ENTRE A LEI E A PRÁTICA -...
Transcript of ENTRE A LEI E A PRÁTICA -...
Contextos Internacionais, Normativos e Institucionais da Justiça de Crianças e Jovens
1
e
ENTRE A LEI E A PRÁTICA Subsídios para uma reforma da Lei Tutelar Educativa
Boaventura de Sousa Santos
Director Científico
Conceição Gomes (coord.)
Paula Fernando
Sílvia Portugal
Equipa de investigação
Carla Soares
Catarina Trincão
Fátima de Sousa
João Aldeia
José Reis
2010
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO GERAL ....................................................................................................................... 15
I. SOCIEDADE E DELINQUÊNCIA JUVENIL
1 A DELINQUÊNCIA DE CRIANÇAS E JOVENS: UM OLHAR SOCIOLÓGICO ....................................................... 27
Introdução ................................................................................................................................ 27
1.1 Exclusão social, insegurança e delinquência: relações complexas ......................................... 29
1.2 O conceito de delinquência juvenil ...................................................................................... 35
1.3 A importância dos media na construção social do fenómeno e das políticas ........................ 37
1.4 A delinquência juvenil na análise sociológica ....................................................................... 40
1.5 As políticas públicas: protecção vs judicialização .................................................................. 47
2 AS CRIANÇAS E JOVENS DELINQUENTES NOS MEDIA ............................................................................. 55
Introdução ................................................................................................................................ 55
2.1 Discursos mediáticos sobre as crianças e jovens .................................................................. 57
2.2 O jovem agressor nas notícias em 2009: temas principais e tipos de discurso ...................... 60
2.3 Caracterizações do jovem agressor ...................................................................................... 69
II. INSTRUMENTOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS E MODELOS DE INTERVENÇÃO
1 AS CRIANÇAS E JOVENS NO DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................... 77
Introdução ................................................................................................................................ 77
1.1 A acção da ONU e do direito internacional – instrumentos relevantes em matéria de justiça
juvenil ..................................................................................................................................... 79
1.2 O direito europeu ................................................................................................................ 85
1.3 A acção da União Europeia .................................................................................................. 90
2 OS MODELOS DE INTERVENÇÃO .................................................................................................. 101
Introdução .............................................................................................................................. 101
2.1 Os modelos de protecção, de justiça e educativo ............................................................... 101
2.2 A caminho de um modelo comum europeu ....................................................................... 105
III. A JUSTIÇA PENAL DE CRIANÇAS E JOVENS NO CONTEXTO EUROPEU: O CASO DE
FRANÇA E DE ESPANHA
1 O CASO DE FRANÇA .................................................................................................................. 115
Introdução .............................................................................................................................. 115
1.1. As principais características do direito e da justiça de crianças e jovens em França ........... 117
A justiça especializada e a tramitação do processo .............................................................. 118
O processo de apresentação imediata ................................................................................. 122
Medidas e sanções .............................................................................................................. 123
1.2 A reforma da justiça penal de crianças e jovens em França ................................................ 132
A proposta da Comissão Varinard ........................................................................................ 135
1.3. Perspectivas sobre o modelo em discussão ....................................................................... 136
2 O CASO DE ESPANHA ................................................................................................................. 147
Introdução .............................................................................................................................. 147
2.1 A responsabilidade penal das crianças e jovens.................................................................. 147
As medidas .......................................................................................................................... 151
2.2 Perspectivas sobre o debate da justiça penal de crianças e jovens ..................................... 158
2.3 O modelo catalão de justiça juvenil .................................................................................... 164
IV. ENTRE A LEI E A PRÁTICA: A JUSTIÇA TUTELAR EDUCATIVA EM PORTUGAL
1. HÁ FUNDAMENTOS PARA UMA REFORMA ESTRUTURAL? ................................................................. 171
Introdução .............................................................................................................................. 171
1.1.O (não) conhecimento da dimensão do fenómeno da delinquência juvenil ........................ 174
1.2 Reflexões sobre o modelo de intervenção da Lei Tutelar Educativa .................................... 180
2. BLOQUEIOS NORMATIVOS ......................................................................................................... 187
Introdução .............................................................................................................................. 187
2.1. A (não) uniformização de jurisprudência ........................................................................... 187
2.2 Aperfeiçoamentos legais .................................................................................................... 198
3. DIVERSÃO E MEDIAÇÃO: DOIS INSTITUTOS POR CUMPRIR? ............................................................... 211
Introdução .............................................................................................................................. 211
3.1 A suspensão do processo ................................................................................................... 211
3.2 Mediação........................................................................................................................... 213
4. O PAPEL DOS AGENTES DO SISTEMA JUDICIAL ................................................................................. 221
Introdução .............................................................................................................................. 221
4.1 A Direcção-Geral de Reinserção Social: um papel fundamental na Lei Tutelar Educativa .... 222
Da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores ao Instituto de Reinserção Social ..... 222
A des(res)estruturação das equipas ..................................................................................... 236
Prevenção da criminalidade ................................................................................................. 241
A fase pré-sentencial ........................................................................................................... 243
Da elaboração do relatório social à aplicação da medida ..................................................... 248
4.2 O Ministério Público .......................................................................................................... 252
4.3 O Defensor ........................................................................................................................ 254
5. RISCO E DELINQUÊNCIA: ENTRE A PROTECÇÃO E A LEI TUTELAR EDUCATIVA ......................................... 259
Introdução .............................................................................................................................. 259
5.1 A articulação processual entre protecção e tutelar educativo ............................................ 260
5.2 A falta de instituições protectoras de contenção................................................................ 263
5.3 O tempo da resposta e a “falha” da protecção ................................................................... 267
5.4 A execução das medidas e a procura de outras respostas .................................................. 269
5.5 A duração das medidas ...................................................................................................... 273
6. E DEPOIS DA EXECUÇÃO DA MEDIDA TUTELAR DE INTERNAMENTO? ................................................... 277
Introdução .............................................................................................................................. 277
6.1 A necessária transição ....................................................................................................... 277
V. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
1 CONCLUSÕES ........................................................................................................................... 291
2 RECOMENDAÇÕES .................................................................................................................... 313
2.1 Prevenção: fundamento último da intervenção tutelar educativa ...................................... 315
Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil.................................................... 316
2.2 Mediação........................................................................................................................... 323
A mediação no inquérito tutelar educativo .......................................................................... 325
A mediação para aplicação de medida tutelar...................................................................... 326
A mediação na execução da medida tutelar educativa ......................................................... 326
2.3 Alterações legais ................................................................................................................ 327
Da (ir)relevância da denúncia por parte do ofendido ........................................................... 328
Medida de internamento em regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-semana
..................................................................................................................................... 329
Iniciativa da apresentação do plano de conduta para aplicação da suspensão do processo .. 330
Manutenção da detenção em flagrante delito no processo tutelar educativo ...................... 332
Outras questões legais......................................................................................................... 333
2.4 Linguagem jurídica ............................................................................................................. 334
2.5 Desempenho funcional dos profissionais ........................................................................... 337
2.6 Execução da medida de internamento em centro educativo .............................................. 342
2.7 Acompanhamento pós-institucionalização ......................................................................... 344
2.8 O combate ao desperdício de conhecimento ..................................................................... 346
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................................... 351
PAINEL DE DISCUSSÃO .................................................................................................................. 365
AGRADECIMENTOS
O presente estudo, realizado pelo Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, foi
solicitado pela Direcção-Geral de Reinserção Social. Um primeiro
agradecimento é, então, devido à Direcção-Geral de Reinserção Social, na
pessoa da sua Directora, Ex.ma Senhora Dra. Leonor Furtado, pela confiança
depositada no Observatório Permanente da Justiça Portuguesa para a sua
realização. Esta é uma temática em que é ainda escasso o conhecimento
produzido, daí ser ainda mais relevante esta solicitação e o interesse
manifestado por aquela Direcção-Geral. A igual escassez e fraca fiabilidade
dos indicadores estatísticos não nos permitiu uma reflexão cabal sobre a
temática. Era nossa intenção fazer essa discussão neste relatório. Contudo, a
impossibilidade de dispormos de dados validados das estatísticas oficiais da
justiça levou-nos a decidir terminar o relatório sem essa informação.
Esperamos, contudo, logo que a Direcção-Geral da Política de Justiça termine
o processo de validação, fazê-lo em complemento a este relatório,
agradecendo, desde já, toda a colaboração prestada.
Para a realização deste estudo e do respectivo relatório, vários
agradecimentos são, igualmente, devidos.
Aos senhores magistrados e demais profissionais que manifestaram a
sua disponibilidade para participarem no painel de discussão que promovemos
e para, em entrevistas, nos darem o seu testemunho, queremos deixar uma
palavra de agradecimento. Assim, pela disponibilidade para participarem no
10 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
painel de discussão, agradecemos de forma reconhecida aos senhores drs.
António Duarte-Fonseca, Armando Leandro, Daniel Rijo, Francisco Narciso,
Joana Marques Vidal, Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Pedro
Branquinho, Rui Abrunhosa Gonçalves e Tiago Neves.
Agradecemos, também, aos senhores magistrados que, nas comarcas
nas quais incidiu o nosso estudo, nos receberam: Drs. Antónia Soares, Carlos
Azevedo, Fernando de Jesus Monteiro, Henrique Novo, Isabel Palma Calado,
Joaquim Manuel da Silva, Judite Resende, Mafalda Faria Pestana e Teresa
Carla Faria de Brito
Cabe-nos também agradecer a disponibilidade e ajuda prestadas pelos
senhores funcionários judiciais Adélia Macela, António Tavares, Celeste Nunes,
Cristina Godinho, Elisabete Fortes, Elisabete Martins, Fátima Pequito, Isabel
Rodrigues, João Lopes, José Dinis, José Rigal, Luciana Peixoto, Lucília Matos,
Manuela Jerónimo, Maria João Gonçalves, Miguel Candeias, Patrícia Machado,
Paula Parente, Paulo Santos e Vítor Costa.
Destacamos, ainda, a amabilidade e os esclarecimentos prestados pelos
profissionais da Direcção-Geral de Reinserção Social que contactámos para a
elaboração do presente estudo, Dr. Amadeu Baptista, Ana Lavado, Maria Irene
Vidal e Nuno Rodrigues.
Uma reconhecida palavra de agradecimento é devida aos
representantes de órgãos de polícia criminal entrevistados: Comandante
Adérito Marcelino, Intendente Gomes do Vale, Intendente Hugo Palma,
Comissário Sérgio Loureiro, Capitão Pedro Gomes, Tenente Vicente e
Aspirante Alves.
Aos Senhores Drs. José Mouraz Lopes, Paulo Guerra e Rui do Carmo
queremos deixar aqui o nosso grato reconhecimento pela disponibilidade em
discutir connosco esta temática. Essa discussão foi essencial para as
recomendações com que finalizamos este trabalho.
11
Além da equipa de investigação, este trabalho contou, em vários
momentos, com o apoio de colegas do Observatório Permanente da Justiça. O
nosso muito obrigado aos Drs. Diana Fernandes, Marta Cancela e Tiago
Ribeiro e, em especial, pelo seu apoio na conclusão deste relatório, às Dras.
Élida Santos e Marina Henriques.
INTRODUÇÃO GERAL
INTRODUÇÃO GERAL
O tema da delinquência juvenil tem vindo a ocupar, no contexto europeu,
um espaço crescente no debate público e na agenda política de reforma. A
discussão espraia-se por vários sub-campos fazendo emergir a complexidade
do tema. Cruzam-se os olhares da sociologia, da psicologia, do direito e da
comunicação social sobre a criança e o jovem que praticou um facto que à, luz
da lei, é considerado crime.
Nesse cruzamento, sobressaem duas perspectivas principais: de um
lado, aqueles que procuram alargar o campo da multidisciplinaridade,
mostrando que é nessa intersecção alargada que tem que ser procurada a
resposta; do outro, aqueles que, não negando outras abordagens, tendem a
valorizar a representação social dos jovens como criminosos e desviantes e as
vítimas como vulneráveis.
Para os primeiros, um dos principais pontos de convergência reside na
busca de mais conhecimento sobre o fenómeno da delinquência de crianças e
jovens, mostrando que a acção do Estado não se deve concentrar na vertente
repressiva, mas sim na educação. Salientam, por um lado, as falácias de
categorizações, como “jovens delinquentes”, “crime”, mostrando que a
abrangência das categorias exige mais precisão (por exemplo, importa
distinguir os delitos “bagatelas”, que não buscam ganhos materiais e são fruto
da rebelião e da afirmação identitária, daqueles que, podendo acarretar
violência instrumental, visam o ganho material - roubos, furtos – e/ou a
violência directa contra as pessoas); e, por outro, a estratificação social do
desvio e do crime, em especial, daquele que é efectivamente punido pelas
instâncias judiciais.
16 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Se é certo que a pobreza e a exclusão social não podem ser vistas, de
per se, como causas do aumento da criminalidade e da violência, aquelas
podem influenciar a perda da eficácia dos mecanismos de regulação social,
propiciando o surgimento de certas formas de comportamentos desviantes.
Acentua-se, por isso, a importância da acção estrutural e integrada que possa
actuar sobre os factores contextuais da vivência dessas crianças e jovens,
sejam eles sócio-culturais ou identitários, destacando a forte articulação entre
exclusão social, risco e comportamentos desviantes e delinquentes.
Do outro lado, destacam-se aqueles que enfatizam o papel do direito e
das instâncias de controlo social na moldagem de comportamentos.
Prevalecem as ideias de responsabilização individual, da culpa, de que a
delinquência de crianças e jovens deve ser tratada segundo uma lógica de
“tolerância zero”, em que nenhum acto delinquente pode ficar sem resposta. O
discurso valoriza as vítimas dos comportamentos delinquentes, nele
incorporando a vitimização e a necessidade de protecção da sociedade em
geral. Este é o campo do designado modelo judiciário que ganha terreno com a
revalorização do papel dos magistrados e das polícias em detrimento dos
técnicos (sociólogos, psicólogos e assistentes sociais). Esta “conversão de
narrativas” traz consigo um discurso que defende mais criminalização de
condutas, abaixamento da idade da intervenção repressiva do Estado, mais, e
por mais tempo, encarceramento de jovens em instituições próprias.
A crise económica e, nalguns países, a mudança ideológica do papel do
Estado, levando a que a sua actuação seja menos relevante nos factores
estruturais do risco e da insegurança e mais incidente no quadro do seu papel
repressivo e de controlo social, privilegiando os factores da insegurança, do
medo e da protecção física dos cidadãos, contribuíram decisivamente para a
mudança do paradigma de intervenção que prevalecia até há algum tempo,
sobretudo, nos países centrais em que o Estado de bem-estar foi mais forte.
A crescente mediatização dos fenómenos criminais, em especial da
criminalidade violenta, e os olhares, em regra simplistas, que os meios de
Introdução Geral
17
comunicação social veiculam sobre o fenómeno da delinquência juvenil
condicionam as representações sociais sobre ele, fomentando o sentimento de
insegurança das populações, e, com ele, as opiniões positivas na defesa de
políticas que mais acentuam a via repressiva.
Entre nós, assume relevância uma terceira via que, valorizando os
argumentos dos que defendem um olhar e uma intervenção estrutural e
integrada, que abarque os diferentes factores contextuais da vivência da
criança e do jovem e a valorização do papel da vítima, situam no âmbito da
acção das instâncias judiciais toda a intervenção, revalorizando o papel central
do Ministério Público, ainda que em articulação com instâncias extra-judiciais,
em especial, com recurso à mediação.
Reconhecendo que a lei, só por si, não resolve todos os problemas e,
muitas vezes, não é no quadro legal que se situam os principais problemas e
bloqueios à concretização dos objectivos das políticas, esta perspectiva apela a
reformas mais concertadas, a uma intervenção mais célere e mais eficiente de
instituições conexas ao sistema judiciário, como as instâncias de segurança
social e de reinserção social, e a uma maior articulação com a acção de
promoção e protecção.
Como melhor veremos ao longo do relatório, a construção e o sentido
dos processos de reforma depende muito dos diagnósticos e das opiniões que
mais o influenciam. As reformas devem procurar melhor responder aos
problemas e desafios sociais encontrando para eles a resposta mais adequada
que, no respeito pelos direitos e garantias consagradas, promova a sua
resolução estrutural. Para tal, é fundamental que o processo de reforma seja o
mais informado possível e permita um debate alargado de modo a que as
opções políticas possam ter em conta as diferentes vertentes e perspectivas da
problemática a que se dirigem. O estudo desenvolvido pelo Observatório
Permanente da Justiça, cujos resultados principais se apresentam neste
18 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
relatório, tem justamente como objectivo central contribuir para o processo de
reforma em curso.
Para a realização do trabalho de campo, revelou-se adequada a
adopção de uma estratégia de investigação que permitisse recolher informação
cruzando diferentes perspectivas dos principais actores da aplicação da Lei
Tutelar Educativa.
De modo a abarcar tanto as recentes alterações na organização
judiciária, como a diversidade da realidade sociológica, o trabalho de campo
privilegiou, na selecção dos tribunais e serviços auxiliares da justiça onde
decorreu o estudo empírico, as comarcas piloto Baixo Vouga e Grande Lisboa-
Nordeste.
Aplicou-se um plano de pesquisa com recurso a duas técnicas
metodológicas complementares: a realização de entrevistas semi-estruturadas
aos profissionais e a condução de um painel de discussão. O recurso à
metodologia da entrevista semi-estruturada junto dos juízes, magistrados do
Ministério Público, funcionários de justiça e técnicos de reinserção social
procurou obter testemunhos de combinação entre as suas vivências
quotidianas e as perspectivas que propõem, tendo em vista o desenvolvimento
de condições de visibilidade sociológica sobre a aplicação da Lei Tutelar
Educativa.
A realização de um painel contou com a presença e participação de
juízes, magistrados do Ministério Público, psicólogos, bem como de
académicos especialistas em delinquência juvenil, privilegiando uma
abordagem multidisciplinar e colocando-os em confronto orientado face às
problemáticas levantadas no âmbito da investigação em curso.
Começamos por evidenciar, no ponto I.1, intitulado A delinquência de
crianças e jovens um olhar sociológico, os vários contextos do fenómeno,
cientes, por um lado, de que as reformas jurídicas serão tão mais adequadas
quanto mais se conhecer o fenómeno sociológico a que se dirigem e, por outro,
Introdução Geral
19
que a eficácia das respostas, quer de natureza repressiva, quer preventiva
depende muito da forma como agem e se articulam os vários contextos em que
a criança e o jovem se relacionam.
A relação complexa entre meios de comunicação social e justiça tem
despertado estudos e interesse crescentes. Os media, ao seleccionarem e ao
hierarquizarem os acontecimentos que serão notícia, ao convertê-los ou não
em temas de debate, influenciam, decisivamente, não só as percepções
sociais, mas também a agenda de reforma. No ponto I.2, As crianças e jovens
delinquentes nos media, fazemos uma análise das noticias sobre o tema
publicadas nos principais jornais nacionais durante o ano de 2009.
Ao convocarmos, nos pontos II e III, a experiência comparada, casos de
Espanha e de França, e as recomendações internacionais mais significativas
nesta matéria, Instrumentos normativos internacionais normativos e modelos
de intervenção, pretendemos situar o debate num âmbito mais vasto,
mostrando, não só o sentido de outras reformas, mas também, alguns aspectos
do debate que acerca delas se fez nos respectivos países. Se é certo que a
importação de soluções obriga a um processo de adaptação a um contexto
sócio-cultural diferenciado, elas podem, contudo, ajudar na busca de soluções,
quer evidenciado os aspectos positivos, quer os negativos. A escolha daqueles
países deveu-se ao facto de, em ambos, estarem em discussão processos de
reforma nesta matéria.
No ponto IV deste relatório fazemos uma incursão pela aplicação da Lei
Tutelar Educativa. O nosso objectivo não é a avaliação da sua aplicação, que
estava fora do objecto deste trabalho e que também não seria possível no
tempo de que dispusemos para o fazer, mas, tão só, traçar as linhas essenciais
com que se debate essa aplicação, numa espécie de follow-up, passados que
foram cerca de seis anos sobre essa primeira avaliação realizada pelo OPJ e
cujos resultados principais constam do relatório “Os Caminhos Difíceis da
“Nova” Justiça Tutelar Educativa - Uma avaliação de dois anos de aplicação da
20 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Lei Tutelar Educativa”, de 2004, onde apresentámos um conjunto vasto de
recomendações que, como se verá ao longo deste relatório, se mantêm, na sua
grande maioria, com grande actualidade.
No ponto IV.1, Há fundamentos para uma reforma estrutural?,
procuramos debater qual o lastro em que se poderá fundamentar um processo
de reforma sobre esta matéria e qual deveria ser o seu alcance e sentido.
No ponto IV.2, damos conta dos principais problemas normativos que o
nosso trabalho permitiu identificar. Alguns deles já identificados no trabalho
anterior; outros, emergindo agora com mais destaque.
A Lei Tutelar Educativa prevê um conjunto de respostas processuais
diferenciadas, onde se incluem respostas de diversão, através do instituto da
suspensão do processo e a via da mediação, embora esta mais timidamente.
Como fazer funcionar melhor estas respostas alternativas de modo a abarcar
as situações diferenciadas que constituem a procura judicial nesta matéria? É
este o tema que introduzimos no ponto IV.3 Diversão e mediação: dois
institutos por cumprir?
No ponto IV.4, O papel dos agentes do sistema judicial, damos conta do
papel funcional dos vários intervenientes do sistema na aplicação da lei, de
problemas que enfrentam e de como esse papel poderia ser optimizado. Pela
importância central na aplicação deste lei, damos especial destaque à
Direcção-Geral de Reinserção Social.
O ponto IV.5, Risco e crime: entre a protecção e a Lei Tutelar Educativa,
dá voz às posições que mostram como o risco e o crime não podem, talvez na
maioria dos casos, ser tratados separadamente. O mote é a intervenção
alargada, convocando saberes diferenciados de forma a minimizar o risco e a
insegurança e exclusão sociais, contextos altamente propícios ao
desenvolvimento do desvio e da delinquência.
Introdução Geral
21
Neste caminho também se situa o ponto IV.6, E depois da execução da
medida tutelar educativa?, mostrando que a actuação sobre os factores de
risco e exclusão, tanto podem e devem ocorrer em momento anterior (fase
preventiva essencial da delinquência) à possibilidade de aplicação da lei tutelar
educativa, durante a execução de uma medida, ou posterior à sua execução. A
consolidação da intervenção e dos eventuais efeitos positivos dela decorrentes
exigem um maior suporte para lá do fim da medida, em especial, quando se
tratar de uma medida institucional.
Terminamos este relatório com os destaques, que integram as
conclusões finais, e, à luz do trabalho realizado, com um conjunto de
recomendações. Esperamos com elas e, em geral, com o trabalho produzido,
contribuir para o debate sobre o processo de reforma em curso.
22 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
1
I. SOCIEDADE E DELINQUÊNCIA JUVENIL
A DELINQUÊNCIA DE CRIANÇAS E JOVENS:
UM OLHAR SOCIOLÓGICO
1
1 A DELINQUÊNCIA DE CRIANÇAS E JOVENS: UM OLHAR SOCIOLÓGICO
Introdução
Como referimos na introdução geral, em qualquer sociedade as
respostas de recorte mais jurídico e judiciário serão tão mais adequadas,
quanto melhor se conhecer e compreender o fenómeno sociológico a que se
dirigem. A eficácia das respostas quer de natureza preventiva, quer repressiva
à delinquência de crianças e jovens depende muito da forma como agem e se
articulam os vários contextos em que o jovem se relaciona: a família, a
comunidade, a escola, as instituições judiciárias.
Maria João Leote de Carvalho (2009), invocando o conceito de
delinquência de exclusão de Wacquant (2007), chama a atenção para a
necessidade das “não conformidades” dos jovens serem pensadas a partir da
sua “articulação com as lógicas de exclusão e de segregação em relação com
os espaços onde tomam corpo”. Entre nós, é necessário aprofundar este
conhecimento com estudos sociológicos sobre esses outros contextos para
além dos institucionais. A importância de se conhecer a verdadeira dimensão
da criminalidade de crianças e jovens, caracterizando as cifras ocultas, as
vítimas, os agressores, os seus vários contextos, de origem e de acção, os
tipos de crime, entre outros, é fundamental para o desenvolvimento de políticas
que mais assertivamente actuem sobre o fenómeno da criminalidade juvenil.
Ao lançar um olhar sobre o contexto social deste fenómeno em Portugal,
28 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
procuramos, também, alertar para a necessidade crucial de ir para além dos
contextos institucionais.
Tal não significa que a “investigação empírica” tenha estado alheada
face a esta temática. Na verdade, desde a década de 90 que o tema da
delinquência juvenil (dos comportamentos desviantes dos jovens em geral) tem
ganho maior visibilidade em Portugal (Carvalho, 2003, 2005; Seabra, 2005;
Azevedo, 2007). Contudo, os trabalhos que reflectem sobre este fenómeno
foram, por vezes, permeáveis aos “pânicos morais” veiculados pelos media,
tratando a questão do “desvio juvenil”, muitas vezes, sem os devidos cuidados
metodológicos que permitiriam desfazer muitas das “ideias feitas”
empiricamente inverificáveis construídas em torno dele (Pais, 1996: 220;
Lagrange, 2002; Robert, 2002). Entre estas “pré-noções”, contamos as
retóricas que associam a “juventude” à irresponsabilidade ou à “amoralidade”,
ou as que afirmam que as classes populares apresentam uma maior
predisposição para os comportamentos desviantes (Pais, 1996; Lagrange,
2002).
Procuramos aqui analisar alguns destes processos de construção social
da delinquência juvenil, discutindo o modo como as suas representações
sociais, mediáticas e científicas se articulam com os amplos processos de
transformação social e económica das sociedades contemporâneas. Qualquer
modelo de intervenção sobre esta temática não pode ignorar, por um lado, os
contextos sociais e económicos nos quais se inscrevem a delinquência e a
criminalidade de crianças e jovens e, por outro lado, o modo como as
representações sociais acerca destes fenómenos moldam as respostas
societais aos problemas.
Sociedade e Delinquência Juvenil
29
1.1 Exclusão social, insegurança e delinquência: relações complexas
A literatura tem mostrado como, nas últimas décadas, o sistema judicial
e a polícia têm vindo a endurecer o modo como lidam com os “jovens
delinquentes” (Mclaughlin e Muncie, 1994; Lagrange, 2002; Carvalho, 2003,
2005; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). A ideia veiculada é que existe um
aumento, quer da repressão policial (associada a uma acção discriminatória,
particularmente dirigida aos indivíduos pertencentes a minorias etnorraciais que
habitam nas periferias urbanas), quer do número de casos de delinquência
juvenil que chegam ao sistema judicial. Alguns daqueles estudos avançam a
hipótese desse aumento estar mais relacionado com a alteração de
representações ao nível da gravidade dos comportamentos desviantes dos
jovens do que com o aumento real da criminalidade juvenil, mostrando como
um conjunto de retóricas responsabilizam a delinquência juvenil por mais
problemas do que aqueles pelos quais os jovens são realmente responsáveis.
Entre os delitos, importa distinguir entre aqueles que não buscam
ganhos materiais e são fruto da frustração, da rebelião e da afirmação
identitária – desrespeito pela autoridade, lutas entre jovens, conflitos com as
autoridades, violência em geral sem destinatário, etc. – e aqueles que,
podendo acarretar violência instrumental, visam primeiramente o ganho
material – furtos e roubos (Lagrange, 2002). Os sistemas de controlo social têm
que saber encontrar respostas, devidamente articuladas, para uns e para
outros.
Também entre nós diversos estudos mostram que o sentimento de
insegurança ligado à delinquência juvenil urbana tem vindo a crescer (Lourenço
e Lisboa, 1992; Pais, 1996; Lourenço, Lisboa e Frias, 1998; Lagrange, 2002;
Carvalho, 2003, 2005; Frias, 2004; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). Contudo,
não se conhecendo a criminalidade real, mas apenas a criminalidade que é
registada pelas autoridades judiciárias (com discrepâncias conhecidas
30 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
consoante as fontes), não é possível concluir nesse sentido. Reportando-se os
dados não ao total de crimes, mas sim à acção policial, eles podem resultar: (1)
da inflexão nas orientações da acção policial; (2) da alteração das
representações acerca da delinquência juvenil, levando a mais denúncias; (3)
da modificação nas orientações político-legais, que deixam de colocar a tónica
na protecção do jovem.
A criminalidade e a insegurança são fenómenos complexos, podendo a
sua percepção ser parcialmente explicável pela instrumentalização do debate
público levada a cabo por alguns dos actores envolvidos, exigindo-se a melhor
compreensão das dinâmicas de mudança social que estão correlacionadas
com a percepção do seu aumento. Entre estas mudanças, são de realçar a
crise económica, o aumento do desemprego estrutural, a emergência de
diferentes situações de desigualdade, pobreza e exclusão, a crescente
urbanização e a subsequente urbanização da pobreza (Lourenço, 1998;
Seabra, 2005).
Nas últimas décadas, a maioria dos grupos sociais têm vindo a perder
recursos materiais e/ou simbólicos, sendo-lhes mais difícil lidar com a
precariedade e insegurança(s) que crescentemente os atingem, o que levou ao
alargamento das desigualdades e exclusão social. Só a(s) elite(s) e alguns
profissionais altamente qualificados, graças à sua maior disponibilidade de
recursos, se encontram mais protegidos (Young, 2007; Bauman, 2009a,
2009b). A expansão da pobreza, da precariedade e da vulnerabilidade faz com
que a sensação de medo e de insegurança se expanda pela estrutura social.
A crise económica contribui, ainda, para o aumento da sensação de
frustração de determinados indivíduos – em especial dos jovens – que, em
consequência do desemprego e subemprego por ela provocados, vêem o
acesso ao consumo de certos produtos negados ao mesmo tempo que a sua
aquisição frenética continua a ser valorizada e incentivada.
Sociedade e Delinquência Juvenil
31
Simultaneamente, a crescente urbanização levou à progressiva diluição
de determinadas formas de solidariedade. Pobres e desempregados, os mais
frágeis habitantes das cidades, foram “relocalizados” em bairros, também eles
“desfavorecidos”, onde o simples facto de neles residir constitui já uma forma
de estigmatização (Paugam, 2003; Castel, 2008). A pobreza e a exclusão, não
contribuindo, causalmente para o aumento da criminalidade e da violência,
podem influenciar a perda de eficácia dos mecanismos de regulação social,
propiciando o surgimento de certas formas de comportamentos desviantes.
Contudo, se aqueles factores podem “incentivar” parcialmente alguns
comportamentos delinquentes, alguns estudos chamam a atenção para o facto
de os indivíduos que sofrem aquelas exclusões não serem os “grandes
agressores” das sociedades, mas sim os seus elementos mais vulneráveis,
como revela a maior taxa de vitimização entre os pobres (Lourenço, 1998;
Seabra, 2005).
A crise económica e a mudança ideológica do papel do Estado na
sociedade comprometeram a capacidade do Estado na promoção do bem-estar
e protecção sociais e, consequentemente, de actuar sobre os factores
estruturais da insegurança, concentrando-se na promessa de protecção física
dos cidadãos com recurso à repressão. A intervenção do Estado passa, assim,
a ocorrer no campo das sensações de insegurança física sentidas pelos
indivíduos, que ele procura activamente aumentar (Bauman, 2009a:100).
Num contexto de debilidade do Estado-Providência, a incapacidade
estatal de lidar com a heterogeneidade tende a remeter para a definição dos
grupos excluídos como “classes perigosas” e para aumentar a criminalização
dos actos, tornando-os “bodes expiatórios” para todas as sensações de
insegurança sentidas. Por esta via, o Estado produz analiticamente uma
32 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
underclass1, como um sujeito corpóreo homogéneo que permite focalizar as
sensações de receio, sendo responsabilizada por muitos mais problemas
sociais do que aqueles pelos quais é realmente responsável (Young, 2007;
Castel, 2008; Bauman, 2009a, 2009b).
Pela dupla via da exclusão e criminalização, a underclass transforma-se
no alvo da atenção mediática, passa a ser estigmatizada e as contradições
sistémicas tendem a ser ignoradas (Wacquant, 2000; Young, 2007; Castel,
2008; Bauman, 2009a, 2009b). Para além disso, associar ideologicamente a
pobreza à criminalidade justifica o fim do Estado de bem-estar, na medida em
que elimina quaisquer obrigações colectivas para com os pobres, transitando-
se, deste modo, de um regime social assente na protecção das fragilidades
destes sujeitos para outro, baseado na protecção dos não-pobres que são
postos em risco pelos pobres (Castel, 2008; Bauman, 2009a: 82 e ss.).
Assim, ao falarmos da sensação de insegurança associada ao crime,
deparamo-nos com um primeiro problema crucial: a produção de
“conhecimento” sobre o tema, quer falemos das retóricas políticas, quer das
mediáticas, quer, ainda, do discurso dito “científico” (Robert, 2002). Muitos dos
trabalhos académicos, políticos e jornalísticos produzidos sobre a temática em
vez de a “medir”, partem antes do princípio de que a sua posição apriorística é
a correcta e desenvolvem toda a investigação a partir deste ponto inicial,
potencialmente enviesado.
Em Portugal, as preocupações e discussões relativas à criminalidade,
violência e insegurança obedecem, em geral, à mesma lógica que no resto da
Europa, assentando em dados estatísticos discutíveis e que não permitem
1 Onde se inserem os indivíduos mais excluídos dos benefícios do actual modelo societal,
incluindo os jovens provenientes dos grupos localizados na base da estrutura social.
Sociedade e Delinquência Juvenil
33
conhecer a sua real dimensão2. Esta circunstância preocupa alguns autores
que admitem que o poder político e os media empolam ideologicamente a
sensação de insegurança e contestam a definição de políticas e medidas com
base nesse empolamento (Lourenço, Lisboa e Frias, 1998; Frias, 2004).
Contudo, ainda que tal se verifique, por parte de alguns actores sociais, esse
empolamento não ocorre num “vazio”, mas parte de algo que já existe na
sociedade, tornando-o em assunto central do debate público. A sensação de
insegurança e o debate em torno dela funcionam, assim, em espiral, auto-
influenciando-se e sobrevalorizando a questão (Robert, 2002; Azevedo, 2007).
A construção social do sentimento de insegurança é, assim, influenciada
por factores contextuais, sócio-culturais e identitários, dos quais se destaca (1)
a relação dos indivíduos com as autoridades (polícia e tribunais), (2) as
características sócio-culturais dos actores que se sentem mais inseguros, e (3)
a relação dos sujeitos com o «outro», particularmente, com as minorias
etnorraciais ou imigrantes (Frias, 2004: 3-4). Não são obrigatoriamente os
habitantes dos bairros onde há mais participação de crimes às polícias que se
sentem mais inseguros. Adicionalmente, não é a frequência da criminalidade,
mas a sua gravidade percepcionada (por exemplo, homicídios) que causa a
sensação de insegurança. Assim, a título de exemplo, o tráfico de droga surge
muito associado à insegurança, não tanto pela sua frequência, mas por ser
negativamente representado pelos actores, por ser percepcionado como
causador de violência (Frias, 2004: 5). Além disso os crimes representados
como mais negativos (homicídios, tráfico de droga, etc.) tendem a chegar ao
conhecimento dos sujeitos através dos media, enquanto aqueles que são
2 A informação estatística oficial expressa não a actividade delinquente, mas a taxa de
actividade policial, que é variável segundo as denúncias efectuadas e as prioridades políticas momentâneas conferidas às polícias (Dubet, 1991; Seabra, 2005). Adicionalmente, as campanhas de sensibilização respeitantes a certas formas de criminalidade, periodicamente levadas a cabo, podem contribuir para um aumento da taxa de denúncias referentes a alguns tipos de crimes, fruto de uma maior acuidade social a esse respeito, sem que, no entanto, aqueles tenham aumentado (Seabra, 2005).
34 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
considerados “menos negativos” (furtos, etc.) são conhecidos através de outros
actores (amigos, vizinhos, etc.).
A percepção social de insegurança é multifactorial, não provindo só do
crime, se bem que se projecte sobre ele3. O sentimento de insegurança, além
da existência da criminalidade e do seu aumento, decorre, em boa parte, de um
“processo de selecção social do crime como objecto de inquietação, e da sua
construção cultural como risco” (Roché apud Frias, 2004: 2)4.
Para além dos factores acima referidos, o sentimento de insegurança é
também influenciado por características como o sexo, a idade, o nível sócio-
económico, o estado civil, o facto de se viver ou não sozinho, ou de se ter ou
não filhos. Desta forma, os idosos, os sujeitos profissionalmente inactivos, as
mulheres ou os indivíduos com filhos tendem a sentir-se mais inseguros. Em
linhas gerais, a base da estrutura sócio-económica sente-se mais insegura que
as classes médias e superiores quanto ao medo do crime, enquanto o topo da
estrutura se sente-se mais preocupada com a ordem social (relativo à moral, às
normas e valores) que a base. Ou seja, à medida que aumenta o nível de
instrução e o estrato social a que os indivíduos pertencem, a percepção do
problema torna-se mais complexa e este passa a ser socialmente
contextualizado (Lourenço e Lisboa, 1992; Robert, 2002; Frias, 2004). Assim é
compreensível que a reivindicação de políticas securitárias não venha
essencialmente dos sujeitos que estão mais expostos ao crime – provenientes
3 Importa distinguir duas dimensões da insegurança ligada à criminalidade. Por um lado, o
medo do crime e da agressão física pessoal ou de familiares – dimensão individual – que se consubstancia em comportamentos pessoais de protecção da habitação ou na tomada de medidas cautelares face à possibilidade de vitimização (p.ex., não sair de casa à noite). Por outro lado, a preocupação pela ordem social – dimensão social – que se manifesta numa apreensão generalizada com a sociedade, com os seus valores e normas, que pressupõe a percepção de que a criminalidade vai aumentar e a exigência de medidas repressivas face a ela. Medo e preocupação não se auto-implicam, o que desfaz a ideia de que existe uma sensação de insegurança homogénea que percorre toda a sociedade (Lourenço e Lisboa, 1992; Lourenço, Lisboa e Frias, 1998; Robert, 2002; Frias, 2004).
4 Cf. também Lourenço e Lisboa (1992).
Sociedade e Delinquência Juvenil
35
das classes populares com menos recursos – mas daqueles que,
tradicionalmente, são mais sensíveis a este tipo de problemas sociais (Robert,
2002). Por exemplo, no estudo realizado por Lourenço, Lisboa e Frias, só 29%
dos inquiridos rejeitavam o alargamento da idade de detenção para os 12 anos
(Frias, 2004: 11).
1.2 O conceito de delinquência juvenil
A “juventude” não é uma categoria social homogénea nem estável
quando observada em diferentes espaços-tempo. Usar esta categoria como
forma de classificar um qualquer grupo ignora que os “jovens” não são uma
“unidade social” com “interesses comuns”. Nos grupos de jovens, vários outros
critérios de estratificação se sobrepõem (classista e outros) (Pais, 1990: 140).
Sendo a juventude socialmente construída, os problemas a ela ligados
são também eles mutáveis no espaço-tempo. Actualmente, nas representações
oficiais e mediáticas (da esfera pública em geral), os problemas dos jovens
“são problemas principalmente remetidos para as dificuldades de inserção
profissional, readquirindo cada vez mais relevo outros «problemas»,
associados ao consumo de droga, à delinquência, etc.” (Pais, 1990: 143).
A construção social da “infância” e da “juventude” condicionou o
surgimento representacional do conceito “delinquência juvenil”, vista como algo
que se desvia do tipo ideal de criança protegida e submissa à autoridade
(nomeadamente, familiar). Deste modo, também os comportamentos
percebidos como “delinquentes” são variáveis no espaço-tempo (Ferreira,
1997, 2000; Lagrange, 2002; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). Actualmente, a
ideia dominante é que quando o percurso de crescimento – tanto físico quanto
social – e de construção identitária “é interrompido, a delinquência emerge,
particularmente quando a família, a escola e a comunidade falham na sua
função ou quando permitem que a pobreza, a ignorância ou o abandono se
36 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
intrometam no dever de educar adequadamente as crianças” (Ferreira, 1997:
914).
A importância da família e da escola nas representações sociais sobre a
delinquência juvenil, sendo estas instituições vistas como incapazes de cumprir
as funções de socialização que lhe são atribuídas. Se se considera que estas
falham, então, outras instituições de controlo social – nomeadamente, a polícia
e o sistema de justiça – vêem justificada a sua intervenção no processo
educativo/socializante dos jovens. O que justifica a criação de instituições
especialmente vocacionadas para lidar com a delinquência juvenil – “centros de
correcção” (McLaughlin e Muncie, 1994: 157)5.
A representação da fragilidade juvenil levou a que, progressivamente, se
impusesse a ideia de “maior tolerância” para os crimes cometidos por “jovens”
que, apesar de estarem “sujeitos às mesmas leis dos adultos, (...) começaram
a ser vistos como não tendo a totalidade da responsabilidade criminal e,
consequentemente, [passaram a estar] sujeitos a penas atenuadas ou a
perdão” (Ferreira, 1997: 915). Surgem, assim, instituições especializadas para
lidar com a delinquência juvenil, leis específicas para os jovens e um sistema
de justiça juvenil para as aplicar. Este processo consolida o conceito moderno
de infância que, entre outros, define direitos próprios para as crianças distintos
dos dos adultos (Lourenço e Lisboa, 1992; McLaughlin e Muncie, 1994;
Ferreira, 1997).
5 O desejo retórico de punição do “criminoso” e protecção do “resto da sociedade” – na
verdade, um mecanismo ideológico de criminalização da pobreza (Wacquant, 2000; Young, 2007; Bauman, 2009a, 2009b) – pode lançar as bases para um aumento exponencial da “população criminosa” que é vista como estando “para além da reabilitação”. Dois motivos essenciais contribuem para esta ideia: 1) o recuo da protecção social e promoção do bem-estar geral dos elementos mais vulneráveis das sociedades; e 2) a “coabitação” entre “criminosos formados” (adultos reincidentes por crimes graves) e “delinquentes juvenis” tem “efeitos latentes” de “ressocialização/socialização secundária” sobre os jovens que, se fossem apoiados, poderiam inserir-se na ordem normativa da sociedade, mas, deste modo, são por ela “rotulados” e marginalizados, não lhes restando outra alternativa exequível que não a entrada numa espiral de desafiliação que os conduza ao “mundo normal do crime”.
Sociedade e Delinquência Juvenil
37
Neste processo, nas palavras de Ferreira, “o conceito de «delinquência
juvenil» surge como uma construção social e institucional em torno da qual se
reúnem definições e ideias sobre situações e comportamentos que contrastam
com o conceito ideal que temos da infância e da juventude” (1997: 916).
Contudo, não estamos perante um conceito homogéneo, sendo a gravidade
dos comportamentos delinquentes variável: podem ir contra valores sociais e
institucionais ou ser mais ofensivos à sensibilidade de alguns indivíduos. Para
Ferreira, “a delinquência envolve o conjunto de respostas e de intervenções
institucionais e legais em relação a jovens que cometem infracções criminais
ou que se encontram em situações ou exibem comportamentos potencialmente
delinquentes, nomeadamente, nos casos em que existe grave negligência
familiar ou em que as crianças ou adolescentes revelam comportamentos
desviantes e desajustados da realidade psicossocial do grupo etário a que
pertencem. Embora estes comportamentos desviantes e desajustados possam
não constituir, em rigor, infracções criminais, remetem, no entanto, para a
mesma realidade social que o conceito de “delinquência juvenil” procura
descrever e caracterizar” (1997: 916).
1.3 A importância dos media na construção social do fenómeno e das políticas
Os media desempenham um papel fulcral na definição da delinquência
juvenil como um problema social, condicionando as representações dos
cidadãos sobre a temática. Por um lado, de um modo geral, os media
fomentam um sentimento de insegurança das populações, por outro lado, o seu
discurso é grandemente responsável pela construção da juventude como uma
categoria problemática.
Trabalhos realizados dão conta de como a informação produzida sobre a
delinquência e a criminalidade juvenis é, frequentemente, alvo de deturpação e
38 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
instrumentalização (Macé, 2002; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). O estudo de
Hugo Seabra (2005) mostra como os jovens se sentem discriminados e
estigmatizados (nomeadamente, racialmente) pela sociedade em geral e pelos
media em particular, estando conscientes da deturpação de informação neles
presente. Este contexto pode criar um ciclo vicioso de estigmatização: os
jovens interpelados por jornalistas, cientes de que o que disserem será
possivelmente deturpado, falsificam e constroem eles próprios a informação
que transmitem, em parte, pois julgam obter poder simbólico no seio do seu
grupo ao serem retratados como agressivos ou perigosos. Como a
(des)informação sensacionalista deste modo comunicada tem um impacto
positivo na atracção de audiências e venda de jornais, os jornalistas que a
recebem sentem que realizaram o seu trabalho e não se preocupam em
aprofundar a investigação (Seabra, 2005). A manipulação noticiosa contribui,
assim, para uma visão mediática que empola a gravidade dos delitos
cometidos por jovens, muitas vezes, associada a uma representação que
incentiva a repressão destes actos (Carvalho, 2001; Seabra, 2005; Azevedo,
2007).
Na Europa, de um modo geral, os “jovens são representados como
criminosos e desviantes, por um lado, e como vítimas vulneráveis, por outro, e
às vezes das duas formas em simultâneo” (Coelho, 2009: 363)6. Apesar de
outras representações existirem (por exemplo, as que vêm a juventude como
energética, divertida, como sendo o futuro das sociedades, etc.), elas são
secundárias perante as anteriores (Carvalho, 2001; Azevedo, 2007; Coelho,
2009). Os media tendem a privilegiar notícias sobre criminalidade juvenil, pois o
crime «faz notícia» (Carvalho, 2001; Azevedo, 2007; Coelho, 2009).
A delinquência juvenil é, muitas vezes, tratada como rotina, através de
pequenas notícias abreviadas e impessoais. Este carácter noticioso permite
6 Cf. também Carvalho (2001) e Azevedo (2007).
Sociedade e Delinquência Juvenil
39
veicular uma imagem de objectividade e neutralidade jornalísticas, ao mesmo
tempo que, sendo visto como rotina, torna a questão numa preocupação social.
O facto de as notícias serem breves, abreviadas, etc., permite ainda que a
preocupação em torno da criminalidade e da delinquência seja difusa, isto é,
centra-se numa imagem estereotipada e negativa dos jovens em geral, sem
informação contextual. Adicionalmente, a relevância noticiosa do crime explica-
se também por este ir contra a imagem desejável da ordem social, cumprindo a
função de realçar o que é socialmente desejável, criando uma barreira entre
“nós”, os “bons cidadãos” e os “outros”, “jovens delinquentes” (Carvalho, 2001;
Coelho, 2009).
Os autores enfatizam, ainda, o facto de a violência perpetrada por jovens
tender a ser mais mediatizada que a violência cometida contra jovens,
(Azevedo, 2007; Coelho, 2009). Para Coelho, “no quadro de representações
mais punitivas que representam os jovens como causadores de problemas, a
associação deste grupo ao problema social do crime apenas, ou sobretudo,
como consequência da idade poderá ter o efeito de reforçar a demonização
dos jovens criminosos e de facilitar assim a sua exclusão social. Isto porque, ao
subtrair-se o crime do seu contexto estrutural, se nega qualquer relação entre
os crimes cometidos por jovens e os processos e estruturas políticas,
económicas e culturais em que eles vivem” (2009: 371)7.
É ainda identificável, em alguns media, o estabelecimento de relações
causais espúrias e/ou simplistas que procuram explicar a delinquência juvenil,
associando-a directamente às famílias desestruturadas residentes em bairros
degradados, etc.. Concomitantemente, são frequentes as referências à
inimputabilidade dos jovens, apresentada como factor propiciador da
reincidência, veiculando-se a ideia do abaixamento da idade de
responsabilização criminal como forma de diminuir a delinquência juvenil
7 Cf. também Carvalho (2001), Seabra (2005) e Azevedo (2007).
40 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
(citando fontes populares e oficiais), o que leva à equiparação dos actos
cometidos por jovens àqueles que são perpetrados por adultos (Carvalho,
2001; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). Para Seabra, “a associação do
sentimento de insegurança exclusivamente aos comportamentos destes
jovens, a permanente afirmação da existência de „gangs‟ organizados de
jovens africanos, a frequente qualificação do meio de proveniência como
„gueto‟ são, entre muitas outras, algumas das conclusões apresentadas pela
produção jornalística, baseadas numa muito pouco rigorosa investigação e
constituindo uma espécie de fast food para saciar uma opinião pública
habituada a consumir este tipo de notícias e sedenta das mesmas” (2005: 18).
1.4 A delinquência juvenil na análise sociológica
As manifestações do desvio dos jovens iniciam-se, geralmente, por volta
dos 11-12 anos e crescem acentuadamente até aos 16-18, após o que
decrescem célere e marcadamente. Em nenhum outro período da vida, em
nenhum outro grupo etário, se regista uma proporção tão elevada de membros
envolvida em actividades infractoras, o que leva a que se considere a
adolescência como uma idade propícia ao desvio (Ferreira, 2000; Lagrange,
2002). Contudo, “nem toda a divergência [em relação à norma] é desvio. (...) A
diferença transforma-se em desvio quando suscita uma reacção negativa. (...)
O desvio é “objectivado” a partir de actos que infringem normas legais e de
outros considerados consensualmente como errados” (Ferreira, 2000: 57).
É possível encontrar dois grandes modelos de análise sociológica do
desvio juvenil: o modelo de controlo, segundo o qual o desvio resulta do
colapso das estruturas de autoridade e controlo social; e o modelo subcultural,
para o qual ele é uma resposta aos problemas com que os jovens se
confrontam no processo de construção das suas identidades sociais,
Sociedade e Delinquência Juvenil
41
problemas esses que provêm da tensão entre “dependência” e desejo de
“autonomia” (Ferreira, 1997, 2000; Lagrange, 2002).
O modelo do controlo não procura entender os motivos que levam a que
os jovens tenham comportamentos desviantes, mas sim o que leva a que estes
estejam ausentes. Portanto, considera a infracção, o desvio, a transgressão,
como “pulsões naturais” dos seres humanos que exprimem acções cujos
benefícios não carecem de explicação, devendo, pelo contrário, ser
compreendidos os mecanismos que as inibem. Os laços sociais fortes entre os
indivíduos e a sociedade, representada pela família e pela escola, controlam o
desvio. Quanto mais fortes os laços, menor o desvio; quanto mais fracos, maior
o desvio (Ferreira, 1997: 918, 2000: 57-58).
Duas componentes de controlo são identificáveis: interna e externa. Na
dimensão interna, os laços sociais fortes levam a que o sujeito não deseje que
o seu comportamento seja desaprovado ou negativamente valorizado pelos
outros: é uma forma de autocontrolo que promove a conformidade social,
dando o cumprimento da norma/expectativa uma sensação de “realização
pessoal” ao indivíduo, enquanto, pelo contrário, a sua infracção desperta
sentimentos de “culpa” ou de “auto-reprovação”. Na dimensão externa,
acentuam-se as reacções negativas dos outros e as sanções exteriores ao
sujeito, vincando o carácter coercivo da sanção que se impõe à força ao
indivíduo, e a privação de gratificações associadas à posição que ele ocupa no
grupo. Para Ferreira, “a acção compensatória e punitiva que o controlo externo
exerce tende a inibir as disposições delituosas e a reforçar as orientações
convencionais. A conformidade é inspirada pelo receio das sanções e reacções
negativas” (Ferreira, 2000: 58).
O segundo modelo analítico – o modelo subcultural – pressupõe a
contextualização subcultural dos comportamentos dos jovens, sendo o desvio
visto como uma forma de adesão às normas de grupos cujas representações
sociais diferem daquelas que são socialmente veiculadas na esfera pública. É
42 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
uma questão de assimilação de comportamentos de actores próximos (família,
amigos, etc.) e de grupos de referência. A não conformidade individual, em
consonância com a atitude grupal, é uma atitude de oposição à autoridade. A
escola é, também, neste modelo uma instituição central, se bem que por
razões diferentes daquelas pelas quais o é para o modelo anterior. É ela que
coloca o indivíduo numa estrutura institucionalizada que exige respeito às
normas e à autoridade, mas também é ela que o coloca em contacto com
grupos de jovens que podem transmitir ao sujeito mensagens de socialização
secundária divergentes das da sua socialização primária (Ferreira, 1997: 918,
2000: 56).
O principal ponto de convergência entre aqueles dois modelos encontra-
se no facto do desvio ser “precedido pelo desprendimento em relação à
conformidade social. Esse desprendimento ganha particular visibilidade a partir
do contexto escolar e traduz-se através das atitudes e associações grupais de
“oposição” (Ferreira, 2000: 64-65). Contudo, os dois modelos atribuem
diferente importância a estas manifestações inconformistas. Para o modelo de
controlo, elas decorrem da desvinculação dos laços sociais, com relevância
para os que se constroem com a escola e com a família. Para o modelo
subcultural, as atitudes de “oposição” são fruto da contradição entre cultura
escolar e determinadas culturas de fracções de classe (na abordagem
classista) ou traduzem a oposição às expectativas sociais normativas a
respeito dos jovens (na abordagem identitária). Contudo, ambas as abordagens
subculturais veêm o grupo como o locus onde se encontram e desenvolvem as
referências desviantes e delituosas (Ferreira, 2000: 65). É a rejeição da
autoridade e normatividade social, consubstanciada na escola, que dita o
processo de construção identitária desviante. Adicionalmente, é na escola que
o jovem encontra grupos que lhe servem de suporte e referência para o desvio
(Dubet, 1991; Ferreira, 1997, 2000). A ruptura escolar é vista como o início do
processo desviante, mas também a “motivação” que estimula e conduz o
processo de procura de associações grupais não conformistas.
Sociedade e Delinquência Juvenil
43
Para além destes factores explicativos, são ainda de referir a
importância da estigmatização/rotulagem de que os jovens percebidos como
delinquentes são alvo e das práticas de lazer destes jovens. Estes jovens são
“etiquetados” como delinquentes pelo meio social e jurídico envolvente (Dubet,
1991; Lourenço e Lisboa, 1992; Ferreira, 2000; Debuyst, 2002; Esterle-Hedibel,
2002; Carvalho, 2003, 2005; Seabra, 2005; Azevedo, 2007), consolidado a sua
identidade de delinquente. E, de forma circular, quanto mais se consolida esta
identidade, mais negativamente valorizada ela será socialmente.
As actividades de lazer ao dispor dos jovens implicam que estes tenham
dinheiro para a elas aceder. Particularmente nos jovens oriundos da base da
estrutura social, a prática de pequenos furtos ou de outros comportamentos
delinquentes será uma (muitas vezes, a única) forma de obter estes recursos
ou, podendo mesmo, determinados comportamentos delinquentes assumir em
si um carácter lúdico (Dubet, 1991; Seabra, 2005).
O autor chama, ainda, a atenção para uma outra vertente do factor
“classe social”. Para Dubet (1991), no que toca aos jovens das classes
populares, a falta de integração, a exclusão e a «raiva» sentidas – provenientes
da consciência de estarem inseridos num modelo societal com poucos
benefícios presentes e perspectivas de futuro – pode propiciar períodos de
desvio que são facilitados por um sentimento de base classista que segue
semelhantes orientações no tocante à rejeição parcial da matriz de poder que
os prejudica quotidianamente. Assim, não é a classe social o factor explicativo
preponderante da delinquência juvenil, mas é ela que determina quais serão
esses factores.
Os comportamentos desviantes e delinquentes dos jovens podem ser
parcialmente explicados por socializações grupais e pela necessidade de
conformidade grupal entre adolescentes. Para Ferreira, a adolescência situa-se
entre uma situação de controlo/dependência absoluta e desejo de autonomia e
responsabilidade completas. Só uma pequena parte dos jovens não tem
44 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
nenhum autocontrolo, enquanto, para a esmagadora maioria, a delinquência é
uma experiência temporária que vai desaparecendo com a aproximação à
idade adulta e não um modo de vida (Ferreira, 1997: 917)8.
Também a relação dos jovens delinquentes com o sistema de justiça
evidencia o carácter explicativo da desigualdade social. Entre os jovens que
cometem actos delinquentes e aqueles que chegam a ser institucionalizados,
passando pelo contacto com as polícias e os tribunais, ocorre um “processo de
filtragem” de base classista (Dubet, 1991; Seabra, 2005; Azevedo, 2007).
O processo que vai da execução do acto delinquente até à sua sanção
insere-se numa estrutura piramidal. Entre os 12 e os 16 anos, 80% a 90% dos
jovens afirmam ter praticado actos delinquentes, sendo esta percentagem
semelhante em todas as classes sociais (Gersão e Lisboa apud Seabra, 2005:
53). Contudo, somente 8% a 10% é denunciada às polícias e, avançando no
processo, apenas 4% a 5% da delinquência juvenil é sancionada. Estes 4% ou
5% do topo da pirâmide são quase inteiramente provenientes das fracções
mais pobres das classes populares (Seabra, 2005)9.
Os jovens que tiveram já algum contacto com a polícia ou com o sistema
de justiça são maioritariamente provenientes da base da estrutura social. O que
não significa a existência de uma “cultura delinquente” de determinadas
fracções das classes populares, mas antes “a natureza de classe da
delinquência é um efeito da natureza de classe do controlo social” (Dubet,
1991: 154). Assim, em contacto mais próximo com o sistema de justiça, na
qualidade de delinquentes, encontramos indivíduos representativos de grande
parte das situações definidas como socialmente problemáticas. Eles provêm de
8 Considera, por isso, que qualquer proposta de redução da idade de responsabilização
criminal penaliza a esmagadora maioria da população jovem que comete actos que, apesar de percebidos como delinquentes, e inserem num processo de crescimento, de transição para a idade adulta.
9 Cf. Azevedo (2007).
Sociedade e Delinquência Juvenil
45
famílias numerosas, monoparentais com pais ausentes/desconhecidos (em
consequência de divórcio/separação ou de falecimento ou encarceramento de
um dos pais), vítimas de negligência parental e de maus tratos (associados, por
vezes, ao alcoolismo ou toxicodependência de familiares), com frequentes
mudanças do núcleo familiar. Em alguns casos, fugiram de casa cedo, o que
precipitou o seu contacto com o sistema de justiça de crianças e jovens.
Adicionalmente, provêm de fracções das classes populares com baixa
escolaridade e rendimento, com empregos estatutariamente negativamente
valorizados (Carvalho, 2003, 2005).
Desfazendo as pré-noções (nomeadamente, mediáticas) acerca da
delinquência juvenil, os crimes cometidos por estes jovens só minoritariamente
se reportam a actos violentos contra pessoas, sendo maioritários os crimes
contra o património (Lourenço e Lisboa, 1992; Carvalho, 2003, 2005; Seabra,
2005). Contudo, os jovens delinquentes são, muitas vezes, usados por
criminosos adultos para cometerem crimes (por exemplo, tráfico de droga de
pequena dimensão), ficando os adultos protegidos face à justiça. Os jovens
delinquentes ligados a esses crimes são, no próprio acto de execução do
comportamento percebido como crime, vítimas e não criminosos (Garnier-
Muller, 2000; Seabra, 2005)10.
A verdade é que as sociedades tendem a desresponsabilizarem-se por
estes jovens. Sem condições mínimas de vida presentes, com passados
curtos, mas profundamente carregados de ocorrências negativas e sem
perspectivas melhores para o futuro, os crimes por eles cometidos são, muitas
vezes, motivados por necessidades de consumo (básicas, por vezes), o que é
indicado pela enorme quantidade de furtos de produtos alimentares (Carvalho,
2003, 2005; Seabra, 2005). Nas palavras de um jovem institucionalizado
10 Punir estes jovens vítimas de criminosos que os conduzem a comportamentos delinquentes
seria não procurar contextualizar o seu comportamento e rejeitar aprioristicamente a responsabilidade social de os ajudar.
46 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
entrevistado por Seabra, “prefiro ser ladrão em vez de ser mendigo” (2005:
175). Para mais, as mensagens de socialização recebidas por estes jovens no
seio de uma sociedade de consumo são profundamente conflituantes, entrando
eles em situações de desvio pela impossibilidade de coadunarem os meios ao
seu dispor com os fins que são socialmente – e logo, por eles individualmente –
valorizados (Dubet, 1991; Ferreira, 1997, 2000; Lagrange, 2002).
Todos estes factores “acentuaram a necessidade de uma intervenção
precoce centrada em várias áreas de apoio social, cuja capacidade de
resposta, perante os dados disponíveis, parece não ter existido ou ter sido
escassa, acabando por se reforçar negativamente o quadro social onde estes
jovens se (des)integravam” (Carvalho, 2005: 84). Com uma acção social de
prevenção eficaz, é de supor que grande parte destes jovens não teriam
travado conhecimento com o sistema de justiça de crianças e jovens na
qualidade de perpetradores de actos delinquentes e que teriam, tal como a
maioria dos outros jovens, tido na “delinquência” somente uma “fase de
experimentação de papéis”.
Acresce que, para muitos autores, as instituições de encarceramento
juvenil em que muitos destes jovens se encontraram, encontram e encontrarão,
não desempenham de forma eficiente (ou não desempenham de todo) as
funções de reabilitação e ressocialização que lhes são atribuídas. Os longos
períodos de permanência nestas instituições e em outras que as
complementam, os contactos com outros jovens delinquentes com
comportamentos mais graves que os seus, bem como o facto das
institucionalizações ocorrerem cada vez mais cedo, contrariam o propósito
basilar de existência destas instituições, que passam a contribuir para o
agravamento dos comportamentos delinquentes dos jovens que por elas
passam e criam as condições da sua reincidência, denunciando a falha do
sistema (Dubet, 1991; McLaughlin e Muncie, 1994; Carvalho, 2003, 2005;
Seabra, 2005).
Sociedade e Delinquência Juvenil
47
1.5 As políticas públicas: protecção vs judicialização
No Ocidente Norte, até aos anos 7011, a abordagem ao problema da
delinquência juvenil inseria-se no modelo mais vasto do welfare state. Neste
contexto, a delinquência era um problema temporário existente nas famílias
que “ficavam para trás” na onda de prosperidade. As instituições de welfare
eram vistas como centrais para debelar o problema, passando a solução não
pelo encarceramento dos jovens, mas sim pela educação das famílias para que
“socializassem correctamente” os filhos e pela reabilitação dos jovens que já
tinham entrado no sistema de justiça. A criminalidade era, assim, percebida
como um problema de desajustamento individual ou familiar, não fazendo
sentido punir os “ofensores” (que não eram tanto «agressores» como vítimas
de um «agressor colectivo»). Estamos, assim, em face de uma grelha de leitura
da criminalidade e da delinquência de cariz «psicologista», que fornecia
simultaneamente a explicação e a solução do problema (McLaughlin e Muncie,
1994).
Também a sociologia se centra, nesta época, nas famílias e
comunidades desprivilegiadas e marginalizadas. Política e cientificamente, a
família, considerada como falhando na disciplina por via da sua crescente
vulnerabilidade, era encarada como a instituição-chave no combate a uma
delinquência percebida como sintoma de problemas familiares. Deste modo,
ela era também a solução para o problema: o casamento dos jovens era visto
como central para combater o seu desvio, ganhando estes através dele,
disciplina e o exercício do controlo familiar, o que inibiria as suas próprias
“predisposições delinquentes” (McLaughlin e Muncie, 1994).
11 Esta data é, naturalmente, variável consoante o país em questão. Em Portugal, o início da
construção do welfare state é tardio.
48 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Nesta mundividência da delinquência, os conceitos de diagnóstico,
prevenção e tratamento são enfatizados em detrimento das noções de “culpa”,
“responsabilidade individual” ou “punição”, não sendo as crianças vistas como
individualmente responsáveis, mas como vítimas de factores familiares, por sua
vez causados por fenómenos sociais. Assim, valorizava-se a ajuda profissional
(por via de assistentes sociais ou psicólogos) às crianças e às suas famílias,
tornando-se estas últimas objecto da intervenção estatal (McLaughlin e Muncie,
1994).
Respeitando as orientações gerais do modelo, procura-se não colocar os
jovens sob a custódia do Estado, privilegiando-se a intervenção no âmbito da
comunidade. Salienta-se a aposta (pelo menos, retórica) na transformação das
famílias e dos seus elementos em sujeitos capazes de retirar os benefícios de
cidadania do welfare state (McLaughlin e Muncie, 1994).
No terceiro quartel do século XX, as sociedades deparam-se com a falha
do modelo de protecção – que se insere na retórica sobre as falhas do welfare
state, nomeadamente, das acusações conservadoras de que a sua acção
protectora criaria um estrato populacional amoral e seria incapaz de reabilitar
os delinquentes – consubstanciada, essencialmente, na (nunca contrariada)
tendência para o aumento dos jovens retirados às famílias. Com a centralidade
da delinquência juvenil no debate público e com as representações dos jovens
como “incivis”, amorais e violentos, surge também a contestação do
funcionamento da justiça penal de crianças e jovens, generalizando-se as
exigências de responsabilização individual dos jovens e de tratamentos
repressivos do desvio juvenil assentes nas ideias de law and order e crime and
punishment, isto é, tornam-se correntes as reivindicações de endurecimento
legal/penal contra os jovens (McLaughlin e Muncie, 1994; Bailleau, 2002;
Seabra, 2005).
Há construções ideológicas e subjectivas que influenciam o processo,
“desfazendo a imagem de uma justiça cega e neutra” (Adorno, 1991: 151),
transformando-se a punição não somente (ou não principalmente) num
Sociedade e Delinquência Juvenil
49
processo baseado no acto criminoso de per se, mas também (ou sobretudo)
nas representações de violência, perigo, etc., associadas ao acto (o que se
pune é menos o acto isolado do que a sensação macrossocial de insegurança).
Em simultâneo, desenvolve-se a ideia de que uma justiça democrática (criminal
ou outra) que se quer “social e correctiva, visando restabelecer os equilíbrios
rompidos” não pode ser somente punitiva (Adorno, 1991: 153).
Segundo Bailleau (2002: 386-387), cinco elementos principais são
geralmente evocados para a mudança estratégica no que respeita à
delinquência juvenil nos países europeus.
(1) Em primeiro lugar, é identificável uma crítica aos princípios protectores e
educativos inerentes a um sistema específico de tratamento dos jovens
delinquentes. Esta retórica inscreve-se na crítica geral ao welfare state e à
protecção social estatal, e implica uma rejeição ideológica e normativa das
medidas educativas e um recurso mais frequente ao encarceramento,
simultaneamente, com o abandono progressivo das medidas educadoras
preventivas, que são substituídas pela intervenção judiciária sobre os jovens e
as suas famílias.
(2) Em segundo lugar, procede-se à reavaliação da noção de responsabilidade
e à valorização das vítimas dos comportamentos delinquentes assumindo-se
como nova orientação do processo penal, influenciando os processos e
medidas tomadas face a actos delinquentes.
(3) Prevalece a ideia de que a delinquência deve ser tratada segundo uma
lógica de “tolerância zero”, não devendo nenhum acto delinquente praticado
por jovens ficar sem resposta, o que revaloriza o poder da polícia e da
acusação.
(4) Como quarto princípio, é visível a tendência para a integração de instâncias
não judiciárias – especialistas em delinquência juvenil, etc. – no processo de
implementação de medidas sobre jovens problemáticos.
(5) Por último, verifica-se uma tendência de restrição nos jovens mais velhos (a
partir dos 14-16 anos) em acederem a jurisdições especializadas, defendo-se o
50 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
seu julgamento, por determinadas infracções, nos mesmos processos dos
adultos.
Para Bailleau, “a delinquência dos jovens era até recentemente tratada
como sintoma e a justiça de crianças e jovens deveria privilegiar a abordagem
educativa. Hoje, ela tende a recentrar-se sobre a lógica dupla da
vulnerabilidade (maus tratos) que provém do direito civil, e da responsabilidade
(delinquência) que provem do direito penal. Tende-se a relativizar os
imperativos de intervenções educativas e a valorizar a actividade dos actores
tradicionais da segurança pública (procuradores, polícia, etc.), insistindo sobre
a necessidade de um tratamento imediato (da justiça em tempo real) de todos
os actos de delinquência (a tolerância zero) cometidos pelos jovens” (2002:
392).
Na medida em que se privilegia a temporalidade curta – intervenção
policial e judicial “no momento” – em detrimento da longa – educação do jovem
e da família sob a orientação estatal –, o sistema judicial expande-se para
áreas que, enquanto vigorava o modelo do welfare, não estavam sob a sua
alçada. Ao mesmo tempo, muda-se de eixo de intervenção, passando-se da
comunidade local/serviços sociais e educativos para a polícia/justiça (Bailleau,
2002: 392).
Na inflexão do modelo de protecção para o modelo judiciário, o “poder” é
transferido dos técnicos de intervenção social (assistentes sociais e outros)
para os magistrados. Em parte, tal decorre do rearranjo ideológico da relação
entre delinquência e privação social, deixando de se enfatizar a causalidade
sócio-económica e política para se retomarem as retóricas de amoralidade,
“incivilidade” de determinadas fracções de classe da base da estrutura social. A
intervenção estatal faz-se sobre os mesmos grupos, mas em moldes distintos.
Com esta “conversão de narrativas”, ressurge um discurso que defende
mais criminalização dos jovens, apostando novamente na sua “relocalização”
em instituições de encarceramento juvenil, sendo no seu interior que as
Sociedade e Delinquência Juvenil
51
preocupações de protecção do jovem se passarão a efectuar (McLaughlin e
Muncie, 1994). Simultaneamente, tende a aumentar também a intervenção de
controlo na comunidade/família (McLaughlin e Muncie, 1994), transformando-
se a lei e ordem e a justiça e punição em ideias orientadoras, mesmo quando
as medidas se destinam à comunidade, (re)ganhando força a ideologia de
“criminalização da pobreza12”.
12 Segundo Pratt, “em vez da preocupação com a protecção de direitos individuais, a ênfase
situa-se na eficiência e na primazia dos objectivos das políticas. Em vez de uma reflexão sobre as inumanidades e injustiças da instituição, estas características passam a ser reproduzidas na comunidade – nos projectos que deveriam ser alternativas à instituição” (apud McLaughlin e Muncie, 1994: 183).
AS CRIANÇAS E JOVENS DELINQUENTES NOS
MEDIA
2
2 AS CRIANÇAS E JOVENS DELINQUENTES NOS
MEDIA
Introdução
A relação entre jovens e justiça obriga à definição de categorias para os
jovens consoante a sua idade (menos de 12 anos; entre 12 e 16 anos; mais de
16 anos) e a sua situação social (em perigo ou a delinquir). Se para o direito e
a justiça nem sempre a fronteira é fácil de traçar, a dificuldade é maior quando
se olha para o mesmo fenómeno usando categorias mais abstractas, como
“menor”, “jovem” ou “criança”, frequentes na categorização dos media. Basta
pensar, por exemplo, que hoje a categoria de jovem oferece escassa precisão
como representante mais lato das visões sociais sobre a maturidade e suas
implicações na vida. Um jovem, no sentido lato que encontramos na nossa
cultura em geral, pode hoje ter mais de 30 anos, fruto das últimas décadas de
prolongamento dos percursos escolares, de adiamento da entrada no mercado
de trabalho, da autonomia financeira, da constituição de família e de outros
símbolos culturais da maioridade.
Mesmo no campo do direito e da justiça cruzam-se, com frequência, no
mesmo caso, as duas dimensões desta justiça: a dimensão protectora
incluindo, por exemplo, as disposições de direito civil relativas à tutela parental,
à adopção, as disposições do direito penal no que diz respeito a crimes
cometidos sobre jovens; e a educativa e repressiva, onde se inclui o regime
56 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
tutelar educativo. O jovem como vítima a defender versus o jovem como
agressor a corrigir são, frequentemente, a mesma pessoa.
Apesar das dificuldades decorrentes da utilização de categorias amplas,
que dificulta a identificação do grupo de idades em causa e,
consequentemente, a consideração de estarmos ou não perante crianças e
jovens susceptíveis de aplicação da lei tutelar educativa, consideramos
importante analisar como surgem nos media os jovens agressores, aqueles
que cometem delitos e são, por isso, objecto da vertente repressiva da justiça.
A relação entre media e justiça de crianças e jovens deve ser
enquadrada no âmbito da relação mais geral entre media e justiça, uma relação
cujo estudo tem despertado um interesse crescente, especialmente nos países
mais industrializados e, por conseguinte, mais mediatizados. Os media, ao
seleccionarem os acontecimentos que serão notícia, ao hierarquizarem as
notícias, e ao tematizarem-nas e convertê-las em temas de debate, fixam a
agenda pública e, por essa via, influenciam decisivamente as percepções
sociais sobre qualquer fenómeno social. Assim acontece também com as
questões da justiça em geral, incluindo a justiça de crianças e jovens. Essa
influência pode ir muito além das percepções sociais e ser determinante no
desenvolvimento e no sentido de determinada reforma ou medida. Aliás, no
caso do direito e da justiça de jovens, existe a convicção de que o eco na
comunicação social de certo acontecimento foi determinante para a reforma
que se lhe seguiu.
O objectivo deste ponto consiste na identificação do modo como os
jovens agressores surgem nos media. Após breves considerações
metodológicas, procede-se à tipificação do discurso mediático sobre jovens e
justiça em geral, para nele contextualizar o discurso sobre o jovem agressor.
De seguida, apresenta-se uma análise das notícias de imprensa de 2009 onde
surge a figura do jovem agressor, procurando identificar os temas e
características principais, esboçar a sua caracterização mediática e avançar
algumas hipóteses para futura reflexão.
Sociedade e Delinquência Juvenil
57
2.1 Discursos mediáticos sobre as crianças e jovens
O discurso mediático sobre crianças e jovens em Portugal não é uma
temática ausente da reflexão e análise entre nós, tendo sido objecto de alguns
trabalhos de investigação (Coelho, 2009; Ponte, 2005, 2009). Por exemplo,
Ponte (2009) analisa exaustivamente o discurso mediático sobre jovens no ano
de 2005 através de metodologias quantitativas e qualitativas complexas. Este
texto, não partilhando esse objectivo, pretende apenas contextualizar a
temática através de uma análise do que a opinião pública pôde conhecer
através dos media, relativamente ao fenómeno da delinquência juvenil.
Tendo em conta a circunspecção do objectivo, optou-se por uma
abordagem interpretativa, cuja complexidade metodológica consistiu em ler os
artigos, ordená-los tematicamente e identificar no subconjunto de artigos sobre
o jovem agressor as principais (sub)temáticas e nexos discursivos. Para tal,
recolheram-se artigos de imprensa relativos a jovens na base de dados de
peças de imprensa da Direcção-Geral de Política da Justiça, que compila
diariamente peças noticiosas relacionadas com a justiça nos diversos meios de
comunicação social. As notícias sobre crianças e jovens que não dissessem
respeito à justiça – por exemplo, centradas no sistema educativo, nas culturas
e hábitos de consumo dos jovens – ficaram excluídas à partida. A pesquisa
inicial centrou-se nos artigos onde constassem os termos "menor", "menores",
"delinquência", "delinquente", "delinquentes". A partir destas palavras-chave
obteve-se um número substancial de artigos, muitos sem relevância para a
nossa análise, dado que, apesar de conterem um dos termos em pesquisa
tratavam de temas que em nada remetiam para os jovens. A nossa análise
incidiu nos artigos publicados durante o ano de 2009 nos seguintes periódicos
de circulação nacional: os diários Correio da Manhã (CM), Diário Económico
(DE), Diário de Notícias (DN), Jornal i (publicado a partir de Maio de 2009),
Jornal de Notícias (JN), Público (Púb) e Primeiro de Janeiro (PJ); e os
58 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
semanários Expresso (Exp), Sábado (Sáb), Sol e Visão (Vis)13. Desta selecção
resultou um conjunto de 379 artigos sobre os quais incidiu a nossa análise.
A primeira nota de carácter geral a merecer referência é que no conjunto
daqueles artigos onde os jovens são objecto principal do discurso jornalístico,
são-no, sobretudo, como vítimas, não como agressores. Entre o alarmismo da
pedofilia, as atribulações dos conflitos de tutela parental, as angústias
suscitadas pelos jovens desaparecidos, entre outros, a figura do jovem
enquanto agressor, sendo importante, é minoritária. Partindo desta primeira
análise, categorizaram-se os artigos em sete grandes temáticas (Quadro 1).
Quadro 1 - Artigos de imprensa relacionados com a justiça de crianças e
jovens, por temática - 2009
6
18
20
25
91
107
112
0 20 40 60 80 100 120
Outros
Desaparecimentos, raptos, fugas
Riscos das tecnologias da informação
Maus tratos, menores em risco
Delinquência, violência escolar
Abuso sexual de menores, pedofilia
Adopção, tutela parental
Fonte: OPJ
13 As abreviaturas servem para a referência a artigos, que são feitas em nota de rodapé com a
abreviatura e a data do periódico, eventualmente antecedidos do título do artigo entre aspas, se este for considerado de interesse.
Sociedade e Delinquência Juvenil
59
As três temáticas principais concentram mais de 4/5 dos artigos e
equilibram-se entre si. A terceira delas, a delinquência, é a única que remete
para o jovem enquanto agressor – à qual dedicaremos a nossa análise
subsequente. Antes disso, porém, um breve olhar sobre as restantes temáticas
poderá ajudar a enquadrá-la.
As questões de adopção e tutela parental devem o seu peso a três
casos mediáticos que suscitaram muita atenção e debate público em 2009: os
casos Alexandra, Martim, e, em menor grau, o caso Esmeralda, cujo auge fora
em 2008. Este foi um dos principais eixos das críticas à justiça portuguesa em
2009, nomeadamente no caso Alexandra, menina russa retirada ao casal
português que a acolhia, e enviada para a família biológica na Rússia, cujas
decisões judiciais suscitaram celeuma e desencadearam uma vaga de opiniões
sobre a crise da justiça portuguesa. O abuso sexual de jovens e a pedofilia, em
vez de um pequeno grupo de casos espectaculares – se exceptuarmos o
processo Casa Pia que, mesmo no ocaso da fase final de julgamento, ressurge
ocasionalmente – compõe-se de numerosos casos pontuais, cuja sucessão
pelas diversas comarcas do país suscita invariavelmente a atenção da
imprensa dita “tablóide” e, ocasionalmente, da imprensa “de referência”, mas
que, em regra, se extingue rapidamente.
Numa segunda linha de notoriedade, e associado ao perigo do abuso
sexual, algumas notícias focam especificamente o risco que as tecnologias da
informação (internet, telemóveis) representam para os jovens, expondo-os a
abusadores e facilitando a acção destes. Outras notícias focam os jovens como
vítimas não de abuso sexual, mas de maus-tratos e em situações de risco,
normalmente associadas a famílias desestruturadas, economicamente frágeis e
afectadas pela violência doméstica. Outras, ainda, concentram-se nos jovens
desaparecidos ou fugidos, explorando a angústia das famílias afectadas,
embora essa temática seja provavelmente menos presente após a saturação
que representou o caso Maddie McCann entre 2007 e 2008. A um nível mais
residual surgem outros temas pontuais, como a problemática dos jovens com
60 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
pais reclusos, a organização legal e institucional da protecção de crianças e
jovens, ou o papel das comissões de protecção de crianças e jovens na
avaliação do trabalho de jovens nas artes e espectáculos.
Neste contexto em que o jovem é geralmente vítima, importa
compreender o papel que ocupa o jovem desempenha enquanto agressor.
