem é a clareza sem baixeza.

A poesia que se afasta da linguagem vulgar, eleva-se. Clareza e coerência são pontos

primordiais.

As duas últimas partes da tragédia são a encenação e o canto. A encenação ou

espetáculo e a melodia ou melopéia é a ornamentação da linguagem que tem ritmo, harmonia

e canto. A encenação é a mais emocionante das partes da Tragédia. A realização de um bom

espetáculo depende mais do encenador do que do poeta, visto que as palavras que estão no

papel terão que ganhar vida no corpo e voz dos atores. Depende, muitas vezes, do diretor a

beleza do texto teatral, pois é ele que dará vida à encenação proposta no papel. É

responsabilidade do diretor as montagens mais significativas, porém, é evidente que não

estamos desmerecendo o texto dramatúrgico, que é de fundamental importância para a

existência do ato.

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3.1.2 AS TRÊS UNIDADES

O tempo de todas as tragédias é mais ou menos igual. A tragédia procura o

máximo possível, caber em um período solar, ou, pouco excedê-lo; o espaço é a possibilidade

de cenários diferentes, lugares diversos. Na tragédia não é possível representar muitas partes

da ação que se desenvolvem ao mesmo tempo, mas tão somente aquela que na cena se

desenrola entre os atores; na ação não existem enredos paralelos. Para narrar as desventuras

de Édipo e de sua filha Antígona, Sófocles escreveu três peças: Édipo Rei, Édipo em Colono e

Antígona.

Chamamos de uno, o mito (ação), mas não por se referir a uma única pessoa,

pois muitas são as ações que uma pessoa pode praticar. O mito deve imitar as ações que sejam

unas e completas, e todos os acontecimentos devem suceder em conexão tal que, uma vez

suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não

faz parte do todo o que não altera esse todo.

As origens do teatro ou do gênero dramático estão intimamente ligadas ao

sentimento religioso e às atividades rurais. No início do século V, Tépis assumindo o papel de

ator, começou a dialogar com o coro e o corifeu18

, contestando o que estava sendo recitado,

assim surgiu a forma da arte dramática, e os atos de Dionisio passaram a ser não somente

cantados, mas também representados.

Sobre o coro, D‟Onofrio (2007, p. 283) diz que:

Nas peças trágicas da Grécia antiga, o coro, formado por um conjunto de atores,

exerce o papel de uma personagem coletiva que, em oposição ao discurso de caráter

individual das outras personagens, comenta suas ações e seu comportamento à luz

da ciência do povo, ora com substancialidade épica, ora com introspecção lírica.

O lugar de onde se vê é chamado de Théatron. Sobre o lugar de encenação, de acordo

com Vasconcellos (1987, p. 151-152):

A tradição do teatro popular espanhol do período chamado SÉCULO DE OURO não

aponta a existência de um edifício teatral específico. Talvez devido às condições

climáticas favoráveis, talvez a outras manifestações culturais, o fato é que corrales

ou teatros eram construídos no interior dos quarteirões, aproveitando o pátio interno

formado pela fachada de fundo das casas. O termo “pátio”, especificamente, referia-

se ao espaço central, plano que era ocupado pelos espectadores, que ficavam de pé

diante da plataforma de maneira que servia de PALCO. Essa plataforma estendia-se

18 O corifeu, nas antigas tragédias e comedias do teatro grego, era o chefe do coro, aquele que enunciava partes

isoladas do texto. Era um membro destacado do coro, que podia dialogar com os atores. Principal figura do coro.

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de parede a parede do pátio, e era suficientemente grande para abrigar, lateralmente,

fileiras de bancos destinados à parte do público.

Essa primeira forma de arte dramática era chamada de tragoedia (canto do

bode), pois no inverno, durante a colheita da uva, um bode, acusado de ter devorado as

videiras, era sacrificado ao deus Dionísio. Os sátiros se encarregavam do serviço,

perseguindo, agarrando e esquartejando o bode. Sobre a sua pele, os devotos de Baco bebiam

e dançavam até caírem desfalecidos. Enquanto isso acontecia, o coro de sátiros e faunos,

chefiados por um corifeu, cantava um hino religioso, chamado Ditirambo, em louvor a

Dionísio. Conforme Vasconcelos (1987, p. 58-59), Ditirambo era um:

Grupo de cantores ou recitantes que atua em espetáculos de teatro ou de ÓPERA. A

principal característica do coro é falar ou cantar em uníssono. O coro aparece pela

primeira vez no TEATRO GREGO, originário das festividades comunais, báquicas

ou dionisíacas. O coro no teatro representa, em suas origens, esse sentimento

coletivo que deu início à manifestação teatral na Grécia. È o que afirma a

historiadora Margot Berthold ao escrever que “o teatro é uma obra de arte da

sociedade, da comunidade. Nunca, em nenhum outro lugar isso foi tão verdadeiro

quanto na Grécia (...) a multidão congregada no théatron não era apenas

espectadora, mas em sentido literal, participante” (História Social Del Teatro, p.

118). Por outro lado o coro representa também uma herança das raízes literárias do

DRAMA, do DITIRAMBO e do poema épico.

É relevante que saibamos a definição dessas metalinguagens do teatro para

construirmos uma melhor explanação de como Clarice Lispector pode ser considerada

também uma dramaturga:

Como diz Anatol Rosenfeld (apud VASCONCELLOS, 1987, p. 30):

No coro, por mais que se lhe atribuam funções dramáticas, prepondera certo cunho

fortemente expressivo (lírico) e épico (narrativo). Através do coro parece

manifestar-se, de algum modo o „autor‟ interrompendo o diálogo dos personagens e

a ação dramática, já que em geral não lhe cabem funções ativas, mas apenas

contemplativas, de comentários e reflexão.

Assim, por mais que Aristóteles (2003) recomendasse a associação do coro à

ação da peça (cap. XVIII da Poética), a evolução da narrativa fez com que o papel do coro se

restringisse a uma mera decoração para, em seguida, desaparecer. No século XX, é justamente

com o TEATRO ÉPICO que o coro é resgatado como um importante elemento de linguagem

cênica. “No teatro oriental de diversas épocas e culturas, o coro permaneceu sempre um

elemento vital de linguagem do espetáculo” (VASCONCELLOS, 1987, p. 58-59).

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Clarice Lispector faz uso em sua peça do agons, que é definido por

Vasconcellos (1987, p.16) como:

Disputa, competição. Na COMÉDIA ANTIGA, era uma das suas partes

constitutivas, as outras sendo o PRÓLOGO, o PÁRODOS, a PARÁBASIS, e

EPISÓDIO e o KOMOS. O agon consiste num debate entre dois personagens, um

deles frequentemente representando o pensamento do autor. Nesse debate são

avaliados os méritos da ideia central que mobiliza a própria COMÉDIA, e decidida

sua aplicação na prática. O agon, em última instância, representa o princípio que

estabelece a relação de CONFLITO entre os personagens. O agon localiza-se entre o

parados e a parábasis.

Um dos grandes escritores da Grécia antiga foi Ésquilo. É considerado o

primeiro grande autor dramático; nasceu em Êleusis no ano de 525 a.C e por muitas vezes

esteve em Sicília, onde morreu em 456 a.C. Acreditava que o autor era, antes de tudo, um

educador. Sabia ele que se o ator sofresse em cena, isso poderia despertar os sentimentos de

terror e piedade na platéia, proporcionando-lhes o alívio ou a purgação de sentimentos. A

catarse, então, aconteceria.

Ésquilo, o primeiro autor a introduzir um segundo ator nas representações,

escreveu mais de oitenta obras dentre as quais se destacam: Os persas (472), Os sete contra

Tebas (467), As suplicantes (acredita-se que seja de 463), Prometeu acorrentado (de data

desconhecida e autenticidade duvidosa) e as três peças da Oréstia (458): Agamenon, As

coéforas e As Eumênides. Catarse pode, dessa maneira, ser definida como:

Termo empregado por Aristóteles (384-322 a.C.) para definir a finalidade última da

TRAGÉDIA como sendo a purgação ou purificação das emoções de TERROR e

COMPAIXÃO (cap. VI da Poética). A complexidade de determinar um significado

preciso para tal conceito está relacionada tanto a problemas de tradução quanto a

problemas de interpretação. Catársis, em grego, na verdade, pode significar tanto

“purgação”, no sentido médico de limpeza do corpo, como “purificação”, no sentido

religioso de limpeza do espírito. Dessa ambiguidade de sentidos nasceu a eterna

polêmica em torno do assunto (VASCONCELLOS, 1987, p. 38).

Durante muito tempo acreditou-se que as trilogias articuladas, ou seja, três

tragédias de uma mesma lenda seguidas de um drama satírico existiram desde a origem do

teatro. Essa teoria começou a ser questionada a partir do momento em que As suplicantes não

foram mais consideradas como a mais antiga obra de Ésquilo. Por isso, alguns estudiosos

acreditam que foi Ésquilo quem instituiu as trilogias ou tetralogias articuladas. A única

trilogia completa de Ésquilo que conhecemos é a Oréstia. Por meio dela pode-se tentar

compreender um pouco o pensamento desse autor, sobretudo porque ela foi escrita pouco

antes de sua morte.

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Outro autor de destaque é Sófocles que nasceu em Epidauro, e além de exercer

uma brilhante carreira dramática, dedicou-se às atividades atléticas, à música, à política, ao

militarismo e à vida religiosa. Era considerado o continuador da obra de Ésquilo, concentrava

em suas obras a ação em um só personagem destacando o caráter e os traços de sua

personalidade. Ele sempre se preocupou em descobrir uma solução mais profunda para os

problemas que as peças anteriores não resolviam por completo. Sófocles, que segundo

Aristóteles mostrava o homem como ele deveria ser, escreveu várias peças dentre as quais se

destacam: Filoctetes (409), Édipo em Colona (401), Édipo Rei, que, segundo Freud representa

o "drama de todos nós", Antígona, Traquinianas, Os investigadores e Ajax. Conseguiu o

primeiro lugar em vários concursos dramáticos e escreveu, aproximadamente, cento e vinte

peças, das quais só ficaram sete tragédias. As centradas no mito de Édipo são as mais

importantes.

Pouco se sabe sobre a origem de Eurípedes que é considerado como o homem

que revolucionou a técnica teatral, pois não tinha a mesma preocupação com o destino como

tinha Ésquilo e os seus personagens não eram heróis, como os inspirados nas obras de

Homero. Tentou mostrar o homem como ele realmente é, ou seja, quase sempre perverso e

fraco. Devido a essa preferência é possível a elaboração de uma lista de obras com datas

quase precisas, são elas: Alceste (438), Medéia (431), Hipólito (428), Hécuba, Os Heráclidas,

Andrômaca, Héracles, As suplicantes, Íon, As troianas (415), Eletra, Ifigênia em Táurida,

Helena (412), As fenícias, Orestes (408), As bacantes, Ifigênia e Áulis, Ciclope (com data

desconhecida). A obra Medeia é um drama de amor e paixão. E essa é a grande diferença que

existe entre as obras de Eurípedes e as de Ésquilo e Sófocles. Na obra de Ésquilo o amor é

praticamente nenhum. Em Sófocles ele geralmente fica em segundo plano. No entanto, em

Eurípedes ele é essencial e chega às últimas consequências, ou seja, a vingança e a morte. Em

Eurípedes ainda encontramos a loucura, que pode ser vista na obra Héracles:

A Orestia de Ésquilo, encenada em 458 a.C., consta de três tragédias de assunto

correlato: Agamêmnom, Coéforas e Eumênides. É a única trilogia ligada, como já se

mencionou, que nos chegou do Teatro Grego. Sófocles e Eurípedes hão de focalizar

o mesmo assunto em uma única tragédia: Electra. Por aqui se pode ver a diferença

básica entre os três grandes trágicos: Ésquilo elabora suas personagens em função da

fábula e, por isso mesmo, suas tragédias nunca têm um fim, constituindo-se

realmente numa obra aberta; em Sófocles e Eurípedes, ao revés, o drama completa-

se, já que a fábula existe em função das personagens (BRANDÃO, 1884, p.22, 23).

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Entendemos a importância destas informações para estarmos familiarizados

com termos teatrais e com os autores das peças que serão mencionadas no corpus dessa

pesquisa.

3.2 A PEÇA E A BIBLIA

A palavra bíblia é de origem grega e significa Livro, ou melhor, livros. Desde os

primeiros tempos do cristianismo, este vocábulo, junto com outros dois: Escritura e

Escrituras Sagradas, era usado para designar o conjunto dos livros que contêm a

revelação divina. Aplica-se, pois, o nome de Bíblia ao volume que reúne a coleção

desses livros e que representa o livro divino por excelência. Embora trate de

diferentes argumentos e seja escrita por diversos autores, em língua e estilos

diferentes, a Bíblia tem, por força da inspiração divina, Deus como seu único autor,

e goza do princípio ao fim de uma mesma inconcussa autoridade divina (Bíblia

Sagrada19

, 1964).

Considerado o livro mais importante na história e na história da literatura, a

Bíblia já foi motivo de controvérsias, mortes e guerras. O objetivo da Bíblia é ensinar aos

homens como se portarem de acordo com a moral religiosa. Em relação ao adultério, que é do

que trata a peça que estamos estudando, o que a Bíblia diz é o seguinte: “o fim da Sagrada

Escritura é o amor de Deus e do próximo. Por isso não compreende bem o texto sagrado

aquele que, ao lê-lo tira conclusões que vão de encontro a este duplo amor” (Bíblia Sagrada,

1964, p. 16). O termo Bíblia tem origem no grego Biblos e foi usada somente a partir do ano

200 d.C. pelos cristãos.

Na literatura, a Bíblia serve de base para histórias, pois trata de temas como

amor, morte, paixão e traição. Através dos tempos, a Bíblia tem sido a base inspiradora de

muitas obras literárias. Sendo considerado um livro sagrado e o mais respeitado no mundo

todo, a Bíblia continua sua tradição de trazer-nos com estilo e linguagem própria o que

consideram ser a palavra de Deus.

A Bíblia é dividida em Novo e Velho ou Antigo Testamento. O Novo

Testamento (escrituras Gregas) é o nome dado à parte da Bíblia que foi escrita após o

nascimento de Jesus. Conforme a tradução de 1964 (SOARES, p.9):

19 Bíblia Sagrada, tradução de Soares, 1964.

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A Bíblia considerada como um único livro divide-se - depois de Tertuliano – em

duas grandes partes, chamadas Antigo e Novo Testamento. À primeira secção

pertencem os livros escritos antes de Cristo; à segunda os livros escritos depois. O

Antigo Testamento é a coleção dos livros sagrados que contém a história da aliança

contraída por Deus com Abraão e o seu povo, as condições e as leis desta aliança.

Anuncia e prepara o advento ao Redentor. O Novo Testamento expõe a história da

nova aliança contraída por Jesus Cristo com os homens e sancionada com o seu

sangue, as principais condições e leis desta aliança. Jesus Cristo, centro e objeto de

toda a Bíblia, está entre os dois Testamentos.

O termo Novo Testamento é uma tradução do Latim Novum Testamentum. As

bem-aventuranças são oito ensinamentos que, de acordo com o Novo Testamento, Jesus

Cristo pregou na montanha. O Antigo Testamento ou Escrituras Hebraicas constituem a

primeira grande parte da Bíblia Cristã.

Segundo o Concílio de Trento20

, os livros da Bíblia são setenta e três: quarenta

e seis do Antigo Testamento e vinte e sete do Novo. Esses livros são divididos em três

classes: livros históricos, didáticos (doutrinais e morais) e proféticos. Na Bíblia precisamos

estar atentos aos sentidos literal ou histórico – que pode ser metafórico ou não – e o sentido

típico ou espiritual nela colocados. De acordo com a tradução de Soares (1964, p. 13): “o

sentido típico se divide em dogmático (impropriamente dito: alegórico), quando aponta

verdades para crer; moral ou antropológico, quando indica a prática a ser seguida; anagógico,

quando registra os bens eternos que devemos alcançar”. Os teólogos costumam colocar mais

um sentido na Sagrada Escritura que é o sentido consequente deduzido dos raciocínios sobre o

estudo da Bíblia.

O Pentateuco é o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia que são: o

Gênesis, o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuterômio. O autor do Pentateuco é Moisés.

Relataremos a história de Judá e Tamar, que tem traços semelhantes com a história de Clarice

Lispector, e pode ter sido a fonte inspiradora da peça escrita por ela.

A história que se passa é a seguinte (GÊNESIS, 1964):

20 Um Concílio consiste numa reunião geral dos representantes máximos da Igreja Católica. No caso do

Concílio de Trento, presidido pelo Papa Paulo III teve inicio em 1545 na cidade italiana de Trento, e teve

como objetivo encontrar respostas para os problemas colocados pelos protestantes e pelos humanistas. Das

conclusões saídas do Concílio de Trento destaca-se a centralização de poderes no Papa que passa a ser

considerado como "Pastor Universal da Igreja" sendo-lhe atribuída toda a supremacia em matéria de

dogmas e de disciplina. Por outro lado, foram estabelecidas diversas normas para evitar abusos e luxos do

clero. Em suma, o Concílio de Trento conferiu à Igreja Católica um perfil mais centralizado e autoritário,

constituindo uma importante ação reformadora afim de limitar os abusos e a degradação dos costumes e

impedir o avanço do protestantismo.

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Esta história põe em cena dois filhos de Judá, Her e Onan. Tendo Her falecido

sem descendência, Judá mandou o seu outro filho, Onan, cumprir o seu dever, que era,

segundo a regra do levirato (Deuterônimo: 25, 5-10), "desposar" a mulher do seu falecido

irmão afim de dar a esta um filho homem que seria considerado como filho e continuador do

irmão defunto que assim não ficaria sem descendência. Ora, Onan, sabendo que a

descendência que iria suscitar seria sempre do seu irmão e não sua "cada vez que se unia à

mulher do seu irmão, derramava por terra," como diz pudicamente uma tradução portuguesa

do texto Hebreu (Bíblia de Jerusalém). Yahweh, a quem o texto atribuíra já a decisão da

morte de Her, fica descontente com o comportamento de Onan e mata-o também. Judá diz à

sua nora Tamar que regresse a casa dos seus pais até que o seu outro filho, Sela, tenha idade

para cumprir ele a regra do levirato. Passaram-se muitos dias e a mulher de Judá morreu.

Depois do luto, este deslocou-se a Tamnas para a tosquia das ovelhas. Informada do fato, e

considerando que ainda não fora "dada como mulher" ao filho sobrevivente de Judá, Sela,

apesar de este já ter idade para isso, Tamar deixou as suas roupas de viúva, cobriu-se com o

véu e sentou-se na entrada de Enaim, que estava no caminho de Tamnas. Vendo-a, Judá

tomou-a por uma prostituta, pois ela cobrira o rosto. Dirigiu-se a ela no caminho e disse:

Deixa-me ir contigo! Judá prometeu um cabrito à "desconhecida" em paga do serviço sexual

e, como penhor, esta exigiu-lhe o seu cajado e o seu selo. Tamar ficou grávida de Judá que,

entretanto, tentou em vão recuperar o seu cajado e o seu selo. Três meses depois, vieram dizer

a Judá que Tamar tinha se prostituído e ficado grávida. A reação de Judá foi imediata: "Tirai-a

fora e seja queimada viva!" Naturalmente, Tamar confrontou Judá com o seu cajado e o seu

selo e este reconheceu: "Ela é mais justa do que eu, porquanto não lhe dei meu filho Sela."

A análise do texto acima com a Pecadora de Clarice acontece em três aspectos.

O primeiro é a ignorância do amante quanto à condição da Pecadora, tanto na história de

Tamar e Judá quanto na história da peça. Os amantes não sabem a procedência de seu objeto

de desejo. No caso de Tamar, ela não revela sua identidade à Judá, somente no final,

mostrando-lhe o cajado e o selo; e em A Pecadora, o amante desconhece que a protagonista

seja casada, alegando ignorância na hora do julgamento. O segundo aspecto é o da traição em

si. E não apenas da traidora com relação aos seus amantes, mas também no fato de não se

desnudar diante deles completamente, pois esconde segredos, não se revela toda. As mulheres

nas duas histórias concretizam o ato da falha moral e de caráter. O terceiro aspecto recai na

força masculina, neste caso, no poder do cumprimento do destino. Em ambas as histórias a

decisão do destino das pecadoras está nas mãos das personagens masculinas. O masculino é

destacado como o que contem o poder da decisão, o que decide, e nas duas histórias vemos

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isso se concretizar. É relevante destacar também o desejo pela queima das pecadoras em

ambas as histórias, com a diferença que na Pecadora ele se cumpre, enquanto que na narrativa

de Judá e Tamar isso não acontece por causa da gravidez. Etimologicamente, Tamar significa

permanecer ereto, traduz-se também como palmeira , tamareira; e essa contradição do nome

com o ato também é levada em conta quando observamos o fato da Pecadora ser casada no

drama de Clarice Lispector e no fato de Tamar engravidar do próprio sogro. Quando Judá

soube que Tamar estava grávida, primeiro ordenou que ela fosse apedrejada e, depois,

queimada. A semelhança nas histórias nos leva a credibilidade de que Clarice lispector não se

isentou do texto Bíblico para dar suporte à sua peça teatral, e buscou, indubitavelmente um

canal de comunicação entre a Bíblia e seu drama.

Compreendemos qual é a moral da história no seu contexto, que é o do

Pentateuco ou Tora (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento dos cristãos). O

comportamento de Onan é considerado reprovável não por quaisquer considerações de moral

sexual, no sentido estrito, mas por constituir uma infração, então, para ser queimada, no

oriente as faltas das mulheres contra os bons costumes foram sempre severamente punidas.

Tamar estava noiva de Sela e, por isso foi condenada por Judá, que tinha direito de fazê-lo

como chefe de família. (SOARES, 1964, p. 60).

