Enfoque Quilombos 2

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Página 3 Contracapa Página 2 “No meu trabalho ninguém sabe que moro num quilombo” O futebol faz parte da trajetória deste time O santanense que briga para garantir um território na Capital BUSCA DE UMA IDENTIDADE A DIVERSIDADE CULTURAL E ÉTNICA NÃO IMPEDE A COMUNIDADE DE LUTAR POR SEU ESPAÇO E SEUS DIREITOS PÁGINA 2 QUILOMBOS ENFOQUE EDIÇÃO PORTO ALEGRE / RS 2 NOVEMBRO DE 2014 XXXXXXXXXXX LAIS ALBUQUERQUE Sérgio Fidelix, um dos fundadores do quilombo, mostra com orgulho a evolução da comunidade fundada no Bairro Azenha em Porto Alegre à

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Enfoque Quilombos (edição 2). Produção dos alunos das disciplinas de Jornalismo Cidadão e Fotojornalismo do Curso de Jornalismo da Unisinos (Porto Alegre).

Transcript of Enfoque Quilombos 2

Página 3 Contracapa Página 2

“No meu trabalhoninguém sabe que moro

num quilombo”

O futebolfaz parte da

trajetória deste time

O santanense que briga para garantir um

território na Capital

BUSCA DE UMAIDENTIDADE

A DIVERSIDADE CULTURAL E ÉTNICA NÃO IMPEDE A COMUNIDADE DE LUTAR POR SEU ESPAÇO E SEUS DIREITOS

PÁGINA 2

QUILOMBOSENFOQUE

EDIÇÃOPORTO ALEGRE / RS 2NOVEMBRO DE 2014

XXXXXXXXXXX

LAIS ALBUQUERQUE

Sérgio Fidelix, um dos fundadores do quilombo,

mostra com orgulho a evolução da comunidade fundada no Bairro Azenha em Porto Alegre

à

2. ORIGENS

RECADO DAREDAÇÃO

Para a preparação desta 2ª edição do Enfoque Quilom-bos, recebemos em sala de aula a visita de Sérgio Fidelix, o presidente do Quilombo Fidelix. Com o nosso bate-papo na noite anterior à saída de campo, conhecemos um pouco das questões importantes que pautariam nosso trabalho. Pudemos conversar sobre o nosso projeto, que abre espaço para dar voz aos assuntos que a comunidade quer tratar.

Sérgio apoiou a nossa iniciativa e demonstrou ser uma figura comunicativa e disposta a servir como fonte de infor-mação para a nossa publicação. Essas características e a sua importância na luta do Quilombo Fidelix determinaram a sua escolha como personagem do perfil apurado pela repórter Graziela Busatta.

As lutas dos quilombolas estão completamente conectadas à questão do preconceito, seja ele racial ou mesmo social. Dessa forma, não poderíamos deixar esse tema de lado. A repórter Vanessa Vargas entrevistou alguns moradores, que puderam passar suas opiniões e contar situações que enfrentaram, e ouviu a opinião do presidente do quilombo sobre o caso de racismo mais repercutido atualmente no futebol brasileiro.

A relação da comunidade com o futebol é tema das reportagens da Laíse Feijó e do Guilherme Moscovich. A afinidade de amigos por conta de suas origens no interior do Estado e a paixão pelo esporte conectam os caminhos que colocaram essas pessoas na mesma luta pelo seu espaço na capital gaúcha.

E essa luta não está limitada a garantir a propriedade das terras. A associação do Quilombo Fidelix busca outros direitos e se organiza para conquistá-los. Caroline Garske conversou com moradores do quilombo e uma representante do Incra para entender como eles estão se organizando e o que falta para atingir essas metas.

A diversidade étnica e cultural é notável no território do quilombo. Isso chamou muito a nossa atenção. Assim como muitas pessoas, tínhamos uma visão muito limitada daquilo que é um quilombo. O repórter Vinicius Ferrari conversou com os moradores e identificou entre eles muitas opiniões sobre o que consideram ser quilombolas.