Neste caso, o número de artigos representa ¼ do discurso mediático sobre
jovens e justiça, dominado pela figura do jovem delinquente. Dele ocupamo-
nos em seguida.
2.2 O jovem agressor nas notícias em 2009: temas principais e tipos de discurso
Apesar de em menor número, os artigos sobre delinquência de jovens
são relativamente regulares e contínuos em 2009. Essa regularidade teve duas
excepções: um pico em Maio, motivado por distúrbios no bairro setubalense da
Bela Vista e uma baixa em Agosto, enquadrável na sazonal ausência de
notícias. Caracterizaremos, de seguida, os temas e tipos de discurso principais
desta cobertura.
Os artigos seleccionados foram categorizados de acordo com três temas
principais, conforme o enfoque dominante: (1) os casos de delinquência, (2) as
respostas políticas à delinquência, e (3) o funcionamento do sistema em lidar
com ela.
Os casos de delinquência tiveram, por um lado, uma cobertura regular
de delitos cometidos ao longo do ano (em geral ou mais especificamente na
escola) e, por outro lado, uma cobertura extraordinária, em torno dos distúrbios
da Bela Vista. A cobertura regular coube, sobretudo, aos periódicos Correio da
Manhã, Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Consiste maioritariamente em
artigos informativos, de meia a uma página, que se atêm à descrição dos
Sociedade e Delinquência Juvenil
61
acontecimentos. Quase sempre a história consiste em furtos ou roubos de
veículos (por vezes carjacking), de estabelecimentos comerciais (bombas de
gasolina, stands de automóveis, supermercados), de residências, mais,
esporadicamente, de pessoas na via pública, caso ocorram em série e
empreguem alguma violência. Mais raramente surgem crimes sexuais,
cometidos por jovens sobre outros jovens;14 crimes contra a integridade física
sem objectivo de roubo, como o gang Bruxelas Street, que agredia jovens que
abordava nas imediações de uma escola no Cacém;15 incêndios;16 ou fugas
dos centros educativos.17
Em matéria de delinquência, no entanto, os distúrbios da Bela Vista
constituem um caso à parte em 2009. Comecemos pelos acontecimentos na
origem do caso, tal como surgiram nos jornais. Numa fuga à GNR no Algarve,
Toninho, jovem de 23 anos oriundo do Bairro da Bela Vista, Setúbal, é alvejado
e morto. Revoltados, jovens do seu bairro concentram-se a 7 de Maio à porta
da esquadra local da PSP. Estalam confrontos com a polícia, incêndios a
viaturas e distúrbios generalizados que se prolongarão aproximadamente por
uma semana. Por volta de 12 de Maio, curiosamente quando a situação parece
acalmar, o bairro está sob os holofotes dos media. Multiplicam-se artigos sobre
as condições de vida no seu interior e a problemática dos "bairros perigosos".
Lê-se que a Bela Vista tem 70% de crianças em risco de pobreza,18 grassa o
14 "[Jovem de 17 anos] Gabou-se no café de violar menino", CM 6/1; "Viola menor com ameaça
de faca", CM 13/11.
15 "Gang do Cacém torturava jovens", CM 12/12; "Gang sequestrava e torturava rapazes com
fogo e facadas", DN 12/12.
16 "Ateavam fogo por brincadeira", CM 10/9; "Irmãs menores detidas por suspeita de fogo
posto", DN 10/9.
17 "Detido último fugitivo do centro do Mondego", JN 23/7; "Menores roubam carro e fogem",
CM 5/11.
18 "Bela Vista tem 70% de crianças em risco de pobreza", DE 12/5.
62 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
desemprego, os inquilinos devem um milhão em rendas19, é um bairro a
transbordar de raiva e frustração, um monstro de betão de mais de 7 mil
pessoas onde mais de mil recebem Rendimento Social de Inserção, um
cadinho de jovens delinquentes de onde surgiu o conhecido "gang do ATM"20.
Questiona-se nos jornais se este será um caso isolado ou sintoma da
generalidade dos bairros sociais em Portugal, que pode alastrar a qualquer
momento. Arriscam-se paralelos com França, que desde os motins de Clichy-
sous-Bois de 2005 se elevou a símbolo da "ameaça do gueto" nas opiniões
públicas europeias. Busca-se também contrastes, como o caso nacional de
Braga, que teria mitigado o problema abdicando dos bairros sociais,
dispersando e misturando as populações problemáticas pelo território urbano.21
No lastro destes artigos, seguem-se os editoriais, opiniões de cronistas e
de entrevistados. Nestes casos, as opiniões divergem em vários aspectos. Por
exemplo, Leonel Carvalho, ex-secretário-geral do Gabinete Coordenador de
Segurança, atribui os problemas à fragilidade económica e social das
populações dos bairros problemáticos, prova das "falhas no sistema preventivo
e de integração", mas defende um reforço das respostas repressivas,
nomeadamente o internamento compulsivo as partir dos 12 anos, pois "se os
deixamos praticar o crime, começando eles muito novos, aos 16 anos são
criminosos praticamente irrecuperáveis".22 Luís Campos Cunha, um
economista, vê na sua crónica camadas da população desprovidas de valores,
devido aos guetos, ao insucesso escolar, à tolerância face à indisciplina, à falta
de imposição de valores pela escola e pelo extinto Serviço Militar Obrigatório.23
19 "Inquilinos da Bela Vista já devem um milhão em rendas", DN 13/5.
20 "É difícil viver num bairro assim", Visão 14/5.
21 "Braga acabou com os guetos e o crime diminuiu", Jornal i 14/5.
22 "Se os deixamos praticar o crime, aos 16 anos são quase irrecuperáveis", entrevista, Jornal i
14/5.
23 "Bela Vista? Sem dúvida", crónica, P 15/5.
Sociedade e Delinquência Juvenil
63
Fernanda Palma, também em crónica, considera que é preciso proteger os
cidadãos reféns da violência, criando um Ministério da Reabilitação Social e um
programa contra a delinquência juvenil de que a Bela Vista e outros bairros
beneficiariam, por fim, a nível penal, criar um "crime de violência urbana" e
impor penas mais severas, para responder ao aumento da violência contra os
agentes da autoridade e os cidadãos.24 Aquela é a única vaga de opinião
relacionada com o jovem agressor que identificámos em 2009, discreta ainda
assim se comparada com vagas sobre o jovem-vítima, como a do caso
Alexandra.
As respostas políticas à delinquência constituem o segundo tema que
domina uma parte dos artigos. Aqui é, sobretudo, a acção do Estado pelos
seus diversos agentes, em vez da acção do jovem, a alimentar a notícia. Os
artigos ao longo de 2009 são dominados por duas questões principais: a
revisão da lei tutelar educativa e a antecipação/alargamento da idade de
imputabilidade penal. A revisão da lei tutelar educativa, em curso, é noticiada
moderadamente desde o seu início. Dois factores estimulam o interesse
jornalístico: os alertas deixados em entrevistas e depoimentos por Batista
Romão, director da PJ do Porto, para um aumento perceptível da delinquência,
detectável no aparecimento de criminosos mais jovens, sem antecedentes,
mais inseguros e mais violentos;25 e as informações fornecidas pelas entidades
envolvidas sobre o processo de revisão. Leonor Furtado, directora-geral da
DGRS, defende a duplicação do quadro temporal das medidas tutelares, de 3
meses – 3 anos para 6 meses – 6 anos, pois o tempo de internamento actual
não permite mudar o comportamento dos jovens, assim como a criação de
centros de detenção para a faixa dos 16 aos 21 anos.26 A nível partidário, nesta
24 "A Bela Vista", crónica, CM 17/5.
25 "Justiça deve combater crime juvenil", entrevista, JN 26/1; "Criminalidade aumentou e
diversificou-se", DN 22/2.
26 "Mais tempo de internato para jovens", CM 17/2.
64 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
fase, a antecipação da imputabilidade penal encontra defensor apenas no
CDS-PP, todos os partidos políticos recusam-na.27 Rui Rangel, presidente da
AJPC, critica-a em coluna de opinião: antecipar a imputabilidade não reduz a
criminalidade entre os jovens, como demonstra o Reino Unido, que a fixou nos
12 anos e nem por isso reduziu a criminalidade; os jovens devem ser entregues
não às cadeias, mas ao sistema de reinserção social.28
A eclosão dos distúrbios da Bela Vista resgata o tema das respostas
políticas. Para além de respostas de cariz mais sociológico, os media procuram
respostas no plano jurídico-institucional. Reabre-se o debate sobre a fronteira
justiça de crianças e jovens/justiça penal. Em entrevista publicada aquando dos
distúrbios do bairro Bela Vista, embora feita alguns dias antes, Mário Mendes,
secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, embora rejeitando a
antecipação da imputabilidade para antes dos 16 anos, defende a criação de
um subsistema penal para jovens com menos de 16 anos, com "novos
mecanismos de restrição da liberdade, medidas de internamento compulsivo e
uma grande aposta na reinserção juvenil".29 PS e PSD pronunciam-se contra.
Idália Moniz, Secretária de Estado adjunta e da Reabilitação, responde que
urge uma lei tutelar educativa que possa ser mais dura, mas não um
subsistema penal. Armando Leandro, Presidente da Comissão Nacional de
Protecção de Crianças e Jovens em Risco, pronuncia-se no mesmo sentido.
António Martins, da ASJP, defende mais centros educativos e melhores
condições nos mesmos, pois mudar o enquadramento penal não resolve as
coisas.30
27 "Parcerias para centros de delinquentes", DN 24/2.
28 "Redução da maioridade penal", crónica, CM 7/3.
29 "Chefe das polícias quer mais penas para jovens delinquentes", DE 11/5.
30 DE, PJ 12/5, DN 13/5.
Sociedade e Delinquência Juvenil
65
Novamente, apenas o CDS-PP diverge, aplaudindo em jornadas
parlamentares a "coragem" de Mário Mendes, ocasião onde Leonel Carvalho
defende novamente a antecipação da idade mínima do internamento fechado
de 14 para 12 anos.31 Dois meses mais tarde, Pinto Monteiro, Procurador-Geral
da República, recoloca a questão: um extenso artigo do DN integra
declarações suas onde afirma que o Governo deve pensar a redução da idade
de imputabilidade, pois "é certo que os menores merecem toda a protecção,
mas (…) há gangs comandados por jovens de 14 e 15 anos que causam
vítimas".32 Fora as reacções de porta-vozes partidários no mesmo artigo, o
assunto não suscita especiais reacções nos dias seguintes.
A vertente mais imediata da resposta política, a revisão da lei tutelar
educativa, também ressurge, com menos impacto imediato, permanecendo na
agenda até ao fim do ano, até porque o Governo havia encarregado um grupo
de trabalho de alterar a lei. De acordo com as notícias dos media, no seu
interior, opõem-se duas filosofias, segundo a propensão para a via penal: a
"reeducação da criança delinquente para o direito" contra o "direito penal dos
pequeninos".33 Várias propostas estão em discussão, nenhuma delas tocando
na imputabilidade, o que aliás extravasaria o âmbito da lei tutelar educativa.
Refere-se a antecipação da idade mínima de internamento em regime fechado
– a medida tutelar mais gravosa – de 14 para 12 anos, mas fontes do grupo de
trabalho informam que a maioria dos seus membros é contra,34 de tal modo
que, em Dezembro, parece estar já fora de causa.35 Menos polémicas parecem
outras medidas, como o prolongamento da duração máxima das medidas
31 DN, JN 12/5.
32 "Imigrantes são 27% dos menores condenados em Portugal", DN 17/7.
33 JN 1/7.
34 DN, PJ 14/7.
35 P 23/11, i 23/12.
66 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
tutelares de 3 para 5 anos,36 a possibilidade da vítima pedir indemnização nos
processos tutelares educativos,37 ou a substituição da estadia em centro
educativo por vigilância electrónica38.
Os diagnósticos do funcionamento do sistema constituem o último tema
principal de cobertura. Trata-se de artigos que se debruçam sobre o sistema de
reinserção social tal como ele existe, no que tem de bom e de mau. Surgem a
partir de Julho, dois meses após os distúrbios da Bela Vista, e prosseguem
discretamente (1 a 3 por mês), até final do ano. Os mais visíveis entre eles são
os quatro macro retratos do sistema, artigos extensos de página inteira ou mais
que retratam na globalidade o funcionamento do sistema de reinserção social,
pondo a tónica no crescimento de medidas alternativas e na caracterização do
fenómeno com base em indicadores estatísticos.
O DN destaca os 241 jovens que cumprem trabalho a favor da
comunidade, a maioria por furtos, roubos, condução sem carta e crimes contra
as pessoas.39 Mais tarde, refere que 27% dos 199 jovens internados em
centros são estrangeiros e que os internados se mantiveram estáveis em 2008,
apesar do Relatório de Segurança Interna desse ano apontar uma redução da
criminalidade juvenil em 43%.40 O Público, quatro meses depois, dá maior
ênfase ao crescimento das medidas alternativas: entre 2001 e 2008, os
tribunais optaram cada vez mais por medidas como a imposição de obrigações
e o trabalho comunitário, que quase decuplicaram, em detrimento do
acompanhamento educativo, que caiu para metade. Há, no entanto, problemas
de meios: apesar do grosso dos processos não chegar aos juízes, há muita
36 JN 1/7, Por 23/11, Jornal i 23/12.
37 JN 1/7.
38 P 23/11, i 23/12.
39 "Trabalho comunitário é castigo para 241 menores", DN 19/5.
40 "Imigrantes são 27% dos menores condenados em Portugal", DN 17/7.
Sociedade e Delinquência Juvenil
67
pendência processual e atrasos por falta de meios nos tribunais e na DGRS, e
os centros educativos estão a ficar sobrelotados. O editorial da mesma edição,
louvando a aposta dos juízes nas medidas alternativas, alerta para esta
sobrelotação "inadmissível".41 O MJ considerará este assunto prioritário e no
final do ano anuncia a abertura no 1º trimestre de 2010 de dois novos centros,
na Madeira e Vila do Conde.42 No final do ano, o "i" refere que, após 10 anos
de vigência da actual Lei Tutelar Educativa, um estudo interno da DGRS
apurou que 40% dos que cumprem medidas de internamento regressam ao
sistema de justiça, mas para Leonor Furtado "não há aumento da criminalidade
juvenil, mas maior visibilidade".43
Outros artigos de diagnóstico do sistema nesta vertente, mais breves,
provêm de intervenções públicas dos seus agentes. Quando as duas
Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJR) de Sintra
apresentam os dados do seu trabalho, as críticas e reivindicações das suas
presidentes – junta nas mesmas instituições de jovens que praticaram crimes
com jovens vítimas de crime, falta de meios, necessidade de centros de
acolhimentos para maiores de 12 anos – merecem divulgação no DN.44 O
mesmo sucede com o alerta de Leonor Furtado para o problema da gravidez
de jovens internadas: há dois bebés nos centros educativos, filhos de jovens ali
internadas, situação para que os centros têm de ser equipados.45 Por fim,
acções concretas das instituições com os jovens também são episodicamente
matéria noticiosa, por exemplo, quando a DGRS leva jovens internados a
41 "Mais crianças e jovens a fazer trabalho a favor da comunidade", Público 23/11.
42 DN 22/12; CM, JN 29/12.
43 "Leonor Furtado: 'Não temos cultura de gangs'", i 23/12.
44 DN 1/7.
45 CM 15/10.
68 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
concertos ao Festival de Música da Cartuxa, ou quando jovens do centro
educativo da Bela Vista constroem o palco de um concerto no CCB.46
Analisados os artigos em seus temas principais, o tipo de discurso e de
abordagem, de abordagem aos temas, varia perceptivelmente. Não podendo
entrar aqui nas numerosas tipologias de discurso fornecidas pelas ciências
sociais, diremos, de modo simplificado, que identificamos, pelo menos, dois
tipos de discurso principais nas notícias em causa: informativo e interpretativo.
A cobertura do jovem agressor começa por ser, e é maioritariamente, uma
cobertura de discurso informativo sobre casos de delinquência, feita de artigos
que vão dando conta dos casos concretos. Trata-se de artigos que raramente
ultrapassam uma página, cujas fontes se limitam normalmente às forças
policiais, para os factos, e eventualmente à periferia das vítimas (familiares,
amigos, conhecidos, vizinhos) ou às próprias vítimas, para as opiniões de
circunstância, invariável e, compreensivelmente, revoltadas, alarmistas,
negativas. Este tipo de cobertura tem os seus representantes principais no CM,
JN, e, menos, no DN.
A cobertura de discurso mais interpretativo, onde o artigo cede algum
terreno à reportagem e à opinião, o espaço ocupado tende ir para além de uma
página, as fontes citadas alargam-se para os especialistas e os políticos. Aqui,
estão mais representados o DN, o Público, e o novo diário "i ".
Cruzando tipos de discurso com temas, diríamos que o discurso
informativo é mais frequente nos artigos sobre casos de delinquência regulares
(isto é, extra-Bela Vista), enquanto o discurso interpretativo é mais frequente
nos artigos de diagnóstico do sistema e sobre o caso de delinquência
extraordinário da Bela Vista. Os artigos sobre respostas políticas são aqueles
em que mais frequentemente se cruzam estas formas de discurso. O discurso
informativo é o discurso regular e habitual dos media. Por vezes, um caso
46 Exp 14/7, CM 21/11.
Sociedade e Delinquência Juvenil
69
concreto atrai mais atenção e transforma-se num caso mediático, abrindo
espaço a um discurso mais interpretativo, como foi, em 2009, o Caso Bela
Vista.
2.3 Caracterizações do jovem agressor
Que caracterização do jovem agressor transparece das notícias? Esta
análise não pretende fazer qualquer caracterização em termos psicológicos ou
sociológicos, apenas possível através de metodologias e discursos
disciplinares respectivos, mas apenas esboçar a sua caracterização mediática.
Sabendo como os media influenciam o senso comum, consideramos
importante identificar o que poderia o cidadão comum saber sobre o jovem
agressor a partir dos jornais.
Baseando-nos nos temas principais, encontramos traços de
caracterização nos artigos de diagnóstico de funcionamento do sistema e de
casos de delinquência. Nos artigos de diagnóstico, o retrato é, em regra, global,
estatístico e impessoal. Já acima referimos alguns desses dados, que
retomamos aqui. Pelos jornais de 2009, o cidadão saberia que há cerca de 200
jovens internados em centros educativos, dos quais cerca de ¼ de origem
estrangeira, e 986 a cumprir outras medidas tutelares na comunidade, dos
quais 39% com acompanhamento educativo, 32% com imposição de
obrigações, 22% com trabalho a favor da comunidade; que as duas últimas
medidas decuplicaram enquanto primeira caiu para metade; que malgrado
estas mudanças internas e uma descida de 43% da criminalidade juvenil em
2008, o número de jovens como um todo no sistema se manteve estável nos
últimos anos. Saberia também que estes jovens são esmagadoramente
rapazes (88%); que 81% deles cometeram crimes contra o património (roubos,
furtos), 9% contra a liberdade sexual, 6% contra a integridade física, e 2%
crimes de tráfico de droga; que a PGD de Lisboa teve em 2006 cerca de 13 mil
70 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
inquéritos contra jovens (o que estranharia face ao número de jovens
internados) e que registou uma subida dos inquéritos tutelares educativos entre
2006 (4096) e 2008 (4872). Saberia ainda que, apesar dos esforços de
reabilitação, 40% dos jovens internados regressará ao sistema de justiça.
Nos artigos de casos de delinquência encontramos caracterizações mais
ricas do jovem agressor, em termos sociológicos e psicológicos, apesar de, na
generalidade destes artigos, ressalve-se, a caracterização é mínima: a existir,
fica por breves referências ao contexto familiar (invariavelmente "famílias
desestruturadas"), geográfico ("bairros problemáticos"), económico (pobres,
desempregados, "sem fonte de rendimento lícita"), à nacionalidade, caso seja
estrangeira ("nacionalidade croata", "caboverdiano").
No entanto, um pequeno número destes artigos faz da caracterização de
delinquentes específicos e do meio circundante o seu centro. É o que ocorre
quando se dedica duas páginas à história do "Bandido de 13 anos e cara de
anjo que aterrorizava a Amadora"47 ou à história do Gang da Lapa, jovens, nem
todos jovens, que desde 2004 praticavam furtos e roubos numa escalada de
audácia e violência que terminou num megajulgamento com 55 arguidos.48
Aqui, encontra-se um retrato um pouco mais complexo de jovens desprovidos
de valores, sob a indiferença ou a cumplicidade dos pais, "cujas referências
parecem limitar-se cada vez mais ao hip-hop, aos carros de luxo, telemóveis
topo de gama e roupas de marca".49 Na cobertura da Bela Vista, estas
reportagens de perfil (três) centram-se mais no bairro que nos delinquentes em
particular. Abundam imagens de degradação do espaço:
47 Jornal i 12/5.
48 "Iam a casa com pessoas a dormir para levar carros topo de gama", Público 28/4;
"Profissionais do crime antes de fazer 16 anos", JN 9/9.
49 "Profissionais do crime antes de fazer 16 anos", JN 9/9.
Sociedade e Delinquência Juvenil
71
No prédio cinzento, a entrada faz-se através de um beco inclinado, cimentado, onde se cruzam jovens num rumo indefinido. (…) um deles não perde o tempo necessário para chegar à casa de banho e urina ali mesmo. Dentro, o elevador avariado há meses empurra-nos para seis lances de escadas (…) a pequena cozinha assemelha-se a um insectário – neologismo para um local onde vivem e nidificam insectos de características e proveniências indeterminadas. Aqui, as baratas têm uma clara vantagem, logo secundadas pelas aranhas de pernas altas e finas. (…) Uma lâmpada que pende do tecto é a única iluminação. (…) Na sala, televisor e DVD destacam-se num móvel sem mais nada. Ambos funcionam com uma puxada de electricidade (…) ausência de livros, uma almofada de cor
indefinida e um sofá banal completam a divisão50
.
A caracterização raramente é feita pelos olhos dos próprios
caracterizados. Em toda a cobertura do caso da Bela Vista, e mais geralmente
na cobertura de todo o ano, são raros exemplos de discurso directo como este:
Mas dar a outra face não é para todos. Tome-se o exemplo desta licenciada que não podemos identificar, de origem cabo-verdiana, 20 anos (…) 'O Toninho era um dos nossos, era nosso amigo. A polícia não pode matar' (…) Para esta mulher de olhos pretos doces e voz arranhada, que tem um irmão preso por tráfico de droga, não há perdão. Só revolta. Ela própria acha que podia ter enveredado pelo caminho de Toninho. E sabe que, hoje, os miúdos, aos 13 anos, desinquietam-se, dão expressão à sua insatisfação começando, em bandos, a cometer crimes. Aqui, na Bela Vista, mas também em bairros de Loures e da
Amadora51
.
Os jornais transmitem-nos e associam ao fenómeno imagens que
lembram as de outros países, onde talvez sejam inspiradas: o gueto como
lugar de degradação espacial, de desmoralização humana, de
degenerescência das referências identitárias tradicionais (classe, raça) numa
revolta tão plena de sentido quanto vazia de força emancipatória, deixando
espaço à hegemonia dos símbolos de riqueza, que se vem tornando mais
absoluta que entre as próprias classes abastadas (Nightingale, 1993; Young,
1999, 2007).
50 "Quarto com vista para o bairro", Jornal i 13/5.
51 "É difícil viver num bairro assim", Visão, 14/5.
II. INSTRUMENTOS NORMATIVOS
INTERNACIONAIS DA JUSTIÇA DE
CRIANÇAS E JOVENS E MODELOS DE
INTERVENÇÃO
AS CRIANÇAS E JOVENS NO DIREITO
INTERNACIONAL
1
1 AS CRIANÇAS E JOVENS NO DIREITO INTERNACIONAL
Introdução
Veremos, ao longo deste relatório, como as normas do direito
internacional e as recomendações institucionais são várias vezes convocadas
para criticar algumas das reformas nacionais quanto ao direito e à justiça das
crianças e jovens. Impõem-se, por isso, situar esta temática no contexto do
direito e recomendações internacionais, analisando os instrumentos normativos
mais marcantes em três vertentes principais: no aprofundamento dos direitos
das crianças, na separação entre respostas de natureza sancionatória e
respostas a situações de perigo social e nas respostas à delinquência de
crianças e jovens.
A tomada de consciência internacional sobre a necessidade de criação
de regras próprias dirigidas às crianças e jovens situa-se na primeira metade
do século XX, com a Assembleia da Sociedade das Nações a adoptar, em
1924, uma resolução a endossar a Declaração dos Direitos da Criança,
promulgada em 1923 pelo Conselho da União Internacional de Protecção à
Infância. Em 1946, o Conselho Económico e Social das Nações Unidas
recomendou a adopção da Declaração de 1924, conhecida como Declaração
de Genebra sobre os Direitos da Criança, que continha cinco princípios
relacionados com o bem-estar das crianças, o seu normal desenvolvimento, a
alimentação, a saúde e a protecção contra a exploração.
78 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Nesse ano, o Conselho Económico e Social criou o Fundo de
Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF). Em 1948, a
Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou a Declaração Universal dos
Direitos do Homem que, no artigo 25.º, referia que a maternidade e a infância
“têm direito a ajuda e a assistência especiais”. Em 1959, a Declaração dos
Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
continha referências directas aos direitos das crianças, que também se
encontram no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966, e
no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de
1966. O Pacto das Nações Unidas de 1966, a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, de 1950, e a Carta Social Europeia, de 1961, consagraram
especial protecção ao direito das crianças, associando-o ao seu
desenvolvimento.
Nas décadas de 80 e 90 do século passado, a tomada de consciência
internacional quanto à especificidade dos direitos das crianças conduziu ao
aparecimento de importantes documentos da ONU e de instituições europeias,
assim como à criação de leis em vários países. Estes instrumentos normativos
tornaram-se textos de referência sobre as políticas, não só numa perspectiva
de protecção, mas também no quadro da delinquência juvenil. Destaca-se, em
1989, a adopção, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, da Convenção
sobre os Direitos da Criança, reconhecendo à criança capacidade de auto-
determinação e direito a participar e a ser ouvida em todos os processos que
lhe digam respeito. Neste contexto, também a partir dos anos oitenta foram
introduzidas alterações muito significativas na administração da justiça juvenil,
sendo reconhecida a necessidade de separar o tratamento dos factos
qualificados como crimes cometidos por jovens dos crimes praticados por
adultos.
Para além da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança, existem outros instrumentos que fixaram regras importantes face à
justiça juvenil, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
79
Administração da Justiça de Menores, conhecidas como Regras de Beijing, de
1985; as Directrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência
Juvenil, ou Princípios Orientadores de Riade, de 1990; as Regras das Nações
Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade, de 1990; o
Relatório Mundial sobre a Juventude: Os Jovens Hoje e em 2015; a
Observação Geral N.º 10 (2007), que versa sobre os direitos das crianças nos
sistemas de justiça de menores; e a reflexão do Grupo Interinstituições sobre
justiça de menores, criado em 1997, com vista à coordenação dos esforços das
organizações internacionais e das autoridades nacionais tendo em vista a
reforma da justiça de menores.
A análise de grande parte daqueles instrumentos já foi feita no relatório
do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa “Os Caminhos Difíceis da
“Nova” Justiça Tutelar Educativa. Uma avaliação de dois anos de aplicação da
Lei Tutelar Educativa”, de 2004, para o qual remetemos. Limitamo-nos a
elencar, com uma referência breve, esses instrumentos, analisando mais em
detalhe apenas os mais recentes.
1.1 A acção da ONU e do direito internacional – instrumentos relevantes em matéria de justiça juvenil 52
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,
adoptada em 1989, iniciou uma nova fase do direito internacional das crianças
ao proceder a uma abordagem integrada dos seus direitos reconhecendo que o
seu desenvolvimento pleno implica a realização dos seus direitos sociais,
52 Para maior desenvolvimento desta temática, ver Gomes (Coord.), 2004: 56-70.
80 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
culturais, económicos e civis, procurando o equilíbrio entre os direitos das
crianças e os dos seus responsáveis legais, concedendo àquelas o direito
genérico de participar nas decisões que lhes dizem respeito53. Os grandes
princípios orientadores de direito internacional quanto aos direitos das crianças,
plasmados na Convenção, são o princípio da não discriminação, da
salvaguarda do interesse superior da criança, do direito à vida, à sobrevivência
e ao desenvolvimento e da livre expressão das crianças. A Convenção elege o
princípio do interesse superior da criança como aquele que deverá nortear a
actuação dos Estados na defesa intransigente da dignidade da criança.
Concretamente no que se refere à justiça juvenil, cabe aos Estados-
parte reconhecer “à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter
infringido a lei penal o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu sentido
de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos do homem e as
liberdades fundamentais de terceiros e que tenha em conta a sua idade e a
necessidade de facilitar a sua reintegração social e o assumir de um papel
construtivo no seio da sociedade” (cf. artigo 40.º).
Apesar de não se referir explicitamente à imputabilidade penal, a
Convenção impõe aos Estados signatários a obrigação de promover o
estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que a
criança não tem capacidade para infringir a lei penal54 e sugere a criação de
sistemas de justiça especiais para as crianças de idade inferior a 18 anos que
pratiquem factos qualificados como crimes distintos dos sistemas aplicáveis
53 Em 2009 celebrou-se o 20.º aniversário da assinatura da Convenção, texto fundador que
constitui um elemento motor da tomada de consciência do interesse superior da criança, em particular na Europa. De acordo com Jacques Barrot, Vice-Presidente da Comissão Europeia, responsável pela justiça, liberdade e segurança, considerando que a Convenção continua a ser a referência da acção em matéria de protecção das crianças (Barrot, 2009).
54 O estabelecimento deste mínimo legal é, contudo, discricionário, atendendo às diferenças
existentes nos vários sistemas jurídicos na fixação do limite etário mínimo. No entanto, parece resultar da combinação entre as Regras de Beijing e as da Convenção que um limite etário mínimo deverá estar intimamente relacionado com o estádio de desenvolvimento e de maturidade da criança.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
81
aos adultos, em conformidade com a protecção dos direitos humanos e com a
protecção das garantias processuais da criança55.
Regras de Beijing
As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça
de Menores, conhecidas por Regras de Beijing, adoptadas em 1985 pela
Assembleia Geral das Nações Unidas surgem, na sequência da importância
reconhecida à Declaração dos Direitos da Criança, da necessidade de revisão
das legislações, das políticas e das práticas nacionais no âmbito da justiça
juvenil.
As Regras de Beijing incentivam o recurso aos meios extrajudiciais,
evitando o formalismo judicial e afastando a estigmatização, e, para além de
vincarem o papel da comunidade na aplicação de medidas alternativas e de
reeducação, conferem destaque à família ao exigir que os filhos não sejam
separados dos pais, senão em último recurso. No que toca às medidas
aplicáveis, elenca um conjunto de medidas - a aplicar preferencialmente e em
detrimento do internamento numa instituição – como, por exemplo, medidas de
protecção, orientação e vigilância; regime de prova; prestação de serviços à
comunidade; multa, indemnização e restituição; participação em grupos de
aconselhamento; e colocação em família idónea, em centro comunitário ou em
outro estabelecimento vocacionado para o efeito.
55 Recorde-se que, nos termos da Convenção, “(….) criança é todo o ser humano menor de 18
anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”.
82 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Princípios Orientadores de Riade e Regras para a Protecção de Menores Privados de Liberdade
Em 1990 foram adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas a
Resolução n.º 45/112, referente aos Princípios Orientadores das Nações
Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil, conhecida como Princípios
Orientadores de Riade, e a Resolução n.º 45/113, relativa às Regras das
Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados de Liberdade.
Nos Princípios Orientadores de Riade é sublinhada a importância da
adopção de medidas de prevenção da delinquência juvenil e de medidas que
evitem criminalizar e penalizar jovens por comportamentos que não causem
danos sérios ao seu desenvolvimento ou que não prejudiquem terceiros,
destacando-se a especial importância de políticas preventivas que facilitem
uma socialização e integração das crianças e jovens, onde se incluem
cuidados médicos, alimentação, habitação e educação.
As Regras das Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados
de Liberdade estabeleceram um conjunto de regras mínimas que devem estar
previstas nos ordenamentos jurídicos nacionais, que enquadram aquelas
situações, como a existência de programas de educação e de formação.
Enfatiza-se a importância do regresso à comunidade, prevendo a Resolução
que os jovens devem beneficiar de medidas de apoio na reinserção na
sociedade, na família, na educação e no emprego.
Relatório Mundial da Juventude: Os Jovens Hoje e em 2015
Em 2005, o Programa das Nações Unidas para a Juventude, do
Departamento de Assuntos Económicos e Sociais (DESA), publicou o Relatório
“World Youth Report 2005: Young People Today and in 2015”, que salienta a
necessidade de intensificar investimentos em medidas que permitam
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
83
implementar o Programa de Acção Mundial para a Juventude e realizar os
Objectivos de Desenvolvimento do Milénio56. O relatório analisa a situação dos
jovens no mundo em três perspectivas: os jovens na economia global; os
jovens na sociedade civil; e os jovens em risco no contexto das tendências
mundiais relacionadas com a globalização, educação, emprego, fome e
pobreza.
Observação Geral N.º 10 (2007): os direitos das crianças nos sistemas de justiça de menores
Este documento faz uma análise da evolução das legislações nacionais
no que respeita à adequação do direito e da justiça de crianças e jovens aos
princípios da Convenção de 1989 e formula um conjunto de recomendações
aos Estados-parte tendo em vista a definição e aplicação de uma política global
em matéria de justiça juvenil. Esta política apoio-se em dois eixos centrais: a
prevenção da delinquência juvenil e a introdução de medidas alternativas ao
processo judicial na resposta à criminalidade de crianças e jovens.
Apesar de se reconhecerem os esforços desenvolvidos pelos Estados-
parte no sentido de harmonizar o sistema de administração da justiça de
56 Uma das conclusões é no sentido de que, apesar de estarem a receber mais educação,
ainda existiam 113 milhões de crianças que não frequentam a escola, 130 milhões de jovens analfabetos e cada vez mais jovens desempregados – com especial incidência na Ásia Ocidental, Norte de África e África do Sul do Saara.
Neste relatório avaliam-se, ainda, as tendências mundiais relacionadas com os jovens e o ambiente, as actividades de lazer, a participação no processo de decisão, as relações intergeracionais e as tecnologias da informação e comunicação – de salientar o reconhecimento do contributo que o tempo de lazer pode representar para os jovens quanto à inclusão social, o acesso a oportunidades e o desenvolvimento em geral. Por fim, elencam-se as tendências no que se refere à saúde, VIH/SIDA, abuso de droga, situação das raparigas e das mulheres, conflitos armados e delinquência juvenil, salientando-se que a principal causa de mortalidade dos jovens é o VIH/SIDA, seguida da violência e das lesões. Outras conclusões vão no sentido de reconhecer que existe uma forte ligação entre a vitimização dos jovens e a criminalidade, e que a pobreza, a disfunção familiar, o abuso de substâncias e a morte de parentes são factores de risco que contribuem para a delinquência juvenil.
84 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
crianças e jovens com a Convenção de 1989, considera-se que muitos deles
ainda têm algum caminho a percorrer no respeito pleno pela Convenção.
Salienta-se, em especial, a ausência ou insuficiência de medidas e políticas
que apostem na prevenção, no sentido de evitar que as crianças entrem em
conflito com a lei.
Na definição do que se deve entender por uma política global de justiça
de crianças e jovens chama-se a atenção para os seguintes elementos
essenciais: prevenção da delinquência juvenil; intervenção sem recurso a
processo judicial; fixação da idade mínima de responsabilidade penal e da uma
idade até à qual poderá ser aplicado o sistema de justiça para crianças e
jovens; e garantias.
No âmbito da prevenção da delinquência juvenil, uma das vertentes
centrais do programa, enfatiza a importância dos programas que visam o apoio
familiar, o designado potencial social dos pais, e promovam a educação dos
jovens; e de programas que envolvam a comunidade, designadamente, no
âmbito das respostas extra-judiciais, promovendo formas de justiça
restaurativa. Recomendando-se, ainda, como idade mínima de
responsabilidade penal os 12 anos.
Resolução ECOSOC 2007/23
Em 2007, o Conselho Económico e Social das Nações Unidas publicou a
Resolução ECOSOC 2007/23 sobre a reforma da justiça de crianças e jovens.
Os Estados são exortados a adoptar planos de acção que integrem medidas no
âmbito da delinquência juvenil e da reforma da justiça de crianças e jovens,
concretamente reduzindo o recurso a medidas cautelares, incentivando a
utilização de mecanismos de desjudicialização, de justiça restaurativa e de
medidas substitutivas do internamento. O documento salienta, ainda, a
importância de munir os agentes da justiça, que trabalham com esta temática,
com formação especializada, sejam magistrados, agentes de forças de
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
85
segurança ou técnicos de reinserção social e funcionários de centros
educativos.
Resolução sobre direitos humanos na administração da justiça, em particular da justiça para menores
Em Março de 2009, a Assembleia Geral das Nações Unidas publicou a
Resolução A/HRC/10/L.15 sobre a promoção e protecção de direitos humanos,
civis, políticos, económicos, sociais e culturais e o direito ao desenvolvimento.
Nesta Resolução, os Estados são convidados a desenvolver programas de
formação dirigidos para a capacitação em direitos humanos, ressaltando as
especificidades próprias da justiça juvenil. A Resolução relembra, ainda, a
necessidade de os Estados desenvolverem estratégias de readaptação e de
reinserção de jovens delinquentes, em particular programas de educação que
potenciem a sua reinserção social.
1.2 O direito europeu
Em Outubro de 2006, o Conselho da Europa enviou aos Estados-
membros um questionário dirigido à recolha de informação sobre a situação no
âmbito da delinquência juvenil. Foram recebidas respostas de trinta e quatro
Estados-membro e a conclusão é que constituem princípios informadores da
legislação da maioria dos Estados-membro, os princípios da
educação/reabilitação dos jovens, da resolução extrajudicial de conflitos, em
especial através da mediação e restauração e da salvaguarda de um processo
que respeita os direitos e as garantias processuais.
Há, contudo, divergências significativas em vários aspectos, como
quanto à idade mínima da responsabilidade criminal, quanto à aplicação de
medidas institucionais e não institucionais, quer quanto ao tipo de medidas,
86 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
quer quanto à forma como são aplicadas e executadas. Nesse sentido, alguns
países têm desenvolvido programas inovadores no quadro da mediação e da
reconciliação vítima-autor, da prestação de trabalho a favor da comunidade ou
programas educacionais para distintos tipos de autores, como agressores
violentos e agressores sexuais. A conclusão central vai no sentido de uma
grande disparidade nas legislações e práticas dos diferentes países e na
necessidade de implementação de processos de avaliação que permitam a
difusão de boas práticas.
A verdade é que a filosofia do direito da União Europeia relativamente
aos jovens delinquentes não vai no mesmo sentido da tendência actualmente
verificada em muitos Estados europeus, que têm vindo a aproximar, nalgumas
vertentes, o regime aplicável aos jovens delinquentes do regime aplicável aos
adultos. No início desta década, a delinquência juvenil tornou-se um factor de
inquietação social que acabou por legitimar alguns Estados a inserir nos seus
textos legais normas de cunho mais repressivo e securitário, de que são
exemplos a diminuição da idade mínima a partir da qual os jovens podem ser
responsabilizados por comportamentos violadores da lei e o aumento da
duração das medidas, em especial das medidas de internamento.
Assiste-se, assim, em alguns países da Europa a alguma perda da
relevância da condição de criança e jovem sempre que está em causa o
cometimento de um facto qualificado como crime. Para esta viragem de
orientação em muito contribui o crescente sentimento de insegurança57, nem
57 Os novos fenómenos, como a delinquência organizada, os gangs de jovens, o vandalismo
nas ruas, o assédio nas escolas, a violência exercida sobre os pais, os comportamentos xenófobos e os grupos extremistas, a imigração ou a toxicodependência, com maior incidência nas grandes cidades europeias, acabaram por implicar em alguns países europeus, nos anos mais recentes, uma propensão para o endurecimento do direito penal de crianças e jovens, designadamente, através do aumento das sanções aplicáveis. Neste sentido, é de salientar as reformas do direito penal de crianças e jovens introduzidas durante a década de 90 nos Países Baixos, em 1995 em França, assim como, em Inglaterra, o “Criminal Justice Act” que, em 1994, fez aumentar em um ou dois anos a sanção máxima aplicável a jovens entre os 15 e os 18 anos e estabeleceu a possibilidade de internamento de jovens entre os 12 e os 14 anos em centros em regime fechado, durante um período de seis meses a dois anos. Na Inglaterra foi
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
87
sempre suportado em dados empíricos, mas sim em casos muito mediatizados
que condicionam as percepções sociais.
Elencamos, de seguida, as Convenções e Recomendações mais
relevantes na vertente da justiça juvenil, adoptadas no âmbito do Conselho da
Europa, analisadas em detalhe no nosso estudo de 2004 para o qual
remetemos (Gomes, 2004: 70-90). São as seguintes:
Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças
A Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, que
entrou em vigor em 2000, tem como objectivo a promoção dos direitos das
crianças à informação e à participação nos processos que as afectam,
prevendo medidas processuais nesse sentido.
Recomendação (87) 20
Esta Recomendação, sobre “Reacções Sociais à Delinquência Juvenil”,
adoptada pelo Comité de Ministros em 1987, é um dos instrumentos jurídicos
do Conselho da Europa mais importantes em matéria de promoção e protecção
dos direitos das crianças. Centra-se em três temas principais: (1) prevenção da
delinquência juvenil; (2) incentivo à utilização de medidas de diversão, de
desjudicialização e de mediação, evitando que os jovens tenham contacto com
o sistema de justiça criminal; (3) desenvolvimento de garantias e de
aprofundamento de direitos no âmbito do processo judicial, designadamente, o
direito à jurisdição especializada e, sempre que se revele necessário, a
ainda introduzido o “pareting order” que passou a prever que os pais do jovem que cometa uma infracção podem ser obrigados a assistir a cursos de educação ou, ainda, serem punidos com multas.
88 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
aplicação de medida de internamento em regime fechado, ela tenha uma
duração o mais curta possível, e o direito a programas diversificados, no âmbito
da execução das medidas, que permitam desenvolver competências efectivas.
Recomendação (88) 6
O Comité de Ministros do Conselho da Europa adoptou, em 19888, uma
Recomendação sobre “Reacções Sociais ao Comportamento Delinquente dos
Jovens de Famílias Migrantes”, no sentido de os Estados-membro adoptarem
medidas destinadas à prevenção de comportamentos delinquentes por parte
dos jovens migrantes, designadamente, possibilitando aos jovens de segunda
geração as possibilidades dos autóctones para se poderem integrar no seu
país de residência, começando pela possibilidade de aquisição de residência.
Outras das recomendações vão no sentido do desenvolvimento de medidas
que evitem que as polícias adoptem comportamentos discriminatórios.
Recomendação (2000) 20
Esta Recomendação, sobre “O papel da intervenção psicossocial
precoce na prevenção dos comportamentos criminais”, foi adoptada pelo
Comité de Ministro do Conselho da Europa, em Outubro 2000, tendo como
objectivo central a definição de estratégias de prevenção dos comportamentos
criminais, incluindo medidas de prevenção de factores de risco e protecção,
como, por exemplo, a discriminação racial, a prostituição, a mendicidade, a
negligência. Incentiva-se, ainda, o desenvolvimento de estudos que melhor
permitam conhecer os factores de risco associados a comportamentos
criminais das crianças e jovens.
Recomendação (2001) 1532
Em Assembleia Parlamentar de Setembro de 2001, foi adoptada a
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
89
Recomendação sobre “Uma política social Dinâmica em Favor das Crianças e
Adolescentes em Meio Urbano”, visando a definição de políticas relativamente
a comportamentos anti-sociais dos jovens em meios urbanos e ao fenómeno
da ghetização nos arredores das grandes cidades. A Recomendação encoraja
os Estados-membro a introduzirem outras formas de regulação de litígios, quer
alternativos aos processos judiciais, quer alternativos a medidas detentivas,
defendendo-se a implementação de medidas ao nível da comunidade, medidas
não judiciais e alternativas à privação de liberdade dos jovens. A
Recomendação reforça a ideia de que a resposta principal à violência dos
jovens se deve situar, não na repressão ou na sanção, mas sim na prevenção
que deve surgir o mais cedo possível. A Recomendação reconhece, ainda, que
esta resposta passa necessariamente por uma acção mais concertada entre os
diversos parceiros locais e nacionais e por uma troca de experiência entre
países.
Recomendação (2003) 20
Esta Recomendação, adoptada pelo Comité de Ministros em Setembro
de 2003, versa sobre novos modos de tratamento da delinquência juvenil e
sobre o papel da justiça juvenil, que, nalguns casos, pode ser aplicada a jovens
adultos com menos de 21 anos. De entre as recomendações, destaca-se a
ênfase nas medidas de prevenção da para-delinquência e da reincidência, no
desenvolvimento de medidas inovadoras de aplicação na comunidade e que
envolvam os diferentes actores sociais, nomeadamente, polícias, autoridades
judiciárias, serviços de educação, emprego, saúde, e na formação sobre o
exercício das responsabilidades parentais.
Recomendação (2008) 11
Esta Recomendação, sobre as regras europeias para os jovens
delinquentes objecto de sanções ou de medidas, adoptada pelo Comité de
90 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Ministros em 5 de Novembro de 2008, é dirigida à execução das medidas, quer
as aplicadas na comunidade, quer as que implicam a privação de liberdade,
visando melhor proteger os direitos e a segurança dos jovens que entram em
conflito com a lei e aos quais são aplicadas sanções ou medidas, promover a
sua saúde física e mental, bem como o seu bem-estar social aquando da
execução de medidas quer em meio aberto, quer institucionais. A aposta na
educação, nas várias vertentes do jovem infractor, assume também aqui um
papel central.
1.3 A acção da União Europeia
O desenvolvimento de políticas efectivas de prevenção da criminalidade
impulsionadas pelo Conselho Europeu de Tampere, de 1999, sobre a criação
de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça na União Europeia, tem
constituído uma das apostas da acção da União Europeia, salientando-se a
importância do reforço da rede de autoridades nacionais competentes, bem
como da cooperação entre organismos nacionais especializados nesta área,
designadamente no âmbito da delinquência juvenil, da criminalidade em meio
urbano e da criminalidade associada à droga.
Com este pano de fundo teve lugar, em 2000, em Portugal, a
Conferência de Alto Nível sobre Prevenção da Criminalidade, que reformou as
conclusões do Conselho Europeu de Tampere e ensaiou a definição de uma
estratégia europeia contra a criminalidade. No mesmo ano, no quadro do
Seminário “A Justiça de Menores na Europa”, foram relembrados os programas
e as iniciativas desenvolvidas para a juventude e partilhada informação sobre
as respostas dos Estados-membro aos problemas levantados pela
delinquência juvenil.
As conclusões do Seminário foram no sentido de que a delinquência
juvenil é, sobretudo, um fenómeno urbano, existindo uma relação estreita entre
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
91
a delinquência juvenil e o crescimento urbanístico desordenado, especialmente
nas periferias das grandes cidades; entre delinquência juvenil e exclusão
social, económica e cultural; entre delinquência juvenil e movimentos
migratórios, com as desadaptações sociais associadas, que acentuam as
fragilidades das instâncias tradicionais de socialização, designadamente da
família e da escola, face aos primeiros sintomas de desvio social, às
dificuldades em transmitir valores fundamentais sociais; e a relação entre a
prática de crimes e a existência de problemas de foro psiquiátrico e de
consumo de álcool. Analisou-se, ainda, a mediatização da delinquência juvenil
e o seu efeito nas percepções de insegurança.
Em termos de respostas à delinquência juvenil, salientam-se as
seguintes: a) a luta contra a delinquência juvenil tem que respeitar e promover
os direitos humanos e os direitos da criança; b) as respostas à delinquência
juvenil requerem uma abordagem integrada, de cariz preventivo, assistencial,
policial e judiciário, não constituindo apenas tarefa das entidades policiais e
judiciárias; c) uma intervenção pluridisciplinar é essencial para a compreensão
do fenómeno da delinquência juvenil e para a elaboração e execução de
programas e de decisões mais adequados, quer para a prevenção primária,
quer para a reincidência; d) é crucial uma articulação e coordenação
sistemáticas entre todas as entidades; e) as estratégias de prevenção devem
ser conduzidas por grande número de actores e aptas a permitir uma
intervenção precoce, que detecte os primeiros factores de risco, devendo ter
uma base local inserida em estratégias globais de desenvolvimento social e
urbanístico eficazes, por forma a contrariarem a exclusão social e a
marginalização urbana, o desemprego, a falta de oportunidades de educação e
o absentismo escolar, desempenhando os sistemas educativo, de formação
profissional e emprego um papel essencial na prevenção da delinquência
juvenil.
Apesar das diferenças entre os Estados-membro quanto ao sistema de
medidas aplicáveis a jovens, a conclusão foi no sentido de existir uma
92 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
tendência comum em todos os países da União Europeia na prioridade
dispensada a medidas de conteúdo reparador do ofendido ou da comunidade e
a medidas de conteúdo probatório e educativo executadas na comunidade. As
medidas detentivas são, assim, reservadas para os casos mais graves.
Do Seminário resultou o propósito de iniciar um caminho comum de
fixação de regras mínimas que inspirem e orientem a aproximação dos vários
sistemas jurídicos europeus e que dê consistência à perspectiva europeia de
tratamento da delinquência juvenil. Foi, ainda, tomada a iniciativa de criação de
uma Rede Europeia de Prevenção da Criminalidade, orientada
designadamente para a delinquência juvenil, e a proposta de criação de um
Observatório Europeu sobre a Delinquência Juvenil.
Esta Rede Europeia de Prevenção da Criminalidade (REPC) acabou por
ser criada por decisão do Conselho da União Europeia, em Maio de 2001,
visando contribuir para o desenvolvimento de acções de prevenção da
criminalidade, quer a nível da União, quer a nível local e nacional. As áreas da
delinquência juvenil, da criminalidade em meio urbano e da criminalidade
associada à droga constituem o objecto de intervenção privilegiado desta
Rede58.
No que respeita a programas concretos de prevenção da criminalidade,
salienta-se, em 2001, o Programa Hipócrates59, no âmbito da prevenção da
58 A REPC tem os seguintes objectivos concretos: facilitar a colaboração, os contactos e a
troca de informações e de experiências; analisar as acções existentes no âmbito da prevenção da criminalidade; definir os principais domínios de colaboração e organizar anualmente a entrega do Prémio Europeu de Prevenção da Criminalidade; organizar conferências, seminários e encontros; reforçar a cooperação com os países candidatos; e apresentar anualmente ao Conselho um relatório sobre as actividades desenvolvidas (Jornal Oficial, 2001).
59 O Programa Hipócrates, criado por um período de dois anos (2001 e 2002), visava a
promoção e a cooperação entre todas as organizações públicas e privadas dos Estados da União com participação na prevenção da criminalidade. As prioridades deste programa na prevenção geral da criminalidade baseavam-se nos três temas prioritários identificados pelo Conselho Europeu de Tampere, entre os quais figurava a delinquência juvenil.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
93
criminalidade e, em 2002, o Programa-quadro AGIS60, com vista ao co-
financiamento de projectos de cooperação entre Estados-membro.
Como a inserção social e laboral constituem dois dos eixos
fundamentais para a prevenção e o combate à delinquência juvenil, são várias
as estratégias, agendas, projectos e programas adoptados pelos sucessivos
Conselhos Europeus e pelas instituições comunitárias, sendo de destacar, pela
sua relação mais próxima com a temática dos jovens infractores, o Programa
Operacional de combate à discriminação, inserido no Objectivo n.º 1 do Fundo
Social Europeu.
Um exemplo de aplicação deste Programa, no domínio da justiça de
crianças e jovens, é o da Fundación Diagrama, em Espanha, que co-administra
com as comunidades um programa operacional dirigido aos jovens que estejam
a cumprir ou tenham cumprido medidas ou sanções privativas de liberdade. O
objectivo desse programa é preparar, de modo individualizado e integral, um
itinerário de inserção social e laboral para os jovens, nessas circunstâncias
começando mesmo antes do jovem abandonar o centro de internamento. Os
resultados obtidos, até ao momento, são considerados muito positivos (cf.
Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre A prevenção da
delinquência juvenil, as formas de tratamento da mesma e o papel da justiça de
menores na União Europeia, 2006).
60 Em 2002, o Programa-quadro AGIS prosseguiu e ampliou a acção dos anteriores programas,
designadamente dos Programas Grotius II - Penal, Oisin II, Stop II, Hipócrates e Falcone, no âmbito da cooperação policial e judiciária em matéria penal.
94 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Parecer “A prevenção da delinquência juvenil, as formas de tratamento da mesma e o papel da justiça de menores na União Europeia”
O Comité Económico e Social Europeu (CESE) da União Europeia, em
10 de Fevereiro de 2005, elaborou um parecer sobre “A prevenção da
delinquência juvenil, as formas de tratamento da mesma e o papel da justiça de
menores na União Europeia”, que veio a ser aprovado em 2006. Este Parecer
versa sobre as seguintes temáticas: causas da delinquência juvenil, limitações
dos sistemas tradicionais de justiça juvenil, novas tendências da justiça de
crianças e jovens, tratamento actual no âmbito da União Europeia,
conveniência de um quadro europeu de referência sobre a justiça juvenil e
propostas para uma política europeia de justiça de crianças e jovens.
A delinquência juvenil é considerada, neste Parecer, como um dos
fenómenos sociais mais preocupantes, cuja resposta passa pela articulação
das seguintes linhas de acção: prevenção; medidas tutelares educativas; e
integração e reinserção social dos jovens infractores. Considera-se, por isso,
que a “a elaboração de uma estratégia comum de luta contra a delinquência
juvenil devia ser um objectivo alvo de maior atenção no seio da União
Europeia”, não só porque afecta uma parte especialmente sensível da
população, mas também porque, ao fazê-lo, se está a prevenir a delinquência
adulta do futuro. Contudo, apesar do reconhecimento da importância da
temática, plasmada em vários projectos e políticas, considera-se que faltam,
ainda, “instrumentos e medidas orientados para o fenómeno específico da
delinquência protagonizada por jovens”.
Salienta-se, assim, a ausência ou deficiência de coordenação e de
integração das políticas nacionais dos Estados-membro, o que leva a que
exista uma grande heterogeneidade no tipo respostas a este fenómeno social,
dificultando, também, a análise comparativa da situação nos diferentes países
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
95
da União Europeia, desde logo, porque “cada um define como entende a
delinquência juvenil com base em variáveis diferentes61. Em consequência, o
Comité Económico e Social Europeu da União Europeia considera importante a
definição de medidas de coordenação e de orientação que facilitem uma
gestão europeia do fenómeno, mas também de políticas de informação
adequadas e que “contribuam para desdramatizar e ajustar a percepção
exageradamente negativa”. Aliás, considera-se mesmo que um quadro
comunitário de referência poderia servir para limitar ou impedir mesmo as
tendências regressivas que são patentes em alguns Estados-membro.
Salientam-se, ainda, importantes diferenças em termos de regimes
sancionatórios, como, por exemplo, no que se refere aos limites mínimos da
idade da responsabilidade criminal ou ao limite máximo de aplicação da
jurisdição especial para os jovens, à existência ou não de um direito penal
juvenil com sanções específicas ou, como ocorre nalguns países, aplicando-se
aos jovens as mesmas penas que aplicam aos adultos, ainda que prevendo
limites e atenuações especiais.
No Parecer pode ler-se, também, que “nos países europeus há cada vez
mais a percepção de um aumento da delinquência juvenil bem como da
gravidade dos delitos cometidos por jovens” e que, perante esta constatação,
“os cidadãos exigem mecanismos de controlo mais eficazes, o que está a levar,
em muitos países, a um endurecimento da legislação de menores”.
O Parecer incorpora um conjunto de propostas, tendo em vista uma
política europeia de justiça de crianças e jovens, partindo dos seguintes
pressupostos:
61 O Parecer salienta que, apesar de existirem diversas normas internacionais no quadro da
ONU e do Conselho da Europa sobre a delinquência juvenil e justiça de menores, “a sua força vinculativa é escassa ou nula (com a excepção (…) da Convenção sobre os Direitos da Criança) e apresentam apenas normas mínimas comuns para toda a comunidade internacional. (…) a União Europeia devia aspirar e ter como objectivo melhorar e tornar mais eficazes no seu território os princípios estabelecidos internacionalmente”.
96 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
(1) Em todos os países da União Europeia vão surgindo, em maior ou menor
grau, “fenómenos relativamente semelhantes que exigem respostas também
parecidas: crise das instâncias tradicionais de controlo social informal (família,
escola, trabalho), aparecimento nos grandes núcleos urbanos de guetos em
que uma percentagem importante dos seus habitantes se encontram em risco
de exclusão social, novas formas de delinquência juvenil (violência doméstica e
na escola, bandos juvenis, vandalismo urbano), abuso de drogas e de álcool,
etc.”;
(2) Regista-se uma aproximação progressiva entre os modelos de justiça
juvenil dos Estados-membro da União Europeia, impondo-se o chamado
modelo de responsabilidade, associado à justiça retributiva ou reparadora.
Contudo, entre os vários Estados, existem grandes diferenças, como a idade
para a exigência de responsabilidade penal juvenil, sendo desejável alcançar-
se uma harmonização progressiva dos modelos e sistemas de prevenção,
protecção, intervenção e tratamento do fenómeno da delinquência juvenil e da
justiça de crianças e jovens.
(3) A intervenção deve ser multidisciplinar e multi-institucional, integrando as
ciências sociais e de comportamento, e diferentes instituições e organizações
(administrações públicas, regionais e locais, serviços sociais de diferentes
âmbitos, aparelho policial e judicial, organizações sem fins lucrativos, empresas
privadas através de projectos de responsabilidade social empresarial,
associações de famílias, actores económicos e sociais, etc.).
Considerando que a sociedade da informação, a evolução tecnológica, a
permeabilidade das fronteiras e outros factores análogos desempenham um
papel importante na generalização dos fenómenos de delinquência juvenil, o
"efeito de contágio" desses comportamentos não deve ser subestimado. Como
recomendações concretas, o CESE considera, entre outras, as seguintes:
(1) Produção de indicadores quantitativos actualizados e comparáveis sobre a
situação da delinquência juvenil nos países da UE, de forma a ser conhecida a
verdadeira extensão do problema, condição fundamental para as políticas e
medidas a desenvolver;
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
97
(2) Considera-se importante a existência de normas mínimas ou orientações
comuns entre todos os Estados-Membro em relação às políticas de prevenção,
reeducação e ressocialização, passando pelo tratamento policial e judicial dos
jovens em conflito com a lei penal. Essas normas deviam basear-se nos
princípios gerais de direito internacional, designadamente, na Convenção sobre
os Direitos da Criança;
(3) Criação de um observatório europeu sobre a delinquência juvenil, com o fim
de facilitar o estudo permanente deste fenómeno, sendo a investigação e o
conhecimento utilizados como ferramentas de ajuda à adopção de políticas e à
definição de estratégias de resposta.
Considerando que as diversas questões relativas à justiça de jovens são
abordadas de forma dispersa pelas diferentes políticas da União Europeia
(liberdade, segurança e justiça, juventude, educação e formação, emprego e
assuntos sociais), recomenda-se uma coordenação operacional entre todos os
serviços envolvidos.
As características específicas do fenómeno da delinquência juvenil,
assim como o seu próprio carácter dinâmico e mutante, exigem uma formação
especializada e permanente dos profissionais, bem como a participação das
organizações e dos profissionais da sociedade civil (organizações do "terceiro
sector", associações, famílias, ONG, etc.).
Nesse sentido, considera-se que as políticas comunitárias adoptadas
deveriam ter em conta o papel das organizações sindicais e empresariais na
concretização da integração e inserção sócio-laborais e profissionais dos
jovens em situação de exclusão social. Recomenda-se, ainda, que a Comissão
Europeia estabeleça linhas orçamentais de apoio à protecção de crianças e
jovens, prevenção da delinquência juvenil e tratamento dos jovens infractores.
98 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Observatório Europeu de Justiça Juvenil
Como uma das inovações institucionais mais relevantes, destaca-se a
criação do Observatório Europeu de Justiça Juvenil (OEJJ), sediado em
Bruxelas, em 13 de Julho de 2008, sendo o culminar das conclusões da II
Conferência Internacional do Observatório Internacional de Justiça Juvenil
(OIJJ) "A Justiça Juvenil na Europa: Um marco para a integração", realizada
em Bruxelas em Outubro de 2006.
O OEJJ inscreve a sua acção no âmbito da acção do Conselho Europeu
de Justiça Juvenil, como órgão central de estudo e análise desta problemática,
podendo integrar órgãos da administração pública dos Estados-membro,
universidades, centros académicos e organizações não governamentais.
É um organismo que visa contribuir para a melhoria permanente da
justiça juvenil na Europa, incentivando a colaboração entre administrações
públicas, universidades e ONG´s. Tem como objectivos a criação de um
espaço europeu de reflexão sobre a temática, o desenvolvimento de iniciativas
e o estabelecimento de processos de boas práticas tendo em vista a educação
e a integração social dos jovens em conflito com a lei.
No desenvolvimento dos seus objectivos, o OEJJ prevê a realização das
seguintes actividades: iniciativas de colaboração com e entre entidades e
associações no âmbito da justiça juvenil, universidades e administração
pública, bem como com organismos europeus; constituição de grupos de
trabalho e redes de peritos a nível europeu nas áreas da prevenção, de
resolução de conflitos e integração social; criação de fundos documentais e
estatísticos; e apresentação de propostas e recomendações relativamente à
definição e à aplicação de políticas no âmbito da justiça juvenil.
OS MODELOS DE INTERVENÇÃO
2
2 OS MODELOS DE INTERVENÇÃO
Introdução
O tratamento da delinquência juvenil foi objecto, ao longo dos tempos,
de transformações que implicaram respostas institucionais distintas. Tais
respostas começaram por ser idênticas às dispensadas aos adultos
condenados pala prática de factos qualificados como crimes, não havendo
instituições especializadas em delinquência juvenil, de acordo com um modelo
que se pode designar punitivo. Apenas a partir de meados do século XIX se
registaram tentativas para tratar de forma diferenciada os jovens delinquentes,
separando-os dos adultos. Começou a defender-se a proibição de
encarceramento de menores de 18 anos, tendo surgido a primeira instância
específica de controlo penal para os jovens. Desde então a justiça de crianças
e jovens tem assumido diferentes modelos de intervenção: modelo de
protecção, tutelar ou assistencial, modelo de bem-estar ou educativo e modelo
de responsabilidade ou de justiça (Gomes, 2004: 40-52). Destacam-se, ainda,
o emergente modelo de justiça restaurativa, o modelo de política criminal
norteamericano e o designado modelo comum europeu.
2.1 Os modelos de protecção, de justiça e educativo
Para o modelo de protecção, a criança não é responsável pelos seus
actos, mas vítima das circunstâncias, pelo que não deve ser punida. O
comportamento criminal está ligado a limitações sociais, económicas e físicas
102 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
e, por isso, qualquer intervenção do Estado não deve ter como objectivo punir o
delinquente em particular, mas constituir uma atenuante a essas limitações
(Tutt, 1991), isto é, a intervenção a fazer deve ser orientada pelas
necessidades e não pelo facto praticado. O modelo de protecção caracteriza-
se, fundamentalmente, pelos seguintes aspectos: equiparação quanto à forma
de processo e às medidas aplicáveis entre crianças delinquentes e crianças
que se encontrem em situações vistas como socialmente indesejáveis ou em
risco; processo informal, conduzido em regra pelo juiz, com escassas garantias
e visando quase exclusivamente apurar a personalidade do jovem e as suas
condições sócio-familiares (a observação é um ponto essencial deste modelo);
e livre aplicação e livre revisão, pelo juiz, de medidas de protecção, de
assistência e/ou educação, de duração indeterminada (Moura, 2000).
Na segunda metade do século XX foi dada uma nova visibilidade aos
direitos das pessoas, surgindo importantes documentos internacionais nesta
matéria. Diversos países passaram a adoptar, também, legislação que
reconhecia os direitos específicos das pessoas particularmente vulneráveis,
nomeadamente em função da idade. Esta alteração do contexto social levou à
denúncia de abusos a que estavam sujeitos jovens que não beneficiavam de
qualquer protecção processual e de casos de muitos jovens sujeitos a medidas
de duração indeterminada. Foi, deste modo, posta em causa a filosofia do
modelo de protecção, concluindo-se que os jovens não recebiam nem
tratamento eficaz, nem sanções dissuasoras para combater o seu
comportamento criminal (D‟Amours, 2000: 95-115).
A flexibilidade no processo de escolha e aplicação da medida; a falta de
garantias processuais dos jovens, dos seus pais e dos seus representantes; o
facto de conduzir a uma intervenção bastante selectiva desproporcionada,
tanto na duração como na intensidade; bem como o facto de se entender que a
aplicação de uma medida visa mais a prevenção de futuros crimes do que a
resposta ao facto praticado, o que leva a estender o controlo judiciário de
cunho parapenal a crianças que se encontram em situações de “irregularidade
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
103
social” ou em “risco”, são factores que afastaram este modelo da maioria dos
ordenamentos jurídicos.
O modelo educativo de justiça juvenil, associado ao Estado de bem-
estar, caracterizava-se por prever um tratamento multidisciplinar, incluindo
psicólogos, trabalhadores sociais, educadores, entre outros profissionais, aos
jovens delinquentes e aos que, pela sua situação de desamparo, necessitavam
de assistência. Este modelo era favorável à desformalização dos
procedimentos e à não aplicação de medidas de internamento. Defendia a
acção educativa através de programas a executar no âmbito da família e da
comunidade, a desinstitucionalização e a desjudicialização, evitando que o
jovem fosse sujeito a procedimento judicial (Cabezas Salmerón).
O modelo de justiça realçava, não as necessidades específicas do jovem
delinquente, mas sim o acto que este praticara. O jovem deve assumir a
responsabilidade das suas escolhas e das suas atitudes e a sanção aplicada
deve ser proporcional à gravidade do delito cometido. O modelo distingue as
crianças em risco ou com dificuldades de adaptabilidade social das crianças
que praticam factos qualificados como crime, prevendo um processo de
natureza desformalizada que salvaguarda as garantias de defesa essenciais do
jovem e as medidas aplicáveis, dando igualmente prioridade à função
educativa.
O debate sobre a legitimidade e a capacidade de intervenção judicial, no
que toca especialmente ao problema da juventude e da delinquência, num
momento de crise do Estado Providência, levou ao surgimento de um conjunto
de críticas em diversos sistemas jurídicos, a partir da década de oitenta, e à
discussão em torno da opção entre o modelo de justiça (em que se privilegia a
defesa da sociedade e o respeito dos direitos, liberdades e garantias dos
jovens) e o modelo de protecção (em que se privilegia a intervenção do Estado
na defesa do interesse do jovem sem que lhe seja formalmente reconhecido o
direito ao contraditório).
104 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
As mais recentes recomendações de organismos europeus incentivam à
desjudicialização das respostas. Neste contexto, o designado modelo dos 4 d´s
– descriminalização, desinstitucionalização, diversão e devido processo – e
com ele associado o modelo de justiça restaurativa, emergem na literatura e
nas recomendações com crescente intensidade. A mediação reparadora e a
procura de conciliação mostram-se como caminhos alternativos e eficazes,
evitando a estigmatização que o contacto com o sistema de justiça produz nos
delinquentes e nas vítimas, na reabilitação dos jovens infractores e na sua
inserção na comunidade (Cuesta Arzamendi, 2008).
Segundo Vázquez González (2008), nos Estados Unidos da América, a
sequência de um amplo debate social desencadeado por partidos políticos e
meios de comunicação social, impôs-se uma corrente, claramente populista e
neoconservadora, na política penal juvenil, que defende a utilização de
medidas de diversão como a mediação e a reparação para a delinquência
juvenil leve ou de baixa gravidade e a remissão da delinquência juvenil grave
para o sistema penal dos adultos, apesar das estatísticas não mostrarem um
aumento da delinquência juvenil nem uma maior gravidade dos delitos. A
emergência deste modelo reflectiu-se sobretudo em Inglaterra, na sequência
de casos que aumentaram o medo e o alarme social62, legitimando propostas
de lei mais duras. Ainda segundo o autor, os resultados desta política mais
dura são evidentes e os jovens condenados a medidas de internamento
subiram dos 500 em 1993 para cerca de 9.000 em 2003 e, além do aumento do
número de jovens a cumprirem medidas de internamento, aumentou também a
duração do tempo de internamento (Vázquez González, 2008).
Como veremos de seguida, também nos países da Europa têm ocorrido
reformas e projectos de reforma com vista a diminuir a idade mínima para exigir
62 Por exemplo, o caso de James Bulger, de dois anos, assassinado em 1993 por duas
crianças de 10 anos.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
105
responsabilidade penal, a excluir a aplicação da jurisdição de menores aos
jovens adultos entre 18 e 21 anos, ao alargamento das situações em que se
priva o jovem de liberdade, à duração máxima das medidas aplicadas e ao
fortalecimento da posição processual das vítimas.
2.2 A caminho de um modelo comum europeu
Alguns autores, como Cuesta Arzamendi, levantam a possibilidade de
existir um modelo de reeducação e de reinserção de crianças e jovens a nível
europeu, considerando existirem princípios e orientações comuns a vários
países. Posição idêntica tem sido defendida por instituições europeias, como o
Parlamento Europeu e o Comité Económico e Social, avançando para o
desenvolvimento de uma estratégia europeia integrada em matéria de
delinquência juvenil. Apesar de valores e princípios jurídicos comuns, não
existe um modelo unitário de intervenção face aos comportamentos
delinquentes das crianças e jovens, existindo na Europa distintos modelos
(modelo de bem-estar; modelo de justiça; modelo de intervenção mínima;
modelo de justiça restaurativa), embora nenhum deles em estado puro, mas
registando-se, nos vários países, elementos dos vários modelos. Esta
verificação dificulta o objectivo de construção de um modelo europeu.
Recomendações recentes vão no sentido da intervenção mínima e da justiça
restaurativa, abandonando-se as posições tutelares ou de protecção mais
tradicionais. O debate centra-se na alternativa entre os modelos de bem-estar,
que destacam a vertente educativa, social ou comunitária, e os designados
modelos de responsabilidade.
Para Cuesta Arzamendi, as instituições europeias não podem desenhar
por completo um sistema europeu unitário de reeducação e de reinserção de
jovens, podendo formulá-lo a partir das declarações, resoluções e
recomendações europeias que incluem um conjunto de princípios e estratégias
106 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
comuns. O autor chama, no entanto, a atenção para uma questão central da
construção desse modelo: a necessidade de aprofundamento do conhecimento
da realidade da delinquência juvenil através de metodologias similares, que
permitam uma comparação a nível europeu. Para o autor, a prevenção e
reinserção social devem constituir políticas-chave que devem envolver todos os
actores sociais e institucionais. Os textos europeus mais recentes e a doutrina
são unânimes em considerar que a intervenção preventiva, apesar dos
resultados não serem visíveis de imediato, é a mais adequada, com a
vantagem de não sobrecarregar o sistema de justiça63.
O autor elenca os seguintes princípios e estratégias que devem inspirar
a intervenção sobre jovens que praticam factos qualificados pela lei penal como
crimes:
(1) Integração dos sistemas de intervenção no âmbito da política juvenil;
(2) Preferência, sempre que possível, pela solução de conflitos por vias como a
mediação ou outras de carácter restaurativo, retardando a actuação dos
sistemas de controlo formal e, sobretudo, as respostas de cariz sancionador ou
punitivo;
(3) Generalização das vias de diversão em todos os níveis de intervenção, em
particular se combinadas com a aplicação de mecanismos ou sistemas de
reparação ou conciliação com a vítima ou a comunidade;
(4) Assegurar o respeito pelos direitos e garantias fundamentais dos jovens e
do seu direito a participar, com conhecimento informado, nos procedimentos
que os afectem;
63 Para o autor, os “jovens maus” são frequentemente “jovens tristes” (the “bad kids” are often
the “sad kids”), ou seja, aqueles que não têm ocupação, com condições de vida e alojamento não adequadas, oriundos de famílias necessitadas de ajuda social, jovens de famílias imigrantes com problemas de integração, éticos e culturais, com fracas perspectivas de emprego, jovens vítimas de abusos e delitos, em suma, com problemas subjacentes ao comportamento delituoso, que não se podem contornar se se pretende, de facto, prevenir a criminalidade (Cuesta Arzamendi, 2008).
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
107
(5) Intervenção mínima e flexibilidade quanto às sanções e medidas, as quais
devem ser sempre adaptadas ao interesse do jovem e ter um carácter
individualizado, adequado à idade, desenvolvimento, capacidades e
circunstâncias pessoais, tendo como limite a gravidade da infracção cometida e
uma duração estritamente necessária e ser orientadas para a reeducação e
integração social;
(6) Controlo regular da execução e acompanhamento por órgãos
independentes, devendo ser feita uma permanente avaliação do sistema no
seu conjunto.
De acordo com Cuesta Arzamendi, a elaboração de regras mínimas
europeias deve orientar-se, por um lado, pela prioridade de uma intervenção
preventiva levada a cabo por programas gerais e específicos para jovens em
risco de exclusão social e pela necessidade de sistemas eficazes de apoio no
processo de inserção. Por outro lado, deve ainda ser privilegiada a
profissionalização e a especialização dos intervenientes e o desenvolvimento
de vias alternativas de resolução de conflitos. Entre outras orientações,
destacam-se:
(1) A fixação de um limite etário mínimo para a aplicação de um sistema de
responsabilidade penal específico para jovens, que não poderá depender
apenas do critério biológico, mas atender, também, à maturidade e
discernimento64;
(2) A jurisdição de menores e os serviços sociais deverão ser dotados de meios
adequados ao tratamento dos infractores que não atinjam a idade mínima de
64 Esse limite devia fixar-se nos 14 anos, como indica a Associação Internacional de Direito
Penal, idade abaixo da qual apenas deveriam ser aplicadas medidas educativas. Cf. Resoluções do XVII Congresso Internacional de Direito Penal, 12-18 Setembro de 2004, em Pequim (China), na Revue Internacionale de Droit Pénal, 75, 3-4, 2004, pp.808 - apud Cuesta Arzamendi.
108 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
responsabilidade penal, sem excluir as medidas de contenção, impostas de
forma coactiva e com as devidas garantias65;
(3) A redução da tendência de “hipercriminalização” de alguns sistemas e de
aplicação da privação de liberdade como resposta a comportamentos anti-
sociais constitutivos de infracções juvenis “em razão da sua condição”, que
deveriam ter um tratamento preferencial pela via civil ou dos serviços sociais;
(4) Assegurar o direito de participação do jovem nos procedimentos que o
afectem, com garantias processuais, bem como a abertura de vias eficazes de
revisão ou de recurso em sede judicial;
(5) A elaboração de um regime específico de sanções para os jovens
infractores com respostas distintas das dos adultos, preferencialmente na
comunidade, distinguindo os casos de responsabilidade penal dos de
perigosidade, com fixação de franjas de idade para a imposição de
determinados tipos de sanções ou medidas privativas;
(6) A redução da aplicação de medidas que impliquem a privação da liberdade,
incluindo o internamento preventivo, devendo todo o internamento ser
estritamente regulamentado, quer quanto à duração máxima e modalidades
aplicáveis a cada faixa etária, quer quanto aos órgãos competentes66.
Devem, ainda, ser definidos os parâmetros de resposta comum e de
tratamento dos designados “menores delinquentes de alta perigosidade”, com
frequência associados à imagem de jovens de cor, pertencentes a populações
marginais e imigrantes. Nesse sentido, deveria existir um plano de cooperação
65 Na opinião do autor esta solução é mais razoável do que reduzir a idade mínima, podendo,
contudo, ser deixada em aberto como resposta excepcional, para os jovens quase a completar os 14 anos que cometam factos qualificados como crimes muito graves e cujo tratamento, no âmbito do sistema de protecção, não se revele oportuno e adequado, considerando a sua capacidade de discernimento e perigosidade
66 O internamento deverá ser reservado a casos excepcionais e o regime fechado apenas
aplicado a infracções violentas ou graves praticada por jovens, com pelo menos 15-16 anos
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
109
policial e penal europeu no âmbito das infracções cometidas por jovens
adultos, entre os 18 e os 21 anos.
Cuesta Arzamendi defende que o caminho deve passar, numa primeira
fase, pela formulação normativa – e não meras recomendações ou propostas
de princípios – das orientações, quer no plano da prevenção, quer no das
respostas e tratamento da delinquência juvenil. Para o autor, essas orientações
deveriam constituir condicionantes da expansão das políticas punitivas,
promovendo a vertente educativa como princípio básico e diversificando o
elenco de sanções e a sua aplicação flexível (Cuesta Arzamendi, 2008).
III. A JUSTIÇA PENAL DE CRIANÇAS E
JOVENS NO CONTEXTO EUROPEU: O
CASO DE FRANÇA E DE ESPANHA
O CASO DE FRANÇA
1
1 O CASO DE FRANÇA
Introdução
Apresentamos, neste ponto, uma breve perspectiva do direito e da
justiça de crianças e jovens em França, dando especial ênfase à reforma em
curso, que veio colocar o tema no centro do debate político.
A Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945 (Ordonnance n.º 45-174 du
2 février 1945 relative à l’enfance délinquante67) marcou uma primeira grande
ruptura no tratamento das infracções cometidas por jovens, ao privilegiar os
princípios gerais de protecção e educação das crianças e jovens, dando
especial relevância à vertente educativa sobre a vertente repressiva que
pressuponha uma responsabilidade penal do jovem reduzida e sempre
proporcional à sua idade. O jovem, não só não deveria ser julgado como um
adulto, como ainda a jurisdição de menores devia procurar aplicar medidas de
protecção e de educação individualizadas através de acompanhamento
educativo com apoio de técnicos especializados.
Até à década de 90 do século passado, as alterações legais que se
sucederam foram no sentido de uma maior diversificação das respostas à
67 Ver in
http://66.196.80.202/babelfish/translate_url_content?.intl=br&lp=fr_pt&trurl=http%3a%2f%2fwww.textes.justice.gouv.fr%2findex.php%3frubrique%3d10086%26ssrubrique%3d10088%26article%3d11029 (Novembro de 2009).
116 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
delinquência juvenil, mas sem colocar em causa a finalidade educativa e de
reintegração social dos jovens que cometiam crimes68.
A partir dos meados dos anos 90 inicia-se uma discussão reformista
nesta matéria, que veio culminar na publicação de várias leis com reflexos na
justiça de crianças e jovens, enfatizando-se como linhas orientadoras a
importância da prevenção e a ideia de uma maior responsabilização dos jovens
delinquentes. No seu lastro estava a percepção social de aumento de crimes,
em especial contra a propriedade, praticados por jovens. Este processo de
reforma teve como importante marco a apresentação do Relatório da Comissão
Varinard, com vista à criação de um Novo Código da Justiça Penal de Menores
(CJPM), cuja conclusão está prevista para meados de 2010.