Clarice Lispector inspira-se na Bíblia para produzir seu texto teatral, e para

embasar as falas do Sacerdote, representante da igreja. Discutiremos, mais adiante, como isso

ocorre e de que maneira a Bíblia aparece nas falas desse personagem, de forma direta ou

indireta. O Sacerdote busca uma base para seus dizeres, e é nas falas da Bíblia que ele a

encontra. Esse personagem tão complexo criado por Clarice Lispector tenta buscar o que é

seu, ou sustentar-se num discurso que segure os ímpetos de seus desejos. A constituição de

vozes nesse contexto, expressada pelo personagem do Sacerdote, deixa claro o princípio

básico de que todo ser humano está em constante formação e transformação. As atitudes

responsivas do Sacerdote vão delimitar e definir sua importância e presença na peça.

Explicaremos no próximo capítulo como isso acontece.

Santa Tereza D‟Ávila ou Santa Tereza de Jesus também é citada literalmente

na peça. Outros personagens importantes também são reconhecidos no texto, como Maria de

Magdala, e lugares como Sodoma e Gomorra.

Assim vemos uma produção que buscou nos textos religiosos uma parceria

para que construísse uma rede de significados mais abrangente quanto ao sustentáculo da

intertextualidade. Nos personagens masculinos a tríade poderosa que dá suporte à crítica aos

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modelos de penalidade e conduta na sociedade. Na personagem feminina uma figura que,

apesar de calada, muito tem a dizer. São personagens que vão se definindo pelas falas dos

outros personagens num jogo de intriga e poder sutil, mas muito significativo.

Clarice Lispector ao apresentar seus personagens masculinos e dar a eles falas

que definem a Pecadora, usa o polissíndeto, que é o emprego repetitivo de uma conjunção

entre as orações:

AMANTE: É aquela irrevelada que só a dor aos meus olhos revelou. Pela primeira

vez, amo. Eu te amo.

ESPOSO: É aquela a quem o pecado tardiamente me anunciou. Pela primeira vez eu

te amo, e não à minha paz.

POVO: É aquela que na verdade a ninguém se deu, e agora é toda nossa

(LISPECTOR, 2005, p.62).

A presença masculina na peça, define claramente a crítica feita por Clarice

Lispector, conforme Gomes (2006, p. 37):

O polissíndeto intensifica a necessidade de um esposo, de um amante, de um

sacerdote e de um povo sem os quais não haveria o erro, ou seja, o ato é pecaminoso

graças a um sacerdote – representante da lei religiosa, que dita mandamentos como

“não trairás”, “não cobiçarás a mulher do próximo” – e ao Povo que os segue. E

nesse jogo silogístico que Clarice desenvolve uma tragédia contemporânea em que o

teor da crítica está nas entrelinhas, no silencioso, mas ao mesmo tempo nas intensas

falas-monólogos dos personagens masculinos.

Desse modo, acreditamos que a peça escrita por Clarice Lispector, apesar de

conter somente quatorze páginas, um tamanho considerado pequeno para uma peça de teatro,

nos trará um estudo revelador no que diz respeito à intertextualidade e aos diálogos que

estabelece com outros textos.

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64

4 DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADE NA PEÇA TEATRAL CLARICIANA

4.1 O TEATRO DE CLARICE

Clarice Lispector é conhecida no meio literário como uma autora de romances,

contos e crônicas. Sua única produção teatral publicada que é intitulada A Pecadora

Queimada e os Anjos Harmoniosos tem sido pouco estudada e discutida por especialistas da

área. Nosso objetivo neste capítulo é analisar a intertextualidade e o dialogismo na peça com

as tragédias gregas e a bíblia.

A autora escreve a peça entre 1948 e 1949, mas recusa-se a republicá-la, pois

acredita que não há qualidade para tanto. De acordo com Gomes (2006, p.21) “a consideração

pejorativa da própria autora e a exclusão do texto das edições posteriores talvez expliquem a

pouca atenção que o texto tenha despertado nos estudos críticos dedicados ao seu trabalho”.

De acordo com Montero (2006), a peça teria outro título, O coro dos Anjos, e

esse texto foi enviado a João Cabral de Melo Neto para que fosse publicado em sua prensa

manual em Barcelona. Mencionando Montero, Gomes (2007, p. 116) afirma que “acredita a

organizadora que O Coro dos Anjos é o texto que será publicado como A Pecadora Queimada

e os Anjos Harmoniosos e parece confirmar essa hipótese com algumas coincidências”.

Apesar de Clarice Lispector considerar o texto ruim, João Cabral parece querer animá-la com

a possibilidade de publicação. Em algumas edições podemos ler mais sobre o assunto:

Talvez por considerar A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos um texto

“horrível”, Lispector exclui a ideia das edições posteriores de A legião estrangeira.

E até mesmo quando os textos de “Fundo de Gaveta” foram publicados

separadamente em livro intitulado Para não esquecer (1978) a exclusão foi mantida.

(GOMES, 2007, p. 117).

Clarice Lispector considerava essa escrita um divertimento e, apesar disso, o

resultado foi uma tragédia de um ato só, publicada, segundo Gomes (2007), em Fundo de

Gaveta, segunda parte da primeira edição do livro de contos e crônicas A Legião Estrangeira

(1964).

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Sobre o Fundo de Gaveta, o que Clarice Lispector (1964, p.127) diz é o

seguinte:

Por que tirar do fundo de gaveta, por exemplo, „a pecadora queimada‟ escrita apenas

por diversão enquanto eu esperava o nascimento do meu primeiro filho? Por que

publicar o que não presta? Por que o que presta também não presta. Além do mais, o

que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo

carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um

pequeno vôo e cai sem graça no chão.

Clarice Lispector, embora não quisesse, permitiu a publicação da peça em

1964. Ela chamava de Fundo de Gaveta o que escrevia e achava que não tinha qualidade para

ser levado ao público. Quando Clarice Lispector diz “por que o que presta também não

presta” ela está levando em consideração a relatividade das produções e essa discussão

encerra-se na sua simples necessidade de escrever, como ela mesma deixara claro tantas

vezes.

A peça tem um tom medieval, e é interessante pensarmos no estado mental de

Clarice Lispector na época em que ela a escreveu (diz que se sentia “imobilizada” e

“isolada”), especulando se o que diz sobre sua estada em Berna (1946-1949) onde a peça foi

escrita e onde seu primeiro filho, Pedro, nasceu, revela algo sobre a origem da mesma. Em A

Descoberta do Mundo, “Lembrança de uma fonte, de uma cidade,” 14 de fevereiro, 197021

, há

indícios do modo como essa peça foi escrita. Esta crônica, além de enfatizar a infelicidade de

Clarice Lispector, também discute as qualidades de Berna, e mais diretamente, de como de

sua casa, numa rua chamada Justiça (Justice), via-se uma estátua de um juiz segurando a

balança da justiça e uma espada em julgamento dos reis subjugados que talvez tenham pedido

clemência. Como um lugar, Berna é também o assunto em muitas outras crônicas de Clarice

Lispector. Conforme Gomes (2006, p. 25) sobre a produção da peça:

Em clima medievalesco e silêncio perturbador, a solidão, o sentimento de prisão e

segregação são os mesmos elementos que compõem a tragédia “A Pecadora

Queimada e os Anjos Harmoniosos”. Do clima medievalesco, temos um texto que se

assemelha a uma tragédia, com sacerdote, anjos invisíveis, anjos nascendo, anjos

nascidos, guardas e coro, entre outros personagens. Preceitos religiosos a vinculam

ao teatro religioso medieval.

Em entrevista, Clarice Lispector declara o seguinte (MONTERO e MANZO,

2005, p. 139 - 140), sobre uma outra tentativa de escrever textos teatrais:

21 Publicação de 1999, pela editora Rocco.

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Marina Colasanti: Você também escreveu uma peça de teatro, não é isso?

Clarice Lispector: Quando tinha nove anos, eu vi um espetáculo e, inspirada, em

duas folhas de caderno, fiz uma peça em três atos, não sei como. Escondi atrás da

estante porque tinha vergonha de escrever

Affonso Romano de Sant‟Anna: Qual era o nome dessa peça?

Clarice Lispector: E eu me lembro?...Ah, Pobre menina rica, que não tem nada a ver

com a peça de Vinícius.

A ligação de Clarice Lispector com o teatro revela-se em suas entrevistas,

contos e romances, em que explicitava sua paixão por esse gênero, deixando clara sua

intimidade com peças, autores e platéia. Não se julgava uma dramaturga, expressando por

vezes seu sentimento de esforço para entender os gêneros, renegando-os, muitas vezes.

Sentia-se livre para a criação, no entanto. Entendia a dificuldade da escrita e nunca

negligenciou o ato de que precisava escrever para sobreviver.

Como registrado em crônicas, segundo Gomes (2006, p. 24):

Clarice Lispector se sentia “presa”, “segregada” e quando menciona o processo da

escrita de “cidade sitiada” (mesmo ano da produção da Pecadora Queimada e os

Anjos Harmoniosos) ela diz: “minha gratidão a este livro é enorme: o esforço em

escrevê-lo me ocupava, salvava-me das ruas de Berna...”.

A peça A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos realmente é um achado

para o universo literário. Clarice Lispector empresta seu talento para produzir a peça. Ela

mesma não acreditava que pudesse produzir um texto teatral, como revelou quando disse que

deixaria o texto no Fundo da Gaveta; e segundo alguns estudiosos, essa peça é apenas um

esboço. Varin (2002, p.17) assim o define: “O único texto de Clarice aparentado como uma

escrita para teatro é, na realidade, um esboço de uma peça teatral”. Entretanto, a verdade é

que o que temos em mãos é uma peça teatral completa, escrita em apenas um ato. De acordo

com Gomes (2006, p.23) Clarice estava sendo “diretamente teatral”, quando escreve A

Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos.

3.3.1 RESUMO DA PEÇA

O texto é uma pequena tragédia, em um ato, vivida por uma mulher, a

protagonista sem nome e sem fala, que comete adultério e por isso vai ser queimada. O Povo

faz parte de seu julgamento, os Guardas a conduzem, os Anjos relatam os acontecimentos

enquanto Esposo e Amante falam de sua dor, e o Sacerdote lidera a condução dos episódios,

pois é o responsável pelo julgamento.

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Podemos assim resumir a tragédia: uma mulher trai o marido e ele a denuncia.

Essa mulher é levada a julgamento em praça pública, sob o olhar do Povo, dos Guardas, do

Sacerdote e dos Anjos. O Amante diz não saber do fato de a mulher ser casada, e o Sacerdote

conduz o julgamento, como observamos acima. Os Anjos preconizam o início e o fim da

peça, como se fossem o coro das tragédias gregas. A presença dos Anjos é marcada com o „vir

a ser‟ profetizado por eles.

No começo, os Anjos anunciam o início da peça, e preveem que o que tem que

ser feito será feito, o que significa a força do destino recaindo sobre os personagens. O destino

é fator relevante nas tragédias gregas e já observamos sua presença na peça de Clarice

Lispector. A inevitabilidade do destino é constatada no texto.

O Sacerdote então dá sua palavra, como representante da Igreja; palavra, no

entanto, que deixa dúbia interpretação, e a Pecadora entra em seguida escoltada por dois

Guardas. Os personagens Povo, Criança com Sono e Mulher comentam sua entrada. Os

Guardas apresentam-se como defensores da ordem e da paz e cumpridores do que terá que

ser. A partir daí, Esposo, Amante, Sacerdote e Anjos que se submetem à mudança necessária

para “virem a ser”, vão se colocando em seus papéis, revelando suas opiniões e desejos no

julgamento da Pecadora. Somente ela se cala, não expressando, exceto por um sorriso, o que

lhe vai por dentro, os seus sentimentos.

Como essa mulher que era casada pode cometer adultério? Não há detalhes

sobre essa traição, apenas sabemos que ela aconteceu, porque o marido a denuncia e ela vai

ser julgada. A peça toda gira em torno do julgamento da Pecadora, num lugar que Clarice

Lispector denomina pátio. O motivo da traição não é esclarecido, e a Pecadora não se

pronuncia verbalmente, não há falas para seu personagem. O Sacerdote toma a frente do

julgamento, expressando as opiniões que lhe cabem, e a posição da igreja perante o fato.

Apesar de não haver registros na história de mulheres que tenham sido queimadas por causa

de traições conjugais, há fatos que nos mostram a fogueira sendo o algoz de mulheres que

demonstram ter qualquer poder sobrenatural. Clarice Lispector faz uma crítica velada às

instituições religiosas com sua peça, usando as incoerências de sentimentos do Sacerdote, que

se revela humano acima de tudo; mostrando um Esposo que parece se arrepender de tê-la

denunciado e um Amante que também se sente traído, pois não sabia que a Pecadora era

casada. Ao final, a Pecadora é queimada para pagar por sua traição, segundo GOMES (2006,

p. 37):

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Deduz-se da tragédia de Clarice, que a traição numa relação adúltera envolve não só

marido, esposa e amante, mas também aqueles que subordinados à moral cristã,

consideram o ato como pecaminoso. Essa dedução pode ser confirmada pela fala da

mulher do povo: “Ei-la a que errou, a que para pecar de dois homens e de um

sacerdote e de um povo precisou”.

O texto mostra contradições dos personagens e um jogo de poder existente

entre eles, a morte e o renascimento são apresentados pela Pecadora e pelos Anjos

respectivamente.

A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos foi produzida, ao mesmo

tempo em que Clarice Lispector também escreveu A cidade sitiada (maio de 1948), quando

estava em Berna, na Suíça. O texto tem característica ou menções à Idade Média, talvez

porque Clarice Lispector tenha sido influenciada por essas paisagens.

Essa peça traz a presença do coro, característica de textos teatrais da

antiguidade grega, pois em forma de proclamação dos personagens, eles tomam o papel para

si, debatendo as atitudes da Pecadora durante seu julgamento. Fitz (1997, p. 25)22 menciona

que “quase totalmente desprezado no crescente corpus de estudos críticos devotados aos seus

trabalhos A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos – o mais prematuro conhecido

esforço de Clarice Lispector na literatura dramática – vale a pena a atenção do leitor”.

O ensaio citado acima e traduzido por nós no ano de 2009 revela uma análise

profunda da peça de Clarice, que iremos citar no nosso trabalho, mas que merece leitura mais

aprofundada de quem se interessar pelo tema.

Giovanni Pontiero verteu o texto para o inglês com o nome de The Burned

Sinner and the Harmonious Angels. Moser (2009, p. 192) na mais recente obra sobre Clarice

Lispector escreve:

Talvez tenha sido as notícias das aventuras teatrais de Lúcio23

que inspiraram

Clarice, nos últimos dias dela na Suíça, a escrever “O coro dos anjos”, mais tarde

publicado como “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”. Ou a peça deve ter

sido inspirada por um outro amigo, o poeta Pernambucano João Cabral de Melo

Neto, que começou uma prensa na Espanha pelo seu diplomático posto, e estava

ansioso para ter alguma escrita de Clarice publicada. “Eu ainda estou esperando pelo

Coro dos Anjos”, ele escreveu no começo de 1949. “Você fala dele tão

fabulosamente que minhas expectativas estão crescendo”. Ele nunca o publicou e

22 Earl escreve este ensaio sobre a Pecadora Queimada no ano de 1997. O ensaio está em inglês e trabalhamos

em sua tradução nos meses de Abril, Maio e Junho de 2009. “Entre as escassas menções a essa tragédia

clariciana, destaca-se o ensaio de Earl E. Fitz, publicado na revista Luso Brasileira Review, intitulado “A

Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos: Clarice Lispector as a Dramatist”. Seu autor inicia lamentando

justamente o fato de que o referido texto seja quase esquecido pelos estudiosos da obra de Clarice (GOMES,

2007, p. 119). 23

Lúcio Cardoso, escritor.

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provavelmente nunca o viu até que a peça apareceu em 1964 publicada na Legião

Estrangeira. (...) esta é a única incursão de Clarice na dramaturgia. Apesar de Nicole

Algranti, produzi-lo em 2006, “A Pecadora” não parece destinada aos palcos, por

causa de seu tamanho (treze páginas), com um ritmo e linguagem bíblica que

também são únicos em sua obra, a peça nos conta de uma mulher condenada à

morte. Seu pecado é banal 24

.

A montagem produzida por Nicole Algranti contou com outros textos de

Clarice Lispector. Segue abaixo o cartaz da montagem produzida em 2006 por Nicole

Algranti:

Disponível em http://www.jbrj.gov.br/divulga/pecadoras3.jpg

24 “Perhaps it was news of Lúcio‟s new theatrical venture that inspired Clarice, toward the end of her time in

Switzerland, to write “The Choir of Angels”, later published as “The Burned Sinner and the Harmonious

Angels” or the piece may have been inspired by another friend, the Pernambuco friend José Cabral de Melo

Neto, who had started a small press from his diplomatic post in Spain and was eager to have something from

Clarice ...” (MOSER, 2009, p. 192). Trecho traduzido também por nós no ano de 2009.

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3.3.2 ESTRUTURA DA PEÇA

Clarice Lispector revela que sua história se passa num pátio. Vale a pena

ressaltar que a terminologia “pátio” não foi escolhida aleatoriamente. Pátio, neste caso,

lembra aquelas grandes praças onde os pecadores, traidores e outros eram julgados: “Fui eu

aquele que incitou a palavra do sacerdote e juntou a tropa deste povo e despertou a lança dos

guardas, e deu a este pátio tal ar de glória que abate muros” (LISPECTOR, 2005, p. 60). Na

obra norte americana, The Scarlet Letter, de Nathaniel Hawthorne, que conta a história de

uma mulher que trai o marido com o ministro da igreja, pensando que o marido estivesse

morto, a protagonista Hester Pryne é julgada em praça pública e o povo manifesta suas

opiniões ali mesmo, num local aberto onde todos podem expressar o que sentem, exceto, é

claro, o traidor25

. Esse tipo de intertextualidade com outros discursos relativamente

autônomos, entre universos discursivos diferentes é chamada de intertextualidade profunda.

Essa obra também trata do afrontamento dos personagens com relação às instituições da

Igreja.

Clarice Lispector situa os personagens do Povo como verdadeiros

espectadores, colocando-os no lugar da platéia propositadamente, chamando de pátio este

lugar: “e deu a este pátio tal ar de glória que abate estes muros. Ah, esposa ainda amada, desta

invasão eu queria estar livre. Sonhava estar só contigo e recordar-te nossa alegria passada”.

(LISPECTOR, 2005, p. 60)

O motivo central da peça vem da dualidade expressada pelo modo como a

personagem-protagonista concebe o humano em confronto com os pensamentos do Esposo

traído, do Amante e do Sacerdote. Os personagens não têm nome e são conhecidos como:

Amante, Esposo, Pecadora, Criança com Sono, Mulher do Povo, Povo, Personagem do Povo,

Mulheres do Povo, Sacerdote, Anjos Invisíveis, Anjos nascendo/nascidos, Primeiro Guarda e

Segundo Guarda. Acreditamos que a ausência de um nome os coloca na posição ideológica26

25 The Scarlet Letter é um livro de Nathaniel Hawthorne publicado nos Estados Unidos em 1850.

26 As questões que tratam do estudo da ideologia estão abordadas de forma mais ampla e aprofundada no livro

Marxismo e a Filosofia da linguagem e também no livro Problemas da Poética em Dostoiévski,e ainda se acham

em todos os escritos atribuídos ao Círculo de Bakhtin (MIOTELLO, 2008, p. 167).

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de portadores de uma classe social, representada pelas vozes que lhes fazem jus. Menciona

Fitz (1997, p. 25) que:

com somente quatorze páginas, mas engajando não menos que treze personagens ou

vozes, constitui um experimento clariceano com um modo diferente de expressão,

uma tentativa que permitiria a ela se dirigir de uma maneira das mais explícitas

politicamente (gênero, sexualidade e poder) que deu forma ao seu trabalho, embora

indiretamente, até esse ponto.27

O fato de a Pecadora não ter falas a deixa à mercê do julgamento dos

personagens citados acima, e vamos conhecendo um pouco de sua história e traição pelos

flashbacks oferecidos ao longo da narrativa. É uma peça curta que começa com os anjos

invisíveis situando os acontecimentos:

ANJOS INVISÍVEIS: Eis-nos quase aqui, vindos pelo longo caminho que existe

antes de vós. Mas não estamos cansados, tal estrada não exige força e, se vigor

reclamasse, nem o de vossa prece nos ergueria. Só uma vertigem é o que faz

rodopiar aos gritos com as folhas até a abertura de um nascimento. Basta uma

vertigem, que sabemos? Se homens hesitam sobre homens, anjos ignoram sobre

anjos, o mundo é grande e abençoado, seja o que é. Não estamos cansados, nossos

pés jamais foram lavados. Grasnando a esta próxima diversão, viemos sofrer o que

tem que ser sofrido, nós que ainda não fomos tocados, nós que ainda não somos

menino ou menina. Ei-nos nas malhas da tragédia verdadeira, da qual extrairemos a

nossa forma primeira. Quando abrirmos os olhos para sermos os nascidos, de nada

nos lembraremos: crianças balbuciantes seremos e vossas mesmas armas

empunharemos. Cegos no caminho que antecede os passos, cegos prosseguiremos

quando de olhos já vendo nascermos. Também ignoramos a que viemos. Basta-nos a

convicção de que aquilo a ser feito será feito: queda de anjo é direção. Nosso

verdadeiro começo, e nosso verdadeiro fim será posterior ao fim visível. A

harmonia, a terrível harmonia, é o nosso único destino prévio (LISPECTOR, 2005,

p. 57).

A ação dramática já acontece nos primeiros momentos, com o posicionamento

dos Anjos perante o julgamento da Pecadora. A cena é marcada pelo argumento de autoridade

do Sacerdote, dirigindo-se às pessoas na praça, que servirão de testemunhas: “SACERDOTE:

No amor pelo Senhor não me perdi, sempre seguro no Teu dia como na Tua noite. E esta

simples mulher por tão pouco se perdeu, e perdeu sua natureza, e ei-la a nada mais possuir e,

agora pura, o que lhe resta ainda queimarão.” (LISPECTOR, 2005, p. 57).