Nossa experiência de trazer uma perspectiva nova sobre os quilombos foi muito produtiva. As limitações que apareceram não nos impediram de trazer novas informações e buscar diferentes pontos de vista sobre o tema. E vamos continuar buscando dar mais voz às comunidades que abrirem suas portas e nos convidarem a entrar e conversar, pois esse é o papel do Jornalismo Cidadão.

EDITOR-CHEFELUIS FELIPE MATOS-

Um time de muitas bandeiras

Objetivo de vida

A equipe formada no Recanto

Santanense busca o título que falta

O Quilombo da Fa-mília Fidelix, no bairro Azenha, em Porto Alegre,

abriga 37 famílias, com cer-ca de 100 pessoas. A co-munidade foi fundada na década de 1980 por Sérgio Fidelix, Hamilton Correa Lemos e Milton Teixeira Santana, que vieram para a Capital em busca de em-prego e oportunidades, dei-xando a cidade de Santana do Livramento.

A convivência iniciou em um bar chamado Recanto Santanense, na Rua Lima e Silva, na Cidade Baixa. Lá, os primeiros moradores se reuniam para conversa, di-visão do time de futebol que integravam e debates sobre moradia. Foi daí que surgiu a ideia de ocupar a área onde hoje é o quilombo, construin-

do suas casas. Conforme re-latos, o local era apenas mato quando chegaram lá.

Com o tempo, o número de pessoas foi aumentando e mais famílias aderiram à causa, todas com um ideal em comum: ter um espaço para moradia. Décio José Heck chegou em Porto Ale-gre faz 20 anos. Ele veio da região das Missões traba-lhar na construção civil e construiu a creche que fica ao lado do quilombo. Ali, conheceu Sérgio e Hamil-ton, que já tinham feito suas casas, foi convidado a ficar e acabou firmando moradia. “Brinco que sou o quilombo-la branco do Fidelix. Sou a favor da luta pela titulação, reconheço a história do lugar e não saio daqui por nada. É um lugar muito bom de se morar”, ressalta.

Várias foram as ameaças de despejo, mas em 2006 foi pior. Parte da comunidade chegou a ser retirada do lo-cal. “Quando cheguei aqui para construir minha casa,

era só mato. Com o tempo, foi crescendo e se desenvol-vendo. Tenho cinco filhos, e quatro deles moram aqui no quilombo. Minha casa foi a primeira a ser construída aqui, por isso insisto em lutar pelo nosso espaço”, conta Hamilton, de 71 anos.

Foi depois da ação de reintegração de posse daque-le ano e da perda de alguns espaços, como o campo de futebol que possuíam na frente de casa, que os moradores passaram a se informar mais sobre a titula-ção de quilombo, que ainda aguarda retorno do Incra, o Instituto Nacional de Colo-nização e Reforma Agrária. O autorreconhecimento, que dá a eles a denominação de quilombolas, mas não garan-te o espaço físico, foi pedido em 2004, e o documento que assegurava isso veio em 2007. A titulação, para a co-munidade, significa muito, pois garantiria a permanên-cia no espaço e diminuiria o risco de despejo.

Das 37 famílias do Fi-delix, cerca de 15 não se reconhecem como quilom-bolas. A causa principal é em relação à liberdade de decisão. Sérgio Fidelix, que lidera o quilombo e a luta pela titulação, ressalta que

respeita a decisão dessas fa-mílias, tanto que foi buscada junto ao Incra uma maneira de garantir a moradia deles no local, mesmo que não se considerem quilombolas.

No dia 4 de março de 1960 nascia o gaúcho Sérgio Ivan dos Santos Fidelix. A cidade natal é Santana do Livramento. O município faz parte da região da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, divisa com o Uruguai. Filho de Jaques Vargas Fidelix, 89 anos, e Santa Sofia dos Santos Fidelix, falecida em 2006.

O trabalho do pai como motorista e da mãe como lavadeira sustentava a fa-mília com cinco filhos. A infância pobre e cheia de dificuldades despertou o espírito de liderança e luta do jovem Sérgio, que cur-sou até a 6ª série do ensino primário no Colégio Es-tadual Professor Liberato Salzano Vieira da Cunha.

Na adolescência, frequen-tou os clubes Farroupilha, Morocho e Princesa Isa-bel, todos exclusivos para negros.