68 Ainda neste período, destaca-se a Lei de 1 de Setembro de 1945 (Ordonnance du 1er
septembre 1945) que procedeu à reestruturação do organismo central responsável em matéria de jovens: a Direction de l'Education Surveillé e a Lei de 23 de Dezembro de 1958, relativa à protecção judiciária das crianças em perigo (Ordonnance du 23 décembre 1958 relative à la protection judiciaires de l’enfance en danger). No caso de infracções cometidas, o ordenamento jurídico previa o apoio de equipas multidisciplinares (sob a direcção da Direction de l'Education Surveillée), constituída por educadores, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras, que deveriam propor ao juiz de menores a medida educativa mais adequada, tendo em conta a personalidade e o contexto sócio-familiar do jovem, e acompanhá-lo durante o período da execução das medidas.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
117
1.1. As principais características do direito e da justiça de crianças e jovens em França
Como já foi referido, o regime legal da justiça de crianças e jovens em
França está consagrado na Lei n.º 45-174 de 2 de Fevereiro de 1945, cuja
maioria dos artigos foi alterada pelas sucessivas reformas69.
Desde a década de 90 do século passado, o aumento da criminalidade
juvenil, mas, sobretudo, a crescente percepção de insegurança por ela
causada, levou ao “endurecimento” da resposta judicial aos crimes praticados
por jovens, com a aplicação de algumas medidas criadas para adultos, como a
medida de controlo judiciário70 e a suspensão com regime de prova,
concomitantemente com um aumento das situações de detenção71. A vertente
responsabilizadora do jovem acentua-se com a introdução, na ordem jurídica,
da obrigação de reparação à vítima pelos danos causados.
No campo processual, a designada Lei Toubon, publicada a 1 de Julho
de 1996, introduz alterações significativas, designadamente, prevendo um
processo judicial mais célere, de modo a que o julgamento possa ocorrer o
mais próximo possível da prática do facto; e um papel mais activo do Ministério
Público, que desenvolve parcerias com instituições civis (câmaras municipais,
delegações do Ministério da Educação, etc.).
69 A Lei de Fevereiro de 1945 sofreu, até à data, 31 reformas parcelares, tendo sido sujeita a
dezasseis modificações nestes últimos vinte anos, fazendo com que aos primeiros 44 artigos se juntem agora mais 34. Dos 44 artigos originais apenas 6 se mantêm inalterados.
70 Esta medida impõe a obrigação do jovem posto em liberdade se colocar ao dispor da justiça
e de cumprir determinadas obrigações (proibição de frequentar certos locais ou certas pessoas, obrigação de apresentação periódica no posto de polícia, etc.).
71 Para Dominique Youf “a detenção de menores já não é mais considerada como um mal
absoluto, mas como um mal necessário” (Youf, 2009: 100).
118 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
As alterações mais significativas nesta matéria ocorreram com a
publicação da Lei de Orientação e de Programação para a Justiça, de 9
Setembro de 2002 (Loi d’orientation et de programmation pour la justice -
LOPJ). Destaca-se a criação de centros educativos em regime fechado
(Centres Educatifs Fermés (CEF)), destinados aos jovens reincidentes com
idades compreendidas entre os 13 e os 18 anos, e a obrigação de
acompanhamento de um programa educativo; a possibilidade do Ministério
Público requerer o julgamento de um jovem num prazo muito curto (entre dez
dias e um mês); a previsão legal do princípio da responsabilidade penal dos
jovens, sempre que se considere que os mesmos tenham capacidade de
entendimento; e a criação de um novo tipo de medida penal para crianças e
jovens com mais de 10 anos (as sanções educativas).
Salientam-se a seguir algumas das principais características do direito e
da justiça penal para os jovens, em vigor na ordem jurídica francesa.
A justiça especializada e a tramitação do processo
Compete a uma justiça especializada (Tribunal pour enfants ou Cour
d’assises des mineurs72) o julgamento de jovens pela prática de um crime ou
delito73 (artigo 1 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945). Consagra-se,
assim, o princípio de uma justiça especializada, com tribunais e magistrados
72 Os Tribunaux pour enfants, sediados nos tribunais de grande instância, têm competência
para julgar os delitos e os crimes praticados por menores de 16 anos e são constituídos por um juiz de menores e por dois juízes não profissionais. O Ministério Público é representado por um procurador especializado. As Cours d’assise des mineurs têm competência para julgar os crimes de jovens de mais de 16 anos, sendo compostas por três juízes (um juiz do tribunal de recurso, que preside, e dois juízes-adjuntos) e um júri constituído por nove cidadãos sorteados das listas eleitorais. Existe, ainda, uma terceira jurisdição de menores, com competência na área da promoção e protecção de crianças em perigo e no julgamento de factos de pequena gravidade praticados por jovens, que é exercida pelo juiz de menores (Juge des Enfants) do tribunal de grande instância.
73 Em França, existem três tipos de infracções à lei penal: a contravenção, o delito e o crime,
cuja classificação é determinada pelo tipo de sanção aplicável.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
119
especializados, e de um processo penal próprio que deve sempre atender à
evolução da personalidade do jovem, com o mesmo juiz a acompanhar a fase
de instrução, de julgamento e de execução da medida ou da pena aplicada74.
O processo judicial inicia-se com a intervenção do Ministério Público,
dado que a notícia da prática de um delito ou de um crime por parte de um
jovem é a ele remetida. O MP pode solicitar informações complementares
através de um relatório social (enquête social)75. Após a análise do caso
concreto e a qualificação dos factos como contravenção, delito ou crime, o MP
pode tomar uma das seguintes três decisões: arquivar o processo; pronunciar o
jovem sob condição, quando este confessa os factos, aplicando-lhe uma
medida alternativa ou recorrendo à chamada composition pénale76; remeter o
processo para o juiz de menores ou para o juiz de instrução. O MP, antes de
decidir, pode ainda solicitar ao serviço de reinserção social que actua junto do
tribunal (SEAT)77 uma medida de apoio à instrução do processo78.
74 Cf. artigo 20-9 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945.
75 Este relatório incide sobre as condições sócio-familiares do joveme é elaborado por um
técnico da Protection Judiciaire de la Jeunesse (PJJ).
76 Esta forma de extinção do procedimento criminal por parte do MP foi criada para os adultos,
em 2005, tendo sido introduzida na justiça de menores em 2007. Pode ser aplicada a jovens com pelo menos 13 anos de idade, sempre que se considere que é uma medida adequada à sua personalidade e quando tiverem praticado uma infracção punível com pena de prisão não superior a cinco anos. O MP pode propor ao jovem o cumprimento de uma das seguintes medidas, cujo prazo de execução não pode exceder um ano: obrigação de frequentar um curso de formação cívica, frequência assídua às aulas ou a um curso de formação profissional, colocação numa instituição ou num estabelecimento público ou privado de educação ou de formação profissional; acompanhado psicológico ou psiquiátrico, ou comprometer-se a desenvolver uma determinada actividade de cariz social ou profissional. O MP terá que obter, para além do consentimento do própriojovem, o consentimento dos seus representantes legais (cf. artigo 7-2 da Lei n.º 45-174, de 2 Fevereiro de 1945).
77 Os Services éducatifs auprès du tribunal” (SEAT) são departamentos da DPJJ e são
responsáveis por prestar todo o apoio aos jovens e suas famílias, pela promoção da orientação educacional dos jovens delinquentes, devendo juntar ao processo, sempre que lhes seja solicitado pelo procurador da república, pelo juiz de menores ou pelo juiz de instrução, um relatório escrito contendo toda a informação relevante sobre a evolução da situação do jovem e, ainda, uma proposta de aplicação de uma medida educativa.
120 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A intervenção do juiz ocorre em diversas fases. Em primeiro lugar,
através de uma audição no seu gabinete, após ser recebido o processo, do
jovem e dos seus representantes legais, designadamente, para um melhor
conhecimento da situação familiar, escolar e social do jovem79.
Após esta audição, o juiz, que tem sempre a faculdade de solicitar aos
serviços competentes informações complementares, poderá, desde logo,
aplicar ao jovem, durante um determinado período de tempo, uma medida
provisória, nomeadamente, a sua colocação em centro de acolhimento ou a
realização de uma actividade de cariz social ou profissional, assim como
poderá aplicar medidas de carácter preventivo, como o controlo judiciário ou a
detenção provisória80.
Decorrido o período de tempo de execução da medida provisória
aplicada, ou caso não tenha sido aplicada nenhuma medida, o juiz, depois de
receber as informações complementares solicitadas, poderá decidir pelo
arquivamento do processo ou pelo prosseguimento dos autos para a fase de
julgamento.
78 As medidas de apoio à instrução do processo são medidas de apoio à tomada de posição e
de fundamentação das decisões dos magistrados (MP e juiz de menores). Trata-se da recolha de um vasto conjunto de informação que permita um melhor conhecimento da situação em geral dojovem, incidindo, essencialmente, sobre aspectos como a sua personalidade, percurso de vida, a sua vida familiar e integração social. Podem ser de três tipos: a) recolha de informação sócio-educativa; b) inquérito social; c) investigação (informações que permitam retirar conclusões mais precisas relativamente à vida do jovem delinquente, no sentido de mapear todos os problemas que possam influenciar o crescimento do jovem). Cf. MinistériodaJustiça,http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10043&article=18659 (Consultado em Janeiro de 2010).
79 É de referir que aquando desta primeira audição, caso o jovem ou seus representantes
legais não se façam acompanhar por advogado, o juiz ordenará a nomeação oficiosa de um advogado para assegurar a defesa do jovem. O juiz pode sempre requerer informações complementares, designadamente através de relatório social ou de exames médicos.
80 A detenção provisória só pode ser aplicada a maiores de treze anos. Os pressupostos da
sua aplicação e a sua duração variam de acordo com a idade do jovem infractor e o tipo de infracção cometida. Em todo o caso, esta medida de carácter preventivo, nas situações em que admite uma maior distensão temporal, nunca pode ter duração superior a um ano.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
121
Na fase de julgamento, se ao jovem tiver sido aplicada uma medida
provisória, o tribunal deve sempre solicitar a realização de um relatório de
avaliação da execução da medida à entidade responsável pelo
acompanhamento do jovem.
Havendo lugar à condenação, o juiz pode aplicar medidas educativas,
sanções educativas ou uma pena81. A escolha do tipo de medida ou sanção
depende sempre das circunstâncias do caso e da personalidade do jovem. É
de referir que, quer as medidas educativas, quer as penas82, podem ser
aplicadas a jovens com idades compreendidas entre os 13 e 18 anos. As
sanções educativas podem ser aplicadas a jovens a partir dos 10 anos (cf.
artigo 2.º da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945) 83.
Se o jovem tiver menos de dezasseis anos e a moldura penal aplicável à
infracção em causa não for superior a sete anos de prisão, o juiz poderá, ainda,
realizar um julgamento menos solene (Jugement rendu en chambre du conseil).
Nestes casos, o juiz, ainda que considere o jovem culpado pela prática
dos factos que lhe são imputados, poderá decidir pela dispensa da aplicação
de qualquer medida, desde que considere verificada a sua reintegração na
sociedade, que o dano tenha sido reparado e a perturbação provocada pelo
jovem tenha desaparecido. Poderá, ainda, decidir por uma pena de
admoestação; pela entrega do jovem aos seus pais, progenitor que o tenha à
sua guarda, tutor ou a pessoa idónea; pela colocação do jovem, por um
período não superior a cinco anos, sob protecção judiciária; em
estabelecimento médico ou médico-pedagógico para jovens e adequado à sua
81 A distinção entre estas três categorias de sanções é explanada infra.
82 A aplicação de uma pena a um jovem tem em consideração a atenuação especial da sua
responsabilidade penal. Sempre que é aplicada uma pena de prisão efectiva ou suspensa, o Tribunal tem que fundamentar, mostrando as razões especiais que levaram à escolha da pena.
83 As sanções educativas foram criadas pela Lei de Orientação e de Programação para a
Justiça, de 9 Setembro de 2002.
122 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
situação; ou pela obrigação de realizar uma actividade de cariz social ou
profissional (mesure d’activité de jour).
Havendo condenação, o juiz de menores exercerá as funções que, por
regra, são da competência do juiz de execução das penas.
O processo de apresentação imediata
Uma das inovações da Lei de Orientação e de Programação para a
Justiça, de 9 Setembro de 2002, foi a criação do processo denominado de
processo de apresentação imediata (procédure de présentation immédiate),
através do qual o MP, verificados determinados requisitos legais, apresenta um
jovem a juízo no Tribunal de Menores num prazo relativamente célere. O
recurso a este tipo de processo exige que não seja necessário proceder a
qualquer acto de investigação; que já exista um relatório social do jovem; e
que, até à data da realização da audiência, o jovem fique sujeito a uma medida
de carácter preventivo (controlo judiciário ou detenção provisória). O
julgamento deverá sempre ter lugar entre o décimo dia após a notificação ao
jovem dos factos que lhe são imputados e antes de perfazer um mês. A
audiência é sempre realizada no gabinete do juiz, na presença do jovem, do
seu advogado e do MP. Se for necessário, o representante do serviço ao qual o
jovem foi confiado poderá também estar presente.
Este processo pode ser aplicado a jovens com mais de dezasseis anos,
acusados por factos puníveis com pena de prisão igual ou superior a um ano,
quando sejam detidos em flagrante delito, ou com pena igual ou superior a três
anos de prisão, nos restantes casos. Também pode ser aplicado a jovens, com
idades compreendidas entre os treze e dezasseis anos, desde que a pena
abstracta a aplicar seja entre cinco e sete anos de prisão. Neste último caso, o
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
123
julgamento deverá sempre ter lugar entre o décimo dia após a notificação ao
jovem dos factos que lhe são imputados e antes de perfazer dois meses84.
Medidas e sanções
A lei consagra, como acima se referiu, a possibilidade de aplicação de
dois tipos de medidas de carácter preventivo distintas: o controlo judiciário e a
detenção provisória.
O controlo judiciário, que permite a manutenção do jovem em liberdade,
impõe a sua sujeição a um conjunto de obrigações, sejam elas de protecção,
assistência, vigilância ou educação85. Comporta, ainda, a possibilidade de
ordenar a frequência de curso de formação cívica, aulas em estabelecimento
escolar ou curso de formação profissional. Esta medida pode ser aplicada,
desde que verificadas determinadas condições, a jovens a partir de 13 anos
que pratiquem um crime.
A detenção provisória, sendo prevista como possível, é uma medida de
excepção, só podendo ser utilizada nos casos previstos na lei e quando for de
todo indispensável ou se considere que a aplicação de uma qualquer outra
medida de prevenção seja insuficiente para o caso concreto. Esta medida só
pode ser aplicada a jovens com mais de treze anos. Se o jovem tiver entre 13 e
16 anos, só poderá ser aplicada se for acusado pela prática de um crime ou
tiver voluntariamente violado as obrigações do controlo judiciário a que estava
sujeito. Se o jovem tiver mais de 16 anos, além da verificação de um dos dois
requisitos anteriores, também poderá ser sujeito a esta medida se estiver
84 Cf. artigo 14-2 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945.
85 Como, por exemplo, deixar de frequentar determinado lugar ou de contactar com
determinada pessoa, comparecer regularmente perante um determinado órgão de polícia.
124 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
indiciado pela prática de um delito (em matéria correccional) punido com
sanção superior ou igual a três anos86.
A duração da detenção provisória depende do tipo de infracção
praticada pelo jovem. Em matéria correccional, ou seja, quando esteja em
causa a prática de um delito, e a pena de prisão na qual o jovem incorre não for
superior a sete anos, a detenção provisória não pode ser superior a um mês,
podendo ser renovável por uma só vez pelo mesmo período de tempo. Nos
outros casos, não pode ser superior a um ano.
Em matéria criminal (ou seja, quando esteja em causa a prática de um
facto qualificado como crime), para os jovens com idades compreendidas entre
os 13 e os 16 anos, a detenção provisória não pode ser superior a seis meses,
podendo ser renovável por uma só uma vez, pelo mesmo período de tempo.
Como referimos anteriormente, ao jovem podem ser aplicados três tipos
de sanções: penas, sanções educativas e medidas educativas. A lei em vigor
tem como princípio orientador a prevalência da vertente educativa sobre a
repressiva, o que determina a opção pela aplicação de uma pena tão só
quando, tendo em conta a personalidade do jovem, todas as restantes medidas
de carácter educativo se mostrem insuficientes. Por outro lado, a escolha da
medida da pena tem sempre em conta o princípio da sua especial atenuação
em função da idade, que se traduz no facto de, aos jovens de dezasseis anos,
não poder ser aplicada uma pena cuja medida exceda metade da pena prevista
no Código Penal. Se o jovem tiver entre dezasseis e dezoito anos, a aplicação
deste princípio fica à consideração do juiz que, através de decisão
devidamente fundamentada, poderá afastar a sua aplicação. As medidas
educativas, sanções ou penas podem ser aplicadas individual ou
cumulativamente.
86 Cf. nota 73.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
125
Medidas Educativas
O juiz pode aplicar aos jovens, entre os treze e dezoito anos, um
conjunto de medidas educativas87, a saber:
a) Admoestação (Avertissement solennel);
b) Entrega do jovem (Remise) - o jovem é mantido no seio familiar, entregando-
o aos seus pais, a um tutor ou ao progenitor que o tenha à sua guarda;
c) Institucionalização com carácter educativo (Placement éducatif) - visa a
retirada do jovem do seu ambiente habitual com o objectivo de lhe permitir um
quadro de vida seguro e estruturante. O jovem, além de poder ser entregue a
um estabelecimento ou serviço da DPJJ88, em alternativa, também poderá ser
87 Como se verá adiante, algumas destas medidas educativas podem ser aplicadas pelo
Tribunal no decurso do processo judicial, a título provisório.
88 As estruturas vocacionadas para este tipo de resposta à delinquência juvenil dependentes da
Direction de la Protection Judiciaire de la Jeunesse são: Lares e Centros Educativos (Foyers et centres d'action éducative (FAE )) que recebem jovens delinquentes com o objectivo de orientar a sua educação, propondo uma solução devidamente adaptada à sua situação concreta. Os jovens podem ficar durante longos períodos nestes centros que investem em planos de acção vocacionados para a reinserção do jovem num quotidiano de vida comunitária; Centros de institucionalização imediata (Centres de placement immédiat (CPI )), preparados para receber jovens delinquentes considerados como “prioritários”. Ou seja, destinam-se a acolhimentos considerados como urgentes e que, por regra, têm uma duração de três meses. Esta institucionalização pode ser acompanhada de uma medida de controlo judiciário de forma a avaliar o comportamento do jovem num quadro de uma apertada vigilância por parte do educador que o acompanha para a aplicação de futuras medidas. Durante o período de institucionalização o jovem deverá seguir um plano de actividades que lhe permita progredir em termos de reeducação, ressocialização e reestruturação do seu tempo livre. Sempre que a realização dessas actividades implique deslocações ao exterior, o jovem será acompanhado pelo educador por ele responsável; Centros educativos “reforçados” (Centres d’éducation renforcée (CER)) destinados, principalmente, a acolher jovens delinquentes com comportamentos e percursos desviantes e necessidades de socialização urgentes. Apenas acolhem pequenos grupos de jovens delinquentes (seis a oito), durante curtos períodos de tempo (até seis meses). O objectivo a desenvolver é a ruptura temporária do jovem com o seu meio envolvente e o seu modo habitual de vida. Para tal, é-lhes ministrado um plano educativo baseado num envolvimento nos actos da vida quotidiana dojovem, promovendo acções e actividades pedagógicas permanentes que favoreçam a mobilização e a aprendizagem das regras da vida em sociedade; e, Centros educativos em regime fechado (Centres éducatifs fermés (CEF)). Acolhem exclusivamente jovens delinquentes com idades compreendidas entre os treze e os dezoito anos com uma forte taxa de reincidência. Trata-se de um regime de institucionalização privativa da liberdade, aplicado na sequência da violação das regras de institucionalização em regime aberto ou de obrigações imposta pelo juiz ao jovem delinquente.
126 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
entregue a pessoa idónea. Durante o período de execução da medida, o juiz é
informado da evolução da situação do jovem;
d) Medida de apoio ou de reparação (Mesure d’aide ou de réparation) - o jovem
é obrigado a reparar o prejuízo causado à vítima ou a prestar um serviço em
seu benefício ou no interesse da comunidade, com uma duração, em regra,
não superior a quatro meses89;
e) Liberdade sob vigilância (Liberté surveillée) - o jovem é mantido em
liberdade, mas sob vigilância e controlo de um profissional habilitado para o
efeito (educador). Trata-se de uma medida que comporta uma dupla vertente:
vigilância e acção educativa90;
f) Protecção judiciária (Mise sous protection judiciaire) - o jovem fica sob a
responsabilidade dos serviços da Direction de la Protection Judiciaire de la
Jeunesse (DPJJ)91 com competência na reinserção social dos jovens
Neles, também podem ser colocados jovens que estejam sob medidas de vigilância ou controlo, ou jovens condenados em pena de prisão suspensa na sua execução mediante cumprimento de regime de prova, ou, ainda, no seguimento da concessão da liberdade condicional.
Durante o período de permanência (por regra seis meses) é traçado ao jovem um intenso plano de actividades de modo a aprender a ter um quotidiano estruturado e adquirir conhecimentos de base para poder seguir uma carreira profissional. Além disso, existe também um acompanhamento psicológico e médico. Caso o jovem viole as obrigações que lhe foram impostas ou tente a fuga do estabelecimento, poder-lhe-á ser aplicada, consoante a sua situação concreta, prisão preventiva ou pena de prisão efectiva.
89 A medida prestada para com a vítima exige o seu consentimento. Esta medida pode ter lugar
desde o início do processo, tanto pode ser aplicada pelo Ministério Público, como pelo juiz de instrução ou, ainda, pelo juiz de menores.
90 Esta medida pode ser aplicada a título provisório durante a fase de instrução ou após a
realização da audiência de julgamento. Se for aplicada provisoriamente, a evolução do comportamento e da personalidade do jovem durante a sua execução irão determinar a decisão judicial. Se for ministrada a título definitivo, o seu cumprimento irá permitir desenvolver uma acção educativa junto do jovem no seu ambiente sócio-familiar. Cf. Ministério da Justiça Francesa. In http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10043&article=18660 (consultado em Janeiro de 2010).
91 A DPJJ, tutelada pelo Ministério da Justiça e das Liberdades, reúne em si um conjunto de
atribuições relacionadas com a justiça de crianças e jovens e a promoção da cooperação interinstitucional nesta matéria. Compete a este organismo, designadamente, apoiar os magistrados nas tomadas de decisões, executar as decisões dos tribunais relativamente à
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
127
delinquentes, que os acompanha, quer enquanto estiverem sujeitos a uma
medida de institucionalização, quer se forem entregues à sua família. Esta
medida só pode ser aplicada após a realização do julgamento e tem como
duração máxima cinco anos, podendo manter-se após a maioridade;
g) Actividades executadas durante o dia (Activité de jour) - Medida criada pela
Lei de 5 de Março de 2007, relativa à prevenção da delinquência, que consiste
na participação do jovem em actividades de inserção escolar ou profissional
junto de instituições habilitadas para executar este tipo de medida. Destina-se,
essencialmente, a jovens não escolarizados ou com pouca escolarização e
pode ser aplicada, por decisão do juiz, a título provisório, aquando da
realização da primeira audição no seu gabinete, ou, em sentença proferida pelo
tribunal. O juiz pode ordenar o cumprimento desta medida cumulativamente
com a aplicação de outras medidas educativas, sanções educativas ou penas,
mesmo sendo elas privativas da liberdade. A sua duração deve permitir que se
cumpram os objectivos a que se destina, mas não deve ir além dos doze
meses.
Sanções Educativas
Como já foi referido, as sanções educativas foram criadas pela LOPJ,
em 2002, e podem ser aplicadas a todas as crianças e jovens com mais de dez
anos de idade à data da prática da infracção. Para os jovens com mais de treze
anos, a sua aplicação justifica-se sempre que, por um lado, as medidas
educativas não sejam consideradas suficientes e, por outro, a aplicação de
uma pena seja considerada excessiva. Algumas destas medidas poderão ser
aplicadas individualmente ou em conjunto. São elas:
institucionalização de jovens em regime fechado ou aberto; garantir o acompanhamento educativo dos jovens; e, controlar e avaliar o conjunto das estruturas públicas e privadas que acolhem jovens por ordem do tribunal. Para desenvolver estas atribuições com vista à educação e reinserção social e profissional dos jovens existem equipas multidisciplinares compostas por educadores, assistentes sociais, psicólogos, professores e enfermeiros.
128 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
a) Apreensão de objecto (Confiscation d’un objet) que tenha sido utilizado na
prática da infracção ou seja o produto desta;
b) Proibição (Interdictions) de frequentar determinado lugar onde tenha sido
cometida a infracção ou proibição de contactar com a vítima e eventuais
cúmplices na prática da infracção. Estas proibições só podem ser aplicadas
pelo prazo máximo de um ano;
d) Reparação (Mesure d’aide ou de réparation) - Tal como na vertente
educativa, esta sanção obriga o jovem a reparar o prejuízo causado à vítima ou
a prestar um serviço em seu benefício ou no interesse da comunidade;
c) Formação cívica (Stage de formation civique) – frequência de uma formação
de carácter cívico, por período não superior a um mês, com vista a
consciencializar o jovem das suas obrigações para com a sociedade;
e) Institucionalização (Placement) - Esta medida consiste em colocar o jovem
numa instituição especializada para acolher jovens delinquentes ou crianças
em risco. A lei prevê dois tipos de institucionalização: em centro educativo fora
da área de residência do jovem, sob condição de frequência de um programa
psíquico, educativo e social, por período não superior a três meses, prorrogável
uma única vez pelo período de um mês para os jovens com idades
compreendidas entre os dez e os treze anos; em estabelecimento escolar, em
regime de internato pelo período correspondente a um ano escolar, com
autorização de visitar a sua família aos fins-de-semana e nas férias escolares;
g) Realização de trabalhos escolares (Exécution de travaux scolaires) –
destina-se, essencialmente, aos jovens não escolarizados ou com pouca
escolarização, ficando o jovem sujeito à obrigação de realizar os trabalhos
escolares.
f) Admoestação (Avertissement solennel) – medida de advertência solene feita
ao jovem.
As medidas são acompanhadas pelo serviço competente, que deverá
informar o tribunal. A violação do cumprimento obriga o jovem a comparecer
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
129
perante o juiz, que lhe poderá aplicar uma medida de institucionalização em
estabelecimento destinado a jovens delinquentes em idade escolar.
As penas
As penas aplicáveis aos jovens com idades compreendidas entre os
treze e os dezoito anos, estão previstas no direito penal de adultos92, sendo
que, quer a escolha da pena, quer a escolha da sua medida, tem que ser
sempre ponderada considerando a especial atenuação da sua
responsabilidade penal. As penas previstas são as seguintes:
a) Pena de prisão (Peine d’emprisonnement) – o princípio geral para a
aplicação de uma pena de prisão a jovens é o da sua especial atenuação, isto
é, não pode ser fixada uma pena de prisão superior a metade da pena prevista
para a prática do crime. Contudo, para os jovens com mais de dezasseis anos,
este princípio pode ser excluído quando se verifique uma das três seguintes
situações: quando as circunstâncias do caso e a personalidade do menor o
justifiquem; nos casos de reincidência da prática de um crime de homicídio,
contra a integridade física ou psíquica de uma pessoa; e nos casos de
reincidência na prática de um crime cometido com violência e de forma
voluntária, ou de uma agressão sexual.
Os jovens condenados em pena de prisão efectiva são colocados em
estabelecimentos prisionais específicos para jovens ou em estabelecimentos
92 A aplicação de uma destas penas, ao contrário das medidas educativas e das sanções
educativas que podem ser aplicadas pelo juiz de menores em audiência de gabinete, só podem ser aplicadas pelo Tribunal de Menores ou pela Cour d’Assises des Mineurs em audiência de julgamento. Durante o cumprimento da pena, os jovens com menos de dezasseis anos têm a possibilidade de prosseguir os seus estudos acompanhados por professores do ensino escolar e os que tenham mais de dezasseis anos, beneficiam da possibilidade de frequentar um curso de formação profissional.
À saída do estabelecimento prisional, o jovem deverá ser apoiado e acompanhado por serviço educativo competente.
130 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
prisionais que disponham de uma ala para o efeito, sendo sempre garantido
que não mantêm contacto com os demais condenados maiores de idade93.
b) Pena de multa (Amende) – a pena de multa, que apenas pode ser aplicada a
jovens com mais de trezes anos, não pode exceder metade da pena de multa
prevista para adultos e nunca poderá ser superior a 7.500 euros94;
c) Estágio de cidadania (Stage de citoyenneté) – a aplicação desta pena
alternativa à pena de prisão tem como objectivo a consciencialização do menor
relativamente aos valores de tolerância e de respeito pela dignidade humana,
às consequências da sua responsabilização penal e não cumprimento das leis
em geral e às regras de vivência e convivência em comunidade e, assim, poder
contribuir para o sucesso da sua reintegração social. A duração máxima desta
pena é de um mês e a carga diária deve ser adequada à idade do menor
condenado, nunca podendo ser superior a seis horas diárias. A execução desta
pena é acompanhada pelos serviços da PJJ;
d) Prestação de trabalho a favor da comunidade (Travail d’intérêt général) –
consiste na condenação de um menor a prestar trabalho não remunerado e
com interesse geral para a comunidade, apenas podendo ser aplicada a um
menor com mais de dezasseis anos à data da prática do delito ou do crime. A
sua aplicação exige o consentimento prévio do menor;
e) Pena suspensa com regime de prova (Sursis avec mise à l’épreuve) – a
pena de prisão aplicada a um jovem pode ser suspensa na sua execução, com
ou sem regime de prova. A condenação do jovem neste tipo de pena só pode
ocorrer se o jovem tiver mais de treze anos e a pena de prisão efectiva
aplicada não for superior a cinco anos de prisão. Durante a sua execução, o
jovem terá que se submeter a medidas de controlo como, por exemplo, ter uma
93 A lei prevê que os funcionários destes estabelecimentos prisionais recebam formação
específica para lidar com jovens, actuando em conjunto, nomeadamente, com educadores dos serviços de protecção judiciária da juventude (PJJ). Cf. Ministério da Justiça Francesa. In http://www.ado.justice.gouv.fr/php/page.php?ref=4d1 (consultado em Janeiro de 2010).
94 Cf. artigo 20-3 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
131
residência fixa que pode ser estabelecida pelo tribunal; submeter-se a um
tratamento médico; não contactar com determinadas pessoas; exercer uma
actividade profissional ou frequentar formação. Em caso de violação das
obrigações impostas, o juiz de menores pode ordenar a prorrogação da medida
por mais três anos ou revogar a suspensão da execução da pena de prisão;
f) Monitorização sócio-judiciária (Suivi sócio-judiciaire) – ao jovem condenado
pela prática de uma ou várias infracções de carácter sexual pode ser aplicada
uma pena que o obriga a submeter-se e a respeitar determinadas medidas de
vigilância e de apoio. A monitorização do cumprimento destas obrigações é da
competência do juiz de menores. Tendo em conta que o objectivo é prevenir a
reincidência, podem ser aplicadas obrigações como, por exemplo, a proibição
de frequentar determinados lugares ou de contactar com determinadas
pessoas, a proibição de exercer determinadas profissões ou actividades e a
obrigação de se submeter a um tratamento. Em caso de incumprimento, o juiz
pode ordenar que o jovem passe a cumprir a pena de prisão efectiva fixada em
audiência de julgamento.
É de salientar que existe um conjunto de penas aplicáveis a adultos que
não podem ser aplicadas aos jovens, designadamente a proibição de residir em
território francês, a proibição de exercício de direitos cívicos e a proibição de
exercer cargos públicos, uma determinada profissão ou actividade social. Em
contrapartida, o cumprimento de uma pena sob vigilância electrónica pode ser
aplicada a jovens com idades compreendidas entre os dezasseis e os dezoito
anos, desde que assuma carácter educativo ou potencie a reintegração social
do jovem. São igualmente aplicáveis aos jovens as disposições do Código de
Processo Penal francês que contemplam a possibilidade de dispensa de pena
ou suspensão do processo.
Desde Janeiro de 2005, a competência para o acompanhamento da
execução da pena aplicada ao jovem é da competência do Juiz de menores,
apoiado pelos serviços da PJJ.
132 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
1.2 A reforma da justiça penal de crianças e jovens em França
O processo em curso da reforma da justiça penal de crianças e jovens
iniciou-se em Abril de 2008, com a criação pelo Ministério da Justiça francês,
de uma comissão95, presidida por André Varinard96, com a missão de
apresentar uma proposta de reforma da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de
1945. Nesse sentido, foi pedido àquela Comissão não apenas que procedesse
à reestruturação do texto legal que, em virtude das muitas e sucessivas
alterações legais, se tornara demasiadamente complexo, mas também que
avançasse com uma proposta de revisão da justiça penal de crianças e jovens.
Após a apresentação do relatório daquela Comissão, em Dezembro de
2008, a então Ministra da Justiça, Rachida Dati, defendeu que o objectivo
último era o de criar mecanismos legais que possibilitassem evitar que a
França se tornasse num país com uma comunidade de jovens ancorada na
delinquência, salientando que uma em cada seis infracções era cometida por
um jovem e que a sua faixa etária era cada vez mais baixa97.
O trabalho a apresentar deveria, assim, encontrar respostas para quatro
grandes objectivos na área da justiça penal de crianças e jovens: respeito dos
princípios fundamentais que regem a justiça de crianças e jovens, combinando
as exigências de justiça com a protecção de jovens; a clareza e a objectividade
95 A Comissão era composta por nove magistrados (dois juízes de menores), quatro membros
da DPJJ, três advogados, dez deputados e seis docentes universitários. Cf. Ministério da Justiça Francês. In http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10017&ssrubrique=10026&article=14380 (consultado em Dezembro de 2009).
96 Advogado e professor da Universidade "Lyon III – Jean-Moulin”, com doutoramento em
direito privado e ciências criminais.
97 Cf. Ministério da Justiça francesa. In
http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10016&ssrubrique=10259&article=16324. (consultado em Dezembro de 2009).
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
133
da redacção legal; a promoção da celeridade e eficácia das decisões judiciais;
e a proporcionalidade das sanções às infracções cometidas pelos jovens.
Para o Governo, só com o cumprimento daqueles quatro objectivos seria
possível proteger a sociedade contra os actos da delinquência juvenil, que
considerava cada vez mais frequentes em França, mas, também, proteger os
próprios jovens delinquentes. Nas palavras da então Ministra da Justiça: “só
assim é que se poderá proteger os jovens delinquentes, uma vez que a sua
maior ameaça não é o facto de não cumprirem as decisões judiciais, mas não
conseguirem afastar-se da criminalidade”. Defendia, por isso, que a reforma
deveria ter em linha de conta que os jovens precisam de sentir a vertente da
autoridade, que considerava com uma das principais linhas orientadoras da
reforma em curso98 99.
A Comissão apresentou um relatório100, cujas recomendações
procuravam conciliar, por um lado, a necessária autonomia do direito penal de
crianças e jovens, sustentada no princípio do primado educativo e no carácter
subsidiário da sanção ou pena e, por outro lado, a exigência de adoptar
98 “Um menor necessita de autoridade. Esta autoridade deve ser exercida tanto com firmeza
como com humanidade. É a linha directriz da reforma que desejamos”, in http://www.gouvernement.fr/gouvernement/le-rapport-varinard-sur-la-reforme-de-la-justice-des-mineurs (Outubro de 2009). Ainda segundo a Ministra, enquanto em 1990 menos de 100.000 jovens entraram no sistema judicial, em 2002, este número quase duplicou para 180.000 e, em 2007, já eram mais de 200.000.
99 De acordo com os dados apresentados pelo Ministério da Justiça, em 2008 cerca de 218.000
jovens foram identificados pelas polícias o que, em termos percentuais, representa cerca de 17% do total das pessoas identificadas pelas polícias. Desses 218.000 jovens, perto de 161.000 foram apresentados ao Procurador da República e acusados pela prática de uma infracção e desses 161 000 cerca de 83.000 fora apresentados a um juiz de instrução ou a um juiz de menores. Ver « Les chiffres clés de la justice des mineurs (2008) », in http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10271(Outubro de 2009); http://www.presse.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10093&ssrubrique=10720&article=16321 (Janeiro de 2010).
100 In http://www.gouvernement.fr/sites/default/files/legacy/Rapport_Commission_Varinard.doc
(consultado em Dezembro de 2009).
134 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
medidas repressivas que pudessem ser aplicadas aos jovens reincidentes que
causavam na sociedade civil francesa um sentimento de insegurança101.
Recentemente, Michèle Alliot-Marie, actual Ministra da Justiça, tem vindo
a anunciar que o projecto de lei relativo ao novo Código da justiça penal de
crianças e jovens, proposto pela Comissão Varinard, será finalizado até ao
Verão de 2010102. Apresentou os três grandes objectivos orientadores daquele
projecto de lei: reforçar a legibilidade (modernização e simplificação da
terminologia) e a eficácia processual para assegurar uma execução rápida e
eficaz das decisões judiciais; encontrar respostas adequadas à realidade da
actual delinquência juvenil; e promover a intervenção conjunta de todos os
intervenientes processuais, nomeadamente dos pais, para uma maior
responsabilização, e das vítimas para uma maior consciencialização103.
101 Neste sentido, ver o discurso de André Varinard aquando da apresentação pública do
relatório, in http://www.gouvernement.fr/gouvernement/le-rapport-varinard-sur-la-reforme-de-la-justice-des-mineurs (Outubro de 2009).
102 Cf. Ministério da Justiça francesa. In
http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10267&article=17942 (Consultado em Dezembro de 2009).
103 Cf. Ministério da Justiça francesa. In
http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10043&article=18669 (consulta em Janeiro de 2010).
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
135
A proposta da Comissão Varinard
A proposta da Comissão, de acordo com os grandes objectivos da
reforma, assentava em quatro pontos-chave: a previsão legal de uma resposta
para cada acto de delinquência; assegurar a recolha de informação suficiente
sobre a personalidade e a situação sócio-familiar do menor antes da tomada de
qualquer decisão; garantir a coerência das decisões com o percurso penal do
menor; e reforçar o carácter excepcional da aplicação de uma medida privativa
da liberdade.
A Comissão tentou clarificar a questão da idade a partir da qual um
menor pode ser responsabilizado penalmente, sugerindo que tal idade se
fixasse nos doze anos104. No que se refere aos jovens com menos de doze
anos, sugere que lhes seja aplicado um regime especial, isto é, sempre que
estejam envolvidos na prática de infracções cometidas juntamente com jovens
com mais de doze anos, poderão ser ouvidos com todas as garantias,
podendo-lhes ser aplicada uma sanção educativa, ou serem sujeitos a uma
breve detenção ou a uma medida de assistência educativa que lhes permita
beneficiar do regime dos jovens em risco.
Recomenda, ainda, que seja mantida a idade de dezoito anos até à qual
todos os jovens devem ser julgados segundo as regras aplicáveis às crianças e
jovens, designadamente, no que respeita à exigência de uma jurisdição
especializada, à atenuação especial da pena em função da idade e à aplicação
de sanções penais especiais. Admitindo, contudo, que tal princípio possa
excluir a possibilidade de existirem regimes próprios para os jovens com idades
mais próximas da maioridade. A resposta penal deve, assim, ter em conta a
104 Como já referimos, actualmente um jovem, seja qual for a sua idade, pode ser acusado em
processo penal desde que se considere e reconheça que esse jovem possui “capacidade de entendimento”. Para evitar esta situação pouco clara, a Comissão propõe fixar como idade mínima de responsabilização penal de um jovem, a idade de doze anos.
136 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
idade do menor e adequar-se proporcionalmente em termos repressivos, de
modo a que quanto mais a idade do menor esteja perto da maioridade, mais o
regime aplicável deva ser similar ao que se aplicaria a um adulto.
Uma outra proposta da Comissão refere-se à necessidade de redefinir a
forma como decorre a audiência de julgamento. Assim, propõe diferentes
formas de julgamento: no gabinete do juiz de menores; por um juiz singular
sempre que o menor não se encontre detido e não seja reincidente; por um
colectivo em Tribunal de Menores (constituído por um juiz de menores e por
dois juízes não profissionais); e perante um Tribunal Correccional para
Menores. Esta última forma de julgamento é uma inovação e traduz-se na
criação de um tribunal correccional composto por três juízes, sendo apenas um
deles juiz de menores. Este tribunal teria competência para julgar os jovens
com uma forte taxa de reincidência, com idades compreendidas entre os
dezasseis e os dezoito anos e, eventualmente, jovens adultos no ano a seguir
à sua maioridade105.
1.3. Perspectivas sobre o modelo em discussão
Apresentamos um conjunto de questões e críticas ao modelo em
discussão, seguindo as diferentes fases de elaboração do Novo Código da
Justiça Penal de Menores, por uma questão de sistematização.
Salientamos, nesta fase, pela repercussão que teve, um artigo106 da
autoria do director do Centre national de la recherche scientifique (CNRS)107, o
105 Cf. Ministério da Justiça francesa. In http://www.gouvernement.fr/gouvernement/le-rapport-
varinard-sur-la-reforme-de-la-justice-des-mineurs (consulta em Janeiro de 2010).
106 In
http://tempsreel.nouvelobs.com/actualites/20081127.OBS2871/?xtmc=arlette_chabot&xtcr=10. (consulta em Dezembro de 2009).
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
137
sociólogo Laurent Mucchielle, onde analisa as declarações públicas do
Governo quanto à reforma em curso. Salienta o consenso quanto à
necessidade de elaboração de um texto legal claro e coerente. No entanto,
teme que este argumento esconda o verdadeiro objectivo da reforma:
endurecer ainda mais o regime legal aplicável aos jovens, aumentando o
número de condenações, de uma forma mais célere, e a jovens com idades
cada vez mais baixas.
Em primeiro lugar, coloca em causa os fundamentos apresentados pelo
Governo, em especial os indicadores de aumento da delinquência juvenil e da
diminuição da idade dos delinquentes108, considerando que os dados não
permitem aquelas conclusões, mas apenas que a média de idades se mantém
constante.
Em segundo lugar, chama a atenção para a generalização da expressão
“menores delinquentes”, que inclui situações muito para lá dos casos de jovens
que cometem crimes graves, como a violação, o roubo ou o tráfico. Para o
autor, o que os números demonstram é que apenas 1,3% dos jovens
condenados o são pela prática de infracções susceptíveis de serem
classificadas como crimes e que os restantes 98,7% respeitam a infracções
menos graves, como, por exemplo, pequenos furtos, actos de vandalismo,
ofensas à integridade física simples ou consumo de droga.
Salienta, ainda, a sua discordância quanto à ideia, muito enfatizada, de
que, por regra, apenas são aplicadas aos jovens delinquentes medidas
educativas e que os juízes têm uma atitude de laxismo na aplicação de
sanções. Justifica a sua crítica apresentando dados que mostram que a pena
107 Estabelecimento público de investigação pluridisciplinar, sob tutela do Ministério do Ensino
Superior e da Investigação.
108 De acordo com a sua análise dos dados estatísticos das polícias, na realidade, o que se
verifica é um aumento generalizado da delinquência, que já se tem vindo a verificar há mais de trinta anos.
138 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
de prisão representa um terço das penas aplicadas aos jovens com idades
compreendidas entre os treze e os dezasseis anos e cerca de 40% das penas
aplicadas aos jovens com mais de dezasseis anos.
Após a apresentação do Relatório da Comissão Varinard sucederam-se
várias reacções, de magistrados e educadores, que colocavam em causa
muitas das propostas avançadas. Uma das propostas que gerou maior
controvérsia foi a fixação da responsabilidade penal dos jovens a partir dos
doze anos, o que, na prática, se traduz na possibilidade dos jovens com doze
anos de idade que tenham cometido um crime virem a ser condenados numa
pena privativa de liberdade.
A Associação Francesa de Magistrados da Juventude e da Família
(AFMJF)109 foi uma das vozes mais críticas, considerando, em diversos artigos,
que a nova reforma traduz-se na negação das finalidades da justiça de
crianças e jovens. Destaca-se um texto publicado em 26 de Janeiro de 2009110.
Esta Associação começa por criticar o facto das conclusões apresentadas pela
Comissão não se apoiarem em estudos sociológicos, acabando por espelhar
muitas declarações do discurso público marcado pela caracterização de uma
delinquência juvenil cada vez mais violenta, mais nova, e em maior número.
Também critica a leitura, que considera enviesada, dos dados estatísticos
apresentados pelo Governo que apenas retratam a actividade das polícias e
dos tribunais, sem proceder a uma avaliação da evolução dos comportamentos
dos jovens delinquentes.
109 É de referir que esta associação, apesar de ser a única associação representativa dos
magistrados ligados à área das crianças e jovens, não foi convidada a participar na Comissão Varinard, tendo sido apenas auscultada.
110 Cf. Relatório da Associação Francesa de Magistrados da Juventude e da Família. “O futuro
da justiça de menores depois da comissão Varinard: A educação enganosa para uma verdadeira aceleração da repressão”. 26 de Janeiro de 2009. In http://afmjf.argonos.net/IMG/pdf_analyseAFMJF_rapport_varinard_26-1-2009.pdf (consultado em Janeiro de 2010).
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
139
De entre as 70 propostas da Comissão, admite que cerca de 40 são
inovações consensuais. No entanto, esta Associação alerta para as
contradições que ressaltam de uma leitura mais atenta do documento. Uma
dessas contradições prende-se com o não cumprimento do princípio da
especialidade da justiça de crianças e jovens e que, no texto, acaba por ser
muitas vezes afastado, designadamente por se continuarem a aplicar aos
jovens mecanismos processuais do direito penal de adultos.
Mas, para a AFMJF, a proposta que mais contradiz os princípios a que
deve obedecer o direito e a justiça de crianças e jovens, é a da criação de um
tribunal correccional para os jovens com mais de dezasseis anos. Critica,
desde logo, a sua composição, uma vez que apenas seria constituído por um
juiz de menores, levando a que, estando em minoria, apenas se destinaria a
manter a aparência do cumprimento do princípio da especialidade. Para a
AFMJF, esta inovação legal iria violar as recomendações do Comité de Direitos
da Criança das Nações Unidas e estaria, ainda, a afastar-se das disposições
da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, que vão no sentido
dos Estados promoverem a adopção de leis, processos e institutos
especialmente criados e pensados para os jovens.
Uma outra crítica é dirigida ao princípio da fixação do limite da idade de
18 anos para a aplicação da jurisdição de menores. Sugere que deve ser
seguida a tendência de outros países, como a Alemanha, Áustria, Holanda,
Espanha, Eslovénia, Croácia e Lituânia, nos quais se prevê a possibilidade de
poderem vir a aplicar-se aos jovens adultos (até aos 21 anos) as mesmas
disposições que se aplicariam aos jovens sempre que o seu desenvolvimento o
justifique.
Um outro aspecto a merecer a crítica da Associação é o que designam
como desaparecimento do primado educativo pela negação do apoio educativo
aquando a execução de uma pena ou sanção. De facto, no entender desta
Associação, o recurso à vertente educativa na resposta penal é, por um lado,
140 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
restritivo e condicionado, dado que as soluções legais não se centram no
jovem delinquente, mas sim na infracção que este cometeu. Por outro lado, a
possibilidade de cumular uma pena com uma sanção reflecte o não
reconhecimento da diferente natureza da vertente sancionatória e da vertente
educativa. A limitação da duração máxima das sanções educativas a um ano
ilustra esta ideia, na medida em que impede a continuação do
acompanhamento do jovem após a execução da sanção. Outras soluções
propostas, como a possibilidade de institucionalização de um jovem com
menos de doze anos e a encarceração de um jovem com mais de doze anos
são também exemplos que a Associação considera colocar em causa o
primado educativo da justiça de crianças e jovens.
Uma outra voz crítica ao Relatório da Comissão Varinard é a de
Dominique Youf111, que, entre outros, dá especial ênfase ao facto de considerar
ter deixado de existir uma diferenciação de natureza entre sanções educativas
e penas, conferindo-se a ambas a mesma finalidade educativa. A diferença na
sua aplicação apenas depende da idade do jovem, do tipo de infracção
cometida e do seu percurso penal. Esta visão contradiz o efeito dissuasor das
sanções educativas, considerando que “toda a justiça penal de menores deve
assentar sobre a progressividade das sanções educativas e das penas de
modo a que o menor delinquente fique dissuadido de reincidir. Deve ser o
destinatário de uma mensagem clara e coerente de que o custo da passagem
ao acto será progressivamente mais elevado em função da evolução do seu
comportamento” (Youf, 2009: 124-125).
111 Doutorado em filosofia, é investigador associado da Universidade Paris IV-Sorbonne,
possuindo uma longa experiência profissional junto de jovens delinquentes e autor de numerosas obras sobre os direitos das crianças.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
141
A contestação geral às propostas do Relatório Varinard levou o
Ministério da Justiça a apresentar um projecto-lei112, o qual está actualmente a
ser submetido a uma larga concertação, que reflecte um retrocesso
relativamente aos primeiros objectivos da reforma e às propostas apresentadas
pela Comissão Varinard. Assim, desapareceram do projecto-lei propostas
bandeira, como a fixação da responsabilização penal dos jovens aos doze anos
e a criação de um tribunal correccional para os jovens com mais de dezasseis
anos.
Contudo, a AFMJF volta a criticar o diploma legal113. Caracteriza aquele
projecto-lei como um verdadeiro retrocesso histórico sem precedentes, desde
logo pela negação expressa do princípio da especialidade ao prever que as
disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal sejam
susceptíveis de aplicação aos jovens, salvo nos casos em que exista uma
disposição específica prevista no Código da Justiça Penal de Menores. Um
outro exemplo desse retrocesso é o quase desaparecimento da figura do juiz
de menores e, por consequência, do abandono do primado educativo e do
estatuto de menor114.
A AFMJF considera que as disposições do projecto-lei implicariam o
desaparecimento da figura do juiz de menores encarregado de acompanhar o
jovem ao longo de todo o processo, surgindo um juiz de menores com uma
presença “intermitente”. O Ministério Público volta a ter competências
alargadas para conduzir o inquérito e decidir sobre as medidas de investigação
112 Não foi possível conhecer, em detalhe, este projecto dado que não se encontra
publicamente disponível.
113 Cf. Associação Francesa de Magistrados da Juventude e da Família. In
http://www.afmjf.fr/Projet-de-code-de-justice-penale.html (consultado em Janeiro de 2010).
114 Actualmente, o juiz de menores é um magistrado especializado, que procura intervir numa
perspectiva de continuidade e de conhecimento global da situação dojovem, de forma a decidir com base no primado educativo e procurando aplicar uma medida ou uma sanção adequada ao percurso e à evolução do jovem, podendo, para tal, chamar a si todos os processos que respeitem ao mesmo jovem.
142 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
relativamente à personalidade e situação do jovem. O juiz de menores passa a
intervir, essencialmente, na fase de julgamento ou, anteriormente a esta fase,
quando seja convocado para se pronunciar sobre as propostas do Ministério
Público. Esta nova realidade é, na opinião da AFMJF, muito desfavorável à
realização dos objectivos da justiça de crianças e jovens, dado que poderá
acontecer que o juiz de menores tenha o primeiro contacto com o processo
apenas naquelas duas situações. Em consequência, deixa de poder exercer o
seu papel de garante da coerência das medidas aplicadas a um jovem.
Esta Associação critica, também, o encurtamento da duração máxima
das medidas de investigação e das sanções educativas, por considerar que
pode levar a que o resultado daquelas medidas não se venha a mostrar
eficiente, sobretudo estando em causa jovens com personalidades complexas
ou com comportamentos desajustados ou delinquentes já muito enraizados.
A AFMJF considera ainda como aspecto negativo o afastamento da
intervenção dos pais do jovem na escolha das medidas e sanções educativas,
acabando reduzidos a um papel de espectadores passivos.
Apesar de a lei prever que a idade mínima para a responsabilização
penal se fixe nos treze anos, ainda assim para a AFMJF a reforma acaba com
o estatuto de criança, ao prever um regime especial para os jovens com idades
compreendidas entre os dez e os treze anos que, na prática, para além de se
revelar menos protector, acaba por pôr em causa o princípio da
responsabilização a partir dos treze anos, ainda que essa responsabilização
seja de natureza cível.
Tal posição da AFMJF não significa uma ausência de resposta aos actos
cometidos por jovens entre os dez e os treze anos, mas sim que a resposta
deve ser outra. Essa resposta deve, em primeiro lugar, emanar daqueles que
detêm a seu cargo a responsabilidade pela educação do jovem e, só em
segunda linha, ao juiz de menores, cuja resposta deverá poder acompanhar o
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
143
jovem e a sua família no âmbito das soluções previstas para as crianças em
risco.
Para a AFMJF, a reforma (e avança com um conjunto de propostas
nesse sentido) deve melhorar a justiça penal de crianças e jovens,
designadamente, no sentido de desenhar um direito penal e processual de
crianças e jovens verdadeiramente autónomo; imputar um carácter reparador à
justiça de crianças e jovens, responsabilizando e integrando as comunidades
locais pela não adopção de medidas capazes de afastar comportamentos
delinquentes; e avançar e assegurar a especialização de todos os profissionais
que intervenham nesta área.
Também a Associação Carrefour National de l'Action Éducative en Milieu
Ouvert (CNAEMO)115 teceu várias críticas ao Projecto-Lei do Código da Justiça
Penal de Menores. Considera, desde logo, que a proposta de reforma surge no
contexto de uma ideologia, que vem ganhando crescente importância social,
que favorece a resposta estigmatizante dos comportamentos desviantes em
detrimento de uma reflexão sobre as respostas mais adequadas para os
comportamentos socialmente disfuncionais. Considera que o projecto-lei
descura o objectivo central da protecção dos jovens – o jovem delinquente
deve sempre ser encarado como um jovem em perigo – centrando a sua acção
na infracção cometida e não no jovem, além de colocar em causa o princípio da
continuidade do acompanhamento do jovem, uma vez que o juiz de menores
tinha uma dupla competência: acompanhar o jovem em matéria penal e cível.
Uma outra crítica apontada também por outros operadores, é a previsão
de disposições legais que limitam a liberdade de apreciação do juiz de
menores, designadamente, a fixação de uma graduação rígida das medidas e a
115 Associação criada em 1981 com o objectivo de promover o encontro, o diálogo e a
investigação entre profissionais e associações que actuam na área da acção educativa em regime aberto. (cf. http://www.cnaemo.com)
144 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
fixação de uma pena mínima para os jovens reincidentes com mais de
dezasseis anos, que aproximam o regime penal dos jovens do regime penal
previsto para os adultos, e das previsões legais que, supostamente com o
objectivo de uma justiça mais célere, acentuam o seu carácter repressivo, em
prejuízo do conhecimento da personalidade e da situação do jovem116.
Dominique Youf sintetiza as diferentes críticas ao diploma, considerando
que, quer para os autores do Projecto-Lei, quer para a Comissão, estão em
causa “adultos em miniatura e não crianças e adolescentes” (Youf, 2009: 222),
cujo estado de menoridade, em vez de lhes permitir beneficiar de medidas
educativas que lhes possibilitem desenvolver as suas capacidades, lhes
permite, sobretudo, beneficiar de uma atenuação da responsabilidade penal,
afastando a articulação e o diálogo entre o judiciário e o educativo (Youf, 2009:
223-225).
116 Cf. CNAEMO. “À propos du Projet de Code de Justice Pénale de Mineurs ». Setembro de
2009. In http://www.cnaemo.com/site/pdf/CNAEMO_Ord_45[1].pdf.
O CASO DE ESPANHA
2
2 O CASO DE ESPANHA
Introdução
Em Espanha, o tema da delinquência juvenil e das reformas a este
respeito tem estado, nos últimos anos, no centro do debate e da agenda
política, muito influenciado pelos casos mediáticos que têm condicionado
algumas das alterações legislativas de cunho mais repressivo. O
endurecimento na resposta aos crimes praticados por jovens conduziu,
designadamente, ao aumento das medidas de detenção e de colocação em
regime fechado e, para a criminalidade menos grave, ao aumento de medidas
alternativas. Para muitos autores, estas novas medidas, como resposta aos
receios da opinião pública, apesar de continuarem a apelar aos princípios da
ressocialização e da reeducação dos jovens, afastavam-se da reinserção e
aproximavam-se antes da prevenção geral. Analisamos, neste ponto, a
evolução recente do actual quadro legal sancionatório da delinquência juvenil e
damos conta de algumas das opiniões sobre esta temática117.
2.1 A responsabilidade penal das crianças e jovens
117 Sobre a evolução histórica da reforma do direito das crianças e jovens em Espanha, na
vertente dos jovens e o crime, remetemos para Gomes (Coord.), 2004: 93-96.
148 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A responsabilidade penal das crianças e jovens é, desde 2001, regulada
pela Ley Orgánica 5/2000, de 12 de Janeiro (Ley Reguladora de la
Responsabilidad Penal de los Menores - LORPM), entretanto sujeita a quatro
alterações legislativas, a última das quais através da Ley Orgánica 8/2006, de
04 de Dezembro.
Logo no ano da sua aprovação, a conjuntura social de alarme que
apelava ao reforço da protecção de bens e pessoas contra atentados
terroristas e delitos graves (Bernuz Beneitez, 2005) desencadeia uma primeira
alteração à LORPM, pela Ley Orgánica 7/2000, de 22 de Dezembro, que
introduziu especificidades relativas a delitos de terrorismo praticados por
jovens118.
Em 2003, a Ley Orgánica 15/2003, de 25 de Novembro, aditou à
LORPM a disposición adicional sexta, no sentido de serem sancionados com
“mais firmeza e eficácia” os delitos cometidos por pessoas que, mesmo sendo
menores de idade, se revistam de especial gravidade. O legislador determinou,
ainda, a possibilidade de prolongar o tempo de internamento, o cumprimento
das sanções em centros em que se reforcem as medidas de segurança e,
ainda, a possibilidade daquelas serem cumpridas, a partir da maioridade, em
centros penitenciários.
A regulamentação da LORPM concretizou-se com o Real Decreto
1774/2004, de 30 de Julho, que entrou em vigor em Março de 2005. Este
118 Como referimos no estudo do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, de 2004,
atendendo “à gravidade dos crimes praticados que desencadeiam a aplicação da Lei 7/2000, a preocupação do legislador já não incide na defesa dos interesses do jovem, mas sim, na defesa da sociedade”. De acordo com Nieves Mulas, a alteração introduzida na LORPM pela Ley Orgánica 7/2000 “representou uma ruptura com a coerência interna do sistema da LORPM, pois implicou a quebra dos seus princípios inspiradores, orientados para a integração social dos jovens. A Ley Orgánica 7/2000 constitui uma exasperação do rigor punitivo que deixou de lado a evolução pessoal do jovem e que, portanto, se opõe ao princípio da ressocialização” (Sanz Mulas, 2003: 392). Para ilustrar esta ideia salienta-se o facto de a medida de internamento em regime fechado poder alcançar a duração máxima de dez anos para maiores de 16 anos e de cinco anos para os jovens com menos de 16 anos.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
149
diploma, nos termos do seu preâmbulo, visou desenvolver a LORPM nas três
áreas seguintes: actuação da Polícia Judicial e da equipa técnica, execução
das medidas cautelares e definitivas e regime disciplinar dos centros
educativos119.
A mais recente alteração à LORPM ocorreu com a aprovação da Ley
Orgánica 8/2006, de 4 de Dezembro, que entrou em vigor em 15 de Janeiro de
2007. Como é referido na Exposição de Motivos, cinco anos após a aprovação,
o Governo procedeu a uma avaliação da sua aplicação, que conclui por
resultados positivos, apesar de terem sido apontadas algumas disfunções.
Para as corrigir, por um lado, procedeu-se a alterações correctivas à lei, por
outro lado, a lei foi alterada no sentido de uma maior proporcionalidade entre a
resposta sancionadora e a gravidade do facto cometido. Esta última alteração
veio atender à existência de dados considerados pelo Governo como
indiciadores de um aumento dos delitos cometidos por jovens, a par de grande
preocupação social associada a uma percepção de impunidade das infracções
mais frequentes, como os delitos contra o património.
Para o legislador, a LORPM continua a prever como princípios
orientadores o superior interesse das crianças e jovens e as garantias
constitucionais, de acordo com as normas de direito internacional, em especial
da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989,
assim como a natureza formalmente penal, mas materialmente sancionatório-
educativa do procedimento e das medidas aplicáveis aos jovens infractores; a
diferenciação das faixas etárias com diferentes efeitos processuais e
119 Este regulamento foi objecto de numerosas críticas por parte de advogados e ONG´s que aí
viam um endurecimento encoberto do tratamento penal das crianças e jovens – contrariando o espírito da lei – estando o regulamento orientado para garantir a ordem dos centros de internamento, com medidas inspiradas no Regulamento Penitenciário de adultos (Cabezas Salmerón, 2007).
150 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
sancionadores120; a flexibilidade na adopção e execução das medidas do caso
concreto; o controlo judicial da execução; a especial incidência na reparação do
dano causado e na conciliação do delinquente com a vítima; e a fixação de um
sistema célere para o ressarcimento de danos e de prejuízos às vítimas ou a
outros prejudicados, prevendo-se um procedimento rápido e pouco formalista
para o ressarcimento de danos e um amplo direito de participação das vítimas.
O diploma destaca a conveniência da reparação do dano causado e a
conciliação do delinquente com a vítima, por meio da mediação121,122.
120 A lei acolhe o sistema biológico puro (responsabilidade penal dos jovens entre os 14 e os 18
anos), distinguindo-se duas faixas etárias (dos 14 aos 16 anos e dos 17 aos 18 anos), por se entender que esses estratos etários apresentam diferenças que exigem um tratamento distinto, do ponto de vista científico e jurídico.
121 A mediação como instrumento de resolução de conflitos no âmbito penal insere-se no
conceito de justiça restaurativa ou reabilitadora, pressupondo uma alteração de paradigma, pois visa restaurar o equilíbrio mediante a reparação (acção positiva) e não por meio do castigo ao jovem infractor (acção negativa). A mediação pressupõe um processo de responsabilização não punitivo, suprimindo sentimentos de vingança, ressentimentos e medos, toma em consideração a vítima, seus direitos e situação, sem menosprezar os direitos que cabem ao infractor (Aedo Rivera, 2008: 65). Na perspectiva de Prieto Lois, a mediação penal apresenta benefícios educativos, económicos e sociais. Benefícios educativos porque tanto a vítima como o infractor participam activamente no processo de resolução do conflito, tentando chegar a acordos que permitam conciliar a vítima e o infractor; benefícios económicos porque os trâmites são agilizados e a intervenção judicial é reduzida, o que diminui o volume de trabalho do tribunal; e benefícios sociais por favorecer a agilização da justiça, reduzindo a morosidade judicial e permitindo uma resposta rápida a delitos que provocaram alarme social (Prieto Lois, 2009). Junto de jovens infractores os programas de mediação penal assumem especial importância, pois os seus objectivos proporcionam uma assunção de responsabilidade pelos jovens, que são responsabilizados pelas suas acções e suas consequências, sendo-lhes ensinadas formas mais construtivas de resolução de conflitos (Pulido Valero, 2008: 151). Na perspectiva da vítima, o processo de mediação constitui uma possibilidade de restituição, ao ouvir o autor do seu prejuízo, superando os seus receios face à sua presença e obtendo as respostas às suas perguntas. Por meio do diálogo, a vítima relata ao jovem como se sente e como deseja ser reparada, participando activamente no processo educativo e responsabilizador do jovem e na solução do conflito que a afecta. Quanto à sociedade, a mediação contribui para criar um modelo de justiça distante do carácter punitivo, no qual se devolve às partes implicadas no conflito capacidade para o resolver, gerando confiança e segurança nos indivíduos e na comunidade. O encontro entre as partes converte-se, assim, numa oportunidade de enriquecimento (Andrea Carrasco et al, 2008: 163).
122 Importa referir que, em Espanha, a mediação penal juvenil pode ter lugar no início do
procedimento judicial, na fase de instrução - no caso do facto imputado ao jovem constituir um delito menos grave ou falta - ou durante a execução da medida, ficando neste caso sem efeito a medida antes imposta, o que terá lugar quando o juiz, sob proposta do Ministério Público ou do jovem e ouvidos a equipa técnica e o representante da entidade pública de protecção ou
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
151
De acordo com o legislador, a LO 8/2006 adequa o tempo de duração
das medidas à gravidade dos delitos e à idade dos jovens infractores, sendo
eliminada do seu âmbito de aplicação a possibilidade, estabelecida na LO
5/2000, de aplicar a lei aos jovens entre os 18 e os 21 anos, atendendo a
certas características do indivíduo, como adiante se verá, esta alteração tem
vindo a ser amplamente criticada por alguns autores.
As medidas
A LORPM estabelece um amplo catálogo de medidas susceptíveis de
serem aplicadas a jovens: internamento em regime fechado123; internamento
em regime semiaberto; internamento em regime aberto; internamento
terapêutico em regime fechado, semiaberto ou aberto; tratamento ambulatório;
assistência num centro de dia; permanência em casa ou em centro durante o
fim-de-semana; liberdade vigiada124; proibição de aproximar-se ou comunicar
com a vítima, com familiares desta ou com outras pessoas que o juiz
determine; convivência com outra pessoa, família ou grupo educativo125;
reforma de jovens, entenda que tal acto e o tempo de duração da medida já cumprido exprimem de forma suficiente a reprovação que merecem os factos praticados pelo jovem. De acordo com Marcela Rivera, a possibilidade de mediação na fase de execução desenvolve os princípios de oportunidade, flexibilidade na adopção da medida e de interesse superior do jovem, prevendo a faculdade de ficar sem efeito até uma medida privativa da liberdade (Aedo Rivera, 2008: 71)
123 O internamento em regime fechado é aplicado nos casos em que os factos praticados
estejam tipificados como delitos graves no Código Penal ou em leis penais especiais; ou sendo factos tipificados como delitos menos graves, na sua prática tenha havido recurso a violência, a intimidação ou risco grave para a vida ou para a integridade física; ou no caso dos factos tipificados como delitos terem sido praticados em grupo ou o jovem pertencesse ou actuasse ao serviço de um bando, organização ou associação, mesmo que com carácter transitório, que se dedicasse a tais actividades.
124 A medida de liberdade vigiada consiste no acompanhamento da actividade do jovem na
escola, no centro de formação profissional ou no local de trabalho, com o objectivo de superar os factores que conduziram ao cometimento do delito.
125 Com esta medida pretende-se que, durante o tempo estabelecido pelo juiz, o jovem conviva
com outra pessoa, com uma família que não a sua ou com um grupo educativo seleccionado
152 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
trabalho a favor da comunidade; realização de tarefas sócio-educativas126;
admoestação; privação da autorização para conduzir ciclomotores e veículos a
motor; e, após a Ley Orgánica 7/2000, a medida de inabilitação absoluta127.
Com a alteração de 2006, os pressupostos de aplicação da medida de
internamento em regime fechado foram alterados, passando também a prever-
se a prática de delitos graves e de delitos cometidos em grupo ou quando o
jovem pertença ou actue ao serviço de um bando, organização ou associação
que se dedique à prática dessas actividades128.
para orientar o jovem no seu processo de socialização. Esta medida visa proporcionar ao jovem um ambiente de socialização positiva, no que diz respeito ao desenvolvimento da vertente sócio-afectiva. A convivência será, como referimos, limitada temporalmente pelo juiz, pois decorrido algum tempo, o jovem regressará à sua família de origem, pelo que a medida não pode implicar uma ruptura radical com os vínculos entre o jovem e a sua família.
126 O jovem submetido a esta medida, sem recurso a internamento nem a liberdade vigiada,
deverá realizar actividades específicas de conteúdo educativo, com o fim de desenvolver a sua competência social e a sua reinserção na comunidade. Esta medida pode ser imposta de forma autónoma ou pode ser combinada com outra medida mais complexa
127 Esta medida, introduzida pela Ley Orgánica 7/2000, de 22 de Dezembro, é dirigida aos
delitos de terrorismo, e implica a privação definitiva de todas as honras, empregos e cargos públicos, mesmo que electivos, assim como a incapacidade para obter os mesmos ou quaisquer outros cargos, empregos públicos ou honras e de ser eleito para um cargo público, durante o tempo de duração da medida. A lei precisa, ainda, no caso da prática dos crimes de terrorismo previstos nos artigos 571.º a 580.º do Código Penal, sem prejuizo da aplicação de outras medidas aplicáveis no âmbito da LORPM, a imposição, também, da medida de inabilitação absoluta a menores de 18 anos, por um período entre quatro e quinze anos para além da duração da medida de internamento em regime fechado, atendendo à gravidade do delito, ao número de factos e às circunstâncias concretas. Nestes casos, até ter sido cumprida metade da medida, não poderá ter lugar qualquer revisão.
128 O legislador pretendeu dar resposta aos factos cometidos por jovens vinculados a bandos e,
de acordo com alguns autores - Feixa, C. e Canellles, N. apud Díaz Cortés, 2008 - sobretudo a bandos de imigrantes de origem latino-americana. Os autores consideram como natural o processo de agrupamento de adolescentes, bem como o agrupamento de adolescentes imigrantes, pois para além dos conflitos próprios da adolescência, estão presentes os conflitos decorrentes de possuírem uma cultura distinta da do país onde vivem, o que gera problemas de adaptação que os grupos juvenis, como espaços de apoio e de amizade, ajudam a vencer. Autores como W. Thomas e D. Swaine (apud Díaz Cortés, 2008), consideram que, à semelhança do que aconteceu nos EUA, em El Salvador, no México e no Equador, a criminalização dos bandos, não só não acaba com eles como os converte em algo endémico e reforça esses grupos. Não defendem, por isso, como adequada a agravação da pena por os jovens actuarem em grupo, considerando que assim se criam estereótipos que afectam o natural desenvolvimento dos jovens como membros da sociedade e estigmatizam o colectivo
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
153
Com a LO 8/2006 passou a constituir fundamento para aplicar uma
medida, o risco do jovem atentar contra bens jurídicos da vítima. Foi criada
uma nova medida, que consiste no afastamento do jovem da vítima, seus
familiares ou outra pessoa que o juiz determine. A LO 8/2006 procedeu, ainda,
ao alargamento da duração da medida cautelar de internamento, que passou
de 3 meses prorrogável por mais 3 meses, para 6 meses prorrogável por mais
3 meses. Foi também revisto o regime de imposição e execução de medidas,
outorgando a lei ao juiz amplas faculdades para individualizar a(s) medida(s)
que o jovem deva cumprir.
O legislador de 2006 reforçou o reconhecimento dos direitos das vítimas,
designadamente o direito de serem informadas das decisões que afectem os
seus interesses e a possibilidade do procedimento conjunto das pretensões
penais e civis. Um objectivo da LO 8/2006 foi, ainda, acolher no processo de
crianças e jovens as novas funções do secretário judicial previstas na LO
6/1985, após a reforma operada pela LO 19/2003 (cf. Exposição de Motivos).
Para a escolha da medida ou medidas o juiz terá em conta, não apenas
a prova e a valoração jurídica dos factos, mas especialmente a idade, as
circunstâncias familiares e sociais, a personalidade e o interesse do jovem,
baseando-se nas informações fornecidas pelas equipas técnicas. O juiz deverá
fundamentar a escolha da medida e fixar a sua duração.
A execução das medidas é feita sob o controlo do juiz de menores, ao
qual compete adoptar todas as decisões que sejam necessárias para proceder
à sua execução efectiva, decidir as propostas de revisão, aprovar os
de imigrantes, que ficam associados à delinquência. Apesar da reforma defender que as alterações visam o interesse superior da criança, a norma referida, de acordo com Díaz Cortés (2008), coloca os jovens numa situação mais gravosa do que a dos adultos delinquentes. No mesmo sentido, Concepción Carmona Salgado, censura a criação da agravação no casos dos jovens actuarem em grupo ou bando, que considera uma medida discriminatória e repressiva, medida essa não prevista para os delinquentes adultos, além de ser em grupo que, em regra, os jovens praticam factos já qualificados pela lei como crimes (Carmona Salgado, 2008: 269).
154 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
programas de execução, conhecer a evolução dos jovens durante o
cumprimento das medidas através de informações dos técnicos, decidir os
recursos que se interponham contra as resoluções tomadas sobre a execução
das medidas, tomar conhecimento e actuar na sequência de petições e de
queixas apresentadas pelos jovens que afectem os seus direitos fundamentais,
realizar regularmente visitas aos centros e efectuar entrevistas com os jovens,
formular à entidade pública propostas e recomendações que considere
oportunas sobre a organização e o regime de execução das medidas. A
execução das medidas aplicadas pelos juízes de menores é da competência
das Comunidades Autónomas e das cidades de Ceuta e de Melilla, as quais,
de acordo com as suas respectivas normas de organização, levarão a cabo a
criação, direcção, organização e gestão dos serviços, instituições e programas
adequados para garantir a correcta execução das medidas previstas na
LORPM129.
129 Descrevemos de seguida, no caso da Comunidade de Madrid, a actuação da Agencia de la
Comunidad de Madrid para la Reeducación y Reinserción del Menor Infractor que, no quadro do Estatuto de Autonomía de la Comunidad de Madrid foi criada em 2004, com o fim de concentrar, desenvolver e executar os programas e acções necessários nesta matéria.
A Agencia tem como objectivo central a execução de programas e acções que contribuam para a reinserção e educação dos jovens. A lei confere à Agencia, entre outras, as seguintes competências e funções: a) execução das medidas privativas e não privativas da liberdade aplicadas pelos magistrados; execução das medidas cautelares; intervenção, através das equipas técnicas, nos procedimentos judiciais; supervisão dos programas elaborados pelos centros educativos, equipas de meio aberto ou outros profissionais designados para a execução das medidas impostas; assegurar a disponibilidade de lugares suficientes e compatíveis com os fins de reeducação e reinserção; promover a via extrajudicial para a efectivação da reparação, assim como o desenvolvimento da mediação entre vítima e infractor; coordenação com o tribunal e demais instituições relacionadas com o processo de execução das medidas impostas a jovens; cooperação e coordenação com os diferentes organismos públicos da Comunidad de Madrid e com organismos privados, em matéria de prevenção de condutas e atenção dispensada a jovens delinquentes; garantir, em coordenação com o Instituto del Menor y la Familia, os recursos residenciais apropriados para jovens com medidas em meio aberto e saídas autorizadas na execução das medidas de internamento; controlo das autorizações de saída em fins-de-semana, férias e outros tipos de saídas; seguimento do trabalho com os jovens delinquentes e suas famílias; realização de acções de formação para os profissionais que trabalhem com jovens delinquentes, assim como a realização de estudos e investigação sobre o tema; desenvolvimento de políticas de reinserção social dirigidas a jovens delinquentes, tanto durante a execução como após a execução das medidas; garantir a assistência jurídica dos jovens; desenvolver a aplicação dos processos de determinação de
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
155
As medidas de internamento são compostas por dois períodos, o
primeiro dos quais decorre no centro educativo e o segundo em regime de
liberdade vigiada, na modalidade fixada pelo juiz. A duração total da medida de
internamento não pode exceder a duração prevista na lei (artigo 7 da LORPM
com as alterações da LO 8/2006).
De acordo com a LORPM na redacção da LO 8/2006, o regime geral de
aplicação e duração das medidas é o seguinte: quando os factos cometidos
sejam qualificados como falta, apenas podem ser impostas medidas de
liberdade vigiada, até um máximo de 6 meses; admoestação; permanência de
fim-de-semana, até um máximo de quatro fins-de-semana; prestação de
trabalho a favor da comunidade, até 50 horas; privação de condução ou de
idade dos menores delinquentes não identificados; tramitação do procedimento de reagrupação familiar dos jovens estrangeiros não acompanhados que não se encontrem tutelados pela Comunidad de Madrid; garantir a assistência sanitária integral, incluindo a saúde mental, a prevenção e reabilitação do jovem, a assistência escolar, formativa e de lazer; zelar para que o pessoal que intervém seja idóneo para o desempenho das funções; e autorizar e controlar a aplicação dos meios de contenção necessários para evitar e reprimir actos de violência ou intimidação ou lesões dos jovens ou outras pessoas e para impedir actos de fuga e danos nas instalações.
A Agencia dispõe de um programa de reparações extrajudiciais que visa proporcionar um distinto modo de resolução de conflitos e potenciar novas formas de reacção face às infracções cometidas. A intervenção extrajudicial constitui uma alternativa ao processo judicial, baseada nos princípios da oportunidade e responsabilidade, com a participação activa do infractor (Madrid Liras, 2008: 273).
Uma conclusão foi no sentido da insuficiência das respostas e intervenções judiciais que se vinham aplicando em geral a todos os jovens, sempre que estavam em causa grupos especiais, como as jovens grávidas, os jovens que praticaram delitos relacionados com abusos sexuais ou aqueles com problemáticas de consumo de substâncias tóxicas, entre outros. A Comunidad de Madrid desenvolveu, assim, programas especializados para jovens de 14 e 15 anos; programas para jovens grávidas ou com filhos menores de 3 anos; o programa DIAS, para jovens implicados em delitos contra liberdade sexual; programa para jovens implicados em delitos de maus tratos familiares, dada a multiplicidade de variáveis que podem chegar a gerar um funcionamento desadaptado do jovem e sua família, não existe um modelo de tratamento estandardizado aplicável a todas elas; programa terapêutico relativo ao consumo de substâncias tóxicas, com o objectivo de proporcionar um espaço residencial e de convivência que apoie e reforce o processo de desabituação-reabilitação do jovem e desenvolva intervenções de carácter sócio-educativo em simultâneo com a aplicação da medida judicial, para facilitar a progressiva integração dos jovens em contextos normalizados (Madrid Liras, 2008: 275).
156 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
outras licenças administrativas, até 1 ano; proibição de se aproximar e de
comunicar com a vítima, familiares desta ou com outra pessoa que o juiz
determine, até 6 meses; e realização de tarefas sócio-educativas, até 6 meses.
Haverá lugar a medida de internamento em regime fechado quando os
factos praticados estejam tipificados como delito grave pelo Código Penal ou
por leis penais especiais; o delito for qualificado como menos grave, mas tenha
sido usada violência ou intimidação ou tenha havido grave risco para a vida ou
integridade física; os factos tenham sido praticados em grupo; e o jovem actue
ao serviço de um bando, organização ou associação, mesmo que
transitoriamente.
A lei prevê, como regra, que a duração das medidas não poderá exceder
os dois anos (sendo descontado o tempo cumprido em medida cautelar). No
caso da medida de prestação de trabalho a favor da comunidade, a sua
duração não pode ir além de 100 horas e a medida de permanência em fim-de-
semana não pode ultrapassar os oito fins-de-semana. Estas regras gerais
podem, contudo, sofrer alterações nos seguintes casos:
(1) Se, à data dos factos, o jovem tiver 14 ou 15 anos, a medida aplicada
poderá atingir a duração de 3 anos. No caso de prestação de trabalho a favor
da comunidade, o máximo será de 150 horas e, se se tratar de permanência
em fim-de-semana, não poderá ir além de 12 fins-de-semana.
(2) Para os jovens que, à data da prática dos factos qualificados como crime
tenham completado 16 ou 17 anos, a duração máxima das medidas será de 6
anos, de 200 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade ou, caso
se trate de permanência em fins-de-semana, de 16 fins-de-semana.
(3) Se o facto praticado for de extrema gravidade (ou se houver reincidência) o
juiz poderá impor uma medida de internamento em regime fechado de 1 a 6
anos, completada com outra medida de liberdade vigiada com assistência
educativa até um máximo de 5 anos.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
157
A lei, na redacção da LO 8/2006, passou a prever, no caso de o facto
praticado ser punível com pena de prisão de 15 ou mais anos, que ao jovem
devem ser impostas as medidas seguintes:
(1) Se à data da prática dos factos o jovem tiver 14 ou 15 anos, deverá ser
aplicada uma medida de internamento em regime fechado de 1 a 5 anos de
duração, complementada por outra medida de liberdade vigiada até 3 anos;
(2) Se à data da prática dos factos o jovem tiver 16 ou 17 anos, deverá ser
aplicada uma medida de internamento em regime fechado de 1 a 8 anos
complementada por outra medida de liberdade vigiada com assistência
educativa até 5 anos.