27 “running only some fourteen pages but engaging no fewer than thirteen separate personages or voices,

constitutes an early Lispectorian experiment with a different mode of expression, one that would allow her to

address in a much more explicit fashion three of the most politically charged issues (gender, sexuality and

power) that had informed her work, albeit indirectly, up to this point.” (FITZ, Earl E. A Pecadora Queimada e os

Anjos Harmoniosos: Clarice Lispector as a Dramatist. Luso Brazilian Review, v.3, p. 25, 1997).

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Os personagens entram em cena na sequência que se segue: Anjos Invisíveis

(que anunciam o início de tudo), Sacerdote, a Pecadora, cercada de dois guardas que a trazem

(Primeiro e Segundo Guardas), Povo (pessoas que conclamam sua chegada), Criança com

sono, Mulher do Povo, Esposo, Amante, Anjos nascendo, Mulheres do Povo, Personagem do

Povo e Anjos Nascidos.

Nada se opõe aos argumentos do Sacerdote, mas ele mesmo põe em dúvida seu

julgamento, por proclamar-se humano acima de tudo: “o Senhor apontou-me para pecar mais

que aquela que pecou, e afinal consumirei minha tragédia. Pois foi de minha palavra irada que

Te serviste para que eu cumprisse, mais do que o pecado, o pecado de castigar o pecado”.

(LISPECTOR, 2005, p. 58).

O Sacerdote coloca-se, nesse momento, na posição de humano, falível, como a

Pecadora. As representações ideológicas são claramente expostas no julgamento,

contrapondo-se poucas vezes, e são relevadas pelas falas dos anjos. A argúcia do discurso do

Sacerdote revela os ideais da Igreja em contraposição aos sentimentos humanos. Há uma

defrontação considerada no dialogismo bakhtiniano como uma atitude responsiva. Por atitude

responsiva, podemos entender a relação entre o homem habitado pelo signo e ideologicamente

marcado pelas estruturas sociais e o mundo habitado por ele. O diálogo é criado nesta situação

e é ele que gera a possibilidade da modificação restrita. Entendemos, portanto, que o discurso

é um espaço marcado por diversas vozes vindas de outros discursos (BAKHTIN, 2006).

O Povo toma o lugar do que na tragédia grega conhecemos pelo coro. O coro e

o corifeu são representados na peça de Clarice Lispector pelos Anjos e pelas pessoas do povo

(mulher, povo e criança com sono). O corifeu é o membro mais importante do coro e pode

dialogar com os atores. Assim como no teatro grego, o coro é parte relevante, pois estabelece

com o público o momento da “comunicação”. O coro, como observamos anteriormente, é

colocado nas falas dos Anjos e do Povo, que o representam. Esses, por sua vez já num

primeiro momento colocam-se como procuradores de emoções, “de alimento”: “POVO: Há

dois dias temos fome e aqui estamos a buscar alimento” (LISPECTOR, 2005, p. 58). Na peça

Édipo Rei, quando Édipo começa a descobrir quem ele realmente é, o corifeu serve de guia e

base para sua descoberta: “Ah, sofrimento horrível para os olhos, o mais horrível de todos que

eu já vi! Ah! Que loucura, infortunado Édipo, que tombou neste momento sobre ti? Que

divindade consumou agora teu trágico destino inelutável...” (SÓFOCLES, 1989, p. 87).

A peça de Clarice Lispector possui aspectos que revelam a intertextualidade

com a tragédia grega. Ela também possui os agons, que são representados pelas discussões

entre os personagens. Gomes explica (2007, p. 124) que:

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Clarice foge à divisão aristotélica da tragédia clássica – Prólogo, Êxodo e Coral (este

dividido em Párado e Estásimo) – apesar de apresentar uma ação completa com

começo, meio e fim, colocando em cena a trajetória de uma mulher que passa „da

felicidade para o infortúnio‟, preceito aristotélico para a tragédia.

A interferência citada pela autora como um “sorriso” é um dos agons da peça.

O agons pode significar também luta. Sobre a ação, de acordo com Aristóteles (2003, p. 39):

Após estas definições, diremos agora qual deve ser a tessitura dos fatos, já que este

ponto é a parte principal da tragédia. Assentamos ser a tragédia a imitação de uma

ação completa formando um todo e de certa extensão, pois um todo pode existir sem

ser dotado de extensão. Todo é o que tem princípio, meio e fim (...), portanto, para

as fábulas sejam bem compostas, é preciso que não comecem nem terminem ao

acaso, mas que sejam estabelecidas segundo as indicações necessárias.

A protagonista aceita com resignação seu destino, sem defender-se, e suas

expressões faciais demonstram que não se importa com o que está sendo dito em seu

julgamento, ou que está tratando com ironia o próprio destino: “CRIANÇA COM SONO: Ela

está sorrindo.” (LISPECTOR, 2005, p. 64). O enredo dramático é montado de forma a

elucidar as expressões da protagonista pela fala das outras personagens da peça: “ela está

sorrindo”. Apesar do silêncio constante da Pecadora, conhecemos suas expressões que são

narradas pelos personagens secundários: “AMANTE: (...) Por que estranha graça o pecado

abjeto transfigurou-te nesta mulher que sorri cheia de silêncio?” (LISPECTOR, 2005, p.64)

ou ainda: “ESPOSO: Como te reconhecer, se sorris toda santificada?” (LISPECTOR, 2005, p.

65).

O tema tratado por Clarice Lispector discute a traição, a ambiguidade humana

e as contraposições dos personagens. O trabalho do dramaturgo é revelar a universalidade de

temas diversos e no texto de Clarice Lispector a autora chega a isso, pois ela nos faz

mergulhar em sentimentos distintos. O espectador de teatro, diferentemente do telespectador e

do espectador de cinema, irmana-se com as personagens e com a energia do lugar, e dos

outros espectadores ali presentes, além da energia posta à prova. A esta troca de energia e

identificação chamamos de catarse.

Quanto ao tema e ao tratamento do mesmo na peça, temos o princípio da

composição de uma crítica aos preceitos da Igreja como instituição. Nem mesmo o Sacerdote

se exclui da possibilidade de pecar e diz isso, como que questionando o ato humano do

julgamento. O ato de, em tendo pecados também, ser capaz de julgar alguém. Quem então

estaria apto a julgar os outros? Segundo Fitz (1997, p. 26) “por uma série de motivos,

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relacionados à temática e ao formalismo, “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”, um

drama vago e lacônico, representa a trágica consequência de uma sociedade que julga seus

cidadãos por uma perspectiva corrupta e miserável”28

. De acordo com Aristóteles (2003),

Ésquilo aumentou o número de personagens usados nas peças para permitir conflitos entre

eles; anteriormente, os personagens interagiam apenas com o coro. Na peça de Clarice

Lispector, os personagens quase não interagem entre si, usando mais de reflexões

“monologais” (GOMES, 2006), porém, conseguimos notar a relação em diálogos rápidos e

interligados.

Quanto à estrutura, “a pecadora” segue alguns preceitos da tragédia antiga. Na

peça a peripécia acontece no final, quando a pecadora finalmente é colocada no fogo. A

peripécia ocorre também, tanto em Édipo como na Pecadora, no fato de que as coisas mudam

seu sentido original. Os anjos mudam de estado, de anjos invisíveis, passam a anjos nascendo

e depois a anjos nascidos; este fato, que mostra a mudança de “ser” dos anjos, pode ser

classificado como peripécia. Édipo crendo ser quem não era não consegue fugir de seu

destino, mas carrega o peso de ter tentado escapar do que o esperava, no sentido de

manipulação, mas não há êxito. Ele se transforma mesmo tomado de dores e dúvidas:

Ai de mim! Ai de mim! As minhas dúvidas se desfazem! Ah Luz do sol! Queiram os

deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo! Hoje tornou-se claro a todos

que eu não poderia nascer de quem nasci , nem viver com quem vivo e, mais ainda,

assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, 1989, p.82).

Da mesma forma como ocorre com a Pecadora. De acordo com Fitz (1997, p.

26):

vertida como „The burned woman at the stake and the harmonious angels”, a peça de

Clarice revela em si mesma uma estrutura dramática controlada, repleta, com uma

ação crescente que expande o conflito básico (que se concentra em qual deve ser a

punição para uma mulher que transgride as leis estabelecidas de conduta, poder e

sexo) numa acusação patriarcal em um epílogo que não resolve o conflito básico e

revela cumplicidade de outros inúmeros problemas de homens e mulheres – no

drama.29

28 For a variety of reasons, then, both thematic and formalistic, “a pecadora queimada e os anjos harmoniosos”, a

spare, laconic drama depicting the tragic consequences of a society that judges its citizen from a corrupt and

meretricious perspective…” (FITZ, 1997, p.26). 29

“Translated as “The Woman Burned at the Stake and the Harmonious Angels”, Clarice‟s plays reveals itself

to possess a very tight and controlled dramatic structure, one replete with a rising action that expands the basic

conflict (which centers in the question of what the punishment shall be for a woman who has transgressed the

established rules of power and sexual conduct) into an indictment of patriarchy and a dènouement that does not

much resolve the basic conflict as it reveals the complicity of numerous others – men as well as women – in it

(FITZ, 1997, p. 26).

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Não há elementos da fábula, como a conhecemos hoje, pois, segundo Ferracine

(2008, p. 13) “logo, assim que esse gênero fantasioso e faceto é visto como recurso de

comunicação equivalente à parábola, então o termo “fábula” ganha nova dimensão (...)”. A

parábola tem em comum com a fábula o recurso à imagem, ao exemplo. Portanto,

diferentemente da fábula, não há moral. A peça somente nos leva a refletir sobre quão

subjetivos os julgamentos podem ser.

Sobre a fábula, segundo Aristóteles (2003, p.46):

Das fábulas umas são simples, outras são complexas, pois evidente são assim as

ações de que as fábulas são a imitação. Chamo ação simples aquela cujo

desenvolvimento, como definimos, permanece uno e contínuo e na qual a mudança

não resulta nem de peripécia, nem de reconhecimento; e ação complexa aquela onde

a mudança de fortuna resulta no reconhecimento ou de peripécia ou de ambos os

meios. Estes meios devem estar ligados à própria tessitura da fábula, de maneira que

pareçam resultar, necessária ou verossimilmente, dos fatos anteriores, pois é grande

a diferença entre acontecimentos sobrevindos por causa de tais outros e, ou

simplesmente depois de tais outros.

O nó se dá no momento em que a traição é descoberta, mas este momento não

é declarado. O desfecho é a própria abjuração do personagem: “Sacerdote: (...) e ei-la nada

mais possuir e, agora, pura, o que lhe resta ainda queimarão. Os estranhos caminhos. Ela

consumiu sua fatalidade num só pecado em que se deu toda, e ei-la no limiar de ser salva.”

(LISPECTOR, 2005, p. 58).

O êxodo é um elemento presente na peça. Observamos elementos que fazem

recorrência à figura de deuses ou de entidades mitológicas, como na tragédia antiga,

representados pelos anjos. Segundo Aristóteles (2003) as partes da tragédia são o êxodo, o

prólogo, o episódio, o párodo e o estásimo.

Conforme Gomes (2006, p. 28), “Nesse mundo cristão, a Pecadora goza de

refutação e fortuna, uma vez que está “abençoada” pelo matrimônio, mas cai na desdita, por

incorrer um risco (harmatia) e, quando impulsionado (a) pela demedida (hybris), trai seu

esposo”.

A audiência é vista como testemunha ocular. Ao modo do teatro grego, a peça

conclama a plateia para que não seja meramente espectadora, mas participante. Ao invés de

simplesmente mostrar a cena, no sentido latente desta, as personagens utilizam-se da

discursividade oral, com exceção da Pecadora, que não tem uma só fala. As outras

personagens falam como se entoassem ou declamassem para um auditório. Para Bakhtin

(1997, p. 181) “o discurso (...), a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua

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como objeto específico da linguística, obtido por uma abstração absolutamente legítima e

necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso”.

As rubricas são observadas ao longo do texto dramático, elas são quase uma

narrativa, à medida que caracterizam as personagens, descrevendo-lhe não só a ação física,

mas também as inclinações e atitudes – ethos - mais os traços que revelam emoções e desejos

– pathos - A rubrica do texto dramático pode ser classificada como linguagem secundária,

pois nos dá informações preciosas sobre a história contada. Ela não se transforma em palavra

dita, a não ser que o diretor a faça transformar-se, mas, dialoga com as falas dos personagens

usando outros códigos, não-verbais. Clarice Lispector quase não se utiliza das rubricas, mas

quando o faz, faz de forma simples e direta, somente anunciando a entrada dos personagens:

“Entram pecadora e dois guardas” (LISPECTOR, 2005, p. 58); “Entra o Esposo” (p. 60);

“Entra o Amante” (p. 61). A tragédia e a comédia antiga usavam com parcimônia esse

recurso. Uma vez que o teatro clássico concebia o cenário como convenção. Afirma Gomes

(2007, p. 123) que “não há (...) nenhuma exigência ou menção à mudança de cenário” nas

rubricas de Clarice Lispector.

A indicação dos mesmos espaços poupava a rubrica descritiva do cenário,

tornando-a, por vezes, simples formalidade. Da mesma maneira, movimentos contidos e

parcimoniosos dos atores – à exceção da coreografia do coro – reproduziam no palco as

anotações dos textos dramáticos. No teatro grego, não se encontram interferências dessas

linguagens. Elas se reservam espaços fora dos versos cantados pelos atores. Clarice Lispector

não oferece em seu texto, indicações de cenário, segundo Gomes (2007, P.123):

A tragédia escrita por Clarice obedece à regra das três unidades preconizada na

poética clássica: toda ação se passa durante a condenação da Pecadora à fogueira e,

se não há rubrica determinando o espaço, percebe-se por meio da fala do Esposo,

que ele é único, tudo transcorre num pátio (...). Não há além dessa fala, nenhuma

exigência ou menção à mudança de cenário.

D‟Onofrio (2007) destaca algumas partes constitutivas do enredo de uma peça

teatral:

Exposição: “corresponde à situação inicial do romance ou à proposição do

poema épico. Nas primeiras cenas são apresentadas as personagens principais e sua

problemática existencial, além do local, do tempo e dos antecedentes da história a ser

apresentada” (D‟ONÓFRIO, 2007, p. 282). Na peça Clarice Lispector vai apresentando os

personagens, sem detalhes de rubrica ou coisa assim, à medida que eles entram na história. Os

Anjos Invisíveis apresentam uma parte do enredo dizendo com antecedência que “se homens

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hesitam entre homens, anjos ignoram sobre anjos...” (LISPECTOR, 2005, p. 57). Já anteveem

a tragédia que vai acontecer, “ei-nos nas malhas da tragédia verdadeira” (LISPECTOR, 2005,

p. 57). A Pecadora recebe destaque logo na primeira fala do Sacerdote: “e esta simples mulher

por tão pouco se perdeu” (LISPECTOR, 2005, p. 57). Para D‟Onófrio (2007, p. 282), no

conflito “alguma coisa acontece que provoca a ruptura do equilíbrio inicial, criando a situação

do conflito”. Clarice Lispector apresenta o conflito de maneira direta, mas a peça vem num

pequeno crescente. As dúvidas do Sacerdote com relação ao pagamento do pecado e à sua

competência em julgá-lo é o que chama atenção pela sua ambiguidade de sentimentos, “o

Senhor apontou-me para pecar mais que aquela que pecou” (LISPECTOR, 2005, p. 58).

Já no desenvolvimento, segundo D‟Onófrio (2007, p. 282) as “forças adversas

agem para resolver o conflito, cada qual lutando para conseguir impor seu ponto de vista e

atingir sua finalidade” Os personagens se colocam e revelam seus pontos de vistas, mas o

personagem do Segundo Guarda já anuncia que a pecadora tem um fado a cumprir, e dele não

poderá escapar.

O clímax, de acordo com D‟Onófrio (2007, p. 282) é definido como “momento

decisivo e de maior impacto; elementos novos aparecem em cena determinando a resolução

do conflito.” O que é previsto acontece sem maiores surpresas: a Pecadora cumpre seu destino

no fim abrupto escrito por Clarice Lispector. Não há como fugir, o que se previu que

aconteceria, aconteceu como nas grandes tragédias escritas há longo tempo. E para encerrar a

peça um Personagem do Povo declara: “Perdoai-os, eles acreditam na fatalidade e por isso são

fatais” (LISPECTOR, 2005, p. 69), como se fosse Jesus na cruz a repetir: “perdoa, eles não

sabem o que fazem”.

D‟Onófrio (2007, p. 282) explica que o desenlace acontece “especialmente por

meio da figura da anagnórisis, todos os fios dispersos da trama são atados, de forma que o

espectador sai do teatro com o sentimento de que a crise foi superada...” O desenlace da

história da pecadora se dá com a morte dela, e com o nascimento dos anjos, o que simboliza a

purificação de uma nova era. O que fica da peça teatral é a crítica velada a muitas atitudes

humanas e a crítica relatada por algumas vezes nas falas dos personagens que de certa

maneira nos representam. O texto também é uma crítica social ao tratamento dado à mulher.

3.3.3 PERSONAGENS

Algumas peças trazem os nomes dos personagens apresentados numa lista,

explicando quem são logo nas primeiras páginas. Clarice Lispector não o faz desta maneira,

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vai apresentando-os pouco a pouco conforme entram em cena. Vasconcellos (1987, p. 155)

explica que:

Num sentido genérico, “no interior da prosa literária e do teatro, os seres fictícios

construídos à imagem e semelhança dos seres humanos” (Massaud Moisés,

Dicionário de Termos Literários, p. 396). A palavra grega para designar personagem

é éthé, que significa “aquele que escolhe”. Segundo Aristóteles (384-322 a.C.)

personagem é o resultante do “DIA-NOIA” (pensamento) e do “ÉTHOS” (AÇÃO,

ato escolha). Em outras palavras, de uma intenção ou vontade e do ato decorrente

dessa vontade. Assim sendo dianóia e ethos constituem o fundamento do

personagem. Para Aristóteles, o personagem é uma das partes essenciais da

TRAGÉDIA, as outras sendo ENREDO, a DICÇÃO, a dianóia, a MELOPEIA e o

ESPETÁCULO (cap. VI da Poética).

A protagonista Pecadora pode ser vista como um arquétipo de morte e

renascimento. Arquétipos são as representações personificadas das feições humanas. Na

literatura, os personagens sempre têm um pouco de herói e vilão, características que se

destacam ou não, dependendo do tipo que se quer criar. O arquétipo vem a ser a encarnação

destas características. A Pecadora, então, recobre-se de mistério, pois não se defende, não usa

da palavra para obter, ou tentar obter seu perdão. Ela apenas se cala e no máximo esboça um

sorriso, comentado por outros personagens.

Quem é essa mulher na pele deste personagem que se apresenta vítima de uma

situação a qual a coloca perante um povo para ser julgada. Quem é essa mulher que não se

defende e que apenas sorri? De acordo com Gomes (2006, p. 30):

A escritura de Clarice Lispector ocupou-se muitas vezes, em abordar os conflitos

interiores de personagens femininas. Se sua permanência em Berna contribuiu para

compor A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos, outras personagens de seus

contos e romances representam características semelhantes. Personagens femininas

com “rostos ascéticos”, “economia de expressão”, “voltadas para o sacrifício”,

casadas e, que, de repente, vêem descortinar-se uma liberdade que as restitui como

seres viventes, são frequentemente em sua obra.

Passamos a conhecê-la, como dito anteriormente, pelas falas de outros

personagens, e quem começa a descrevê-la é o Sacerdote: “E esta simples mulher por tão

pouco se perdeu, e perdeu sua natureza, e ei-la a nada mais possuir e, agora pura, o que lhe

resta ainda queimarão...” (LISPECTOR, 2005, p. 58) e o Sacerdote assim já julga seus atos,

dizendo que apesar de sua pureza, pois agora já não trai, mesmo assim o que resta dela será

queimado. E continua seu discurso, apresentando a Pecadora: “Ela consumiu sua fatalidade

num só pecado em que se deu toda, e ei-la no limiar de ser salva” (LISPECTOR, 2005, p. 58).

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O ato da queima vai ser a sua salvação perante os homens e perante Deus, segundo o

Sacerdote.

A protagonista sofre uma perseguição por sua traição, e essa perseguição é

representada pelas figuras dos três homens que vão julgá-la e condená-la, e é pela figura do

Sacerdote que notamos o poder da figura masculina sobre a feminina. O Povo também ali se

encontra para expressar o que pensa e para perguntar quando dúvidas surgem acerca do que

está ocorrendo. Segundo as leis da moral cristã, uma mulher que trai, realmente é uma

pecadora, o adultério é falta grave. Na peça de Sófocles, Édipo Rei, o Sacerdote também é

uma figura de destaque, com falas que guiam o destino das personagens: “Sacerdote: sim,

meus filhos, ergamo-nos, foi para isso que aqui nos reunimos todos neste dia, E possa Febo,

inspirador das predições, juntar-se a nós, ele também, para salvar-nos e nos livrar deste

flagelo para sempre” (SÓFOCLES, 1989, p.28).

Os juízes, segundo a bíblia, eram pessoas que deveriam “levar o povo eleito à

observância da lei” (LIVRO DE JOSUÉ, 1964, p.265).

O Sacerdote, de A Pecadora Queimada, não é uma representação do mal, mas

carrega o poder da condução e da decisão, que neste caso, pode levar a uma condenação

maligna, à morte pelo fogo.

Rosenbaum (1999) desenvolve um ensaio no qual faz uma análise do mal nas

obras claricianas. A autora (1999, p. 19) afirma que:

Clarice convoca um olhar crítico atento aos meandros mais sutis do pensamento que

vibra intensamente na linguagem. A potência demolidora da palavra em relação a

um universo que ela dialetiza põe em questão o mal como força tensionante desse

mesmo universo. Daí a organização textual ser matéria-prima das análises, guiando

minuciosamente novas leituras.

Fica evidente, em algumas falas, que o Sacerdote está confuso, pois se sente

tão „humano‟ quanto a Pecadora.