Aos 16 anos, ele partiu sozinho para Porto Alegre em busca de melhores con-dições de trabalho e estudo. Primeiramente morou na casa de uma tia, na Vila Cruzeiro. Começou traba-lhando como auxiliar de pedreiro, função que exer-ceu por aproximadamente seis meses, e logo passou a trabalhar como pintor de paredes. Em 1978, voltou a Santana do Livramento para servir ao exército por 11 meses e retornou à Ca-pital. Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Coronel Emílio Massot.

Em 1979, conheceu

sua companheira Maria Helena da Silva. Juntos tiveram dois filhos – João Carlos, 34 anos, e Fábio Ivan, 30 anos – e Fabiana, 38 anos, enteada de Sérgio. A união e o trabalho do casal serviram como base para a criação dos filhos, todos com formação em nível superior. Na Brigada Militar desde 1983, Sérgio é sargento e exerce serviços administrativos na Policlí-nica Odontológica.

Sérgio é um dos fun-dadores da comunidade do Quilombo Fidelix e atual presidente da associação. É avô de Pamela, 17 anos, Leila, sete anos, Aisha e Vanessa, de 4 anos. “Às vezes ele é visto como mandão, porque é quem corre atrás para que tudo

se realize aqui. Mas é bem-humorado e muito corajoso. É graças a ele que muitas pessoas ainda moram aqui”, revela a neta mais velha.

Segundo Bernabé Frei-tas Santiago, 64 anos, que é morador da comunidade há 15 anos, Sérgio é uma pessoa excelente. “Ele faz o máximo para manter o quilombo em pé. Muitos aqui não se assumem qui-lombolas, não querem ser negros.”

A maior meta de Sérgio é alcançar a titulação de quilombo para a comunida-de. “Eu tenho condições de tocar o processo e garantir o reconhecimento do negro no Estado.”

à

Hamilton Correa Lemos, primeiro

morador do quilombo, se orgulha da luta pela titulação

àSérgio segue

à frente da ocupação, respeitando as diferenças que existem entre os moradores

à

LAÍSE FEIJÓ-

REBECCA ROSA

GRAZIELA BUSATTA-

LAIS ALBUQUERQUE

Sem titulação, nada feitoOs quilombolas da Família

Fidelix aguardam a regularização do território para que tenham acesso aos seus direitos

Quem entra no Qui-lombo da Família Fidelix pela Rua Sebastião Leão, no bairro Azenha,

percebe algumas peque-nas casas organizadas em uma rua estreita, onde a comunidade quilombola se estabeleceu desde a década de 80. Ao passar por meia dúzia de residências, no-ta-se uma placa verde em letras brancas que mostra quais são os objetivos que

os quilombolas buscam para a comunidade.

Sérgio Fidelix, um dos fundadores do quilombo e presidente da Associação Comunitária e Cultural Re-manescentes de Quilombo Família Fidelix, conta que “a placa pregada no galpão serve para que as pessoas de outros lugares saibam e tenham uma noção do que é o quilombo e pelo que os moradores lutam”. Entre essas metas estão os cursos profissionalizan-tes de corte e costura e de línguas, como espanhol e inglês, que ainda não foram conquistados. Para que tenham acesso a mais direitos, o Quilombo da Família Fidelix aguarda a titulação, ou seja, a regu-

larização que dá o direito à propriedade das terras.

Até agora, o quilombo conseguiu apenas a ins-talação do programa do governo federal Água para Todos, o desconto de 25% na conta de luz apenas para algumas famílias, um cur-so de tecelagem (que só foi praticado por uma das moradoras do quilombo) e o autorreconhecimento, que veio em 2007.

A antropóloga Vanessa Santos, do Incra – órgão federal responsável pela re-forma agrária e pela emissão da titulação dos quilombos –, diz que o primeiro passo para o reconhecimento de uma Comunidade Rema-nescente de Quilombos é o da autoatribuição. Dessa

forma, o próprio grupo se reconhece como quilom-bola e solicita a Certidão de Autorreconhecimento à Fundação Cultural Palma-res. Tendo essa certidão, o processo para titulação co-meça a passar por diversas etapas. “Já foram elaboradas as peças que compõem um relatório maior, chamado de Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Agora, o próximo passo é encaminhar esse relatório para análise da Procuradoria Jurídica Espe-cializada”, explica Vanessa.