Caso o delito cometido se insira no catálogo de acções terroristas, o juiz,
sem prejuízo das demais medidas aplicáveis, também aplicará ao jovem uma
medida de inabilitação absoluta com uma duração entre 4 e 15 anos para além
da duração da medida de internamento em regime fechado, atendendo à
gravidade dos factos, ao número de delitos e às demais circunstâncias do caso
concreto.
As alterações à LORPM têm, assim, vindo progressivamente a
endurecer na resposta aos factos qualificados como crimes praticados por
jovens. Montero Hernanz (2007) estabelece o paralelo das medidas aplicáveis
a um jovem de 14 anos autor de um homicídio, em três momentos distintos,
consoante a data em que os factos tivessem sido praticados: antes da entrada
em vigor da LORPM; na vigência da LORPM até à reforma de 2006; e após a
reforma de 2006, chamando a atenção que o endurecimento foi mais marcado
após LO 8/2006. O Quadro seguinte ilustra este endurecimento da resposta
aos factos qualificados como crimes praticados por jovens.
158 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Idade do autor Antes da LO 5/2000 LO 5/2000 (antes da
LO 8/2006)
LO 5/2000 (após a LO
8/2006)
14-15 anos
Máximo: medida de
internamento de
2 anos
Máximo: medida de
internamento de
4 anos seguida
de 3 anos de
liberdade vigiada
Máximo: medida de
internamento de 5
anos seguida de 3
anos de liberdade
vigiada
Fonte: Montero Hernanz, 2007
2.2 Perspectivas sobre o debate da justiça penal de crianças e jovens
As recentes reformas à LORPM têm provocado um forte debate em
Espanha com posições divergentes alicerçadas em argumentos que enfatizam
diferentes visões do papel do Estado na resposta à delinquência juvenil.
Apresentamos de seguida, uma perspectiva desse debate.
Para a maioria dos autores, parece consensual que a Lei de 5/2000
introduziu um modelo misto de justiça de crianças e jovens, o designado
modelo de responsabilização, acolhido na Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Crianças (Bernuz Beneitez, 2005). Este modelo tem
como objectivo central o interesse superior do jovem, o que leva a que a
intervenção tenha em conta o delito cometido e uma pluralidade de factores
psicossociais. Ora, para alguns, as sucessivas reformas da LORPM mostram
que se têm vindo a considerar outros interesses ao mesmo nível, ou mesmo,
colocando em primeiro plano o dano cometido e o interesse, quer da sociedade
que reclama punição, quer da vítima. Por exemplo, para Bernuz Beneitez todas
as alterações posteriores à Lei 5/2000 desvinculam-se da tendência que a
Convenção impõe de minimizar o internamento, privilegiando a execução de
medidas em contexto comunitário e sócio-familiar. Ainda para aquela autora, a
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
159
resposta prevista no ordenamento jurídico para os casos de reincidência e de
delinquência de extrema gravidade não tem em conta alguns princípios
essenciais da jurisdição de menores (Bernuz Beneitez, 2005).
Lina Díaz Cortés (2008) também defende que a reforma acentua a
resposta punitiva e faz perder relevância no interesse do jovem. Centra a sua
crítica na alteração introduzida pela LO 8/2006 – aplicação da medida de
internamento nos casos de pertença do jovem a bandos ou a associações
criminosas – por considerar constituir um reflexo do modelo de seguridad
ciudadana na justiça de crianças e jovens. A autora contesta o principal
fundamento em que se apoiou esta alteração (aumento da criminalidade grave
cometida por jovens) por considerar que os indicadores estatísticos conhecidos
não espelham essa realidade130, apesar de, em 2005, o Governo justificar as
alterações no que respeita à duração das medidas para os delitos mais graves
e para aqueles cometidos em bando com a necessidade de responder ao
alarme social (Bernuz Beneitez, 2005). Para a autora, estamos perante
reformas condicionadas pela politização do novo modelo de seguridad
ciudadana, que procura dar resposta a exigências populares perante crimes
graves e violentos (Díaz Cortés, 2008).
As recentes alterações à LORPM, que revalorizam o cariz punitivo da
sanção, têm sido também colocadas em causa por alguma doutrina por
considerarem que elas admitem como prioritários os fins de prevenção geral.
Considera-se que o modelo de reacção penal deve ter em conta as
especificidades dos jovens como sujeitos em desenvolvimento e não uma
transposição para os jovens do direito penal dos adultos. Acresce, segundo
Esther Fernandéz Molina (2006), se no inicio da vigência daquelas alterações,
a prática judiciária, graças à margem de flexibilidade da lei, procurava acentuar
130 Cf. “La criminalidade en España en 2006”. Gabinete de Estudios de Seguridad Interior de la
Secretaria de Estado de Seguridad del Ministerio del Interior – In http://www.mir.es/DGRIS/Balances/Balance_2006/pdf/Balance_Criminalidad_2006.pdf
160 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
a resposta na educação e no interesse do jovem, nos últimos anos acentua-se
uma vertente mais punitiva em consonância com todo o contexto de política
criminal131.
Para autores como Montero Hernanz (2007), a reforma tem sido
fortemente condicionada pela mediatização de alguns casos de extrema
violência, como o crime da catana, ocorrido em Abril de 2000132, o crime de
San Fernando133, em Maio do mesmo ano (que terá motivado a reforma
aprovada pela LO 7/2000), o homicídio de Sandra Palo, em Maio de 2003134
(que terá conduzido à reforma operada pela LO 15/2003), e o homicídio de um
131 Refira-se que para a Amnistia Internacional, a reforma de 2006 significou um passo atrás na
justiça de crianças e jovens ao afastar-se das normas internacionais sobre o direito e a justiça de jovens. Cf. Amnistía Internacional. La reforma de la Ley de Responsabilidad Penal del Menor vulnera la Convención de Derechos del Niño de Naciones Unidas. 21-06-2006. http://www.es.amnesty.org/noticias.
132 O crime da catana foi cometido por um jovem de 16 anos que assassinou os seus pais e a
sua irmã, com síndroma de Down, em 01 de Abril de 2000, com cerca de 70 golpes de uma espada japonesa de samurai, enquanto dormiam. A gravidade do crime e o facto de o jovem ter sido colocado em liberdade após concluir 6 meses de medidas cautelares, enquanto aguardava julgamento, causou grande alarme social. Viria a ser condenado em Junho de 2001 a uma medida de internamento num centro terapêutico e a mais 2 anos de liberdade vigiada. Em Setembro de 2003 conseguiu fugir durante uma saída terapêutica, organizada pelo centro de menores onde se encontrava internado, sendo capturado 4 horas mais tarde.
133 Ficou conhecido como o crime de San Fernando o assassinato de uma rapariga com 16
anos por duas jovens de 16 e 17 anos, suas colegas, em 26 de Maio de 2000. As duas jovens, afirmaram que queriam ficar famosas e saber o que se sentia ao matar uma pessoa, aparentemente influenciadas por um filme de terror norte-americano de 1996 – The Craft – que alcançou certo êxito em Espanha. As jovens foram condenadas a 8 anos de internamento em regime fechado, revisto aquando do cumprimento de metade da medida, e a mais 5 anos de liberdade vigiada.
134 Quatro indivíduos, três dos quais menores de 18 anos, violaram, assassinaram e
queimaram a jovem Sandra Palo, de 22 anos, em 16 de Maio de 2003, perto de Madrid. Os pais da vítima, sua família e alguns vizinhos iniciaram uma campanha para a modificação da lei no sentido de permitir a acusação particular, tendo recolhido mais de 700.000 assinaturas. O alarme social produzido e a mobilização conseguida em torno do caso culminaram, 6 meses após os factos, na reforma da lei no sentido pretendido – introdução na LO 15/2003 do artigo 25.º, relativo a acusação particular.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
161
adolescente em Barcelona, em Outubro de 2003, aparentemente por membros
de um gang135 (Montero Hernanz, 2007).
A mediatização daqueles crimes e os diagnósticos, a partir deles, dos
comentadores da comunicação social, que mostravam a delinquência juvenil
cada vez mais violenta e exigiam medidas mais severas e políticas de
“tolerância zero” apresentando os centros educativos como hotéis de luxo,
criaram um contexto em que prevaleciam as percepções sociais negativas e
aumentou a pressão social para a reforma.
Como refere Cabezas Salméron, os factos qualificados como crime,
primeiro foram notícia, depois escândalo e, rapidamente, foram introduzidos em
anteprojecto de lei, sem que tenha havido estudos sobre o tema de forma
serena e fora da discussão mediatizada (Cabezas Salmerón, 2007). Reclama-
se, por isso, que as reformas assentem em diagnósticos sociológicos, na
reflexão sobre os objectivos e princípios que devem presidir ao direito e à
justiça de crianças e jovens e não sejam induzidas pela ocorrência de factos
pontuais, ainda que muito dramáticos (Del Valle, et al, 2009).
Acresce que, em especial no que se refere às alterações introduzidas
pela LO 8/2006 relativamente ao sancionamento da “pertença” a bandos, várias
vozes se têm manifestado, colocando em causa a “eficácia” desse
endurecimento demonstrado pelos estudos de criminologia que evidenciam a
fragilidade dos objectivos de prevenção geral e da dissuasão, defendendo, por
isso, uma maior centralidade de políticas públicas que apostem na educação
dos imigrantes de segunda geração, de forma a atenuar as diferenças e dando-
lhes as necessárias ferramentas de educação e formação que lhes permita a
entrada no mercado de trabalho, isto é, uma intervenção que estabeleça o
135 O assassinato de Ronny Tapias em Barcelona gerou um conjunto de notícias sobre bandos
juvenis, criando uma imagem, colada à delinquência, dos jovens imigrantes de origem latina que vivem em Barcelona.
162 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
circuito educação-formação-inserção laboral e social (Aebi, 2008: 49-50 e
Cercas Domínguez, 2008: 93).
Além das sanções e medidas, um outro foco em debate no âmbito da
LORPM, prende-se com os limites de idade (mínima e máxima) aos quais se
aplica a lei. Nesta matéria, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989
fixou a maioridade aos 18 anos, ao considerar que criança é todo o ser humano
menor de 18 anos, estabelecendo, assim, o limite máximo, mas sem ter
determinado um limite mínimo, referindo expressamente que os Estados-parte
realizarão todas as acções necessárias para definir a idade mínima antes da
qual se presumirá que as crianças não têm capacidade para infringir as leis
penais. Ou seja, a Convenção sobre os Direitos da Criança delegou nos
Estados-parte a fixação da idade mínima em função do seu contexto sócio-
económico e cultural, registando-se diferenças notórias no limiar mínimo da
“idade penal” entre os diversos países (Portugal, 12 anos; França, 10 anos; 13
anos na Polónia; 14 anos em Espanha; 15 anos na República Checa,
Dinamarca, Finlândia, Eslováquia e Suécia; e 16 anos na Bélgica), não
obstante, em alguns desses países, entre os 7 e os 15 anos, as medidas
previstas não são propriamente penais, ou são mais benévolas, e exclui-se das
primeiras franjas de idade a medida de internamento (González del Real,
2008).
Quanto ao limite máximo, há países que prevêem uma aplicação
extensiva, em determinadas condições, até aos 21 anos, como é o caso de
Portugal, Áustria, Alemanha, Itália, Grécia e Holanda. A LORPM, na sua
redacção original, previa essa possibilidade, que veio, contudo, a ser derrogada
com a reforma operada pela LO 8/2006, que prevê, no caso do jovem
completar 18 anos durante o cumprimento de uma medida de internamento, a
possibilidade de continuação do cumprimento da medida num centro
penitenciário se a conduta do jovem não corresponder aos objectivos propostos
na sentença.
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
163
Em Espanha, a discussão, à semelhança do que sucede em outros
países, centra-se, ainda, na possibilidade de aplicação da LORPM a menores
de 14 anos, confrontando-se opiniões divergentes. Montero Hernanz (2008)
equaciona essa possibilidade em duas situações: se estiverem em causa
factos graves e jovens multireincidentes. O juiz González Armengo situa esta
discussão no “aparente fracasso de uma lei de âmbito civil que abarca os
menores de 14 anos - a Lei de Protecção Jurídica do Menor”, dado que, no
quadro desta lei, não existem medidas de contenção, o que torna
absolutamente inócuas as decisões nessa matéria aplicadas a jovens que
ainda não completaram 14 anos, mas que são já “autênticos delinquentes”.
Defende, por isso, que, em face de comportamentos “gravíssimos”, se baixe a
idade até aos 13 ou mesmo até aos 12 anos, devendo ser modificada a lei
nesse sentido (González Armengo, 2008).
Diferente é a opinião de outros autores e operadores judiciários, como
Castany Prado. Para este autor, confrontam-se duas lógicas, que revelam
diferente conceptualização da intervenção educativa com jovens de 14 anos: a
lógica judicial e a lógica assistencial. A primeira considera que é mais fácil
educar e trabalhar sob coacção, enquanto a lógica assistencial considera que
todo o delito é indício de uma carência educativa e, antes de se optar pela via
judicial, deve optar-se por preencher esse vazio. Para o autor, baixar para 12
anos o limite inferior de responsabilidade penal coloca em causa o verdadeiro
objectivo da justiça juvenil – devolver ao jovem uma liberdade concebida em
termos de autonomia, uma responsabilidade que se aprende assumindo
responsabilidades, o que implica um longo período de aprendizagem (Castany
Prado, 2008).
164 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
2.3 O modelo catalão de justiça juvenil
Em Espanha, no âmbito das competências transferidas às comunidades
autónomas, a Catalunha desenvolveu um modelo singular e avançado de
justiça juvenil. O modelo afasta-se, quer do enfoque penitenciário, quer do
enfoque assistencialista e protector, apostando na responsabilização dos
jovens por meio de medidas concebidas e aplicadas por órgãos distintos dos
da protecção de crianças e jovens e dos serviços penitenciários, destacando-se
a missão dos serviços de justiça juvenil, a cargo da Dirección General de
Justícia Juvenil.
Os principais vectores do modelo catalão de justiça juvenil são os
seguintes: separação entre as funções de protecção de crianças e jovens e de
justiça juvenil; aplicação dos princípios de oportunidade e de intervenção
mínima, assim como mediação entre autor e vítima136; responsabilização dos
jovens como elemento central das intervenções, desenhadas para favorecer a
autonomia e a integração pessoal; intervenções transitórias fomentando a
participação da família, dos serviços sociais e da comunidade; intervenções
integradas, baseadas na coordenação e no trabalho transversal de equipas
profissionais altamente qualificadas; e reforço das garantias legais dos jovens e
protecção do direito à intimidade das vítimas e dos autores dos delitos (cf.
Generalitat de Catalunya).
As características basilares do sistema, apresentadas pela Generalitat
de Catalunya são um bom nível de coordenação entre os operadores do
136 O programa de mediação e reparação tem como referência as recomendações do Conselho
da Europa e das Nações Unidas sobre as reacções sociais e penais da delinquência juvenil, assim como as orientações da mediação penal. A LO 5/2000 prevê a conciliação e a reparação entre o jovem infractor e a vítima, para permitir a resolução extrajudicial do conflito. A lei regula o procedimento e os efeitos jurídicos da conciliação e da reparação, bem como de outras soluções extrajudiciais, atribuindo a função de mediação entre jovem e vítima à equipa técnica (cf. Generalitat de Catalunya).
A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha
165
sistema de justiça juvenil, a aposta na mediação entre o jovem e a vítima como
alternativa de resolução do conflito, assim como a preferência pela aplicação
de medidas em meio aberto, a atenção individualizada prestada aos jovens nos
distintos programas de intervenção, a boa preparação técnica e especialização
dos profissionais das várias equipas e a resposta da comunidade.
A Generalitat de Catalunya definiu cinco linhas de actuação no âmbito
da justiça juvenil (cf. Generalitat de Catalunya).
(1) A primeira linha prende-se com os sujeitos afectados – os jovens, as
famílias e as vítimas. O objectivo é o de proporcionar um tratamento adequado
às necessidades dos jovens, considerando, quer os seus perfis, quer os seus
contextos familiares e comunitários. Prevê-se o estabelecimento de protocolos
de intervenção em saúde mental e toxicodependência, ou outras medidas
terapêuticas; aprofundar a participação das famílias através de sessões de
informação e de grupos de auto-ajuda, mas também pela inclusão das famílias
nos programas para os jovens; e assegurar o apoio às vítimas.
(2) A segunda linha prende-se com as normas e a sua aplicação,
designadamente, com a intensificação da comunicação e a criação de espaços
de reflexão periódica entre os serviços de justiça juvenil, os magistrados e
demais profissionais e entidades envolvidos no sistema de justiça juvenil, que
ajudem, não só à disseminação de processos de boas práticas, mas também à
formulação de propostas de reforma.
(3) A terceira linha de orientação refere-se à comunidade e à promoção da
participação social em rede. Visa-se estimular a coordenação e concertação da
acção entre as instituições, melhorar a permeabilidade do sistema de justiça
juvenil e estimular as suas relações com os cidadãos, através da realização de
protocolos com organizações que possam desenvolver programas de
tratamento ou de inserção dos jovens, estimulando a participação de
voluntários em determinadas actividades dos centros educativos e em tarefas
auxiliares em meio aberto, apostando na divulgação das actividades
desenvolvidas para fomentar o conhecimento e a sensibilidade social
166 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
relativamente aos jovens com problemas de inadaptação ou de práticas
delituosas. Estas orientações também se dirigem a acções de prevenção.
(4) A gestão organizativa e dos recursos humanos e materiais constitui a quarta
linha de actuação, considerando-se a importância de dispor de equipamentos e
de recursos humanos suficientes e de qualidade. Foram desenvolvidas acções
concretas para a realização daqueles objectivos, que actuaram, sobretudo, no
âmbito da organização e gestão dos serviços. Salienta-se o esforço de
adequação dos perfis profissionais das equipas, sendo de destacar a
incorporação da figura do psicólogo nas equipas em meio aberto e a aposta na
formação contínua de todos os profissionais da justiça juvenil, com cerca de 40
horas de formação por ano para cada profissional. A reforma organizativa tinha
um objectivo de eficácia, impulsionando a descentralização de competências e
de recursos dos centros e equipas, o reforço do papel das equipas e da
interdisciplinaridade na tomada de decisões, a adopção de novas metodologias
de trabalho por objectivos.
(5) A quinta linha de orientação refere-se à avaliação da eficácia do sistema de
justiça e do impacto da acção deste e, em geral, da acção desenvolvida na
execução das medidas. Visa-se, igualmente, o intercâmbio de experiências e
metodologias de intervenção com sistemas de justiça juvenil de outras
comunidades autónomas e de outros países, fomentar a investigação e a
avaliação em cooperação com o meio académico.
IV. ENTRE A LEI E A PRÁTICA: A
JUSTIÇA TUTELAR EDUCATIVA EM
PORTUGAL
HÁ FUNDAMENTOS PARA UMA REFORMA
ESTRUTURAL?
1
1. HÁ FUNDAMENTOS PARA UMA REFORMA ESTRUTURAL?
Introdução
Nas experiências acima referidas (casos de Espanha e de França) são
colocadas em evidência questões de oportunidade, razões e sentido das
reformas. Como vimos, muitos autores acentuam as fragilidades dos processos
de reforma que, na ausência de estudos sociológicos que sustentem os
discursos políticos que lhes estão subjacentes, emergem como reformas
motivadas, sobretudo, por razões de natureza política e condicionadas por
ideologias securitárias e neoliberais. Salienta-se, por isso, não só a
necessidade de melhor conhecer os contextos sócio-culturais da delinquência
juvenil e o perfil dos seus sujeitos (por exemplo, as condições de vida nas
periferias das grandes cidades hiper-urbanizadas e as desigualdades de
oportunidades das populações imigrantes), mas também a real dimensão e as
características dos comportamentos delinquentes das crianças e jovens.
A crise económica e a mudança ideológica do papel do Estado levam ao
recuo da intervenção deste na promoção do bem-estar e coesão sociais e,
consequentemente, a negligenciar a actuação sobre os factores estruturais do
risco e da insegurança. A intervenção do Estado passa, assim, cada vez mais,
a ocorrer no quadro do seu papel repressivo e de controlo social, embarcando
nas percepções de insegurança, não empiricamente sustentadas. Este cenário
é acentuado pela acção dos media, cujo discurso sobre os fenómenos de
172 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
delinquência juvenil, não só fomenta o sentimento de insegurança nas
populações, como é grandemente responsável pela construção de
determinadas categorias (“jovens”, “imigrantes”, “negros”) como socialmente
problemáticas.
O trabalho de campo realizado foi orientado pela seguinte interrogação:
há razões para uma reforma legal da delinquência juvenil e, se sim, qual deve
ser o seu conteúdo e alcance?
Antes de analisarmos as opiniões identificadas no decurso do trabalho
de campo relativamente a esta vertente, deixamos três notas quanto à
construção dos processos de reforma.
A primeira nota é que as reformas estruturais de determinado sector da
justiça devem ser alicerçadas em estudos de diagnóstico que possam informar
o debate e as soluções em discussão. O conteúdo e o curso das reformas são
certamente diferentes consoante o diagnóstico que, no processo reformista, for
mais valorizado: o diagnóstico dos comentadores da comunicação social,
muitas vezes induzido pela mediatização de um determinado caso (entre nós
costumam ser apontados vários exemplos de reformas despoletadas pela
mediatização de um caso específico nesta matéria, o famoso “caso Lídia
Franco”); o diagnóstico dos operadores do sistema que, em regra, integram as
comissões de reforma; e o diagnóstico sócio-jurídico que analisa a lei na sua
dinâmica de aplicação, identificando os problemas que reclamam uma solução,
de natureza legislativa, organizacional ou outra.
O diagnóstico dos operadores do sistema tem uma forte vertente
funcional e corporativa, vinculada às percepções da sua experiência e às
preocupações dos profissionais. O diagnóstico sócio-jurídico, assente na
avaliação sólida e rigorosa do desempenho do sistema judicial e das
instituições conexas, mostra o funcionamento real do sistema judicial no seu
conjunto. Este diagnóstico não ignora os outros, até porque também eles
incorporam uma verdade sobre o sistema, ainda que parcelar, mas com a qual
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
173
é importante articular. Ao cruzar diferentes percepções, confrontando-as com
dados e indicadores objectivos, este diagnóstico procura uma aproximação à
realidade, ao modo de funcionamento do sistema de justiça e aos problemas
com que a lei se confronta na sua aplicação. Sabemos que muitos dos
problemas não têm natureza legal, isto é, não decorrem da lei em si mesma,
mas sim das condições da sua aplicação, pelo que, não se actuando sobre
elas, de nada serve alterar a lei.
É este tipo de diagnóstico de carácter sócio-jurídico que deve estar no
lastro dos processos de reforma estruturantes do sistema de justiça. O
processo de reforma será tanto mais sólido e devidamente orientado quanto,
numa perspectiva sistémica, mais tiver em conta as várias dimensões da
realidade a que se dirige, ainda que, a final, as opções e soluções possam ser
motivadas por condicionantes de natureza política ou económica.
A segunda nota, relacionada com a primeira, evidencia a necessidade
de as políticas públicas de justiça incorporarem uma perspectiva sistémica. É
claro que as reformas não podem reformar todo o sistema em simultâneo, nem
mesmo um determinado sector. Mas, quando se intervem em determinado
sector, deve partir-se de uma visão global. Esta visão ajuda a evitar, não só
incongruências na aplicação da lei, mas também a encontrar soluções mais
alargadas que, por exemplo, olhem para outras sinergias institucionais
existentes na sociedade e não só para os tribunais judiciais como os
destinatários “óptimos” de toda a procura de tutela judicial.
A terceira e última nota faz apelo ao adensamento de um olhar para o
direito e para a justiça nas sociedades contemporâneas pela via da democracia
e da cidadania. O direito e a justiça são instrumentos centrais da qualidade da
democracia, do exercício efectivo dos direitos humanos, sobretudo, quando o
Estado recua no compromisso social com os cidadãos. Ora, num quadro de
crise social e de escassez de recursos, as reformas do direito e da justiça não
podem permitir desperdícios de experiências e de oportunidades.
174 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
À semelhança do que ocorreu nas experiências acima referidas, também
entre nós o trabalho de campo evidenciou a fragilidade do conhecimento
empírico sobre esta temática em várias dimensões, o que impede uma
discussão devidamente informada sobre a necessidade e o sentido de uma
reforma. Chama-se a atenção, desde logo, para a falta de indicadores
disponíveis que permitam conhecer, quantitativa e qualitativamente, o
fenómeno nas suas múltiplas dimensões. Vimos, nos pontos I.1 e I.2, como a
percepção sobre a delinquência juvenil, sem a baliza dos dados, é vaga e pode
ser falaciosa. De que grupos etários estamos a falar? Qual a natureza dos
factos praticados? Qual a sua gravidade? Quais os factos tipicamente
praticados por determinados grupos etários? Os casos isolados, de alta
gravidade, em regra muito mediatizados, podem desempenhar um papel
central na denúncia de determinadas patologias do sistema que apenas por
causa deles são conhecidas, mas podem não justificar de per se alterações
legais, ainda que pontuais.
1.1 O (não) conhecimento da dimensão do fenómeno da delinquência juvenil
Verificámos já, no âmbito de um outro trabalho137 direccionado
exclusivamente à justiça penal de adultos, que os fenómenos criminais em
geral (causas, perfis dos seus agentes, natureza da criminalidade,
características regionais, etc.) são pouco conhecidos. O conhecimento que
existe, além de escasso é, ainda, muito fragmentado, e desconhece-se, com
rigor metodológico, a criminalidade oculta. Recomendámos, no referido
trabalho que, a curto prazo, fosse realizado um estudo de vitimologia que
137 Cf. Gomes, (coord.) (2009). A justiça penal: uma reforma em avaliação. Coimbra: Centro de
Estudos Sociais/Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
175
permitisse identificar, com recurso a metodologias científicas, as cifras negras
do crime e as áreas mais vulneráveis da sociedade portuguesa a exigirem uma
alteração da política criminal. Esta recomendação resulta da definição correcta
das políticas públicas de justiça penal exigir um conhecimento mais densificado
e articulado sobre esta matéria, sendo esse conhecimento crucial para uma
correcta definição da política criminal mas, também, das estratégias de
investigação e da política de criminalização ou descriminalização de certas
condutas.
A consideração do fenómeno da delinquência juvenil reclama a
ponderação de duas especificidades. Por um lado, trata-se de uma realidade
cujo conhecimento efectivo é ainda mais limitado do que o verificado na
criminalidade de adultos, o que resulta numa valorização ainda superior das
percepções individuais, normalmente associadas às visões reflectidas pela
comunicação social e permeáveis a “pânicos sociais” ligadas a “sentimentos”
de insegurança não empiricamente fundamentados.
Por outro lado, o vazio de conhecimento sobre o fenómeno da
delinquência juvenil, associado à existência de uma lei-quadro de política
criminal, condiciona as atitudes dos operadores quanto ao tratamento da
delinquência juvenil, permitindo derivas penalistas. Ora, já salientámos a
necessidade de consideração autónoma, apesar de em permanente diálogo
com as restantes vertentes do sistema, das respostas institucionais aos
comportamentos delinquentes de crianças e jovens atenta à idade dos sujeitos
aos quais se dirige. Assim, se se exige um conhecimento mais profundo dos
fenómenos associados à criminalidade de adultos, essa necessidade é
superlativizada em relação à delinquência juvenil.
Efectivamente, os dados disponíveis relativamente à delinquência juvenil
indicam a existência de um processo de selecção dos comportamentos que
recebem uma resposta do sistema judicial de base classista, reproduzindo
desigualdades sociais.
176 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Relembramos aqui a seguinte conclusão do estudo já citado de Gersão
e Lisboa (apud Seabra, 2005): entre os 12 e os 16 anos, 80% a 90% dos
jovens afirmam ter praticado actos delinquentes, sendo esta percentagem
semelhante em todas as classes sociais; 8% a 10% da criminalidade é
denunciada às polícias; e apenas 4% a 5% atinge o topo da pirâmide, isto é, é
sancionada. Sendo que, neste caso, os agentes são quase inteiramente
provenientes das classes populares. Aliás, toda a literatura sobre o tema é
consensual quanto ao processo de filtragem de base classista que percorre a
relação das crianças e jovens que praticam factos qualificados pela lei como
crime com o sistema de justiça. Uma das questões, a que importa dar resposta,
é a de saber que factos são estes.
Ora, mesmo quanto aos factos conhecidos qualificados pela lei como
crime, isto é, aqueles que são objecto de denúncia e chegam ao conhecimento
das autoridades de controlo social, os indicadores disponíveis são escassos e
pouco consistentes. Não foi possível obter e trabalhar, para este relatório
,indicadores das estatísticas oficiais da justiça138 que nos permitissem detalhar
o volume e a natureza destes comportamentos que chegam ao sistema de
justiça, do perfil dos seus actores e vítimas, incidência regional e do
desempenho funcional do sistema, quer quanto à “selecção” dos processos nas
várias fases processuais, quer quanto aos tempos de tramitação.
Aliás, esta dificuldade é também referida pela Procuradoria-Geral
Distrital de Lisboa (PGDL) no documento “A intervenção Tutelar Educativa no
Distrito Judicial de Lisboa”, de Julho de 2009139, que sistematiza alguns dados
relativos a inquéritos de processos tutelares educativos (ITE) abertos entre
2006 e 2008, que a seguir se referem. Embora circunscritos ao distrito de
138 Uma vez que os dados ainda careciam de validação e a DGPJ não os pode, por isso,
disponibilizar.
139 In www.pgdlisboa.pt, acedido em Janeiro de 2010.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
177
Lisboa, consideramos importante, pela sua pertinência, inclui-los neste
trabalho.
Quanto ao número de inquéritos tutelares educativos (ITE) abertos, que
nos dão a dimensão da mobilização do sistema com estes tipos de
comportamentos delinquentes, os indicadores salientam um ligeiro crescimento
em 2007, relativamente a 2006, de cerca de 18,7% (cujo peso se distribui pelos
Tribunais de Família e Menores de Lisboa, Sintra, Vila Franca de Xira e Ponta
Delgada). De 2007 para 2008 os números mantêm-se sensivelmente idênticos
(apenas mais 12 ITE no total dos tribunais de família e menores), destacando-
se o caso do Barreiro onde se verificou um aumento de ITE entrados: 34,9%140.
Estes dados parecem estar em consonância com os constantes do
Relatório Anual de Segurança Interna de 2008 que, em “Adenda”, revela que
naquele ano os actos qualificados como crime praticados por menores de 16
anos decresceram, face a 2007, cerca de 43,5%, incidindo nos distritos de
Lisboa, Setúbal e Porto cerca de metade das ocorrências, o que mostra, como
acima já referimos, a urbanização do fenómeno, também, de algum modo,
indiciada pelo crescimento da actividade grupal (segundo o mesmo relatório,
com um crescimento em 2007, comparativamente com o ano anterior de cerca
de 35%).
O mesmo documento da PGDL refere que o peso relativo dos
requerimentos para abertura de fase jurisdicional nos inquéritos tutelares
educativos findos tem vindo a registar um valor decrescente (12,3% 2006;
11,3% em 2007 e 9% em 2008). Por sua vez, o peso relativo dos processos
findos por despacho de arquivamento do Ministério Público, com fundamento
na desnecessidade de aplicação de medida tutelar, sendo o facto qualificado
140 É necessário ter em atenção que os números absolutos de inquéritos tutelares entrados
são, com excepção de Lisboa, em regra, bastante inferiores a um milhar, pelo que pequenas variações, na ordem de escassas dezenas, podem representar variações percentuais significativas.
178 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
como crime punível com pena de prisão de máximo não superior a três anos
(cf. artigo 87.º, n.º 1, al. c) da LTE) no total de processos findos, tem vindo a
diminuir (5,8% em 2006; 3,6% em 2007 e 1,7% em 2008).
Um outro dado que nos parece relevante e que vem ao encontro de
questões acima referidas contrapõe os números conhecidos (ou, noutra
perspectiva, a sua ausência) às percepções dos operadores e à definição de
políticas e estratégias com base nelas. Por exemplo, pode ler-se que “a
evidência de que a pertença a grupos que se dedicam à criminalidade violenta
não implica uma exigência de idade mínima; a verificação do acentuar da
tendência para a precocidade do início de carreiras criminais; o aumento da
violência no crime, são tudo factores que o MP não pode deixar de considerar
na escolha do modelo de acção que adoptará em matéria tutelar educativa” (cf.
PGDL, 2009).
Mais à frente, fazendo apelo a alguns casos concretos141, salienta-se
que “é à luz desses dados que o MP não pode, sem quebra da sua
responsabilidade social e institucional, deixar de proceder a uma análise da
intervenção que tem vindo a ter nos inquéritos tutelares educativos”. E, como
que “duvidando” de alguns dos indicadores, aponta para a necessidade de
avaliação criteriosa dos dados que, no que respeita aos requerimentos de
abertura da fase jurisdicional, considera muito baixos sobretudo por se
registarem em localidades em que existe “sinalização de actividade violenta e
habitual de menores, assumindo ou não características grupais”.
Na verdade, de acordo com os dados conhecidos, não é possível inferir
alterações significativas no volume, perfil ou características dos factos
qualificados como crime pela lei penal e dos seus actores que possam justificar
141 “(…) um assalto com arma de fogo e violação numa loja da Amadora; o esfaqueamento
violento de um menor por outro menor em Almada; um caso de violação em grupo em Loures; ou um jovem armado que, em Sintra, terá aberto fogo sobre a Polícia” (cf. PGDL, 2009).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
179
e informar qualquer processo de reforma estrutural, o que não significa que não
existem. Diferente é a necessidade de debate e reflexão, com apelo a outras
áreas do saber, que todos os indicadores devem merecer no sentido de apurar
as melhores estratégias de resposta.
As opiniões dos operadores judiciários142, ouvidos no curso do trabalho
de campo, reproduzem a ausência de indicadores pelos quais seja possível
aferir, com rigor, a intensidade e o sentido das dinâmicas de mudança. Por
exemplo, um dos intervenientes no painel de discussão, a partir da diminuição
do número de jovens internados em centros educativos, que extrapola para o
conjunto das medidas tutelares educativas aplicadas pelos tribunais no período
2001-2009, conclui que a delinquência juvenil não é muito grave e extensa:
(…) ao longo de nove anos – 2001 a 2009 – a população dos centros educativos diminuiu. Aumentou até 2003 e, desde aí, vem descendo com sobressaltos de três em três anos. Por exemplo, agora aumentou ligeiramente – cerca de 20 unidades em 2009 – mas tinha descido em 2008 e 2007. Acresce que se se considerar o Relatório de Segurança Interna referente a 2008, o capítulo referente à delinquência juvenil deixou de existir, ou seja, tornou-se estatisticamente inexpressivo. Até 2008, a criminalidade registada até aos 16 anos correspondia, há uma série de anos, a 1% da criminalidade total registada no país. Se, em 2008, no Relatório de Segurança Interna este dado deixou de existir, tenho de concluir que deixou de existir por se ter tornado estatisticamente inexpressivo (P4).
O mesmo interveniente chama a atenção para um outro indicador, que
considera particularmente sintomático: o número de jovens internados em
regime fechado que corresponderá às situações de prática de factos mais
graves.
(…) a população em regime fechado manteve-se mais ou menos constante, tendo registado momentos de grande descida. O regime fechado, por exemplo, nunca ultrapassou 51 menores, em 2002, e desde então, tem oscilado entre 32 – valor mínimo que foi registado
142 De forma a garantir o anonimato, a identificação dos operadores judiciais entrevistados
durante o trabalho de campo faz-se pela expressão Ent., seguida de J (magistrado judicial), MP (magistrado do Ministério Público), TRS (técnico de reinserção social), e de um número aleatório atribuído a cada um dos entrevistados. A referência aos participantes no painel de discussão é P, seguida de um número aleatório.
180 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
em 2007 – e 49, valor maior registado em 2008. Eu acho que poucos países da Europa – e nem falo de países da UE – se podem orgulhar de ter tão poucas crianças e jovens internados ou em situações de privação de liberdade como nós temos. O que quer dizer que não temos, ao contrário do que se pensa, problemas de delinquência juvenil particularmente graves. A minha conclusão é que se não ultrapassámos, em Portugal, em nove anos, os 51 menores internados, que é o valor de 2002, repito, acho que podemos, neste aspecto, dar-nos por satisfeitos (P4).
1.2 Reflexões sobre o modelo de intervenção da Lei Tutelar Educativa
A necessidade de dotar o processo relativamente a jovens que tenham
praticado factos qualificados pela lei penal como ilícitos criminais de uma
estrutura mais formalizada, salvaguardando a protecção de garantias
fundamentais das crianças e jovens, consagradas, quer constitucionalmente,
quer em instrumentos internacionais ratificados por Portugal, foi um dos
motores da Reforma do Direito de Menores que culminou com a publicação de
três diplomas emblemáticos: a Lei n.º 133/99, de 28 de Agosto, que alterou o
Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na parte respeitante aos processos
tutelares cíveis; a Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, que aprovou a Lei de
Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP); e a Lei n.º 166/99, de 14
de Setembro, que aprovou a Lei Tutelar Educativa (LTE)143.
O modelo adoptado pelo Lei Tutelar Educativa é um modelo tributário de
uma concepção mitigada, enveredando por uma terceira via entre os modelos
proteccionistas e os modelos de justiça aproximados do regime penal de
adultos144, balançando entre uma “disciplina mais garantística do ponto de vista
processual” e “uma estratégia responsabilizante” (Moura, 2000: 114).
143 Como veremos infra, esta reforma previa, ainda, como essencial para alcançar os seus
objectivos a reforma do regime penal dos jovens adultos, que representaria o fechar de um ciclo de reforma.
144 Esta é, pelo menos, a posição alvitrada pelos defensores do modelo seguido pela Lei
Tutelar Educativa. Embora, de um ponto de vista académico, em Portugal, não se façam sentir
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
181
A ausência de estudos e indicadores que permitam análises detalhadas,
bem como inferir se, de facto, há alterações significativas nas dinâmicas da
delinquência juvenil, não aconselham reformas estruturantes nesta matéria que
impliquem, por exemplo, mudança de paradigmas ou de princípios subjacentes
ao actual modelo que informa a Lei Tutelar Educativa.
Neste quadro, a manutenção do actual modelo subjacente à Lei Tutelar
Educativa em vigor, no que respeita às suas linhas estruturantes, foi
consensual entre os actores ouvidos durante o trabalho de campo. Por
exemplo, matérias como a alteração dos limites de idade para a aplicação da
medida de internamento em regime fechado, endurecimento das medidas a
aplicar, possibilidade de aplicação de penas (sujeita a determinadas condições)
que, como vimos, estão em discussão ou foram introduzidas no ordenamento
jurídico de alguns países, não mereceram adesão. Reclama-se, sim,
enfaticamente, a reforma do regime penal especial dos jovens adultos, como
fim de um ciclo iniciado com as aprovações das Leis de Promoção e Protecção
de Crianças e Jovens em Perigo e Tutelar Educativa.
Esta circunstância não implica, no entanto, que se esqueçam eventuais
alterações, de natureza cirúrgica, que permitam correcções de alguns aspectos
já diagnosticados como bloqueios à concretização dos objectivos da lei.
Uma das apostas da Lei Tutelar Educativa, como via instrumental de
atingir o seu objectivo de responsabilização aliado à protecção das garantias
das crianças e jovens, foi a positivação pormenorizada do processo.
Abandonou-se a aparente flexibilidade da Organização Tutelar de Menores e a
maior margem de conformação equitativa por parte do aplicador da lei, tornou-
críticas consideráveis a este modelo, não sendo contestada a sua categorização como um “meio-termo” entre os modelos de protecção e os modelos de justiça, não raras vezes, durante o nosso trabalho de campo, o actual modelo foi apelidado de “direito penal dos pequeninos”. Estamos em crer, contudo, como se compreenderá ao longo dos diversos pontos desta secção, que tal percepção não estará alicerçada numa análise crítica do modelo legislativo, mas sim distorcida pela experiência acumulada de disfunções práticas das finalidades legislativas.
182 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
se objectiva a tramitação processual do processo tutelar educativo e criou-se,
legalmente, momentos de maleabilidade e plasticidade, como forma de
adaptação à rápida mutação das circunstâncias envolventes do jovem145.
A certeza e segurança jurídicas146 surgem como características de
promoção da justiça e da igualdade, aliando-se às ideias de previsibilidade e
estabilidade da vida jurídica, permitindo aos destinatários das normas
conhecer, aprioristicamente, as consequências jurídicas dos seus actos.
Assume-se, claramente, o desiderato de cumprimento do princípio da previsão
ou determinabilidade das normas jurídicas147, enquanto subprincípio integrador
da protecção da segurança jurídica relativamente a actos normativos, elemento
constitutivo do Estado de direito.
Assim, algumas soluções legislativas, tal como já tínhamos verificado no
nosso primeiro estudo de 2004, continuam a ser apontadas como ambíguas,
necessitando de clarificação legislativa, ou como desajustadas à realidade
sociológica que lhes é inerente. Procuraremos, no ponto seguinte, traçar o
145 Reportamo-nos aqui, por exemplo, às possibilidades legalmente previstas de revisão da
medida tutelar educativa aplicada.
146 Segundo Gomes Canotilho (2003: 257), os princípios da segurança jurídica e da protecção
da confiança – elementos constitutivos do Estado de direito – “andam estreitamente associados. (…) Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos”.
147 Recorrendo às palavras de Gomes Canotilho (2003: 258), “o princípio da determinabilidade
das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas ideias fundamentais. A primeira é a da exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória não pode ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o caso concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente da regulamentação legal, pois um acto legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos”.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
183
diagnóstico dos operadores relativamente ao impacto negativo de algumas
soluções legislativas.
BLOQUEIOS NORMATIVOS
2
2. BLOQUEIOS NORMATIVOS
Introdução
O trabalho realizado pelo OPJ em 2004, “Os Caminhos Difíceis da
„Nova‟ Justiça Tutelar Educativa – Uma avaliação de dois anos de aplicação da
Lei Tutelar Educativa”, no âmbito desta temática, identificava um conjunto de
problemas que os operadores judiciários atribuíam à lei, dificultando, não só a
sua aplicação prática, como também o alcance dos seus objectivos e
princípios. O decurso da vigência da lei resolveu alguns deles,
designadamente, pela via jurisprudencial, necessitando outros de uma
intervenção legislativa. Procuramos, neste ponto, identificá-los nas suas linhas
essenciais.
2.1. A (não) uniformização de jurisprudência
Já em 2004, no relatório acima referido, dizíamos que “uma das maiores
dificuldades que emerge do discurso dos actores no que respeita ao processo
tutelar educativo prende-se com a dificuldade de interpretação de algumas
disposições legais, que originam, muitas vezes, procedimentos diferenciados
de tribunal para tribunal e, mesmo dentro do mesmo tribunal, de magistrado
para magistrado” (2004: 308).
188 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Destacámos, nessa altura, no discurso dos actores, as seguintes
questões:
(1) A (ir)relevância da desistência de queixa quando o jovem tiver praticado
facto qualificado pela lei penal como crime semi-público ou particular;
(2) O desconto do tempo da medida cautelar na medida tutelar educativa
aplicada;
(3) Os internamentos em fim-de-semana.
Não nos referíamos a situações típicas de abertura, propositada da lei,
que densificam a ideia de que a actividade de julgar se reconduz, também, à
própria criação do direito, através da amplitude particular do momento da
escolha da norma aplicável e da necessidade de interpretação da norma
seleccionada, mas sim a circunstâncias em que juízes diferentes proferem
decisões distintas para casos análogos, pondo em crise o princípio da previsão
das normas jurídicas.
Volvidos seis anos sobre a publicação de tal estudo, de volta aos
tribunais e ao meio social em trabalho de campo, deparámo-nos com duas
situações significativas.
Em primeiro lugar, uma das questões suscitadas, com frequência, nas
entrevistas realizadas a operadores judiciários, no curso daquela primeira
investigação, foi a disparidade de procedimentos no que respeitava à
relevância dada ao tempo passado em medida cautelar de guarda em Centro
Educativo, no tempo da medida tutelar educativa aplicada em decisão final,
defendendo, a maioria dos entrevistados, a necessidade de clarificação
legislativa quanto a esta operação.
Do discurso dos operadores judiciários entrevistados no âmbito do
presente projecto de investigação não surgiu, relativamente à questão,
qualquer preocupação quanto à interpretação normativa, o que será o resultado
da publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
189
de Justiça, com data de 08 de Outubro de 2008 (Processo n.º 07P2030). Com
este acórdão colocou-se termo à questão que vinha dividindo os tribunais,
fixando-se jurisprudência no sentido que, em processo tutelar educativo, não
há lugar ao desconto do tempo de permanência do jovem em centro educativo,
quando, sujeito a tal medida cautelar, vem, posteriormente, a ser-lhe aplicada a
medida tutelar de internamento148.
Aquele acórdão de uniformização de jurisprudência comportou vários
votos vencidos (Maia Costa, Raúl Borges, Simas Santos, António Colaço e
Santos Carvalho, todos nos termos do voto de vencido do Conselheiro Artur
148 Segundo o acórdão em análise, “é da resposta à amplitude da regra do desconto, se restrita
ao processo penal, ou se, alargadamente, por analogia, ao processo tutelar educativo, conducente ao abater o tempo de guarda em centro educativo à duração da medida de internamento, que emerge o sentido decisório a imprimir ao recurso, sendo incontroverso que a LTE é completamente omissa a respeito desse desconto”. O ponto de partida para esta reflexão e que sustenta a sentido decisório do acórdão é o facto de a teleologia das penas criminais se situar num plano quantitativa e qualitativa diferenciado do processo tutelar educativo, sendo esta, desde logo, uma razão fundamental para marcar a diferença entre o direito tutelar educativo e o criminal. Por outro lado, refere-se ainda que a filosofia que preside à aplicação das medidas tutelares se inspira em princípios que, pela sua especificidade, marcam a diferença dos que presidem à aplicação de penas, estruturando a adopção daquelas sob o império da necessidade de educação para o direito, manifestada na prática do facto e subsistente no momento para a decisão do direito, sob o signo da proporcionalidade. Segundo aí se argumenta, tanto assim é que, não obstante a prática de um acto qualificado pela lei penal como crime, a intervenção estatal não é imperativa, se se concluir que, ainda assim, o facto é de pequena gravidade, não afirmando evidente e evitável ruptura com valores de relevância comunitária, ainda socialmente toleráveis, atribuídos a uma juventude só acidentalmente maculada. Nesta lógica discursiva, avança-se, então, para a conclusão de que o modo de cumprimento da medida de internamento, tanto no regime aberto como semi-aberto, é distinto do modo de cumprimento da pena, e que, por igual ordem de razões, também a prisão preventiva não equivale ao tempo de guarda em centro educativo uma vez que, pese embora lhe estar ínsita limitação de liberdade, aqui também o seu regime legal se caracteriza por laivos de justificada flexibilização (cf. Tomé D'Almeida Ramião, in Lei Tutelar Educativa, Anotada e Comentada, Quid Juris, Março de 2004, 102; em contrário Paulo Guerra, Jurisprudência Crítica, in R e v . DGRS , Ano I, Setembro de 2008). Face ao exposto, conclui-se que, ao inscrever-se o regime de guarda já no processo da medida tutelar, enquanto seu preliminar, o desconto do tempo de duração da guarda, comprimindo a duração da medida de internamento, não deixaria de funcionar in malem partem. Ou seja, será, portanto, o próprio interesse do menor que arreda a aplicação do instituto. Neste seguimento, defende-se que o legislador, conhecedor de todas as assimetrias existentes entre o processo tutelar educativo e o processo penal, se relegou a um bem justificado e eloquente silêncio, dando à estampa um diploma regulador de forma global e autónoma a matéria, não se inserindo na sua vontade a transposição pura e simples do desconto penal, por lacuna de regulamentação, sendo certo que o único (desconto) previsto no tempo de cumprimento da medida de internamento é o atinente à fuga e não regresso após saída autorizada (cf. artigo 155. °, n.º 1 e 2, da LTE).
190 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Rodrigues da Costa). De acordo com os fundamentos constantes deste voto
vencido, considera-se que se deveria ter fixado jurisprudência no seguinte
sentido: “Em processo tutelar educativo, e na sequência da aplicação de uma
medida de internamento, é aplicável, por analogia, a norma do artigo 80.º do
Código Penal, devendo proceder-se ao desconto, naquela medida, do tempo
de permanência do menor em centro educativo, em virtude da sujeição a
medida cautelar de guarda”.
A amplitude da divergência dentro do Pleno das Secções Criminais do
Supremo Tribunal de Justiça sugere que esta questão não se encontra, em
definitivo, ultrapassada149. Aliás, no âmbito do trabalho de campo, ela
ressurgiu, não na vertente das divergências de interpretação, mas da
discordância quanto ao sentido da decisão.
Se a jurisprudência – enquanto “momento de objectivação e
estabilização de uma já experimentada realização problemático-concreta do
direito, com o valor normativo que resulta de uma presunção de justeza dessa
realização” (Neves, 1993: 156) – colmatou a indefinição jurídica quanto à
possibilidade ou não de desconto da medida cautelar de guarda na medida
tutelar educativa, já não teve tal condão quanto aos restantes problemas
identificados no anterior projecto de investigação.
Os operadores entrevistados continuam a expressar soluções diversas
relativamente à possibilidade de desistência de queixa e ao internamento em
regime semiaberto por período de um a quatro fins-de-semana. Mas, o sentido
do discurso dos entrevistados mudou de forma substancial. Assim, surge a
segunda situação significativa emergente do trabalho de campo realizado: em
geral, apagou-se no discurso dos actores aplicadores da lei o sentimento de
inquietação pela indefinição da solução jurídica. As decisões díspares sobre
casos análogos continuam a preencher o discurso dos entrevistados. No
149 Sobre esta questão, cf. Duarte-Fonseca (2005).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
191
entanto, surgem nos seus discursos como uma constatação da normalidade da
realidade vivida, assumindo as dissemelhanças interpretativas e perfilhando
posições de iure condendo, muitas vezes associadas a diferentes soluções
legislativas quanto a questões conexas.
É por parte de quem tem que actuar de acordo com as orientações
definidas pelo aplicador da lei (aqui em sentido lato, incluindo também o
Ministério Público), nomeadamente, os órgãos de polícia criminal, que surge
um maior desassossego com aquela realidade, atendendo, sobretudo, aos
seus destinatários:
É um termo muito vago e que provoca muitas interpretações – esse é outro dos problemas do nosso sistema jurídico porque há interpretações para todos os gostos. No MP, cada procurador tem a sua interpretação, o que coloca as polícias (que é quem actua no terreno) numa situação muito complicada. E, geralmente, o que isto provoca é que, na dúvida, não se faz. Salvaguarda-se o que se pode. E portanto, só se actua quando há um perigo mesmo marcado, que seja de tal maneira evidente que não possa dar azo a interpretações divergentes. (…) Quer a LTE, quer a lei de protecção estão sujeitas a inúmeras interpretações e isso dificulta o trabalho de toda a gente. (…) repare que os próprios procuradores têm liberdade de interpretação dos factos. E eu lembro-me de estar numa reunião com o procurador e este ter uma interpretação sobre determinado facto e a procuradora-adjunta dizer, claramente, que não fazia assim nos seus processos. Daí a dificuldade. Não sei para quem o processo vai e mesmo sabendo, não posso dizer ao meu agente que faça assim se for o procurador x, mas se for o procurador y, já é de outra maneira. Isto provoca o tal sentimento de impunidade. E tal deve-se há falta de certeza e segurança jurídica. E nos jovens isto tem muita importância. Um jovem tem que ter uma família com valores de um determinado tipo de certeza e coerência. Naturalmente que, um pai que diz sim e a mãe que diz não, as crianças interpretam isso a seu favor. Passando isso ao sistema jurídico, acontece o mesmo (Ent. 3OPC).
A clivagem no discurso dos aplicadores da lei assume particular relevo
quanto à questão da relevância ou não da desistência de denúncia por parte do
ofendido.
O artigo 72.º, n.º 2, da Lei Tutelar Educativa (LTE), prevê expressamente
que a legitimidade para a denúncia cabe ao ofendido nos casos em que o facto
praticado pelo jovem for qualificado como crime, cujo procedimento depende
192 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
de queixa ou da acusação particular150. Apesar de prever expressamente o
impulso do ofendido para a instauração de inquérito tutelar educativo no caso
de factos qualificados como crime de natureza semipública ou particular, a lei
omite qualquer referência à possibilidade de desistência desta denúncia por
parte do ofendido que, a ter relevância jurídica, determinaria o arquivamento
dos autos.
Tal omissão determinou, desde o início da entrada em vigor da lei,
posições divergentes quer na doutrina151, quer nas decisões proferidas nos
tribunais quanto a casos análogos, que não foram apaziguadas por qualquer
intervenção de cariz jurisprudencial.
Assim, decisões divergentes proferidas no mesmo tribunal continuam a
ser uma realidade. Para uns, a LTE não dá qualquer relevância à vontade do
ofendido para efeitos de extinção do procedimento tutelar educativo:
No outro dia foi uma bicicleta à porta de um supermercado. O miúdo até lá foi devolvê-la e tudo. O senhor veio cá dizer que não queria nada, porque o rapaz já tinha ido entregar a bicicleta. Mas, o que é certo é que não havia nada a fazer (Ent. 5J).
Para mim não admite desistência. Nós podemos sempre arquivar os processos quando achamos que não há necessidade de educação para o direito. Não é uma terceira pessoa que não conhece o processo que vem determinar o seu destino (Ent. 4MP).
150 A Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 266/VII, de 17 de Abril de 1999, assume
expressamente tal opção legislativa: “a relevância atribuída à iniciativa do ofendido, nos casos em que segundo as regras comuns, o procedimento depende de queixa ou de acusação particular, pode parecer contraditória com as finalidades do processo. Mas não é, no plano de harmonização de interesses. Na verdade, as condições de procedibilidade estão ligadas ou à reduzida gravidade ou a necessidades de tutela de certos direitos da vítima, entre os quais a intimidade. Qualquer das razões permanece válida quando o agente do facto é menor de 16 anos. Quanto à gravidade, porque se tornam menos imperativas as razões que determinam a necessidade de educação do menor para o direito e, havendo-as, será razoável atribuir-se a um membro da comunidade (o ofendido) o primeiro juízo sobre elas; quanto à tutela da vítima, porque a menoridade não diminui (pelo contrário, pode agravar) o interesse na disponibilidade do direito à acção”.
151 Defendendo a irrelevância da desistência da denúncia por parte do ofendido, cf. Rodrigues e
Duarte-Fonseca, 2003: 183. Tributário de posição contrária, cf. Carmo, 2002: 125-126.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
193
Há interpretações muito diferentes. Para mim a lei não permite. Mas isto é cada cabeça sua sentença. No mapa estatístico da PGD aparece lá “PTE findos por desistência de queixa”, o que quer dizer que pela PGD é admissível. Mas a lei não admite porquê? Primeiro, por uma razão dogmática. Existe uma diferença entre queixa e denúncia e a LTE fala em denúncia e não em queixa. Segundo, porque no processo penal quando há necessidade de queixa, fica na disponibilidade da pessoa no interesse de quem se pretende a recomposição da sua situação. Na LTE o processo é exigido no interesse do ofensor (Ent. 2MP).
Para outros, a lei, não só exige um impulso inicial por parte do ofendido
para se despoletar o inquérito tutelar educativo, como admite expressamente
que a desistência da vontade de prosseguir o procedimento tutelar educativo
contra o jovem deverá determinar o arquivamento dos autos:
Na minha interpretação a lei permite. (…) A vítima também tem o direito de não querer continuar (Ent. 3MP).
(…) o que está, actualmente, na lei é que depende de queixa do ofendido e que pode haver desistência (P3).
A diversidade jurisprudencial quanto a esta questão não é, no entanto,
vivida pelos entrevistados como perturbante, mas sim como uma verificação do
que sucede em tantos outros casos e domínios152.
Atente-se que não estamos aqui perante o que é comummente
apelidado por parte da Teoria do Direito como direito em acção, quando
interpretado e integrado de acordo com as concepções do momento, como
direito vivo e em permanente mutação e adequação. Falamos antes de claras
opções legislativas que, desde o seu nascimento, suscitaram decisões
díspares para casos absolutamente análogos.
152 “(…) se a intervenção tutelar educativa devia estar dependente da queixa do ofendido. Essa
é uma questão que vai levantar-se, pese embora haja algumas interpretações díspares, mas são interpretações e acórdãos há-os para todos os gostos como é normal ou habitual (…)” (P3).
194 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
No seu diagnóstico sobre a apelidada “crise da justiça”, Diogo Freitas do
Amaral (2000: 255) afirma que “outro dos mais sérios problemas da justiça
portuguesa (e decerto um dos que mais a desprestigiam aos olhos do público)
é a possibilidade de um qualquer supremo tribunal – e o mesmo se passa,
infelizmente, com o Tribunal Constitucional – adoptar e manter, sobre uma
mesma questão de direito, orientações contraditórias, conforme a secção que
julgou o processo ou até, em alguns casos, conforme o grupo de juízes a quem
coube apreciar a causa. Isto é, pura e simplesmente, intolerável, pois põe em
causa certeza do direito: sobre inúmeras questões importantes, o cidadão
português não sabe quais são os seus direitos e (pior ainda) sabe que certos
direitos lhe serão reconhecidos se o processo couber por sorteio à 1.ª Secção
lhe serão negados se for parar à 2.ª Secção! O mesmo supremo tribunal
adopta e mantém, sem nada ou pouco poder fazer em contrário,
jurisprudências contraditórias sobre as mesmas questões de direito, algumas
de importância capital. Há que pôr termo, urgentemente, a esta esquizofrenia
do nosso sistema judicial, que a legislação actual consente e para a qual
propõe vias de solução altamente ineficientes”.
No domínio da Lei Tutelar Educativa, a dificuldade de atingir uma
jurisprudência estabilizada é acrescida, dada a ausência de tradição de recurso
nestas matérias153.
O reduzido acervo jurisprudencial atinente ao processo tutelar educativo
poderá ter explicação no também diminuto número de processos existentes
nos tribunais (quando comparados com outras áreas do direito). Não obstante,
153 Após realizar um levantamento sobre os temas relacionados com a aplicação da Lei Tutelar
Educativa na jurisprudência publicada dos tribunais superiores. Chegámos à conclusão que o leque de acórdãos disponíveis sobre esta matéria é assaz reduzido. Reconduzem-se, essencialmente, aos seguintes temas: aplicabilidade do habeas corpus ao processo tutelar educativo; direito de audição do menor antes da decisão de prorrogação da medida cautelar; suficiência da decisão do Ministério Público para o arquivamento por desnecessidade de aplicação de medida tutelar quando estejam em causa vários factos qualificados pela lei penal como crime; requisitos do requerimento de abertura da fase jurisdicional e consequências da sua rejeição; e execução sucessiva de medidas incompatíveis.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
195
a existência de interpretações distintas sobre uma mesma questão jurídica que
vigoram durante quase uma década tornar expectável a emergência de
recursos sobre tais matérias, a verdade é que tal não sucedeu. O facto de
estarmos perante uma área do direito pouco apelativa para a advocacia, que é
percepcionada como pouco interventiva, poderá também concorrer para a
escassez de recursos154.
Como referíamos anteriormente, a questão da relevância ou não da
desistência de denúncia por parte do ofendido surge, no discurso dos
operadores entrevistados, intrinsecamente aliada à crítica, por parte de alguns,
da solução normativa encontrada para a intervenção inicial do ofendido. Não
raras vezes, durante o trabalho de campo, surgiram vozes contra a
necessidade de denúncia por parte do ofendido para haver uma intervenção
tutelar educativa155:
A intervenção tutelar educativa não devia estar dependente de queixa do ofendido. Pelo que, todos os factos de que houvesse conhecimento deveriam gerar processo (…). Todos os factos podiam dar origem a intervenção tutelar educativa. Isto porque, se há aqui uma necessidade de educação do menor para o direito, o Estado se permite ter legitimidade de intervenção (P3).
A superfluidade do impulso por parte do ofendido surge como resposta à
necessidade de intervenção do jovem num estádio inicial do seu percurso de
delinquência, por um lado, e como forma de mitigar a delinquência omissa dos
registos oficiais de delinquência juvenil, por outro lado.
154 É de notar que os acórdãos publicados relacionados com a LTE surgem fundamentalmente
em casos em que foi aplicada a medida tutelar educativa de internamento, ou seja, nos casos-limite do sistema.
155 Esta questão assume, também, pertinência numa outra perspectiva. Por alguns
entrevistados, foi manifestada a preocupação com as dificuldades de apresentação de denúncia pelo ofendido, devido a algum receio de futuras represálias, principalmente quando se trata de jovens que residem na mesma área geográfica que as vítimas.
196 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
(…) esta questão da queixa (…) é pertinente porque, provavelmente, haverá muitos casos que não chegam a ser conhecidos, porque a vítima não apresenta queixa. E pode haver variadíssimas razões para não apresentar queixa – os tais receios, achar que não vale a pena, e mesmo as discriminações sociais, porque, por exemplo, o filho de pai rico paga e acabou e nem chega a entrar no sistema. E a criança que não tem pais que possam pagar, essa é que entra no sistema. Eu simpatizo com essa ideia de não ser preciso queixa, porque pode haver necessidades de educação para o direito e não haver queixa. Haver crime, não haver queixa e haver necessidade de educação para o direito, por causa dessa discriminação, dessa disparidade, etc. (P8).
Insistindo na vertente preventiva, os que defendem a dispensa de
denúncia por parte do ofendido vêem, ainda, nesta solução uma outra
virtualidade: o facto de o jovem tomar contacto com as consequências do acto
praticado num momento temporal mais próximo da prática do facto.
Portanto, eu diria que o facto de (…) esse jovem ser chamado, ser logo confrontado com isso – eventualmente pode até ser na polícia, mas muito próxima do momento em que o facto ocorreu, tem de certeza um impacto significativo na modificação do comportamento. Outra coisa é decidir que vai ser ouvido, mas aí vem a questão de quando será ouvido, e daí por um mês já não tem impacto nenhum. Digamos que me agrada essa perspectiva, que seja sentida pelo menor, independentemente do contexto onde é ouvido, como consequência daquilo que fez. E há outro princípio também muito importante, que é, dizendo a expressão inglesa que muito me agrada – the first cut is the deepest. Isto é, a primeira pancada pode ser a mais eficaz e a que causa mais impacto e, muitas das vezes, nós fazemos isto. É a velha história da admoestação (P1).
Contudo, na perspectiva dos entrevistados, a alteração da LTE no
sentido da prática de qualquer facto qualificado pela lei como crime dar origem
à intervenção tutelar educativa, independentemente da vontade do ofendido,
iria exigir muito mais da acção do Ministério Público.
O MP teria aí um princípio de oportunidade perante cada caso concreto e, até, de acordo com o percurso, a personalidade do infractor, o facto de já ter cometido muitos factos em que não houve queixa do ofendido porque este nada queria – podia ter aí um papel de oportunidade de instaurar ou não o inquérito tutelar educativo. Ou então, encaminhava a situação, tomando as necessárias providências, no âmbito da promoção e protecção (P3).
Aquela posição está longe de ser consensual, esbarrando com a posição
assumida por alguns operadores que denunciam uma certa tendência para a
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
197
defesa de uma hiperjudicialização dos conflitos em matéria tutelar educativa,
alertando para a reflexão mais lata sobre o papel do sistema judicial e,
sobretudo, sobre a selectividade dos casos que, efectivamente, devem passar
à fase jurisdicional.
Nós temos aqui um procurador que acusa tudo. Até acusa duas estaladas entre miúdos. Acusa mesmo sem haver queixa. Vai pelo 146.º ou 143.º. (…) Aqui entendeu-se que era preciso um MP a controlar os miúdos como criminosos. Ele acusa tudo. Mas, depois os procuradores não seguem a mesma tendência nos julgamentos (…).E não é inócuo trazer um miúdo à sala de audiência (Ent. 4J).
Eu tive um miúdo aqui que veio a julgamento por falsas declarações. Ele era guineense e quando se identificou na polícia deu-lhes a sua alcunha. Foi acusado por falsas declarações. Veio cá o pai explicar que o nome que ele tinha dado era o nome pelo qual era conhecido (Ent. 5J).
À semelhança do que verificámos no nosso estudo referido, continua a
verificar-se uma aplicação díspar quanto à determinação de internamento em
regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-semana, ora como
medida substitutiva pelo incumprimento de medida tutelar não institucional, ora
como forma de reforçar o cumprimento da medida não institucional (não se
substituindo a esta).
Alguns entrevistados chamam, também, a atenção para o facto de este
instrumento da lei demandar a preparação dos Centros Educativos para
receber estes jovens.
Seria uma coisa pensável e sem problemas – tal como existe em outros sistemas, até como medida, e é inspirado na legislação alemã – e funcionaria se os centros educativos estivessem adequadamente preparados para o fazer. Não estando, é evidente que se torna difícil.
A outra questão que se tem levantado é fácil de resolver. É indicar na lei que o internamento de fim-de-semana – que é uma consequência do não cumprimento de uma medida não institucional – não faz cessar essa medida não institucional. É um complemento em termos de advertência. Agora, a verdade é que tenho muitas reservas em manter o internamento de fim-de-semana se os centros, de facto, não se prepararem para o efeito.
198 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Agora, não posso é condenar a medida, como tese de princípio, porque ela funciona em outros sistemas (P4).
2.2 Aperfeiçoamentos legais
Verificámos algum paralelismo entre as questões jurídicas que se
levantavam há seis anos atrás, no último trabalho de investigação realizado
pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa sobre a Lei Tutelar
Educativa, e as questões que emergem agora.
No entanto, nem só de velhas questões cuidou o discurso dos
operadores entrevistados no âmbito deste trabalho. Surgiram, agora, novas
questões emergentes de um contacto mais duradouro com a nova lei: a
necessidade de apresentação por parte do jovem do plano de conduta para
aplicação da suspensão provisória do processo (que deixa a aplicação de tal
instituto nas mãos das diferentes práticas dos profissionais do foro e dos
técnicos de reinserção social)156; e o reduzido âmbito do conceito de flagrante
delito em processo tutelar educativo. Reclama-se, ainda, a necessidade de
revisão da conceptualização de algumas medidas e a necessidade de
redefinição do conteúdo da execução da medida de internamento. A questão
da ausência de resposta institucional e legal aos jovens carentes de
necessidades especiais ao nível da saúde mental que tenham praticado factos
qualificados pela lei penal como crime foi, novamente, levantada. Por último,
surgiu, ainda, no discurso dos operadores uma preocupação com o âmbito de
aplicação futura, que se anuncia, da vigilância electrónica aos jovens.
Quanto à segunda questão, de acordo com o disposto no artigo 52.º da
LTE, “o menor só pode ser detido em flagrante delito por facto qualificado como
crime punível com pena de prisão” (n.º 1), sendo que “a detenção só se
156 A primeira das questões enumeradas será mais detidamente analisada em ponto próprio.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
199
mantém quando o menor tiver cometido facto qualificado como crime contra as
pessoas a que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão
superior a três ano ou tiver cometido dois ou mais factos qualificados como
crimes a que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, superior a
três anos, cujo procedimento não dependa de queixa ou de acusação
particular” (n.º 2).
Segundo alguns entrevistados, a redacção da lei não é clara quanto às
situações em que é possível manter a detenção.
A lei é um pouco confusa no que toca à questão do flagrante delito, ou seja, se estamos legitimados a manter ou não a detenção do menor para ser presente ao juiz (Ent. 2OPC).
Na opinião de outros, a possibilidade de manutenção da detenção
deveria ser alargada a outros factos qualificados como crime.
O artigo 52.º da LTE define um conceito de flagrante delito mais reduzido do que o do processo penal. Se um gang rodear um jovem a quem ficam com um telemóvel, esta situação está impedida de vir a tribunal para primeiro interrogatório. O roubo não é crime contra as pessoas, mas sim contra o património. Só é possível o primeiro interrogatório se estiverem a assaltar duas pessoas (Ent. 2MP).
O grande problema está no tipo de ilícito. Se não for um crime contra pessoas, um roubo em que há violência, ou um homicídio… Ou seja, tratando-se apenas dos furtos ou do dano, limitamo-nos a identificar o menor, fazer o auto e encaminhar para o tribunal. A nossa intervenção acaba por aqui (Ent. 5OPC).
No lastro da defesa do alargamento do conceito de flagrante delito e da
possibilidade da manutenção da detenção surge, via de regra, a invocação da
premência de uma resposta expedita àqueles jovens, por forma a incorporar a
consciência da consequência dos actos praticados. Aliás, a importância da
intervenção próxima da prática do facto delituoso, o que nem sempre, ou
raramente, é compatível com os tempos dos tribunais, é ressaltada, não só
200 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
pelos vários autores que se dedicam ao estudo deste fenómeno157, mas
também pelos operadores judiciários que nele intervêm.
A grande dificuldade que eu encontro é a lentidão do processo. Essa é a grande dificuldade. Entre o momento em que o menor é identificado, da situação de desvio, e a decisão passa muito tempo. Na prática, estamos a falar de meses e por vezes de anos. Por vezes, há situações limite em que quando finalmente há uma decisão o menor já ultrapassou a idade para se aplicar a LTE. Quer dizer, eu tenho ali um menor que é abrangido por um regime que tem um espaço temporal reduzido. E repare, eles começam a cometer os primeiros actos tipificados como crimes, pelos 13 ou 14 anos. O miúdo entra no sistema. E quando se consegue uma decisão, muitas vezes, o menor já está a atingir a idade limite para ser alvo de alguma intervenção. Esta intervenção tem de ser rápida, tem de ser às semanas, não pode ser aos meses, e nunca de maneira alguma, aos anos (Ent. 1OPC).
Por outro lado, penso que se deve intervir o quanto antes. E, de facto, um erro da LTE é intervir demasiadamente tarde (Ent. 3OPC).
No entanto, são os próprios entrevistados a reconhecer que a lentidão
do processo não está umbilicalmente associada a esta lei, mas sim a factores
de natureza cultural e organizacional, amplamente debatidos por nós no âmbito
de outros trabalhos158, que também afectam a sua aplicação prática.
Já na vigência de outras leis eu não via grande celeridade. Portanto, não é por esta LTE que o processo se tornou mais lento. A morosidade da justiça é um problema muito antigo e que se verifica a muitos níveis. E nos menores, onde devemos intervir rápido, é um problema ainda maior. Devia existir aqui um mecanismo um pouco semelhante ao processo sumário para área penal, aqui tem de existir uma lógica semelhante. Eu sei que há muitos cuidados que se têm de ter, porque é um menor... Mas o problema é esse, perdemos muito tempo em avaliações e ponderações e na prática há inacção. O que o jovem sente é impunidade. Ele consegue roubar uma, duas vezes…sete vezes… (Ent. 1OPC).
157 Cf. ponto I.1.
158 Cf, a título exemplificativo, Gomes (coord). 2009. A Justiça Penal – uma reforma em
avaliação. CES/OPJ: Coimbra; Gomes (coord). 2009. Os Caminhos Difíceis da “Nova” Lei Tutelar Educativa – Uma avaliação de dois anos de aplicação da Lei Tutelar Educativa; Gomes (coord). 2003. A Reinserção Social dos Reclusos – Um contributo para o debate sobre a reforma do sistema prisional. CES/OPJ: Coimbra.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
201
Os operadores manifestaram, ainda, a necessidade de cuidado com, por
um lado, a conceptualização da medida tutelar não institucional de conteúdo
obrigacional e, por outro, com o conteúdo da medida tutelar de internamento.
O leque de medidas tutelares educativas previstas na lei é amplo,
prevendo-se como medidas não institucionais as seguintes: admoestação159;
privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter permissão para
conduzir ciclomotores160; reparação ao ofendido161; realização de prestações
económicas ou de tarefas a favor da comunidade162; imposição de regras de
159 A admoestação é a medida tutelar educativa não institucional que consiste na repreensão
solene pelo juiz ao jovem, na presença do defensor e do MP. Como prevê o artigo 9.º da LTE, essa repreensão consiste na explicação do carácter ilícito da conduta do jovem e suas consequências, e a exortação no sentido de que o jovem deve adequar o seu comportamento às normas e valores jurídicos.
160 A medida tutelar educativa de privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter
permissão para conduzir ciclomotores pode ser aplicada por um período mínimo de um mês e máximo de um ano (artigo 10.º da LTE).
161 A medida tutelar educativa de reparação ao ofendido pode consistir na apresentação de
desculpas; compensação económica, total ou parcial, pelo dano patrimonial que o ofendido sofreu; e realização, em benefício do ofendido, de uma actividade ligada ao dano sofrido. Nos termos do artigo 11.º da LTE, a primeira modalidade pode revestir uma das seguintes duas formas: (1) o jovem manifestar, na presença do juiz e do ofendido, a intenção de não repetir actos semelhantes; (2) agir simbolicamente de forma que mostre arrependimento pelo acto cometido. O pagamento da compensação económica pode ser efectuado em prestações, devendo o juiz atender às disponibilidades económicas do jovem. A terceira modalidade – actividade exercida em benefício do ofendido – não pode ocupar mais de dois dias por semana e três horas por dia, devendo ter em consideração o período de repouso do jovem e o seu horário escolar. Esta actividade tem a duração máxima de doze horas.
162 A LTE prevê, no seu artigo 12.º, a medida de prestações económicas ou tarefas a favor da
comunidade, que “consiste em o menor entregar uma determinada quantia ou exercer actividade em benefício de entidade, pública ou privada, de fim não lucrativo”. A actividade exercida tem a duração máxima de 60 horas, não podendo exceder os 3 meses. Embora o objectivo geral desta medida seja, tal como o das restantes medidas tutelares educativas, educar o jovem para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade (artigo 2.º, da LTE), ela pretende também responsabilizar o jovem pelo facto cometido e pelas suas consequências; possibilitar a realização de uma tarefa útil para a comunidade; reparar, de forma simbólica, o dano provocado; e fazer compreender ao jovem o sentido e a utilidade das tarefas para a comunidade.
202 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
conduta163; imposição de obrigações164; frequência de programas formativos165;
e acompanhamento educativo166 (artigo 4.º da LTE).
A medida institucional, prevista no artigo 4.º da LTE, é o internamento
em centro educativo. Esta medida, a mais grave aplicável a jovens entre os 12
e os 16 anos que tenham praticado factos qualificados pela lei como crimes
(artigo 1.º da LTE), é a que implica maior restrição da liberdade e da
autonomia, consistindo, de acordo com o n.º 1 do artigo 17.º da LTE, no
afastamento temporário do jovem do seu meio habitual de vida e da utilização
de programas e de métodos pedagógicos, a interiorização de valores
conformes ao direito e a aquisição de recursos que, no futuro, lhe possibilitem
163 A medida de imposição de regras de conduta visa criar ou fortalecer as condições para que
o jovem se comporte de forma adequada às normas e valores essenciais da vida em comunidade. A lei faz referência a algumas das regras de conduta que o Tribunal poderá impor: não frequentar certos meios, locais ou espectáculos; não acompanhar determinadas pessoas; não consumir bebidas alcoólicas; não frequentar certos grupos ou associações; e não ter em seu poder certos objectos. Tais regras podem ser aplicadas por um período máximo de dois anos.
164 A medida tutelar educativa de imposição de obrigações tem o objectivo de sedimentar o
percurso escolar ou de formação profissional do jovem, bem como fortalecer as condições psicobiológicas necessárias ao desenvolvimento da sua personalidade. Entre as obrigações impostas podemos encontrar a obrigação de frequentar um estabelecimento de ensino, com controlo de assiduidade e frequência; um centro de formação profissional, ou seguir uma formação profissional; sessões de orientação em instituição psicopedagógica e seguir as orientações que lhe forem prescritas; praticar actividades em clubes ou associações juvenis; e submeter-se a programas médicos (por exemplo, médico psiquiátrico) para tratar casos de habituação alcoólica, consumo habitual de estupefacientes, doença infecto-contagiosa ou sexualmente transmissível e anomalia psíquica.
165 A medida tutelar educativa de frequência de programas formativos tem em vista a
participação do jovem em programas de ocupação de tempos livres; educação sexual; educação rodoviária; orientação psicopedagógica; despiste e orientação profissional; aquisição de competências pessoais e sociais; e em programas desportivos.
166 A medida de acompanhamento educativo consiste na execução de um projecto educativo
pessoal “que abranja as áreas de intervenção fixadas pelo Tribunal” (artigo 16.º, n.º 1, da LTE), com a duração mínima de 3 meses e máxima de 2 anos. Esta medida pode ser combinada com outras medidas tutelares educativas, pois ao jovem pode ser aplicada cumulativamente, por mais do que um facto, uma medida de acompanhamento educativo e uma qualquer outra medida não institucional a executar simultaneamente. A medida de acompanhamento educativo pode, também, ser articulada com uma medida de internamento em centro educativo, quando a revisão desta última conduz à sua substituição.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
203
orientar a sua vida de forma social e juridicamente responsável167. A medida de
internamento pode ser aplicada em regime aberto, em regime semi-aberto e
em regime fechado, sendo executada em Centro Educativo, por determinação
do Tribunal168.
Os entrevistados no âmbito do presente projecto de investigação
defendem que a lei lhes fornece uma amplitude suficiente de medidas tutelares
educativas a aplicar, que permitem responder às necessidades de educação
para o direito do jovem. No entanto, alguns afirmaram que a lei não responde
com detalhe suficiente ao conteúdo das medidas, nomeadamente no caso das
medidas de conteúdo obrigacional não restaurativo.
Relativamente às medidas de conteúdo obrigacional não restaurativo, como a medida de imposição de condutas e obrigações, era urgentíssimo, de facto, rever a conceptualização
167 O artigo 7.º, n.º 1, a LTE determina que a medida tutelar “deve ser proporcionada à
gravidade do facto e à necessidade de educação do menor para o direito manifestada na prática do facto e subsistente no momento da decisão”. A medida de internamento aplica-se aos casos em que, encontrando-se reunidos os respectivos pressupostos legais, não é adequada e suficiente nenhuma medida não institucional, dada a gravidade dos factos e as necessidades de educação para o direito. Quanto à duração das medidas de internamento, a lei determina no artigo 7.º, n.º 2 da LTE que as mesmas não podem, “em, caso algum, exceder o limite máximo da pena de prisão prevista para o crime correspondente ao facto”. Assim, a duração da medida de internamento está directamente referenciada ao limite máximo da pena de prisão prevista para aquele facto.