Concordamos com Rosenbaum (1999, p. 18) quando ela afirma que “quanto

mais se quer iluminar a Terra e torná-la transparente, asséptica e higienizada da mácula

inelutável, mais a humanidade mergulha na maldição maldita”. A protagonista lança seu

protesto abstrato, simbolizado pelo seu silêncio, outro aspecto que abordaremos mais adiante.

Sua ação brota no íntimo de sua personalidade, que pode ser julgada por alguns, como

integral, pois se mantém fiel a si mesma. A protagonista deverá ser punida por despertar em

outro homem a paixão e o desejo e por fazer esta paixão e desejo virarem ato: “AMANTE:

Sorris porque me usaste para ainda viva seres pelo fogo ardida” (LISPECTOR, 2005, p. 65).

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80

Por fim, a protagonista se liberta dos conceitos e pré-conceitos impostos a ela

paradoxalmente através da morte. Ela, de certo modo, triunfa enquanto é abatida, atingindo

dignidade em subtrair-se do mundo.

É interessante notar, como Moser (2009, p. 195) comenta, comparando a

personagem Pecadora com sua criadora, Clarice Lispector, ambas sem defesa verbal:

esta estranha peça reproduz com inquietude bem próxima a desesperança que

aparece nas cartas de Clarice enquanto „exilada‟ na Suíça, quando sua vida estava

completamente „fora do controle‟, e quando as pessoas faziam comentários sobre

ela, e quando ela era o assunto de muitos. Na peça A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos, o povo tem a sua fala, o amante tem a sua fala, o esposo tem sua fala,

o sacerdote tem sua fala, os guardas têm a sua fala e os anjos têm sua fala. A

“mulher estrangeira”, condenada às chamas, nunca diz uma palavra. 30

A Pecadora realmente é um personagem que intriga, definindo-se nas falas das

personagens que constroem a história, nunca temos uma certeza de quem ela é. Seu silêncio

nos permite a divagação acerca de suas atitudes e coloca em questão o porquê de seus atos.

Essa mulher representa a infidelidade em contraponto com as arbitrariedades da sociedade:

Simbolizando, então, a coragem requerida daquela que desafia a legitimação dos

códigos de conduta patriarcal, condenada a “pecadora” por todos, exceto pela

“Mulher do povo” (a qual, nos lembramos, sentiu que ela merecia “orgulho mais do

que vergonha”, Pontiero, 155), vai à sua morte, com o sacerdote dizendo finalmente

ao povo: “tomai-lhe a morte como palavra” (188)31

(FITZ, 1997, p.33).

O Sacerdote, um dos personagens mais complexos da peça, além de ser o

representante da Igreja e responsável pelo julgamento da Pecadora, apresenta um perfil dúbio,

quando questiona sua posição perante os homens e seus desejos perante a si mesmo,

colocando-se diante de Deus como um homem que sente vontades „mundanas‟ e tem dúvidas

quanto ao sacerdócio no qual foi colocado: “Que veio fazer este povo? E a que vieram o

esposo, o amante, os guardas? Pois sozinha comigo, e esta mulher seria incendiada”

(LISPECTOR, 2005, p. 63). Nestas palavras de duplo sentido do Sacerdote, podemos

30 “This odd short play reproduces with disquieting closeness the helplessness that comes through in Clarice‟s

letters from her exile in Switzerland, when her life was completely out of her hands, when people uttered high-

sounds clichés all around her, and when she was completely subject to the will of others. In “The Burnt Sinner

and the Harmonious Angels”, the people have their say; the lover has his say; the husband has his say; the priest

has his say; the guards have their say; and the angels have their say. The “foreign woman” herself, condemned to

the flames, never says a word. (MOSER, 2009, p. 195). 31

Symbolizing, then, the courage required of one who challenges the legitimacy of patriarchy‟s codes of

conduct, the woman, deemed a “pecadora” by everyone except the “Mulher do povo” (who, we remember, felt

she merited “praise rather than blame”, Pontiero trans.155), goes to her death, with the priest saying, finally to

the “Povo”, “Tomai-lhe a morte como palavra” (188) (FITZ, 1997, p.33).

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entender que a Pecadora, ou o que ela fez, o atrai. Incendiar, não significa apenas ser tomada

de fogo, no sentido explícito da palavra. Ele sente dúvidas quanto ao julgamento, pois

sentindo sensações puramente humanas, não se sente apto a julgar. De acordo com Fitz (1997,

p.32-33):

No centro do dilema do sacerdote está a questão eclesiástica de legitimidade: se

como seres humanos, nós somos dados aos que declaramos, concebemos e

definimos como pecado, então, quem entre nós tem o direito de julgar os outros?

Como o sacerdote mesmo expressa em sua primeira fala: “Senhor, dai-me a graça de

pecar...o senhor apontou-me para pecar mais que aquela que pecou, e afinal,

consumirei minha tragédia. Por foi de minha palavra irada que te serviste para que

eu cumprisse mais do que o pecado, o pecado de castigar o pecado” (180). Mais

tarde, quando a pecadora está quase para ser morta, o sacerdote, numa declaração

revela que a mulher e o que ela disse sobre sua própria situação são uma ameaça

para ele... 32

.

O Sacerdote faz parte do triângulo masculino que se debate na situação da

Pecadora. Ele completa, juntamente com o Esposo e a Amante, as questões masculinas que

vão permear as discussões da peça: “a fala do Sacerdote aproxima-se do didatismo dos

trágicos gregos, ensinando que cada humilde via é via, a concupiscência é via” (GOMES,

2006, p. 29).

Nas falas do Esposo e do Amante, há uma ideia de relacionamento que chega a

ser curiosa. Clarice Lispector os coloca frente a frente, julgando a Pecadora e sofrendo pelo

seu amor. O triângulo se completa com os sentimentos do Sacerdote, que sofre diretamente

por ela, por ter que julgá-la sabendo-se humano-pecador. Suas falas também demonstram

desejo, como a seguir: “Sacerdote: só não era via a minha prematura alegria de percorrer

como guia e tão somente a sacra via” (LISPECTOR, 2005, p.58), em outras palavras, como é

fácil não pecar quando se está longe do pecado. E ele repete: “Só não era via a minha

presunção de ser salvo a meio do caminho” (LISPECTOR, 2005, p. 58). As discussões acerca

do gênero, poder e prazer, segundo Fitz (1997, p. 27), se concretizam na figura do Sacerdote,

especialmente no seu monólogo angustiante no qual evidenciamos o aspecto social da peça:

...mais confusamente, no entanto, o drama interno do Sacerdote cujo único status na

hierarquia sócio-política é o de arbitrariedade moral e lhe e conferido o privilégio da

32 At the heart of the priest „s dilemma is the ecclesiatical question of legitimacy: if, as human beings, we are all

given to what we conceive and define as sin, then who among us has the right to judge others? As the priest

himself expresses it in his opening speech, “Senhor daí-me a graça de pecar... o Senhor apontou-me para pecar

mais do que aquela que pecou, e afinal, consumirei minha tragédia. Pois foi de minha palavra irada que Te

serviste para que eu cumprisse, mais do que o pecado, o pecado de castigar o pecado” (180). Later, when the

“pecadora” is about to be put to death, the priest, in an utterance that reveals why the woman and what she might

say about her own situation are threatening to him...(FITZ, 1997, p. 32-33).

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interpretação moral da lei e a responsabilidade de sustentar esta ideia (até mesmo

quando ele sofre a respeito de suas próprias dúvidas) (...) a diferença dos discursos

do Esposo e do Amante, no entanto é o tratado do poder, com um padre mais

consciente de sua relatividade semântica que tanto marido, como amante tendem

(com certa exceção instável) a fazer seus papéis convencionais de comportamento

que a sociedade pede a um Esposo e a um Amante. 33

O Amante e o Esposo, juntamente com o Sacerdote, fazem parte da trilogia que

representa o poder. A tríade masculina que julga os atos da Pecadora e que, ao mesmo tempo,

se sente ameaçada por ela. O Sacerdote representa mesmo um “padre que simboliza as

fundações éticas da sociedade e, especialmente, na autoridade moral, enquanto, como um

homem, também representa o sempre contraditório poder das estruturas e códigos que se

acomodam hipocritamente” (FITZ, 1997, p. 30)34

.

O Amante declara não saber que a Pecadora era casada e por isso se sente

atraído, o Esposo se arrepende de tê-la denunciado, pois quando a entrega ao povo é como se

declarasse sua perda para sempre; o amor e o ódio aqui se expressam como facetas do mesmo

sentimento, e o Sacerdote, pelas suas falas ambíguas, dá a entender que sente desejo pela

Pecadora, pois diz: “Senhor, dai-me a graça de pecar” (LISPECTOR, 2005, p.57). O

Sacerdote usa ainda uma linguagem camuflada, especialmente quando se refere ao fogo, que

denota o desejo sexual. Quando se refere ao incendiar, também percebemos um sentido duplo

em suas falas. O pecado parece atraí-lo, ele parece querer viver o incêndio junto com ela, o

incêndio que tem duplo sentido, o de incendiar pelo fogo no sentido literal e no sentido de

arder-se de paixão.

Sobre o personagem do Amante, Fitz (1997, p. 27) comenta em seu artigo que:

assim reclamando por ser o único „traído‟ no que vai nos sendo vagarosamente

revelado, num relacionamento emaranhado, o Amante é capaz de começar a ditar os

termos de qualquer resposta possível para a pergunta que ele mesmo faz, dizendo,

quem é essa estrangeira e solitária mulher, para quem um só coração não foi o

suficiente?35

33 “More confusingly, however, the inner drama of the “Sacerdote”, whose unique status in the social-political

hierarchy as the designated moral arbiter confers upon him both the privilege of interpreting moral “law”, or

“Law” and the responsibility of upholding it (even as he suffers his own doubts about it), also parallels many of

the positions established in the dialogues between the “Esposo” and the “Amante” (FITZ, 1997, p. 27). 34

“a “priest”, who symbolizes the ethical foundations of that society, and, especially, its moral authority, while,

as a man, also representing the often contradictory power structures and codes he must hypocritically

accommodate” (FITZ, 1997, p. 30). 35

“By thus complaining, ironically enough, of being the one “betrayed” in what is slowly revealed to be na

increasingly tangles affair, the “Amante” is able to begin to dictate the terms of any response to the very question

he himself has posed, namely, who is the strange and solitary woman, for whom, “one heart was not enough”

(FITZ, 1997, p. 28).

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É interessante notar que Amante e Pecadora poderiam ser julgados pelo mesmo

„crime‟, pois que traíram juntos, mas a sociedade, segundo Fitz (1997, p. 28) tem uma

natureza “hipócrita e corrupta baseada em dois códigos sexuais diferentes de conduta, um

para os homens e outro para as mulheres”36

. Isso é claro na fala do Amante: “Ai de mim que

não sou queimado. Estou sob o signo do mesmo fado, mas minha tragédia não queimará

jamais” (LISPECTOR, 2005, p. 67). Segundo a Bíblia (1964, p. 145): “se algum homem se

tornar réu de fornicação com a mulher de outro, e cometer adultério com a mulher do seu

próximo, sejam punidos de morte, assim o adúltero como a adúltera”.

Observamos que o pecado da mulher faz com que cada personagem pense a

respeito de seu próprio pecado: “Cada um está só com a pecadora” (LISPECTOR, 2005, p.

61). O Amante demonstra-se também confuso, como todos os homens na peça que se

mostram corruptos pelos códigos de uma sociedade machista que opera com dúbios padrões,

diferentes castigos para o mesmo pecado, em se tratando de homens e mulheres. Conforme

Gomes (2006, p. 36):

As personagens femininas são impulsionadas pelo sexo, consequentemente,

conduzidas ao erro, ao amor e ao pecado. Assim, o silêncio, o sexo e o pecado

aproximam não só as personagens, mas o extremo de vida e morte, com eles, as

protagonistas clariceanas se entregam como em um momento único e último de

desvendamento do que se é.

O Povo representa a “massa burra”, repete falas sem entender seu verdadeiro

significado: “Povo: não compreendemos, não compreendemos e não compreendemos”

(LISPECTOR, 2005, p.63). Buscam alimento para a alma, e nesse caso o alimento é a

desgraça que está prestes a acontecer. O Povo se alimenta do sofrimento e desgraça alheios. A

presença do Povo é significativa, pois ele representa a nossa consciência que repete e tenta se

conscientizar da situação: “Povo: Pois então escondia do esposo seu amante, e do amante

escondia o esposo? Eis o pecado do pecado” (LISPECTOR, 2005, p. 61). O Povo incita o

questionamento, mostrando-se inocente e sempre precisa de confirmações sobre os atos que

estão acontecendo. A fome de saber o que se passa é a personificação de sentimentos de

sensacionalismo, indicados pela „platéia‟ que assiste a tudo e se delicia com o que vê: “Onde

comeremos, comeremos e comeremos e tão gordos ficaremos que pelo buraco de uma agulha

enfim e enfim não passaremos” (LISPECTOR, 2005, p.63). De acordo com Fitz (1997, p. 35):

36 “a corrupted society based on two sexually different codes of behaviour, one for men and another one for

women” (FITZ, 1997, p. 28).

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“complexamente no senso comum, a fome dessas pessoas é uma sugestão feita pelo “povo”

enquanto ele testemunham o falecimento da “Pecadora”, que sua fome pode ser consumada

somente, consumindo-se a si próprios37”.

O personagem Criança com Sono representa a consciência que reafirma a

presença dos personagens que vão entrando em cena. É a criança com sono que percebe no

rosto da Pecadora um sorriso, que pode significar muitas coisas: “Criança com Sono: Ela está

sorrindo” (LISPECTOR, 2005, p.64), e esse sorriso vem em contraponto ao sofrimento do

Amante: “Ah, então é verdade que mesmo na felicidade eu já procurava nas lágrimas o gosto

prévio da desgraça experimentar” (LISPECTOR, 2005, p.64).

Os guardas que a escoltam são os representantes do poder na história. Há

reflexões e comentários feitos por eles sobre os acontecimentos. Obedecem a ordens e

comandam também falas que deixam em aberto o domínio de seu chefe: “Segundo Guarda:

somos um guarda de um senhor, cujo domínio nos parece bem confuso...” (LISPECTOR,

2005, p. 59). Essa confusão parece uma reflexão sobre os acontecimentos, deixando em aberto

algumas questões, causando uma “asfixiada tranquilidade”, como menciona Clarice Lispector

em seu texto.

Os anjos são a passagem que conduz a Pecadora do calvário à purificação. Eles

começam sem entender, pois que “não estão nascidos”. Passam deste estado ao estado de

anjos nascendo, enquanto acompanham o julgamento da Pecadora e de anjos nascidos,

quando, finalmente a queima da Pecadora acontece. A presença dos Anjos está ligada à

harmonia, palavra usada no texto de Clarice Lispector, que traz consigo adjetivos como:

sangrenta, terrível e suave.

Clarice Lispector escreve em seu texto alguns substantivos comuns com letra

maiúscula: Vingança (p.60), Virtude (p.62), Salamandra (p.66). A intenção é dar a esses

substantivos a conotação de personagens também na história, pela força que representam: A

vingança do Esposo em denunciá-la, a virtude da Pecadora em não defender-se e aceitar seus

desígnios com solicitude e a salamandra, que é a própria imagem da pecadora. Dessa maneira

os símbolos apresentados por Clarice Lispector vão se desenhando a medida que a peça se

desenvolve.

37“But complicating this otherwise sympathetic sense of the people‟s hunger in the suggestion, plainly made by

the “Povo” as they witness the “Pecadora” demise, that their hunger can be sated only by consuming one of their

own” (FITZ, 1997, p. 35).

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3.3.4 SÍMBOLOS

Os escritores, de maneira geral, utilizam a simbologia para criar subtextos nos

quais podemos mergulhar para tirar outras conclusões acerca do que está sendo lido. Clarice

Lispector utiliza alguns símbolos com maestria. O primeiro símbolo do qual trataremos é a

Salamandra, como podemos ver a seguir:

POVO: Este fogo já era nosso, e a cidade inteira queima.

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Eis o primeiro clarão. Viva o nosso Rei.

POVO: Marcada pela Salamandra.

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Marcada pela Salamandra...

ANJOS INVISÍVEIS: Marcada pela Salamandra...

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Vede a grande luz (LISPECTOR, 2005, p.

66-67).

Clarice usa o símbolo da salamandra para ilustrar o momento da queima da

Pecadora. Para entender melhor esse contexto, é necessário que escrevamos sobre as

salamandras. As salamandras são anfíbios e nadam como serpentes, graças aos movimentos

da cauda. São cerca de 400 espécies, dos mais variados tamanhos: desde alguns poucos

centímetros até a salamandra gigante que chega a 1,60 m. Algumas salamandras apresentam

um colorido surpreendente. Devido a estas características concluímos que a salamandra não é

usada por acaso neste contexto.

Clarice Lispector também parecia conhecer as implicações do uso da

salamandra pelo que ela representa na Bíblia. A salamandra é definida como um anfíbio que

apesar de venenosa, possui um colorido atraente e isso a associa a Pecadora, pelo contexto de

ser casada e ter um amante. É associada ao fogo, pois conta-se que, no decorrer dos tempos,

as salamandras foram alvo de lendas entre povos antigos e todas as lendas a conectavam ao

fogo. Eram confundidas com pequeninas criaturas mitológicas que viviam nas chamas, os

„elementais do fogo‟. Tudo porque eram vistas saindo às pressas das fogueiras e a lenda conta

que costumam habitar troncos caídos, que poderiam ser usados como lenha. A Pecadora é

“marcada pela salamandra”, o que nos leva a concluir que não merecia perdão, pois era

considerada um „ser imundo‟, segundo a Bíblia. “Entre os bichos que se movem pelo chão

tereis por imundos: a toupeira, o rato e o lagarto de qualquer espécie, o geco, o lagarto a

salamandra, a lagartixa e o camaleão” (LEVÍTICO, 11). A salamandra também representa a

transformação, ocasionada pelo fogo.

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A simbologia usada por Clarice Lispector enriquece o conteúdo da peça. O

fogo refaz depois que devasta, segundo alguns preceitos da Bíblia, representando a

purificação. É sabido também que os homens não conseguem se comunicar com as

salamandras porque elas reduzem a cinzas tudo o que lhes rodeia. Clarice Lispector criou uma

pecadora sem falas, pois o fogo lhe representa outras coisas. Logo após a queima da Pecadora,

os anjos invisíveis nascem, sendo denominados agora como Anjos Nascendo:

Como é bom nascer. Olha que doce terra, que suave e perfeita harmonia... Daquilo

que se cumpre nós nascemos. Nas esferas onde pousávamos era fácil não viver e ser

a sombra livre de uma criança. Mas nesta terra, onde há mar e espumas, e fogo e

fumaça, existe uma lei, e que dá forma à forma à forma. Como era fácil ser um anjo.

Mas nesta noite de fogo que desejo furioso, perturbado e vergonhoso de ser menino

ou menina (LISPECTOR, 2005, p. 67).

A palavra salamandra também é escrita na peça teatral com letra maiúscula:

“Marcada pela Salamandra” (LISPECTOR, 2005, p. 66). Os poetas do simbolismo, período

didático literário dentro da literatura brasileira, usavam este recurso para destacar algumas

palavras dentro do contexto em que escreviam. Clarice faz isso três vezes durante a peça:

Vingança (p. 60), Virtude (p. 62) e Salamandra (p.66). Se levarmos em conta que a palavra

Vingança foi dita pelo Esposo, a palavra Virtude pelo Sacerdote e a palavra Salamandra pelo

povo, podemos associar a palavra aos personagens. O Esposo buscava a vingança, o

Sacerdote queria reaver sua virtude, perdida com o contato com a Pecadora, e o Povo, ávidos

de fome, queriam a Pecadora morta, pelo fogo.

O elemento do fogo, por sua vez, é o mais importante dentro deste contexto,

pois ele é uma expressão do Fogo Sagrado e faz referência ao título da peça. Uma das

atividades construtivas, no plano físico, é purificar, através da incineração de detritos e de

corpos humanos, a qual permite o retorno dos respectivos elementos ao Sol, para uma

repolarização. O fogo na peça de Clarice Lispector vem com uma conotação dupla de

incêndio, no sentido denotativo da palavra, e do fogo relacionado ao prazer, ao desejo. O

Sacerdote usa o fogo para expressar, ainda que não claramente, seu desejo pela Pecadora, ou

pelo seu pecado de ser audaz e corresponder aos desejos carnais, coisa que ele, o Sacerdote,

como representante da Igreja, não pode fazer. Quando o povo diz “este fogo já era nosso”

(LISPECTOR, 2005, p. 66), pensamos na nossa natureza mais primitiva que é justamente a do

desejo sexual. O fogo a incendeia literalmente e incendeia o Sacerdote em seus ímpetos de

homem, a queima como castigo simboliza o desejo que não pode ser realizado.

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Também relacionado ao fogo, encontramos a figura do Anima Sola, que se liga

à Pecadora do texto de Clarice, devido às semelhanças de características. Anima Sola é

baseada na tradição católica Romana, representa uma alma solitária e em algumas

interpretações é vista como uma alma no purgatório. Essa mulher conseguiu livrar-se das

correntes e é vista sempre cercada por chamas. Ela aparece penitente e reverente e seu

sofrimento é temporário, pois seu destino é o paraíso. Anima Sola é celebrada na religião

folclórica como uma santa, e ela ouve a prece dos vivos, segundo a tradição. Ela pode

abençoar e interceder por aqueles que precisam para acelerar o processo de penitência

daqueles que morreram no pecado. A figura do Anima Sola está ligada à figura da Pecadora,

pois ambas representam o pecado e através dele a ascensão à virtude. Estão, ambas, cercadas

pelo fogo, que está aliado ao pagamento dos pecados cometidos por elas. A presença dos

anjos junto a ambas também as fazem parecidas. Segundo o site

(http://www.luckymojo.com/animasola.html) o anima sola ou alma solitária é uma

representação de uma pessoa sofrendo – quase sempre uma mulher – em correntes, entre

barras de uma prisão de chamas no purgatório, o lugar para onde os pecadores vão enquanto

esperam seu julgamento38

.

disponível em: http://www.indigoarts.com/art/anima_sola_lg.jpg

38 The Anima Sola or Lonely Soul is a Catholic depiction of a suffering person - almost always a woman -in

chains amidst the barred prison doors and flames of Purgatory, the place where sinners go while awaiting final

judgement. (http://www.luckymojo.com/animasola.html).