O longo processo que leva à titulação desanima os quilombolas, admite a vice-presidente da associa-ção da comunidade, Janete Benck. “Correr atrás do

título é bem difícil, porque a gente sabe que não vai evoluir muito”, desabafa.

Como o quilombo está em um local cercado de escolas públicas, o acesso ao estudo fica mais fácil. O Cedel, Centro Diaconal Evangélico Luterano, aten-de crianças moradoras do quilombo no turno inverso ao das aulas, como as gê-meas Ana Carolina e Maria Eduarda, que estudaram lá até completar dez anos. Segundo o presidente da Associação Comunitária, Sérgio Fidelix, atualmente nenhuma das crianças e jovens do quilombo está fora da escola.

Apesar disso, uma das principais metas do qui-lombo é a implantação de

cursos profissionalizantes e projetos educacionais. Esses cursos poderão ser oferecidos aos moradores da comunidade em um fu-turo centro cultural, a ser montado com as verbas destinadas à comunidade com a titulação.

Mesmo com uma boa educação básica, ainda fal-tam cursos que ajudem os jovens a ingressar no mer-cado de trabalho. Com a titulação, o território seria reconhecido nacionalmen-te como remanescente de quilombo, e assim os qui-lombolas teriam acesso a direitos que hoje não che-gam à comunidade, como os cursos profissionalizantes.

à

Quilombola: ser ou não ser? Além da corNa década de 80 foi abolida a

escravidão na Mauritânia, último país do mundo a acabar com esse sistema. Na mesma época, em Porto Alegre, três famílias começavam a ocupar uma área, pertencente à prefeitura, no bair-ro Azenha. Em 2004, após várias ordens de despejo, os líderes da ocupação foram informados de que poderiam se enquadrar no programa Brasil Quilombola, do governo federal, que visa compensar as comunidades descendentes de quilombolas, dando-lhes o título de quilombo, o que garante o direito à terra onde estão. O problema é que nem todas as famílias da ocu-pação foram favoráveis à ideia.

O decreto-lei 4.887/2003, que regulamenta a questão quilombola no Brasil, diz que “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segun-do critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão his-tórica sofrida”. A autoatribuição a que a legislação se refere é, na prática, uma carta de autorreco-nhecimento que as comunida-des devem enviar à Fundação Palmares. Quando os Fidelix produziram o documento, cer-ca de 15 famílias (de um total de 32) se negaram a assinar a carta. “Com o reconhecimento de quilombo eu não teria poder dentro do meu espaço, do espa-ço da minha família. E eu não quero isso. Batalhei muito para permanecer aqui, quero poder tomar minhas próprias decisões dentro da minha casa”, afirma, com os olhos cheios d’água, Ân-gela Barrada dos Santos, que criou seus filhos e netos dentro da ocupação.

Vitor Bitencourt, que traba-lha com turismo e mora há mais

de dez anos na comunidade, é firme em sua posição: “Eu não me acho no direito de ser qui-lombola. Direito é de quem tem, e não de quem quer ter. Eu sou branco, não sou negro. Me sinto invadindo um espaço que não é meu, que não me pertence”. A técnica em enfermagem Maria Helena Silva veio de Ijuí (região noroeste do Estado) ainda muito jovem tentar a vida em Porto Alegre. Na Capital, conheceu Sérgio Fidelix, atual presidente do quilombo, com quem teve dois filhos. Hoje, mora no qui-lombo com a mãe e dois netos. Segundo Maria Helena, alguns dos moradores que se recusaram a fazer o autorreconhecimento mudaram de opinião e agora querem fazer parte do movi-mento.