168 A Portaria n.º 102/2008, de 1 de Fevereiro, procedeu à revisão da Rede Nacional de
Centros Educativos, com vista a, como se lê no preâmbulo do diploma, “uma melhor e maior eficácia na distribuição, quer territorial quer de recursos, que permitam uma resposta mais qualificada em termos educativos e formativos, bem como dar resposta a um requisito fundamental que consiste na proximidade face ao local de proveniência dos menores, estabelecido na Lei Tutelar Educativa”. Nesses termos, a Rede Nacional de Centros Educativos é actualmente composta pelos seguintes equipamentos: a) Centro Educativo de Santa Clara, em Vila do Conde; b) Centro Educativo de Santo António, no Porto; c) Centro Educativo do Mondego, em Cavadoude, Guarda; d) Centro Educativo dos Olivais, em Coimbra; e) Centro Educativo Padre António Oliveira, em Caxias, Oeiras; f) Centro Educativo da Bela Vista, em Lisboa; g) Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa; h) Centro Educativo da Madeira, no Santo da Serra, Funchal; e i) Centro Educativo dos Açores, tendo estes dois últimos sido criados pela Portaria n.º 102/2008, de 1 de Fevereiro. Por esta Portaria foram, assim, extintos os Centros Educativos seguintes: a) Centro Educativo de Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia; b) Centro Educativo de São José, em Viseu; c) Centro Educativo de São Fiel, em Louriçal do Campo, Castelo Branco; d) Centro Educativo Dr. Alberto do Souto, em Aveiro; e) Centro Educativo de São Bernardino, em Atouguia da Baleia, Peniche; e f) Centro Educativo de Vila Fernando, em Vila Fernando, Elvas.
204 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
destas medidas que ficou muito mal resolvida na lei. De facto, há, justificadamente, muitas queixas a este respeito porque está mal desenhado. Neste sentido, a nova lei belga é, talvez, das legislações europeias, a que melhor resolve estas medidas de conteúdo obrigacional não restaurativo. Entre nós ela devia ser melhor definida. Há ali muitas confusões (P4).
E, também, no que respeita à medida de frequência de programas
formativos.
Uma outra necessidade, ligada à regulamentação das medidas não institucionais, era instituir verdadeiros programas educativos adaptados aos tipos de delinquência mais frequentes para frequência na comunidade. Não é fazer apenas programas de meras competências pessoais e sociais como tem sido feito (P4).
Estes entrevistados defendem que o tribunal se limita a aplicar a medida,
devolvendo aos técnicos de reinserção social o total controlo sobre o conteúdo
da sua execução, duvidando da suficiência dos programas aplicados aos
jovens delinquentes.
Eu sugeria que os programas dissessem à frente – empírica e cientificamente validados. Porque, essa questão das competências sociais pode ser uma “chachada”. Há, de facto, programas que estão empírica e cientificamente validados e aquilo resulta. Por isso, não temos de inventar nada, temos apenas de adaptar. É evidente que pode haver um ou outro ajustamento, em termos culturais por exemplo, mas na base já lá está, mais do que documentada. Não é uma panaceia. Tem literatura, efectivamente, que ajuda a tornar as coisas credíveis (P1).
À semelhança das medidas tutelares educativas não institucionais, o
conteúdo da execução da medida de internamento tem sido alvo de críticas.
Segundo Neves (2008), o tempo passado no centro educativo possibilita a
aquisição de algumas competências sociais, um alargamento do espectro
cultural e comportamental dos educandos, mas esse tempo pode “revelar-se
insuficiente para uma inversão consciente e sustentada das suas trajectórias”
devido, essencialmente, a duas razões: a escassez de trabalho específico de
intervenção com os educandos e a cisão com o exterior, imposta pelo quadro
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
205
legal previsto para o internamento em regime fechado e mesmo em regime
semiaberto.
O “acanhamento reeducativo” referido pelo autor, combinado com as
carências quantitativas e qualitativas dos funcionários do centro educativo
estudado, constitui, na sua perspectiva, “um obstáculo à exploração do carácter
potencialmente educativo das situações do quotidiano”, havendo a frequente
opção pela contenção dos educandos ou pela desvalorização dos seus
comportamentos em detrimento da mediação das relações; para a sua
infantilização; para o diminuto grau de exigências das aprendizagens; e para a
adopção de posições defensivas pelos funcionários.
Estas preocupações ressaltaram, também, no discurso dos operadores
entrevistados. Na perspectiva de alguns profissionais, o acompanhamento
dispensado ao jovem durante a execução da medida de internamento é
deficiente, no que respeita à reabilitação psicossocial, quer individual, quer em
termos de programas grupais, devendo explicitar-se, legalmente, qual o
conteúdo obrigatório da mesma.
Em termos organizativos têm de cumprir um programa de formação e alternância com a escolaridade, que os miúdos não têm tempo para fazer nenhum programa, quanto mais o acompanhamento individual! Portanto, há um problema, os técnicos não têm tempo para intervir – a não ser que intervenhamos aos sábados de manhã – porque não há uma hora e meia durante a semana para fazer o programa... O que eles fazem é formação e é escola. São aqueles programas de formação profissionalizante, com oficinas, ateliers etc., e depois, a escola (P9).
Ainda no âmbito das medidas, uma questão recorrente prende-se com a
reivindicação de maior combinação das medidas, bem como da articulação
com medidas no âmbito tutelar educativo.
O que não faz muito sentido é que o acompanhamento educativo que é cumprido no tempo. E o que é que acontece se no fim do período persistir a necessidade de educação? (P9).
206 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Uma outra questão é a duração das medidas em si mesma, por vezes
insuficiente para cumprir determinado programa ou objectivo. A defesa, em
geral, não foi pela alteração da duração das medidas, mas sim, pela
possibilidade de flexibilizar, de modo expedito, a sua duração. Esta alteração
da duração da medida teria que ser fundamentada e sempre por ordem judicial.
Das questões mais veementemente abordadas pelos entrevistados,
reportada como uma lacuna legal, foi a da carência de respostas para os
problemas relacionados com a saúde mental das crianças e jovens que
pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime. Estas lacunas já
haviam sido salientadas em 2004, aquando do estudo “Os Caminhos Difíceis
da “Nova” Justiça Tutelar Educativa. Uma avaliação de dois anos de aplicação
da Lei Tutelar Educativa”.
Naquele estudo referimos que os jovens com necessidade de respostas
clínicas de foro psiquiátrico eram tendencialmente encaminhados para o Centro
Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, no qual, entre os funcionários, existia
um médico psiquiatra e de um terapeuta da fala.
A ausência de diferenciação e especialização da intervenção para
jovens com necessidades especiais de saúde mental foi, novamente, referida
pelos operadores.
Além de ser urgente diferenciar e especializar a intervenção em centro educativo, eu acho que era necessário instituir o internamento para tratamento médico e médico-psicológico, mesmo que não executado numa instituição da justiça. (…) Não temos respostas da saúde, mas é preciso exigi-las, porque os poucos números que temos vão, exactamente, no sentido de grandes carências a este respeito (P4).
É que nós sabemos, também, que muitos dos jovens que estão com medidas de internamento, têm problemas graves de saúde mental e, com certeza, não devia ser aquela instituição fechada a adequada para aquele problema (P3).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
207
Na perspectiva de um entrevistado, o sistema não está apetrechado
para responder às necessidades de jovens que revelem psicopatologias
associadas à delinquência juvenil.
O que se faz é um décimo ou menos do que devia ser feito (…). Porque, de facto, não há um modelo decente que atenda à saúde mental ou à psicopatologia associada ao comportamento criminal. (…) Os indivíduos que têm uma medida tutelar educativa de internamento, supostamente, são os que tiveram um acto mais danoso ou mais gravoso, do ponto de vista criminal e de afectação dos direitos do outro. Só que também temos indivíduos que, provavelmente, tiveram um percurso anti-social e um desvio comportamental desde mais cedo na vida (P9).
Por último, a eventual aplicação à justiça juvenil de mecanismos de
vigilância electrónica foi colocada em discussão pelos vários operadores
entrevistados. Alguns entrevistados revelaram dificuldade em compreender a
utilidade da vigilância electrónica na justiça de crianças e jovens, tendo
presente o seu fundamento de educação do jovem para o direito.
Mas qual é a eficácia das pulseiras? Qual é a finalidade se o objectivo das medidas é de educação do menor para o direito e de inserção social?
Tem que ser avaliado na finalidade da medida e num plano integrado. Porque em termos de inserção social, qual é o efeito relativamente à mentalidade e à inserção dos valores? Eu acho que é uma medida que tem que ser discutida (P3).
Não obstante, os entrevistados foram consensuais a defender que o
recurso à vigilância electrónica apenas poderá ser visto como uma alternativa a
medidas restritivas da liberdade, e nunca como um instrumento que garanta a
execução de medidas não institucionais.
Tem havido grandes ventos no sentido de introduzir no sistema juvenil a vigilância electrónica, mas eu espero que a vigilância electrónica seja instituída como uma alternativa ao internamento e não como um reforço de medidas executadas na comunidade. Porque é bom lembrar, sobretudo para os que se têm preocupado muito com a penalização do sistema de justiça juvenil, que nos adultos a pulseira electrónica é uma privação de liberdade. Por isso, é bom respeitar a proporcionalidade e, ao instituí-la no sistema de justiça juvenil, a colocar a funcionar só como alternativa à privação de liberdade institucional (P4).
208 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
DIVERSÃO E MEDIAÇÃO: DOIS INSTITUTOS
POR CUMPRIR?
3
3. DIVERSÃO E MEDIAÇÃO: DOIS INSTITUTOS POR CUMPRIR?
Introdução
Ciente da diversidade de situações que chegam ao sistema de justiça
formal de crianças e jovens, a Lei Tutelar Educativa previu a possibilidade de
respostas processuais diferenciadas. Prevê-se, assim, a possibilidade de
arquivamento liminar do inquérito, o arquivamento por desnecessidade de
aplicação de medida tutelar e a suspensão do processo. A lei prevê, ainda, a
possibilidade de recurso à mediação que, como se verá, tem tido uma baixa
utilização. Pretendemos aqui reflectir sobre a possibilidade de maior utilização
deste instituto, não só como meio de evitar a submissão do jovem a
julgamento, mas também como mecanismo ou instrumento de execução da
medida aplicada.
3.1 A suspensão do processo
A suspensão do processo é gizada pela Lei Tutelar Educativa como uma
das manifestações mais expressivas daqueles mecanismos de diversão,
obviando à submissão do jovem ao efeito estigmatizante da audiência, quando
o facto qualificado pela lei penal como crime praticado seja punível com pena
de prisão de máximo não superior a cinco anos. No entanto, com o objectivo de
apelar à participação do jovem, como forma de o envolver na responsabilização
212 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
pelo facto praticado, a lei determina que “o menor apresente um plano de
conduta que evidencie estar disposto a evitar, no futuro, a prática de factos
qualificados pela lei como crime” (cf. artigo 84.º, n.º 1, da LTE).
Esta enunciação legal tem determinado práticas diversificadas nos
diversos tribunais. Alguns magistrados defendem que o texto legal impõe que
seja o próprio jovem a sugerir a suspensão do processo, através da
apresentação do plano de conduta. Nesta perspectiva, não caberá ao
magistrado do Ministério Público sequer sugerir tal possibilidade legal. Para os
magistrados que defendem esta posição, o baixo número de suspensões deve-
se, sobretudo, à falta de proactividade dos defensores dos jovens.
Durante 6 anos trabalhei em Cascais em processo penal. Foi em Cascais que mais se aplicaram suspensões provisórias do processo e onde se aplicaram as primeiras pulseiras electrónicas, onde se aplicaram mais prestações de trabalho a favor da comunidade. Isto tudo porque são medidas que podem ser aplicadas oficiosamente. Mas a LTE, no artigo 84.º, exige que o menor apresente um plano de conduta. Não é ao MP que incumbe dizer à pessoa para apresentar o plano de conduta. Em Cascais, os defensores faziam-no. Aqui não. (…) Isto passa tudo ao lado de pessoas que não querem saber disto. Se houvesse requerimento não tinha problema nenhum em aplicar. Defendo a transferência de competência para o MP desde que com o apoio de um relatório social (Ent. 2MP).
Noutras comarcas, é o Ministério Público a sugerir ao jovem a
apresentação do plano de conduta e a encaminhá-lo para os serviços de
reinserção social, com vista ao auxílio em tal tarefa.
O tribunal de (…), por exemplo – embora não tenha a ver com o que vocês estão a estudar – o que faz, por vezes, é pedir-nos um relatório social no âmbito do inquérito, e depois quando a procuradora chama o jovem, no momento da audição do menor, a própria procuradora junto com o advogado, ajuda o menor a elaborar o plano de conduta. Ora aí, nesse momento, é-nos pedido já para acompanhar o jovem no âmbito de uma suspensão do processo e desistem do relatório, mas não é assim muito vulgar. Em (…) acontece, temos algumas situações destas de suspensão do processo (Ent. 1TRS).
Verificamos, assim, que a redacção legal determina, não só
interpretações e práticas diferenciadas, sujeitando os jovens a disparidades e
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
213
desigualdades de oportunidades intoleráveis, como um bloqueio a uma maior
aplicação deste instituto que deve ser sanado.
3.2 Mediação
No âmbito da Lei Tutelar Educativa, o recurso à mediação é, também,
visto como um importante mecanismo de diversão, que deveria ser sempre
ordenado durante o procedimento tutelar educativo. Apesar de prevista,
possibilitando uma ampla margem de conformação pela autoridade judiciária
competente, a mediação foi acolhida de forma tímida no seio da Lei Tutelar
Educativa.
Eu penso que uma das grandes deficiências da Lei Tutelar Educativa é não ter aberto espaço à mediação. (…) Acho que o legislador nesse propósito foi extremamente tímido. Eu acho que nós aí podemos aprender imenso com aquilo que os outros países fazem à nossa volta e não é nada complicado. Porque pode haver entidades administrativas a fazê-lo. Aliás, nós já as temos! No MJ temos o Gabinete para a Resolução Alternativa de Litígios, que pode alargar a sua competência a, por exemplo, casos de criminalidade bagatelar juvenil. (…) Eu defendo que esta foi uma grande falha da LTE, e compreendo-a. Na altura, numa cultura que era fundamentalmente judiciária, dar um passo no sentido de uma desjudiciarização era algo extremamente atrevido. Agora, acho que todo o balanço que temos destas experiências a nível europeu nos pode ensinar imenso (P4).
Não obstante a amplitude de respostas que o modelo comporta, elas
não permitirão responder ao desafio de conseguir respostas de oportunidade
fora do paradigma judiciário. A questão que se coloca é de saber se todos os
factos, ainda que qualificados com crime, mas de gravidade reduzida, devem
ter um tratamento dentro do processo judicial, ainda que não ultrapassem a
fase de inquérito no âmbito da acção do Ministério Público.
No curso do trabalho de campo foi possível discutir esta questão, aliás
em debate em outros países, onde se questiona a hiper-judicialização das
condutas de crianças e jovens. Poderemos, em traços largos, agregar as
opiniões sobre esta questão em duas categorias: de um lado, aqueles que
214 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
olham para o problema pelo ângulo do perigo social em que se encontram
essas crianças e jovens, dos seus contextos sócio-familiares, da dificuldade em
distinguir actos delinquentes, de comportamentos reactivos de revolta, de
frustração169, evidenciando a importância de uma intervenção estrutural sobre
as causas e os contextos das condutas170; do outro os que enfatizam o
princípio da legalidade e, ainda, para alguns prevalecendo a ideia de que a
delinquência de crianças e jovens deve ser tratada segundo uma lógica de
“tolerância zero”, não devendo nenhum acto delinquente praticado ficar sem
resposta, o que revaloriza o papel das instâncias judiciárias171.
O curso do trabalho de campo identifica, entre nós, o que poderemos
designar de uma terceira via que, valorizando os argumentos dos que
defendem uma intervenção estrutural, coloca a oportunidade da intervenção
judiciária, em primeiro lugar, na disponibilidade da vítima e, sobretudo, no papel
central do Ministério Público.
Confrontados com a questão de saber se perante a existência de um
qualquer facto criminoso toda e qualquer prática de um facto qualificado pela lei
169 Entre os delitos, importa distinguir entre aqueles que não buscam ganhos materiais e são
fruto da frustração, da rebelião e da afirmação identitária – desrespeito pela autoridade, lutas entre jovens, conflitos com as autoridades, violência em geral sem destinatário, etc. – e aqueles que, podendo acarretar violência instrumental, visam primeiramente o ganho material – furtos e roubos (Lagrange, 2002). Os sistemas de controlo social têm que saber encontrar respostas, devidamente articuladas, para uns e para outros (Lagrange, 2002).
170 Eles provêm de famílias numerosas, monoparentais com pais ausentes/desconhecidos (em
consequência de divórcio/separação ou de falecimento ou encarceramento de um dos pais), vítimas de negligência parental e de maus tratos (associados, por vezes, ao alcoolismo ou toxicodependência de familiares), com frequentes mudanças do núcleo familiar. Em alguns casos, fugiram de casa cedo, o que precipitou o seu contacto com o sistema de justiça de menores (Carvalho, 2003, 2005).
171 “A reflexão e a intervenção, no plano local, podem passar pela articulação com os OPC em
vista à detecção de bloqueios no tratamento das participações e outro expediente; à identificação de áreas de “cifras negras”, ou de situações de ilicitude típica que, embora conhecidas das instâncias formais de controlo, não estejam a ser formalizadas em participação. A obrigatoriedade de recepção de denúncia ou queixa pelos órgãos de polícia criminal deve inibi-los de proceder à avaliação casuística do mérito dos factos ou a pré juízos sobre o destino final das queixas” (cf. PGDL, 2009).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
215
penal como crime, por um jovem entre os 12 e os 16 anos, deve merecer a
intervenção do sistema judicial, a maioria dos magistrados entrevistados
entendem que a decisão deverá ficar nas mãos do Ministério Público.
No âmbito da intervenção do MP, não me repugna nada que a decisão de abrir ou não o inquérito tutelar educativo se socorresse de um sistema de mediação. Nós estamos a falar numa intervenção que é uma intervenção oficiosa do Estado e tem aqui de haver sempre alguma justificação para o MP instaurar ou não instaurar o procedimento. E há aqui, também, um conjunto de garantias – eu não ia mandar imediatamente para mediação se entendesse que não era preciso qualquer tipo de intervenção. No âmbito de um inquérito tutelar educativo, deve haver uma maior intervenção da mediação. Mas, no âmbito do inquérito, como é que pode ser feito? Porque o modo como está formulada a mediação na actual Lei Tutelar Educativa é, digamos, um “cheirinho”, extraordinariamente diminuto. Portanto, eu acentuaria essa intervenção e a possibilidade de recurso à mediação. (…) Também podemos melhorar toda a intervenção no sentido de acentuar uma intervenção não jurisdicionalizada. O primeiro passo era o MP ter a possibilidade muito mais alargada do que tem agora de arquivar, ou encaminhar para a promoção e protecção ou abrir um inquérito tutelar educativo. Mas, mesmo depois de abrir um inquérito tutelar educativo, acho que as possibilidades de suspensão provisória do processo e do recurso à mediação deviam ser acentuados (P3).
A maioria dos magistrados entrevistados, rejeitando, como princípio, a
mediação fora do sistema judicial, reclama uma maior abertura à escolha de
mecanismos de diversão ao dispor do Ministério Público, fazendo recair sobre
esta magistratura a responsabilidade pela mobilização, no caso concreto, das
diferentes soluções legislativas.
(…) se o MP estivesse assessorado pelos serviços de mediação – mediação no âmbito do MP – e se houvesse um alargamento das competências do MP em matéria de arquivamento do inquérito, de suspensão do processo, etc., isso também poderia contribuir para que, realmente, o MP fizesse a triagem e muitos casos não entrassem na fase jurisdicional (P7).
Eu penso que a diversão é uma solução boa, até porque numa sociedade complexa há necessidade de procurarmos soluções diversas. Mas, é preciso que sejam garantidos os direitos, tem que ser algo devidamente pensado, tem de haver sempre uma fiscalização, digamos, do MP. (…) Não faz sentido que os tribunais de família e menores tenham milhares de processos com meia dúzia de magistrados. A criança tem direito a um magistrado. Se formos para a solução da não diversão, tem direito ao magistrado, ao juiz, ao MP. Portanto, não faz sentido que vá alguém apreciar a sua conduta e nem fale com ele. Eu considero que tem de o ouvir. O magistrado do MP, bem preparado, ao ouvir o menor, e uma vez que vem ele e os pais, pode avaliar, não vai pedir logo relatório, vai ouvir e vai perceber (P6).
216 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Apesar de ser aquela a tendência da opinião da maioria, surgiram vozes
no sentido da criação de um espaço de mediação a montante do sistema
judicial.
Pode haver equilíbrios de interesses e resoluções de conflitos que não passem, forçosamente, nem por uma judicialização nem por uma judiciarização. E eu faço a distinção porque estou a empregar o conceito de judicialização relativamente a um julgamento, à intervenção de um juiz, e estou a empregar a palavra judiciarização para me referir à intervenção de um qualquer magistrado, ou seja, do próprio MP. Eu acho que a montante pode haver intervenção estadual, que pode ser pela via administrativa e que pode e deve incluir instâncias de mediação. Até em crimes particularmente graves, eu considero que é possível existir uma composição de interesses entre o menor e a vítima, porque isso é responsabilizador e educativo. E, ao ser assim, cumpre os objectivos da lei (P4).
Também simpatizo com a mediação, só que eu acho que as coisas podem colidir. É certo que também depende do que entendemos por mediação e como seria posto em prática, porque pode haver necessidades de educação para o direito e pode dar-se o caso – como a mediação tem aquele sentido muito reparador – de o menor pagar e, assim, reparar, sendo uma forma de a situação ficar resolvida, mas a necessidade de educação para o direito mantém-se. (…) O que é que vamos fazer com a mediação? Que medidas concretas vão ser propostas? Ou melhor, qual a forma de não entrar no sistema formal e de controlo? Por exemplo, estou a pensar nas escolas e nos pequenos crimes praticados por menores – será que é realmente necessário entrar no sistema? Não deveria haver um gabinete preparado para lidar com as situações das escolas onde estivesse um psicólogo, um jurista, etc.? Agora, nunca só na perspectiva de reparar a vítima, não pode ser só a vítima directa do crime a ficar satisfeita com a solução. Tem que ser algo diferente. Tem de ser a sociedade, enquanto vítima mais ou menos directa ou indirecta daquele facto, e tem de se ajudar o menor. E eu até considero que a expressão «educação do menor para o direito» é educação para os valores fundamentais da comunidade, para se comportar sem ferir esses valores. E nesse aspecto, até me satisfaz a expressão, educação para o direito. Eu estou-me a lembrar, do exemplo da Holanda, com uns gabinetes, que julgo que funciona bem, porque intervêm muito precocemente, para pequenos crimes (…). Muitas vezes não tem nada a ver com a reparação económica mas sim ir pintar as paredes que estão danificadas, reparar os bancos de jardim, etc. (P8).
Nós já temos, dentro do MJ, uma estrutura que pode pôr a funcionar soluções de mediação que evitem que o processo venha a nascer. O que me pode ser oposto é a opinião de que assim, deixa nas mãos da vítima a questão da educação ou não educação do menor para o direito. Mas eu considero que não. Eu não posso levar este princípio da educação do menor para o direito rigidamente até às últimas consequências! O que me interessa é a composição de interesses e a composição de interesses pode ser um sintoma muito positivo de responsabilização e de assunção do menor relativamente aos valores tutelares pela lei penal. E se isso acontecer, então para que é que eu quero intervir mais? Que sentido tem? (P4).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
217
A possibilidade de recurso à mediação fora do sistema judicial é, no
entanto, controversa. Levantam-se as seguintes objecções fundamentais: o
facto de o recurso à mediação sem controlo do Ministério Público poder
“esconder” a existência de um conjunto plúrimo de queixas; a protecção dos
direitos fundamentais do jovem; e a forma como a mediação é estruturada,
exigindo-se qualidade técnica.
Se o auto vier bem elaborado pelas polícias traz também já um relatório sobre o enquadramento familiar, etc.. Há casos em que é ouvir apenas. Nem sequer exigiam a intervenção de um sistema mais formal. De qualquer maneira, e mais uma vez, manifesto essa preocupação, que quaisquer serviços desse género têm que ser bem pensados do ponto de vista técnico, têm que dar resposta atempada e têm que ter alguns limites de intervenção por questões de direitos fundamentais. Na minha opinião, o modo como foram estruturados os serviços de mediação, no âmbito das respostas à mediação familiar e penal, não funciona e a qualidade da própria mediação é altamente posta em causa porque há uma lista de mediadores que intervêm caso a caso (P7).
Surgiram, ainda, opiniões no sentido do investimento na mediação, não
apenas como forma de composição do litígio e de obviar à submissão do jovem
a uma audiência, mas ainda como mecanismo ou instrumento ao serviço da
execução da medida aplicada.
Eu acho que é perfeitamente possível e que deve existir, antes do processo e mesmo em qualquer altura do processo, se ele vier a existir. Mesmo depois, na execução das medidas – e aí não estou a inventar nada, isto passa-se em Espanha – é possível a existência de mediação até ao fim do processo – e funciona, está provado que funciona. Nós devíamos avançar para tal solução e fazer evoluir o nosso sistema nesse sentido (P4).
O PAPEL DOS AGENTES DO SISTEMA JUDICIAL
4
4. O PAPEL DOS AGENTES DO SISTEMA JUDICIAL
Introdução
Desde o momento em que a prática de um ilícito desencadeia a abertura
de um processo e determina a necessidade de intervenção das instâncias de
controlo social, são vários os agentes que, no âmbito desse processo,
desempenham um papel activo e de cuja acção depende, em grande medida, a
qualidade e eficácia dessa intervenção. Se é certo que a decisão última cabe
ao juiz do processo e, por isso, assume um papel crucial, a verdade é que, por
um lado, a sua acção ocorre em um número muito limitado de casos (dado que
a maioria não transitará para a fase jurisdicional) e, por outro lado, na sua
assessoria, assume papel central a Direcção-Geral de Reinserção Social
(DGRS).
Centramo-nos, neste ponto, no papel da DGRS, do Ministério Público e,
ainda que por razões diferentes, do defensor. Analisamos como esses papéis
são percepcionados, quer nas suas actuais competências e circunstâncias de
desempenho, quer no discurso dos seus próprios agentes e ou de outros que
com eles se articulam. O objectivo é que esta reflexão possa contribuir para
aumentar a eficácia e a qualidade do desempenho funcional. Como já
amplamente referimos, não basta alterar a lei se não forem criadas condições
que permitam, na prática, alcançar os objectivos da reforma.
222 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
4.1 A Direcção-Geral de Reinserção Social: um papel fundamental na Lei Tutelar Educativa
Os serviços de reinserção social assumem, no quadro da Lei Tutelar
Educativa, uma particular importância, recaindo sobre os mesmos a missão de
auxiliar o tribunal na tarefa de avaliar a situação concreta do jovem e a
necessidade de educação para o direito, bem como acompanhar a execução
das medidas tutelares educativas aplicadas. A avaliação ponderada e criteriosa
de cada situação, o acompanhamento individualizado de cada jovem e o
trabalho interdisciplinar dos vários técnicos que compõem as equipas da DGRS
são, assim, elementos fundamentais para alcançar as metas que a Lei Tutelar
Educativa se propõe alcançar.
A intervenção dos serviços de reinserção social nos processos que
envolvem jovens agentes de factos qualificados pela lei como crime teve uma
evolução, de acordo, não só com as opções legislativas relativas ao modelo
substantivo e processual a aplicar a esses casos, mas também tendo em
atenção opções de carácter organizativo da própria Administração.
Consideramos, por isso, para melhor compreender o seu papel, começar por
traçar a evolução dos serviços a que estavam cometidas as funções de
acompanhamento dos jovens. Daremos, ainda, conta de alguns resultados do
trabalho de campo realizado relativamente à intervenção daqueles serviços,
sem esquecer os constrangimentos com que se deparam no exercício das suas
funções.
Da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores ao Instituto de Reinserção Social
A aprovação da Organização Tutelar de Menores, em 1962, como
resposta à necessidade de reunir num só texto legal as normas respeitantes às
crianças com comportamentos delinquentes ou com outro tipo de problemas
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
223
ligados à infância, passando a intervenção estadual a orientar-se por um
modelo de protecção maximalista (Rodrigues e Duarte-Fonseca, 2003: 5),
determinou a criação, através do Decreto-Lei n.º 44287, de 20 de Abril de
1962, da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores (DGSTM), a quem
competia “dirigir os serviços de justiça relativos a menores sujeitos a jurisdição
especializada, promover a execução das medidas decretadas pelos tribunais
de menores, orientar os serviços de assistência social e superintender nos
estabelecimentos dependentes”. Previa-se, assim, que “o serviço de
assistência social junto dos tribunais centrais [seria] realizado pelos assistentes
ou auxiliares sociais que a Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores
especialmente afecte a esse fim”, prevendo-se regime idêntico para os
tribunais comarcãos (cf. n.º 1, do artigo 6.º, e artigo 9.º do Decreto-Lei n.º
44288, de 20 de Abril de 1962). Na dependência da DGSTM estavam, ainda,
os estabelecimentos tutelares de menores, que, nos termos do artigo 110.º do
Decreto-Lei n.º 44288, de 20 de Abril de 1962, podiam ser das seguintes
espécies: Centros de observação anexos aos tribunais centrais; Institutos
médico-psicológicos; Institutos de reeducação; Lares de semi-internato; Lares
de semiliberdade; Lares de patronato.
A entrada em vigor da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada
pelo Decreto-Lei n.º 523/72, de 19 de Dezembro, que atribuía a competência
para a orientação dos serviços de execução de medidas decretadas pelos
tribunais de menores, a superintendência na sua organização e funcionamento
e a elaboração de estudos referentes à inadaptação social, protecção e defesa
dos jovens à Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores (cf. artigo
26.º), determinou a aprovação do seu Regulamento, através do Decreto n.º
200/73, de 3 de Maio. A DGSTM era composta por serviços centrais, que
compreendiam os serviços técnicos e os serviços de administração (cf. artigo
4.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio), e por serviços externos, constituídos
pelos estabelecimentos tutelares de menores (cf. artigo 20.º do Decreto n.º
200/73, de 3 de Maio), cabendo-lhe, ainda, exercer as funções de órgão
224 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
executivo da Federação Nacional das Instituições de Protecção à Infância172
(cf. artigo 3.º, n.º 2, do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio).
As competências que implicavam uma maior interacção com os jovens
eram executadas através do serviço de execução de medidas, ao qual
incumbia, essencialmente, o acompanhamento dos jovens durante o período
em que havia intervenção judicial junto deles173 e do serviço de assistência
social, ao qual estava reservada, não só a competência para a realização de
inquéritos sociais com vista ao conhecimento do jovem, mas ainda as
competências necessárias à reintegração social do jovem, através do auxílio às
suas famílias, aos jovens em liberdade assistida ou condicional ou a antigos
internados174,175.
172 Nos termos do artigo 27.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio, incumbia à FNIPI, organismo representante de Portugal na Union Internationale de Protection de l‟Enfance, “como organismo coordenador das actividades em prol da juventude, colaborar com instituições nacionais, estrangeiras e internacionais que se ocupem dos problemas da protecção moral, social ou jurídica de menores”.
173 Cf. artigo 8.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio. Ao serviço de execução de medidas competia organizar os processos individuais dos jovens sujeitos à acção dos tribunais tutelares, promover a distribuição destes pelos estabelecimentos, assegurar o cumprimento das disposições legais relativas à aplicação, alteração e cessação das medidas e prover ao necessário expediente.
174 Cf. artigo 9.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio. Ao serviço de assistência social competia realizar os inquéritos sociais necessários ao conhecimento dos jovens, à individualização do seu tratamento e à preparação da sua reintegração social; estabelecer com as famílias dos jovens em observação ou internados nos estabelecimentos as necessárias relações de auxílio e de esclarecimento, procurando remediar as causas que hajam dado lugar à intervenção do tribunal; vigiar, orientar e amparar os jovens em liberdade assistida e em liberdade condicional; exercer acção de patronato a favor de antigos tutelados, procurando, durante o período necessário à sua readaptação social, ampará-los moral e materialmente; organizar os lares de patronato destinados a antigos internados e assegurar o respectivo serviço social; procurar junto das entidades patronais a obtenção de trabalho para antigos internados ou jovens em regime de semi-internato, semiliberdade, liberdade assistida ou liberdade condicional; proceder a inquéritos e à elaboração de relatórios destinados a instruir os processos cíveis da competência dos tribunais de jovens e dos tribunais de família; orientar e verificar a acção das pessoas em relação às quais tenha sido instituído o regime de assistência educativa; fiscalizar a assistência de jovens a espectáculos públicos, nos termos da legislação em vigor; dar parecer, a solicitação da Direcção-Geral do Trabalho e Corporações, sobre os pedidos de autorização do trabalho de jovens e, bem assim, fiscalizar as condições em que esse trabalho é exercido.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
225
A Organização Tutelar de Menores sofre alterações, em 1978, pelo
Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na sequência da Revolução de Abril,
procurando dar resposta a exigências do exercício da cidadania. Tais
alterações têm como pano de fundo a adaptação às novas disposições da Lei
n.º 82/77, de 6 de Dezembro, que “introduziu profundas alterações à
organização dos tribunais judiciais. Entre elas, as que se referem à
competência dos tribunais de família e menores” (cf. preâmbulo). Não obstante,
procedeu-se a outras alterações mais profundas, nomeadamente no que
respeita aos estabelecimentos tutelares e aos centros de observação e acção
social e no âmbito da assessoria técnica, prevendo-se a criação, ao nível do
processo tutelar, de um único dossier do jovem.
Em 1980, na sequência da reforma da OTM de 1978, a DGSTM é
reestruturada. O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 506/80, de 21 de Outubro,
realça o facto de a OTM ter definido “em novos parâmetros a acção tutelar do
Estado relativamente aos menores socialmente inadaptados e em perigo,
nomeadamente reformulando a natureza e objectivos da Direcção-Geral dos
Serviços Tutelares de Menores (DGSTM)”. A diferente configuração do papel
dos lares de semi-internato, de transição e residenciais, bem como a regulação
dos estabelecimentos tutelares de menores com precisão “exige que os
preceitos [da OTM] tenham o devido acolhimento em sede própria - a lei
orgânica da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores. Esta, em vigor
desde 1972, está hoje totalmente desajustada à nova realidade. A OTM exige
ainda a reorganização dos serviços centrais da DGSTM, que, como órgão
executivo das decisões dos tribunais, urge dotar dos meios necessários à
prossecução dos seus objectivos” (cf. preâmbulo).
175 Além do serviço de execução de medidas e do serviço de assistência social, os serviços técnicos compreendiam o gabinete de estudos e o serviço de inspecção.
226 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A DGSTM, que passa a ser um departamento do Ministério da Justiça,
“tem como objectivo estudar, orientar, coordenar e controlar a execução das
medidas decretadas pelos tribunais de menores e outras aplicadas no âmbito
da legislação tutelar de protecção de menores, prevenção e reeducação dos
seus comportamentos socialmente inadaptados” (cf. artigo 1.º do Decreto-Lei
n.º 506/80, de 21 de Outubro), incumbindo-lhe, entre outras atribuições,
superintender na organização e funcionamento dos serviços tutelares de
menores (cf. artigo 2.º, n.º 1, al. b)) e, “tendo em vista o ensino profissional e a
aquisição de hábitos de trabalho dos menores tutelados, [organizar] o
funcionamento de oficinas e de explorações agro-pecuárias, de modo que a
aprendizagem das artes e ofícios seja seguida, ou intercalada, da participação
em produção útil” (cf. artigo 2.º, n.º 2).
À semelhança do modelo anterior, a DGSTM dispõe de serviços
centrais, que se dividem em serviços técnicos e serviços de apoio, e de
serviços externos, que são os estabelecimentos tutelares de menores e que “se
destinam, consoante a sua espécie, ao exercício de acção social sobre os
menores e o seu meio, à sua observação, à aplicação de medidas de
protecção, à execução de medidas tutelares decretadas pelos tribunais e à
acção de pós-cura” (cf. artigos 14.º e 29.º)176.
Os departamentos dos serviços técnicos são agora dotados de maior
precisão na descrição das suas atribuições e competências, apostando-se na
divisão das diversas Direcções de Serviços em Divisões, tendo em atenção um
maior grau de especialização dos seus vários membros.
176 Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 506/80, de 21 de Outubro, os estabelecimentos tutelares educativos podem ser das seguintes espécies: centros de observação e acção social; institutos médico-psicológicos; estebelecimentos de reeducação; lares de semi-internato; lares de transição; lares residenciais; centros de acolhimento especializado. Prevê-se ainda a existência de estabelecimentos polivalentes que desenvolvem actividades próprias de mais do que um dos tipos de estabelecimentos referidos.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
227
Assim, os serviços técnicos passaram a compreender três Direcções de
Serviços (a Direcção de Serviços de Tratamento de Menores em Instituição177;
a Direcção de Serviços de Colocação, Acompanhamento e Apoio Social e
Médico-Psicológico178; e a Direcção de Serviços de Estudo, Documentação e
Informação Técnica179) e uma Divisão de Serviços Económicos (cf. artigo 14.º).
Em 1982, é criado, em regime de instalação e no contexto da entrada
em vigor do Código Penal de 1982, o Instituto de Reinserção Social (IRS),
“vocacionado para cobrir toda a área de intervenção social no que toca às
medidas penais institucionais ou não, mas prevendo-se, desde já, o
alargamento da sua acção à prevenção criminal ligada a fenómenos de
marginalidade e ainda à integração social de quem por eles é afectado. Do
mesmo passo, prevê-se que idêntica área tocante aos menores possa vir a
integrar-se na esfera da competência do Instituto” (cf. preâmbulo do Decreto-
Lei n.º 319/82, de 11 de Agosto).
177 A Direcção de Serviços de Tratamento de Menores em Instituição, à qual compete a orientação, coordenação e controlo do exercício das actividades de formação moral, intelectual e física e das actividades disciplinares nos estabelecimentos tutelares de menores (cf. artigo 15.º), compreende a Divisão de Orientação Pedagógica, orientada, essencialmente, para o desenvolvimento de programas de formação moral, cívica, escolar e de ensino profissional nos estabelecimentos tutelares, e a Divisão de Animação de Tempos Livres, vocacionada para as actividades de ocupação de tempos livres dos jovens (cf. artigo 16.º a 18.º).
178 À Direcção de Serviços de Colocação, Acompanhamento e Apoio Social e Médico-Psicológico, que compreende a Divisão de Processos, Acolhimento e Colocação e a Divisão de Serviços Sociais e Médico-Psicológicos, “cabe orientar, coordenar e controlar o encaminhamento dos jovens confiados à protecção dos serviços e a sua observação, educação ou reeducação, no plano da acção médico-psicológica e do serviço social, em internato, em meio aberto ou em regime de pós-cura” (cf. artigo 19.º). À recém-criada Divisão de Processos, Acolhimento e Colocação passou a competir, entre outras funções, a preparar e organização individual da documentação administrativa respeitante à situação jurídica e vicissitudes da vida de cada jovem, durante a execução da medida aplicada pelo tribunal ou pelo centro de observação e acção social competente (cf. artigo 21.º).
179 Nos termos do disposto no artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 506/80, de 21 de Outubro, “à Direcção de Serviços de Estudo, Documentação e Informação Técnica cabe assegurar os objectivos da DGSTM em matéria de estudo e resolução dos problemas respeitantes à delinquência e inadaptação juvenis e aos jovens em perigo, celebração e execução de acordos de cooperação com entidades nacionais, públicas ou privadas, colaboração a nível internacional e acções de formação especializada, aperfeiçoamento e actualização do pessoal técnico”.
228 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Apesar de se prever um regime de instalação durante o período de 3
anos, o IRS, dirigido essencialmente ao desenvolvimento de actividades de
serviço social prisional e pós-prisional, bem como à implementação das
medidas penais não institucionais existentes ou que venham a ser consagradas
na lei, relativamente a delinquentes imputáveis e inimputáveis (cf. artigo 2.º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 319/82, de 11 de Agosto), logo no ano seguinte, vê o seu
enquadramento orgânico definido, através do Decreto-Lei n.º 204/83, de 20 de
Maio.
Com este diploma legal, as competências tutelares do Estado
relativamente aos jovens passam a ser repartidas entre o novo Instituto de
Reinserção Social e a Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores.
Destaca-se, logo no seu preâmbulo, a necessária “articulação do Instituto de
Reinserção Social com os órgãos e serviços do sistema da administração da
justiça, designadamente os tribunais, a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais
e a Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores, cuja ligação constitui
requisito indispensável à cabal e correcta aplicação do Código Penal,
legislação complementar e outros diplomas já em vigor, designadamente em
matéria de menores e execução das penas. O mesmo se diga em relação a
outras entidades públicas e privadas que prosseguem objectivos ou
desenvolvam acções complementares da reinserção social de delinquentes, do
apoio e protecção de menores e da prevenção criminal em geral”.
O IRS assume, assim, como objectivo fundamental “promover a
prevenção criminal, designadamente através da reinserção social de
delinquentes, imputáveis e inimputáveis, que cumpram medidas criminais
institucionais ou não institucionais, bem como do apoio a menores em perigo
ou de difícil adaptação social “(cf. artigo 2.º), incumbindo-lhe, entre outras
atribuições, intervir na execução de medidas aplicáveis a jovens delinquentes
ou a menores (cf. artigo 3.º, n.º 1, al. f)). Essas atribuições deverão ser
executadas pelo IRS “em estreita ligação com os tribunais criminais, de
execução das penas, de menores e de família e com os Serviços Prisionais,
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
229
Tutelares de Menores e de Combate à Droga, por forma a obter-se a máxima
eficácia das medidas criminais e tutelares, institucionais ou não institucionais,
no sentido que lhes está fixado no Código Penal e demais legislação aplicável”
(cf. artigo 48.º).
Para a realização de tais competências, aquele diploma prevê a
integração dos técnicos de serviço social do quadro da Direcção-Geral dos
Serviços Tutelares de Menores afectos ao serviço de apoio social junto dos
tribunais de família e de menores no IRS (cf. artigo 96.º, n.º 1, al. b)).
Esta dualidade de intervenção tutelar do Estado em matéria de jovens,
entre a DGSTM e o IRS, manteve-se até 1995. Neste ano é publicado o
Decreto-Lei n.º 58/95, de 31 de Março, que reestrutura o IRS, acolhendo no
seu seio “as atribuições e meios afectos à DGSTM, que se extingue. (…) Com
a presente reestruturação consagra-se e implanta-se um sistema de
intervenção social de justiça que assegure de forma racional, global e integrada
a assessoria técnica a todos os tribunais, designadamente nas jurisdições
penal, de jovens e de família, o apoio psicossocial a menores, jovens e adultos
intervenientes em processos judiciais e respectivas famílias, segundo princípios
de voluntariedade, corresponsabilização, a articulação interinstitucional e a
intervenção comunitária, a cooperação judiciária internacional nos termos das
convenções aplicáveis e o apoio às comissões de protecção de menores por
comarca ou concelho” (cf. preâmbulo).
Para tanto, prevê-se a transição para as carreiras de técnico superior de
reinserção social e de técnico-adjunto de reinserção social dos funcionários da
DGSTM, atendendo aos seus antigos provimentos e habilitações literárias (cf.
artigo 108.º e 109.º).
A intervenção do IRS em matéria de crianças e jovens assume especial
relevância, o que é patente desde logo na enunciação legal dos seus
objectivos. Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, daquele diploma, “o Instituto é o
órgão auxiliar da administração da justiça que tem como missão assegurar a
230 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
intervenção social com o objectivo de proteger os direitos e interesses dos
menores, prevenir a marginalização social e a delinquência, contribuindo para
uma vida jurídica e socialmente integrada de menores, jovens e adultos”. Ao
IRS passou, assim, a caber um conjunto vasto de atribuições relacionadas com
a jurisdição de menores180.
Concretamente, no âmbito do apoio a decisões judiciárias, o artigo 6º
previa a sua competência para “a elaboração de relatórios que consubstanciam
o diagnóstico e prognóstico da situação de menores, seus progenitores ou
outras pessoas a quem sejam confiados, para apoio a decisões judiciárias,
nomeadamente para aplicação de medida adequada”; “o acompanhamento do
menor, do jovem ou adulto durante o processo decisório, no âmbito do direito
de menores, de família e penal, por solicitação da competente autoridade
judiciária ou em cumprimento de disposição legal”; “a elaboração e envio ao
tribunal de relatórios de avaliação dos processos de acompanhamento
referidos na alínea anterior ou que se realizem no âmbito da execução de outra
medida judicial confiada ao Instituto”; “o desenvolvimento de acções na
comunidade, visando o envolvimento de entidades públicas e particulares, por
forma a serem criadas condições favoráveis à tomada de decisões judiciais e
respectiva execução, no âmbito das jurisdições de menores, família, penal e
outras, e à prevenção de situações de carência e de marginalização social”; e
“a participação em audiência e em diligências judiciárias, por solicitação ou
180 Designadamente contribuir para a definição das políticas de defesa e protecção de crianças
e jovens, de reinserção social de jovens e adultos e de prevenção da marginalidade e da delinquência; assegurar o apoio técnico aos tribunais na tomada de decisões, designadamente, no âmbito das jurisdições de família e de menores e da jurisdição penal; intervir na execução de medidas judiciais aplicadas a jovens em articulação, sempre que necessário, com outras entidades públicas e particulares; intervir na execução de penas e medidas de execução na comunidade aplicadas a jovens e adultos, em articulação, sempre que necessário, com outras entidades públicas e particulares; assegurar o apoio às comissões de protecção de jovens, nos termos da legislação aplicável; contribuir para a articulação entre o sistema de administração da justiça e a comunidade, designadamente, através do apoio a instituições particulares e a cidadãos e grupos de cooperadores voluntários que prossigam objectivos de prevenção da marginalidade e da delinquência, de protecção e apoio à criança, de reinserção social de jovens e adultos e de apoio à vítima de infracções penais (cf. artigo 3.º).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
231
mediante autorização do juiz ou do Ministério Público, no âmbito da respectiva
competência”.
No que respeita à execução de medidas, aplicadas a jovens, na
comunidade e em instituição, a competência do IRS era, igualmente, extensa,
incumbindo-lhe a elaboração, execução, acompanhamento e avaliação dos
planos individualizados dos jovens181,182.
O Decreto-Lei n.º 58/95, de 31 de Março, previa, ainda, um conjunto
vastos de competências do IRS relativas “ao apoio a crianças, jovens e adultos
intervenientes em processos judiciais, na resolução de problemas e situações
de carência, [que se traduz] em acção social complementar da intervenção das
demais entidades públicas responsáveis por essas situações na comunidade e
181 Previa-se, no seu artigo 7.º, no âmbito da execução de medidas na comunidade, a competência para “a) a elaboração do plano individualizado de execução da medida aplicada; b) o acompanhamento do menor, em execução do plano, envolvendo todas as iniciativas que promovam a adequação do enquadramento familiar e social às suas necessidades de desenvolvimento e de inserção social; c) a elaboração de relatórios para a avaliação, periódica e final, da execução da medida; d) a articulação com os tribunais, abrangendo a planificação, a execução e a avaliação do acompanhamento, bem como a comunicação imediata das ocorrências relevantes no processo de execução da medida; e) a cooperação com a família e com entidades públicas e particulares intervenientes na execução da medida judicial e no processo de educação e de inserção social do menor”.
182 Nos termos do artigo 8.º, além da definição do colégio em que o menor é acolhido, “a intervenção do Instituto na execução de medidas aplicadas no âmbito do direito de menores e cumpridas nos colégios ou outros equipamentos sociais de acolhimento, educação e formação previstos no presente diploma abrange, designadamente: a) o acolhimento do menor e, quando necessário, o aprofundamento ou actualização do diagnóstico da sua situação; b) a elaboração e permanente actualização do plano individualizado de execução da medida judicial aplicada; c) a criação de condições pedagógicas, escolares, formativas, de saúde e de manutenção que permitam assegurar ao menor um desenvolvimento harmonioso e uma vida em responsabilidade e autonomia; d) o acompanhamento do menor, nas várias vertentes do seu processo de desenvolvimento, segundo o plano individualizado; e) a articulação com a família e meio social de origem do menor, por forma que este mantenha e reforce os laços com a sua comunidade e esta melhor o compreenda e enquadre e, quando tal não for possível ou adequado, a procura e definição de soluções alternativas; f) a articulação com os tribunais, abrangendo a planificação, a execução e a avaliação do acompanhamento, bem como a comunicação imediata das ocorrências relevantes no processo de execução da medida judicial; g) o acompanhamento e apoio, sempre que necessário e adequado, na fase inicial do regresso do menor à comunidade”.
232 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
visa a criação de condições facilitadoras dos processos de inserção e
reinserção social” (cf. artigo 12.º)183.
Do Instituto de Reinserção Social à Direcção-Geral de Reinserção Social
Na sequência da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo
Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho, que indicava como um dos seus
objectivos o desenvolvimento das competências do Instituto de Reinserção
Social nos domínios da prevenção criminal e das penas alternativas à prisão, a
par das funções que já desempenhava no âmbito da reinserção social,
aproveitando-se para clarificar a esfera de acção deste Instituto e da Direcção-
Geral dos Serviços Prisionais” (cf. preâmbulo)184, e na sequência do Programa
de Acção para a Entrada em vigor do Direito de Menores, aprovado pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º 108/2000, de 19 de Agosto, nos
termos do qual se assumia o compromisso de reorganizar o IRS até Dezembro
de 2000, foi aprovada a nova Lei Orgânica do IRS, pelo Decreto-Lei n.º 204-
A/2001, de 26 de Julho, cumprindo o objectivo de reformar “a sua organização,
183 Nos termos do artigo 13.º, o apoio do Instituto a crianças, jovens e adultos, que é sempre facultativo e pressupõe a solicitação e participação dos seus destinatários, “abrange: a) o atendimento, o estudo adequado do problema ou situação de carência e a elaboração de diagnósticos; b) a informação e os esclarecimentos sobre direitos e regalias sociais, condições de acesso e entidades responsáveis; c) o encaminhamento e a articulação, com entidades particulares e entidades públicas competentes, para a resolução dos problemas, nomeadamente de educação, acção social, segurança social, emprego e formação profissional, habitação, cultura, desporto, ocupação de tempos livres e de saúde, designadamente em matéria de saúde mental, toxicodependência, alcoolismo, doenças transmissíveis e reabilitação; d) o acompanhamento e apoio psicossocial directo, com o contributo de outras entidades; e) a concessão supletiva de apoio sócio-económico pontual à acção das competentes entidades públicas e entidades particulares, na medida das necessidades e dos meios disponíveis; f) o acolhimento temporário em equipamentos sociais geridos pelo Instituto ou por outras entidades no âmbito de acordos ou contratos celebrados; g) a integração em projectos e acções de aprendizagem, de formação e colocação profissional e de ocupação temporária, com eventual apoio sócio-económico; h) a eventual cobertura de riscos e danos no âmbito dos serviços de acolhimento, da execução de medidas de trabalho a favor da comunidade e da integração em projectos e acções referidos nas alíneas anteriores, através da celebração de contratos de seguro”.
184 Uma das previsões expressas da Lei Orgânica do Ministério da Justiça de 2000 foi a sucessão das competências do IRS relativas à promoção da reinserção social dos reclusos pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (cf. artigo 31.º, n.º 5).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
233
para dar resposta a desafios essenciais precisamente no âmbito (…) da
execução da reforma do direito de menores, consubstanciada pela Lei de
Protecção das Crianças e Jovens em Perigo e, com especial impacto nos
serviços de reinserção social, a Lei Tutelar Educativa, que entraram em vigor
em Janeiro de 2001” (cf. preâmbulo).
O IRS, “órgão auxiliar da administração da justiça responsável pelas
políticas de prevenção criminal e reinserção social, designadamente nos
domínios da prevenção da delinquência juvenil, das medidas tutelares
educativas e da promoção de medidas penais alternativas à prisão” (cf. artigo
2.º), avoca, no domínio da jurisdição de menores, entre outras, as seguintes
atribuições: contribuir para a definição da política criminal, em particular nos
domínios da reintegração social de jovens e adultos e de prevenção da
delinquência; assegurar, nos termos da lei, o apoio técnico aos tribunais na
tomada de decisões no âmbito dos processos penal e tutelar educativo e dos
processos tutelares cíveis; assegurar, nos termos da lei, a execução de
medidas tutelares educativas; participar em programas e acções de prevenção
do crime, em especial nos domínios da delinquência juvenil; assegurar a
gestão dos centros educativos de menores e de outros equipamentos e
programas para apoio à reintegração social de jovens e adultos (cf. artigo 3.º).
Com a LOIRS, a divisão orgânica do IRS assume maior complexidade,
passando a possuir serviços centrais, divididos em serviços de coordenação e
apoio à actividade operativa e serviços de apoio à gestão e de administração, e
serviços desconcentrados, que são os seguintes: direcções regionais; núcleos
de extensão; direcção dos serviços de reinserção social nas Regiões
Autónomas dos Açores e da Madeira; e centros educativos (cf. artigos 12.º e
234 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
24.º). Aqueles serviços de coordenação e apoio são, por sua vez, decompostos
em departamentos e estes em divisões185.
Na sequência da aprovação do Programa de Reestruturação da
Administração Central do Estado (PRACE), através da Resolução do Conselho
de Ministros n.º 124/2005, de 4 de Agosto, foi publicado o Decreto-Lei n.º
206/2006, de 27 de Outubro, que aprova a reforma orgânica do Ministério da
Justiça e marcou uma nova etapa dos serviços de reinserção social. Nas
palavras do legislador, “as alterações introduzidas na Direcção-Geral dos
Serviços Prisionais e no serviço de reinserção social, agora com estatuto de
direcção-geral, fazendo-se eco dos estudos levados a cabo sobre o sistema
prisional e de reinserção social e, mais latamente, sobre a justiça penal e de
menores, abrem caminho a profundas reformas nestes domínios, sobretudo na
vertente de gestão e administração dos estabelecimentos de reclusão ou de
acolhimento de menores e dos recursos que lhes estão afectos” (cf.
preâmbulo). É assim que o IRS passa a integrar a administração directa do
Estado, no âmbito do Ministério da Justiça, transformando-se em Direcção-
Geral de Reinserção Social (DGRS) (cf. artigos 4.º e 27.º).
A DGRS, a quem compete a missão de “definir e executar as políticas de
prevenção criminal e de reinserção social de jovens e adultos, designadamente
pela promoção e execução de medidas tutelares educativas e de penas e
medidas alternativas à prisão” (cf. artigo 15.º), no que respeita à jurisdição de
menores, perde, com esta Lei Orgânica do Ministério da Justiça, a competência
para assegurar o apoio técnico aos tribunais na tomada de decisões no âmbito
dos processos tutelares cíveis186, que é transferida para o Instituto da
185 Para uma descrição mais pormenorizada da orgânica do IRS após a LOIRS de 2000, cf.
Gomes (coord.), 2003: 196-198.
186 Nos termos do artigo 15.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Ministério da Justiça de 2006, a DGRS prossegue as seguintes atribuições: a) Contribuir para a definição da política criminal, especialmente nas áreas da reinserção social de jovens e da prevenção da criminalidade; b) Assegurar o apoio técnico aos tribunais na tomada de decisão no âmbito dos processos penal
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
235
Segurança Social, nos termos do artigo 38.º e 18.º, n.º 2, al. j), do Decreto-lei
n.º 211/2006, de 27 de Outubro, que aprova a Lei Orgânica do Ministério do
Trabalho e da Solidariedade Social.
Assim, em 2007, é aprovado o Decreto-Lei n.º 126/2007, de 27 de
Abril187, na sequência da Lei Orgânica do Ministério da Justiça de 2006, que
estabelece a estrutura orgânica da actual DGRS. Segundo o seu preâmbulo, “o
novo modelo orgânico dos serviços de reinserção social reflecte a missão
fundamental da DGRS, serviço responsável pelas políticas de prevenção
criminal e reinserção social. Nesse sentido, assume-se como objectivo
prioritário a necessidade de melhorar e potenciar os processos de reinserção
social de pessoas menores de idade (entre 12 e 18 anos), de jovens adultos
(entre 18 e 21 anos) e de adultos, designadamente, nos domínios da
prevenção da delinquência juvenil e da promoção de medidas penais
alternativas à prisão determinadas pelo tribunal, tendo a sua execução na
comunidade o objectivo de permitir a reabilitação do jovem ou adulto sem o
privar do contacto diário com a realidade social”. A especialização, o aumento
dos níveis de operacionalidade e de eficácia e a redução de custos (através da
e tutelar educativo; c) Assegurar a execução de medidas tutelares educativas e de penas e medidas alternativas à prisão, a execução de penas e medidas com recurso a meios de vigilância electrónica e colaborar com a DGSP na preparação da liberdade condicional, assegurando o seu acompanhamento, bem como o da liberdade para prova; d) Conceber, executar ou participar em programas e acções de prevenção da criminalidade e contribuir para um maior envolvimento da comunidade na administração da Justiça penal e tutelar educativa, através da cooperação com outras instituições públicas ou particulares e com cidadãos que prossigam objectivos de prevenção criminal e de reinserção social; e) Assegurar a gestão e segurança dos centros educativos e de outros equipamentos destinados à reinserção social de jovens; f) Promover a formação técnica especializada dos seus funcionários e colaborar nas acções que lhes sejam dirigidas; g) Recolher, tratar e divulgar os dados estatísticos relativos aos centros educativos e à reinserção social e colaborar com a DGPJ na compilação dos dados que devam integrar a informação estatística oficial na área da Justiça; h) Programar as necessidades de instalações dos serviços de reinserção social e colaborar com o IGFIJ, I. P., no planeamento e na execução de obras de construção, remodelação ou conservação; i) Assegurar o fornecimento e a manutenção dos equipamentos dos serviços de reinserção social e centros educativos, em articulação com o ITIJ, I. P. e a estrutura do MJ responsável por aquisições.
187 Alterado, posteriormente, pelo Decreto-Lei n.º 121/2008, de 11 de Julho, sem mutações significativas.
236 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
eliminação de estruturas intermédias) são objectivos eleitos pelo legislador
como fundamentais.
A DGRS, serviço central da administração directa do Estado dotado de
autonomia administrativa, dirigida por um director-geral, coadjuvado por três
subdirectores, passa a dispor de sete unidades orgânicas desconcentradas (as
delegações regionais), coincidentes com o nível II das NUTS, sendo os centros
educativos também designados por unidades orgânicas desconcentradas (cf.
artigos 1.º e 3.º). Nos termos do artigo 6.º, n.º 2, em cada delegação regional
ou centro educativo actuam equipas de reinserção social.
A des(res)estruturação das equipas
Os serviços de reinserção social sofreram, assim, ao longo dos anos,
diversas reestruturações, tendo como pano de fundo as diferentes atribuições
que lhe foram cometidas. Os movimentos de ampliação ou redução das suas
competências foram determinando mutações na constituição e na organização
das equipas que têm a seu cargo o acompanhamento do menor no âmbito das
diferentes medidas aplicadas. Com maior destaque, realçam-se dois momentos
chave da vida dos serviços de reinserção social, que representam movimentos
opostos (um de dilatação da composição das equipas, e outro da sua
compressão): o ano 1995, em que o então IRS recebe as competências da
antiga DGSTM, bem como o corpo de funcionários que lhe era afecto; e o ano
2006, em que a já DGRS perde a competência no âmbito dos processos
tutelares cíveis, bem como um conjunto alargado de técnicos.
Nós aqui temos quatro colegas que foram para a Segurança Social. (…) Para a Segurança Social foi uma colega que era psicóloga que trabalhava na área de Família e Menores que é uma excelente profissional (Ent. 3TRS).
Os técnicos de reinserção social entrevistados, bem como outros
operadores do sistema que, com frequência, se articulam com estes serviços,
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
237
atribuem a estas sucessivas adaptações dos serviços de reinserção social
duas consequências fundamentais no funcionamento interno das equipas. A
primeira tem a ver com o actual desequilíbrio na configuração das equipas e a
falta de critérios fundamentados para a sua composição. Do trabalho de campo
resultou que as diferentes valências, que só uma equipa multidisciplinar
tornaria possível executar, não são cumpridas. Recorda-se que a importância
da intervenção multidisciplinar está presente em todos os estudos sobre esta
temática. Ora, acontece que a composição das equipas não tem, ou pelo
menos não tem sempre, como critério, a formação de origem dos diferentes
técnicos, sendo possível constatar situações absolutamente assimétricas, o
que dificulta ou impede mesmo a definição e execução de determinados
programas ou abordagens, ficando a intervenção com o jovem muito aquém do
objectivo a que se deveria propor.
Penso que faz todo o sentido haver, nomeadamente, duas grandes áreas, a área social e a psicológica, que são as duas áreas charneira para a intervenção. (…) mas as equipas estão desequilibradas, as opções… Por exemplo, nós tínhamos mais psicólogos nos centros... do que os outros centros todos. Nós tínhamos um psicólogo para cada unidade e alguns centros não tinham nenhum. Por isso, era impossível, nesses centros, desenvolverem certo tipo de intervenções (…). Eu penso que tem que ser definido o que se quer para a intervenção e definir-se qual o perfil do sujeito, do técnico. Em 2007 com a saída do cível da nossa competência também saíram uns colegas. (…) Eu não consigo perceber… Houve pessoas que saíram, ou quiseram sair, mas penso que houve uma descaracterização de técnicos que ficaram. As pessoas estavam sobrecarregadas e têm muito trabalho… (Ent. 4TRS).
A indiferenciação da carreira de técnico de reinserção social,
englobando na mesma carreira técnicos com diferentes valências formativas, é
avançada como uma das explicações causais da falta de atenção que é dada à
colocação dos técnicos nas diversas equipas em função da sua mais valia de
conhecimento.
A carreira é outra matéria. Para aplicar a medida de internamento é preciso relatório de perícia e a perícia tem um valor brutal em termos judiciais. Quem faz isso são os psicólogos, mas eles são técnicos de reinserção social como os outros. Não têm diferenciação de carreira e é outro mal entendido tremendo que não sei se algum dia se vai resolver. Pode ser agora com a criação da Ordem dos Psicólogos e ao que parece os psicólogos para fazer a avaliação psicológica tem de estar inscritos na Ordem. Mas, a maior
238 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
parte dos psicólogos não tem actividade privada fora daqui. Há muito poucos. (…) São histórias de uma instituição que optou sempre por essa carreira generalista do técnico de reinserção social sem fazer a diferenciação dos conhecimentos, o que considero um equívoco e sempre defendi a diferenciação na intervenção (Ent. 5TRS).
Este entrevistado chama, igualmente, a atenção para o facto de a
colocação dos diferentes técnicos nas várias equipas e a atribuição de
competências às mesmas ter que levar em linha de conta outros factores,
como, por exemplo, a garantia de que o técnico utiliza frequentemente os seus
conhecimentos especializados por forma a não perder conhecimento.
A formação dedicada tem que ser praticada. Estava a lembrar-me, por exemplo, da equipa x, que deve ter uma perícia de 6 em 6 meses. Ora, mesmo que [o psicólogo] faça [perícias de seis em sei meses] perde rotinas. Ele pode ter uma matriz de compreensão do problema, que não se perde, mas depois na avaliação psicológica há um conjunto de instrumentos que são auxiliares no diagnóstico e para os quais é preciso ter rotinas. (…) Normalmente temos dois tipos de instrumentos: o menor responde, nós assinalamos, colocamos no computador, no programa, e sai o resultado. Outra via mais rica tem a ver com a percepção e a projecção do sujeito. Tem a ver com o fenómeno projectivo, eu ponho no exterior alguma coisa que vem dentro de mim e isso é outro trabalho que a psicologia tem desenvolvido e que é muito enriquecedor para conhecer o indivíduo (Ent. 4TRS).
A segunda consequência que os técnicos entrevistados relacionam mais
proximamente com as alterações de competências dos serviços de reinserção
e que se prende, também, de forma particular, com a perda das competências
relacionadas com os processos tutelares cíveis é o enfoque excessivo nos
comportamentos delituosos, que deriva numa visão predominantemente
penalista por parte dos próprios técnicos, que actuam em ambas as valências.
Quando houve este enfoque da Direcção-Geral no delito eu disse para mim “finalmente” mas senti logo um arrepio. Porquê? É o Penal que esmaga. Para mim esse é o problema (Ent. 4TRS).
O enfoque no delito faz perder de vista, na intervenção que se revelar
necessária com o jovem, as várias vertentes do problema que culminaram na
prática pelo jovem de um facto qualificado pela lei como crime e que, numa
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
239
perspectiva de educação para o direito e de prevenção da reincidência, são
fundamentais ter em conta. Voltaremos a esta temática mais à frente, por ora
apenas ressaltamos que esta é uma preocupação evidenciada pelos técnicos
de reinserção social.
A visão penalista da intervenção, em sede da delinquência juvenil,
encontra várias manifestações. Por exemplo, a visão securitária é a mais
sentida nos centros educativos, evidenciado as limitações de intervenção na
execução da medida de internamento.
[Vejo] claramente no Centro Educativo, essa contaminação desta visão penalista. Não há nada para mudar, não queremos mudar coisa nenhuma, é controlar… Portanto, toda essa dimensão de desenvolvimento que existe na Lei Tutelar Educativa é minimizada (…) (Ent. 4TRS).
Também a atribuição, simultânea, ao mesmo técnico, de processos
tutelares educativos e de processos penais, a sobrecarga das equipas de
reinserção social com as solicitações no âmbito do processo penal, a limitação
a nível de recursos humanos, contribuem para esta tendência de invasão da
visão penalista no âmbito da intervenção tutelar educativa.
Salienta-se, aliás, contrariando a ideia da necessidade de uma
intervenção muito próxima do cometimento do facto ilícito, que também os
próprios tribunais de família e menores acabam por marginalizar os processos
tutelares educativos, dada a urgência e o volume dos processos de promoção
e protecção.
Eu quando vim para aqui, estive com os quatro magistrados dos tribunais de família e disseram-me todos que a protecção esmaga, sufoca, é um conjunto de situações muito problemáticas, com muitos problemas, nomeadamente, com a as institucionalizações dos menores em risco. A parte do tutelar é menor. Evidentemente que os que os preocupa mesmo é a protecção, não só pelo volume de trabalho, como pela realidade das situações, e isso cria-me muita apreensão. (…) É preciso formação. Eu quando vi esta especialização da Direcção-Geral [no delito] também cedo percebi que havia um risco da penalização da intervenção tutelar e penso que, neste momento, isso é muito visível especialmente nos Centros Educativos (Ent. 4TRS).
240 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Uma outra questão levantada prende-se, ainda, com as condições de
exercício das funções dos técnicos, que dificultam e diminuem a qualidade da
sua intervenção no âmbito das várias tarefas concretas. A pressão das
solicitações por parte dos tribunais esbarra, por um lado, como os limitados
recursos humanos existentes e, por outro, com a exigência de execução de
tarefas meramente burocráticas que vão afastando os técnicos do terreno
social.
O número de solicitações ou acompanhamentos de execuções de
medidas por técnico diverge entre equipas, não estando definido (ou, pelo
menos, não sendo respeitado) um número ideal de processos desta natureza
atribuído a cada técnico, que executa as tarefas inerentes, em acumulação
com outro tipo de tarefas e intervenções.
Aqui na equipa [quantos acompanhamentos de medida são atribuídos a cada técnico]? Conforme as solicitações vêm. Mas têm 4 ou 5 casos, não têm mais e nem podem.… (Ent. 3TRS).
Temos estudado muitos modelos, temos feito grandes pesquisas, e de todos os modelos apontam para que o case load dos técnicos que intervêm junto dos jovens seja de 5 jovens por técnico, mas [aqui a média é] para aí uns trinta. E falo só de acompanhamentos, porque depois há todo o pré-sentencial, que acaba por ser um tsunami para os acompanhamentos, porque não deixa tempo livre (Ent. 1TRS).
Tem sido feito um bom caminho, e a própria experiência dos técnicos que trabalham com os jovens tem contribuído muito (...) mas, neste momento, vai necessariamente, começar a ser pior porque temos menos horas, menos tempo disponível para acompanhar as medidas. Ou seja, estamos cada vez a saber melhor lidar com as coisas, cada vez a caminhar num sentido de ir ao ponto fulcral – porque claro tem de se perceber que não podemos intervir em tudo – e depois não temos material humano para executar correctamente as tarefas (Ent. 2TRS).
Salientam as exigências com tarefas de “trabalho de gabinete”, de
carácter geral, que retiram tempo à intervenção junto do meio social e à
necessária articulação com outras organizações, em especial da comunidade,
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
241
no desenvolvimento de programas associados à execução de determinada
medida.
Nós estamos muito prejudicados em termos de tempo para ir para o terreno. Essa é que a génese do nosso trabalho e cada vez mais estamos fechados no gabinete a trabalhar no computador. A escrever emails, a receber emails, a executar tarefas para a estatística, a apresentar resultados e o nosso tempo e deles [dos restantes técnicos] para o exterior está muito prejudicado. O técnico está muito limitado em termos do que é de facto a sua génese operativa, que é trabalhar no meio social com o jovem, com o arguido, com a comunidade em geral, com as instituições (Ent. 3TRS).
Para realçar a inoperância do sistema nesta matéria, este entrevistado
dá o seguinte exemplo.
Há já há muitos anos estive em França, em Lyon, e visitámos o Tribunal de Lyon. Eu vi a forma como, já nessa altura, os colegas trabalhavam. Trabalhavam num gabinetezinho simples ao lado do magistrado, mas tinham ali só “x” tempo de permanência, porque eles trabalhavam por bairro, por zonas geográficas e passavam o tempo no exterior e, no fim dia, tinham uns formulários quase para preencher de cruz com poucos espaços em aberto, onde davam conta a magistrado, periodicamente, todas as semanas, da evolução da situação. Era um trabalho espectacular e não tem nada a ver com este tipo de gabinetes, ao pé deles é um luxo, um super-luxo (Ent. 3TRS).
A reorganização judiciária e a adaptação das equipas às NUTS de
nível II, centralizando a localização das equipas e alargando a sua competência
territorial, demanda dificuldades acrescidas.
É complicado pelo seguinte: porque nos deparamos com falta de recursos humanos, falta de viaturas, falta de tempo, obviamente, e mais distâncias. E, portanto, às vezes para trabalhar um caso, uma tarde não chega. Por exemplo, para X é uma tarde. Portanto, houve uma dispersão maior. A reorganização das comarcas levou a uma maior dispersão em termos geográficos (Ent. 5TRS).
Prevenção da criminalidade
Uma das missões inscritas na Lei Orgânica da Direcção-Geral da
Reinserção Social é a de prevenção da criminalidade, seja através do
contributo para a definição da política criminal nessa matéria, seja através da
242 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
concessão, execução ou participação em programas e acções de prevenção da
criminalidade (cf. artigo 2.º, n.º 2, al. a) e d)). Alguns entrevistados denunciaram
a falta de incentivo nesta área particular de actuação da Direcção-Geral de
Reinserção, que se encontra ainda por cumprir, não só por esta entidade, mas
ainda pelas restantes instituições que prosseguem tal objectivo. Contudo, como
foi ressaltado nos estudos acima referidos, esta é uma área crucial no âmbito
da delinquência juvenil. Pouco adianta o desenvolvimento de grandes
programas de acção, no âmbito da execução de medidas em concreto, se
pouco se aposta em políticas e medidas de prevenção.
Parece-me que, perante a nossa realidade, o que há mais é um problema de prevenção e depois, no fim, de reintegração (P8).
Primeiro, a prevenção, nós não temos cultura de prevenção primária e não tem sido muito o esforço que têm feito as comissões de protecção juntamente com a rede social, para que os programas de prevenção primária sejam uma realidade (P6).
A perda de competências na área tutelar cível é, também, apontada
como uma das razões para o desinvestimento na prevenção.
No Tutelar Cível nós podemos fazer (…) Eu tinha pedidos do hospital, não tinha nada a ver com o tribunal. Tinha pedidos das escolas, do Centro de Emprego.... Fiz trabalhos de intervenção com as escolas: a escola secundária com miúdos problemáticos (...). Foi muito interessante (Ent. 4TRS).
Chama-se a atenção para o facto de, sendo a prevenção da
criminalidade uma das missões da DGRS, não se mostra necessário levar a
cabo quaisquer alterações ao nível das competências da DGRS para o seu
cumprimento, mas sim uma reestruturação dos serviços que permita um
contacto mais próximo dos técnicos com o meio social.
Eu penso que o serviço de uma forma geral precisaria de uma reorganização e de uma reestruturação, centrando-se na sua génese, que está escrita na carta de missão da Senhora Directora-geral e que faz parte da lei orgânica. É fundamental apostar na
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
243
prevenção da delinquência, na reincidência, o que pressupõe um efectivo trabalho exterior intenso, com recursos humanos adequados em formação, em qualidade. É preciso inverter um pouco o que está, mais para o exterior e menos para dentro. Essa é a questão de fundo (Ent. 3TRS).
Para fazermos uma intervenção mais eficaz e mais especializada e aproveitando o conhecimento do terreno, – quando falo do terreno falo de que aquele jovem relaciona-se com este e que a figura de referência é aquele, e que se este jovem está envolvido com o outro jovem é uma determinada gravidade, mas se for com outro grupo já é outra –, ou seja, aproveitar este conhecimento para fazer uma intervenção junto dos jovens, a tal prevenção secundária e mesmo terciária. Nós precisamos de ter mais pessoas para poder chegar e estar mais tempo com estes jovens. Se interviermos todos os dias, todas as semanas, a longo prazo poupa-se muito dinheiro e tempo, quer aos tribunais, quer às pessoas e quer, em última análise, e que é mais importante, à própria segurança do cidadão (Ent. 2TRS).
A fase pré-sentencial
Os serviços de reinserção social, especificamente as equipas do IRS,
até 2007, e da DGRS, a partir de tal data, têm tido, desde o início da entrada
em vigor da Lei Tutelar Educativa, uma intervenção essencial na modelação
dos contornos do próprio processo tutelar educativo. Além da sua acção no
âmbito do acompanhamento da execução de medidas tutelares educativas
aplicadas, a sua intervenção é, desde logo, essencial no primeiro momento do
processo, na condução do caso concreto, para melhor aferição dos caminhos a
trilhar pela autoridade judiciária, seja o Ministério Público ou o juiz, dependendo
da fase processual em causa.
Assim, nos termos do artigo 71.º da LTE, o tribunal, aqui indicado em
sentido amplo, englobando tanto o Ministério Público como o Juiz, pode
socorrer-se, como meio de obtenção de prova da informação ou de relatório
social, com o objectivo de conhecer a personalidade do jovem, a sua conduta e
inserção sócio-económica, educativa e familiar, sendo obrigatória a elaboração
de relatório social com avaliação psicológica quando for de aplicar medida de
internamento em regime aberto ou semiaberto. Ao passo que a informação
pode ser solicitada, em alternativa, aos serviços de reinserção social ou a
244 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
outros serviços públicos ou entidades privadas, o relatório social é
necessariamente elaborado pelos serviços de reinserção social.
Resulta do trabalho de campo desenvolvido que, na fase de inquérito
tutelar educativo, o Ministério Público, além de eventuais informações que
podem ser pedidas às escolas e IPSS com as quais o jovem tenha contacto,
em regra, solicita aos serviços de reinserção social relatório social, com vista à
aferição da eventual necessidade de educação para o direito.
Este momento de avaliação e diagnóstico, por parte dos técnicos de
reinserção social, é qualificado pelos próprios técnicos como um ponto
fundamental da acção tutelar educativa, identificando-o como um momento de
verdadeira intervenção e não de mero diagnóstico, permitindo a dinamização
de vários elementos do contexto social do jovem, nomeadamente, a família e a
escola.
Um entrevistado relata dois exemplos que consideramos expressivos,
não só da importância que o relatório pré-sentencial pode assumir na definição
da medida a aplicar, mas também da importância do trabalho em rede com o
envolvimento de actores da comunidade e da família, mas que para o qual é
preciso dispor de técnicos e de tempo.
Tivemos recentemente (..) três miúdos suspeitos de terem estragado um campo de golfe e eles recusam, dizem que entraram, mas o senhor diz que eles partiram coisas no valor de quase 4 mil euros. Eles disseram que não, que realmente entraram, nem tiveram de saltar nada, porque nem tinha vedação, mas só mudaram os sinalizadores de sítio, foi o que fizeram e não fizeram mais nada. Eu fui à escola e achei a directora de turma fabulosa. Já tinha percebido várias coisas, mas ainda não tinha dado o passo seguinte. Era um miúdo do 10º ano que estava a acabar de chegar àquela escola e eu falei com a professora da escola onde ele fez o 3º ciclo. Falei com a mãe – uma situação complicada e problemática com um divórcio litigioso… Portanto, pai, mãe, o miúdo, professora... activei ali um conjunto de pessoas através da escola (…). Tem ali algum risco, para mim não tanto do ponto de vista delinquencial. É um miúdo com estrutura, que se descambar é um rapaz mais para o consumo. (…) Mas, o que quero salientar é a activação de recursos (Ent. 4TRS).
A equipa de.... fez um relatório social de um rapazinho com 12 anos. O ano passado chumbou e envolveu-se com um grupo de miúdos em desacatos e praticou furtos. De tal maneira que a colega achou que era de ponderar a medida de internamento. Deu essa notícia ao Tribunal e o Tribunal, como manda a lei, pediu um relatório social e psicológico e
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
245
veio parar a mim (...) Eu fiz a avaliação e a minha proposta é uma imposição de obrigações porque me dei conta que há um conjunto de intervenções que, entretanto, se mobilizaram desde o final do ano lectivo passado, quando se deu conta que estava mesmo a derrapar… É um miúdo inteligente. Havia um grupo e a intervenção tutelar do tribunal desmembrou o grupo. Um miúdo mais velho daquele grupo está a cumprir medida de internamento no Porto. A escola percebeu que tinha que os separar e ele foi para outra escola. Falei com o presidente do conselho executivo da escola que o recebeu, um homem interessantíssimo, atentíssimo, que concordou com a minha visão que o rapaz estava outro, tinha percebido… E, entretanto, eu descubro que há uma psicóloga no centro de saúde que tinha começado a fazer uma coisa com o miúdo em termos de intervenção, com uma queixa que tinha vindo da parte da Comissão de Protecção (…) Acabei de lhe ligar. Vou lá na segunda-feira comunicar-lhe aquilo que descobri. (…) houve um gato que entrou na vida do rapaz, além do avô. Aquilo teve uma alteração porque o miúdo começa a cuidar, a ter preocupações de cuidado e envolvimento emocional e isso ajudou o miúdo. Mas, eu dei conta de outras coisas e eu telefonei-lhe a dizer que vou lá e ela também manifestou interesse… Porque eu fui falar com ela saber se ela já tinha feito alguma avaliação para não estar a repetir provas… Ela estava acompanhá-lo, eu fiz o que tinha a fazer, para lhe dar a conhecer (…) No contexto institucional, fui mexer com estas três entidades: avó, Centro de Saúde e escola e levo recado a todos. Isso aconteceu ali, está a acontecer em ..., com dois ou três casos… Na segunda-feira ligou-me a directora de turma da escola de ... – tenho ali o relatório que ainda nem fiz – estive lá na quarta-feira. (…) Um miúdo deu uns socos e uns pontapés a um colega no intervalo na escola e o pai do rapaz vitima queixou-se. (…) Eu conheço o miúdo, que dizem que não fala nada, mas eu tive que o mandar embora, porque fala-se dos cavalos e ele era outra pessoa. Depois de falar com o pai e com a mãe e de falar com a escola percebi uma outra parte que ninguém tinha percebido (…). Portanto, eu é que levei para a escola a ideia que tinha ficado da entrevista com os pais. E levei à mãe depois o que se tem passado do lado da directora de turma (Ent. 4TRS).
A intervenção pré-sentencial dos técnicos de reinserção social é vista
como o momento em que podem “agarrar o miúdo” (Ent. 4TRS), criando uma
dinâmica de intervenção que permite, rapidamente, impulsionar a mudança do
contexto social dojovem, envolvendo os diferentes agentes que podem ter uma
intervenção positiva na alteração do seu comportamento e, por essa via,
determinar a natureza da medida a aplicar.