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Clarice Lispector faz menção à Bíblia no decorrer da peça, deixando evidente o

uso de citações tiradas de lá.

A Pecadora não pode eximir-se de compaixão, não pode queixar-se, pois

cometeu um dos pecados „sem-salvação‟ dos princípios cristãos: o adultério. É julgada

justamente por não ter como defender-se. Pelas posições dos homens que ironicamente

„traçam‟ seu destino a partir dali, a Pecadora nada mais tem a fazer, a não ser aceitar sua

desdita. Cala-se, ou permanece calada, e como única defesa, sorri. “O caminho que a pecadora

trilha é o do pecado, o do desejo carnal” (GOMES, 2007, p. 125).

4.1.5 ANÁLISE

É bastante óbvio afirmar que não há uma leitura isenta, nem um texto puro,

intocado e intocável...

Juscelino Pernambuco.

Neste capítulo trabalharemos o dialogismo e a intertextualidade na obra de

Clarice Lispector, A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos. É importante ressaltar a

intertextualidade da peça com a tragédia Édipo Rei e com a Bíblia. Começaremos a discutir

acerca de intertextualidade. Sobre ela, Fiorin (2008, p. 52) afirma que:

Esse termo não aparece na obra de Bakhtin (...) esse vocábulo é introduzido como

pertencente ao universo bakhtiniano por Júlia Kristeva (...). A semioticista diz que

para o filósofo russo, o discurso literário não é um ponto, um sentido fixo, mas um

cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de várias escrituras, um cruzamento

de citações. Como ela vai chamar “texto” o que Bakhtin denomina “enunciado”, ela

acaba por designar por intertextualidade a noção de dialogismo (...) qualquer relação

dialógica é denominada intertextualidade.

Na peça A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos o fenômeno da

intertextualidade ocorre com frequência. É revelador constatar mais uma vez a riqueza técnica

e o todo significativo desse texto no contexto da obra de Clarice Lispector.

Há vários momentos em que podemos constatar a presença da

intertextualidade. Comecemos com as falas do Sacerdote que iniciam o julgamento colocando

a Pecadora como uma pessoa que perdeu sua natureza, e já avisa de antemão que será

queimada, pois precisa pagar pelo seu erro. Os anjos, no início da peça, já anunciam sua

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morte, como nas tragédias gregas: “Basta-nos a convicção de que aquilo a ser feito será feito:

queda de anjo é direção” (LISPECTOR, 2005, p. 57). È a presença do destino entre eles.

Segundo Gomes (2006, p.28):

Um monólogo dos Anjos invisíveis inicia a tragédia. Estes se apresentam como

seres que apesar de percorrerem um longo caminho, não estão cansados e se

propõem a “sofrer sem ter sofrido”. Sabem que na condição de Anjos são

assexuados, não são “menino e menina” e estão na “malha da tragédia”, pois estão

prestes a serem os nascidos. A tragédia do nascimento trará o desconhecimento de

um destino futuro, e os Anjos invisíveis sabem que serão “cegos no caminho que

antecede passos, cegos prosseguiremos quando de olhos já vendo nascermos”.

Ignorar a que vieram é permanecer “cegos” diante de um destino. Observa-se a

antítese ao aproximar o verbo “ver” e o adjetivo “cego” diante dos fatos. A cegueira

edipiana é causada pela desmesura pelo excesso de orgulho, de vaidade.

A cegueira e a visão, em sentido metafórico e literal, são discutidas em Clarice

Lispector, como o foi em Édipo Rei, de Sófocles, escrito no século 427 a.C. Em Édipo Rei,

que tem seus olhos furados para não mais “ver” os erros que cometera, encontramos: “De

repente o rei tirou das roupas dela uns broches de ouro que a adornavam, segurou-os

firmemente e sem vacilação furou os próprios olhos” (SÓFOCLES, 1989, p. 86); em A

Pecadora, os Anjos Invisíveis que enxergavam até antes de nascer, passam a não mais “ver”,

no sentido de compreender: “Bom dia, bom dia e bom dia. E já não compreendemos, não

compreendemos e não compreendemos” (LISPECTOR, 2005, p.69). A cegueira é usada como

metáfora em ambas a peças, e também é citada pelos personagens: “JOCASTA: O acaso cego

é seu senhor inevitável” (SÓFOCLES, 1989, p. 68) e na fala dos Anjos Invisíveis: “Cegos nos

caminhos que antecedem passos, cegos prosseguiremos e quando de olhos já vendo

nascermos” (LISPECTOR, 2005, p. 57).

No início da peça podemos observar a intertextualidade começando a se

desenhar no texto de Clarice Lispector. Ela buscou os modelos clássicos para iniciar o texto

de A Pecadora. O estilo descarta “a possibilidade de existência de uma intertextualidade

apenas de forma, como por vezes se costuma postular” (KOCH, 2008, p. 19).

A estilística foi reproduzida, remetendo-nos imediatamente aos modelos

clássicos, como veremos abaixo:

Édipo Rei (SÓFOCLES, 1989, p. 22).

“SACERDOTE: Édipo, rei de meu país,

vês como estamos aglomerados hoje em

A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos (LISPECTOR, 2005, p. 57).

“ANJOS INVISÍVES: Eis-nos quase aqui,

vindos pelo longo caminho que existe

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volta dos altares fronteiros ao palácio teu;

somos pessoas de todas as idades; uns

ainda frágeis para maiores vôos,

envelhecidos, outros ao peso de anos

incontáveis já vividos; alguns são

sacerdotes, como eu sou de Zeus; aqueles

são a fina flor da mocidade; enfim

contemplas todo o povo dessa terra

presente em praça pública e trazendo

ramos trançado em coroas...”

antes de vós (...)”. (apresentação citada

acima).

“SACERDOTE: (...) e esta simples

mulher por tão pouco se perdeu, e perdeu

sua natureza (...)”.

O Sacerdote, tanto em uma peça quanto em outra, conduz o julgamento:

Édipo Rei (SÓFOCLES, 1989, p. 28).

“SACERDOTE: Sim, meus filhos,

ergamo-nos; para isso que aqui nos

reunimos todos neste dia. E possa Febo,

inspirador das predições, juntar-se a nós,

ele também, para salvar-nos e nos tirar

deste flagelo para sempre!”

A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos (LISPECTOR, 2005, p. 66).

“SACERDOTE: Eis chegado o momento

em que, pela graça do Senhor, pecarei

com a pecadora, arderei com a pecadora, e

nos infernos onde com ela descerei, pelo

Teu nome me salvarei.”

É interessante observar também que o Povo, tanto na peça A Pecadora quanto

em Édipo Rei aparece como sustentáculo do espetáculo: a tragédia dos heróis atinge a cidade

toda, despertando-os do vazio para participarem do desastre que se consumou: “CORO: Ah!

Quantos males nos afligem hoje! O povo todo foi contagiado...” (SÓFOCLES, 1989, p. 29) e

nA Pecadora: “POVO: Há dias temos fome e aqui estamos a buscar alimento” (LISPECTOR,

2005, p. 58).

A intertextualidade também acontece quando percebemos a fidelidade em

aspectos mínimos, por exemplo, quando há dúvidas em Édipo Rei, na peça A Pecadora, ela

também ocorre, na mesma intenção, pois coloca em questão a legitimidade das pessoas com

as quais convivemos: “ÉDIPO: O criminoso ignoto, seja ele um só ou acumpliciado, peço

agora aos deuses que viva na desgraça e miseravelmente” (SÓFOCLES, 1989, p. 31), Édipo

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não sabia, nesta fala, que estava falando dele próprio. Já o Amante e o Esposo, que

conviveram com a Pecadora, pensando conhecê-la, quando percebem que foram enganados,

dizem: “AMANTE: ... abro os olhos até agora fechados pela jactância e vos pergunto: quem?

Quem é esta estrangeira, quem é esta solitária a quem não bastou um só coração?”

(LISPECTOR, 1989, p. 61), e na fala do Esposo: “Como te reconhecer se sorris toda

santificada?” (LISPECTOR, 1989, p. 65).

Em outras passagens podemos também perceber essas coincidências de

propósito, por exemplo, quando mencionam a presença do destino entre eles:

Édipo Rei (SÓFOCLES, 1989, p.32).

“ÉDIPO: São justas as tuas palavras, mas

ninguém detém poder bastante para

constranger os deuses e mudar os seus

altos desígnios.”

A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos (LISPECTOR, 2005, p. 65).

“PRIMEIRO GUARDA: Todos lamentam

o que já é tarde para lamentar, e

discordam por discordar, quando bem

sabem que aqui vieram para matar.”

“ANJOS INVISIVEIS: ... viemos sofrer o

que tem que ser sofrido.”

Outras falas debatem o saber à ignorância, ou seja, preferem continuar sem

saber: “Pobre de mim, como é terrível a sapiência” (SÓFOCLES, 1989, p. 34), lamentando

saber do ocorrido, e o mesmo acontece com o Esposo, que parece preferir a ignorância ao

saber: “Quem falou através de mim e me deu tal poder? Fui eu aquele que incitou a palavra do

sacerdote e juntou a tropa deste povo e despertou a lança dos guardas...” (LISPECTOR, 2005,

p. 60). Nesse caso encontramos a intertextualidade das semelhanças.

Há uma apresentação da personagem e de seu erro, como acontece em Édipo.

Clarice segue os modelos da tragédia, quando os personagens são colocados em cena pela

boca de algum outro personagem. O estilo fica evidenciado, pois a apresentação é feita em

Édipo, pelo Sacerdote e em A Pecadora, pelos Anjos e pelo Sacerdote. Ocorre a

intertextualidade estilística quando o produtor do texto “repete, imita ou parodia estilos ou

variedades linguísticas” (KOCH, 2008, p. 19). Pode ser considerado também a reprodução de

um determinado gênero. Nesse caso, nesta peça de Clarice Lispector, encontramos ambas as

intertextualidades, tanto em sentido implícito quanto explícito. Além disso, segundo Koch

(2008, p. 62-63) há outros tipos de intertextualidade em sentido restrito, que são: “de

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conteúdo e de forma/conteúdo”, “implícita e explícita”, como citado acima, e “das

semelhanças e diferenças”. Daremos relevância àquelas que aparecem com mais frequência

na obra de Clarice Lispector.

Outra passagem de A Pecadora que nos remete a Édipo Rei, é a que se segue:

Édipo Rei (SÓFOCLES, 1989, p.35).

“ÉDIPO: Que dizes? Sabes a verdade e

não a falas? Queres trair-nos e extinguir

nossa cidade? (...) não falarás, então, pior

dos homens maus, capaz de enfurecer um

coração de pedra? Persistirás inabalável,

inflexível?”

A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos (LISPECTOR, 2005, p. 64).

“AMANTE: Sorris inacessível, a primeira

cólera me possui. Lembra-te que na

alcova onde te conheci era outro o teu

sorriso, e o brilho dos teus olhos, as tuas

únicas lágrimas. Por que estranha graça o

pecado abjeto transfigurou-se nesta

mulher que sorri cheia de silêncio?

Nesse trecho, a ação dos personagens é idêntica: eles se recusam a falar para

salvar-se ou salvar o outro. Tirésias ainda assim se pronuncia: “Não quero males pra mim

nem pra ti. Por que insistes na pergunta? É tudo inútil. De mim, por mais que faças nada

saberás”. (SÓFOCLES, 1989, p.35). A Pecadora, apesar de não se pronunciar, também nos

leva a crer que não diria o que queriam saber, mesmo se tivesse falas, pela ironia de seu

sorriso velado, podemos concluir isso.

E quando Édipo se sente um estranho a si mesmo, descobrindo a verdade, no

texto de Clarice Lispector o Esposo é um estranho para si, como Édipo; e a Pecadora também

é uma estranha aos outros:

Édipo Rei (SÓFOCLES, 1989, p.57).

“ÉDIPO: Ai! Infeliz de mim! Começo a

convencer-me de que lancei contra mim

mesmo, sem saber, as maldições terríveis

pronunciadas hoje!”

A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos (LISPECTOR, 2005, p. 64).

“ESPOSO: Ouve-me mais uma vez,

mulher... (Como é estranho, talvez ela

ouvisse, mas sou eu que não encontro

mais as antigas palavras. Dúvida que já

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Édipo Rei (SÓFOCLES, 1989, p.37).

“TIRÉSIAS: Apenas quero declarar que,

sem saber, manténs as relações mais

torpes e sacrílegas com a criatura que

devias venerar, alheio à sordidez de tua

própria vida”.

não tem fronteiras: quando é que fui eu e

quando é que não fui? Era eu quem a

amava, mas quem é este a ser vingado?

Aquele que em mim até agora falava,

calou-se logo que atingiu os seus

desígnios. Que sucede que não reconheço

a antiga face do meu amor? Talvez ela me

ouvisse, mas falar pra mim terminou)”.

A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos (LISPECTOR, 2005, p. 62).

“AMANTE: Ah, desdita, pois se também

junto a mim ela sonhava. O que então

mais desejava? Quem é essa estrangeira?”

Podemos perceber a presença de traços da tragédia clássica em Clarice

Lispector pelo didatismo, o que se quer ensinar nas entrelinhas de sua peça. Qual a mensagem

deixada por Clarice Lispector? Talvez a da não traição? A que todo pecado merece um

castigo? Quais as questões que se colocam ao lermos sua peça?

Segundo Gomes (2006, p. 29):

A fala do Sacerdote aproxima-se do didatismo dos trágicos gregos, ensinando que

“cada humilde via é via: o pecado grosseiro é via a ignorância dos mandamentos é

via, a concupiscência é via”. Entretanto o monólogo do Sacerdote se faz,

principalmente de clamores, devido a seu temor de servir ao Senhor e cumprir o

“pecado de castigar o pecado”. Nessa tragédia próxima da Idade Média é ao senhor

que o Sacerdote roga a “graça de pecar”, descer à “escuridão total” e agradece por

ter sido escolhido para “pecar mais do que aquela que pecou”.

A presença do Sacerdote enquanto instituição religiosa é relevante, pois

podemos observar nela o confronto de vozes do qual falava Bakhtin (2006). A voz do

Sacerdote, na história do mundo, entretanto, é uma voz monológica ou ptolomaica, pois é uma

voz formada de autoridade. “Nos livros sagrados é preciso considerar um dúplice elemento: o

divino e o humano” (SOARES, 1964, p. 14), na peça de Clarice Lispector há o debate

constante dos dois lados com os Anjos e outros personagens. O Sacerdote é o contraponto

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entre o divino e o humano. “Nas questões que se referem à fé e à moral, jamais devemos

tomar uma atitude que esteja em contradição com o sentimento verdadeiro e rigorosamente

unânime dos santos padres da igreja” (SOARES, 1964, p. 14). O Sacerdote representa, assim,

a voz que embasa os estudos religiosos, e em sua figura podemos vislumbrar o juiz que

determina, com sua palavra, o destino alheio. Na peça de Clarice Lispector o Sacerdote

representa mais de uma voz, debatendo-se com seus desejos e os preceitos da Igreja.

A alternância de vozes faz parte da reflexão bakhtiniana reunindo sujeito,

tempo e espaço; revelando uma constituição histórica, social e cultural.

Numa das falas do Sacerdote em A Pecadora, é possível reler o Coro, na peça

Édipo Rei, na maioridade do Céu, e das santas leis diante das falhas dos mortais:

Édipo Rei (SÓFOCLES, 1989, p. 62-63).

“CORO: Seja-me concedido pelos fados

compartilhar da própria santidade não só

em todas as minhas palavras como em

minhas ações, sem exceção, moldadas

sempre nas sublimes leis originárias do

céu divino. Somente o céu gerou as santas

leis; não poderia a convicção dos homens,

simples mortais, falíveis, produzi-las.

Jamais o oblívio as adormecerá; há um

poderoso deus latente nelas, eterno, imune

ao perpassar do tempo. O orgulho é o

alimento tirano...”

A Pecadora Queimada e os Anjos

Harmoniosos (LISPECTOR, 2005, p. 64).

“SACERDOTE: No amor pelo Senhor

não me perdi, sempre seguro no Teu dia

como na Tua noite. E esta simples mulher

por tão pouco se perdeu, e perdeu sua

natureza, e ei-la a nada mais possuir e,

agora pura, o que lhe resta ainda

queimarão. Os estranhos caminhos. Ela

consumiu sua fatalidade num só pecado

em que se deu toda, e ei-la no limiar de

ser salva. Cada humilde via é via: o

pecado grosseiro é via, a ignorância dos

mandamentos é via, a concupiscência é

via. Só não era via a minha prematura

alegria de percorrer como guia e tão

facilmente a sacra via. Só não era via a

minha presunção de ser salvo a meio do

caminho. Senhor; dai-me a graça de pecar.

É pesada a falta de tentação em que me

deixaste. Onde estão a água e o fogo pelos

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quais nunca passei?...”.

O diálogo estabelecido entre as peças parece-nos claro, quando percebemos

que a resposta de uma está na outra. Ambas lidam com o destino já traçado de seus

personagens, ambas trabalham a metáfora da cegueira, as histórias têm personagens confusos

e que buscam repostas para suas questões e que quando estão só deixam claro suas dúvidas

diante do que tem que ser feito.

Édipo procura a liberdade pela cegueira e a Pecadora deixa-se queimar,

buscando essa mesma libertação. A purificação acontece de maneira diferente para os heróis

das tragédias. Eles se colocam diante de um sofrimento o qual precisam suportar.

É interessante observar que o valor liberdade neste contexto se fará com a

morte. Ela que se pensou livre durante sua vida, respeitando suas vontades e desejos e

fazendo-os concretude, agora paga com a morte a pena final de seus dias, a liberdade que a

tirará deste mundo e consequentemente a tirará do julgamento dos outros. A sua morte é sua

exaltação, pois apesar de ter traído, e mesmo tendo um fim trágico, com a destruição total de

seu corpo pelo fogo, engrandece-se perante os outros, pois tem consciência de seus erros, e

talvez, reconheça-os. Na tragédia, há um momento especial de exaltação do herói, pois ele se

torna consciente de suas ações, mesmo que tenha trapaceado ou cometido erros graves,

consegue sua exaltação final. Diz-se que nas grandes tragédias o que provoca o sentimento de

pena e horror, o que embeleza as histórias, é a anagnorisis39

, explicada no começo deste

capítulo, quando tratamos do teatro. A personagem Pecadora representa muito em seu silêncio

dentro deste contexto criado por Clarice Lispector.

O herói comete erros e merece ter um fim trágico. Contudo deve também ter

seus momento de exaltação diante do profundo, embora trágico, conhecimento de si mesmo.

O silêncio neste caso não é somente a ausência das falas. Explica Gomes (2007, p. 128) que:

a protagonista sem nome é somente tratada por “aquela que errou”, “aquela que será

queimada”, ou como “estrangeira”. A pecadora permanece em silêncio durante toda

a cena. Este silêncio é de fato, absoluto e, por não dizer de menos, perturba e

inquieta o Povo, o Esposo, a Mulher do povo. E até no momento da execução da

Pecadora, em que o Povo ordena, “fale aquela que vai morrer”, a mulher permanece

silenciosa e o Sacerdote ordena que o povo “tome a morte como palavra”. A

Pecadora não só não tem voz toda peça como também não há rubricas sobre

39 Palavra do grego que significa reconhecimento. Aristóteles (2003) utilizou esse termo na sua Poética para se

referir à tomada de consciência pelo herói trágico de um erro que ele próprio terá cometido num passado mais ou

menos remoto e que o terá conduzido à perdição presente.

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manifestações de dor ou inconformismo, a não ser o gesto de sorrir, captado e

expresso na primeira fala da personagem Criança com sono.

A totalidade da obra, ou pelo menos parte dela, desvela o homem e suas

intenções. Na ação e no discurso os homens mostram quem são, revelam ativamente suas

personalidades pessoais e singulares. No conjunto de escritos de Clarice Lispector vemos uma

preocupação com o que vai por dentro, no fluxo do pensamento. No romance, A Hora da

Estrela, Clarice Lispector revela uma preocupação social que fez calar alguns de seus críticos

mais severos. Na peça em questão, novamente, Clarice Lispector demonstra como colocar a

reflexão à prova, através de uma história que poderia ser banal, mas que com os elementos

que busca para contá-la, torna-a digna de estudos sérios e mais profundos. De acordo com Fitz

(1997, p.26):

a pecadora queimada e os anjos harmoniosos também desenvolve uma escrita que

mostra uma típica meditação de Clarice na incerta e instável relação que existe entre

linguagem, existência e identidade, relacionada ao contexto individual e social, que

podemos entender agora, define seu trabalho do começo ao fim.40

Assim, a metáfora revitaliza a força expressional da peça, à medida que o

desvio característico da linguagem metafórica possibilita preencher as lacunas do implícito,

guiando o leitor do texto, ou o público na plateia, à evocação simbólica da situação de

autoritarismo e de arbitrariedade das leis da igreja e dos homens. Contudo, o caráter

ideológico que pode ser percebido na peça em nada lhe diminui a força estética e criadora,

que se evidencia no humanismo e nas situações éticas vividas pela personagem, deixando vir

à tona o trabalho inventivo-criativo do dramaturgo escritor. Na grandeza de um personagem

que silencia diante dos fatos, vemos mais uma vez a habilidade de Clarice Lispector em situar

a dor e a angústia sem falar diretamente delas.

Afirma Fitz (1997, p. 35) que “a estrutura precisa das falas ditas pelos outros

personagens do drama assim, levando o leitor a uma forma de identificação com a situação de

silêncio da protagonista, o único personagem na peça, que, apesar de funcionar como uma

raizon d’être (razão de ser), não fala”41

.