“Ser quilombola tem a ver com uma multiplicidade de experiências de resistência e de construção identitária que dificilmente são abarcadas em uma única definição. No caso do

Fidelix, por exemplo, é um grupo urbano que talvez não atenda a uma visão ‘romantizada’ do que é um quilombo”, afirma a antro-póloga e analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário do Incra Vanessa Flores dos Santos. Segundo ela, o Incra tem traba-lhado para que essas famílias que não se reconhecem como quilombolas possam continuar em suas casas. A ideia é que den-tro do quilombo se formem ilhas, em que as casas dos não quilom-bolas não sejam consideradas parte do quilombo, e portanto passem a ser responsabilidade do Departamento de Habitação da Prefeitura de Porto Alegre. O tema é complexo e, para Sérgio Fidelix, o fato de esses morado-res não se identificarem como quilombolas não será empecilho para que continuem vivendo em suas casas: “Nós permitiremos que esses moradores continuem na área do quilombo desde que não vendam suas propriedades nem participem das decisões que

afetem a vida dos quilombolas”. Em Porto Alegre, são cinco

comunidades quilombolas espe-rando a regularização fundiária: Família Fidelix, Família Silva, Alpes, Areal e Família Macha-do. No Rio Grande do Sul são 91 processos de regularização quilombola abertos. O conceito de “ser quilombola” tem sofrido diversas mutações com o passar do tempo. Versões estereotipa-das dessas comunidades, como as referenciadas nas novelas de TV, estão cada vez mais longe da realidade. O que une os qui-lombolas recrutados por Zumbi dos Palmares e aos do Fidelix continua sendo a procura por um lugar para chamar de seu.

“No meu trabalho ninguém sabe que eu moro num quilombo, porque é bem compli-cado.” Essa é a declaração de uma moradora do Quilombo Fidélix, de 34 anos, que não quis se identificar para falar de preconceito.

Apesar da relação com os vizinhos ser tranquila e ela nunca ter se sentido discrimi-nada por eles, conta que num supermercado ali perto já teve que reclamar com o gerente, pois o segurança a seguia o tempo todo. “Se eu entro num mercado já percebo que os seguranças se movimentam.”

Ela comenta o quanto o racismo e o pre-conceito em geral estão nas pequenas ações e são sentidos todos os dias. Para ela, a base de tudo é a educação, e usa o caso de Patrícia Moreira da Silva, que chamou o goleiro do Santos de “macaco” na Arena do Grêmio, para ilustrar isso: “Ela serviu de exemplo para uma coisa que acontece há anos”.

O presidente do quilombo, Sérgio Fidelix, é sargento da Brigada Militar há mais de 30 anos e, por coincidência, jtrabalhou com Patrícia por um curto período na Policlínica da BM, onde ele ainda trabalha. Sérgio diz que, se a moça atuava em uma instituição que preza pela legalidade e pelos princípios de igualdade e liberdade, ela estava no lugar errado. Porém, nunca percebeu qualquer ati-tude racista dela lá.

Como líder do quilombo, lembra que anos atrás o preconceito era bem mais forte. Os serviços públicos foram negados a eles muitas vezes. Demoraram, por exemplo, dez anos para conseguir a luz bem distribuída, e tiveram que puxar “gatos” da rede porque não eram levados em conta pelo poder público. “Não era explícito, era um racismo velado.”

Quanto aos moradores em volta, a rela-ção é tranquila, porém sem muita interação. Márcia, moradora do condomínio ao lado do quilombo desde 1994, não sabe muito sobre seus vizinhos e não conhece nenhum deles, somente de vista.

A vice-presidente do quilombo, Janete Benck, conta que faz um curso de saúde do povo negro, oferecido pelo SUS, e até lá já teve que explicar o que é um quilombo, porque as pessoas, mesmo com ensino superior, não sabem. “Não levam em conta o contexto his-tórico do país, e acham que nós simplesmente invadimos as terras e que vamos vendê-las, caso a titulação saia”, relata Janete, apontando mais esse preconceito contra os quilombolas.

LUTAS .3

VINICIUS FERRARI - VANESSA VARGAS-

CAROLINE GARSKE-

Ângela se emociona ao lembrar das

lutas que travou para conquistar o seu espaço

à

DÉBORA VASZELEWSKI

Quilombo ecumênicoEcumênico, em um senti-

do mais restrito, quer dizer a união entre igrejas, religiões. Em uma visão mais ampla, pode abranger cultura, espaço geográfico, classe social, raça, gênero e política, unindo vá-rias opiniões em um mesmo espaço. O quilombo da Fa-mília Fidelix é um exemplo de ecumenismo em todos os sentidos.