Em consonância com as dificuldades de resposta acima já referidas, foi
também salientada a demora na execução do relatório social pré-sentencial,
cujo prazo de 30 dias é, por vezes, largamente ultrapassado.
Como é amplamente referido ao longo deste relatório, a rapidez da
intervenção, devidamente articulada com a comunidade e com a família,
relativamente ao jovem que assume comportamentos anti-sociais que
configuram um ilícito criminal é fundamental para que seja eficiente. Neste
246 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
campo, como temos vindo a demonstrar, os serviços de reinserção social
desempenham um papel crucial. Daí a importância de se organizarem e serem
dotados dos meios essenciais para o desempenho cabal dessa função.
A extensão da intervenção dos técnicos de reinserção social na fase pré-
sentencial é, no entanto, diferenciada. Em áreas geográficas em que o tipo de
delinquência juvenil é mais grave e o número de solicitações mais elevado, a
acção daqueles técnicos nesta fase tende a ser, efectivamente, de mera
avaliação, estando mais presentes os constrangimentos acima referidos.
A primeira condicionante é a distância entre os técnicos de reinserção
social e o contexto social do jovem. Resultou do trabalho de campo que,
apesar do esforço em avaliar o jovem no seu contexto social, as condições de
que dispõem as rotinas e práticas enraizadas, não raras vezes, determinam
que seja o jovem a deslocar-se à equipa de reinserção social e não o técnico a
deslocar-se ao ambiente daquele.
Nós tentamos, também, aproximar-nos dos jovens, portanto, se são jovens de X tentamos que sejam atendidos em X. Em X também temos um local de atendimento que é nos Bombeiros de X. Não quer dizer que façamos sempre isso, até porque para a fase pré-sentencial, às vezes também os convocamos para aqui e não vamos ao seu encontro. E estou a lembrar-me também das escolas, por vezes vamos ter com os jovens às escolas e atendemo-los lá, mais para as medidas (Ent. 1TRS).
Apesar de mais visível nos grandes centros urbanos, com um grande
volume de solicitações dirigidas à DGRS, a distância entre o técnico de
reinserção social e o meio social do jovem também ocorre em comarcas de
menor dimensão, fruto de opções organizativas por parte da DGRS.
Efectivamente, a criação de equipas especializadas determinou a acumulação
numa única equipa da competência para a avaliação pré-sentencial de um
conjunto de circunscrições territoriais desconcentradas. Daí que tenham sido
referidas práticas de convocação do jovem para comparecer na equipa de
reinserção social, não sendo o técnico a deslocar-se à localidade do jovem,
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
247
bem como a acrescida dificuldade de intervenção por parte de técnicos que
não têm um conhecimento mais próximo daquele meio.
Para já, não conheço X… Perco-me. Não conheço os recursos, é preciso estarmos integrados no meio e nós não estamos (Ent. 4TRS).
A intervenção articulada junto da comunidade e a criação dos elos de
ligação entre os vários agentes do sistema de apoio ao jovem, apesar de
consideradas de importância capital, são também reclamadas para outras
entidades que não as equipas de reinserção social, embora elas possam
beneficiar dessa articulação. Alguns técnicos de reinserção social
entrevistados, atenta a limitada intervenção por parte do Instituto de Segurança
Social que intervém no âmbito de um apoio concreto, consideram que, mais do
que o Estado, essa intervenção deve recair sobre a sociedade civil organizada.
Acho fundamental haver uma entidade que esteja atenta a que o jovem, numa idade ainda precoce, precise de ajuda para, por exemplo, se aguentar na escola, ter explicações, ou para ter uma ocupação em vez de estar com os outros em actos de violência, isso é fundamental e pode fazer diferença (Ent. 2TRS).
A convocação de entidades privadas (ONG, IPSS, etc.) para assumir
esta tarefa surge “a par e passo” com a denúncia de um défice de recursos
humanos por parte das equipas de reinserção social que impossibilitam um
acompanhamento mais próximo da situação do jovem.
A posição assumida pelos técnicos de reinserção social acaba por ser
imbuída de alguma contradição, uma vez que se, por um lado, se defende com
veemência, os efeitos positivos de uma intervenção tutelar pré-sentencial,
reclamando a abertura de uma maior espaço de actuação aos técnicos de
reinserção social nessa fase, por outro lado, invoca-se, frequentemente, a
impossibilidade prática do desenvolvimento da actividade pré-sentencial.
248 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A segunda condicionante prende-se com a exígua importância que a
elaboração dos relatórios sociais apresenta na avaliação individual do técnico
para efeitos de carreira profissional.
[N]o SIADAP (…) a execução de relatórios tem um peso. Foi conferido ao relatório social pré-sentencial tutelar educativo o peso de um ponto e meio o que é uma anedota. O máximo é quatro, que é, por exemplo, a perícia. (…) não faz sentido nenhum porque as pessoas são penalizadas por isso. Isso não é valorizado (Ent. 4TRS).
Da elaboração do relatório social à aplicação da medida
Após a elaboração do relatório social, o técnico de reinserção social que
o produziu apenas retoma, em regra, contacto com a situação, caso haja
alguma solicitação do tribunal nesse sentido, nomeadamente, para prestar
informações actualizadas sobre a concreta situação do jovem ou para prestar
depoimento em tribunal. Resultou do trabalho de campo que tal solicitação só
surge quando, entre o momento da elaboração do relatório social e a data do
julgamento, decorra um período de tempo que leve a autoridade judiciária a
considerar a eventualidade de ter ocorrido uma qualquer alteração.
No caso de haver uma grande distância a nível temporal entre a decisão e o relatório, poderá, ou não, ser ouvido o técnico em julgamento. Isso passará, naturalmente, pela decisão do juiz (Ent. 2TRS).
Depende do tempo que vai desde que é feito o relatório pré-sentencial até que… às vezes passa-se mais de um ano e o jovem já não é o mesmo (Ent. 1TRS).
Alguns técnicos defenderam, no entanto, que o envolvimento sistemático
do técnico no desenrolar de todo o processo judicial traria benefícios,
essencialmente de duas ordens de razão. Por um lado, permitiria que o técnico
de reinserção estabelecesse uma ponte mais profícua entre o sistema judicial,
a sua linguagem encriptada e o jovem. Por outro lado, possibilitaria um
acompanhamento mais próximo e uma avaliação mais actualizada da situação
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
249
concreta, o que é tanto mais relevante quanto o facto de a plasticidade dos
contextos do jovem ser em grau bastante elevado. Um técnico entrevistado
sintetiza da seguinte forma estas duas vantagens.
O ideal, naturalmente, é que nós estivéssemos presentes [ao longo do processo] por duas ordens de razão. A primeira é que poderíamos ter uma atitude pedagógica que o tribunal não tem, de explicar. Quando há uma audiência preliminar, o jovem sai do tribunal a pensar que não lhe aconteceu nada e, às vezes, as coisas piores acontecem nesse momento. Ou então vai a tribunal à leitura de sentença e não percebe nada e ninguém lhe explica, e sai do tribunal com uma sensação de impunidade que propicia a ocorrência de novas situações. Nós devíamos lá estar nem que fosse para lhes dizermos várias vezes de maneira a que percebessem. Se nós não o fazemos, alguém tem que o fazer porque isso é um erro grave do tribunal. A segunda é que nós começamos logo ali a ganhar o miúdo, porque, por vezes, as coisas mudam muito rapidamente e nós temos essa capacidade de perceber e de falar com as pessoas na comunidade e perceber que aquele jovem teve aquele processo e participações naquele momento, mas depois mudou. E a própria lei diz que a aplicação da medida deve ter a ver com o próprio momento da aplicação (Ent. 2TRS).
Aquelas dimensões, muito próprias dos processos tutelares educativos,
foram uma constante nas entrevistas realizadas no presente projecto de
investigação. A elevada mutabilidade das situações envolvendo jovens exige
que a informação dada ao tribunal, e com base na qual este irá proferir uma
decisão, deva ser o mais actualizada possível.
O relatório pré-sentencial, normalmente, é suficiente. Mas, como eu disse, a nível da tutelar educativo as coisas mudam muito rapidamente. O que nós vemos na maior parte dos países europeus, onde há uma maior proximidade, até geográfica porque os serviços acabam por estar no tribunal, e existe obrigatoriedade de estar alguém da DGRS em todos os momentos judiciais (Ent. 2TRS).
A distância entre o mundo judicial e a realidade dos jovens, que tem
expressão máxima na ausência de compreensão da linguagem técnica
utilizada no tribunal, é um obstáculo à correcta realização dos fins previstos na
Lei Tutelar Educativa. A falta de compreensão pelo jovem do discurso que lhe é
dirigido não deixa de ser um fracasso do objectivo da medida. São identificadas
duas situações patológicas. Por um lado, o tribunal continua a dirigir-se aos
jovens numa linguagem encriptada, não possuindo a capacidade de
transformação dessa mera linguagem em comunicação explícita. Por outro,
250 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
assiste-se à demissão, também nesta sede, do papel de explicação e
informação que deveria ser atribuído ao defensor.
Os menores antecipam com muita ansiedade a ida ao tribunal, vão ao tribunal, são ouvidos e depois vão embora. De seguida vêm aqui ter comigo e eu pergunto: “Então o que é que aconteceu?” E eles respondem que se vieram embora, que já está tudo feito. Acontece muitas vezes, um menor estar em acompanhamento comigo, ir a uma audiência a tribunal, e depois desaparece, está meses e meses sem aparecer, porque pensam que já está tudo resolvido. Ora, é evidente que não, porque aquele foi só mais um processo para além dos outros dois ou três que tem, mas como foi ao tribunal e não aconteceu nada, pensam que está tudo resolvido, que está “safo”. E isso é catastrófico (Ent. 2TRS).
É um pouco como as seguradoras, só quem lá trabalha é que percebe a linguagem. E aqui nos tribunais é o mesmo. Ninguém percebe a linguagem. Nem nós muitas vezes (Ent. 1TRS).
O tribunal pode ter uma linguagem própria até para o seu próprio funcionamento e entendimento das pessoas que fazem parte do processo judicial. Mas, tem de haver um momento de “tradução”. Explicar ao jovem. E depois questioná-lo também – “ explica lá o que é que aconteceu.” – e seu fizer esta pergunta ele vai dizer uma coisa completamente ao lado. E enquanto ele não disser aquilo que aconteceu e perceber minimamente o que é que vai acontecer e qual é a sua situação processual, não pode sair do tribunal (Ent. 2TRS)
188.
Apesar de a maioria dos técnicos entrevistados defender que seria
produtivo, pelas razões avançadas, a presença do técnico ao longo de todo o
processo judicial, levantam, em simultâneo, a questão da impossibilidade
188 Esta mesma questão é realçada por alguns órgãos de polícia criminal: “A relação que temos
com eles é mais fácil, é mais terra a terra, é muito mais directa. Nós percebemos a linguagem deles. Mas, a sensação que eu tenho é que eles, quando chegam ao tribunal, ou quando chegam a uma instituição, a linguagem que é usada é uma linguagem de adultos: “A medida de coação, medida tutelar…o que é isto?” Se ouvir uma sentença, não vai perceber muito bem… O que é uma medida suspensa, o que é isto na prática? Eu tenho amigos que me telefonam e perguntam: “Eu recebi uma notificação da DGV, da BT…explica-me lá o que isto quer dizer!” Uma coisa tão simples como uma multa de trânsito em que a pessoa é notificada, e tem lá todos os procedimentos, tramitação que ela pode seguir, e olha-se para aquilo e pensa-se “o que é isto?”. E são pessoas com alguma cultura, com alguma capacidade de entendimento que um miúdo não tem. Quando um adulto, muitas vezes com formação superior, não consegue perceber o que é que está num documento, como é que um jovem de 14 ou 15 anos há-de perceber. É preciso adaptarmo-nos” (Ent. 1OPC).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
251
prática de uma maior envolvimento dos técnicos, fruto do excessivo volume de
solicitações para o limitado espectro de recursos humanos.
O estatuto do técnico de reinserção social quando é notificado para
prestar depoimento em sede de audiência de julgamento, enquanto
testemunha, é, também, motivo para reacções adversas, reivindicando um
papel diferenciado, que lhes permitisse, por exemplo, prestar depoimento por
videoconferência ou serem ouvidos com prioridade relativamente aos restantes
convocados.
Nós temos o mesmo tipo de pressão que qualquer outra testemunha sofre e, para alguns técnicos da reinserção social, o momento de prestar depoimento no tribunal tem um stress adicional que não teria que ter. Se eu faço uma avaliação psicológica e vou falar como testemunha, é completamente diferente do que falar como perito. E eu sou perito, não sou testemunha, não vou falar sobre os factos, não vou falar sobre outra coisa que não aquilo que eu fiz, que só eu poderia ter feito. E esse estatuto, esse reconhecimento pelo tribunal é, para mim, fundamental. Depois, somos os últimos a ser ouvidos e, por vezes, nem somos chamados. Perdemos uma tarde de trabalho e ficam relatórios por fazer e miúdos por acompanhar. Tem que se arranjar um meio-termo (Ent. 2TRS).
O técnico não pode ser considerado uma testemunha. O técnico é um elemento auxiliar do magistrado na situação em causa (Ent. 3TRS)
189
Além desse factor, a desestabilização que a deslocação a tribunal para
prestação de depoimento gera nas equipas é objecto de enfoque nas várias
entrevistas realizadas.
Andamos de mala aviada, tipo caixeiro-viajante, uns dias estamos aqui – eu amanhã vou para … – andamos sempre com a pasta atrás, com processos para trás e para a frente... Suponhamos que o técnico está notificado para lá estar às nove e meia, mas atrasa-se pela manhã fora, tem que lá estar não se pode vir embora. Só se pode vir embora se for dado sem efeito, se for adiado ou se for dispensado. E isso traz-nos problemas, uma manhã ali sem fazer nada! (Ent. 3TRS).
189 Um outro técnico refere essa situação: “Os técnicos do Instituto Nacional de Medicina Legal,
que também faz perícias sobre personalidade e são chamados como peritos, e nós como testemunhas. Nós conhecemos o jovem, não porque o vimos passar na rua, mas porque somos profissionais e o tribunal nos solicitou esse conhecimento” (Ent. 1TRS).
252 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Já temos andado à procura de várias soluções, nomeadamente com a Sra. Juiz Presidente, a ver se seria possível arranjarmos uma sala no tribunal com meios para irmos trabalhando e já nos foi dito que sim, mas ainda não demos o passo final. Já tentamos uma outra hipótese, como o tribunal está perto, que nos telefonassem quando fosse a altura de nos ouvirem e rapidamente chegávamos ao tribunal. Não é fácil porque o próprio tribunal é uma máquina cheia de rotinas e de hábitos (Ent. 1TRS).
4.2 O Ministério Público
A Lei Tutelar Educativa e, em geral, a jurisdição de menores, confere ao
Ministério Público um papel central. É ao Ministério Público que cabe a primeira
avaliação da ilicitude da conduta concreta e da melhor e mais adequada
resposta do direito à prática de factos ilícitos por uma criança e/ou jovem,
podendo arquivar liminarmente o inquérito190, suspender o processo ou
requerer a abertura da fase jurisdicional. Importa, por isso, conhecer um pouco
melhor, algumas questões levantadas no âmbito do exercício da acção do
Ministério Público.
A primeira, relaciona-se com a falta de orientações comuns da hierarquia
do Ministério Público, que leva a que se verifique uma grande disparidade de
práticas entre magistrados do Ministério Público, em vários aspectos. Por
exemplo, enquanto alguns assumem uma grande proactividade no
envolvimento com a comunidade, e, em especial, com a escola, outros não.
Tenho dado imenso peso aos relatórios dos estabelecimentos de ensino. Tive reunião com as escolas. Na zona de x tenho 30 liceus. Fiz reuniões com os directores de turma para explicar qual a competência das várias instituições. E aí começou a surgir toda uma série de preocupações (Ent. 2MP).
190 No caso do facto praticado qualificado pela lei penal ser um crime de consumo de
estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o MP poderá arquivar liminarmente o inquérito e encaminhar o jovem para serviços de apoio e tratamento.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
253
O Sr. Procurador tem feito um trabalho muito bom com as escolas, andou por todas as escolas do concelho a explicar o que poderia ser considerado crime ou não, que tipo de informação as escolas deveriam fornecer para ele poder também decidir (Ent. 1TRS).
A propósito da relação com a escola e da falta de orientações foi
concretamente, evidenciada a dificuldade de concretização do conceito de
“violência escolar”, que está a conduzir a actuações muito diferenciadas por
parte dos magistrados do Ministério Público. Há magistrados que acusam
“tudo”, e mesmo que acusam “de mais”.
Nós temos aqui um procurador que acusa tudo. Até acusa duas estaladas entre miúdos. Acusa mesmo sem haver queixa. Vai pelos artigos 146.º ou 143.ºdo Código Penal. Aqui faz-se um “direito penal de menores”. Criou-se uma secção de inquéritos de processos tutelares educativos. Há um procurador que faz todos os inquéritos. O inquérito é tramitado na secção do MP. Aqui entendeu-se que era preciso um MP a controlar os miúdos como criminosos. Ele acusa tudo. Mas depois os procuradores não seguem a mesma tendência nos julgamentos (Ent. 4J).
O procurador daqui acusa de mais. É uma estratégia definida pela procuradoria (Ent. 4J).
Foi, de facto, possível identificar no terreno diferentes “tendências”,
evidenciadas por aqueles profissionais, havendo procuradores que procuram,
em sede de inquérito, a solução mais adequada para o caso concreto,
enquanto que outros enviam, em regra, os casos para julgamento.
Se ler o estudo do OPJ, “Os Caminhos Difíceis da Justiça Tutelar Educativa”, encontra um dado extraordinariamente sintomático: dois anos depois da lei começar a ser aplicada, no MP é enorme a percentagem de casos que morrem e não seguem para diante. Pelos dados de que vou tendo conhecimento através dos contactos com o MP, tenho a mesma percepção. Isto é, apesar de existir a grande cifra negra que nem sequer chega ao conhecimento do MP, mesmo dos que chegam, uma percentagem enorme não segue para audiência. Mas, eu até estou satisfeitíssimo com isto, sabe porquê? Porque, justamente, a criminalidade que nós temos é uma criminalidade bagatelar (P4).
Aquela diferente atitude no processo tem, também, efeitos na aplicação
de mecanismos de diversão:
254 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Em x resolviam-se muitos casos no Ministério Público. Aqui não. Vai tudo para a frente, vai tudo para julgamento (Ent. 5J).
O desempenho funcional do MP, convoca questões já identificadas no
âmbito de outros trabalhos: as questões da organização do MP; das
orientações da hierarquia (sem perda de autonomia dos magistrados); e da
formação especializada dos agentes para o exercício de determinadas
funções191. Estas são questões às quais urge dar resposta. Dada a
centralidade do desempenho funcional do MP na jurisdição de menores, é
fundamental que se implementem políticas concretas que permitam as
mudanças necessárias.
4.3 O Defensor
Ao defensor é atribuído um papel importante, não só na defesa dos
direitos e garantias do jovem delinquente, mas também na procura proactiva da
melhor solução no interesse do jovem e na sua educação para o direito. O
defensor pode, ainda, desempenhar um papel importante na ligação com a
família.
Na perspectiva dos operadores entrevistados, a atitude dos advogados,
que representam os jovens no âmbito de processos tutelares educativos, é
variável, desde defensores muito empenhados, a outros que não demonstram
interesse em conhecer o caso concreto e desempenham um papel passivo.
Há advogados que fazem o seu trabalho e vão para além do seu trabalho, em que se nota interesse genuíno. E outros que estão ali e “faça-se justiça.” Eu não consigo dizer que haja uma tendência de comportamento, varia muito. Mas não associo isso ao facto de ser ou não um defensor oficioso. Eu não consigo ver uma tendência, por serem mais jovens, mais
191 Cf. Gomes (coord.), 2009.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
255
velhos, por serem oficiosos. Normalmente os advogados que são pagos são mais diligentes. Mas, nos advogados oficiosos, eu já vi de tudo. Já vi advogados genuinamente preocupados com o que se estava a passar com o miúdo e advogados que o encaram como mais um fardo (Ent. 1OPC).
A opinião dos técnicos de reinserção social é mais assertiva quanto ao
papel dos advogados que consideram pouco diligentes e preocupados.
Na área tutelar educativa não estão muito nem por dentro, nem interessados. Normalmente, orientam o menor e a família para virem aqui aos serviços. Não temos casos em que o advogado faça um plano. Em penal temos casos em que o advogado faz tudo, faz os requerimentos todos e alguns em que o utente nem sabe o que são nem ao que se destinam mas, na tutelar educativa, não (Ent. 3TRS).
Ainda no plano do defensor, chama-se, também, a atenção para o pouco
conhecimento que, em regra, o advogado oficioso tem da situação, aparecendo
“no momento” e não havendo espaço para conversar com o jovem, havendo
mesmo alguns que não tentam sequer contactar os jovens.
O advogado, se é de famílias com posses económicas, até acompanha todo o processo, porque é um advogado contratado. Agora, grande parte das vezes são defensores oficiosos e aparecem apenas no momento (Ent. 1TRS).
Mas, também sabemos que há advogados que se preocupam em reunir com a família antes e conversam e explicam (Ent. 2TRS).
Ao actual sistema de nomeação dos defensores oficiosos foram
apontados problemas geradores de atrasos no início das diligências.
Por vezes, torna-se um entrave quando queremos ouvir o menor, porque perdemos imenso tempo. O SInOA, há alturas em que funciona bem, mas outras alturas funciona muito mal! (Ent. 4OPC).
A nova forma de nomeação do defensor traz algumas complicações porque nem sempre os nomes que aparecem estão disponíveis. Normalmente os que estão disponíveis não demoram muito tempo a chegar. E sempre que há um problema nós reportamos à Ordem
256 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
dos Advogados. Mas, acho que à escala que estamos há todo o interesse em manter aleatoriedade nas coisas. Se existir escolha, que ela seja feita pela Ordem. Que especialize porque tinha vantagens para os menores ter um advogado que tivesse mais propensão para esta matéria (Ent. 1OPC).
RISCO E DELINQUÊNCIA: ENTRE A PROTECÇÃO
E A LEI TUTELAR EDUCATIVA
5
5. RISCO E DELINQUÊNCIA: ENTRE A PROTECÇÃO E A LEI TUTELAR EDUCATIVA
Introdução
Como amplamente temos vindo a referir, os autores que mais se têm
dedicado ao estudo do fenómeno da delinquência de crianças e jovens, bem
como os agentes que, no terreno, têm que aplicar a lei e, com ela, encontrar
respostas para o fenómeno, enfatizam a complexidade das causas dos
comportamentos delinquentes e reivindicam o adensamento da articulação
entre as instâncias judiciais, outras instâncias do Estado, em especial da
Segurança Social, a comunidade e a família. Atribuem à ausência de respostas
articuladas muito do insucesso (ou do fraco sucesso) das medidas no sentido
de que elas não estarão a responder aos objectivos de prevenção da
reincidência. Há um largo consenso de que esta é uma via que, entre nós, tem
que ser muito mais trabalhada e que será a chave para uma resposta global
com mais qualidade e mais eficácia. Por exemplo, alargar a duração de uma
medida em mais alguns meses pode ser benéfico e necessário, mas pouco
resolverá se depois se “deixar o jovem entregue à sua sorte”, sujeito dos
mesmos factores de risco e de exclusão social sem qualquer rede de
protecção.
260 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
5.1 A articulação processual entre protecção e tutelar educativo
Uma primeira articulação, amplamente consensual, mas que é
necessário, na prática, densificar, é entre a via tutelar educativa e a via de
promoção e protecção. Se é certo que todos aplaudem a separação entre a
Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro)
e Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro), também reconhecem
que são muitas as situações “cinzentas” em que o problema emerge na “veste
da lei tutelar educativa”, mas que tem no seu lastro uma clara situação a
precisar da intervenção, muitas vezes já falhada, no âmbito tutelar educativo.
Como foi amplamente enfatizando, e sem deixar de lado a
responsabilidade pessoal, os “factores de risco” são, em regra, os mesmos e
parecem existir muitas “falhas” nos sistemas de protecção.
Eu quando vi as duas leis ao nascerem, achei muito bem que tivessem sido separadas as coisas, mas muito mal que não fossem buscar os ensinamentos de todos os estudos de desenvolvimento sobre a delinquência que provam que os factores de risco estão presentes para os que cometem crimes e para aqueles que depois deixam de cometer (…) à excepção de uma ou outra coisa mais grave… (P1).
Em 1999 já a família era problemática, e o que me surpreende é como é que o Estado permite que uma mãe cuide de sete filhos e ao fim do quarto que já é criminoso – já nem estou a falar de tutelar educativo, estou a falar de crime – ainda tem mais três filhos para criar que são menores, acabando todos por ser criminosos. (…) a mais nova anda agora aí nos furtos. Esses miúdos já passaram pela promoção e protecção todos os sete, o que mostra que o sistema falhou, quer o social, quer o penal. O sistema social, pelo menos, porque tenho dificuldade em compreender como o Estado saiba que uma mãe não consegue educar os seus filhos e permita que ela eduque os sete da mesma maneira. Este é um caso limite, mas em outra escala acontece com frequência (Ent. 3OPC).
Conheço uma tese de mestrado em que se pegou em todos os processos tutelares educativos daquele ano – eram mais de 200 processos. Desses 200, cerca de 80% tinham tido processos de promoção e protecção antes. Dá a ideia que tudo falhou, mas não sabemos. Devíamos até ter feito o estudo ao contrário: partindo de quantos miúdos com processo de promoção e protecção e, no futuro, quantos chegam a tutelar educativo. E isso não temos. De qualquer maneira, mesmo com esse enviesamento, a realidade é um pouco chocante. Significa que, pelo menos, da totalidade dos processos tutelares educativos
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
261
daquele ano, cerca de 80% já tinham tido outro antes. Portanto, nós estamos a falhar muito antes, mas também durante e depois (P9)
192.
Não me faz espécie decidir em função do facto, do ilícito que foi cometido. Agora, a medida a aplicar devia ser em função dos factores de risco que o indivíduo comporta e se esses factores de risco - independentemente de até serem bagatelas, ou não ter sido uma bagatela - forem de facto de risco. E aí, provavelmente, dir-se-ia, este indivíduo tem um processo, mas vai levar com um tratamento como se estivesse do outro lado, independentemente do facto (P1).
Já no estudo do OPJ, realizado em 2004, esta questão emergiu com
forte relevância, mantendo-se, hoje, grande parte dos problemas e disfunções
dessa articulação e dos efeitos então identificados.
192 O mesmo operador refere: “Não há estudos bastantes, nem estratégias suficientes para
actuar nesse sentido. Não é quando se chega aos 12, 13 anos... Muitos dos miúdos que estão em instituições que são centros de acolhimento, podiam estar num centro educativo, porque são iguaizinhos... Eu tive algum contacto com um centro educativo e foi um dos que foi fechado. Continuou com os técnicos da Segurança Social. As miúdas estão iguais Esta mesma questão é realçada por alguns órgãos de polícia criminal: “A relação que temos com eles é mais fácil, é mais terra a terra, é muito mais directa. Nós percebemos a linguagem deles. Mas, a sensação que eu tenho é que eles, quando chegam ao tribunal, ou quando chegam a uma instituição, a linguagem que é usada, é uma linguagem de adultos: “A medida de coação, medida tutelar…o que é isto?” Se ouvir uma sentença, não vai perceber muito bem… O que é uma medida suspensa, o que é isto na prática? Eu tenho amigos que me telefonam e perguntam: “Eu recebi uma notificação da DGV, da BT…explica-me lá o que isto quer dizer!” Uma coisa tão simples como uma multa de trânsito em que a pessoa é notificada, e tem lá todos os procedimentos, tramitação que ela pode seguir, e olha-se para aquilo e pensa-se “o que é isto!”. E são pessoas com alguma cultura, com alguma capacidade de entendimento que um miúdo não tem. Quando um adulto, muitas vezes com formação superior, não consegue perceber o que é que está num documento, como é que um jovem de 14 ou 15 anos há-de perceber. É preciso adaptarmo-nos” (Ent. 1OPC). em termos de problemáticas, de autocontrolo, de comportamento agressivo, de instabilidade emocional. São as mesmas e segundo as técnicas, estão iguais ou piores. Portanto, é preciso termos noção que a lei, tal como está formulada, não é feliz numa coisa: baseia muito o tipo, a duração e a gravidade da medida em função do acto que deu origem ao processo – é assim na prática sim. E não está aferido, nem tem peso suficiente o que se chama na lei – também, quanto a mim, de forma infeliz – a necessidade de educação para o direito. Nós não temos dados. Só um estudo longitudinal que agarrasse nuns milhares de miúdos é que nos poderia dizer qual a prevalência do comportamento anti-social e qual o tipo de actos que são considerados anti-sociais e que têm relação com o crime na idade adulta. Não temos esse estudo. Há alguns estudos feitos, como o de Cambridge” (P9).
262 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Um dos aspectos salientados relaciona-se com um problema a reclamar
uma solução de natureza processual. Considerando que a “mistura” de
problemáticas não é compatível com a compartimentação que o sistema
judicial faz, os agentes judiciais defendem que os processos de promoção e
protecção e os processos tutelares educativos relativos aos mesmos jovens,
quando existam, deveriam tramitar por apenso. Por esta via, não só a acção de
todo o sistema sobre aquela situação será certamente mais adequada,
permitindo uma visão de conjunto, como serão poupados recursos, por
exemplo, com a repetição de relatórios sociais. O desenvolvimento informático
do sistema permite esse conhecimento e articulação. O que é necessário é,
feitos os ajustes legais, desenvolver um programa de acção adequado para
essa implementação. Vejamos alguns depoimentos que muito bem ilustram
esta situação.
A lei foi boa do ponto de vista da divisão entre a promoção e protecção e a tutelar educativa, mas criou-se uma divisão inaceitável. Nós não sabemos se o jovem tem um processo tutelar educativo ou um processo de promoção e protecção. O processo devia ser tramitado por apenso para podermos conhecer o caso como um todo (Ent. 4J).
Reconheço que pode haver situações complicadíssimas, crianças a precisar de apoio, educação para o direito, mesmo que apenas tenham vindo ao conhecimento do sistema factos menos graves. Mas, eu julgo que o problema está na prática, na falta de articulação entre a Lei de Protecção e a Lei Tutelar Educativa, que está prevista até no próprio regime da Lei de Protecção, mas que, provavelmente, não acontece. Podem acontecer variadíssimas situações, pode acontecer que estejamos perante um facto bagatelar, mas em que se note que aquele indivíduo precisa de uma intervenção. Mas, se calhar aí, devíamos ir para a Lei de Protecção, e essa funcionar devidamente (P8).
Em relação à articulação com a lei de promoção e protecção, na prática não há qualquer interligação. Quando estive na CPCJ, ouvi respostas que não gostei e que contrariei, como «a partir de agora, isto sendo um crime, passa para o tribunal e nós já não temos nada a ver com isso». Ora, a questão que se impunha era, precisamente «E a questão social que está por detrás desse facto criminoso?» A CPCJ, a partir do momento em que a questão passa para o tribunal, parece que já não tem nada que ver com a situação e que se criam portas estanques – mas está na lei, não estão a cometer irregularidades. Há uma falta de articulação. Os tribunais não se articulam com ninguém! (Ent. 3OPC).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
263
5.2 A falta de instituições protectoras de contenção
Neste âmbito, uma questão que impede uma melhor execução prática
dos objectivos do direito, também já amplamente referida no nosso estudo de
2004193, é aquela que se relaciona com a carência de instituições de
contenção, no âmbito dos processos de promoção e protecção, o que, como
então referimos, levava a que alguns operadores afirmassem que fazem uma
espécie de “espera” até que o jovem cometa um ilícito com alguma gravidade
de modo a que, no âmbito da lei tutelar educativa, possa vir a ser internado em
centro educativo, funcionando essas instituições como instâncias de promoção
e protecção, desvirtuando a sua função última e não respondendo, da forma
mais eficaz, ao problema base daqueles jovens. Esta posição mantém-se
actual.
Às vezes até espero que as crianças cometam um crime para os colocar num centro educativo. É que se for uma coisa rápida, eles apanham um susto e é possível pará-los (Ent. 6J).
As instituições de acolhimento que existem, nas palavras de
entrevistados, “não têm nem técnicos, nem capacidade, nem know-how”. Esta
ideia foi amplamente salientada ao longo do trabalho desenvolvido.
Revela-se, assim, necessária a redefinição de políticas e de estratégias
de acção que, não colocando em causa o actual modelo distinto de intervenção
no âmbito da promoção e protecção e tutelar, bem como o total respeito pelos
direitos e garantias das crianças e jovens sujeitos à aplicação da Lei Tutelar
Educativa possam, de facto, assegurar a sua protecção face ao risco a que
estavam sujeitos. Os seguintes depoimentos são elucidativos quanto a esta
situação.
193 Cf. Gomes (coord.), 2004: 292.
264 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A grande falha é não haver instituições de contenção nos processos de promoção e protecção. Os miúdos estão sempre a fugir! (Ent. 6J).
Às vezes, nos despachos, colocamos: «medida de acolhimento em qualquer instituição». É que senão eles fogem e envolvem-se em gangs (Ent. 4J).
Ora, o que temos em termos de medidas de promoção e protecção é vergonhoso! E como sabem, muitas das instituições, quando o magistrado quer pôr lá um miúdo recusam-no... Muitas vezes, o miúdo já saltou de família em família, ou de mãe em mãe, ou de pai em pai, e os mais graves, realmente os que apresentam comportamento mais violento, são sempre estes. E depois, saltam de instituição em instituição! (…) não querem estes miúdos que só lhes dão problemas e não sabem como lidar com eles! «Chutam» para outro lado. Quantas vezes não acontece aos magistrados andarem a ver onde é que «enfiam» o miúdo – perdoem-me a expressão – e não têm onde. São estes miúdos que depois temos, obviamente, num centro educativo, e outros nem sequer chegamos a ter (P9).
Chama-se a atenção que é na faixa etária dos 12 aos 16 anos que mais
se sente a necessidade dessas instituições, sendo que é também nessa idade
que a “aproximação à delinquência” mais facilmente se concretiza. Reivindica-
se, por isso, uma maior intervenção do Estado, quer preenchendo directamente
essa lacuna, quer exercendo a sua função de regulador de supervisão na
verificação das condições de atribuição de subsídios às IPSS que acolhem
crianças.
Há muitas associações que acolhem as crianças, com 5, 6, 7 anos, mas a idade de 12 a 16 anos… não aceitam porque são muito problemáticos. Há aqui um grande distanciamento: ou temos aqueles que são quase criminosos, e esses vão para os centros de acolhimento; ou temos aqueles que começaram a apresentar comportamentos problemáticos e nós não temos resposta para eles. Aqui é que há uma grande falha, acho que é neste faixa que o sistema está a falhar mais (Ent. 1OPC).
Não podemos fazer muito nos processos de promoção e protecção. As instituições são de regime abertíssimo. Vão para uma casa de acolhimento de emergência, e fogem. Só existe uma instituição de contenção, para raparigas e só com 12 vagas. Há instituições que não querem lá delinquentes ou jovens a partir de certa idade. Para uma miúda de 14 ou 15 anos - espertíssima, boa aluna, que de repente passou-se - estamos à espera de vaga desde Agosto para um centro de acolhimento. Não há instituições adequadas. No início as instituições dizem que há vagas e depois quando vai o historial da miúda dizem que já não há vagas. Isto é muito grave. Não dizem directamente que não aceitam (Ent. 3MP).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
265
Além da carência de instituições de acolhimento é, igualmente, realçada
a carência e pouca eficácia de programas para essas crianças e de uma maior
articulação com a sociedade civil e com a família.
A intervenção tem que ser a vários níveis. Primeiro, a prevenção primária. Têm que existir instituições no bairro, vinte vezes mais do que há. Mais IPSS (Ent. 2TRS).
Associações da sociedade civil acho que não têm que ser do Estado, há muitas agora com o Programa Escolhas, há vários projectos aqui na comarca, e são projectos que estão nos próprios bairros, estão junto da população, estão nas escolas, e acabam por estar muito mais próximos da realidade destes jovens. São poucos para o problema que existente, mas são os que conseguem estar a intervir diariamente com os jovens e que os jovens sentem que são parceiros, são alguém a quem podem recorrer (Ent. 1TRS).
A intervenção que funciona, é uma intervenção multi-sistema, com todos os subsistemas que lhe dizem respeito. Um subsistema é o menor, outro é a família, a escola, o grupo de pares – mas é evidente que isto é uma intervenção cara. Tenho alguns casos que me são enviados pelo tribunal para intervir com menores. E o tribunal pede, até, que eu estabeleça um plano de intervenção. Ora, nessa intervenção eu nunca prescindo – no caso de não estarem institucionalizados, porque aí pode ser um pouco diferente – de intervir com os pais, pelo menos com os pais. Fazemos muito a definição de competências parentais. Porque muitas vezes há pais que não sabem ser pais e é por isso que os filhos estão como estão. Pelo que, eu acho que aqui quando o tribunal ordena uma intervenção, cabe, de facto, à equipa técnica dizer e definir o tipo de intervenção que vai ser feita, os aspectos e as pessoas envolvidas. (…) a avaliação que tem sido feita, em termos de boas práticas, é que funciona a imposição de programas de educação parental. Agora, as sanções de tipo punitivo e não responsabilizadoras não têm tido efeito. Sobretudo em França, há sectores muito críticos dizendo que elas têm contribuído para agravar a precariedade da situação das famílias. Ora, isso em Portugal, seria muito provável. Mas eu realmente acho, daquilo que tenho ouvido de colegas de outros países, que a imposição de programas de imposição parental tem dado frutos – até porque, muitas vezes, os pais têm de problemas de não o saberem ser. E eles próprios querem saber e afirmar-se como pais (P1)
194.
194 Outro interveniente refere, ainda, que “A ideia de criminalizar a responsabilização dos pais,
que é, muitas vezes, o que está subjacente quando se pede mais responsabilização, não servirá. Eu considero que essa ideia é de afastar totalmente. (…) Na prática, em X tem acontecido. Isto é, um grande número de famílias recebem o rendimento mínimo, têm menores a cargo. Se eles violam algum daqueles princípios retiram-lhe o subsídio. E se eles já têm dificuldade em termos de sustento dos menores, com o subsídio, ao ser-lhes retirado, estes ficam em perigo. E depois temos de os retirar para o acolhimento. Ora, não faz sentido” (P3).
266 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A escola e os pais aparecem no discurso dos operadores como, em
muitos casos, pouco interventivos e mesmo demissionários.
Na Lei Tutelar Educativa, de acordo com técnicos de reinserção social,
existe “uma clara ausência de mecanismos que vinculem os pais ou os
detentores da guarda do jovem ao apoio da execução da medida”. Nestas
situações referem que, quando “se verificam acentuadas fragilidades no
exercício da função educativa”, apenas conseguem encontrar algum suporte na
Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, nomeadamente através dos
Cursos de Competência Parentais promovidos pelas CPCJ. Na perspectiva dos
técnicos de reinserção social, era essencial que, aquando do acompanhamento
de medidas tutelares aplicadas a jovens com um perfil de marcada
delinquência, se alargassem as abordagens efectuadas às famílias que
constituem “um dos principais factores de protecção ou de risco para o desvio”,
pois em consequência desta falta de articulação, “muitas das aquisições dos
jovens não são acompanhadas de algumas mudanças necessárias no sistema
familiar que mantendo o seu funcionamento habitual, não actuam como
facilitadoras da mudança” (cf. Brazão, et al., 2009).
Se é certo que, no caso dos pais, essa atitude é, em regra, atribuída à
sua desestruturação social, ela própria causal do risco e da conduta da criança
e do jovem, e ou à incapacidade de lidar com a situação, no caso da escola
pela sua condição de organismo público e pela importância social que assume
a intervenção deveria ser mais concertada e sistematizada. Reclama-se, assim,
uma maior aproximação a esta realidade por parte do Estado, quer
directamente, quer em articulação com a sociedade civil e outros organismos
públicos, em especial a escola. Esta articulação é essencial, sobretudo no
plano da prevenção.
Os miúdos ficam de manhã à noite sozinhos. Eles vivem sózinhos. Muitos crescem sem afectos. Não há supervisão parental. Isto tem tudo a ver com a falta de capacidade dos pais para acompanharem os filhos. E isto está cada vez mais grave com a crise económica. A não ser que haja processos de promoção e protecção, os pais não põem os filhos nos ATLs, nos infantários. Uns irmãos criam os outros. Temos muito mais processos de
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
267
promoção e protecção. São muito poucos os processos que se mantém nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens. A maior parte vem para cá (Ent. 3MP).
Estes miúdos que vivem na rua, em que a mãe sai às 5 horas da manhã de casa e volta às 8 horas ou 9 horas da noite porque tem três empregos. O pai é alcoólico, ou está nas obras, e faz o mesmo horário e o miúdo é libertado nas ruas… esse miúdo cresce com os valores da rua, dos mais velhos. Há aqui um grande trabalho que as instituições e organizações de solidariedade fazem que é tirá-los da rua. O grande problema destes miúdos e que nós identificamos como problema quando estamos na CPCJ, é falta de capacidade. Nós identificamos os problemas e depois para onde os encaminhamos? O que precisamos é de espaços onde os miúdos possam estar quando os pais não estão (Ent. 1OPC).
Deveria haver, também, um acompanhamento maior por parte das escolas e dos professores, porque um aluno desses falta a muitas aulas e nem quer saber. Tem muito livre. Estou um pouco afastado dessa realidade da escola, não sei se há controlo ou não há, se os pais são alertados ou não. Mas acho que nestas situações os pais deveriam fazer algo e se não o fizessem eles, teria de o fazer alguém. Mas, nunca deixar arrastar, por muito tempo, esta situação. Porque se o pai e a mãe são incapazes de educar, devem ser substituídos nessa função (Ent. 2OPC).
5.3 O tempo da resposta e a “falha” da protecção
Um outro aspecto, muito enfatizado, prende-se com o tempo de
intervenção efectiva. Todos os entrevistados reconhecem, como demasiado
longo, o tempo que vai desde que a situação de perigo é detectada ou desde o
conhecimento da prática do ilícito até à decisão sobre uma medida (tutelar ou
educativa) e ao seu efectivo cumprimento. A intervenção, até pela idade de
quem vai ser objecto dela, tem que ser o mais próximo do facto que a
despoletou. A intervenção “rápida” é a mais eficaz na prevenção, podendo
evitar, designadamente, o cometimento de crimes de maior gravidade.
Eu acho que se se actuasse mais a montante, logo quando aparecem estes fenómenos, com acompanhamento talvez se conseguissem outros resultados (Ent. 2OPC).
Onde há necessidade de intervir é a montante da Lei Tutelar Educativa, porque um jovem não começa a delinquir aos 14 anos (Ent. 2MP).
268 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A celeridade na resposta a comportamentos desviantes é, assim, vista
como uma necessidade, sobretudo em faixas etárias muito jovens.
Seja quais forem as medidas, considero essencial a celeridade, porque a este nível os miúdos evoluem muito rápido. Um ano à espera de uma decisão é demasiado tempo. Tem que ser imediato e no sentido de perceber que o melhor interesse da criança não é, necessariamente conhecer, até ao pormenor o que aconteceu. Interessa, antes, perceber que há ali um problema e resolvê-lo. Às vezes nas questões judiciais andamos presos por pormenores. Se no caso dos adultos pode ter alguma relevância, no caso das crianças não tem porque não deve ser essa a preocupação principal, mas sim perceber se a criança está em risco e é aquela situação que tem de ser resolvida e não, necessariamente, o facto que ocorreu (Ent. 3OPC).
É transversal aos vários profissionais da justiça a percepção de que
quando um jovem chega ao âmbito da LTE já, em muitos casos, terá falhado a
devida intervenção no âmbito tutelar.
Nós falhámos na altura em que deveríamos ter intervencionado, em criança, quando lhe era mais fácil conseguir alguma coisa (P9).
Quando estamos a falar da falta de resposta do sistema vamos necessariamente bater à questão da falta de respostas de promoção e protecção. (…) Há estudos que referem que, em algumas comunidades e nalguns pontos do país, há fenómenos novos que é preciso ter em atenção, relativamente ao percurso criminoso – se é que isso existe – de crianças com 7, 8 ou 9 anos e por vezes até menos! Tem de se fazer qualquer coisa. Há que caracterizar o problema e ver como é que vamos responder (P3).
A intervenção com o jovem ou com a criança já vem desde a CPCJ (…). Quando nos chegam os processos aos 12 ou 13 anos, o jovem está com um processo tutelar educativo, muitas vezes já teve uma intervenção junto da CPCJ. Nós também sentimos que quanto mais precoce for essa intervenção, mais importante vai ser, depois, a alteração do estilo de vida do jovem, do estilo de vida da família, porque nós acabamos por intervir não só no jovem, mas também em todo o contexto, em todo o meio (Ent. 1TRS)
195.
195 E ainda: “Eu penso que se deveria tentar ir à raiz do problema – às famílias. Penso que uma
solução seria responsabilizar os pais destes menores delinquentes entre os 10 e os 12 anos para que a intervenção pudesse ser mais precoce. De facto, temos jovens de 14 e 15 anos que estão altamente referenciados pela CPCJ, e têm praticado sucessivamente roubos, tráfico,
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
269
(…) o que lhes é tentado ensinar lá não tem o mesmo resultado, porque está junto de colegas que, por exemplo, fomentam um determinado tipo de comportamento. Ou seja, pode até querer aprender e sair deste ciclo, mas não consegue devido à pressão do grupo. Eles estão juntos com os colegas, não estão com os educadores. Eu gosto de falar com exemplos. O x era um miúdo que faleceu, que conheci com 16 anos mas que já tinha uma história antiga. Já não se enquadra bem nesta questão da LTE, mas é só para perceber esta questão da influência do grupo. Era um rapaz muito alto com uma postura que gostava de sobressair. E para o fazer escolheu, junto com mais 3 ou 4, por meio de coacção, roubar as sapatilhas, casacos, telemóveis de outros miúdos, à porta das escolas. Houve, nessa altura, de facto, um pico de roubos por via da sua acção. Era considerado um mito no bairro y. Foi detido por nós várias vezes, mas nunca ficou em prisão preventiva e continuava a praticar roubos, bem como os outros miúdos, até já sem ele. Ora, só quando ficou em prisão preventiva é que foi provocado o efeito contrário. Nas primeiras vezes, ele tinha os outros miúdos cá fora e faziam grande algazarra. Nesse dia, ele saiu cabisbaixo e disse-lhes: «vou dentro». E à volta ficou tudo na «mó de baixo». Depois, prendemos mais dois ou três miúdos e a coisa resolveu-se. Houve um exemplo que ajudou a dissuadir os outros. Ou seja, não foi preciso responsabilizar todos os miúdos para eles perceberem que aquilo era errado e tinha consequências. Daí que, no caso da LTE, o caso do x, de que falei, arrastou-se demasiado tempo. Penso que, por vezes, uma medida tomada imediatamente, tem um efeito muito mais dissuasor e eficaz. Basta imaginar que nenhum pai castiga o seu filho por uma coisa que este fez há cinco semanas atrás (Ent. 3OPC).
5.4 A execução das medidas e a procura de outras respostas
O trabalho de campo realizado não permite avaliar a execução das
medidas e, como já assinalámos, não era esse o objectivo desta investigação.
Podemos, contudo, referir como nota geral que, ao mesmo tempo que são
salientados alguns aspectos que, na opinião dos operadores, poderiam ser
melhorados, também é salientada a qualidade e o esforço da DGRS, com os
meios de que dispõe – e a falta de meios também é muitas vezes salientada –
furtos, ofensas à integridade física, e já com algum grau de violência. Violência esta que é apenas física durante o dia, mas, com recurso a armas brancas, por exemplo, à noite. Só podemos concluir que as medidas não estão a funcionar, para o que contribui o facto dos processos serem morosos” (Ent. 6OPC).
“Nós não temos cultura de prevenção primária e não tem sido muito o esforço que têm feito as comissões de protecção juntamente com a rede social, para que os programas de prevenção primária sejam uma realidade. O esforço destas instituições não tem tido muito sucesso, é pouco mas está em progresso” (P6).
270 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
na execução das múltiplas funções, salientando-se algumas inovações,
sobretudo, no âmbito da medida de acompanhamento educativo.
Deixamos aqui algumas notas (apenas aquelas que obtiveram um leque
mais alargando de opiniões comuns) que emergiram no discurso dos
operadores pela busca por um outro tipo de respostas que potenciem mais
eficácia de resultados das medidas aplicadas no sentido da prevenção da
reincidência. São operadores que, no seu quotidiano, lidam com estas
problemáticas, por serem eles próprios agentes da aplicação ou da execução
das medidas. A sua percepção ocorre, assim, num ambiente informado,
devendo, por isso, ser valorada.
(…) muita da ineficácia, ou pelo menos da sensação de ineficácia, no que toca aos pequenos delitos, vem do facto de as medidas previstas na lei não serem devidamente executadas. De facto, ou não são executadas, ou são executadas de maneira deficiente e não há um estudo sobre isso. – como é o acompanhamento tutelar educativo, está a ser assegurado, está a funcionar? Nunca foram regulamentadas! Não há estruturas nem referências. E isso é uma falha imensa (P3).
(…) não é preciso mudar a lei, o que é preciso é executar o que está na lei e criar as estruturas necessárias (P7).
Um dos maiores problemas que sinto nestes processos prende-se com a demora - cerca de 3 meses - e deficiência da resposta por parte dos técnicos. A resposta dada não é adequada, nem criativa, e denota uma evidente falta de recursos humanos. Exemplos disso são os relatórios apresentados pela DGRS que são cada vez mais fracos, uma vez que, por um lado, os técnicos deixaram de ir aos locais e passaram a chamar as pessoas às suas instalações e, por outro lado, são cada vez menos criativos (Ent. 5J).
E de facto é complicado. (…) se a equipa estivesse dotada de um número suficiente de técnicos e que só fizessem aquela matéria tutelar educativa, não obstante as dificuldades com que contamos de adesão do jovem, aí seria uma intervenção diferenciada, mais exaustiva e mais rigorosa. Assim, faz-se o melhor que se pode, mas nem sempre é possível
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
271
fazer tudo aquilo que está estipulado no manual ao nível do acompanhamento educativo. Não é possível. Mas tenta-se seguir e fazer. Mas não é fácil (Ent. 3TRS)
196.
Também no âmbito deste trabalho, voltou a ser salientado o problema da
consequência da não adesão ou de não cumprimento, por parte do jovem, da
medida aplicada não institucional no âmbito da questão mais vasta da
flexibilização de medidas, a que já aludimos no ponto IV.2.2.
No entanto, foram as medidas de internamento que mais questões
levantaram. Desde logo, o problema da localização dos centros educativos,
ainda mais centralizados em consequência da extinção de várias unidades com
a publicação da Portaria n.º102/2008197, o que distancia as crianças e jovens
das respectivas famílias e, na opinião de vários técnicos, pode dificultar a sua
reintegração depois da saída do centro, mas também a sua própria vivência
dentro dele.
Sobre o efeito das medidas em meio institucional, reconhecendo-se que
elas possibilitam a aquisição de competências sociais e comportamentais
significativas, já se duvida se o tempo aí passado seja suficiente “para uma
inversão consciente e sustentada das suas trajectórias” devido,
essencialmente, a duas ordens de razão: por um lado, a escassez de trabalho
196 E refere, ainda, o mesmo técnico: “Eu acho importante termos uma equipa especializada,
até porque nos permite conhecer e trabalhar com o tutelar educativo. Penso que trabalhar com menores implica uma dedicação diferente. E até a interpretação não pode ser feita de forma tão inócua, tem de ser muito mais envolvida, falar com outras pessoas, com muito mais tempo, e tem de ser muito mais eficaz. Ora, é um trabalho que desgasta e não existe, de modo nenhum, um reconhecimento daquilo que é feito aqui, e do que deviam ser os investimentos a nível de recursos que têm de existir no âmbito tutelar educativo. Mas, também, ao mesmo tempo, é o que faz sermos específicos e termos uma grande variedade geográfica, nós conseguimos fazer tudo, mas não ao mesmo tempo” (Ent. 3TRS).
197 Foram extintos os centros educativos seguintes: a) Centro Educativo de Corpus Christi, em
Vila Nova de Gaia; b) Centro Educativo de São José, em Viseu; c) Centro Educativo de São Fiel, em Louriçal do Campo, Castelo Branco; d) Centro Educativo Dr. Alberto do Souto, em Aveiro; e) Centro Educativo de São Bernardino, em Atouguia da Baleia, Peniche; e f) Centro Educativo de Vila Fernando, em Vila Fernando, Elvas.
272 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
específico de intervenção com os educandos e, por outro lado, a cisão com o
exterior, imposta pelo internamento em regime fechado e mesmo em regime
semiaberto (cf. Neves, 2008).
A maioria dos entrevistados manifestou uma posição, em simultâneo, de
um melhor ajustamento da duração das medidas e de mais investimento na
definição de programas adequados. São, a esse respeito, expressivos os
seguintes depoimentos.
Também para Ana Zita Silva, “num lugar onde se pretende ressocializar
jovens, a opção não pode ser o isolamento, a competição ou a existência de
uma subcultura marginal dentro das instituições que têm a seu cargo esta difícil
tarefa”, pelo contrário, “a aposta deve ser no incitamento do trabalho de grupo,
da cooperação, entreajuda, resolução de conflitos e educação para objectivos,
ou seja, a promoção de competências pessoais e sociais que diminuam os
factores de risco associados”, finalizando com a convicção de que tal só é
possível “recorrendo a modelos comportamentais, de técnicos que centram a
sua abordagem num paradigma de proximidade e de empatia, verdadeiros
agentes de mudança e parceiros de relação” (cf. Silva, 2009).
Ana Manso e Ana Almeida (2009) dão conta das conclusões de um
estudo de carácter quantitativo sobre o discurso de 15 jovens do sexo
masculino, entre os 14 e os 18 anos, institucionalizados num Centro Educativo.
O objectivo do estudo é as percepções subjectivas dos jovens
institucionalizados sobre a ordem jurídica em geral e a medida de
internamento, em particular. Quanto à medida de internamento a percepção
dos jovens - ainda que valorizem as suas aprendizagens durante o tempo de
internamento - apenas reveste carácter sancionatório. O discurso destes jovens
demonstra, segundo as autoras, que estes têm uma concepção ambígua
relativamente à medida de internamento que, em simultâneo, se revela como
punitiva e educativa. No que concerne ao Projecto Educativo Pessoal os jovens
vêem-no como “moeda de troca” com o tribunal, uma vez que se este for
cumprido a medida aplicada pode ser revista. Uma vez findo o cumprimento da
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
273
medida, os jovens reconhecem a possibilidade de ocorrerem algumas
mudanças positivas, mas deixam transparecer muitas dívidas, incertezas e
receios (cf. Manso e Almeida, 2009).
5.5 A duração das medidas
A duração do período de internamento em centro educativo nem sempre
é conciliável com a frequência de cursos de formação, com a duração do ano
escolar, ou com a duração de tratamentos terapêuticos, como foi amplamente
focado no decurso desta investigação.
A prática o que nos mostra é que, por vezes, não é feito cálculo correcto. Há jovens que estão a cumprir a medida de internamento e que se depois do terminus da medida lá estivessem ou continuassem a cumpri-la cá fora mais 3 ou 4 meses, terminavam aquele curso que estavam a tirar. Enquanto que se acabar a medida, termina por ali e já não podem terminar a formação. Ora, isto acontece muitas vezes. Se tudo funcionasse muito bem, tinham começado o curso antes, mas por vezes até há questões relacionadas com o início do ano escolar e que têm de ser acauteladas. E falamos em cursos, mas podíamos falar numa intervenção terapêutica que até estava a dar resultado e, de repente, é interrompida (P3).
Por vezes, as medidas são demasiado curtas para inverter trajectórias delinquentes. Por isso, a intervenção é feita, muitas vezes, demasiado tarde. E nós não podemos querer o melhor de dois mundos, isto é, querer o internamento, mas ao mesmo tempo, demonizá-lo, querer transformar as crianças, mas não dar tempo para a transformação, ter um interesse superior, mas depois, esse interesse superior passar a ser o tentar sair o mais rapidamente possível do mecanismo que nós criámos para inverter o percurso. (…) O que eu noto é que não é muito claro qual é, exactamente, o mandato do centro educativo. Não há um modelo educativo! (…) o que eu encontrei em vez desse modelo educativo, foi um mecanismo de defesa institucional em que o centro educativo está essencialmente preocupado e atento à gestão da potencial desordem. Se queremos diferenciar o tratamento, acho que temos de correr riscos e acho que parte da educação passa por assumir poder fazer algumas coisas. Pode correr melhor ou pior. Mas um centro educativo não pode estar, quase exclusivamente, orientado para a gestão e para supressão da imponderável catástrofe, briga ou fuga. Isso aí é que me parece altamente castrador e muito pouco educativo, no sentido de que não alarga, antes pelo contrário, apresenta uma visão completamente dicotómica e simplista do mundo – ou é bem ou é mal, ou é preto ou é branco (P5).
Eles fazem actividades de formação, actividades escolares e desportivas, bem como ocupação de tempos livres. Mas, em termos de reabilitação psico-social - quer individual ou
274 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
em termos de programas grupais - é praticamente inexistente. Em termos organizativos têm de cumprir um programa de formação e alternância com a escolaridade, que os miúdos não têm tempo para fazer nenhum programa, quanto mais o acompanhamento individual! Portanto, há um problema, os técnicos não têm tempo para intervir - a não ser que intervenhamos aos sábados de manhã - porque não há uma hora e meia durante a semana para fazer o programa... O que eles fazem é formação e é escola. São aqueles programas de formação profissionalizante, com oficinas, ateliers etc., e depois, a escola (P9).
E DEPOIS DA EXECUÇÃO DA MEDIDA TUTELAR
DE INTERNAMENTO?
6
6. E DEPOIS DA EXECUÇÃO DA MEDIDA TUTELAR DE INTERNAMENTO?
Introdução
A ausência de mecanismos que permitam uma aproximação do jovem
sujeito a medida de internamento ao meio aberto, criando pontes que
consintam na solidificação do trabalho realizado no centro educativo, continua
a ser uma preocupação dos entrevistados no âmbito do presente projecto de
investigação. Este acompanhamento na saída do Centro Educativo é visto
como um dos componentes essenciais para o sucesso da aplicação da medida
tutelar. Mapeamos, neste ponto, alguns dos problemas que condicionam esta
aproximação.
6.1 A necessária transição
A Lei Tutelar Educativa prevê expressamente o princípio da
jurisdicionalização da execução das medidas tutelares educativas (artigo 28.º,
n.º 1, alínea c), e 39.º da LTE), conferindo ao juiz um conjunto de competências
quer fiscalizadoras, quer participativas198. A execução da medida de
198 A título de exemplo, compete ao juiz “ordenar os procedimentos que considere adequados
face a ocorrências que comprometam a execução e que sejam levadas ao seu conhecimento”, “acompanhar a evolução do processo educativo do menor através dos relatórios de execução
278 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
internamento sofre, na LTE, especial densificação, prevendo-se a elaboração
de um projecto de intervenção educativa próprio para o jovem (artigo 162.º da
LTE), sujeito a homologação judicial (artigo 164.º da LTE), e a informação
periódica do Tribunal quanto à execução da medida e à evolução do processo
educativo do jovem (artigo 154.º da LTE).
Por outro lado, um dos baluartes da Lei Tutelar Educativa prende-se
com a consagração do princípio da actualidade no que respeita quer à escolha
da medida tutelar educativa aplicável, quer no que respeita à sua execução e
revisão. Tomando sempre em consideração o facto cometido como baliza
exigida pelo princípio da proporcionalidade, o actual regime tutelar educativo,
consciente da rápida mutação que as circunstâncias envolventes do jovem
sofrem, privilegia o momento actual do jovem.
Prevê, assim, dois conjuntos de situações em que a medida aplicada
pode ser revista: um no sentido do seu aligeiramento e outro no sentido de
reforçar o cumprimento de uma medida. No primeiro caso, estatui que as
medidas tutelares possam ser sempre revistas desde que se verifique a
impossibilidade superveniente da sua execução por facto não imputável ao
jovem; onerosidade excessiva superveniente da execução da medida aplicada;
desajustamento da medida ao jovem, no decurso da sua execução, de forma a
que se frustrem manifestamente os seus fins; desnecessidade da continuação
da execução por força dos progressos educativos alcançados pelo jovem
(artigo 136.º, n.º 1, alíneas a) a d) da LTE). Nestes casos, tratando-se de
revisão de medida de internamento, abre-se ao juiz a possibilidade de manter a
medida aplicada, reduzir a sua duração, modificar o regime da sua execução,
substituir por medida não institucional, suspender a execução da medida de
das medidas”, “decidir sobre os pedidos e as queixas apresentados sobre quaisquer circunstâncias da execução das medidas susceptíveis de pôr em causa os direitos dos menores” e “realizar visitas aos centros educativos e contactar com os menores internados”.
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
279
internamento ou pôr termo à medida aplicada, declarando-a extinta (artigo
139.º, n.º 1, da LTE).
No segundo caso, que engloba as situações em que o jovem se colocou
intencionalmente em situação de impossibilidade de cumprimento da medida,
ou em que houve uma violação grosseira ou persistente dos deveres inerentes
ao cumprimento da medida199, tratando-se de revisão de medida institucional, o
Tribunal pode proferir uma advertência quanto à gravidade da conduta do
jovem e às suas consequências, prorrogar a medida por um período até um
sexto da sua duração (nunca excedendo o limite máximo legal de duração
previsto), e modificar o regime de execução, substituindo-o por outro de grau
imediatamente mais restritivo, desde que a aplicação da medida de
internamento resulte da prática de facto qualificado pela lei como crime a que
possa ser aplicada esse regime mais restritivo (artigo 139.º, n.ºs 2 e 3, da LTE).
Por outro lado, como corolário do princípio da actualidade, a lei fixa a
possibilidade de revisão das medidas tutelares a qualquer momento, a
requerimento do Ministério Público, do jovem, dos pais ou representantes
legais, do defensor do jovem, mediante proposta dos serviços de reinserção
social, ou oficiosamente200; e ainda a obrigatoriedade de revisão da medida
tutelar decorrido um ano do início da sua execução, da anterior revisão, ou da
aplicação da medida (nos casos em que a execução da medida não se tenha
iniciado imediatamente)201, prevendo prazos mais estreitos para as medidas de
internamento em regime semiaberto e fechado (seis meses)202.
199 Cf. artigo 136.º, n.º 1, alíneas e) e f), da LTE. Uma outra situação reporta-se ao cometimento
pelo jovem com idade superior a 16 anos de infracção criminal (cf. artigo 136.º, n.º 1, alínea g).
200 Cf. artigo 137.º, n.º 1, da LTE.
201 Cf. artigo 137.º, n.º 2, da LTE.
202 Cf. artigo 137.º, n.º 4, da LTE.
280 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
A Lei Tutelar Educativa procurou, assim, dentro da execução da própria
medida tutelar de internamento, criar momentos de flexibilidade que
permitissem dar uma resposta acompanhada da evolução do jovem. Questão
diferente é a de saber como está essa flexibilidade a operar na prática. Essa
filosofia da lei é realçada por alguns entrevistados.
(…) o juiz pode, aplicando o instituto da revisão, pôr termo à medida antes da duração mínima. E porquê? – em nome do princípio da actualidade das necessidades de educação para o direito. O que está aqui a querer acautelar-se é o superior interesse do menor (P4).
Alguns entrevistados enfatizaram a preocupação de aproveitar essa
abertura da lei para fazer a aproximação do jovem ao meio aberto.
Nós quando estávamos nos Olivais tentávamos sempre que fosse possível e fizesse sentido para o jovem em causa antecipar a saída e nós fazíamos muito isso, com acompanhamento educativo ou com uma medida que permitisse algum suporte (…). Nunca caiam de pára-quedas ali. Havia sempre essa preparação (Ent. 4TRS).
O que tem acontecido também é a revisão da medida de internamento para medida de acompanhamento educativo e, portanto, conseguimos fazer um pouco esta passagem para o meio livre (Ent. 1TRS).
Os PEP são periodicamente reformulados, com alteração do regime da medida (Ent. 2MP).
Eles fazem planos de aproximação do menor ao meio aberto e à família. As medidas podem ser sempre alteradas (Ent. 4MP).
O mencionado trabalho de acompanhamento do jovem quando este sai
do centro educativo é visto como essencial, de acordo com a consideração
segundo a qual a intervenção no meio social do jovem é um dos componentes
essenciais para o sucesso da aplicação de qualquer medida tutelar.
Aquilo que a investigação demonstra é que a intervenção que, entre nós, funciona, é uma intervenção multi-sistema, com todos os subsistemas que lhe dizem respeito. Um
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
281
subsistema é o menor, outro é a família, a escola, o grupo de pares – mas é evidente que isto é uma intervenção cara (P1).
Um dos entrevistados defendeu mesmo que este deveria ser um
trabalho a realizar desde o início da execução da medida de internamento,
através de um trabalho conjugado com a família e o jovem.
O que é necessário é que, efectivamente, se veja quais são as condições em que o jovem está ou que estará quando se extinguir a medida e voltar ao seu meio natural. Quando entra no Centro Educativo, é necessário, desde logo, começar a preparar o seu regresso. Pelo menos no trabalho possível com a família. E depois, naturalmente, fazer intervir o sistema, se isso significar, naturalmente, uma situação de perigo. Ou então, se não se verificar uma situação de perigo, mas significar uma dificuldade social, são os serviços sociais que devem responder a essa situação (P4).
No entanto, para um número significativo de entrevistados, a
possibilidade de revisão da medida de internamento, permitindo a sua
substituição por medida não institucional, não é suficiente para alcançar as
finalidades da lei. Avançam-se dois argumentos. Por um lado, realça-se o facto
de o jovem, quando sai do centro educativo, regressar, em regra, para o
mesmo meio social que esteve na origem do seu comportamento, sem que o
seu contexto social e familiar tenha tido alteração significativa.
Quando um indivíduo sai do centro educativo tem sempre a escolha e tem sempre a capacidade, mas continua a ter os mesmos problemas e as mesmas forças centrífugas que tinha antes, nomeadamente os pares, a falta de alternativas, quer a nível escolar quer a nível profissional, a mesma família, se calhar o mesmo pai maltratante ou a mesma mãe negligente (Ent. 2TRS).
Os que estão nos centros educativos estão numa redoma e os colegas dessas instituições até mudaram algumas formalizações, alguns pensamentos, até conseguiram fazer um bom trabalho junto daqueles jovens, ao nível de pensamentos, emoções, através de estágios de grupo ao nível de competências sociais e pessoais. Só que depois, cá fora, está tudo na mesma. O jovem evoluiu, mas a família está exactamente na mesma, o bairro na mesma, assim que sai cá para fora, ele próprio tem de se adaptar. Assim, é muito importante esta passagem, sair dali e voltar a saber viver onde vivia, com aquela família naquele bairro, e ajuda se essa passagem for feita com a nossa ajuda – de equipa não institucional – com a nossa colaboração (Ent. 1TRS).
282 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Defende-se, assim, que a medida de internamento deveria incorporar
nela mesmo um período de aquisição de competências, mas em meio
aberto203.
A medida de internamento deveria prever, ela própria, um período de adaptação. Penso que fazia algum sentido que houvesse essa proporcionalidade entre o tempo de internamento e algum tempo de acompanhamento. (…) Era uma supervisão. Tínhamos preocupação de o integrar no contexto escolar, numa profissão. A lei carece de algum ajuste que previsse dar continuidade à intervenção do internamento. Há ali um intervalo, rotinas que se perdem, às vezes vão até para outros locais, até vemos que fazia sentido ir para outra zona, porque a família até fez movimento para sair daquele meio mais problemático ou entretanto há outro familiar até com um enquadramento diferente (Ent. 4TRS).
Mais do que baixar idades ou endurecer medidas, o que tinha de ser melhor pensado, para adequar-se a estas idades – algo que fizesse a transição – exactamente nos casos mais graves, os que vão para internamento – entre a vida no Centro Educativo e a vida cá fora. Aqui penso que há uma lacuna grave. Os princípios gerais parecem-me até muito bem pensados e parece que não temos de embarcar sempre no que se passa nos outros países, até porque a nossa realidade é diferente, agora, a transição seria importante (P8).
A ausência de um momento de transição entre o meio contentor do
centro educativo e o regresso ao seu meio de origem é encarada, assim, como
um dos obstáculos ao cumprimento dos objectivos previstos na execução da
medida de internamento, podendo dar origem ao desperdício das experiências
vividas e das competências pessoais e sociais entretanto adquiridas.
203 Um dos entrevistados avança propostas alternativas: “Eu penso que há que flexibilizar o
final das medidas, designadamente com um período de acompanhamento após a saída. (…) Para mim há várias hipóteses: Primeiro, no âmbito da própria medida, deve haver uma previsão, que aliás, de certa forma, já hoje é feito, de numa fase final a medida ser alterada no sentido de uma inserção na comunidade. Ou seja, a medida deixa de ser de internamento, é revista e passa a ser um acompanhamento educativo ou aquilo que fosse preciso para a reinserção. – ainda estamos na fase do cumprimento da medida. Há outra possibilidade que é a medida em si terminar e terminar enquanto medida, e mesmo assim verificar-se que há necessidade de acompanhamento daquele jovem, até com medidas por exemplo para autonomia de vida como existe na promoção e protecção. Assim, apesar de terminada a medida, mas se o menor precisa de algum apoio para ter casa, para formação profissional etc., ser assegurado este apoio. Possibilidade esta que, inclusive, está prevista na lei bem como as entidades que a devem assegurar” (P4).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
283
O segundo argumento avançado para criação legal daquele momento de
transição dentro da própria medida de internamento prende-se com a
dificuldade prática relatada numa correcta articulação entre, por um lado, as
equipas da Segurança Social e as equipas da DGRS, e, por outro entre a Lei
de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo e a Lei Tutelar
Educativa.
Eu penso que tem de ser um acompanhamento para a inserção – pode não ser uma transição de um regime para outro – ou seja, se isto funcionasse muito bem, podia ser feito no âmbito da protecção. Mas, como nós sabemos que a articulação é difícil e que nesse aspecto será complicado, porque o sistema de segurança social não se articula com o restante (P3).
Resulta, assim, do trabalho de campo, que, em regra, as equipas da
DGRS deixam de ter qualquer contacto com jovem quando a medida de
internamento cessa no termo do seu prazo, havendo estanquidade no
momento de intervenção destes técnicos. Depois, apesar de não raras vezes
os jovens sujeitos a medidas tutelares educativas terem tido já processos de
promoção e protecção, a partir do momento em que se regista a prática de um
facto qualificado pela lei como crime por tal jovem, a intervenção por banda da
promoção e protecção, em regra, cessa.
Intercomunicabilidade?... Já várias vezes tenho tido situações em que há processo tutelar e houve processo de protecção, mas depois fechou porque o miúdo não aderiu, fez-se o acordo mas não adere, entretanto vai mesmo para o delito e a comissão fecha-se à intervenção porque já esgotou os recursos (Ent. 4TRS)
204.
204 Chama-se a atenção para o facto de o problema não estar na lei, mas sim na prática: “O
sistema está preparado para isso. São as pontes com a lei de promoção e protecção que não estão a funcionar. (…) Não há uma ligação suficiente entre os dois sistemas. (…) É a prática. Essas medidas de transição devem ser consideradas dentro da duração da medida. (…) Sem prejuízo da protecção depois. Estou a dizer enquanto a medida durar. Não quer dizer que não possa ir para a protecção depois (…) E esta possibilidade está oferecida, não está é cumprida” (P4). Reafirmando que o que importa é cumprir a lei e agilizar os mecanismos de promoção e protecção: “Se falamos no interesse do menor, em apoiar o menor, então há que agilizar,
284 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Em relação à articulação com a lei de promoção e protecção, na prática, não há qualquer interligação. Quando estive na CPCJ, ouvi respostas que não gostei e que contrariei, do género: “a partir de agora, isto sendo um crime, passa para o tribunal e nós já não temos nada a ver com isso”. Ora, a questão que se impunha era, precisamente – e a questão social que está por detrás desse facto criminoso? A CPCJ, a partir do momento que a questão passa para o tribunal parece que já não tem nada que ver com a situação e que se criam portas estanques – mas está na lei, não estão a cometer irregularidades (Ent. 3OPC).
Salientam-se, ainda, algumas dificuldades que se prendem com as
próprias opções legislativas, nomeadamente com os limites etários impostos
para que seja possível uma intervenção da Lei de Promoção e Protecção.
Se o menor sai com 16 ou 17 anos, e não tiver nenhum processo de promoção e protecção antes, já não pode ser instaurado (P3).
Mas, os entrevistados chamam a atenção para as cautelas que deverão
necessariamente ser observadas na consideração desta questão. Assinalam a
necessidade absoluta de respeito pelo princípio da proporcionalidade na
previsão de um período de adaptação ao meio aberto e a necessidade de
distinguir entre aquelas situações em que, chegando ao final da medida, a
intervenção pura e simplesmente falhou, daqueloutras em que não foi possível
alcançar todas as finalidades da medida por questões práticas e objectivas,
externas ao jovem. Neste contexto, há quem defenda que os fundamentos que
levaram à criação de uma liberdade vigiada em Espanha e no Reino Unido não
nesse aspecto, os mecanismos da promoção e protecção que sempre estiveram contemplados na lei, desde o 1.º momento. Uma das vantagens desta lei foi não ter querido ir para um modelo de justiça e fechar a porta a um modelo de protecção, daí ter-se deixado ficar a ponte com o sistema de protecção. Porque, um jovem que precisa de escola, de casa, de formação profissional, está em risco, se tal não funcionar, de não ter o seu desenvolvimento adequado. (…) O que é errado, é continuar a ver-se que para ter escola e dar formação profissional, é necessário privar de liberdade. Então, tínhamos que ter muitas prisões para jovens, para ultrapassar o nosso problema de iliteracia e de abandono escolar. A lei já tem este mecanismo. Agilize-se este mecanismo. E não esquecer que, os países onde isto foi instituído, o que foi fixado foi a liberdade vigiada obrigatória após o internamento, mas, porque aí as medidas de internamento são muito longas – como se disse, em Espanha, por exemplo, subiram para 8, 10 anos. Mas nós quando falamos aqui na LTE em liberdade assistida – não lhe quero chamar vigiada – estamos a falar no interesse do menor” (P4).
Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal
285
tiveram por base o interesse do jovem e sim interesses da segurança da vida
em sociedade.
Entre nós tem andado a cultivar-se o pretender copiar do sistema espanhol, a chamada liberdade vigiada que é um internamento em centro educativo complementado, obrigatoriamente, por um período de liberdade vigiada. O que existe também no sistema de internamento, a partir dos 10 anos, no Reino Unido, em que os menores a quem são decretadas medidas de internamento têm, obrigatoriamente, um período de liberdade vigiada. Mas isto acontece porquê? Por uma razão muito simples – não é em nome do interesse do menor, é no interesse da segurança da sociedade. É um interesse securitário porque se subordina a este período de liberdade vigiada e que se chama exactamente assim, correspondendo a um período de verdadeira liberdade condicional. Trata-se de um período em que cabe ao menor provar como é que se porta. Se não se portar bem volta para dentro do centro. Mas como disse, isto não foi feito em nome do interesse do menor (P4).
V. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
CONCLUSÕES
1
1 CONCLUSÕES
1. Risco social, crime e insegurança são temas que, quando se fala de
delinquência juvenil, amiúde se interligam e que, no contexto europeu, têm
vindo a ocupar um espaço crescente no debate público e na agenda política.
Contudo, e não só entre nós, nem sempre a reflexão em torno deles assenta
em dados que permitam analisar com rigor os principais contornos da realidade
social que lhes está subjacente, como, por exemplo, a verdadeira dimensão da
criminalidade de crianças e jovens, caracterizando as cifras ocultas, as vítimas,
os agressores e os tipos de crime que chegam às instâncias formais de
controlo, bem como os seus vários contextos de origem e de acção, de modo a
desenvolverem-se políticas que mais assertivamente actuem sobre o fenómeno
da criminalidade juvenil. Na sua ausência ou deficiência prevalecem as
percepções sociais induzidas por um contexto, em geral de grande
mediatização do crime e da justiça.
2. Os estudos que sobre esta temática têm vindo a ser desenvolvidos
chamam a atenção para a construção social do conceito de delinquência
juvenil, vista como algo que se desvia do tipo ideal de criança protegida e
submissa à autoridade, e para a sua variabilidade no espaço e no tempo, muito
influenciada pelos meios de comunicação social e pelas representações sociais
que veiculam sobre a delinquência juvenil. A forma como a informação é
produzida e tratada no discurso mediático, contribuindo para a manipulação
noticiosa dos jovens, enquanto categoria problemática, e situando o enfoque
292 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
nas situações de maior gravidade, por um lado, condiciona as representações
dos cidadãos e, por outro, fomenta o sentimento de insegurança das
populações.
3. A tentativa de desconstruir a imagem veiculada pela comunicação
social levou-nos à reflexão em torno do discurso mediático sobre crianças e
jovens e justiça, categorizado através da análise das notícias de imprensa de
2009, procurando identificar os temas e as suas características principais.
Paradoxalmente, no conjunto dos artigos seleccionados onde os menores são
objecto principal do discurso jornalístico, são-no, sobretudo, como vítimas, não
como agressores. A figura do menor agressor surgiu numa cobertura mediática
que teve três temas principais – os casos de delinquência, as respostas
políticas à delinquência e o funcionamento do sistema que lida com ela – e dois
tipos principais de discurso informativo e interpretativo.
4. Os casos de delinquência tiveram uma cobertura regular ao longo do
ano, com uma cobertura extraordinária em torno dos distúrbios da Bela Vista.
Tratam-se, geralmente, de furtos ou roubos de veículos (por vezes carjacking),
de estabelecimentos comerciais (bombas de gasolina, stands de automóveis,
supermercados), de residências, mais esporadicamente de pessoas na via
pública, caso ocorram em série e empreguem alguma violência. Mais
raramente surgem crimes sexuais, cometidos por jovens sobre outros jovens,
crimes contra a integridade física sem objectivo de roubo, como o gang
Bruxelas Street, que agredia jovens que abordava nas imediações de uma
escola no Cacém, incêndios ou fugas dos centros educativos.
5. As respostas à delinquência, no discurso dos media, centram-se,
sobretudo, na acção do Estado, sendo os artigos dominados por duas questões
principais: a revisão da lei tutelar educativa e a antecipação/alargamento da
idade de imputabilidade penal. A eclosão dos distúrbios da Bela Vista resgata o
tema das respostas políticas. Para além de respostas de cariz mais
sociológico, os media procuram respostas no plano jurídico-institucional e
reabre-se o debate sobre a fronteira justiça de menores/justiça penal. Os
Conclusões
293
diagnósticos do funcionamento do sistema surgem em artigos que se
debruçam sobre o sistema de reinserção social, pondo a tónica no crescimento
de medidas alternativas.