40 “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos also develops along lines that shows it to be a prototypically

Lispectorian meditation on the uncertain and shifting relationships that exist between language, being and

identity, concerns that, rooted, as they are in both the individual and the social context, we can now see as

defining her work from beginning to end” (FITZ, 1997, p. 26). 41

“The precise structuring of the lines spoken by the drama‟s other characters therefore draws the reader into a

form of identification with the plight of the silent protagonist, the one personage in the play who, though

functioning as its raizon d’être, does not speak” (FITZ, 1997, p. 36).

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Quando vemos a figura do Esposo, desdobrando-se em entender e aceitar o fato

ao qual foi submetido, e sofrendo, por ter denunciado a própria esposa, tornando-a uma

“estrangeira”, voltamos a Bakhtin quando ele afirma que viver é posicionar-se diante de

valores. Nós nos constituímos e agimos sempre num universo de valores. Conviver é assumir

posição de valores e responder ao mundo, ter uma atitude responsiva. “Ser significa ser para o

outro, e através dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e

sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do

outro”. (BAHKTIN, 2006, p.341). O Esposo funda para si uma imagem constituída através da

Pecadora. Ele se via por ela, e agora, perdendo-a, não consegue mais encontrar-se: “...como é

estranho, talvez ela me ouvisse, mas sou eu quem não encontro mais as antigas palavras.

Dúvidas que não tem fronteiras: quando é que fui eu e quando é que não fui?” (LISPECTOR,

2005, p. 65).

Além da intertextualidade com o teatro da Grécia, quando analisamos a peça A

Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos, pensamos na intertextualidade mostrada com

textos religiosos. Clarice demonstra em quase toda a peça essa perspicácia em usar o texto

bíblico para embasar sua obra e contextualizá-la dentro de uma situação político-religiosa.

Explica Koch (2008, p. 63) que:

Tem-se intertextualidade de forma/conteúdo, por exemplo, quando o autor de um

texto imita ou parodia, tendo em vista efeitos específicos, estilos, registros ou

variedades de língua, como é o caso de textos que reproduzem a linguagem bíblica,

a de determinado escritor ou de um dado segmento da sociedade.

A intertextualidade pode ser vista como a incorporação de um texto em outro

texto. Essa terminologia pode, às vezes, ser também definida por interdiscursividade, que se

atém não só na questão das vozes, mas também na questão do discurso bivocal, vozes que

perpassam e ressoam uma no discurso do outro e vice-versa. Encontramos a intertextualidade

presente mais uma vez na história desta Pecadora de Clarice Lispector e de Tamar e Judá,

retirada da Bíblia. O pecado se faz presente em ambas as histórias e a pecadora deve ser

queimada. Na Bíblia encontra-se: “Tamar, tua nora fornicou, e vê-se que está grávida. E Judá

disse: Tirai-a para fora para ser queimada” (GÊNESIS, 1964, p. 60).

Clarice propõe-se a contar uma história que tem como figura central a de uma

pecadora e sustenta seu discurso pelas falas do Sacerdote, que se sente confuso com relação

ao seu desígnio, pois também acredita ser mais humano do que representante de Deus.

Embasa seu texto e o leva à credibilidade pelas falas retiradas de textos religiosos, como

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citamos anteriormente. Podemos observar a presença da metatextualidade que é definida

como o nível de reflexão de um texto com o comentário que dele se faz. Há o eco de um texto

com outro texto, por uma relação de afinidade de interpretação. Alguns autores definem a

metatextualidade como intertextualidade temática, pois, segundo Koch (2008, p. 134) “existe

uma inserção de informações e conceitos de uma mesma área ou de uma mesma corrente do

conhecimento”. Isso ocorre em Clarice Lispector, nesta peça, principalmente no uso das

citações da bíblia, pois há citação, nomeação ou mera sugestão do texto comentado.

Gérard Genette, em Introduction à l'architexte (1979), refere-se à transtextualidade

ou relações transtextuais para designar as formas de relação de um texto com as

suas múltiplas "saídas", que vão da intertextualidade (citação explícita ou implícita,

na acepção de Júlia Kristeva), à metatextualidade (na qual o vínculo a estabelecer é

entre o texto e o comentário que suscita). Neste sentido, a metatextualidade é, afinal,

a relação crítica por excelência, que se estabelece no apelo que um texto faz à sua

própria interpretação (http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes).

Clarice Lispector usa a intertextualidade explícita que é segundo Koch (2008,

p. 28) “quando, no próprio texto, é feita a menção à fonte do intertexto, isto é, quando um

outro texto ou um fragmento é citado”. O Sacerdote usa este recurso, pois quando diz: “As

trevas não te cegarão, foi dito nos salmos” (LISPECTOR, 2005, p. 58) ele cita e diz a fonte,

deixando claro que utilizou o discurso de outrem para embasar o seu.

Em alguns momentos, Clarice Lispector não cita a fonte, mas coloca a marca

das aspas em suas citações.

O uso da Bíblia em sua peça nos dá indicações de dois caminhos. O primeiro é

a sustentação dos argumentos do Sacerdote, que precisa das palavras da Igreja, de Deus ou do

registrado anteriormente como suporte para suas palavras e atos, já que não se encontra

seguro para julgar. O segundo caminho é a volta aos clássicos e a textos de sustentação

clássica para embasar seu texto, procurando uma fundamentação para ele, neste caso temos a

Bíblia e como complemento as peças da Grécia Clássica também.

Clarice Lispector faz uma ponte entre as falas citadas e o questionamento dos

personagens, buscando a veracidade, mesmo que isso não seja seu propósito principal.

Seguindo a mesma ideia de “orientação argumentativa” (KOCH, 2008, p. 63), Clarice

Lispector usa de recursos que remetem o leitor à tragédia grega definindo pelas falas as

características de seus personagens. Assim, temos um Amante que se diz traído, pois não

sabia que a pecadora tinha outro relacionamento; um Esposo que menciona ter dado à Esposa

tudo de que ela precisava; um Povo que tem sede de justiça; a mulher do Povo que se

demonstra invejosa diante da situação da pecadora, que vai ser queimada, mas que viveu com

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intensidade o que tinha que viver; dois guardas que curiosos colocam seu ponto de vista a

respeito da situação, entre outros.

Conforme Gomes (2006, p. 29):

A tensão que ameaça continuamente a existência, na tragédia contemporânea de

Clarice Lispector, é a obediência à lei social que “dá forma à forma” e a transgressão

a essa lei quando se é impulsionado pelo “desejo furioso perturbado e vergonhoso de

ser menina e menino”, ou seja, de ter um sexo. O trágico advém, nesse caso, do

desejo que a sexualidade desperta responsável pela “escravidão de sentidos”. Por ter

escravizado os sentidos é que a mulher cometeu adultério e está sendo julgada.

No próprio título Clarice Lispector já nos remete a um ambiente em que a

religião pode ser conclamada. A Pecadora Queimada sugere o pecado, explicitado na Bíblia.

Segundo a Bíblia (SOARES, 1964) o pecado é:

a violação de um tabu, no antigo testamento o pecado está ligado à relação do

homem com Deus.

O pecado implica em infidelidade à aliança, em traição ao amor de Deus, em

separação da comunidade. Jesus denuncia o pecado, mas é amigo dos pecadores e

lembra que Deus está pronto a perdoar. Pecado é a tentação do ser humano de

dominar a Deus, o pecado é uma desobediência a Deus, um atentado contra o amor

de uma pessoa. Paulo descreve a origem do pecado, mal que aflige a humanidade

toda, mas que encontra o remédio na redenção operada por Cristo. O pecado para

ele é uma escravidão à Lei e ao mundo. Mas pela fé em Cristo e pela prática do

amor ao próximo o cristão fica livre de todo pecado. Para João, o pecado por

excelência é o “príncipe deste mundo”. Do coração procede todo o pecado. Cristo

veio por causa dos pecadores, não por causa dos justos.

Alguns dos pecados só poderiam ser sanados com o fogo, então a Pecadora

deve ser queimada, pois o fogo purifica, segundo a Bíblia. Anjos Harmoniosos, no título, nos

remete à figura angelical, santificada, em contraponto com a Pecadora. Anjo, tanto no grego

quanto no hebraico, significa mensageiro. Segundo a Bíblia existem os anjos bons (querubins,

serafins, arcanjos, etc) e anjos maus, aqueles que caíram em tentação. Por causa desse perfil

fraco demonstrado pela entrega à tentação, os anjos tiveram uma queda, por se voltarem

contra Deus. Os anjos dizem: “queda de anjo é direção” (LISPECTOR, 2005, p.57).

Conforme Gomes (2006, p. 25): “o título antiético já nos apresenta de um lado a protagonista

da história na condição de „Pecadora‟ que será condenada à morte, queimada pelo adultério

praticado, e, do outro, os „anjos harmoniosos‟, representando os seres „virtuosos‟”.

Logo na primeira fala dos Anjos, eles se referem à eternidade quando

mencionam: “vindos pelo longo caminho que existe antes de vós” (LISPECTOR, 2005, p.

57). Nesta mesma fala os Anjos reforçam: “nossos pés jamais foram lavados” (LISPECTOR,

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2007, p.57). O fenômeno da intertextualidade acontece e maneira implícita neste trecho, pois

como afirma Koch (2008, p. 30):

nos casos de intertextualidade implícita, o produtor do texto espera que o

leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do

texto fonte em sua memória discursiva, visto que, se tal não ocorrer, estará

prejudicada a construção de sentido...

O ato de lavar os pés na Bíblia possui significados relacionados à purificação.

Os Anjos buscam a purificação pelo sofrimento pelo qual passarão nas “malhas da tragédia

verdadeira”. O ato em si está relacionado a livrar-se do pecado: “vós também deveis lavar os

pés uns aos outros” (João 13:3-17). E os Anjos depois disso, nascerão puros, pois não se

lembrarão de nada. Ignoram a que vieram, mas sabem que vão sofrer, pois o destino prévio já

está traçado.

Quando observamos as citações, podemos encontrar a intertextualidade

explícita ou marcada, visto que Clarice Lispector usa as aspas para demonstrar que o texto

não é seu. Quando ela reproduz, por exemplo: “As trevas não te cegarão” (LISPECTOR,

2005, p. 58). Observamos nessa fala a intertextualidade explícita com os Salmos. Há diversas

traduções para a Bíblia, e quando pesquisamos o “cegar” a que se refere a citação,

encontramos na Bíblia da editora Ave Maria, da religião Católica, algumas indicações do que

este “cegar” significa. São João, 2:11, assim o define: “Mas quem odeia seu irmão está nas

trevas e anda nas trevas, sem saber para onde dirige os passos; as trevas cegaram seus olhos”.

Quando Clarice faz a citação, refere-se aos Salmos e a referência está clara na nossa

indicação. Ainda sobre esse tipo de intertextualidade, podemos associá-la com a

intertextualidade restrita de Genette segundo a qual há “relações de co-presença entre textos”

(KOCH, 2008, p. 119). Ainda assim, Koch (2008) explica que estas citações aparecem

marcadas pelas aspas. Os autores mais modernos ainda podem ressaltar o texto citado com o

grifo, o itálico ou o negrito. Clarice Lispector não utiliza todas as marcas, mas encontramos,

na edição de 2005, algumas falas em itálico: “CRIANÇA COM SONO: Eis o amante.”

(LISPECTOR, p.61); “SACERDOTE: Como sofro. Mas ainda não resiste até o sangue”

(LISPECTOR, 2005, p. 68).

Ainda em relação às falas retiradas de textos religiosos temos: “Os inimigos do

homem estão em sua própria casa” (LISPECTOR, 2005, p. 62). Essa fala aparece em

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Miquéias42

, 7:6 na mesma tradução que Clarice Lispector escreve em sua peça. Na citação

completa temos: “Pois o filho despreza o pai, a filha se levanta contra a mãe, a nora contra a

sogra; os inimigos do homem são os da própria casa” (MIQUEIAS, 7:6).

Outra citação feita por Lispector (2005, p. 58 e p. 68) é: “Ela fez suas delícias

da escravidão de sentidos”, o Sacerdote a condena por se entregar aos seus desejos cegamente

(Jeremias 23:14). Na Bíblia da editora Ave Maria, encontramos:

entre os profetas de Jerusalém vejo coisas hediondas: adultério e hipocrisia.

Encorajam os maus, para que nenhum se converta da maldade. A meus olhos são

todos iguais a Sodoma e seus congêneres semelhantes a Gomorra (BIBLIA

ONLINE).

As cidades de Sodoma e Gomorra estão ligadas ao pecado e ao fogo, como a

peça de Clarice Lispector: “se condenou à destruição e reduziu à cinzas as cidades de Sodoma

e Gomorra para servir de exemplo para os ímpios do porvir” (II São Pedro 2,6). Ou ainda,

(GÊNESIS 19,24) “O Senhor fez então cair sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre e

de fogo, vinda do Senhor, do céu”. Quanto a ligação das cidades citada acima com o fogo,

como Clarice Lispector faz alusão a esta passagem, encontramos: “Voltando os olhos para o

lado de Sodoma e Gomorra e sobre toda a extensão da planície, viu subir da terra um fumo

espesso como a fumaça de uma grande fornalha”.

E sobre o pecado, falando das irmãs Ooliba e Oolá, que segundo a Bíblia são a

representação do adultério, Ezequiel afirma: “que se reúna o povo para apedrejá-las, e cortá-

las em pedaços pela espada. Que se matem seus filhos e suas filhas, e sejam incendiadas suas

moradas!”. E relacionado à luxúria da Pecadora: “Dessa forma, porei termo aos crimes da

terra, e todas as mulheres aprenderão a não imitar vossa luxúria” (Ezequiel, 23). Observamos

a intertextualidade no sentido restrito, em que a relação acontece com outros textos já

previamente escritos, ou de textos e ou situações que fazem parte da memória discursiva de

uma coletividade, acionando as memórias enciclopédica, e de mundo. Clarice Lispector, neste

42 Miquéias (em Portugal: Miqueias) é um nome que vem de uma palavra hebraica que significa "Quem é como

Yahweh?". O nome do autor do livro de Miquéias aparece na septuaginta como Michaías. A Vulgata Latina diz

Michaeas. Ele foi um profeta do século VIII a.C. morador de Morasti-Gat, na Shefelá em Judá, talvez tenha sido

um líder (ancião, heb. zaqen) da comunidade. Atuou em Judá no período de Jotão, Acaz e Ezequias. O livro,

escrito em Hebraico, é de difícil leitura, pois o texto encontra-se corrompido, para tanto os tradutores da Bíblia

utilizam-se de guias como as versões em língua grega, síria e copta. (BIBLIAONLINE -

http://www.tiosam.net/e/Miquéias).

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caso, faz a ponte para que nos remetamos à personagens, falas e situações da Bíblia, ou a

histórias a ela relacionados.

Mais uma alusão é mostrada no texto de A Pecadora, quando Clarice Lispector

fala das trombetas: “eu perco ao som de trombetas” (LISPECTOR, 2005, p. 60), e na Bíblia

encontramos: “Ao som de trombetas e de trompas, no meio de aclamações, fizeram ao Senhor

um juramento solene” (II Crônicas 15,14). Na história o soar das trombetas anunciavam que

algo estava prestes a acontecer:

Ainda aguardamos o sétimo selo. Os primeiros seis foram abertos no capítulo 6, e o

sexto foi especialmente severo. O intervalo do capítulo 7 nos assegurou da proteção

dos fiéis. Chegamos ao capítulo 8, esperando a abertura do sétimo selo. Ao invés de

nos trazer, de uma vez, ao fim da revelação do plano de Deus, o sétimo selo abre

uma outra série de sete. Este capítulo relata os acontecimentos resultantes quando os

anjos tocam as primeiras quatro de sete trombetas. (http://www.estudosdabiblia.net).

Na Bíblia ainda encontramos referências às trombetas: “E o Senhor falou a

Moisés, dizendo: Faze para ti duas trombetas de prata batida ao martelo” (SOARES, 1964, p.

168); “Sacrifícios próprios da festa das trombetas” (SOARES, 1964, p. 190), dentre outros.

Outra passagem que nos revela um contexto religioso é: “Há quantos anos não

nascia um santo. Há quantos anos uma criança não profetizava no berço. Há quantos anos o

cego não via, o leproso não se curava, ah, que árido tempo” (LISPECTOR, 2005, p. 60).

Intertextualidade com o Novo e Antigo Testamento, alusão ao tempo de Jesus. Essa passagem

nos remete ao nascimento, vida e milagres de Jesus.

Nessa fala: “SACERDOTE: Não interrompais com vossa fome, antes sossegai,

pois vosso será o Reino dos Céus” (LISPECTOR, 2005, p. 63), podemos constatar a

referência às bem-aventuranças sermão da montanha:

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o Reino dos Céus! Bem-

aventurados os que choram, porque serão consolados! Bem-aventurados os mansos,

porque possuirão a terra! Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,

porque serão saciados! Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão

misericórdia! Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus! Bem-

aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus! Bem-aventurados

os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus! Bem-

aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem

falsamente todo o mal contra vós por causa de Mim. Alegrai-vos e exultai, porque

será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que

vieram antes de vós (Mateus, 5:3-12).

A intertextualidade implícita segundo Koch (2008) ajuda na orientação

argumentativa do texto, ou ainda completa seu sentido. Clarice Lispector além de usar

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citações explícitas, faz também o uso de frases e organização de personagens que nos fazem

lembrar outros, por exemplo, na fala do Esposo, quando ele se refere à Pecadora:

É aquela para quem das viagens eu trazia brocado e preciosa pedraria, e por quem

todo o meu comércio de valor se tornara um comércio de amor (...) Não houve jóia

que ela não cobiçasse, e com ela a nudez do colo abafasse. Nada existiu que eu não

lhe desse, pois para um viajante humilde e fatigado a paz está na sua mulher

(LISPECTOR, 2005, p. 62).

Maria de Magdala era considerada uma mulher que se vendia por amor, e

entregava-se aos viajantes que lhe traziam pedrarias. Essa „venda do amor‟ de Maria de

Magdala pode ser relida em Clarice Lispector, considerando-se que ambas as mulheres eram

pecadoras e que ambas eram, segundo os homens, vendáveis, pois aceitavam jóias em troca de

seu amor. No Evangelho de Lucas 8:2, faz-se menção, pela primeira vez, a "Maria, chamada

Madalena, da qual saíram sete demônios" (os sete pecados capitais: Luxúria, Ódio, Cobiça,

Avareza, Orgulho, Gula e Preguiça). Alguns a consideram uma prostituta, mas a Bíblia não a

trata assim. O Esposo assim a define (LISPECTOR, 2005, p. 62): “Não houve jóia que ela não

cobiçasse, e com ela a nudez do colo não abafasse. Nada existiu que eu não lhe desse, pois

para um viajante humilde e fatigado a paz está em sua mulher”.

Outra citação que aparece na peça de Clarice Lispector: “Onde comeremos,

comeremos e comeremos, e tão gordos ficaremos que pelo buraco de uma agulha enfim e

enfim não passaremos” (LISPECTOR, 2005, p. 63). Encontramos essa citação em São Mateus

19:24, São Marcos, 10:25; e São Lucas, 18:25: “Eu vos repito: é mais fácil um camelo passar

pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. Clarice Lispector se

refere ao Povo que insiste que a comida, neste caso, a desgraça alheia, lhe servirá de alimento

e depois de saciada essa fome não haverá como entrar no reino dos céus.

O Sacerdote diz esta frase: “Senhor, sois sempre o mesmo” (LISPECTOR,

2005, p. 65). Em São Lucas, 8:5, encontramos a seguinte citação:

Vós, porém, Senhor, sempre sois o mesmo e permaneceis eternamente bom, justo e

santo, e boas são vossas obras todas, e justas e santas, e dispondes tudo com

sabedoria. Mas eu, que sou mais inclinado à negligência que ao aproveitamento

espiritual, não sei conservar-me no mesmo estado, porque mudo sete vezes por dia.

Mas logo me vai melhor, quando vos apraz estender-me a mão para me socorrer;

porque só vós, sem auxílio humano, me podeis ajudar e dar-me firmeza, de tal modo

que jamais se mude meu rosto, mas só a vós se converta meu coração e em vós

descanse.

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Segundo os Hebreus, capítulo 12: “Ainda não resististes até ao sangue,

combatendo contra o pecado”, a mesma citação feita por Clarice Lispector: “ainda não resiste

até o sangue” (LISPECTOR, 2005, p. 68).

E mais uma vez a voz do Sacerdote: “sois verdadeiramente um Deus oculto”

(LISPECTOR, 2005, p. 68):

Ela nomeia a Deus, é verdade. Mas não por Seu Nome. Pois não se descreve a Deus

como a uma árvore ou como a uma seção cônica. Sois verdadeiramente um Deus

oculto, Vós, o verdadeiro Deus, Salvador de Israel. Como Jacó, pela manhã,

interrogasse ao anjo: “Diz-me como te chamas”, ouviu esta resposta: “Por que me

perguntas o Nome?” (GÊNESIS 32,29).

E a intertextualidade explícita, mais uma vez presente no texto de Clarice

Lispector, reproduzindo em: “O mundo passa pela sua concupiscência com ele”

(LISPECTOR, 2005, p. 68), a seguinte citação dos Versículos (JOÃO, 2:17): “E o mundo

passa, e a sua concupiscência, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para

sempre”.

A fala: “Vossa graça me basta” (LISPECTOR, 2005, p. 68), é feita a partir da

obra de Santa Tereza D‟Ávila43

, que sentia uma profunda dor pelos pecados que achara que

cometera. Santa Tereza D‟Ávila tinha visões do inferno, lugar que lhe teria sido reservado se

ela tivesse seguido o caminho das vaidades. Observamos que essa citação tem a ver também

com o contexto de algumas passagens da vida de Santa Tereza, pois a associação com o fogo,

representado pelo inferno é ponto vital em sua obra. E o Sacerdote continua: “aconselho-te

para te enriqueceres comprar de mim ouro experimentado pelo fogo” (LISPECTOR, 2005, p.