Dentro do bairro Azenha, 37 famílias, nem todas de ori-gem africana, lutam pelo local onde vivem há pelo menos 30 anos. No quilombo, exis-tem pessoas negras e brancas; policiais, secretárias e aposen-tados; católicos, evangélicos e umbandistas. Todos com um ideal comum: permanecer na terra onde moram.

Um dos primeiros mora-dores do local chama a aten-ção logo de cara pelas suas características físicas: branco e de olhos claros. Apesar da

origem, quando questionado, Hamilton Correa Lemos afir-ma ser quilombola e diz que não desistirá da titulação do quilombo.

Já Dona Ângela Barrada dos Santos, negra, não quer ser quilombola. Para ela, isso não é necessário para comprovar sua origem. “Sei reconhecer que sou negra, sei da minha origem. Não preciso levantar uma bandeira para provar isso. A comunidade aceita a minha posição, compreende que não sou a favor”, ressalta.

Outra diversidade mui-to presente no quilombo é a religiosa. Na frente da casa de Décio José Heck, cató-lico, existe uma capelinha para Nossa Senhora Apare-cida, um dos locais favoritos do fundador e presidente da comunidade, Sérgio Fidelix, apesar de ele seguir mais a religião umbandista. “Eu par-ticularmente sigo a umbanda,

mas também tenho traços da católica. Respeito todas e estou em todas”, brinca.

Em uma casa próxima moram Paulo Roberto Santia-go Ferreira, 48 anos, e Alison Carlos Santiago Ospitaleche, 29, filhos de santo há cerca de 15 anos. Na residência, mais dois parentes seguem a umbanda e a avó, evangélica, respeita, aceita e convive mui-to bem com a crença dos netos. Alison é vigilante e cantor. Atualmente é puxador de can-to em escolas de samba da Ca-pital e da Serra. Sérgio Fidelix também compartilha da paixão pelo samba e é presidente da escola do quilombo vizinho, o Areal da Baronesa, onde além do Carnaval participa de várias atividades culturais como parceiro.

“Temos uma boa con-vivência com todos os qui-lombos da cidade, trocamos experiências e promovemos

ações em parceria. No Areal da Baronesa, que fica muito per-to da nossa comunidade, nos reunimos mais vezes. Além de ser presidente da escola de

Samba, eu ajudo na organi-zação do Dia da Criança e de vários outros eventos”, destaca Fidelix. Ele ressalta ainda que a proximidade do quilombo com o Hospital Porto Alegre não permite que muito barulho seja feito. Assim, atividades como capoeira e roda de sam-ba costumam ser feitas fora do quilombo.

Junto às terras quilombo-las encontra-se o Cedel, o Cen-

tro Diaconal Evangélico Lute-rano, que firmou uma parceria com a comunidade do Fidelix. Lá, algumas oficinas, como de artesanato e de informática, são oferecidas gratuitamen-te para os moradores, além do empréstimo de salas para reuniões e encontros culturais promovidos pela associação dos moradores.

Sérgio, presidente do Qui-lombo, destaca que pretende levar essas e outras oficinas para um espaço ainda mais próximo dos moradores, que será reformado em breve, gra-ças a uma verba que recebeu da Emater para pequenos agri-cultores. A intenção é transfor-mar esse local, futuramente, em um Ponto de Cultura, pro-porcionando um engajamento cultural ainda maior dentro da comunidade quilombola, tratando da temática africana.