6. A cobertura do jovem agressor começa por ser uma cobertura de
discurso informativo sobre casos de delinquência, o discurso regular e habitual
dos media. O discurso mais interpretativo, onde o artigo cede algum terreno à
reportagem e à opinião, recorre ao alargamento das fontes citadas para os
especialistas e os políticos. O discurso informativo é mais frequente nos artigos
sobre casos de delinquência regulares, enquanto o discurso interpretativo é
mais frequente nos artigos de diagnóstico do sistema e sobre o caso de
delinquência extraordinário da Bela Vista. Os artigos sobre respostas políticas
são onde mais se cruzam estas formas de discurso. A caracterização mediática
do jovem agressor é, na maioria dos casos, feita com recurso a um retrato
impessoal e baseado em informações de carácter estatístico. Nos artigos em
que a caracterização do jovem agressor é sociologicamente mais densa, as
referências principais referem-se ao contexto familiar, à localização geográfica,
à situação económica e à nacionalidade, caso seja estrangeira.
Que ideia fará um leitor de jornais do jovem agressor? Uma ideia
relativamente difusa, mas poderosamente normativa: um jovem rapaz,
possivelmente de outra etnia, de famílias problemáticas, proveniente de bairros
perigosos, pobre, pouco educado, fascinado por símbolos de riqueza como
carros de alta cilindrada, telemóveis, roupas caras. Nunca a etnia é referida se
for a "nossa", a dominante; raramente é mulher; raramente é de classe média
ou alta. O discurso representa a selectividade dos media na rotulagem do que
é delinquente.
7. A criminalidade e a insegurança são fenómenos complexos que, para
a sua compreensão, exigem o conhecimento das dinâmicas de mudança que
lhes estão correlacionadas, analisadas no ponto 1 do relatório. Destacamos
aqui a crise económica e o crescimento do desemprego estrutural e com eles
294 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
mais pobreza, desigualdade e exclusão social. A crise económica contribui,
ainda, de forma directa, para o aumento da sensação de frustração, em
especial dos jovens que, em consequência do desemprego e subemprego por
ela provocados, vêem negado o acesso ao consumo de certos produtos
socialmente muito valorizados. Também a crescente urbanização provocou
uma relocalização dos habitantes das cidades socialmente mais frágeis em
bairros desfavorecidos do ponto de vista social. Neste contexto, a pobreza e a
exclusão, embora não contribuindo, de per se, para o aumento da criminalidade
e da violência, podem influenciar a perda de eficácia dos mecanismos de
regulação social, propiciando o surgimento de comportamentos desviantes.
8. Estudos vários mostram que a relação dos jovens delinquentes com o
sistema de justiça evidencia o carácter explicativo das desigualdades sociais,
isto é, entre os jovens que cometem actos delinquentes e aqueles que chegam
a ser institucionalizados, passando pelo contacto com as polícias e os tribunais,
ocorre um processo de filtragem de base classista. Os jovens que tiveram já
algum contacto com a polícia ou com o sistema de justiça são maioritariamente
provenientes da base da estrutura social, o que não significa a existência de
uma cultura delinquente de determinadas fracções das classes populares, mas
antes que a natureza de classe da delinquência é um efeito da natureza de
classe do controlo social. Aliás, a desconstrução das pré-noções da
delinquência juvenil passa por esclarecer que os crimes cometidos por estes
jovens só minoritariamente se reportam a actos violentos contra pessoas,
sendo maioritários os crimes contra o património. Os actos delinquentes por
eles cometidos são, muitas vezes, motivados por necessidades de consumo,
de que é indício a enorme quantidade de furtos de produtos alimentares. A
socialização destes jovens no seio de uma sociedade de consumo é
profundamente conflituante, entrando em situações de desvio pela
impossibilidade de coadunarem os meios ao seu dispor com os fins que são
socialmente valorizados.
Conclusões
295
9. Dois modelos principais destacam-se na análise sociológica da
delinquência juvenil: o modelo de controlo, segundo o qual o desvio resulta do
colapso das estruturas de autoridade e de controlo social; e o modelo
subcultural, que consiste numa resposta aos problemas com que os jovens se
confrontam no processo de construção da sua identidade social, problemas
esses que provêm da tensão entre dependência e desejo de autonomia. O
modelo do controlo não procura entender os motivos que levam a que os
jovens tenham comportamentos desviantes, mas sim o que leva a que estes
estejam ausentes. Os laços sociais fortes entre os indivíduos e a sociedade,
representada pela família e pela escola, controlam o desvio. Quanto mais fortes
os laços, menor o desvio; quanto mais fracos, maior o desvio. O modelo
subcultural pressupõe a contextualização dos comportamentos dos jovens,
sendo o desvio visto como uma forma de adesão às normas de grupos de
referência, isto é, como uma questão de assimilação de comportamentos de
actores próximos (família, amigos, etc.), cujas representações sociais diferem
daquelas que são socialmente veiculadas na esfera pública.
10. A crise económica e, nalguns países, a mudança ideológica do papel
do Estado, cuja actuação se centra menos nos factores estruturais do risco e
da insegurança e mais no quadro do seu papel repressivo e de controlo social,
privilegiando os factores da insegurança, do medo e da protecção física dos
cidadãos, contribuíram decisivamente para a mudança do paradigma de
intervenção que prevalecia até há algum tempo, sobretudo, nos países centrais
em que o Estado de bem-estar foi mais forte. Neste contexto, o insucesso das
instituições tradicionais de socialização (a família e a comunidade), o desvio e
a delinquência convocam, cada vez mais, a intervenção das instituições
formais do controlo social, isto é, instituições especializadas para lidar com a
delinquência juvenil, leis específicas para os jovens e um sistema de justiça
juvenil para as aplicar.
11. Na abordagem sócio-jurídica a esta temática, salientam-se duas
posições principais: de um lado, aqueles que defendem mais criminalização
296 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
das condutas e endurecimento das instâncias de controlo, apostando na
relocalização dos jovens em instituições de encarceramento juvenil, sendo no
seu interior que as preocupações de protecção se passarão a efectuar; de
outro, aqueles que defendem uma maior aproximação e intervenção da
comunidade e da família como instâncias de controlo e de prevenção da
delinquência. Para estes, os longos períodos de permanência dos jovens em
instituições, os contactos com outros jovens delinquentes com comportamentos
mais graves que os seus, contrariam o seu propósito basilar de educação para
o direito, passando, pelo contrário, a contribuir para o agravamento dos
comportamentos delinquentes dos jovens que por elas passam. Acentua-se,
por isso, a importância da acção estrutural e integrada que possa actuar sobre
os factores contextuais da vivência dessas crianças e jovens, sejam eles sócio-
culturais ou identitários, fazendo destacar a conexão entre exclusão social,
risco e comportamentos desviantes e delinquentes.
12. As normas de direito internacional são frequentemente convocadas
na discussão sobre esta matéria, em especial, para colocar em causa opções
de reforma de vários Estados relativas ao direito e à justiça das crianças e
jovens. Daí a importância da contextualização deste tema no âmbito do direito
e das recomendações internacionais, de que dá conta o relatório, analisado de
acordo com três vertentes: aprofundamento dos direitos das crianças,
separação entre respostas de natureza sancionatória e respostas a situações
de perigo social e respostas à delinquência de crianças e jovens. Nestas
conclusões referimos as duas últimas.
No que respeita à separação entre respostas de natureza sancionatória
e respostas a situações de perigo social, destacam-se as Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, conhecidas por
Regras de Beijing, adoptadas em 1985 pela Assembleia Geral das Nações
Unidas que incentivam o recurso aos meios extrajudiciais, como meio de evitar
o formalismo judicial e de afastar a estigmatização. Os Princípios Orientadores
de Riade, por sua vez, relevam a importância de políticas preventivas que
Conclusões
297
facilitem uma socialização e integração das crianças e jovens, onde se incluem
cuidados médicos, alimentação, habitação e educação. Nesse sentido,
sublinham a importância da adopção de medidas de prevenção da delinquência
juvenil e de medidas que evitem criminalizar e penalizar jovens por
comportamentos que não causem danos sérios ao seu desenvolvimento ou
que não prejudiquem terceiros. A necessidade de um maior investimento na
prevenção é ressaltada pela Observação Geral n.º 10 (2007), salientando a
ausência ou insuficiência de medidas e políticas que apostem na prevenção no
sentido de evitar que as crianças entrem em conflito com a lei. Enfatiza-se a
importância de programas que visem o apoio familiar, o designado potencial
social dos pais, promovam a educação dos jovens e envolvam a comunidade,
designadamente, no âmbito de respostas extra-judiciais e na promoção de
formas da justiça restaurativa.
13. No campo das respostas à delinquência de crianças e jovens, a
Observação Geral N.º 10 (2007) considera que uma política global de justiça de
crianças e jovens deve ter em atenção os seguintes elementos essenciais:
prevenção da delinquência juvenil, intervenção, sempre que possível, sem
recurso a processo judicial, fixação da idade mínima de responsabilidade penal
e de uma idade até à qual poderá ser aplicado o sistema de justiça para
crianças e jovens e assegurar garantias processuais.
No que respeita à justiça juvenil, a Convenção das Nações Unidas sobre
os Direitos da Criança atribui aos Estados-parte, entre outros, a obrigação de
promover o estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume
que a criança não tem capacidade para infringir a lei penal, sugerindo a criação
de sistemas de justiça especiais para as crianças de idade inferior a 18 anos
que pratiquem crimes distintos dos aplicáveis aos adultos. No que toca às
medidas aplicáveis, as Regras de Beijing, além de elencarem um conjunto de
medidas preferenciais a aplicar em detrimento do internamento em instituição,
reforçam o papel da comunidade e da família na aplicação de medidas
alternativas e de reeducação. A reinserção social é também uma preocupação
298 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
presente nas recomendações internacionais. Nesse sentido, as Regras das
Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados de Liberdade salientam,
igualmente, a importância da adopção de medidas de apoio na reinserção na
sociedade, na família, na educação e no emprego.
14. O enquadramento da delinquência juvenil no âmbito europeu
incorpora algumas tendências comuns, mas também discrepâncias na ordem
jurídica dos Estados-membros. Assim, se os princípios da
educação/reabilitação dos jovens e da resolução extrajudicial de conflitos, em
especial através da mediação, e da salvaguarda de um processo que respeita
os direitos e as garantias processuais informam a legislação da maioria dos
países, há divergências significativas em vários aspectos, como quanto à idade
mínima da responsabilidade criminal, quanto à aplicação de medidas
institucionais e não institucionais, quer quanto ao tipo de medidas, quer quanto
à forma como são aplicadas e executadas (por exemplo, alguns países
desenvolveram programas inovadores no quadro da mediação e da
reconciliação vítima-autor, da prestação de trabalho a favor da comunidade ou
programas educacionais para distintos tipos de autores, como agressores
violentos e agressores sexuais).
Nos últimos anos, em alguns países europeus, como é o caso de
Espanha, verifica-se uma tendência de aproximação, nalgumas vertentes, entre
o regime aplicável aos jovens delinquentes e o regime aplicável aos adultos. A
condição de criança e jovem perde relevância sempre que está em causa o
cometimento de um facto qualificado como crime. Para esta viragem de
orientação em muito contribui o crescente sentimento de insegurança, nem
sempre suportado em dados empíricos, mas sim em casos muito mediatizados
que condicionam as percepções sociais.
15. Longe de sufragar essa tendência, as convenções e recomendações
mais relevantes na vertente da justiça juvenil, adoptadas no âmbito do
Conselho Europeu, têm-se concentrado nos seguintes princípios e orientações:
a) Promoção dos direitos das crianças à informação e à participação nos
Conclusões
299
processos que as afectam (Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos
das Crianças); b) Prevenção da delinquência juvenil; incentivo à utilização de
medidas de diversão, de desjudicialização e de mediação, evitando que os
jovens tenham contacto com o sistema de justiça criminal; desenvolvimento de
garantias e de aprofundamento de direitos no âmbito do processo judicial,
designadamente, o direito à jurisdição especializada e, sempre que se revele
necessário, a aplicação de medida de internamento em regime fechado, que
ela tenha uma duração o mais curta possível; e o direito a programas
diversificados, no âmbito da execução das medidas, que permitam desenvolver
competências efectivas (Recomendação (87) 20); c) Prevenção de
comportamentos delinquentes por parte dos jovens imigrantes,
designadamente, possibilitando aos jovens de segunda geração as
possibilidades dos autóctones para se poderem integrar no seu país de
residência, começando pela possibilidade de aquisição de residência
(Recomendação (88); d) Definição de estratégias de prevenção dos
comportamentos criminais, incluindo medidas de prevenção de factores de
risco e protecção, como, por exemplo, a discriminação racial, a prostituição, a
mendicidade, a negligência (Recomendação (2000) 20); e) Definição de
políticas relativamente a comportamentos anti-sociais dos jovens em meios
urbanos e ao fenómeno da ghetização nos arredores das grandes cidades
(Recomendação (2001) 1532); f) Novos modos de tratamento da delinquência
juvenil e sobre o papel da justiça juvenil, que, nalguns casos, pode ser aplicada
a jovens adultos com menos de 21 anos, com ênfase nas medidas de
prevenção da para-delinquência e da reincidência e desenvolvimento de
medidas inovadoras de aplicação na comunidade que envolvam os diferentes
actores sociais (Recomendação (2003) 20); g) Execução das medidas visando
melhor proteger os direitos e a segurança dos jovens que entram em conflito
com a lei, promovendo a sua saúde física e mental, bem como o seu bem-estar
social (Recomendação (2008) 11).
300 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
16. Numa perspectiva prática, os programas e as iniciativas, no âmbito
do Conselho da Europa, dirigidos à problemática da delinquência juvenil são
orientados de acordo com as seguintes directrizes: a) respeito e promoção dos
direitos humanos e dos direitos da criança; b) abordagem integrada, de cariz
preventivo, assistencial, policial e judiciário, não constituindo apenas tarefa das
entidades policiais e judiciárias; c) intervenção pluridisciplinar, como via
essencial para a compreensão do fenómeno e para a elaboração e execução
de programas e de decisões mais adequados, quer numa perspectiva de
prevenção primária, quer de reincidência; d) articulação e coordenação ampla e
sistemática entre as diferentes entidades; e) ampla estratégia de prevenção, de
base local, que permita uma intervenção precoce e que possa contrariar a
exclusão social, a marginalização urbana, o desemprego, a falta de
oportunidades de educação e o absentismo escolar.
Como instrumento de orientação e de aproximação dos vários sistemas
jurídicos europeus, destaca-se a Rede Europeia de Prevenção da
Criminalidade que visa contribuir para o desenvolvimento de acções de
prevenção da criminalidade, quer a nível da União, quer a nível local e
nacional. As áreas da delinquência juvenil, da criminalidade em meio urbano e
da criminalidade associada à droga constituem o objecto de intervenção
privilegiado desta Rede.
Além de programas e acções concretas, como os Programa Hipócrates
e AGIS, no âmbito da prevenção da criminalidade, destaca-se, ainda, o
Observatório Europeu de Justiça Juvenil, criado em 13 de Julho de 2008, como
órgão central de estudo e análise desta problemática, podendo integrar órgãos
da administração pública dos Estados-membros, universidades, centros
académicos e organizações não-governamentais.
17. Co-existem nos países da União Europeia a adopção combinada de
medidas de diferentes tipos de modelos de intervenção sobre os
comportamentos delinquentes das crianças e jovens: modelo de bem-estar;
modelo de justiça; modelo de intervenção mínima e modelo de justiça
Conclusões
301
restaurativa. No contexto da criação de normas mínimas ou orientações
comuns entre os Estados-membros, alguns autores colocam em discussão a
possibilidade de construção de um modelo único de reeducação e de
reinserção de jovens, com as seguintes orientações: a) Prioridade de uma
intervenção preventiva levada a cabo por programas gerais e específicos para
jovens em risco de exclusão social; b) Necessidade de sistemas eficazes de
apoio no processo de inserção; c) Profissionalização e especialização dos
intervenientes; d) Desenvolvimento de vias alternativas de resolução de
conflitos; e) Fixação de um limite etário mínimo para a aplicação de um sistema
de responsabilidade penal específico para crianças e jovens; f) Meios
adequados ao tratamento dos infractores que não atinjam a idade mínima de
responsabilidade penal, sem excluir as medidas de contenção, impostas de
forma coactiva e com as devidas garantias; g) Redução da tendência de
hipercriminalização de alguns sistemas e de aplicação da privação de liberdade
como resposta a comportamentos anti-sociais constitutivos de infracções
juvenis em razão da sua condição, que deveriam ter um tratamento preferencial
pela via civil ou dos serviços sociais; h) Direito de participação do jovem nos
procedimentos que o afectem, com garantias processuais, bem como a
abertura de vias eficazes de revisão ou de recurso em sede judicial; i)
Elaboração de um regime específico de sanções para os jovens infractores
com respostas distintas das dos adultos, distinguindo os casos de
responsabilidade penal dos de perigosidade, com fixação de franjas de idade
para a imposição de determinados tipos de sanções ou medidas privativas; e j)
Redução da aplicação de medidas que impliquem a privação da liberdade,
incluindo o internamento preventivo.
18. Analisamos nos pontos III.1 e III.2 os casos de França e de Espanha
por se tratar de países em processo de reforma do direito e da justiça no
âmbito da delinquência de crianças e jovens. No caso da França, esta é uma
matéria que tem vindo a sofrer diversas alterações com um duplo propósito:
diversificar as respostas à delinquência juvenil e enfatizar a importância da
302 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
prevenção e da maior responsabilização dos jovens delinquentes. No campo
processual, procura-se, ainda, com vista à aproximação entre o momento da
prática dos factos e a aplicação de uma medida, tornar o processo mais célere.
O processo de reforma iniciou-se, em 2008, com a criação de uma comissão
pelo Ministério da Justiça francês, presidida por André Varinard, com a missão
de apresentar uma proposta, não só de reestruturação do texto legal, muito
complexo, em virtude das muitas e sucessivas alterações legais, mas também
de apresentar uma proposta de revisão da justiça penal de crianças e jovens.
19. Desenvolve-se a ideia, partilhada pela Administração, de que a
protecção da sociedade contra os actos delinquentes passa pela necessidade
de o jovem sentir a vertente da autoridade. De entre as recomendações
apresentadas destaca-se a fixação nos 12 anos como a idade a partir da qual
se deve responsabilizar penalmente o jovem, devendo manter-se as regras
aplicáveis aos jovens até aos 18 anos, novos procedimentos de audiência de
julgamento, nomeadamente, o julgamento perante tribunal correccional para
jovens, composto por três juízes, sendo apenas um juiz de menores.
Algumas das opções foram muito criticadas, sendo-lhes apontadas
falácias nas razões em que se fundamentam (argúi-se a falta de suporte
estatístico e empírico para a conclusão de que existe um aumento da
delinquência juvenil). De entre as opções que mereceram maior contestação,
destaca-se o abaixamento da idade de responsabilidade penal das crianças e
jovens para 12 anos e o afastamento do princípio da especialidade da justiça
de crianças e jovens (com a criação de um tribunal correccional para jovens
com mais de 16 anos). A contestação geral às propostas do Relatório levou o
Ministério da Justiça a apresentar um projecto-lei, em discussão, que reflecte
um retrocesso relativamente aos primeiros objectivos da reforma e às
propostas apresentadas pela Comissão Varinard. Assim, desapareceram do
projecto-lei propostas bandeira, como a fixação da responsabilização penal dos
jovens aos doze anos e a criação de um tribunal correccional para os jovens
com mais de dezasseis anos.
Conclusões
303
20. Em Espanha, desde 2001, que a responsabilidade penal das
crianças e jovens tem sido objecto de várias alterações, a última das quais pela
Ley Orgánica 8/2006, de 04 de Dezembro. Com esta lei, os pressupostos de
aplicação da medida de internamento em regime fechado foram alterados,
podendo aplicar-se em caso de prática de delitos cometidos em grupo ou
quando o menor pertença ou actue ao serviço de um bando, organização ou
associação que se dedique à prática dessas actividades. Passou também a
constituir fundamento para aplicar uma medida, o risco do jovem atentar contra
bens jurídicos da vítima e foi criada uma nova medida, que consiste no
afastamento do jovem da vítima, seus familiares ou outra pessoa que o juiz
determine. A lei procedeu, ainda, ao alargamento da duração da medida
cautelar de internamento, que passou de 3 meses prorrogável por mais 3
meses, para 6 meses prorrogável por mais 3 meses e foi revisto o regime de
imposição e execução de medidas, conferindo a lei ao juiz amplas faculdades
para individualizar a(s) medida(s) que o jovem deva cumprir. No que respeita
às medidas aplicáveis e sua duração, as alterações à LORPM têm vindo
progressivamente a endurecer na resposta a alguns factos qualificados como
crimes praticados por jovens, como, por exemplo, nos casos de reincidência e
cometimento de delitos de alta gravidade com a alteração substancial da
duração das medidas.
Se, para alguns autores, a LORPM e sucessivas alterações têm
assentado num modelo de responsabilização que visa o interesse superior da
criança, tendo em conta, não só o delito cometido, mas também uma
pluralidade de factores psicossociais; para outros, as sucessivas reformas da
LORPM mostram que se tem vindo a considerar outros interesses ao mesmo
nível, ou mesmo, colocando em primeiro plano o dano cometido e o interesse
da vítima e, sobretudo, da sociedade que reclama punição.
21. Em vários países, os processos de reforma da justiça de crianças e
jovens têm sido criticados pelas suas fragilidades de sustentação teórica e
empírica e por não entrarem em linha de conta com o conhecimento dos
304 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
contextos sócio-culturais da delinquência juvenil, o perfil dos seus sujeitos e
com a real dimensão e características dos comportamentos delinquentes das
crianças e jovens. Em Portugal, deparamo-nos com uma situação idêntica. Os
dados empíricos objectivos sobre o fenómeno da delinquência juvenil são
escassos, o que leva à valorização das percepções individuais muito
associadas às visões reflectidas pela comunicação social e permeáveis a
“pânicos sociais” ligados a “sentimentos” de insegurança, não empiricamente
fundamentados. Neste contexto, a retórica de reforma facilmente pode ser
dominada pelos diagnósticos dos comentadores da comunicação social e dos
operadores do sistema. Para a concretização de políticas mais assertivas,
também entre nós se revela necessário um conhecimento mais profundo das
várias vertentes do fenómeno da delinquência juvenil, desde logo, com a
produção de indicadores consistentes que, como mostrámos no relatório, não
existem.
22. A ausência de estudos e indicadores que permitam análises
detalhadas, bem como inferir se, de facto, há alterações significativas nas
dinâmicas da delinquência juvenil, não aconselham reformas estruturantes
nesta matéria que impliquem, por exemplo, mudança de paradigmas ou de
princípios subjacentes ao actual modelo que informa a Lei Tutelar Educativa. A
opinião dos operadores foi também consensual quanto à manutenção do actual
modelo no que respeita às suas linhas estruturantes. Os bloqueios identificados
no âmbito da justiça tutelar educativa não são reconduzidos à própria lei, mas
sim à sua aplicação prática. Esta circunstância não exclui, no entanto, que se
esqueçam alterações, de natureza cirúrgica, que permitam correcções de
alguns aspectos já diagnosticados como bloqueios à concretização dos
objectivos da lei ou em que as soluções legislativas se revelaram desajustadas
à realidade sociológica que lhes é inerente.
Se é certo que alguns do problemas legais, identificados no nosso
estudo de 2004 foram superados pela jurisprudência, como foi o caso da
relevância dada ao tempo passado em medida cautelar de guarda em Centro
Conclusões
305
Educativo, noutros aspectos continuam a verificar-se soluções diversificadas,
reclamando-se, assim, uma intervenção clarificadora do legislador no interesse
da segurança e certezas jurídicas, especialmente sentidas pela condição da
população a que se dirige. Apresentam-se, assim, propostas de alteração
relativamente à possibilidade de desistência de queixa e ao internamento em
regime semiaberto por período de um a quatro fins-de-semana, à necessidade
de apresentação, por parte do jovem, do plano de conduta para aplicação da
suspensão do processo; e quanto à possibilidade de manutenção da detenção
em flagrante delito no processo tutelar educativo. Reclama-se, ainda, a
necessidade de revisão da conceptualização das medidas e a necessidade de
redefinição do conteúdo da execução da medida de internamento, tornando-se
obrigatória a previsão de programas educativos adequados e cientificamente
validados.
Uma das questões mais veementemente abordadas pelos entrevistados,
que reportam como uma lacuna legal, foi a carência de respostas para os
problemas relacionados com a saúde mental das crianças e jovens que
pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime e da, consequente,
inexistência de diferenciação e especialização da intervenção para jovens com
aquelas necessidades específicas.
Ainda no âmbito das medidas, a eventual aplicação à justiça juvenil de
mecanismos de vigilância electrónica é considerada apenas como uma
alternativa a medidas restritivas da liberdade e nunca como um instrumento
que garanta a execução de medidas não institucionais.
23. A possibilidade de recurso à mediação foi acolhida de forma tímida
no seio da Lei Tutelar Educativa, defendo a maioria dos operadores
entrevistados a necessidade de alargamento e incentivo do recurso a este
instituto, não apenas como forma de composição do litígio e de obviar à
submissão do jovem a uma audiência, mas ainda como mecanismo ou
instrumento da execução da medida aplicada. No entanto, os caminhos de tal
306 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
alargamento não são unívocos. A maioria dos magistrados entrevistados,
rejeitando como princípio a mediação fora do sistema judicial, reclama uma
maior abertura à escolha de mecanismos de diversão ao dispor do Ministério
Público, fazendo recair sobre esta magistratura a responsabilidade pela
adaptação ao caso concreto das diferentes soluções legislativas. Houve,
contudo, outros operadores que consideram possível e desejável construir um
espaço de mediação a montante do sistema judicial.
A possibilidade de recurso à mediação fora do sistema judicial é
controversa. São levantadas as seguintes objecções fundamentais: a ausência
de controlo do Ministério Público poder “esconder” um conjunto plúrimo de
queixas; não assegurar totalmente a protecção de direitos fundamentais do
jovem; e a forma como a mediação está estruturada nem sempre prever a
qualidade técnica necessária.
24. Desde que a prática de um ilícito desencadeia a abertura de um
processo e determina a necessidade de intervenção das instâncias de controlo
social, são vários os agentes que, no âmbito desse processo, desempenham
um papel activo e de cuja acção depende, em grande medida, a qualidade e
eficácia dessa intervenção. Desde logo, a Lei Tutelar Educativa atribuiu ao
Ministério Público um papel fundamental, cumprindo-lhe adaptar,
processualmente, o destino do inquérito aos vários casos concretos que se lhe
deparam. Esta amplitude de actuação do Ministério Público, que tem por
objectivo encontrar soluções diversificadas para situações diversas, tem
gerado, na prática, disparidades e desigualdades entre jovens, muito induzidas
pela ausência de linhas de orientação comuns da hierarquia, não só
relativamente às circunstâncias de opção pelos vários mecanismos de
diversão, mas também quanto às diligências a realizar e ao envolvimento no
contacto com a sociedade civil.
25. Também ao defensor a Lei Tutelar Educativa atribuiu um papel
preponderante, não só na defesa dos direitos e garantias do jovem delinquente,
mas também na procura proactiva da melhor solução no seu interesse e na sua
Conclusões
307
educação para o direito. Não obstante, esta função não tem vindo a ser
cumprida de forma cabal. Normalmente assegurada por defensores nomeados,
a defesa dos jovens é tendencialmente pontual e passiva.
26. Os serviços de reinserção social (DGRS) assumem, no quadro da
Lei Tutelar Educativa, particular importância, recaindo sobre os mesmos a
missão de auxiliar o tribunal na tarefa de avaliar a situação concreta do jovem e
a necessidade de educação para o direito, bem como acompanhar a execução
das medidas tutelares educativas aplicadas. A avaliação ponderada e criteriosa
de cada situação, o acompanhamento individualizado de cada jovem e o
trabalho interdisciplinar dos vários técnicos que compõem as equipas da DGRS
são, assim, elementos fundamentais para alcançar as metas que a Lei Tutelar
Educativa se propõe alcançar.
Contudo, algum desequilíbrio na composição profissional das equipas e
as sucessivas adaptações às mudanças organizacionais determina que as
diferentes valências, que só uma equipa multidisciplinar tornaria possível
executar, nem sempre sejam cabalmente cumpridas. Várias vozes
manifestaram, ainda, a preocupação de que a perda das competências
relacionadas com os processos tutelares cíveis tenha dado origem a uma
cultura que coloca um enfoque excessivo nos comportamentos delituosos,
derivando numa visão predominantemente penalista por parte dos próprios
técnicos. Esta circunstância pode ser agravada quando ao mesmo técnico são
atribuídos, simultaneamente, processos tutelares educativos e processos
penais.
27. A centralidade das funções da DGRS nesta matéria exige uma maior
capacitação de recursos técnicos e, quiçá, uma outra organização e articulação
com o sistema de justiça. A pressão das solicitações por parte dos tribunais
esbarra, por um lado, como os limitados recursos humanos existentes e, por
outro, com a exigência de execução, por parte dos técnicos, de múltiplas
tarefas, também induzidas pelo funcionamento burocrático do sistema judicial,
308 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
que vão afastando os técnicos do terreno social, o que acaba por ter
consequências na prevenção da delinquência juvenil. Reclama-se, por isso,
mais proximidade aos diferentes contextos do jovem e mais acompanhamento
de todo o processo.
28. Referimos amplamente, ao longo do relatório, que o fenómeno da
delinquência juvenil não pode receber uma resposta única por parte do sistema
judicial e para(judicial). A própria reforma do direito de crianças e jovens, ao
separar a Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de
Setembro) da Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro)
reconheceu a existência de zonas “cinzentas”, em que as pontes entre aqueles
dois tipos de intervenção eram necessárias. Verificámos, no entanto, que
permanecem ou mesmo se terão agravado as dificuldades de articulação entre
as duas leis, continuando, nalguns caos, a lei tutelar educativa a assumir-se
como resposta a lacunas de intervenção da promoção e protecção. A
justificação mais frequentemente avançada para esta contaminação da
promoção e protecção pela tutelar educativa foi a ausência de instituições de
contenção no âmbito dos processos de promoção e protecção, aliada à
frequente recusa por parte das instituições de acolhimento de crianças e jovens
que revelem comportamentos problemáticos.
29. No âmbito da aplicação prática da lei tutelar educativa, destaca-se
um problema transversal a todo o tipo de processos do sistema judicial: o
problema da morosidade. Todos os estudos e recomendações alertam para a
importância da celeridade em processos desta natureza, como condição de
uma intervenção eficaz. O sistema de justiça continua, contudo, a não ser
capaz de responder a essa necessidade, fruto, não só das suas próprias
incapacidades culturais e organizativas, mas também das desarticulações entre
os vários agentes e dos desperdícios de conhecimento do jovem e do seu
contexto social, que leva a que, por vezes, se espere por informações que já
constam de outros processos. A execução das medidas tutelares aplicadas
também constituiu uma das preocupações centrais dos vários entrevistados,
Conclusões
309
surgindo com maior acuidade duas questões: o necessário investimento em
programas educativos cientificamente validados e a necessidade de melhor se
definirem os conteúdos de algumas medidas tutelares educativas.
30. A ausência de mecanismos que permitam uma aproximação gradual
do jovem, sujeito a medida de internamento, ao meio aberto, criando pontes
que consintam na solidificação do trabalho realizado no centro educativo,
continua a ser uma deficiência do sistema. Este acompanhamento, na saída do
centro educativo, é visto como um dos componentes essenciais para o sucesso
da aplicação da medida tutelar. Os momentos de flexibilidade, criados pela lei
dentro da execução da medida tutelar de internamento, não se revelam
suficientes. De entre os problemas identificados, emerge a dificuldade prática
de articulação entre a acção tutelar e a acção da promoção e protecção.
Encontrar uma resposta de flexibilização da saída de centro educativo é
fundamental. Mas pode não ser suficiente. Tratando-se de crianças e jovens e
relembrando o que acima se disse sobre a relação complexa entre risco social
e delinquência juvenil, a prevenção da reincidência pode passar, em muitos
casos, pelo acompanhamento continuado do jovem no âmbito da promoção e
protecção.
RECOMENDAÇÕES
2
2 RECOMENDAÇÕES
São duas as conclusões principais deste estudo. A primeira é que mais
do que a mudança na lei, o que é necessário é criar as condições para a
sua plena e efectiva aplicação prática. É no desempenho funcional das
instâncias de controlo e de reinserção social, cujos problemas estão
diagnosticados, alguns deles, há vários anos, nas articulações que as
diferentes instituições, públicas e privadas a actuar no terreno, devem
estabelecer que se devem concentrar os esforços na busca de uma resposta,
mais eficiente e eficaz, no combate à delinquência de crianças e jovens.
O fim último da intervenção do Estado nesta matéria deve conjugar
protecção e controlo social, isto é, não deve privilegiar a acção securitária de
potenciais vítimas e da sociedade em geral dos fenómenos delinquentes, mas,
também, procurar, no maior número de casos possíveis, resolver o problema
estrutural que está no seu lastro. Esta é, aliás, a via securitária mais
consolidada a médio e longo prazo. Faltam-nos estudos de reincidência, que é
urgente realizar, mas o conhecimento existente e as percepções sobre o
fenómeno da delinquência juvenil fazem-nos avançar com a hipótese de que a
grande maioria das crianças e jovens a quem é aplicada uma medida tutelar
educativa, não só já tinha tido um processo de promoção e protecção, como
continuará, na sua vida jovem e adulta, a ser objecto da intervenção das
instâncias de controlo formal, quer com mais processos tutelares, quer já no
âmbito da acção da justiça criminal. Pergunta-se, então, para que serve aquela
múltipla intervenção, despendendo-se recursos enormes (magistrados,
técnicos, funcionários) sem que produza um resultado eficazmente
314 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
consolidado? A manter-se este modelo de intervenção, burocrático e sem
reflexão consequente, de pouco servirão as reformas legais.
Consideramos, por isso, que é preciso olhar, numa perspectiva sistémica
e com coragem política, para a realidade nas suas várias vertentes. Se, em
geral, os fenómenos sociais não devem ser compartimentados, no caso de
crianças e jovens, essa estanquidade ainda é mais perniciosa. No modelo
actual de intervenção, as desarticulações no âmbito da intervenção social
acabam por se repetir no contexto judicial. Neste, a articulação que se
reclama, além de permitir uma decisão que tenha em conta a situação da
criança ou jovem na sua plenitude espartilhada por vários processos tem,
ainda, um objectivo central de combate ao desperdício. A informação existente
em um dado processo pode servir a necessidade de um outro evitando a sua
repetição com o consequente desperdício de tempo e dinheiro. É na avaliação
do caso concreto que os magistrados (Juiz e Ministério Público) têm que decidir
a necessidade ou não de informações complementares.
A segunda conclusão geral é que a discussão sobre a resposta
institucional à delinquência juvenil, que encontra uma das suas
dimensões na Lei Tutelar Educativa, é pouco informada em estudos e
dados consistentes, dominada por pré-compreensões induzidas por
conhecimentos parciais e, muitas vezes, pela pressão da comunicação social e
suas retóricas discursivas centradas em casos ou episódios-limite. Este viés do
conhecimento condiciona a leitura do fenómeno, experimentando uma
tendência para reduzir o enfoque a questões de particular gravidade. A
discussão tende a centrar-se no que constitui as representações sociais da
gravidade dos comportamentos desviantes e na necessidade de lhes dar
resposta, esquecendo-se as diferenças várias que a temática encerra.
A escassez de dados oficiais e de estudos empíricos relacionados com a
delinquência juvenil pode ainda ter consequências na prática judiciária, uma
vez que tais representações sociais tendem também a sedimentar-se nas
percepções dos operadores, informadas pela sua experiência profissional, pelo
Recomendações
315
contacto pontual com alguns fenómenos e pelo que é reproduzido pelos meios
de comunicação social.
Apesar de escassos, os dados oficiais existentes, como se refere nos
pontos I.1 e IV.1, não indiciam um agravamento da delinquência de crianças e
jovens. Em consonância, os operadores entrevistados não colhem percepções
mais negativistas, que justifiquem a alteração do modelo adoptado pela Lei
Tutelar Educativa, embora alguns, sobretudo os que exercem funções nos
grandes centros urbanos, manifestem alguma preocupação quanto ao
agravamento das condutas delinquentes de alguns jovens e, em especial,
quanto ao desenvolvimento da sua acção grupal. Não obstante ter sido
referida a necessidade de alguns ajustamentos pontuais da lei, a tónica
das fragilidades no combate à delinquência de crianças e jovens não é
colocada na opção pelo actual modelo tutelar educativo, mas sim nas
condições da sua aplicação prática. A necessidade de responder a uma
pressão social da insegurança, não empiricamente fundamentada, não se
confunde, assim, com aquiescências apriorísticas de um certo status quo.
À luz do trabalho realizado apresentamos, de seguida, os principais
pontos que, no nosso entender, convocam uma intervenção nesta matéria.
2.1 PREVENÇÃO: FUNDAMENTO ÚLTIMO DA INTERVENÇÃO TUTELAR EDUCATIVA
Há uma ideia transversal ao discurso de magistrados e técnicos: a acção
sobre o risco e a prevenção da delinquência devem nortear as políticas
públicas de controlo social dirigidas às crianças e jovens, corporizando a
unidade do sistema de intervenção, de modo a congregar as várias instituições
públicas, privadas e do terceiro sector. A plêiade de instituições que no
âmbito da protecção e tutelar contactam com o jovem e com os seus
contextos familiares, escolares e sociais, deve transportar na sua acção o
316 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
referencial unificador de um programa estrutural público de prevenção da
delinquência juvenil.
A urgência de uma intervenção precoce junto do jovem é um lugar-
comum nas recomendações e instrumentos normativos internacionais e
nacionais. Em diametral oposição, ou, pelo menos, não lhe dando a mesma
consistência prática, salientam-se as fragilidades e dispersão programáticas, a
intervenção burocratizada e sobreposta de várias instituições, a ausência de
um diálogo articulado entre as mesmas, o desperdício da experiência e do
conhecimento adquirido sobre os jovens e os seus contextos, mas também do
conhecimento das instituições de proximidade. O edifício do sistema de
intervenção junto da criança e do jovem em desvio e/ou delinquente é,
assim, construído sem um sólido alicerce: a prevenção, que deve procurar
precatar o crime e a violência, partindo da identificação concreta dos factores
de risco e do desvio, definindo medidas que, em acção concertada entre as
várias entidades, possam actuar sobre os grupos socialmente mais
vulneráveis.
A nossa primeira recomendação vai, assim, para a urgente execução de
um Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil, com vista à
identificação dos factores de risco associados aos comportamentos
delinquentes dos jovens, à definição das áreas de intervenção, ferramentas a
utilizar, entidades e articulação entre elas, bem como da programação
calendarizada.
Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil
A elaboração de um plano nacional para a prevenção da
delinquência juvenil tem, desde logo, uma virtualidade basilar: a
convergência num único documento de uma agenda estratégica, que
mobiliza um conjunto diversificado de instituições e organismos com
olhares e competências diferentes sobre a mesma realidade social.
Recomendações
317
Apesar de um contexto de crise e de contenção do investimento social do
Estado, a adopção de um plano de prevenção da delinquência juvenil sustenta-
se numa proposta de combinação de diferentes desideratos (desde logo,
controlo e justiça social) num quadro de maior eficiência e de qualidade da
acção conjunta do Estado e da sociedade. A médio e longo prazo, os ganhos
decorrentes do combate a desperdícios vários superarão algum esforço de
investimento inicial. O importante é que tal Plano seja devidamente organizado,
coordenado e avaliado. Cremos que, com ele, será possível, com coerência,
enriquecer a diversidade de respostas possíveis e dotar de unidade a
intervenção multi-facetada e multi-disciplinar das várias instâncias.
Como vimos ao longo do relatório, é nas situações-fronteira em que o
jovem, na maioria das vezes em risco, indicia os primeiros sinais de pré-
delinquência que o sistema de intervenção falha. Mas, também, depois de
delinquir, no modo como acautela a reinserção e previne a reincidência.
Sucumbe ou é insuficiente, quer na actuação sobreposta e desarticulada das
várias entidades, quer no vazio deixado pela inexistência de organismos com
as valências adequadas. Aquele Plano incorporará a delimitação e
articulação da acção das várias entidades, a definição de um programa
progressivo de acção e de investimento em equipas estruturadas de
modo a responderem às diversas situações. Avivamos aqui, pela sua
relevância, as respostas necessárias, por um lado, às situações que reclamam
cuidados de saúde mental e/ou de outras patologias e, por outro, aqueloutras
em que se revele necessário assegurar uma institucionalização contentora da
criança ou do jovem fora da acção da lei tutelar educativa.
Acresce, ainda, que a adopção de um plano nacional especificamente
voltado para a prevenção da delinquência juvenil apartará o tratamento deste
fenómeno de tentações penalistas, designadamente, da tentativa de encontrar
na Lei-Quadro de Política Criminal as prioridades no âmbito da justiça tutelar
educativa. A realidade autónoma abarcada pelo fenómeno da delinquência
juvenil reivindica que as respostas que lhe sejam dirigidas sejam libertadas do
318 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
espartilho da política criminal definida para adultos. Assim o exigiam já as
Directrizes de Riade.
Incorporando instituições de diferente natureza, fins e competências, a
organização e coordenação desse Plano pode distribuir-se por mais de um
sector do Estado, englobando, assim, várias entidades. Consideramos,
contudo, que dadas as suas actuais competências e funções, conhecimento da
problemática e inserção no terreno, a Direcção-Geral de Reinserção Social
pode desempenhar um papel central.
Princípios gerais
O Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil constituirá
uma resposta institucional articulada tendo em vista a identificação e acção
sobre os factores de risco que podem influenciar o surgimento ou agravar a
reincidência de fenómenos de delinquência juvenil e deverá assentar nos
seguintes princípios gerais:
Planeamento a curto, médio e longo prazo e intervenção articulada
O investimento na prevenção da delinquência juvenil é um processo
complexo, que exige a definição de objectivos e planeamento a curto, médio e
longo prazo e intervenções articuladas junto dos vários factores de socialização
da criança e do jovem.
Heterogeneidade geográfica e sócio-cultural
Os programas de prevenção da delinquência juvenil devem prever a
complexidade da realidade social, rejeitando-se tendências para apresentação
Recomendações
319
de um modelo único que não atenda à diversidade dos contextos sócio-
culturais.
Intervenção de base piramidal
Tendo em conta o respeito pela autonomia e livre desenvolvimento da
personalidade do jovem e que este se forma junto da comunidade onde cresce,
dever-se-á construir uma intervenção de base piramidal, em que a base é
constituída pelas instituições comunitárias e a acção formal do controlo social
ocupará um espaço mais reduzido.
Linhas Estratégicas da Intervenção
O Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil definirá um
conjunto de linhas estratégicas de intervenção. À luz do trabalho realizado
avançamos, como linhas a dar especial relevância, as seguintes:
Levantamento de recursos e de boas práticas
Considerando a diversidade institucional e da realidade social, é preciso
proceder a uma inventariação das boas práticas e dos recursos existentes na
comunidade tendo em vista a sua futura optimização. Essa inventariação é
fundamental para apurar as necessidades sociais e de intervenção local e de
proximidade, e, a partir de tal conhecimento, desenvolver estratégias de
intervenção conjuntas, pontes de diálogo e de informação e, eventualmente,
definir competências e objectivos para o conjunto das instituições.
320 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Prevenção pela integração
Os programas de prevenção da delinquência juvenil deverão ser
especialmente dirigidos aos factores de socialização das crianças e jovens e
promover a intervenção nos seus espaços estruturais – comunidade, redes de
sociabilidade social, escola e família –, com respeito pelo livre desenvolvimento
da sua identidade. Neste âmbito, é de ter em especial atenção:
a) as experiências de mediação social, com a capacitação de actores
estratégicos ao nível local para a pacificação e solução de conflitos e promoção
dos direitos humanos, devendo dar-se especial atenção às experiências
conhecidas entre nós de mediação intercultural. As profissões jurídicas, ao
intervirem nos processos de promoção da mediação social, enquanto
formadores, dão à comunidade ferramentas técnicas para a resolução de
conflitos, mas também recebem conhecimento sociológico para a compreensão
do carácter social dos conflitos;
b) aos programas de capacitação dos jovens para os direitos, com
enfoque nas especificidades de género, multiculturalismo (imigração) e etnia,
de forma que se tornem actores multiplicadores, reproduzindo o conhecimento
adquirido perante os seus pares;
c) aos programas de formação, incluindo projectos educacionais e de
formação profissional, e de inclusão social de jovens expostos a situações de
violência e de especial vulnerabilidade social;
d) às acções culturais, artísticas e desportivas, especialmente dirigidas
aos jovens;
e) aos processos de democratização e participação dos jovens no
processo educativo, incentivando o sentimento de pertença ao meio escolar;
f) aos processos de capacitação e promoção da participação activa da
mulher, com especial atenção às situações de vulnerabilidade, como, por
exemplo, violência de género.
Recomendações
321
Envolvimento da comunidade
A estruturação da intervenção social de base piramidal tem como
fundamento a necessidade de envolvimento da própria comunidade, não só no
plano da intervenção, mas também na definição de prioridades de investimento
local nesta matéria. A criação de um espaço de participação local, onde a
própria comunidade possa reflectir sobre os pontos nevrálgicos, modos e
prioridades da intervenção, permitirá, em simultâneo, aproveitar o
conhecimento privilegiado da proximidade e responsabilizar a própria
comunidade pelos resultados obtidos. Para este espaço deverão ser trazidos
os próprios jovens, enquanto membros activos da sociedade, de modo a
envolvê-los directamente nos processos de prevenção da delinquência juvenil.
Em alguns países, os processos participativos têm sido implementados
através da realização de sessões públicas entre a sociedade civil e instituições,
públicas, privadas e do terceiro sector (a promover pela(s) entidade(s) mais
directamente responsáveis pelas políticas de intervenção), bem como através
da criação de conselhos da comunidade para a discussão de determinada
política pública, fomentando, assim, um espaço comum de identificação de
necessidades, discussão de projectos de intervenção, reivindicação política,
controlo e compromisso por parte da sociedade civil.
Qualificação dos profissionais
Identificámos três bloqueios principais a uma intervenção eficaz nesta
matéria: o desequilíbrio na composição das equipas, considerando a formação
dos profissionais que as compõem; a falta de formação direccionada para a
prevenção da delinquência; e a limitação das metodologias aplicadas na
intervenção social. Este é um ponto central para a concretização de um modelo
de intervenção qualificada. É necessário definir o padrão de
322 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
multidisciplinaridade indispensável ao conhecimento integrado da realidade
social, enriquecendo as várias equipas com valências formativas diversificadas,
investindo na sua formação continuada, com ênfase não só na formação sócio-
técnica, mas também na formação para os direitos humanos e para o
atendimento de grupos sociais vulneráveis (mulheres, homossexuais,
imigrantes, etc), dotando-os, ainda, das ferramentas exigíveis à prossecução
dos seus objectivos.
Sistema de monitorização e avaliação
Perpassa ao longo texto um conhecimento fragmentado do fenómeno da
delinquência juvenil, decorrente, não só dos limitados dados oficiais, mas
também do enfoque sectorial dos estudos empíricos realizados sobre
fenómenos específicos. O investimento no conhecimento do fenómeno junto
das áreas metropolitanas com maior densidade populacional é disso exemplo.
Os programas de prevenção devem basear-se em estudos de diagnóstico e
prognóstico, e ser objecto de monitorização exigente durante a sua aplicação.
Não se trata de novidade particular, constituindo a avaliação ongoing um
instrumento preferencial da avaliação de planos de execução a médio-longo
prazo.
Partindo dos princípios gerais acima enunciados, e tendo por base as
linhas estratégicas de intervenção delineadas, o Plano deve prever um
conjunto de tarefas concretas e respectiva calendarização de modo a que
estabeleça uma execução eficaz.
Apesar de o sistema tender a centra-se no remedeio do mal cometido,
isto é, na prevenção secundária e na prevenção terciária, às quais o Plano
também se dirige, embora o seu enfoque seja na prevenção primária, ainda
assim há caminhos por trilhar, em especial, com o investimento na justiça
Recomendações
323
restaurativa e no acompanhamento pós-aplicação de medida tutelar educativa
pós-institucionalização.
2.2 Mediação
A Lei Tutelar Educativa mostrou-se tímida no acolhimento da mediação,
não obstante a convergência com os princípios e recomendações
internacionais de desjudicialização e informalização da justiça, que se
depreende da sua Exposição de Motivos, segundo a qual “a mediação ou,
numa acepção mais ampla, a „justiça reparadora‟ ou „restaurativa‟ tem vindo a
ser considerada, por alguns observadores, como uma nova e promissora
modalidade de resposta ao crime”. Publicada em 1999, ano em que as
experiências de mediação no sistema (para)judicial ainda eram escassas entre
nós, a Exposição de Motivos da Lei Tutelar Educativa dá conta da titubeante
posição assumida quanto à sua validade e papel a desempenhar no combate à
delinquência juvenil.
Salienta-se a validade da dogmática, enquanto alternativa aos modelos
retributivos e de reinserção “nos sistemas de delinquência juvenil objecto de
tratamento penal pelo abaixamento dos limiares de imputabilidade”, mas argúi-
se que “nos outros, a sua função deve examinar-se mais como instrumento de
educação e de inserção e menos como forma de pacificação em que a
comunidade ficaria quite com o facto, ainda que o jovem pudesse não melhorar
com a intervenção comunitária”. Assume-se, contudo, que a mediação, no
âmbito da Lei Tutelar Educativa, deverá entender-se “como modo de resolver a
situação-problema sem recurso a procedimentos formais”, tendo sempre em
vista a educação do jovem para o direito como fundamento da intervenção
tutelar educativa.
Apesar da margem de discricionariedade enunciada pela lei no que
respeita ao procedimento de mediação, a LTE, optando por uma via mais
324 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
restrita, integrou o recurso à mediação apenas no contexto da diversão (como
forma de alcançar a suspensão do processo – artigo 84.º, n.º 3) ou como forma
de obter um consenso quanto à medida tutelar a aplicar na audiência preliminar
(artigo 104.º, n.º 3, alínea b)). Acresce que o recurso à mediação surge como
mera possibilidade, sujeita ao poder discricionário do juiz (no âmbito da
audiência preliminar), ou exige a iniciativa do próprio jovem, seus pais,
representante legal ou quem tiver a sua guarda de facto (na suspensão do
processo).
A mediação é, assim, acanhada, não possuindo expressão significativa
na intervenção tutelar educativa, o que não surpreende que, na prática, não
tenha conseguido alcançar consistência suficiente para se tornar uma resposta
do sistema.
A afirmação da mediação como via alternativa à resposta formal,
convocando, no processo de composição do litígio, não só o envolvimento
activo de agressor e vítima, mas também da família e da comunidade permite
criar mais um filtro para aquelas situações que não devem ser submetidas ao
estigma inerente à audiência formal. Mas, sobretudo, potencia a pacificação
social e a prevenção da reincidência ou actuar mais rapidamente e com o
envolvimento de todas as partes próximas do conflito: jovem delinquente,
vítima e comunidade, colocando o jovem, de forma mais eficaz, em contacto
directo com as consequências dos seus actos.
É, assim, indispensável estimular o recrudescimento da mediação
no âmbito tutelar educativo. À semelhança do que ocorre em outras áreas do
direito, há opiniões divergentes quanto ao modelo de justiça restaurativa a
adoptar. Propõem-se mecanismos de composição dos litígios fora do sistema
judicial, podendo, para alguns casos, substituir-se o procedimento tutelar
educativo pela composição do litígio no âmbito da mediação oficialmente
reconhecida; o recurso à mediação no âmbito do processo judicial, sob a égide
da autoridade judiciária competente; ou a previsão daquele mecanismo como
instrumento de execução de uma medida tutelar educativa aplicada.
Recomendações
325
A marca distintiva da justiça restaurativa, e, dentro desta, da mediação,
é, justamente, a sua diversidade, que deverá ser acolhida na Lei Tutelar
Educativa. Contudo, dada a fraca implementação deste recurso, talvez seja,
pelo menos num primeiro momento, que, atendendo às atribuições estatutárias
do Ministério Público relativas à infância e juventude, a mediação seja
incentivada no âmbito da sua intervenção.
Propomos, assim, a criação de um sistema de “tribunal
multiportas” (Galanter: 1993), que abarca no seu seio aqueles diferentes
mecanismos de composição dos litígios, abrindo a possibilidade de oferecer
respostas diferenciadas a situações diversas e de contrapor ao sistema
autoritário clássico o potencial emancipatório que a promoção do consenso
abarca. A Lei Tutelar Educativa deverá acolher, assim, momentos diferentes de
possibilidade de recurso à mediação, com objectivos distintos.
Chama-se a atenção que a criação de determinada inovação deve ser
cuidadosamente planeada e dotada das condições para o seu funcionamento
eficaz. Para uma inovação desta natureza, as suas características de
proximidade, celeridade e informalidade devem ser plenamente asseguradas.
Caso contrário, rapidamente a inovação multiplica as resistências e se
transforma em algo descartável. A via das experiências piloto, cuidadosamente
avaliadas, é sempre a via mais segura.
A mediação no inquérito tutelar educativo
À semelhança das opções tomadas no âmbito da mediação penal para
adultos, no âmbito do inquérito tutelar educativo, a par da possibilidade de
impulso por parte do jovem, seus representantes legais ou quem tenha a sua
guarda de facto à data, deverá ser expressamente prevista a competência ao
Ministério Público para, entendendo que a mediação poderá responder
adequadamente às exigências de prevenção, remeter o inquérito para
mediação. A previsão expressa do recurso à mediação no inquérito tutelar
326 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
educativo, além de o seu impulso ser também explicitamente da
competência do Ministério Público, deixa, assim, de se cingir à
elaboração e execução do (espartilho) do plano de conduta com vista à
suspensão do processo, podendo dar origem ao seu arquivamento, após
o cumprimento do acordo alcançado em sede de mediação. Este acordo
deverá ser sujeito a homologação por parte do Ministério Público, que sindicará
o seu conteúdo, nomeadamente para evitar acordos que ofendam a dignidade
do jovem ou que sejam manifestamente desproporcionados. A execução do
acordado deverá, da mesma forma, ser aferida pelo Ministério Público, que, em
caso de cumprimento, arquivará os autos.
Além da avaliação quanto às exigências de prevenção do caso concreto,
que deverão sempre ter como referência que a composição de interesses
poderá ser um sintoma positivo de responsabilização do jovem e assunção dos
valores tutelados pela lei penal, dever-se-á prever quais os factos qualificados
como crime que poderão dar origem a tal processo de mediação, por referência
à moldura penal aplicável.
A mediação para aplicação de medida tutelar
A possibilidade de determinação da intervenção dos serviços de
mediação na audiência preliminar é solução legislativa de manter, devendo ser
estimulado o recurso a esta forma de composição dos interesses, através da
escolha de uma medida tutelar negociada, que permita uma responsabilização
do jovem pelos actos praticados.
A mediação na execução da medida tutelar educativa
A possibilidade de recurso à mediação não se deve esgotar, enquanto
mecanismo de obviar a realização da audiência e aplicação de medida tutelar
ao jovem infractor, devendo completar-se tal sistema com a sua previsão do
Recomendações
327
durante a execução da medida tutelar educativa aplicada, como ferramenta de
conciliação entre o jovem infractor e a comunidade, que aqui fecha o ciclo da
sua intervenção no fenómeno da delinquência juvenil.
Para tanto, dever-se-ão aproveitar as estruturas de base já existentes,
como os gabinetes de mediação de conflitos que funcionam em algumas juntas
de freguesia, incentivando-se o seu alargamento, pelo menos, às localidades
em que o fenómeno da delinquência juvenil seja mais intenso.
2.3 Alterações legais
A Lei Tutelar Educativa procurou, como via instrumental para atingir o
seu objectivo de responsabilização aliado à protecção das garantias das
crianças e jovens, dotar o processo de positivação pormenorizada, tornando a
tramitação processual objectiva criando, legalmente, momentos de
maleabilidade e plasticidade, como forma de adaptação à rápida mutação das
circunstâncias envolventes do jovem. É, assim, que a certeza e segurança
jurídicas surgem como características de promoção da justiça e da igualdade,
aliando-se às ideias de previsibilidade e estabilidade da vida jurídica.
Não obstante, algumas previsões normativas continuam a gerar
soluções diferentes para casos semelhantes, à semelhança do verificado no
nosso estudo de 2004. Recomenda-se, por isso, que o legislador clarifique
alguns pontos. Destacamos dois: a relevância a dar à desistência de denúncia
por parte do ofendido e a consequência da aplicação da medida de
internamento em regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-
semana, na execução da medida tutelar não cumprida.
Resultou, ainda, no curso do trabalho de campo, a necessidade de
serem alterados alguns aspectos específicos da lei em vigor. Reportamo-nos à
previsão da necessidade de apresentação, por parte do jovem, do plano de
328 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
conduta para aplicação da suspensão do processo (que deixa a aplicação de
tal instituto nas mãos das diferentes práticas dos profissionais do foro e dos
técnicos de reinserção social); e o reduzido âmbito da manutenção da
detenção no flagrante delito em processo tutelar educativo.
Da (ir)relevância da denúncia por parte do ofendido
A Lei Tutelar Educativa assumiu expressamente a opção legislativa de
dar relevância à iniciativa do ofendido, nos casos em que, segundo as regras
do direito penal, o procedimento dependeria de queixa ou de acusação
particular, desconcentrando para um membro da comunidade (o ofendido) o
primeiro juízo sobre a necessidade de educação do jovem para o direito. No
entanto, a lei é omissa quanto à relevância ou irrelevância da desistência desta
denúncia por parte do ofendido no destino do procedimento tutelar educativo, o
que tem gerado, como demonstrámos no relatório, interpretações distintas e
práticas diversificadas nos vários tribunais. É, assim, necessário tomar uma
opção clara quanto a esta matéria e plasmá-la na lei.
Defendemos que deve ser dada relevância à desistência da
denúncia por parte do ofendido, que deverá culminar no arquivamento do
procedimento tutelar educativo. Fazemo-lo por três razões principais. A
primeira, em coerência com o acima referido quanto à importância da
composição de litígios no seio da própria comunidade. Em segundo lugar, em
situações não raras, trata-se de matérias atinentes à reserva da vida privada do
ofendido que deverá ser protegida e submetida à sua disponibilidade. Em
terceiro, não é despiciendo realçar que, em caso de desistência de denúncia,
ao Ministério Público está reservada a avaliação e decisão de, considerando
haver fundamento para tal, instaurar processo de promoção e protecção ao
jovem em causa.
Recomendações
329
Medida de internamento em regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-semana
A maleabilidade e plasticidade do processo tutelar educativo está
expressamente prevista na apreciação do cumprimento das medidas tutelares.
Quanto às medidas tutelares não institucionais, o legislador previu, para as
situações em que o jovem se tenha colocado intencionalmente em situação
que inviabilize o cumprimento da medida ou a tenha violado, de modo grosseiro
ou persistente, os deveres inerentes ao seu cumprimento, a possibilidade de o
juiz, na sua revisão, ordenar o internamento em regime semi-aberto, por
período de um a quatro fins-de-semana.
Continua a verificar-se a disparidade de interpretação daquela norma
legal, sendo a mesma aplicada como medida substitutiva pelo incumprimento
de medida tutelar não institucional, mas também como forma de persuadir o
jovem ao cumprimento da medida não institucional (não se substituindo a esta).
Também aqui é preciso fazer cessar a incerteza jurídica e tomar uma opção
legislativa.
Da nossa parte, entendemos que a aplicação do internamento em
regime semi-aberto, por período de um a quatro fins-de-semana, não deve
fazer cessar a medida tutelar não institucional aplicada e não cumprida. A
medida tutelar educativa não institucional primeiramente aplicada é a que
corresponde à necessidade de educação do jovem para o direito, devendo o
internamento em fins-de-semana, a manter-se, ser visto como um instrumento
ao serviço da medida tutelar determinada para persuasão do jovem ao seu
cumprimento e como mais uma ferramenta de educação para o direito.
No entanto, o trabalho de campo desenvolvido demonstrou que ao
internamento em regime semi-aberto, por período de um a quatro fins-de-
semana, não é reconhecida, na prática, qualquer capacidade de persuasão do
jovem ou sequer é entendida como um momento de possibilidade de
intervenção junto do jovem. O internamento é frequentemente executado vários
330 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
meses após a sua aplicação e os centros educativos não se encontram
apetrechados para desenvolver uma intervenção direccionada a esses jovens.
Ademais, são os próprios técnicos que referem a dificuldade de
desenvolvimento de ferramentas de intervenção para um período tão reduzido
e fragmentado.
Tratando-se de medida que a experiência mostra ser ineficaz, a sua
aplicação é negativa do ponto de vista do projecto educativo do jovem, sendo o
próprio sistema a reproduzir o seu próprio fracasso. É, assim, necessário
repensar a pertinência desta medida. Abrem-se duas alternativas: ou se
densifica a sua aplicação ou mostrando-se ineficiente e mesmo perniciosa
para a coerência do sistema deve ser abolida e substituída por alternativas
mais eficientes.
Iniciativa da apresentação do plano de conduta para aplicação da suspensão do processo
Defendemos uma concepção de tribunal que permita albergar no seu
seio diferentes respostas a situações diversas. A suspensão do processo,
prevista na Lei Tutelar Educativa, dá corpo à preocupação de diversificar as
respostas à criminalidade de pequena e média gravidade, evitando o efeito
estigmatizante da submissão do jovem a uma audiência. A previsão da
participação dos pais, representante legal ou pessoa que tenha a guarda de
facto do jovem na elaboração do plano de conduta, tem a virtualidade de
chamar e responsabilizar os membros mais próximos da convivência social do
jovem à participação na resolução da situação-problema.
Apelando à necessidade da participação do jovem e da sua
responsabilização face aos factos praticados e ao desvalor social que os
mesmos transportam, o legislador desenhou o instituto da suspensão do
processo como um acto de envolvimento do jovem, determinando que um dos
pressupostos para a aplicação desta medida de diversão é a apresentação
Recomendações
331
pelo jovem de um plano de conduta que evidencie estar disposto a evitar, no
futuro, a prática de factos qualificados pela lei como crime.
As atitudes adoptadas pelos magistrados do Ministério Público face a
este pressuposto são variadas, acolhendo posições que defendem a não
ingerência do Ministério Público sequer na sugestão de apresentação de um
plano de conduta e na informação da existência de tal possibilidade legal, e
outras que, além de sustentarem a prestação desta informação, promovem
junto do jovem e da sua família, por vezes em articulação com o técnico de
reinserção social, a elaboração de tal plano. A iniciativa do defensor do jovem
na sugestão e apresentação de um plano de conduta com vista à suspensão
do processo é escassa.
As divergências de actuação originam uma desigualdade intolerável no
acesso a esta medida de diversão, restringindo a potencialidade que abarca.
Ademais, estamos, em regra, perante jovens com amplas carências do ponto
de vista social e económico e fortes dificuldades na organização por si ou em
coordenação com a sua família mais próxima da construção de um plano que
permita responder adequadamente às exigências da lei.
Defendemos, assim, que, contando com a nova via da mediação acima
referida, cabe aqui ao Ministério Público um papel fundamental na
avaliação dos casos em que será de, oficiosamente, promover junto do
jovem, dos seus pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua
guarda de facto, a opção pela suspensão do processo. Verificando estarem
cumpridos os pressupostos para a sua aplicação, deve o Ministério Público
procurar alcançar a concordância do jovem e, sempre que possível, dos seus
pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, para a
construção de um plano de conduta pactuado, com a intervenção activa dos
serviços de reinserção social, que devem elaborar parecer ou juntar
informações actualizadas sobre a conduta do jovem e a sua inserção sócio-
económica, educativa e familiar, e participar activamente na elaboração do
332 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
plano, com vista à suspensão do processo. Esse plano que será sempre, em
última análise, da responsabilidade do jovem, não podendo ser imposto nem
pelos serviços de reinserção social, nem pelo Ministério Público, deverá ser
remetido ao Ministério Público.
Manutenção da detenção em flagrante delito no processo tutelar educativo
Os critérios de manutenção da detenção em flagrante delito do jovem
têm, desde a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa, suscitado críticas que
se prendem, por um lado, com a ausência de clareza da lei e, por outro, com o
seu reduzido âmbito de aplicação.
A lei estabelece dois critérios para a manutenção da detenção em
flagrante delito: a prática de facto qualificado como crime contra as pessoas a
que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão superior a
três anos; ou a prática de dois ou mais factos qualificados como crimes a que
corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, superior a três anos, e
que corresponda a crime publico.
O critério de definição da manutenção ou não da detenção em flagrante
delito cabe, em primeira linha, aos órgãos de polícia criminal que, face ao caso
concreto, necessitam de dar uma resposta imediata à situação-problema,
integrando dada realidade social no conceito ínsito na lei. Esta é uma situação
típica de toda de decisão on the spot. A lei necessita, assim, de ser clara e
facilmente aplicável à generalidade das potenciais situações em que pode
ser aplicada. A redacção legal do artigo 52.º da Lei Tutelar Educativa não
cumpre aquela finalidade de clareza.
Existem, ainda, um conjunto de situações excluídas da possibilidade de
manutenção de detenção em flagrante delito, que se considera deverem ser
previstas. Tendo em consideração que a manutenção da detenção em
flagrante delito determina a audição do jovem pelo juiz num curto período de
Recomendações
333
tempo, que tal acto pode ser importante na alteração da trajectória do jovem, e
que se encontram asseguradas todas as garantias de defesa e de protecção da
dignidade do jovem, entendemos que a possibilidade de manutenção de
detenção de flagrante delito pode ser alargada para os casos em que o jovem
tenha cometido facto qualificado como crime a que corresponda pena máxima,
abstractamente aplicável, de prisão superior a três anos.
Outras questões legais
Em 2004, no Relatório intitulado “Os Caminhos Difíceis da „Nova‟ Justiça
Tutelar Educativa – Uma avaliação de dois anos de aplicação da Lei Tutelar
Educativa”, recomendámos já um conjunto de alterações à LTE que continuam
a fazer sentido e que aqui reproduzimos:
a) No seguimento do direito internacional e do exemplo da Ley Orgânica
Reguladora de la Responsabilidad Penal de los Menores, em Espanha, a LTE
deveria abranger todos os factos qualificados pela lei penal como crimes
praticados por jovens até aos 18 anos, passando para a maioridade o limiar da
imputabilidade penal. Com esta reforma poderíamos tornar mais eficaz a acção
da LTE e evitar que um jovem aos 16 anos seja “engolido” pelo sistema
prisional em que é colocado, em muitos casos, na mesma situação e em
contacto com os adultos reclusos;
b) A concepção prevalecente na lei, do jovem ser um actor social
(sujeito), deve levar à substituição na LTE do conceito de menor pelo de jovem
(crianças com mais de 12 anos);
c) A actual LTE é considerada restritiva na combinação/cumulação de
medidas. Assim, há que ponderar a viabilidade de o juiz passar a ter
legalmente a possibilidade de maior flexibilidade na aplicação de mais medidas
combinadas/cumuladas entre si;
334 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
d) O alargamento da possibilidade de se recorrer a “mecanismos de
diversão” para jovens que tenham praticado factos qualificados como crime
com molduras penais abstractas mais graves daquelas que actualmente se
encontram previstas na lei;
e) A alteração do regime jurídico das medidas tutelares educativas:
i. de modo a prever a realização obrigatória do “cúmulo jurídico” de
medidas tutelares educativas e evitar a desestabilização da aplicação
sucessiva de medidas;
ii. de modo a flexibilizar a sua aplicação (por exemplo, a possibilidade de
passar da medida de internamento à medida de acompanhamento educativo e,
se esta não resultasse, voltar ao internamento);
iii. de modo a proibir a possibilidade de aplicação da prisão preventiva
quando o jovem está a cumprir uma medida tutelar educativa institucional.
2.4 Linguagem jurídica
É quase desnecessário afirmar a necessidade de que o desenrolar de
qualquer acto processual seja acessível, do ponto de vista cognitivo, ao seu
destinatário: o cidadão. Este cuidado constitui reivindicação antiga,
nomeadamente por parte do Conselho da Europa (vide, Recomendações n.º
R(81)7 e n.º R(94)12). A sua compreensão do processo, das suas
consequências e do conteúdo dos vários actos cumpre, não só a garantia
básica de se poder defender dos factos que lhe são imputados e de participar
activamente no processo que poderá condicionar o seu futuro, pelo menos,
imediato, como também é requisito essencial para o reconhecimento dos factos
praticados, do seu desvalor social e para a assunção de comportamentos
alternativos em face das consequências possíveis para os actos praticados. Se
estas exigências se encontram em qualquer processo judicial que envolva
Recomendações
335
adultos, serão, com toda a certeza, superlativadas em processos que envolvam
jovens.
A Lei Tutelar Educativa não foi insensível àquelas preocupações. Em
diversos momentos alerta para a utilização de linguagem simples e clara, por
forma a que o jovem possa compreender, e para a necessidade de a decisão
ser explicada ao jovem (vista como um plus face à fundamentação necessária).
Prevê-se, ainda, de forma inovadora, a necessidade de acompanhamento do
jovem por defensor, que além de assegurar as suas garantias de defesa,
deverá também constituir um interface privilegiado entre o formalismo inerente
a um processo judicial e o jovem.
Não obstante, o discurso jurídico, mesmo nos processos que envolvem
jovens, continua dominado pela retórica tradicional, resistente a transformações
e adaptações, tornando-se imperceptível para os sujeitos exteriores ao mundo
do direito. A linguagem jurídica transporta em si manifestações de poder, ao
reservar a um pequeno número, em regra aos profissionais, a compreensão do
seu significado. O discurso jurídico, ao mesmo passo que estratifica no seu
conhecimento, é profundamente exclusivo ao deixar de fora do seu círculo de
influência o seu principal destinatário: o cidadão delinquente e/ou vítima.
A manutenção de um discurso fechado sobre si mesmo constitui, de
uma forma geral, um obstáculo ao acesso ao direito e à justiça por parte dos
cidadãos e, no caso concreto da Lei Tutelar Educativa, prejudica fortemente a
expectativa de eficácia da sua aplicação. O distanciamento entre o jovem e o
tribunal, bem como entre o jovem e o seu defensor, é notório essencialmente
quando comparamos com a proximidade de linguagem que os mesmos
conseguem alcançar com os técnicos de reinserção social e com os órgãos de
polícia criminal. Frequentemente, são estes que servem de descodificadores da
linguagem jurídica, o que pode gerar incompreensões e informações erradas,
já que não têm um conhecimento integrado do processo.
336 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Verificámos, ao longo do trabalho de campo, que o ensimesmamento da
retórica jurídica tradicional nos processos tutelares educativos se deve
essencialmente a práticas rotineiras, à falta de sensibilização dos diversos
actores judiciários para a necessidade de descolamento do discurso jurídico
formal e à falta de apetrechamento de magistrados e advogados para assumir
competências que não se prendem com o core da resolução do litígio que se
lhes apresenta.
Os momentos comunicacionais com o jovem têm que ser,
definitivamente, assumidos pelo tribunal como etapas nevrálgicas de
cumprimento dos objectivos pretendidos com a intervenção tutelar educativa.
Este problema capital não se soluciona com alterações legislativas.
Ultrapassar este obstáculo é bem mais complexo, exigindo uma mutação
da cultura jurídica dominante, o que reclama responsabilidades, em primeiro
lugar, das próprias instituições de ensino do direito, que olvida a necessidade
de envolvimento dos seus licenciados com os destinatários da lei, preparando-
os apenas para a compreensão do mundo jurídico. Em segundo lugar, dos
órgãos responsáveis pela formação quer das magistraturas, quer dos
advogados.
A formação, que não poderá ser apenas a inicial – muitas vezes é a
rotina que determina a utilização de linguagem encriptada-, mas,
essencialmente, contínua deve dar especial atenção à sensibilização dos
operadores para as necessidades de exteriorização do conteúdo dos actos
processuais e das decisões, sendo esta, também, uma via essencial para a
legitimação da justiça. O direito e a justiça não podem continuar a falar para si
mesmo.
Recomendações
337
2.5 Desempenho funcional dos profissionais
A Lei Tutelar Educativa constituiu um desafio à prática jurídica e técnica
dos diferentes operadores e o seu desempenho funcional constitui uma variável
central da sua aplicação prática. No decurso do trabalho de campo, resultou a
necessidade de investir no aprofundamento de algumas valências desse
desempenho considerando os diversos actores.
Os Magistrados Judiciais
Os magistrados judiciais são os actores judiciários que, dado o seu
recorte de competências e funções desenhadas na lei, mais distantes se
encontram do jovem e do seu contexto social. O juiz conhece o caso concreto
através das informações que lhe são transmitidas pelos restantes actores do
sistema, incumbindo-lhe, posteriormente, devolver ao jovem e aos restantes
intervenientes processuais uma solução que corresponda à realização da
justiça no caso concreto.
A adequada preparação do magistrado judicial para a condução de
processos tutelares educativos, atendendo às especificidades inerentes à
juventude e aos contextos sócio-culturais da grande maioria dos seus
sujeitos, é essencial para que possa cumprir os objectivos que lhe estão
impostos. Tal preparação obtém-se com formação permanente e com políticas
de colocação dos magistrados judiciais nos juízos especializados de acordo
com a sua própria formação especializada.
O actual Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redacção dada com a
alteração à Lei de Organização e Formação dos Tribunais Judiciais, reforça
esta ideia de especialização, prevendo que o provimento de lugares em juízos
de competência especializada depende de frequência de curso de formação,
338 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
de obtenção do título de mestre ou doutor em direito ou de prévio exercício de
funções, durante, pelo menos, três anos, em todos os casos na respectiva área
de especialização. Neste último caso, o magistrado judicial tem que frequentar
um curso de formação sobre a respectiva área de especialização no prazo de
dois anos.
Apesar das conhecidas críticas que recaem, essencialmente, sobre a
argumentação da impossibilidade de cumprimento do normativo legal,
entendemos que aquele é um avanço positivo da lei.
É, assim, essencial investir na formação especializada dos magistrados
judiciais a exercer funções nos tribunais ou nos juízos de família e menores. É
importante realçar que, frequentemente, aos processos tutelares educativos
não é conferida centralidade. Os tribunais encontram-se divididos entre a
necessidade de dar resposta ao volume imposto pelos processos de divórcio
de regulações das responsabilidades parentais e a urgência da resposta nos
processos de promoção e protecção, o que implica uma desvalorização relativa
dos processos tutelares educativos. Recomendamos, assim, que sejam, não só
dotados aqueles tribunais dos recursos necessários, como seja dada especial
atenção formativa a esta área e que os respectivos programas de formação
contemplem formação em direito tutelar educativo, mas também noutras áreas
do saber, como a sociologia, a psicologia, os direitos humanos, etc., de forma a
possibilitar aos magistrados judiciais desenvolverem o contacto com
perspectivas que permitam compreender o conflito enquanto fenómeno social,
bem como os potenciais impactos e consequências das decisões por si
proferidas.
Os Magistrados do Ministério Público
O Ministério Público assume um papel central na condução de todo o
processo tutelar educativo. Sobre o Ministério Público recaem as opções
Recomendações
339
essenciais que irão determinar o andamento do processo: a opção pelo
arquivamento do inquérito por inexistência do facto, por insuficiência de indícios
da prática do facto, ou por desnecessidade de aplicação de medida tutelar
educativa, pela suspensão do processo, ou pelo requerimento para a abertura
da fase jurisdicional. O Ministério Público decide, ainda, a forma que o
processo tramitará e propõe a aplicação de medidas tutelares educativas. Por
outro lado, é o Ministério Público quem centraliza o conjunto de informações
que são chamadas ao processo e, dado o seu modelo funcional, possui a
virtualidade de poder interagir com as diversas instituições que tiveram
qualquer intervenção junto do jovem. O Ministério Público tem, assim, a
potencialidade ímpar de conhecer os contextos sociais e escolares da área
geográfica de influência do tribunal em que se encontra colocado e de os
potenciar no sentido da definição de medidas que se dirijam à globalidade da
situação concreta. Reclama-se, deste modo, a adopção de políticas e de
condições que permitam a assunção plena destas competências por parte do
Ministério Público.
Assim, o que supra se referiu quanto às exigências de formação e
de especialização como pressuposto para a colocação nos tribunais ou
juízos de família e menores para os magistrados judiciais, aplicam-se,
igualmente, para os magistrados do Ministério Público. Acresce que esta é
uma questão de particular importância até porque verificámos existir casos de
acumulação de serviço entre um tribunal de família e menores e um juízo ou
vara criminal. Esta é uma prática que não pode continuar a ocorrer, originando
uma indesejável contaminação do mundo do direito tutelar educativo pelo do
direito penal dos adultos.
Tendo em conta as suas competências na mobilização dos mecanismos
de diversão que deverão ser utilizados com base em critérios pré-definidos a
nível nacional e tendo por base uma estratégia coerente de intervenção
relativamente ao fenómeno da delinquência juvenil, é, ainda, necessária a
definição de guidelines para a aplicação dos diferentes institutos ao
340 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
dispor do processo tutelar educativo. Essa definição, que incumbirá ao
próprio Ministério Público, terá a maleabilidade necessária para a adaptação às
circunstâncias concretas do caso.
Os Advogados
Uma das principais inovações da LTE foi a previsão da presença do
defensor do jovem. A garantia do processo equitativo, com respeito pelos
direitos, liberdades e garantias dos jovens, depende da qualidade da defesa
assegurada ao jovem. Tendo em atenção que na esmagadora maioria dos
casos se trata de defensor nomeado, deve ser dado especial enfoque ao
sistema de nomeação. A recente reforma do sistema de nomeação do
patrocínio judiciário, que instituiu o SINOA, procurando trazer transparência nos
critérios de nomeação, não assegura a especialização da defesa, uma vez que
não há controlo quanto à capacidade técnica do defensor nas áreas
preferenciais da sua eleição.
Também aqui é preciso investir em formação. Esta formação tem que
ser ministrada pela própria Ordem dos Advogados que deve condicionar o
patrocínio nesta área do direito a quem a frequente. Até porque tratando-se
de uma área do direito tendencialmente menos lucrativa para a advocacia, é
natural que os esforços de actualização e autoformação nesta área sejam
menores.
Os Técnicos de Reinserção Social
Os serviços de reinserção social, ponte entre o tribunal e o jovem,
são actores-chave na prevenção e combate à delinquência juvenil.
Assumem, estatutariamente, funções de prevenção da delinquência juvenil,
Recomendações
341
constituem a voz que transmite as informações sócio-familiares do jovem ao
tribunal e o braço que executa as decisões judiciais. No desenho que prevemos
para o Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil assumem,
igualmente, um papel de enorme centralidade.
Verificámos, no entanto, que as mutações na constituição das equipas,
ao longo dos anos, fruto das alterações estatutárias da actual Direcção-Geral
de Reinserção Social, determinaram alguma desestruturação da sua
composição e de critérios fundamentados para a sua configuração. Por outro
lado, em algumas circunscrições verificámos, ainda, a existência de equipas
que se dedicam simultaneamente ao processo tutelar educativo e ao processo
penal de adultos, o que coloca em causa o princípio da especialização, mas,
ainda, potencia a contaminação que acima já referimos.