68). E no Apocalipse, 3:18, encontramos: “Aconselho-te que de mim compres ouro refinado

pelo fogo para te enriqueceres , vestiduras brancas para te vestires, a fim de ... aconselhando-

os a comprar colírio para ungires os olhos, a fim de que ...”. A temática aqui se faz presente,

nesta citação, pois a representação do inferno e a alegoria do fogo na peça se juntam para

justificar as falas do Sacerdote, que teme o fogo. O Apocalipse foi sempre considerado pela

Igreja como um livro profético.

É importante ressaltar que toda a fala citada explicitamente no texto de Clarice

Lispector, no discurso marcado pelas aspas, é do personagem Sacerdote. Um argumento de

autoridade é um argumento baseado na opinião de um especialista. Os argumentos de

autoridade têm geralmente uma forma lógica, o Sacerdote busca na fala alheia o seu discurso

43 Santa Tereza nasceu em Ávila, na Espanha, no ano de 1515.

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de autoridade. As falas dos personagens, de uma maneira geral, seguem uma mesma forma,

pois são reflexões feitas em voz alta. Conforme Gomes (206, p. 38):

Com exceção do coro, da mulher do povo e da criança com sono que saúdam ou

louvam, instigados pela fala do Sacerdote, ou dos Guardas, as personagens – Anjos

Invisíveis, Sacerdote, Guardas, Esposo e Amante – apresentam-se, no início de suas

falas, em monólogos que logo se convertem em diálogos consigo mesmas quando

passam da apresentação à indagação pessoal ou a uma conversação intimista, que

tem por finalidade um aprofundamento analítico acerca de dilemas existenciais.

Podemos constatar pelas falas citadas acima que Clarice Lispector leu a Bíblia,

ou que conhecia as falas retiradas de lá, pois com propriedade seu texto nos remete a um

contexto religioso, citando partes do maior registro que temos em termos de instituições

religiosas. Afirma Gomes (2007, p. 125) que:

A condenação da Pecadora à fogueira é decretada segundo a moral cristã, princípio

do homem contemporâneo. Assim, Clarice Lispector ajusta habilmente os princípios

da tragédia clássica e a moral cristã da Idade Média à sua visão contemporânea. (...)

Clarice desenvolve sua tragédia a partir do choque entre as leis morais, apoiadas no

cristianismo e tidas como sociais e os desejos individuais. Por intermédio desse

debate entre o social e o individual, Clarice desvela e discute a conduta social do

homem moderno dentro de um mundo pautado pelas leis cristãs.

Afirma Koch (2008) que “na intertextualidade das semelhanças, o texto

incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa e, frequentemente, para

apoiar-se nele a argumentação” (p. 63). Clarice ainda faz uso do “intertexto alheio, com

intertexto próprio ou com intertexto atribuído a um enunciador genérico” (KOCH, 2008, p.

64). Este tipo de intertextualidade pode ser chamado também de intra ou autotextualidade; são

textos que fazem parte do “repertório de uma comunidade, como é o caso dos provérbios e

ditos populares”. Estes textos funcionam como um eco e Koch (2008) os denomina como

“enunciação-eco” (p. 64). Koch (2006, p. 145) explica que:

Foi devida a essa - necessária – presença44

que postulei a existência de uma

intertextualidade e/ou polifonia em sentido amplo, constitutiva de todo e qualquer

discurso, a par de uma polifonia e de uma intertextualidade stritcto sensu, esta

última atestada, necessariamente, pela presença de um intertexto.

Quando usamos o termo memória discursiva, espera-se que o “leitor/ouvinte

seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte (...), visto que,

44 Koch (2006) refere-se aqui a presença da intertextualidade como um dos grandes temas que se tem dedicado a

Linguística Textual.

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se tal não ocorrer, está prejudicada a produção de sentido” (KOCH, 2006, p. 146). Numa

leitura mais aprofundada da peça, podemos notar o quão valioso e complementador é ter

noções do discurso religioso e dos preceitos do teatro antigo, com suas definições e crenças. A

própria Clarice não acreditou em seu texto, e deixou-o, assim, finalizado, porém, rápido e

curto, sem maiores complicações para um clímax mais bem elaborado. Consideramos, porém,

apesar disso, a obra de Clarice uma peça completa de um só ato. Sá (2004) aponta, em sua

tese de doutoramento, que Clarice já usava do discurso religioso para discutir questões do

interno, do pessoal. Afirma Sá (2004, p. 130), que “este romance (referindo-se a Paixão

segundo GH), cuja dramaticidade está mais no discurso do que nas ações, estrutura-se sobre

uma dupla linha de montagem”. Podemos afirmar que A Pecadora Queimada os Anjos

Harmoniosos segue o mesmo padrão: “1. O paralelismo bíblico que se manifesta (...) quando,

no texto clariceano, um capítulo se inicia com a mesma frase que finaliza o capítulo anterior.”

(SÁ, 2004, p. 130). A peça de Clarice acontece num só ato, mas ela faz uso da repetição em

algumas páginas da palavra Harmonia como nosso “destino prévio” (LISPECTOR, 2005, p.

59). A repetição da palavra harmonia dá a impressão de busca de resolução, por parte dos

personagens da peça. “A harmonia, a terrível harmonia, é o nosso destino prévio”

(LISPECTOR, 2005, p. 57).

“Incendiada pela harmonia, a sangrenta suave harmonia, que é nosso destino

prévio” (LISPECTOR, 2005, p. 59).

“O gosto prévio da terrível harmonia” (LISPECTOR, 205, p. 64).

“À harmonia, harmonia, harmonia que não tarda” (LISPECTOR, 2005, p. 64).

“... Aquele que foste já cessou, o abrir-te da cortina revelou: que és ínfima,

ínfima, ínfima roda da terrível, terrível harmonia” (LISPECTOR, 2005, p. 65)

“Como é bom nascer. Olha a doce terra, que suave e perfeita harmonia...”

(LISPECTOR, 2005, p. 67).

Essa repetição de fatos, palavras, ações causa algumas vezes um efeito que a

autora desenvolvia com propriedade, reforçando no leitor essa ligação com as sensações. A

repetição da palavra harmonia, insistentemente, soa como um pedido de paz, ecoado pelo

silêncio da Pecadora. Clarice reutiliza a palavra com diferentes adjetivos: “terrível, suave e

perfeita”; e “harmonia que não tarda”. Dentre as figuras de linguagem que acompanham a

mesma ideia de pensamentos, podemos destacar a ironia, a oxímoro e a antítese.

Segundo Gomes (2007, p. 122-123):

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Se os Anjos invisíveis falam na condição de “não-nascidos”, a harmonia é o destino

que antecede o nascimento, a vida. Portanto, os adjetivos “terrível” e “suave

sangrenta” podem ser interpretados como modos de viver a harmonia ou a maneira

de conviver com a harmonia, uma vez que se sabe de sua finitude...

Afirma Sá (2004, p. 130) que há também nos textos de Clarice um paradoxo,

relacionado à credibilidade dos discursos: “2. Paradoxo, este recurso que diz respeito à

questão da credibilidade dos discursos”. Esse paradoxo se faz presente nas falas do sacerdote

e do esposo, que parecem por vezes se contradizerem com relação ao que têm de fazer - suas

ações - e o que realmente pensam. Esclarece Sá (2004, p. 130) que “... inclinando os textos

bíblicos para o sentido paródico, causa um efeito de perplexidade/estranhamento, que tanto a

paródia como o paradoxo veiculam”.

A Bíblia já trabalha com a intertextualidade, pois segundo Bolella (2007, p.

136):

A própria constituição do texto sagrado se deu a partir de formas literárias distintas.

Paralelamente a isso a multiplicidade de gêneros textuais se faz presente em toda a

Bíblia. No Antigo Testamento, por exemplo, podemos encontrar: orações,

documentos, mitos, narrações, fábulas, novelas, sagas, lendas, provérbios, ditos

proféticos, cânticos, poesia popular, salmos, etc. Já no Novo Testamento,

encontramos: evangelhos (considerado um gênero híbrido), epístolas, parábolas,

midrashes, livros escatológicos, genealogias, entre outros.

Quanto às dicotomias apresentadas, Gomes (2007) destaca as seguintes: anjos e

pecadora, como ponto de partida, a dicotomia mais relevante e clara da peça; pecado/virtude;

vida/morte; culpado/inocente; o contraponto entre pecadora e anjos está presente o tempo

todo. Encontramos ainda no decorrer do texto de Clarice Lispector: perigosa paz, asfixiada

tranquilidade, sangrenta e suave, terrível harmonia e confusão melodiosa.

Nesta condição intertextual com a tragédia grega, é importante ressaltar que

essas tragédias são um tipo de drama no qual um herói trágico luta contra um fator

transcendental que controla o fluxo dos acontecimentos, no caso, a pecadora não controla os

acontecimentos, não os impede, simplesmente, deixa-os acontecer. Tamanha é a força desse

fator, que sempre chegamos a um final trágico, no qual o herói sofre todas as consequências

por tentar controlar o poderoso destino, também chamado de fado. A tragédia costuma

suscitar terror e piedade nos leitores, ocasionando a chamada catarse, que é uma espécie de

purificação através do sofrimento alheio. Os principais autores de tragédias são: Sófocles,

Ésquilo e Eurípides. Ainda hoje suas obras são consideradas únicas e verdadeiras tragédias,

pois possuem todas as características concernentes às tragédias clássicas. São características

das peças trágicas: a presença de um fator transcendental (destino, deuses, etc.); a unidade de

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salvação e aniquilamento: o herói, com a intenção de salvar-se, acaba sendo responsável pelo

seu aniquilamento e o clima de tensão permanente e indícios do final trágico: diferentemente

do dramático, não há ambiguidade em relação ao fim, desde o início há a ameaça da catástrofe

que acaba sendo inevitável. No caso de A Pecadora, o fim da protagonista está traçado e não

há o menor indício de que isso seja mudado.

Se observarmos a intertextualidade entre a peça de Clarice Lispector e as

tragédias gregas, isso se verifica também no modo de encarar o destino na tragédia e na peça

clariceana. O destino, de acordo com Brandão (2004), é uma divindade cega na qual todas as

outras divindades estão submetidas. Nada seria capaz de mudar o que ele já havia decidido. O

Destino era a fatalidade, segundo o qual tudo acontecia. As leis do Destino estão escritas

desde a toda eternidade num lugar em que os deuses podiam consultar. Seus ministros eram as

três parcas, encarregadas de executar suas ordens. A tríade se faz presente novamente quando

observamos a definição de Destino e seus ministros e pensamos no julgamento da Pecadora,

tendo como algozes do seu destino três homens: o Amante, o Esposo e o Sacerdote. Assim

como com a Pecadora:

Foram as decisões cegas do destino que tornaram tantos mortais culpados, apesar de

seu desejo de permanecerem virtuosos. Em Ésquilo, por exemplo Agamêmnon,

Clitemnestra, Jocasta, Édipo, Etéocles, Polinices etc não podem furtar-se do seu

destino (BRANDÃO, 2000, p. 7).

A Pecadora traiu, e, agora, tem de pagar; o herói é aniquilado e não tem

chances de defesa; há um clima de tensão permanente em falas que vão contando sentimentos

e expressões, pequenos desabafos que vão constituindo a história; a catástrofe é inevitável.

Nas tragédias gregas as catástrofes são colocadas como elemento primordial. Em Ésquilo, o

poeta de Elêusis, podemos ver as tragédias que se consagram, traçando um perfil de seus

personagens, segundo Brandão (1984, p. 17), como:

Sendo mais heróis que homens, seu drama é uma luta desesperada entre as trevas e a

luz, entre agonia e terror, entre Hades e o Olimpo, entre as Erínias e Apolo, entre a

Moira e a “díke”, justiça. Nessa luta de vida e morte, o grande trágico busca nervosa

e desesperadamente uma conciliação entre o dike, o princípio da justiça e a Moira, o

destino cego, já que a polis é a casa dos homens e a práxis dos deuses.

A intertextualidade temática acontece justamente por Clarice Lispector ter

escolhido essa área para produzir seu texto: a dramaturgia. Os textos de um mesmo gênero

podem configurar a intertextualidade temática, alem da estilística, como citado acima. Clarice

Lispector trabalha a tragédia com a mesma temática usada pelos antigos poetas: a trajetória de

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um herói que trilha um caminho não só de acertos, mas o de um erro que o conduz ao

pagamento desse erro, ou desacerto. Podemos dizer que “a Pecadora passa da „felicidade ao

infortúnio‟, preceito aristotélico de tragédia” (GOMES, 2006). Explica Koch (2008) que a

intertextualidade temática retoma temas ao longo do tempo, no caso da Pecadora, a retomada

se faz com questionamentos sobre a traição, poder e sexualidade.

A tragédia grega é relida em Clarice Lispector por outros prismas, levando-se

em conta as particularidades ressaltadas. A intertextualidade entre a peça e algumas

características das obras clássicas no que se refere ao uso do que chamaríamos de coro, o

trágico, os elementos citados durante o capítulo, as afinidades tipológicas, fazem desse texto

de Clarice Lispector um trabalho criador da dramaturga. O nível de intertextualidade entre as

peças, passa pela estilização, enredo e epílogo. Clarice nos leva ao indubitável fim trágico e

sem perdão da heroína, que se entrega ao julgamento na qual é imposta. Julgamos ser a

Pecadora heroína, pelo fato de percorrer o caminho dos heróis, falível, mas ciente do

pagamento de suas dívidas. A intertextualidade entre algumas tragédias clássicas e A

Pecadora, de Clarice Lispector, possibilita que se destaquem as técnicas utilizadas na estrutura

significativa do teatro antigo e na do teatro contemporâneo.

O fenômeno da intertextualidade entre as peças passa pelo nível da estilização,

uma vez que a passagem do herói trágico antigo ao trágico contemporâneo se dá por meio de

alguns deslocamentos, como a disposição dos enunciados em forma de narrativa prosaica, a

passagem da forma do verso clássico nobre nas grandes tragédias, que muda de formato pelas

traduções oferecidas a nós para a forma prosaica; a época da ação, que apesar de não

mencionada na peça de Clarice Lispector, nos leva a perceber algo que nos remete a uma

época mais antiga; alguns aspectos instauradores da diferença das leituras do drama antigo

para o contemporâneo, já que as imagens espaciais e temporais são elementos indiciais da

filosofia que organiza o microcosmo cenicamente representado.

Sabemos que há um distanciamento entre a tragédia antiga e o drama de

Clarice Lispector, mas podemos encontrar pontos de referência em teatro da Antiguidade

clássica, merecendo um estudo que deve apontar para a intertextualidade imanente entre as

representações dramáticas aqui mencionadas, juntamente com as transformações do gênero,

que parece recuperado quando se trata da peça presente. Recupera-se o gênero em sua unidade

pelo sentido trágico que se manifesta nas personagens e na releitura de elementos de ordem

estrutural. Nos diálogos que há entre a peça de Clarice Lispector e as tragédias gregas, relidos

à luz de um novo tempo ficcional, a autora mais uma vez deixa registrada sua habilidade em

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criar e recriar situações de profunda introspecção, fazendo uma ponte entre os pilares da

tragédia e trazendo sua contribuição para a tradição teatral contemporânea.

Na peça de Clarice, a luta entre os deuses, simbolizada e representada pelos

anjos, luta para que haja justiça e que ela seja feita:

E sobre o destino, Brandão (1984, p. 18) continua explicando:

Se o homem ultrapassa a métron, a medida “humana” de cada um comete de

imediato uma hybris fatalmente gera a némesis, a justiça distributiva e, por

consequência, a punição pela injustiça praticada: é o ciúme divino, pois que o mortal

em hybris, após ultrapassar o métron, é de certa forma um competidor, um êmulo

dos deuses. O castigo é imediato: áte, a cegueira da razão, se apossa do pobre

mortal. Tudo o que se fizer, fá-lo-á em direção ao abismo final, a queda fatal nos

braços da Moira.

O Esposo guiado pela “cegueira da razão” denuncia sua esposa, após descobrir

os atos por ela praticados. Arrepende-se, mas é guiado num primeiro momento pelo

sentimento de razão, representado nas tragédias gregas pelo êmulo, pois que passa a ser o

competidor, procurando a justiça denunciada por si.

Se levarmos em consideração também as definições para dialogismo veremos

que uma está presente e completa a outra. A heterogeneidade no discurso, os diálogos com

relação ao já-dito, as paráfrases, o embate, a contraposição entre o antagonista e o

protagonista, nos levam a crer nas múltiplas funções destes termos dentro de uma narração. Se

há um apagamento do outro nas concepções apresentadas, um elo como porvir, com o outro e

uma interação, temos que pensar em vozes em conflito que estabelecem a dialética do texto. O

texto re-significa dentro de outro texto, e o indivíduo é sempre múltiplo. O princípio dialógico

serve de base como tema dominante dentro deste contexto que estamos analisando. Se todo

texto é dialógico por definição, pensemos na dialogia dentro do texto A Pecadora. O diálogo

pode acontecer dentro de alguns trâmites da cultura, por ideologias, pois estabelece resposta,

causa em nós uma atitude responsiva. Além disso, o termo discute os diferentes valores que

uma palavra pode ter. A representação do homem interior só é possível quando há o diálogo,

para que o outro possa expressar e definir aquele a quem se refere. De acordo com

Pernambuco (2006, p. 65):

A obra bakhtiniana enfatiza a importância da linguagem como fenômeno

socioideológico, aprendido ideologicamente no decorrer da história. Para o filósofo

do discurso, o diálogo integra o funcionamento concreto da linguagem e da

consciência e o monólogo é um processo inaugural de um novo diálogo (...) o

monologismo aparente de uma só voz, ela-mesma, Clarice Lispector, é um estratégia

de imposição a um dialogismo mais amplo.

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O dialogismo, em três distintos momentos, pode ser anotado no texto teatral de

Clarice Lispector levando em consideração os seguintes termos: a contradição como réplica

de vozes que divergem; a forma composicional, que se caracteriza por vozes distintas no

discurso, uma composição estreita do dialogismo como forma de funcionamento da

linguagem, um modo de constituição do enunciado; e finalmente a importância do sujeito que

professa o discurso.

Há também a inserção do discurso no enunciado do outro: discurso objetivado

e discurso bivocal. No primeiro caso a definição é feita pelo uso de aspas, e no segundo caso

o discurso é internamente dialogizado, não há separação nítida entre quem cita e quem

enuncia.

Numa relação de intertextualidade de Clarice com ela mesma, há Joana, do

romance Perto do Coração Selvagem (1943), com a qual a Pecadora pode ser comparada,

pois esta assiste ao seu próprio julgamento sem interferir nele. Como vimos anteriormente,

esse tipo de intertextualidade é implícita, e nesse caso, podemos ainda dizer que Clarice usa a

autotextualidade. Essa autotextualidade se define também há alguns anos antes da Pecadora

quando:

Clarice escreve „a fuga‟ e „Obsessão‟, contos que narram os momentos conflituosos

de duas mulheres que vivem com „maridos sólidos‟, de „bom senso‟, mas, de

repente, vivenciam a liberdade da qual não sabem utilizar. (GOMES, 2006, p. 36).

Continuamos a revisitar algumas características de outras obras claricianas nos

romances: a riqueza psicológica, que nos dá acessos aos pensamentos e angústias do Amante

e do Esposo, e velada pelo silêncio incontinenti da Pecadora; a sensibilidade complexa, por

tratar de forma sutil um tema devastador: a traição; o diálogo interior, demonstrado nesta obra

pelas expressões faciais da protagonista, a linguagem cuidadosamente trabalhada e a

sensibilidade. Podemos notar também a introspecção a todo o momento voltado a importância

dos acontecimentos perante a angústia dos personagens e a narrativa que parece inacabada.

De acordo com Gomes (2007, p. 152):

[...] a maioria das personagens claricianas se entrega a uma reflexão contínua que a

incompatibiliza com o fruir da vida e se deixa habitar por demônios interiores que a

dominam e que emergem repentinamente, a ponto de deixá-la exposta à vertigem e a

forças anteriormente amordaçadas.

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Verificamos a riqueza da escritura de Clarice Lispector e todo o seu

entendimento acerca da obra dramatúrgica, embasada e constituída de forma intertextual. As

marcas tipográficas nos levaram à convicção de que a autora fez uso de outras obras que

dialogar com a sua.

Quanto às tragédias gregas, encontramos na peça de Clarice Lispector as

características que as compõem: presença de um fator transcendental, no caso de A Pecadora,

a presença dos Anjos Invisíveis e da força do destino guiando para a morte a Pecadora sem

perdão; há a unidade de salvação e aniquilamento, nesse caso representada pelo fogo que

purifica e refaz; e há na peça de Clarice Lispector constante clima de tensão e permanente

indícios do fim trágico. A única característica pontuada que não se encaixa com a história da

mulher que traiu é o papel daquele herói que tenta salvar-se, não encontramos nas falas das

personagens nenhuma indicação de que a Pecadora estivesse preocupada em livrar-se do que

lhe foi imposto, e por isso não pode ser a única responsável pelo seu fim trágico. Entrega-se

ao julgamento que lhe foi imposto e purifica-se nas chamas que a consumirão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa destinou-se a estudar a dramaturgia de Clarice Lispector

resumida em uma única peça intitulada A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos. Nem

por isso poderemos deixar de considerar o talento da escritora nessa sua única produção

teatral publicada. Retomando a introdução que fizemos neste trabalho, podemos afirmar que a

intertextualidade entre o texto clariciano e a estrutura do texto clássico acontece de forma

contundente pelo seu formato enquanto escrita e por seu tema e desenvolvimento. A

exploração dos personagens feita por Clarice Lispector também segue os preceitos da tragédia

antiga, assim como suas citações relacionadas ao religioso. Quanto ao fato de usar a Bíblia

para sustentar o argumento de seu personagem Sacerdote, podemos ver explícita a clareza de

Clarice Lispector quando quis construir um personagem que representasse a Igreja, mas que

fosse constituído de dúvidas humanas, sentimentos de desejo e paixão, o que nos leva mais

uma vez à complexidade de suas criações. Além disso, a intertextualidade estilística é

evidente em toda a peça analisada.