GENTE

O Enfoque Quilombos é um jornal experimental dirigido às comunidades quilombolas de Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, é distribuído gratuitamente. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

(51) 3591 1122, ramal 3727

[email protected]

REDAÇÃO – Jornalismo Cidadão – Orientação: Felipe Boff. Edição: Luis Felipe de Souza Matos (texto) e Vinicius Nunes Ferrari (foto). Reportagem: Caroline Garske Rosa, Graziela de Souza Busatta, Guilherme Lemchen Moscovich, Luís Felipe de Souza Matos, Vanessa Vargas dos Santos e Laíse Feijó. FOTOGRAFIA – Fotojornalismo – Orientação: Flávio Dutra. Fotos: Cintia Fernandes, Débora Vaszelewski, Josi Baroli, Laís Albuquerque, Leonardo Stürmer e Rebecca Rosa. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) – Projeto gráfico, diagramação e finalização: Marcelo Garcia. IMPRESSÃO – Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Bairro Três Figueiras – Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@

unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Gustavo Fischer. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Thais Furtado.REPÓRTER- FOTÓGRAFO

ENFOQUE QUILOMBOS EDIÇÃOPORTO ALEGRE / RS 2NOVEMBRO DE 2014

QUILOMBOSENFOQUE FALE CONOSCO

LEGENDAS

Nascidos do esportePaixão nacional, o futebol foi

motivo para reunir os amigos que formaram o quilombo – e continua sendo

A história do Qui-lombo Fidelix tem a ver com o espor-te. Sua origem foi

em Santana do Livramento, de onde vieram grande parte dos moradores para Porto Alegre. Com essa afinidade, os amigos formaram duas equipes de futebol: o San-tanense e o Fronteira.

O Fronteira foi fundado com 90% dos atletas vindos de Santana do Livramento. Mas foi o Santanense, inspi-rado no Grêmio Santanense, clube daquela cidade, que deu origem a uma associa-ção com o mesmo nome em um bar na Rua Lima e Silva aqui na Capital.

A Associação Santanen-se reunia o pessoal para jo-

gar futebol na Redenção. O uniforme do time, nas cores vermelha e branca, homena-geava o do Grêmio Santa-nense, que ironicamente tem as cores do rival do Grêmio da Capital, o Internacional – aliás, time para o qual torcia a maioria. Hamilton Correa Lemos é um dos mais anti-gos moradores do quilombo. Aposentado, trabalhou na Brigada Militar durante três décadas. Ele conta que o Santanense durou do início dos anos 80 até a metade dos anos 90, e que o clube parou de funcionar depois da morte do seu presidente.

Hamilton conta ainda que o saudoso ídolo do Internacional Escurinho e um primo dele, Lico, che-garam a jogar bola com os moradores. Já com 71 anos, Seu Hamilton ainda joga futebol, mas hoje atua como goleiro, deixando suas antigas posições de zagueiro e lateral para os amigos mais jovens.

Paulo Nobre Santiago Ferreira, 48 anos, é outro antigo habitante do qui-lombo. Paulo chegou de Santana do Livramento e, antes de viver ali, foi morar na Zona Norte da Capital. Ele conta que em Santana do Livramento havia três clubes: o 14 de Julho – úni-co clube ainda ativo como profissional na cidade –, o Armour Swift, que pertencia à empresa de frigoríficos norte-americana de mesmo nome, e o Fluminense, onde Hamilton chegou a jogar profissionalmente.

Tarciso Damasceno Júnior, 13 anos, morador do quilombo, também se-gue o caminho do esporte. Começou nas categorias de base do Internacional, mas atualmente joga na categoria sub-13 do Grêmio, atuando na posição de volante. Ele treina três vezes por semana na escolinha do clube e reve-la que planeja seguir a car-reira de jogador no futuro.

Outra ligação do Fidelix com a paixão nacional é que ao lado da área do quilombo existe a Praça Sport Cllub Internacional, onde ficava o primeiro campo do Inter. O local fica entre as ruas Alcides de Oliveira Gomes, José dos Santos e Jornal do Brasil, em frente a um condomínio residencial. Foi desse mesmo lugar que saiu a grande marcha de torce-dores em direção ao Estádio Beira-Rio na comemoração do aniversário de 100 anos do Inter.

à

Morador do quilombo, Tarciso

atualmente pratica futebol nas categorias de base do Grêmio

Paulo (E) e Alison, filhos de

santo, convivem com a diversidade religiosa na própria casa

à

GUILHERME MOSCOVICH-

REBECCA ROSA

à

DÉBORA VASZELEWSKI

LAÍSE FEIJÓ-