Iniciamos a pesquisa com um capítulo teórico para que pudéssemos ter o

suporte necessário para a análise pretendida. O caminho tomado para os estudos do texto

dentro da Linguística Textual nos levou a descobertas de possibilidades de análise. No

segundo capítulo apresentamos as características do teatro e das tragédias para que

situássemos nosso leitor em termos de vocabulário específico do teatro e algumas

características que lhe são próprias. Ainda neste capítulo, discursamos sobre a Bíblia e sua

importância no contexto literário. Revimos a Bíblia como material de estudo dentro do

contexto que se pretendia analisar. No terceiro capítulo, procuramos enfatizar o trabalho de

Clarice relacionando-o às suas diversas criações e buscando a análise necessária para

comprovar que a autora buscou nos clássicos modelos para sua criação e como o dialogismo

com esses textos acontece em sua obra. No quarto capítulo, concentramo-nos na análise da

peça teatral com as tragédias e com a Bíblia.

Ao final de nosso percurso dessa dissertação, devemos fazer menção à

densidade das criações de Clarice e pontuá-la também como dramaturga dentro das divisões

didáticas que os teóricos propõem acerca de seu trabalho. A escrita de Clarice invoca um

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olhar inquisidor e curioso que nos leva a ler e reler suas obras cada vez mais profundamente,

procurando por pistas que nos levem a enxergar melhor o que está implícito em seu texto.

Sabemos que temos diante de nós uma escritora de talento inquestionável pelo seu fazer

literário e dramático. Desvendar o modo de Clarice Lispector produzir o texto dramatúrgico é,

sem dúvida, uma contribuição aos estudos do conjunto de sua obra.

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ANEXOS

ANEXO A – Peça – A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos (LISPECTOR, Clarice,

ed Rocco: 2005).

ANJOS INVISÍVEIS: Eis-nos quase aqui, vindos pelo longo caminho que existe antes de vós.

Mas não estamos cansados, tal estrada não exige força e, se vigor reclamasse, nem o de vossa

prece nos ergueria. Só uma vertigem é o que faz rodopiar aos gritos com as folhas até a

abertura de um nascimento. Basta uma vertigem, que sabemos? Se homens hesitam sobre

homens, anjos ignoram sobre anjos, o mundo é grande e abençoado, seja o que é. Não

estamos cansados, nossos pés jamais foram lavados. Grasnando a esta próxima diversão,

viemos sofrer o que tem que ser sofrido, nós que ainda não fomos tocados, nós que ainda não

somos menino ou menina. Ei-nos nas malhas da tragédia verdadeira, da qual extrairemos a

nossa forma primeira. Quando abrirmos os olhos para sermos os nascidos, de nada nos

lembraremos: crianças balbuciantes seremos e vossas mesmas armas empunharemos. Cegos

no caminho que antecede os passos, cegos prosseguiremos quando de olhos já vendo

nascermos. Também ignoramos a que viemos. Basta-nos a convicção de que aquilo a ser feito

será feito: queda de anjo é direção. Nosso verdadeiro começo, e nosso verdadeiro fim será

posterior ao fim visível. A harmonia, a terrível harmonia, é o nosso único destino prévio.

SACERDOTE: No amor pelo Senhor não me perdi, sempre seguro no Teu dia como na Tua

noite. E esta simples mulher por tão pouco se perdeu, e perdeu sua natureza, e ei-la a nada

mais possuir e, agora pura, o que lhe resta ainda queimarão. Os estranhos caminhos. Ela

consumiu sua fatalidade num só pecado em que se deu toda, e ei-la no limiar de ser salva.

Cada humilde via é via: o pecado grosseiro é via, a ignorância dos mandamentos é via, a

concupiscência é via. Só não era via a minha prematura alegria de percorrer com guia e tão

facilmente a sacra via. Só não era via a minha presunção de ser salvo a meio do caminho.

Senhor, dai-me a graça de pecar. É pesada a falta de tentação em que me deixaste. Onde estão

a água e o fogo pelos quais nunca passei? Senhor, dai-me a graça de pecar. Esta vela que fui,

acesa em Teu nome, esteve sempre acesa na luz e nada vi. Mas, ah esperança que me abrirá as

portas de Teu violento céu: agora percebo que, se de mim não fizeste o facho que arderá, pelo

menos fizeste aquele que ateia fogo. Ah esperança, na qual ainda vejo meu orgulho de ser

eleito: em culpa bato no peito, e com alegria que eu desejaria mortificada digo: o Senhor

apontou-me para pecar mais que aquela que pecou, e afinal consumirei minha tragédia. Pois

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foi de minha palavra irada que Te serviste para que eu cumprisse, mais do que o pecado, o

pecado de castigar o pecado. Para que tão baixo eu desça de minha perigosa paz que a

escuridão total – onde não existem candelabros nem púrpura papal e nem mesmo o símbolo

da Cruz – a escuridão total sejas Tu. “As trevas não te cegarão”, foi dito nos Salmos.

POVO: Há dois dias temos fome e aqui estamos a buscar alimento.

Entram a pecadora e dois guardas.

SACERDOTE: “Ela fez suas delícias da escravidão dos sentidos”, pelo sinal da santa cruz.

POVO: Ei-la, Ei-la, Ei-la.

CRIANÇA COM SONO: Ei-la.

MULHER DO POVO: Ei-la, a que errou, a que para pecar de dois homens e de um sacerdote

e de um povo precisou.

PRIMEIRO GUARDA: Somos os guardas de nossa pátria. Sufocamos em abafada paz, e da

última guerra já esquecemos até os clarins. Nosso amado rei nos espalha em postos de

extrema confiança, mas na vigília inútil nossa virilidade quase adormecemos. Feitos para

gloriosamente morrer, eis que envergonhadamente vivemos.

SEGUNDO GUARDA: Somos um guarda de um Senhor, cujo domínio nos parece bem

confuso: ora se estende até onde vão as fronteiras marcadas pelo costume e uso, e nossas

lanças então se erguem ao grito da fanfarra. Ora tal domínio penetra em terras onde existe lei

bem anterior. Pois eis-nos desta vez a guardar o que por si mesmo será sempre guardado, pelo

povo e pelo fado. Sob este céu de asfixiada tranqüilidade, pode faltar o pão, mas nunca faltará

o mistério da realização. Pois que estamos nós fantasticamente a velar? Senão o destino de um

coração.

PRIMEIRO GUARDA: Como vossas últimas palavras lembram o saudoso reboar de um

canhão. Que desejo enfim vigiar um mundo menor, onde seja nossa lança a ferir de morte o

que vai morrer. Mas, cá estamos a guardar uma mulher que a bem dizer por si mesma já foi

incendiada.

ANJOS INVISÍVEIS: Incendiada pela harmonia, a sangrenta suave harmonia, que é nosso

destino prévio.

Entra o esposo

POVO: Eis o marido, aquele que foi traído.

ESPOSO: Ei-la, a que será queimada pela minha cólera. Quem falou através de mim que me

deu tal fatal poder? Fui eu aquele que incitou a palavra do sacerdote e juntou a tropa deste

povo e despertou a lança dos guardas, e deu a este pátio tal ar de glória que abate estes muros.

Ah, esposa ainda amada, desta invasão eu queria estar livre. Sonhava estar só contigo e

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recordar-te nossa alegria passada. Deixai-a só comigo. Diante de vós – estrangeiros à minha

felicidade anterior e a minha desdita de agora – não consigo mais ver nesta mulher aquela que

foi e não foi minha, nem na nossa festa passada aquela que era e não era nossa, nem consigo

sentir a amargura que está é minha e só minha. Que sucede a este meu coração que não

reconhece mais o filho de sua Vingança?Ah, remorso: eu deveria ter vibrado o punhal com

minha própria mão, e saberia então que, se fora eu o traído era eu mesmo o vingado. Mas esta

cena não é mais de meu mundo, e esta mulher, que recebi na modéstia, eu perco ao som de

trombetas. Deixai-me só com a pecadora. Quero recuperar meu antigo amor, e depois de

encher-me de ódio, e depois eu mesmo assassiná-la, e depois adorá-la de novo, e depois

jamais esquecê-la, deixai-me só com a pecadora. Quero possuir a minha desgraça e a minha

vingança e minha perda, e vós todos impedis que seja eu o senhor deste incêndio, deixai-me

só com a pecadora.

SACERDOTE: Há quantos anos não nascia um santo. Há quantos anos uma criança não

profetizava no berço. Há quantos anos o cego não via, o leproso não se curava, ah que árido

tempo. Estamos sob o peso de tal mistério e se revelar que no primeiro a quem se apontar,

num raio, Teu esperado milagre há de se consumar.

PRIMEIRO GUARDA: Cada um diz e ninguém ouve.

SEGUNDO GUARDA: Cada um está só com a culpada.

Entra o amante.

PRIMEIRO GUARDA: A comédia está completa: eis o amante, estou radiante.

POVO: Eis o amante, eis o amante, eis o amante.

CRIANÇA COM SONO: Eis o amante.

AMANTE: Ironia que não me faz rir: chamar de amante aquele que de amor ardeu, chamar de

amante aquele que o perdeu. Não o amante, mas o amante traído.

POVO: Não compreendemos, não compreendemos e não compreendemos.

AMANTE: Pois esta mulher que nos meus braços a seu esposo enganava, nos braços do

esposo enganava aquele que o enganava.

POVO: Pois então escondia do esposo o seu amante, e do amante escondia o esposo? Eis o

pecado do pecado.

AMANTE: Mas eu não rio e por um momento não sofro. Abro os olhos até agora fechados

pela jactância e vos pergunto: quem? Quem é esta estrangeira, quem é esta solitária a quem

não bastou um coração.

ESPOSO: É aquela para quem das viagens eu trazia brocado e preciosa pedraria, e por quem

todo o meu comércio de valor se tornara um comércio de amor.

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AMANTE: Pois na sua límpida alegria ela me vinha tão singular que jamais eu suporia vinda

de um lar.

ESPOSO: Não houve jóia que ela não cobiçasse, e com ela a nudez do colo não abafasse.

Nada exigiu que eu não lhe desse, pois para um viajante humilde e fatigado a paz está na sua

mulher.

SACERDOTE: “Os inimigos do homem estão na sua própria casa.”

ESPOSO: Mas na transparência de um brilhante ela já perscrutava a vinda de um amante.

Quem vos diz é quem experimentou a peçonha: acautelai-vos de uma mulher que sonha.

AMANTE: Ah, desdita, pois se também junto a mim ela sonhava. O que então mais desejava?

Quem é essa estrangeira?

SACERDOTE: É aquela a quem nos dias santos dei inutilmente palavras de Virtude que

poderiam que poderiam sua nudez cobrir com mil mantos.

MULHER DO POVO: Todas essas palavras têm estranhos sentidos. Quem é essa que pecou e

mais parece receber louvor do pecado?

AMANTE: É aquela irrevelada que só a dor aos meus olhos revelou. Pela primeira vez amo.

Eu te amo.

ESPOSO: É aquele a quem o pecado tardiamente me anunciou. Pela primeira vez eu te amo, e

não à minha paz.

POVO: É aquela que na verdade a ninguém deu, e agora é toda nossa.

ANJOS INVISÍVEIS: Pois é terrível a harmonia.

POVO: Não compreendemos, não compreendemos e etc.

ANJOS INVISÍVEIS: Mesmo aquém da orla do mundo nós mal entendemos, quanto mais

vós, os famintos, e vós, os saciados. Que vos bate a sentença geradora: o que tem de ser feito

será feito, este é o único princípio perfeito.

POVO: Não compreendemos, temos fome e temos fome.

PRIMEIRO GUARDA: Esta gente fatigante, se for chamada a festa eu enterro, é possível que

cante...

POVO: ... temos fome.

SEGUNDO GUARDA: Armam sempre a mesma emboscada que consiste numa só entoada...

POVO: ...temos fome.

SACERDOTE: Não interrompais com vossa fome, antes sossegai, pois vosso será o Reino

dos Céus.

POVO: Onde comeremos, comeremos e comeremos, e tão gordos ficaremos que pelo buraco

de uma agulha enfim e enfim não passaremos.

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SACERDOTE: Que veio fazer esse povo? E a que vierem o esposo, o amante, os guardas?

Pois sozinha comigo, e esta mulher seria incendiada.

AMANTE: Que veio fazer esta gente? Sozinha comigo, ela amaria de novo, de novo pecaria,

arrepender-se-ia de novo – e assim num só instante o Amor de novo se realizaria, aquele em

que em si próprio traz o seu punhal e fim. Eu te lembraria dos recados ao cair da noite... O

cavalo impaciente aguardava, a lanterna no pátio... E depois... ah terra, teus campos ao

amanhecer, certa janela que já começava no escuro a madrugar. E o vinho que de alegria eu

depois bebia, até com lágrimas de bêbado a me turvar. (ah então é verdade que mesmo na

felicidade eu já procurava nas lágrimas o gosto prévio da desgraça a experimentar.)

ANJOS INVISÍVEIS: O gosto prévio da terrível harmonia.

CRIANÇA COM SONO: Ela está sorrindo.

POVO: Está sorrindo, está sorrindo, está sorrindo.

ESPOSO: E seus olhos brilham úmidos numa glória...

MULHER DO POVO: Afinal que sucede que esta mulher que ser queimada já se torna a sua

própria história?

POVO: A que sorri esta mulher?

SACERDOTE: Talvez pense que, sozinha, e já seria incendiada.

POVO: A que sorri esta mulher?

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Ao pecado.

ANJOS INVISÍVEIS: À harmonia, harmonia, harmonia que não tarda.

AMANTE: Sorris inacessível, e a primeira cólera me possui. Lembra-te que na alcova onde te

conheci era outro o teu sorriso, e o brilho de teus olhos, as tuas únicas lágrimas. Por que a

estranha graça o pecado abjeto transfigurou-se nesta mulher que sorri cheia de silêncio?

ESPOSO: Ira impotente: ei-la sorrindo, de mim ainda mais ausente do que quando era de um

outro. Por que ouviu-me este povo tão mais do que minhas palavras queriam ser ouvidas? Ah

mecanismo cruel que desencadeei com meus lamentos de ferido. Pois eis que a tornei

inatingível mesmo antes dela morrer. O incitamento ao incêndio foi meu, mas não será minha

vitória: esta pertence agora ao povo, ao sacerdote, aos guardas. Pois vós, infelizes, esconder

não podeis que é de meu infortúnio que enfim vivereis.

AMANTE: Sorris porque me usaste para ainda viva seres pelo fogo ardida.

ESPOSO: Ouve-me ainda uma vez, mulher... (como é estranho, talvez ela ouvisse, mas sou eu

que não encontro mais as antigas palavras. Dúvidas que já não tem fronteiras: quando é que

fui eu e quando é que não fui? Era eu quem a amava, mas quem é esse ser vigiado? Aquele

que em mim até agora falava, calou-se logo que atingiu os meus desígnios. Que sucede que

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não reconheço a antiga face de meu amor/ Talvez ela me ouvisse, mas falar para mim

terminou.)

ANJOS INVISÍVEIS: Retira a mão do rosto, esposo. Aquele que foste já cessou, o abrir-se da

cortina revelou: que és ínfima, ínfima, ínfima roda da terrível, terrível harmonia.

AMANTE: Pensei que vivera, mas era ela quem vivia. Fui vivido.

ESPOSO: Como te reconhecer, se sorris toda santificada? Estes braços castos não são os

braços que enganosos me abraçavam. E estes cabelos serão os mesmos que eu delatava?

Interrompei-vos, quem vos diz é o mesmo que vos incitou. Pois vejo um erro e vejo um crime,

uma confusão monstruosa: ei-la que pecou com um corpo, e incendeiam outro.

SACERDOTE: Mas “Senhor, sois sempre o mesmo”.

PRIMEIRO GUARDA: Todos lamentam o que já é tarde para lamentar, e discordam por

discordar, quando bem sabem que aqui vieram pra matar.

SEGUNDO GUARDA: Eis enfim chegado o momento em que nos dará o sabor da guerra.

SACERDOTE: Eis chegado o momento em que, pela graça do Senhor, pecarei com a

pecadora, arderei com a pecadora, e nos infernos onde com ela descerei, pelo Teu nome me

salvarei.

ANJOS INVISÍVEIS: Eis chegado o momento. Já sentimos uma dificuldade de aurora.

Estamos no limiar de nossa primeira forma. Deve ser bom nascer.

POVO: Que fale a que vai morrer.

SACERDOTE: Deixai-a. Temo dessa mulher que é nossa uma palavra que seja dela.

POVO: Que fale a que vai morrer.

AMANTE: Deixai-a. Não vedes que está tão sozinha.

POVO: Que fale, que fale e que fale.

ANJOS INVISÍVEIS: Que não fale...que não fale...já mal precisamos dela.

POVO; Que fale, que fale e que etc.

SACERDOTE: Tomai-lhe a morte como palavra.

POVO: Não compreendemos, não compreendemos e não compreendemos.

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Afastai-vos, pois o fogo pode se alastrar e através de

vossas vestes toda a cidade incendiar.

POVO: Este fogo já era nosso, e a cidade inteira queima.

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Eis o primeiro clarão. Viva o nosso Rei.

POVO: Marcada pela Salamandra.

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Marcada pela Salamandra...

ANJOS INVISÍVEIS: Marcada pela Salamandra...

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PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Vede a grande luz. Viva o nosso Rei.

POVO: Pois então hurra, hurra e hurra.

ANJOS INVISÍVEIS: Ah...

SACERDOTE: Ave-Maria, até onde descerei? “Se bem que nada tenha a me censurar, isto

não basta para me justificar”, “Senhor liberai-me de minha necessidade”, orai, orai...

ANJOS INVISÍVEIS: ...estremecei, estremecei, uma praga de anjos já escurece o horizonte...

AMANTE: Ai de mim que não sou queimado. Estou sob o signo do mesmo fado mas minha

tragédia não arderá jamais.

ANJOS NASCENDO: Como é bom nascer. Olha que doce terra, que suave e perfeita

harmonia...Daquilo que se cumpre, nós nascemos. Nas esferas onde pousávamos era fácil não

viver e ser a sombra livre de uma criança. Mas nesta terra onde há mar e espumas, e fogo e

fumaça, existe uma lei que é antes da lei e ainda antes da lei, e que dá forma à forma à forma.

Como era fácil ser um anjo. Mas nesta noite de fogo que desejo furioso, perturbado e

vergonhoso de ser menino e menina,

ESPOSO: Ela pecou com um corpo e incendeiam outro. Fui ferido numa alma, e eis-me

vingado noutra.

POVO: Que bela cor de trigo tem a carne queimada.

SACERDOTE: Mas nem a cor é mais dela. É a chama. Ah como arde a purificação. Enfim

sofro.

POVO: Não compreendemos, não compreendemos e temos fome de carne assada.

ESPOSO: Com o meu manto eu ainda poderia abafar o fogo de tuas vestes!

AMANTE: Nem a sua morte ele compreende, aquele que partilhou comigo aquela que não foi

de ninguém.

SACERDOTE: Como sofro. Mas “ainda não resiste até o sangue”.

ESPOSO: Se com o meu manto eu apagasse as tuas vestes...

AMANTE: Poderia, sim. Mas, compreende: teria ele a força de espalhar em longa vida o puro

fogo de um instante?

SACERDOTE: Ei-la, a que se tornará cinza e pó. Ah, “sois verdadeiramente um Deus

oculto”.

PRIMEIRO GUARDA: Eu vos digo, arde mais depressa que um pagão.

SACERDOTE: “O mundo passa e sua concupiscência com ele”.

SEGUNDO GUARDA: Eu vos digo, é tanta fumaça que mal vejo o corpo.

ESPOSO: Mal vejo o corpo do que fui.

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SACERDOTE: Louvado o Nome do Senhor, “Vossa graça me basta”, “aconselho-te para te

enriqueceres comprar de mim ouro experimentado pelo fogo”, foi dito no Apocalipse,

louvado seja o nome do Senhor.

POVO: Pois amém, amém, e amém.

SACERDOTE: “Ela fez suas delícias da escravidão de sentidos.”

ESPOSO: Não passava de uma mulher vulgar, vulgar, vulgar.

AMANTE; Ah ela era tão doce e vulgar. Eras tão minha e vulgar.

SACERDOTE: Eu sofro.

AMANTE: Para mim e para ela começou o que há de ser para sempre.

OS ANJOS NASCIDOS: Bom dia!

SACERDOTE: “Esperando que o dia da eterna claridade se erga e que as sombras dos

símbolos se dissipem.”

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Todos falam e ninguém ouve.

SACERDOTE: É uma confusão melodiosa: já ouço os anjos dos que morrem.

OS ANJOS NASCIDOS: Bom dia, bom dia e bom dia. E já não compreendemos e não

compreendemos.

ESPOSO: Maldita sejas, se pensas que de mim te livraste e que de ti me livrei. Sob o peso de

atração brutal, não sairás de minha órbita e eu não sairei da tua, e com náuseas giraremos, até

que ultrapassarás a minha órbita e eu ultrapassarei a tua, e num ódio sobre-humano seremos

um só.

SACERDOTE: A beleza de uma noite sem paixão. Que abundância, que consolação. “Ele fez

grandes e incompreensíveis obras.”

PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Exatamente como na guerra, queimando o mal não é

o bem que fica...

OS ANJOS NASCIDOS:...nós nascemos.

POVO: Não compreendemos e não compreendemos.

ESPOSO: Regressarei agora à casa da morta. Pois lá está minha antiga esposa a esperar-me

nos seus colares vazios.

SACERDOTE: O silêncio de uma noite sem pecado... Que claridade, que harmonia.

CRIANÇA COM SONO: Mãe, que foi que aconteceu?

OS ANJOS NASCIDOS: Mamãe, que foi que aconteceu?

MULHERES DO POVO: Meus filhos, foi assim: etc. etc. etc.

PESONAGEM DO POVO: Perdoai-os, eles acreditam na fatalidade e por isso são fatais.

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