Uma equipa devidamente estruturada é essencial para o sucesso da
Lei Tutelar Educativa. Recomendamos, assim:
a) Os técnicos das equipas de reinserção social que intervêm no
processo tutelar educativo não devem acumular funções relativas ao processo
penal de adultos;
b) A definição do número ideal de processos tutelares educativos por
técnico de reinserção social e o redimensionamento das equipas em função
daquela definição;
c) A definição da composição ideal de uma equipa de reinserção social,
tendo em conta as diferentes valências formativas dos técnicos, procurando a
constituição de equipas multidisciplinares;
d) A limitação das exigências burocráticas às equipas de reinserção
social, incentivando o contacto dos técnicos de reinserção com o contexto
social dos jovens.
e) A redefinição do peso do relatório pré-sentencial na avaliação de
desempenho dos técnicos de reinserção social;
342 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
f) Não sendo tecnicamente possível a redefinição do seu estatuto
processual, os técnicos de reinserção social devem ter no sistema de justiça
um tratamento condigno que tenha atenção essa especificidade,
designadamente, no que respeita às condições em que são ouvidos em
tribunal. Deve ponderar-se, pelo menos nas comarcas onde o volume de
trabalho o justifique, a sua audição por vídeo-conferência;
g) Também no que se refere aos técnicos de reinserção social se deve
dar especial atenção à área da formação que deve incorporar uma vertente de
conhecimento e de reflexão sobre teorias e práticas no âmbito da prevenção da
delinquência, mas também sobre as ferramentas em que devem assentar os
vários programas a desenvolver no âmbito da execução das medidas.
2.6 Execução da medida de internamento em centro educativo
A medida de internamento em centro educativo, medida mais gravosa
prevista na LTE, possui, segundo a própria letra da lei, a potencialidade de
oferecer ao jovem, por via do afastamento temporário do seu meio habitual,
programas e métodos pedagógicos, com vista à interiorização de valores
conformes ao direito e a aquisição de recursos que lhe permitam, no futuro,
conduzir a sua vida de modo social e juridicamente responsável.
Os objectivos previstos na lei para o cumprimento e execução da medida
de internamento em centro educativo só podem ser alcançados se estes forem
dotados daqueles programas e métodos pedagógicos. Decorre, contudo, do
trabalho realizado que, tendencialmente, os centros educativos estão imbuídos
de uma lógica de contenção e ocupação do jovem, o que coloca a questão da
necessária reflexão sobre a redefinição do modelo de intervenção no centro
educativo.
Recomendações
343
É preciso, em definitivo, adoptar programas de intervenção
psicossocial e programas educativos e implementá-los plenamente nos
centros educativos, reconhecendo-os como instrumento fundamental da
execução da medida de internamento, o que implicará a libertação dos jovens
de outras actividades para a participação em tais programas.
A questão da gestão do tempo dos jovens em cumprimento de medida
de internamento assume especial relevo em dois sentidos distintos: por um
lado, os jovens continuam sobrecarregados com actividade lectivas, de
formação ou lúdicas, não havendo tempo disponível para a intervenção
psicossocial; por outro, alguns programas exigem, não uma intervenção grupal,
mas um acompanhamento individual do jovem por parte do técnico
responsável, o que acrescenta dificuldade na compatibilização com os próprios
técnicos de reinserção social. Uma melhor definição dos tempos do centro
educativo é parte integrante da programação das estratégias de intervenção
junto do jovem.
Lacuna frequentemente indicada pelos operadores é a da ausência de
resposta para as situações relacionadas com a saúde mental. A ausência
de diferenciação e de especialização da intervenção em centro educativo no
âmbito da saúde mental do jovem reclama a necessidade de instituir um
internamento para tratamento médico e médico-psicológico, ainda que não
executado numa instituição da justiça.
Por último, defendemos que a possibilidade de aplicação da vigilância
electrónica no âmbito da Lei Tutelar Educativa não pode assumir um
paralelismo estrito com a sua aplicação no âmbito do direito penal. Assim, o
recurso à vigilância electrónica deverá apenas ser utilizada como substitutiva
de medidas privativas da liberdade e nunca como reforço de medidas não
institucionais.
344 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
2.7 Acompanhamento pós-institucionalização
Um dos handicaps mais marcante da intervenção tutelar educativa
relaciona-se com o período posterior ao cumprimento da medida, em especial,
posteriormente ao cumprimento de medida de internamento. Mais uma vez se
esbarra nos obstáculos sistémicos da intervenção junto do jovem, nas
desarticulações entre a Lei Tutelar Educativa e a Lei de Promoção e Protecção
das Crianças e Jovens em Perigo. Para que não haja desperdício das
experiências adquiridas e das competências pessoais e sociais, entretanto
desenvolvidas, prescreve-se um momento de transição entre o meio contentor
do centro educativo e o regresso ao meio de origem do jovem, que deverá ser
incorporado dentro da duração da própria medida tutelar aplicada, admitindo-
se, apenas para esse efeito, o seu alargamento nos termos que agora a lei já
prevê, e sempre em obediência ao princípio da proporcionalidade.
Não se trata de um modelo, semelhante ao espanhol, que implique a
previsão de um período de liberdade vigiada, de um período de cumprimento
de outra medida não institucional ou de alargamento da medida.
Defendemos que a transição do jovem do centro educativo para o
meio social não deverá ser orientada por um reforço sancionatório, mas
por uma adequada ponderação entre as necessidades de educação para o
direito do jovem e o respeito pelos direitos, liberdades e garantias e
assegurada pela possibilidade de flexibilização obrigatória da medida de
internamento e, posteriormente, pela adequada articulação com os
mecanismos previstos na Lei de Promoção e Protecção das Crianças e
Jovens em Perigo.
O desiderato dos objectivos enunciados não depende apenas da pró-
actividade e melhor apetrechamento de recursos dos organismos da reinserção
social. Temos amplamente salientado o papel dos serviços de promoção e
protecção nesta matéria. Daí que é crucial que a tutela competente opere uma
Recomendações
345
profunda reestruturação nesses serviços de modo a que, por si, ou em
articulação com entidades externas, desde que devidamente supervisionadas,
possam corresponder aos objectivos da lei, da justiça e, sobretudo, às
carências das situações sociais a que se dirigem.
Assim, propomos três vias de intervenção:
(1) Deverão ser incentivados os mecanismos legalmente previstos de
revisão da medida de internamento, no sentido de melhor avaliar as
necessidades actualizadas do jovem;
(2) Dever-se-á prever, obrigatoriamente, que, pelo menos, o último terço
da medida de internamento aplicada seja substituído por uma medida não
institucional;
(3) Posteriormente ao cumprimento da medida, a integração do jovem no
meio social deve ser suportada pela adequada articulação com os mecanismos
previstos na Lei de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo,
que cumpre um papel relevante em várias etapas do desenvolvimento do
jovem. As medidas acima recomendadas no âmbito da prevenção pela
integração podem ser adaptadas para uma intervenção no âmbito da
reinserção social, que podem, assim, ser utilizadas como mecanismos ao
serviço da prevenção terciária ou da reincidência.
346 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
2.8 O combate ao desperdício de conhecimento
Verificámos, ao longo do trabalho de campo, que a criança e o jovem,
bem como a sua família e as redes de sociabilidade, em especial as mais
carenciadas, sofrem intervenção multi-sistémica, passando por diversas
instituições públicas, privadas e do terceiro sector.
Os resultados de algumas destas intervenções, bem como os
diagnósticos dos técnicos que nelas actuam, são, frequentemente, dirigidos às
instâncias judiciais. Noutras palavras, o Tribunal, aqui entendido em sentido
amplo, englobando o Ministério Público, é, recorrentemente, destinatário das
informações recolhidas por aquelas instituições. Esta informação, que pode ter
sido recolhida com vista a objectivos diferenciados e, portanto, recorrendo a
metodologias próprias orientadas para aqueles fins, é disseminada por
diferentes juízos ou secções do tribunal e por processos distintos (por exemplo,
processo de promoção e protecção, regulação das responsabilidades
parentais, processo tutelar educativo, que podem correr termos no mesmo
tribunal, mas que, em regra, não se encontram).
O carácter plúrimo das informações e dos processos da criança ou
jovem leva, por vezes, à dispersão do conhecimento produzido sobre aqueles,
bem como sobre os seus factores de socialização e de perigo. É necessário
criar mecanismos que permitam ao Tribunal e, essencialmente, ao
Ministério Público, dado o papel central que assume na direcção dos
processos relativos às crianças e jovens, conhecer os processos
existentes relacionados com uma dada criança ou jovem, bem como as
informações sociais que agregam. Tal conhecimento permitirá, não só uma
informação mais contextualizada, e melhor decidir, como também evitar
desperdícios e repetições desnecessárias de solicitações, de que, aliás, com
frequências as instituições para-judiciais se queixam.
Recomendações
347
Recomendamos, por isso, que se estude a viabilidade técnica da
apensação de processos relativos à mesma criança ou jovem.
Independentemente da viabilidade da solução técnica, o cruzamento de
informação deve ser assegurado. Pode ser garantido pela criação de uma
base de dados – a actual informatização do sistema de justiça permite estas
soluções – que congregue informações sobre processos instaurados
relativamente à criança ou jovem, nomeadamente, medidas de promoção e
protecção ou tutelares educativas aplicadas.
O Ministério Público assumirá uma dupla centralidade. Por um lado,
incumbir-lhe-á dar o primeiro impulso no registo do processo na base de dados
(que será posteriormente alimentada ou pelo Ministério Público, caso o
inquérito finde sem abertura de fase jurisdicional, ou pela secção de porcessos,
no caso de o processo findar nesta fase. Por outro lado, competirá ao
Ministério Público, aquando da instauração de um inquérito tutelar educativo,
fazer a primeira consulta aos processos existentes naquela base de dados e,
obrigatoriamente, incorporar as informações sociais constantes dos processos
aí registados.
Referências Bibliográficas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Adorno, Sérgio (1991), “Violência urbana, Justiça Criminal e Organização
Social do Crime”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 33, 145-156.
Aebi, Marcelo (2008), “Psicología de las conductas disociales y violentas: la
evolución de los menores infractores en los últimos años”, in Diego Vargas
Vargas (coord.), Actas del II Symposium Internacional sobre Justicia Juvenil
y del Congresso Europeo sobre Programas de Cumplimiento de Medidas
Judiciales para Menores. Tomo I. Sevilla: Universidad de Sevilla, 39-50.
Aedo Rivera, Marcela del Pilar (2008), “La mediación penal juvenil en
Catalunya en fase de ejecución. Artículo 51.2 de la Ley 5/2000”, in Diego
Vargas Vargas (coord.), Actas del II Symposium Internacional sobre Justicia
Juvenil y del Congresso Europeo sobre Programas de Cumplimiento de
Medidas Judiciales para Menores. Tomo I. Sevilla: Universidad de Sevilla,
65-74.
Albuquerque, Catarina (2000), “As Nações Unidas, a Convenção e o Comité”,
in Revista de Documentação e Direito Comparado, 83/84, 21-54.
Amaral, Diogo Freitas do (2000), “A crise da justiça”, in Análise Social, Vol.
XXXIV. Lisboa: ICS, 154-155.
Amnistia Internacional. “La reforma de la Ley de Responsabilidad Penal del
Menor vulnera la Convención de Derechos del Niño de Naciones Unidas”.
21-06-2006, in http://www.es.amnesty.org/noticias.
Fonte: Ministério
da Justiça
Espanhol /
OPJ
352 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Andrea Carrasco, M.ª Immaculada et al. (2008), “La mediación penal juvenil:
proceso generador de dinámicas restitutivas”, in Diego Vargas Vargas
(coord.), Actas del II Symposium Internacional sobre Justicia Juvenil y del
Congresso Europeo sobre Programas de Cumplimiento de Medidas
Judiciales para Menores. Tomo I. Sevilla: Universidad de Sevilla, 163-174.
Canotilho, J.J. Gomes (2003), Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Coimbra: Almedina
Carrefour National de l’Action Éducative en Milieu Ouvert (CNAEMO), in
http://www.cnaemo.com.
Associação Francesa dos Magistrados da Juventude e da Família, in
http://www.afmjf.fr.
Azevedo, Maria José Lisboa Brites de (2007), A representação da delinquência
juvenil nos media noticiosos: Estudo de caso do Público e do Correio da
Manhã (1993-2003), Dissertação de Mestrado em Ciências da
Comunicação, Estudos dos Media e de Jornalismo. Lisboa: Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Bailleau, Francis (2002), “Le débat sur la justice des mineurs”, in Laurent
Mucchielli e Philippe Robert (dir.), Crime et sécurité, l’état des savoirs.
Paris: La Découverte, 386-394.
Barrot, Jacques (2009), “Two decades of Juvenile Justice. Improvements since
the adoption the Convention on the rights of the child” Fevereiro de 2010, in
http://www.oijj.org/crc20/.
Bauman, Zygmunt (2009a [1998]), Work, consumerism and the new poor.
London: Open University Press, McGraw-Hill Education.
Bauman, Zygmunt (2009b [1998]), Globalization: the human consequences.
Cambridge: Polity Press.
Referências Bibliográficas
353
Benavente, Renata (2002) “Delinquência juvenil: Da disfunção social à
psicopatologia”. Análise Psicológica. 4 (XX), in
http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aps/v20n4/v20n4a08.pdf, 637-645
Bernuz Beneitez, María José (2005), “Justicia de menores española y nuevas
tendências penales. La regulación del núcleo duro de la delincuencia
juvenil”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, RECPC 07-
12.
Brazão, Celso et al. (2009), Intervenção tutelar educativa e abordagem
multissistémica, Ousar Integrar - Revista de Reinserção Social e Prova.
Ano 2, 3, 97-106.
Cabezas Salmerón, Jordi (coord.) (2007), Estudio sobre la lógica de
funcionamiento en la aplicación de medidas no privativas de libertad en el
sistema de justicia juvenil en Cataluña. Observatori del Sistema Penal i els
Drets Humans - OSPDH. Universitat de Barcelona.
Carmo, Rui do (2002) “Lei Tutelar Educativa – Traços essenciais, na
perspectiva da intervenção do Ministério Público”, in Direito Tutelar de
Menores – O Sistema em Mudança. Coimbra: Coimbra Editora.
Carmona Salgado, Concepción (2008), “Consideraciones críticas sobre las
reformas operadas en la legislación penal de menores: la nueva LO 8/2006,
de 4 de Deciembre”, in Diego Vargas Vargas (coord.), Actas del II
Symposium Internacional sobre Justicia Juvenil y del Congresso Europeo
sobre Programas de Cumplimiento de Medidas Judiciales para Menores.
Tomo I. Sevilla: Universidad de Sevilla, 263-271.
Carvalho, Maria João Leote de (2001), “Imagens da Delinquência Juvenil na
Imprensa”, Infância e Juventude, 3, 65-130.
Carvalho, Maria João Leote de (2003), Entre as Malhas do Desvio: Jovens,
Espaços, Trajectórias e Delinquências. Oeiras: Celta.
354 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Carvalho, Maria João Leote de (2005), “Jovens, Espaços, Trajectórias e
Delinquências”, Sociologia, Problemas e Práticas, 49, 71-93.
Carvalho, Maria João Leote de et al. (2009), Delinquência(s) e Justiça:
Crianças e jovens em notícia. Em Crianças e Jovens em Notícia Lisboa:
Livros Horizonte, 81-95.
Castany Prado, Bernat (2008), “Menores irresponsables legalmente y
educación en responsabilidad” in I Congreso Internacional de
Responsabilidad Penal de Menores: “Hacia un modelo compartido de
reeducación y reinserción en el ámbito europeo”. Madrid. Fevereiro de
2010, in
http://www.madrid.org/cs/Satellite?c=CM_Publicaciones_FA&cid=11424655
76826&idConsejeria=1109266187224&idListConsj=1109265444710&idOrg
anismo=1109167959659&language=es&pagename=ComunidadMadrid%2F
Estructura&sm=1109266101003.
Castel, Robert (2008 [2007]), A discriminação negativa. Cidadãos ou
autóctones? Petrópolis: Vozes.
Cercas Domínguez, María Luisa (2008), “Administración y justicia juvenil. El
menor sometido a reforma juvenil”, in Diego Vargas Vargas (coord.), Actas
del II Symposium Internacional sobre Justicia Juvenil y del Congresso
Europeo sobre Programas de Cumplimiento de Medidas Judiciales para
Menores. Tomo I. Sevilla: Universidad de Sevilla, 81-93.
Coelho, Maria Zara Pinto (2009), “Jovens no discurso da imprensa portuguesa.
Um estudo exploratório”, in Análise Social, XLIV (191), 361-377.
Council of Europe (2009), European Rules for juvenile offenders subject to
sanctions or measures. Strasbourg: Council of Europe Publishing.
Cuesta Arzamendi, José Luis de la (2008), “¿Es posible un modelo compartido
de reeducación y reinserción en el ámbito europeo?”, Revista Electrónica
Referências Bibliográficas
355
de Ciencia Penal y Criminología. 10-09(2008). Março de 2010. In
http://criminet.ugr.es/recpc.
D´Amours, Oscar (2000), “Les grands systèmes: modèle de protection, modèle
de justice et les perspectives d`avenir en 100 ans de Justice Juvénile”. Bilan
et Perspectives. 5º Seminário do IDE. Institut Universitaire Kurt Bösch.
Debuyst, Christian (2002), “La délinquance comme interaction”, in Laurent
Mucchielli e Philippe Robert (dir.) Crime et sécurité, l’état des savoirs. Paris:
La Découverte, 139-147.
Del Valle, Jorge, et al. (2009), “Evaluación de resultados de la Ley de
Responsabilidad Penal de Menores. Reincidencia y factores asociados”, in
Psicothema, 21, (4), 615-621.
Díaz Cortés, Lina Mariola (2008), “Algunas consideraciones en torno a la
regulación de las bandas juveniles en la Ley Orgánica 8/2006”, in Noticias
Jurídicas. Julho 2008. In http://noticias.juridicas.com/.
Duarte-Fonseca, António Carlos (2005), Internamento de Menores
Delinquentes - A Lei Portuguesa e os seus Modelos: Um Século de tensão
entre protecção e repressão, educação e punição. Coimbra: Coimbra
Editora.
Dubet, François (1991), La galère: les jeunes en survie. Paris: Fayard.
Esterle-Hedibel, Maryse (2002), “Les bandes de jeunes”, in Laurent Mucchielli e
Philippe Robert (dir.) Crime et sécurité, l’état des savoirs. Paris: La
Découverte,178-187.
Fernandéz Molina, Esther; Alberola, Cristina Rechea (2006), “¿Un sistema con
vocación de reforma?: La Ley de Responsabilidad Penal de los Menores”,
Revista Española de Investigación Criminológica, 4.
Ferreira, Pedro Moura (1997), “«Delinquência juvenil», família e escola”,
Análise Social, XXXII (143), 913-924.
356 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Ferreira, Pedro Moura (2000), “Controlo e Identidade: A Não Conformidade
Durante a Adolescência”, Sociologia, Problemas e Práticas, 33, 55-85.
Frias, Graça (2004), “A Construção Social do Sentimento de Insegurança em
Portugal na Actualidade”. Comunicação apresentada no VIII Congresso
Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, A Questão Social no Novo
Milénio, decorrido em Coimbra, a 16, 17 e 18 de Setembro de 2004.
Galanter, Marc (1993), “Direito em Abundância: a actividade legislativa no
Atlântico Norte”, in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 36. Coimbra.
Garnier-Muller, Annie (2000), Les «Inutiles». Survivre au quotidien en banlieue
et dans la rue. Paris: Les Éditions de L‟Atelier, Les Éditons Ouvrières.
Generalitat de Catalunya (2004), “Departament de Justícia. Pla Director de
Justicía Juvenil. Línies estratègiques, objectius i actuacions 2004-2007”.
Fevereiro de 2010, in
http://www20.gencat.cat/docs/Justicia/Documents/ARXIUS/doc_93922505_
1.pdf.
Gomes, Conceição (coord.) (2003), A reinserção social dos reclusos. Um
contributo para o debate sobre a reforma do sistema prisional. Coimbra:
Centro de Estudos Sociais/Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa, in http://opj.ces.uc.pt/pdf/14.pdf.
Gomes, Conceição (coord.) (2004), Os caminhos difíceis da “Nova” Justiça
Tutelar Educativa. Uma avaliação de dois anos de aplicação da Lei Tutelar
Educativa. Coimbra: Centro de Estudos Sociais/Observatório Permanente
da Justiça Portuguesa, in http://opj.ces.uc.pt/pdf/Tutelar.pdf.
Gomes, (coord.) (2009). A justiça penal: uma reforma em avaliação. Coimbra:
Centro de Estudos Sociais/Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa, in
http://opj.ces.uc.pt/pdf/Relatorio_Final_Monitorizacao_Julho_2009.pdf.
Referências Bibliográficas
357
González Armengo, José Luis (2008), “I Congreso Internacional de
Responsabilidad Penal de Menores: “Hacia un modelo compartido de
reeducación y reinserción en el ámbito europeo””. Madrid. Março de 2010,
in
http://www.madrid.org/cs/Satellite?c=CM_Publicaciones_FA&cid=11424655
76826&idConsejeria=1109266187224&idListConsj=1109265444710&idOrg
anismo=1109167959659&language=es&pagename=ComunidadMadrid%2F
Estructura&sm=1109266101003.
González del Real, Concepción Rodríguez (2008), “Actuaciones con menores
irresponsables penalmente y actuaciones de apoyo tras las medidas”. I
Congreso Internacional de Responsabilidad Penal de Menores: Hacia un
modelo compartido de reeducación y reinserción en el ámbito europeo.
Madrid. Fevereiro de 2010, in
http://www.madrid.org/cs/Satellite?c=CM_Publicaciones_FA&cid=11424655
76826&idConsejeria=1109266187224&idListConsj=1109265444710&idOrg
anismo=1109167959659&language=es&pagename=ComunidadMadrid%2F
Estructura&sm=1109266101003.
Guerra, Paulo (2008), “Jurisprudência Crítica”, Ousar Integrar – Revista de
reinserção social e prova. Lisboa: DGRS, 79-95.
Lagrange, Hughes (2002), “La délinquance des jeunes”, in Laurent Mucchielli e
Philippe Robert (dir.) Crime et sécurité, l’état des savoirs. Paris: La
Découverte, 158-167.
Lourenço, Nelson; Lisboa, Manuel (1992), Representações da Violência.
Lisboa: Gabinete de Estudos Jurídico-Sociais.
Lourenço, Nelson et al. (1998), “Crime e insegurança: delinquência urbana e
exclusão social”, Sub judice, 13, 51-59.
358 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Macé, Éric (2002), “Le traitement médiatique de la sécurité”, in Laurent
Mucchielli e Philippe Robert (dir.) Crime et sécurité, l’état des savoirs. Paris:
La Découverte, 33-41.
McLaughlin, Eugene; Muncie, John (1994), “Juvenile Dlinquency”, in Rudi
Dallos e Eugene McLaughlin (ed.), Social Problems and the Family.
London, Newbury Park e New Delhi: Sage, 155-187.
Madrid Liras, Santiago et al. (2008), “Mediación penal en conflictos familiares:
experiencia en la Comunidad de Madrid” ”, in Diego Vargas Vargas (coord.),
Actas del II Symposium Internacional sobre Justicia Juvenil y del Congresso
Europeo sobre Programas de Cumplimiento de Medidas Judiciales para
Menores. Tomo I. Sevilla: Universidad de Sevilla, 273-280.
Manso, Ana; Almeida, Ana Tomás de (2009), “Representações sociais de
jovens institucionalizados em Centro Educativo – Perspectivas sobre a
educação para o direito” Ousar Integrar, Ano 2, 2, 31-42.
Ministère de la Justice Française, in http://www.justice.gouv.fr.
Montero Hernanz, Tomás (2007), “Noticias Jurídicas”. Janeiro de 2010, in
http://noticias.juridicas.com/articulos/55-Derecho%20Penal/200709-
49756824632147.html.
Montero Hernanz, Tomás (2008), “La política criminal juvenil en España y el
síndrome de Cristóbal Colón”. Diario La Ley, 6919. 7 Abril 2008. Año XXIX.
Moura, José Adriano Souto de (2000), “A tutela educativa: factores de
legitimação e objectivos”, Separata da Revista do Ministério Público, 83.
Lisboa: SMMP: 97-120.
Neves, António Castanheira (1993), Metodologia jurídica. Problemas
fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora.
Neves, Tiago (2008) “Entre Educativo e Penitenciário: Etnografia de um centro
de internamento de menores delinquentes”, CIIE e Edições Afrontamento.
Referências Bibliográficas
359
Nightingale, C. (1993). On the Edge. New York: Basic Books.
Observatorio Internacional de Justicia Juvenil, in
http://www.oijj.org/home.php?pag=000000.
Organização das Nações Unidas (2005), World Youth Report “Young People
Today and in 2015”. Março de 2010, in
http://www.un.org/esa/socdev/unyin/wyr05.htm.
Pais, José Machado (1990), “A Construção Sociológica da Juventude – alguns
contributos”, Análise Social, XXV (105-106), 139-165.
Pais, José Machado (1996), “Levantamento bibliográfico de pesquisas sobre a
juventude portuguesa – tradições e mudanças (1985-1995)”, Sociologia,
Problemas e Práticas, 21, 197-221.
Paugam, Serge (2003 [1991]), A Desqualificação Social. Ensaio sobre a nova
pobreza. Porto: Porto Editora.
Ponte, Cristina (2005), Crianças em Notícia. Lisboa: ICS.
Ponte, Cristina (Ed.). (2009), Crianças e Jovens em Notícia. Media e
Jornalismo. Lisboa: Livros Horizonte.
Ponte, Cristina; Afonso, Bruna (2009), “Crianças e jovens em notícia – Análise
da cobertura jornalística em 2005”, in Crianças e Jovens em Notícia, Media
e Jornalismo, Lisboa: Livros Horizonte, 29-44.
Prieto Lois, José Ignacio (2009), “Delincuencia juvenil en Galicia. Acciones de
prevención e intervención”. Fevereiro de 2010, in
http://www.dgrs.mj.pt/web/rs/valere.
Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa (PGDL) (2009), “A intervenção Tutelar
Educativa no Distrito Judicial de Lisboa”, in www.pdglisboa.pt.
Pulido Valero, Rosa et al. (2008), “Intervención psicopedagógica con menores
a través de la mediación”, in Diego Vargas Vargas (coord.), Actas del II
360 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Symposium Internacional sobre Justicia Juvenil y del Congresso Europeo
sobre Programas de Cumplimiento de Medidas Judiciales para Menores.
Tomo I. Sevilla: Universidad de Sevilla, 151-154.
Ramião, Tomé D'Almeida (2004), Lei Tutelar Educativa, Anotada e Comentada.
Lisboa: Quid Juris.
Robert, Philippe (2002), “Le sentiment d‟insécurité”, in Laurent Mucchielli e
Philippe Robert (dir.) Crime et sécurité, l’état des savoirs. Paris: La
Découverte, 367-375.
Rodrigues, Anabela Miranda (1997), “Repensar o direito de menores em
Portugal – Utopia ou realidade”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 7:
355-386. Coimbra: Coimbra Editora.
Rodrigues, Anabela e Duarte-Fonseca, António Carlos (2000), Comentário da
Lei Tutelar Educativa. Coimbra: Coimbra Editora.
Rodrigues, Anabela Miranda; Duarte-Fonseca, António (2003), Comentário da
Lei Tutelar Educativa. Coimbra: Coimbra Editora.
Sanz Mulas, Nieves et al. (2003), Direito de Menores – Estudo luso-hispânico
sobre menores em perigo e delinquência juvenil. Lisboa: Âncora Editora.
Seabra, Hugo Martinez de (2005), Delinquência a Preto e Branco: Estudo de
Jovens em Reinserção. Porto: ACIME.
Silva, Ana Zita (2009) “O estilo de vinculação e o desenvolvimento de
comportamentos delinquentes na adolescência: factor de risco ou de
protecção”. Ousar Integrar – Revista de Reinserção Social e Prova. Ano 2,
n.º 2, 55-68.
Sottomayor, Maria Clara (2003), “O poder paternal como cuidado parental e os
direitos da criança”, in Cuidar da Justiça de Crianças e jovens – a função
dos juízes sociais. Actas do encontro. Coimbra: Almedina, 9-63.
Referências Bibliográficas
361
Tutt, Norman (1991), “O futuro do sistema da justiça de menores”, Revista
Infância e Juventude, Número Especial. Lisboa: Instituto de Reinserção
Social.
Vázquez González, Carlos (2008), “La responsabilidad penal de los menores
en Europa”. Fevereiro de 2010, in
http://www.amigonianos.org/noticias/noticias_doc/Ponencias/V+%C3%ADz
quez%20Gonz+%C3%ADlez,%20Carlos.pdf.
Wacquant, Loic (2000 [1999]), As Prisões da Miséria. Oeiras: Celta.
Youf, Dominique (2009), Juger et éduquer les mineurs délinquants. Paris.
Dunod.
Young, Jock (1999), The Exclusive Society. Social Exclusion, Crime and
Difference in Late Modernity. London: Sage.
Young, Jock (2007), The Vertigo of Late Modernity. London: Sage.
ANEXO
PAINEL DE DISCUSSÃO205
Centro de Estudos Sociais
29 de Janeiro de 2010
205 A identificação dos intervenientes do painel de discussão faz-se pela letra P, seguida de um
número atribuído a cada participante em função da ordem pela qual intervieram.
Anexo
367
OPJ
Começaríamos pelos discursos europeus
sobre a delinquência juvenil.
P1
Há uma coisa que para mim é transversal a
isto tudo, há quase que uma referência
escondida na Europa e o problema da
delinquência juvenil é, sobretudo, o
problema de um conjunto de minorias
(imigrantes de terceira ou eventualmente,
quarta geração). Eu não conheço, a esse
nível, a realidade aqui em Portugal – pode
ser que não seja bem assim – mas há
também um discurso político, às vezes um
pouco encapotado, que defende que isto é
um problema, de facto, de pessoas que
não deviam estar na Europa. Essa é a
parte ideológica.
Por outro lado, a investigação diz-nos há
muitos anos é que a probabilidade destes
grupos estarem mais marginalizados,
sofrerem mais os impactos, por exemplo de
qualquer crise económica, é maior, e por
isso vemos aquelas coisas em França.
Enfim, há países onde isto, provavelmente,
será mais complicado e, portanto, essa
questão que pode ou não entrar nas
questões do tão em voga “politicamente
correcto” pode ser também relevante e
significar que esta criminalidade juvenil é
uma criminalidade que já está muito mais
associada a determinados tipo de grupos.
Nós temos, por exemplo, uma clivagem, e
vemos muito bem isso entre a zona do
Porto, o Norte, e Lisboa. No Porto não há,
praticamente, nenhum problema com
qualquer indivíduo de raça negra. Já se
formos a Lisboa, é o que se vê – e porquê?
Talvez, também, porque a grande maioria
habita ali. Quero dizer, é um problema dos
indivíduos de raça negra, um problema da
zona de Lisboa, um problema de Portugal,
enfim, não sei efectivamente como é que
esta questão pode ser abordada mas a
dimensão da delinquência juvenil ligada, de
facto, a grupos étnicos, que até quase
historicamente sofrem algum grau de
segregação e que começa logo pelos
problemas económicos, requer também, se
calhar, algum cuidado.
Enfim, mas como digo, não sei, não
conheço, confesso, nenhum estudo que
indique se isto está mais ou menos
tipificado.
OPJ
Não está. Por exemplo, neste nosso
trabalho, uma das zonas com que
trabalhámos é, justamente, uma zona que
tem duas áreas muito diferenciadas com
realidades sociológicas muito
diferenciadas.
A questão, desde logo, é esta, é que
havendo estas realidades sociológicas tão
distintas, como acentuou, com uma
componente de grupos, de gerações
excluídas socialmente para as quais a
resposta judicial aparece sem outros
suportes, ou com poucos outros suportes.
Nestes casos de que é que serve a
resposta judicial?
P2
Aquilo que eu posso referir, com limitações
pessoais nestas circunstâncias, uma vez
que estou a coordenar mas não
propriamente na área de menores, tenho
um conhecimento só prático, daquilo que
368 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
vai entrando e acontecendo. Não será tanto
a questão de uma etnia ou de uma raça,
mas é o problema dos brasileiros que têm
vindo também a aumentar muito. Eu não
sei até que ponto é que esse sentimento
que se nota que existe, ou seja, que o
aumento do crime violento se deve a essa
tal cultura, dos brasileiros, que é diferente
da nossa – mas não sei se isso
corresponde ou não à verdade porque não
temos estudos em relação a isso. A única
coisa que posso dizer, com base num
pequeno estudo que fiz, é que, de 2007
para 2008, houve efectivamente uma
duplicação do número de crimes violentos
(por exemplo: roubos) incluindo também,
os praticados por nós.
P3
Relativamente aos menores, as
estatísticas, designadamente até aos 16
anos, indicam isso?
P2
Não.
P4
Se nós olharmos para aquilo que é o reduto
terminal do sistema, que são os internados,
e como toda a gente sabe, é o fim da linha,
o que encontramos numa perspectiva
diacrónica, é uma diminuição da população
internada.
Eu trouxe-lhe alguns números. Em Portugal
– aliás o CES está numa posição
privilegiada, porque o OPJ tem aquela
ligação à Direcção-Geral de Política de
Justiça tendo acesso às estatísticas da
actividade dos tribunais, que os
investigadores não têm. Eu tenho-as
através do Ministério da Justiça, mas só
tenho estatísticas consolidadas até 2006.
Assim, o que verifico é uma paridade muito
grande entre a aplicação de medidas pelos
tribunais e depois a população internada.
Portanto, há sempre, de facto, um
paralelismo muito grande o que leva a que
podemos extrapolar conclusões a partir da
perspectiva diacrónica da população dos
centros, relativamente à actividade dos
tribunais.
Ora, aquilo que se tem passado é que,
curiosamente, ao longo de uma série de
nove anos (2001 a 2009) a população dos
centros educativos diminuiu. Aumentou até
2003 e depois, desde aí, vem descendo
consecutivamente com sobressaltos de três
em três anos. Por exemplo, agora
aumentou ligeiramente em poucas
unidades (cerca de 20 unidades em 2009)
mas tinha descido imenso em 2008 e 2007.
Portanto, isto leva-me a pensar que se, no
Relatório Anual de Segurança Interna
referente a 2008, o capítulo referente à
delinquência juvenil deixou de existir,
significa que tornou-se estatisticamente
inexpressivo. Até 2008, a criminalidade
registada até aos 16 anos correspondia, há
uma série de anos, a 1% da criminalidade
total registada no país. Ora, se em 2008,
no Relatório de Segurança Interna, este
dado deixou de existir, tenho de concluir
que deixou de existir por se ter tornado
estatisticamente inexpressivo. E isto
porque, se nós compararmos com o relevo
que foi dado a outro tipo de criminalidades,
se fosse o caso da criminalidade juvenil ter
aumentado, logicamente ela não deixaria
de constar daquele relatório. Ora, foi
exactamente o contrário que aconteceu,
deixou de existir.
Por outro lado, a população julgada pelos
tribunais de família e menores diminuiu,
portanto, o número de medidas aplicadas
diminuiu ao mesmo tempo que diminuiu o
Anexo
369
número de menores. E o “fim da linha”, ou
seja a população internada, como digo,
também diminuiu.
Há ainda algo que é, particularmente
sintomático: ver o que se passou
relativamente aos crimes mais graves,
porque estes levam ao internamento em
regime fechado. Aliás, a Lei Tutelar
Educativa está feita de propósito para fazer
essa diferenciação, uma vez que não se
pode aplicar o internamento em regime
fechado senão a crimes particularmente
graves. Ora, a população em regime
fechado manteve-se mais ou menos
constante e, pelo contrário, registou
momentos de grande descida.
Eu tenho algumas indicações sobre isso.
Em relação, por exemplo, ao regime
fechado, ele nunca ultrapassou 51
menores, que foi o dado de 2002, e desde
então, tem oscilado entre 32, que foi o valor
mínimo registado em 2007, e 49 que foi o
valor maior registado em 2008.
O que posso dizer, muito sinceramente, é
que poucos países da Europa, e nem falo
de países da UE, se podem orgulhar de ter
tão poucas crianças e jovens internados ou
em situações de privação de liberdade
como nós temos. O que quer dizer que não
temos, ao contrário do que se pensa,
problemas de delinquência juvenil
particularmente graves.
Dir-me-á que, possivelmente, a situação
seria diferente se a lei, como aliás já se tem
querido, não tivesse estes limites
relativamente à aplicação do internamento.
E portanto, o internamento deveria ser
aplicado independentemente do princípio
da proporcionalidade. Aí teríamos
seguramente maior movimento ao nível do
internamento em regime fechado, em
especial porque há um movimento
securitário muito influenciado pela opinião
pública.
Se analisar a população dos
estabelecimentos de menores, sempre na
mesma data, ou seja, em 31 de Dezembro,
aquilo que encontra é que sempre foram
alimentados em maioria pelo regime
semiaberto. A maior parte da população
está em semiaberto. Curiosamente, o
regime aberto, que começou de forma
quase inexpressiva, tem vindo a crescer
ainda que com alguns sobressaltos.
A minha conclusão é de facto que, em
termos gerais, e baseando-me apenas
nisto, porque, infelizmente, nós não temos
estudos de caracterização relativamente à
população que chega aos tribunais
independentemente de vir a ser julgada ou
não, baseando-me naquilo que,
consensualmente para a doutrina e para a
investigação, é sempre o “fim da linha”, que
é a privação de liberdade, conclui-se,
portanto, a este respeito, que é aí que vai
parar a criminalidade mais grave
forçosamente, porque são todos os
instintos securitários sociais em acção, em
alarme, em alerta.
Ora, se isto não acontece, se não
ultrapassámos, em Portugal, em nove anos
os 51 menores internados, que é o valor de
2002, acho que podemos, neste aspecto,
dar-nos por satisfeitos.
OPJ
Portanto, na sua perspectiva, esta ideia de
que entre nós há um aumento da
delinquência juvenil é uma ideia alarmista.
Bom, de facto, os dados do Relatório Anual
de Segurança Interna que referiu, revelam,
e depois foi feita uma adenda ao relatório
de 2008, que os actos praticados por
menores de 16 anos face a 2007,
desceram cerca de 43%, mas, grande parte
dos fenómenos criminais que encontramos
ocorrem em Lisboa, Setúbal e Porto e
aumentaram os actos criminosos
370 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
praticados por 3 ou mais indivíduos. Ou
seja, aumentou o fenómeno de grupo. E
isso aumentou face a 2007, segundo os
dados do Relatório, acresceu em 35%, isto
é, há aqui uma nova realidade, ou, pelo
menos, a manifestação dessa realidade de
fenómenos de grupo que também emergiu
no nosso trabalho de terreno.
Mas, nos estudos de caso que estamos a
fazer, o que está a acontecer é que, numa
zona que tem um certo contexto, a
percepção dos magistrados e pelos
números das entradas nos tribunais, não
houve nenhum aumento significativo, não
há nenhuma mudança, nenhuma alteração,
nem do ponto de vista qualitativo nem
quantitativo. Continua a tratar-se de
pequenos furtos.
Pelo contrário, numa outra zona os dados
empíricos são outros e a própria percepção
dos magistrados é outra. E aí sim, é-nos
dito que tem vindo a aumentar um tipo de
criminalidade violenta praticada pelos
jovens. Violência que incide, grande parte
das vezes até, sobre outros jovens. Isto
condiz com aquilo que P4 estava a dizer.
Nós temos, de facto, realidades
sociológicas muito diferenciadas. Muitos
destes casos são de pessoas que estão
desintegradas socialmente, com todos os
problemas sociais daí decorrentes.
P4
Eu concordava consigo se estivéssemos a
falar de jovens adultos, que é algo com que
ninguém se tem preocupado. O que é
escandaloso e não tenho vergonha de
empregar a palavra, e é outro dos
paradoxos, pegando agora na sua deixa, é
que de facto, onde a delinquência juvenil
tem aumentado é na faixa dos jovens
adultos, e estrondosamente. Basta olhar
para os relatórios de segurança interna.
Aliás, historicamente, nós sabemos desde
o Hirschi e do Gottfredson que em qualquer
momento no espaço e no tempo, a
delinquência sempre foi forte entre os 18 e
os 25 anos, mas particularmente na faixa
entre os 18 e os 21 anos.
Ora, nós demo-nos ao luxo de não
completar a reforma do direito de menores
em 1999, não legislando sobre jovens
adultos e metemos a cabeça na areia,
orgulhosamente, até hoje, a este respeito.
OPJ
Gostava que também tivéssemos em
atenção que muitos destes jovens adultos a
que nos estamos a referir, e nós temos um
trabalho específico sobre isso, foram “
clientes” do tutelar educativo, uma boa fatia
deles.
Nós, num trabalho que fizemos na área da
reinserção social do sistema prisional,
chegámos a um resultado, agora não me
recordo da percentagem concreta, mas sei
que eram números muito elevados de
indivíduos que entram no sistema prisional
e passaram por esta fase.
Portanto, a intervenção de que nós
estivemos aqui a falar, e não só aqui mas
também no tutelar educativo, tem a ver
com isto.
O que eu queria saber era se todo este
discurso em contexto europeu faz sentido
no nosso país.
P5
O meu conhecimento dos dados vai
exactamente no mesmo sentido pelo que
não vou repetir. Gostava só de salientar
que qualquer alarme social, qualquer
pânico moral, é, por definição, difuso e
portanto, quem faz isto sabemos que são
miúdos, são jovens. Não sabemos bem se
têm 14 se têm 20 anos, ou se têm 15 ou
Anexo
371
18. Mas depois, no sistema, eles são
tratados de forma diferente. Eu acho que
os dados estatísticos que temos indicam
bem esta diferença entre o que nós
chamamos os menores e os jovens
adultos.
Da interpretação que eu faço dos dados, de
facto, o grande peso do crescimento, em
termos gerais, é nos jovens adultos e não
nos menores. Isto parece-me ser um erro
de focagem que os pânicos morais quase
necessariamente provocam. Depois, a
questão do alarme social, pelo menos já
desde o século XVIII ou XIX, está bem
documentada a existência de alarmes
sociais. E, portanto, se de facto eles
correspondessem à realidade, nós
provavelmente nem existíamos, já nos
tínhamos morto uns aos outros porque os
alarmes são de tal forma recorrentes e
graves que parece que a tendência é
sempre no sentido da decadência das
relações e não me parece, apesar de tudo,
que hoje as nossas sociedades sejam
assim tão violentas e tão insustentáveis do
ponto de vista relacional. Não me parece,
mas não nos esqueçamos de que hoje em
dia somos muitos mais e isso por si gera
outra dinâmica demográfica. Isso, se
calhar, vale a pena ter em conta.
P4
Cada vez que em Portugal se pediu a
descida da idade de imputabilidade, isso
está sempre na sequência de um caso
horrendo. Foi o caso do gang da auto-
estrada com a Lídia Franco, por ser a Lídia
Franco a aparecer na televisão e ser,
realmente, uma personagem, enfim,
causadora de emoções, logrou aquilo que
mais ninguém tinha conseguido, que foi
acordar a silly season de 2000.
P5
E foi a partir daí que se gerou o Programa
Escolhas.
P4
Exactamente, tem toda a razão. E não só
isso. Os partidos políticos saíram dessa
vez a terreno a pedir a descida da idade da
imputabilidade dos 18 para os 14 anos.
Segundo caso: o caso da transexual
Gisberta. Ora bem, se nós formos aqui
para o lado, para Espanha, encontramos
exactamente a mesma coisa, o mesmo
fenómeno. Ou seja, o caso do niño de la
catana, o caso da rapariga que foi morta na
paragem do autocarro, o caso do sem
abrigo que estava em Barcelona metido
dentro da Caixa Multibanco. Todos estes
crimes particularmente horrorosos, mas
sem que haja, de facto, em Espanha,
também, uma correspondência do aumento
da delinquência juvenil em geral. Houve, de
facto, estes casos pontuais de crimes
horrendos mas que levaram a que a
pressão mediática fosse tão forte que,
reforçando aquilo que P5 está a dizer, acho
que este alarme é um alarme induzido.
Nem sequer é um alarme natural, é um
alarme induzido pelos media e, por isso,
tem como consequência um duplo efeito. E
isto tem acontecido em outras sociedades,
eu só estou a utilizar o caso aqui ao lado
372 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
como exemplo. Tem acontecido em
França, em Itália. Eu acompanho há anos o
que acontece nos cárceres para menores
em Itália porque estive ligado ao projecto
Ferrante Aporti. Curiosamente, uma coisa
interessantíssima, que em Portugal não
tenho visto porque foi o único país que não
alinhou no último grande estudo
comparativo internacional sobre as
crianças imigrantes não acompanhadas. A
Espanha, França, Itália, aliás, quase todos
os países da UE participaram neste estudo
da Comissão Europeia. Nós temos a
publicação em várias línguas, mas Portugal
não entrou neste estudo e, portanto, apesar
de nós termos, pelos dados empíricos que
vou recolhendo, crianças imigrantes não
acompanhadas que vão chegando ao
sistema de justiça, não temos este estudo
feito na mesma perspectiva que os outros.
Mas, por exemplo, o caso de Itália é
paradigmático quanto a isso. Se nós
formos ver ao longo de uma década, a
população nos cárceres para menores, os
chamados Istitutos di rieducazione, tem
mudado de nacionalidades consoante as
expressões migratórias, ao ponto de neste
momento, não haver jovens italianos. O
que há são jovens magrebinos por
exemplo, apesar de que, quando estive a
estudar no Ferrante Aporti, o problema
eram os zingari, os ciganos, as populações
nómadas. O Ferrante Aporti estava cheio
de nómadas.
Quando a população magrebina realmente
se tornou uma população tida, sob o ponto
de vista social, como perigosa,
automaticamente a justiça começou a
encher as instituições de menores com
crianças e jovens desta origem.
Eu, em Portugal, não tenho notado, pelo
que me contam, que nos internatos para
jovens isso tenha acontecido.
P3
Houve agora, no caso das raparigas, um
aumento das medidas de internamento
feminino mas é um fenómeno recente.
Aumentou com as romenas que, em
princípio, até não serão menores.
P4
Sim, mas aumentou 4 unidades. Isto é
inexpressivo.
OPJ
Como temos tão poucos, quando dizemos
que aumenta, aumenta muito.
P4
Claro, tínhamos 18 raparigas internadas
em 2002, agora temos 24. Isso quer dizer
alguma coisa?
P1
Deixe-me só dar um dado. O meu colega
que dirige um colégio no Porto, o que ele
me disse, quando fui acompanhar uma
rapariga que foi para lá estagiar, foi que
desde há vários meses os miúdos que
temos aqui não são do norte, vêm de
Lisboa.
P4
Isso tem a ver com uma estratégia de
distribuição do sistema relativamente às
colocações. Isso é outra coisa, outro
fenómeno.
Anexo
373
P6
Parece-me que tudo isto está muito ligado
com a situação social. Na minha zona, em
10 anos, a população aumentou 60%. E
tem uma sociedade civil frágil, suponho
também que será bastante frágil, dado os
problemas na promoção e protecção.
Por exemplo tem uma escola que tem 19
nacionalidades. Tem mais população já do
que Lisboa e não tem as suas infra-
estruturas, e não tem a pirâmide invertida,
na base, tem mais jovens e, portanto,
mostra que há uma relação em que tem um
apoio social diminuto. Há uma freguesia
que tem cento e quarenta mil habitantes e
tem dois ou três assistentes sociais, não
sei bem.
Isto só para dizer que está tudo muito
conjugada esta ideia. Parece que o facto
de haver mais, enfim, fenómenos de
delinquência, este fenómeno das 19
nacionalidades à primeira vista acreditei,
mas fiquei um pouco estupefacto por causa
da minha experiência mas, estive em x é o
ano passado, onde há uma com 31
nacionalidades! Mostra que o que importa é
que há zonas com uma heterogeneidade e
com desafios ao nível da multiculturalidade
que implicam fenómenos sociais e de redes
sociais.
De modo que não sei se os fenómenos de
delinquência aí são tão significativos como
isso…
OPJ
Gostava de ouvir os magistrados que estão
no terreno se há alguma razão entre nós
para que alteremos a lei, ou usemos este
enquadramento para, digamos, aumentar a
rigidez normativa do sistema.
Não quero dizer com isto que as respostas
sejam adequadas. O que quero dizer é
que, por exemplo, em Espanha, aumentou-
se o tempo das medidas, da duração do
internamento, etc.. Houve um
endurecimento. E entre nós, não há
nenhuma razão para que sequer esta
questão esteja em cima da mesa.
P4
E pior ainda, o vaso comunicante entre os
centros educativos e as prisões, porque,
automaticamente, quando se atinge a
maioridade passa-se a executar a medida,
dita educativa, no estabelecimento
penitenciário.
OPJ
Eu gostava de ouvir os magistrados,
porque esta, parece-me que é uma questão
absolutamente central, porque condiciona o
sentido daquilo que nós vamos propor.
Enfim, não estamos a falar da aplicação da
lei, da problemática, se ela é eficaz se não
é. Gostava de falar dessas coisas a seguir.
Agora é, de facto, sobre os princípios que
nos devem nortear.
P3
Começando por aquela questão do modelo
europeu, saber se os problemas que nós
temos aqui são os mesmos que têm a nível
europeu e que levaram a um
endurecimento, há logo aqui algumas
questões que importa colocar.
Primeiro, está em saber o modo como na
Europa, de uma forma bastante diversa de
uns para outros, as respostas que dão ao
nível de enquadramento jurídico e de
aplicação judiciária no que concerne à
delinquência entre os 12 e os 16 anos tem
sido muito distinta.
374 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
E há aqui um caminho, oo modo como em
França, em Inglaterra e em Espanha se
têm encarado estas questões, o que estes
países seguiram e que, de certa forma, terá
de ser pensado com o modo, o percurso
que nós seguíamos.
Em Portugal, na altura em que se fez a
grande discussão e alteração de paradigma
da antiga Organização Tutelar de Menores
para a Lei Tutelar Educativa e para a Lei de
Promoção e Protecção, optou-se pelo que,
no fundo, é uma nova concepção do
sistema na sua integridade, optou-se por
construir um paradigma de enquadramento
jurídico distinto e inovador. O pouco que
conheço dos outros sistemas jurídicos, é
que enquadraram sempre estas questões
no Direito Penal ou no Direito de protecção
muito em termos civilísticos. E o que aqui
se tentou construir, com algumas
contradições e com alguns paradoxos, mas
também, de certa forma, no início de uma
elaboração teórica que acho estimulante,
foi uma resposta distinta, em termos
teóricos, que encarasse esta realidade
como uma realidade própria que merecia
uma resposta própria.
Isto remete-me, um pouco, para a
necessidade que nós temos actualmente,
de criar novos direitos – por exemplo o
direito do ambiente é um novo direito que
sai do paradigma do civil e do penal e outro
tipo de desafios aos quais os juristas e o
quadro jurídico respondem sempre com
grandes dificuldades, porque sair daqueles
quadros com que estudámos é um pouco
complicado.
E aqui eu acho que houve esse início de
elaboração teórica, como disse, com
algumas contradições, e que depois vai na
prática levar a algumas contradições e a
algumas dificuldades.
Eu acho que ainda hoje na aplicação da lei,
nós temos alguma dificuldade, quando há
alguma questão, em tentar elaborar
teoricamente, de acordo com esta resposta
e essa proposta que nos é oferecida e
continuamos sempre a distinguir: isto é
penal, isto é civil.
Isto para dizer que há uma tendência muito
grande para encarar as questões da
delinquência juvenil – e aqui também há
uma certa indefinição do que é que é a
delinquência juvenil, porque quando
pensam na delinquência juvenil, ao mesmo
tempo dos relatórios, pensam nos jovens
dos 12 até aos 20 anos, e aqui há
respostas distintas – como delinquência de
menores, delinquência de adultos, e
portanto, colá-la o mais possível à resposta
que existe para os adultos. E quando se
acentua a resposta securitária, está-se a
encarar a questão da delinquência juvenil
abaixo dos 16 anos muito à semelhança da
delinquência para adultos.
Curiosamente (isto é um à parte mas que
tem também uma reflexão) enquanto para
os adultos consideramos que é bom
aplicar-lhes medidas alternativas na
comunidade, diversidade, para os menores,
talvez por considerarmos que eles ainda
estão debaixo do pendor autoritário em que
nos é permitido isso, para os educar o
melhor é “metê-los lá dentro”.
Ou seja, tem-se esta ideia, para educar os
adultos, o melhor é colocá-los cá fora, para
os menores não. Isto é um pouco
paradoxal mas é assim que acontece.
Mas, voltando à questão, eu acho que a
reflexão sobre o que está a acontecer em
termos europeus é importante mas
sabemos muito pouco sobre isso. Falamos
todos sobre isso, mas poucos sabem e
conhecem, em termos de lei e teóricos, o
que é que acontece nos diversos países da
Europa que, aliás, são muito distintos e até
sobre os sistemas práticos que eles
utilizam.
De qualquer maneira, esta construção do
modelo europeu é muito estimulante, mas
Anexo
375
ainda estamos muito no princípio, como
estamos relativamente à construção do
modelo europeu penal, que é a dificuldade
de encontrarmos um enquadramento.
E começa logo pela dificuldade de
conceitos, porque a delinquência juvenil em
Espanha é até uma determinada idade, em
Inglaterra é completamente distinta,
portanto, há aqui ainda um grande caminho
a percorrer.
Quanto à questão do sistema, da sensação
de segurança ou insegurança já foi aqui
dito e isto já foi estudado. O clima ou
sensação de insegurança é muito diferente
da insegurança propriamente dita e isso
está mais que estudado. Isto é para dizer
que nós temos que nos preocupar, neste
momento, em saber qual é realidade
portuguesa quanto a esta questão.
Já foram aqui adiantados muitos dados e
são os que existem, mas são muito poucos.
Há uma enorme falta de estudos para nós
sabermos, realmente, qual o tipo de
delinquência cometida até aos 16 anos,
caracterização do tipo de delinquentes
(estou a falar em delinquentes, menores
que cometem factos ilícitos até aos 16
anos, ou até aos 18, ou até aos 21). Depois
estas questões vão-se pegar, como vão
também pegar-se com a Lei de Promoção
e Protecção anterior, é inevitável, porque,
quando estamos a falar da falta de
resposta do sistema, vamos
necessariamente bater à questão da falta
ou não de resposta de promoção e
protecção e por aí fora até chegar a outra.
Assim, há uma enorme falta de estudos
para saber, no sistema, o que é que
acontece com os que estão no sistema
prisional, quantas sinalizações têm em todo
o sistema, não só do judiciário, mas até do
próprio sistema de Segurança Social,
desde que nasceram até irem lá parar.
Isto tudo continua por fazer, pelo que
estamos a viver muito de sensações,
porque os números todos nos dizem isto
que P4 nos disse.
Depois há a sensação dos que “trabalham
com”, e esses também têm muito a
sensação conforme os universos que
conhecem. Se eu for um magistrado de um
tribunal de competência comum, em que
tenho promoção e protecção, crime, cível,
processos relativos ao tutelar educativo,
vejo a realidade de uma determinada
maneira. Se eu estiver num tribunal em que
o trabalho é só inquéritos tutelares
educativos, nem sequer faço os
julgamentos, apanho-os ali, a minha
realidade passa a ser aquela.
É que tudo isto também tem influência
nesses estudos, nessas sensações, e tem
influência também, claro, o tal sentimento
de insegurança que os magistrados
sentem, como seres humanos que são, e
que depois transferem na aplicação do
modo como apreciam os casos.
Isto para dizer que há alguns estudos que
nos dizem, por exemplo, a Maria João
Leote de Carvalho está a fazer um estudo
num bairro que nos remete já para algum
conhecimento de que, efectivamente, em
algumas comunidades e nalguns pontos do
país, há fenómenos novos que é preciso ter
em atenção, relativamente ao percurso
criminoso (se é que isso existe) e ela
conta-nos coisas em relação a crianças
com 7, 8 ou 9 anos, e por vezes até menos,
que, realmente, nos levam a concluir que
tem de se fazer qualquer coisa. Mas, aí é
caracterizar o problema e depois ver como
é que vamos responder.
Ora, mesmo nessas comunidades e nesses
tribunais que abrangem essas áreas mais
problemáticas, que são muito distintas e
estão mais ou menos identificadas nos
tribunais de família e menores o que se vê
é que o aumento nos processos não se tem
verificado, ou o aumento que há não é
significativo.
376 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Por exemplo, eu conversei com alguns
colegas (lá está, a sensação!) do tribunal
de família e menores de x e eles dizem que
a gravidade aumentou um bocadinho mas
nada de especial.
Há um estudo da Procuradoria-Geral
Distrital de Lisboa, um documento, que
refere que há muitos factos, há muitos
menores que cometem factos ilícitos e que
não chegam a tribunal.
Assim, na sequência disto, considero, em
primeiro lugar, a necessidade da existência
de estudos, que é fundamental. Pois a
questão é, se não há um aumento e se há
esta ideia de que haverá, especialmente,
em determinadas zonas, factos muito mais
complicados, mas esses factos
complicados não chegam ao sistema,
qualquer análise que fazemos do sistema
não chega, porque não é por alterar esta
Lei Tutelar Educativa que eles vão chegar
ao sistema. Não é por irmos aumentar a
penalização que vai resolver esse
problema, que é prévio.
Eu vou-me calar agora e só me vou referir
depois a outra questão que é a eficácia ou
não deste modelo. Eu claramente acho
que, neste momento, com os dados que
temos em Portugal, o paradigma do
enquadramento jurídico desta lei não deve
ser alterado. Muito claramente o digo.
Outra coisa distinta é dizer que há ali
alguns aspectos para apurar. Mas,
francamente, acho que há aqui outro
problema, que embora seja um problema
de aplicação, eu não quero deixar de
chamar a atenção, que é a questão da
saúde mental. É que nós sabemos,
também, que muitos dos jovens que estão
com medidas de internamento têm
problemas graves de saúde mental e com
certeza não devia ser aquela instituição
fechada a adequada para aquele problema.
E esta questão deixo em cima da mesa.
P2
Era só para fazer uma precisão rápida
porque depois acabei por não terminar. Os
números são complicadíssimos. Aquilo que
eu estava a falar, é que houve
efectivamente uma duplicação de crimes,
na perspectiva de criminalidade
participada, em termos de inquéritos, ou
seja, não é o crime efectivamente
cometido, é apenas um indício. Por
outro lado, eu não estava a falar em
relação aos menores. Era uma realidade
geral. Isto é importante referir.
OPJ
Sim, mas podia ter descido e até ter
aumentado no seu distrito. Mas, o que
estamos, de facto, agora aqui a tentar
perceber é justamente isso. É se o nosso
paradigma jurídico de enquadramento
desta situação deve ser alterado.
Por um lado, coloca-se a questão se a
imputabilidade deve descer dos 16 anos,
havendo quem inclusive entenda que a
idade mínima para se aplicar a Lei Tutelar
Educativa também deve descer dos 12.
A questão é se deve ou não mudar e
descer porque há quem tenha esse
discurso entre nós, não só no que respeita
à idade mas também no que respeita às
medidas, ao endurecimento, ao
procedimento, saber se devemos ter um
procedimento ainda de tramitação do
processo mais rígido, mais próximo do
processo penal, porque há quem o
defenda. Estamos no âmbito das grandes
linhas e discutir depois a eficácia da lei.
P2
Só para partilhar um número a respeito das
idades. Na população internada, na série
Anexo
377
dos últimos 5 anos, o que se verifica é que
a maior percentagem de população com
idade de 12 e 13 anos no sistema foi, no
máximo, de 4,5% e ela, neste momento, há
dois anos que se situa nos 2%.
Portanto, não há qualquer justificação para
reclamar a aplicação da Lei Tutelar
Educativa, incluindo o internamento, a
idades mais baixas do que os 12 anos.
OPJ
Outra coisa diferente é algo que eu não
queria discutir agora. Mas abro um
parêntesis. Há, de facto, nos nossos
trabalhos, quem reivindique para idades
mais baixas, não propriamente o
internamento tutelar educativo, mas uma
resposta institucional diferente. Mas isso é
outra questão. É precisarmos de respostas
institucionais.
Por exemplo, cito um caso identificado no
trabalho de campo de um outro estudo que
estamos a realizar: um caso de abuso
sexual de uma criança com 9 anos, que
tinha sido sinalizado pela Comissão de
Promoção e Protecção, pela polícia,
chegando ao MP, e, um ano depois, estava
no judicial. Eu encontrei isto na secção de
processos para que o juiz aplicasse uma
medida de promoção e protecção. E eu
perguntei: “Então, mas neste ano onde é
que a criança esteve?” e a criança estava
em casa, no meio em que havia sido
agredida. Portanto, havia aqui problemas
graves e, de facto, não há resposta das
instituições.
P3
Sem querer adiantar muito da conversa,
isso remete-nos para a reflexão de saber
se, de facto, o Centro Educativo é a
resposta adequada.
OPJ
Há também quem defenda o discurso de
que é outra resposta institucional mas não
estão a defender a resposta institucional do
Centro Educativo.
P3
Mas há quem defenda, perante esse tipo
de problema, que a resposta institucional é
um Centro Educativo. E aí está a
perspectiva, na minha opinião, das
respostas fáceis para problemas
complexos, porque enquanto eles estão lá
fechados no Centro Educativo, estão
fechados e nós estamos livres deles.
P7
Penso que há um certo consenso dos
práticos, ou com alguma ligação à prática,
que realmente não temos um problema
grave de delinquência juvenil em Portugal.
Porque não se pode confundir a realidade
nacional com o que se passa em 2 ou 3
centros urbanos, ou na sua periferia.
Por exemplo, X não tem um problema
grave de delinquência juvenil ou sinais de
gangs organizados.
Agora, também não podemos subestimar
alguns problemas que devem merecer a
nossa reflexão, que são mal estudados,
não entram nas estatísticas, como o caso
da violência escolar. E há casos de formas
sofisticadas de violência escolar que não
são tratadas, são mal conhecidas, com
poucas respostas, a nível mesmo
378 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
institucional e que devem merecer alguma
preocupação e até, sobretudo, alguma
reflexão.
OPJ
Mas não é a Lei Tutelar Educativa como
está que lhes vai responder.
P7
Pois não. Eu recordo-me que, no direito
penal, falava-se na justiça das empresas,
um palavrão em alemão que tenho medo
de não pronunciar bem e não vou dizer.
Mas, aqui também deveria haver, a nível da
comunidade escolar, respostas não
institucionais, mas que deveriam ser até
mais eficazes do que aquelas.
Eu faço parte da Associação de Pais na
Escola Secundária que frequenta a minha
filha, e o que eu vejo é que lá é tratado e
discutido, ao nível da Associação, que a
escola hoje não tem meios para pôr os
meninos na linha, porque se fala de
fenómenos que para mim, também eram
pouco conhecidos, ou melhor, que sempre
existiram mas que agora atingem uma
sofisticação que, realmente, é de espantar,
como é o caso de formas de “copianço”
(como dizíamos antigamente), dantes toda
a gente copiava, mas hoje há formas
sofisticadas que são autênticas fraudes.
A comunidade escolar parece que não tem
respostas e não sei se nós, a nível
institucional, temos essas respostas.
Portanto, nada de pessimismos em relação
à delinquência juvenil, agora, há
fenómenos que deveriam ser melhor
reflectidos e melhor estudados.
OPJ
Mas isso, da sua experiência, tem ideia de
estarmos numa fase ou num momento em
que as nossas respostas fazem pela
alteração do paradigma que hoje temos de
resposta dogmática.
P7
Não, não. Alguns ajustamentos talvez. Eu
sou totalmente contra o abaixamento da
idade da imputabilidade e nem vejo que
haja razões para isso. Se isso corresponde
ao requisitório de algumas forças políticas
julgo que, enfim, não se pode ignorar isso e
também não acho que isso seja um tabu,
que não possa ser discutido, mas parece-
me que não devemos ir por aí.
OPJ
Por exemplo, para alguns fenómenos de
alguma gravidade ou alguns casos de
gravidade, de delinquência grave, actos
criminosos graves conhecidos, claro,
porque, efectivamente, falta-nos em
Portugal um grande estudo sobre a
vitimização e de criminologia, que possa
informar nomeadamente a definição das
políticas criminais. Como é que podemos
definir políticas criminais com fundamento
se não sabemos exactamente qual é a
criminalidade oculta ou se há, de facto, um
aumento da criminalidade ou uma
diversidade de fenómenos?
Por exemplo, os abusos sexuais e a
violência doméstica, aparentemente, são
fenómenos que não aumentaram, o que
aumentou foi as queixas. Mas, claro, esta é
a percepção que temos, não sabemos se
isso corresponde à realidade.
Anexo
379
P7
Em relação à violência escolar, temos que
entender previamente, sobre o que é a
definição de violência escolar.
A Procuradoria-Geral, muitas vezes, pede-
nos estatísticas sobre violência escolar.
Mas o que é a violência escolar? Nos já
demos um contributo à Procuradoria-Geral
Distrital de x, há cerca de 2 anos no sentido
de uma definição ou proposta de definição
de violência escolar. A Procuradoria-Geral
da República nunca deu resposta. Pede-
nos estatísticas sobre a violência escolar
mas ainda não a definiu.
P8
Ora bem, eu estou de acordo com a maior
parte das coisas que se disseram. Não
tenho uma percepção sobre a realidade,
porque estou a dar aulas sobre a Lei
Tutelar Educativa mas não conheço nem
estou a lidar todos os dias com estas
situações. Mas, tenho falado com vários
magistrados e também a sensação que
tenho é que não havendo, de facto, indícios
seguros de haver um aumento de
criminalidade grave – penso ser importante
esta distinção entre a pequena
criminalidade e a criminalidade grave, o tal
paradoxo de, por um lado, se apelar a
medidas não formais e, por outro lado, ao
endurecimento das medidas, também tem
a ver com isto, se realmente houvesse
dados seguros de que o nosso país estava
com um problemas grave de criminalidade
juvenil, acho que faria sentido pensar-se
noutras medidas, noutro sistema.
Parece-me que, perante a nossa realidade,
felizmente, que o que há mais é um
problema de prevenção e depois, no fim,
de reintegração, porque aquilo que tenho
ouvido e que também já foi aqui repetido, é
que grande parte dos jovens que cometem
crimes entre os 12 e os 16, grande parte
deles depois vão cometer crimes aos 18,
20 ou 21 e por aí fora. As tais “carreiras
delinquentes” que começam muito cedo.
Eu tenho pensado muito, mais do que
baixar idades, ou endurecer medidas,
porque é que não há algo de semelhante,
tinha de ser melhor pensado, soluções que
se adeqúem a estas idades. Algo que
fizesse a transição exactamente nos casos
mais graves (os que vão para
internamento) entre a vida no Centro
Educativo e a vida cá fora. Porque eles até
podem ter um comportamento óptimo lá
dentro. Aqui, penso que há uma lacuna. O
sistema em si, os princípios gerais
parecem-me até muito bem pensados,
agora, a transição seria importante.
OPJ
Nós já vamos falar disso, porque essa, de
facto, é uma lacuna. Agora também
gostava de ouvir P6 porque tem uma janela
de observação privilegiada.
P6
Acho que alguns sistemas estão pouco
conformes com o que a Europa põe o seu
timbre, que é os direitos humanos. Quero
dizer, há uma deriva neoliberal, desculpem
lá dizer isto, neoconservadora, em que se
atende apenas ao sentimento de
segurança e se diz que são eles os
culpados, os que vieram, afinal, substituir a
mão-de-obra que já não temos. E penso
que temos, pelo menos, de procurar
soluções que estejam de acordo com os
princípios que nós defendemos, os direitos
humanos, a atenção e a ética do cuidado
com os mais vulneráveis, a não ser que a
situação das pessoas exijam o
endurecimento das coisas. Por outro lado,
isto esquece o que é uma carência do
jovem, tem direitos como os outros e tem
380 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
direitos específicos resultantes das
necessidades e características da sua
evolução. Portanto, não se pode pretender
que o sistema penal seja adequado, na
minha perspectiva, a estes jovens em
desenvolvimento.
Não me parece que seja de nós
embandeirarmos em arco com o sistema
europeu. É que a tendência tem de ser,
pelo menos, levada ao crivo, enfim, da
análise da ética disso e da necessidade de
protecção que as pessoas têm.
Parece-me, e P3 falou de alguma
originalidade do nosso sistema entre os
outros, que não há razão para abandonar o
nosso sistema do ponto de vista dos
princípios.
Mas também não podemos fechar os olhos
à realidade. E o que me parece que há
também é uma falta de coordenação, de
articulação da intervenção dos vários
actores.
Primeiro, a prevenção, nós não temos
cultura de prevenção primária e não tem
sido muito o esforço que tem feito nas
comissões de protecção juntamente com a
rede social para que os programas de
prevenção primária sejam uma realidade. O
esforço destas instituições não tem tido
grande êxito, mas está em progresso.
Agora, o problema é este, o princípio do
direito da criança à interiorização das
regras e limites é um princípio que não está
a ser cumprido, nem nas famílias, ou em
muitas das famílias, nem nas escolas (com
toda esta dificuldade que há na escola,
aliás, já fomos sensibilizados para isso). A
Secretaria-Geral tem estado interessada
em que a prevenção seja um facto e que
haja a responsabilização institucional das
pessoas que têm a seu cargo crianças,
seja na escola ou noutros. Há que ter em
atenção que isto tem de ser interligado com
uma certa cultura geral do direito da
criança, mas de forma pedagógica e de
acordo com o estado de desenvolvimento
da criança. Penso que isto deve ser
também dito e deve entrar na forma de
abordar os problemas.
Depois, põe-se outro problema que é até
aos 12 anos. Eu concordo com a
concepção que foi seguida na lei, seguiu
um caso de protecção. Eu penso que o
sistema de protecção quer o mais informal,
como o das entidades, e cumprindo a
subsidiariedade, depois as comissões dos
tribunais têm de ter em atenção a estas
formas, diferença de valores que se criam,
e nisto estamos atrasados. Não há estudos
bastantes, nem estratégias suficientes para
actuar nesse sentido. Não é quando se
chega aos 12, 13 anos.
Assim, tem que se ter mais atenção a este
caminho de prevenção, e de atender
também a estas idades, e saber se,
realmente, as soluções institucionais que
existem são bastantes ou não, e o que é
que podem melhorar. Portanto, existe todo
este aspecto dos 0 aos 12 anos. Penso eu
que isto deve ser pensado. Mas não em
medida, em baixar a idade da
imputabilidade, como também não é baixar
dos 14 anos.
A concepção do sistema parece-me
correcta.
OPJ
Concorda, de facto com este consenso?
P6
Concordo. Precisamos de o tornar eficaz.
Não há nada nos livros sobre o
abaixamento da idade. Mas, concordo,
realmente …
Anexo
381
OPJ
Se nós não tornamos o sistema mais
eficaz, a solução vai para um caminho, que
P3 estava já a anunciar, de facilitismo. Isto
é, em vez de atentarmos, de facto, na
qualidade das respostas, o que vamos
fazer é encontrar formas de a baixar. Sobre
a aplicação da lei em concreto falaremos a
seguir. Mas só para dizer o seguinte: P4,
não sei se leu há uns dias no jornal, que
havia cerca de 20 ou 30 jovens com
medida de internamento à espera de uma
vaga para cumprir a medida? Portanto,
também, aparentemente, parece que há
esse fenómeno.
P4
É um fenómeno meramente aparente
porque tem de ter em conta que, e nisso
estamos muito aquém da Espanha,
Portugal nunca foi transparente em revelar
as fugas dos Centros Educativos. Conhece
alguma estatística de fugas de centros?
OPJ
Não. Não se admite que fogem.
P4
Eu também não. Só que sucede o que
acontecia nos serviços tutelares de
menores de onde sou originário, ou seja, o
sistema nunca o revelou. E, portanto, como
não podia revelar, os menores fugiam dos
centros mas as vagas tinham que ficar
cativas, porque, na realidade, quando
fossem apanhados pela polícia tinham que
voltar ao centro.
Ora, nos centros educativos passa-se
exactamente a mesma coisa. Há menores
à espera de vaga, por um lado, porque se
reduziram os Centros Educativos e,
portanto, isso é uma política de gestão dos
centros que é questionável. Reduziram-se
os centros, reduziram-se as equipas e o
número de estabelecimentos com a
justificação de que não eram necessários.
O que acontece é que há jovens que fogem
dos centros, mas esses jovens, como
disse, têm que ficar com a sua vaga lá
porque a polícia pode trazê-los a qualquer
momento. Aliás, é obrigatório, como sabe,
nos termos da Lei Tutelar Educativa, pedir
imediatamente a detenção do jovem e a
recondução.
Obviamente, enquanto a vaga estiver
afecta, e é esta a terminologia que a DGRS
adopta, à semelhança do que se passava
no IRS e, antes dele, nos Serviços
Tutelares de Menores relativamente à
categoria dos menores afectos. Há, por
isso que distinguir, relativamente à
população internada, a dos menores
afectos que são todos os que deram lá
entrada alguma vez na vida.
OPJ
Mas, o que eu quero dizer é que há mais
medidas a serem aplicadas.
P4
Não, não há mais medidas. Veja as
estatísticas dos tribunais – e por isso é que
eu lhe dizia há bocado que tenho seguido
de perto a aplicação das medidas pelos
tribunais relativamente às entradas nos
centros e, particularmente, no que toca à
medida de internamento não tenho visto
senão um paralelismo. Se for ver, as
decisões acompanham, ao fim e ao cabo,
na sua linha de descida ou de subida, por
exemplo, num determinado momento, sem
haver, de qualquer modo, um movimento
382 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
de retrocesso no sentido de um aumento
generalizado. As entradas nos centros
estão sempre de acordo e em paralelo com
as medidas de internamento aplicadas.
P4
Eu tenho aqui no computador uma curva
diacrónica que lhe posso mostrar.
P3
Eu não vou fazer uma intervenção grande.
Era só para dizer que é curioso como nós
estamos a discutir aqui isto e só discutimos
o internamento, parece que não há mais
nenhuma medida.
P9
Todos já falaram e quase todos foram para
a questão do internamento. Parece que a
única medida tutelar educativa que existe é
de internamento!
É só uma percepção, portanto vale o que
vale, mas eu estou de acordo com o que
todos disseram sobre a ideia de que não
devemos ir para uma coisa mais fechada
ou mais punitiva ou baixar os limites das
idades. Tenho perfeita noção que não é por
aí que as coisas passariam a funcionar. Até
porque já vários o reconheceram, o
problema põe-se antes, não se põe só a
partir da idade em que se pode aplicar a
Lei Tutelar Educativa e, portanto, isto não
iria resolver.
A eficácia das medidas é outra questão que
será discutida a seguir. Em relação a este
paradigma, também acho que não é o mais
feliz mas, no geral, estou de acordo.
Só gostava de dizer duas ou três coisas,
algumas até num papel, se me permitirem,
de “advogado do Diabo”.
Os números que apresentou, para mim não
me informam de nada acerca das possíveis
prevalências da delinquência juvenil por
dois motivos: é evidente que muitos dos
miúdos que cometem actos que seriam
crime ou que dariam direito a alguma
medida tutelar educativa das que estão na
lei, não chegam sequer aos tribunais. Isto
para mim é muito claro. Segundo, muitos
dos miúdos que estão em instituições, que
são centros de acolhimento, podiam estar
num Centro Educativo porque são
iguaizinhos.
Eu tive algum contacto com o Centro
Educativo de x que era só de miúdas e foi
um dos que foi fechado. Continuou com os
técnicos da DGRS, a gestão passou para a
Segurança Social. As miúdas estão iguais
em termos de problemáticas, de
autocontrolo, de comportamento agressivo,
de instabilidade emocional. São as
mesmas, e segundo as técnicas de lá,
estão iguais ou piores.
Portanto, é preciso termos noção que a lei,
falando ao nível do paradigma, tal como
está formulada, isto no olhar de um leigo e
perdoem-me se estou a dar alguma
“dentada” grande no direito, mas, de facto,
não é feliz numa coisa: baseia muito o tipo,
duração e gravidade da medida em função
do acto pelo qual o miúdo tem o processo.
Eu sei que não na teoria, mas na prática
sim, e não está aferido nem tem peso
suficiente o que se chama na lei – também,
quanto a mim, de forma infeliz e perdoem-
me as pessoas responsáveis pela lei – “a
necessidade de educação para o direito”.
Ou seja, nós não temos, de facto, dados. E
só um estudo longitudinal que agarrasse
nuns milhares de miúdos é que nos poderia
dizer, de facto, qual a prevalência do
comportamento anti-social e qual o tipo de
actos que são considerados anti-sociais e
Anexo
383
depois constituídos crime ou que têm
relação com o crime depois na idade
adulta. Nós não temos esse estudo. Há
alguns estudos feitos, há um estudo que já
vai em 17 anos, é o de Cambridge, que, de
facto, fez isto e tem as prevalências que
são conhecidas. Há uma prevalência muito
maior de comportamento anti-social do que
aquela que corresponde, já nem digo a
todos os miúdos que nós temos, que já
nem sei quantos são com medidas da lei,
mas digo para os que estão com medida
tutelar educativa.
Gostava de dar mais dois ou três dados, de
que os vossos comentários me foram
chamando a atenção ou me foram fazendo
recordar.
Aqui há dois anos em Lisboa, ajudei numa
tese de mestrado de um rapaz que pegou
em todos os processos tutelares educativos
daquele ano, já não me recordo se eram 10
meses ou 12 meses. Aquilo tinha mais de
200 processos tutelares educativos.
Desses 200, de cor, sei que cerca de 80%
tinham tido processos de promoção e
protecção antes. Ora, isto não nos diz
quantos, dá a ideia que tudo falhou, mas
não sabemos, porque devíamos até ter
feito o estudo ao contrário, partindo de
quantos miúdos com processo de
promoção e protecção e agora, no futuro,
quantos é que chegam a tutelar educativo.
E isso nós não temos, de facto, o que é
uma pena porque também não era assim
tão difícil, mesmo que perdêssemos algum
tempo com uma série de miúdos para
experiências de contacto, não era assim
tão complicado se houvesse aqui alguma
investigação associada a estes processos.
De qualquer maneira, mesmo com o
enviesamento de estarmos a olhar ao
contrário, da frente para trás, é um pouco
chocante. Significa que, pelo menos,
repare-se que era a totalidade dos
processos tutelares educativos daquele
ano e da totalidade cerca de 80% já tinham
outro antes. Portanto, nós estamos a falhar
muito antes, mas também durante e
depois. E era em relação a isto que queria
ser um bocadinho incisivo.
Estou sempre a dizer que, de facto, o que
se faz é um décimo ou menos do que devia
ser feito para pôr em causa o modelo de
intervenção dos centros educativos e
mesmo de acompanhamento dos miúdos.
Porque, de facto, não há um modelo
decente que atenda àquilo que P3 referiu,
como a saúde mental ou a psicopatologia
associada ao comportamento criminal.
Outro dia zanguei-me e numa discussão
acesa disse: “Vocês nem sabem quantos
miúdos têm perturbação de conduta, e eu
aposto que têm todos. E vocês nem isso
avaliam à entrada num Centro Educativo,
portanto, o resto, tudo o que digam a partir
daqui, vale zero”. Isto numa brincadeira,
entre dois amigos. E ela disse-me: “Por
acaso sabemos”. E eu perguntei: “Mas
sabem como, vocês avaliam?”, ao que ela
me respondeu: “Foi-me encomendado e eu
fiz uma avaliação a posteriori”. Ora, a
posteriori vale o que vale. Mas a posteriori,
mais de 80% dos miúdos dos Centros
Educativos sinalizam com a perturbação de
conduta. Nada de novo. Provavelmente,
até sinalizariam mais do que o 80% se
fosse uma avaliação feita ao vivo e no
momento certo.
Portanto, do ponto de vista da psicologia, e
sem querer ser muito presunçoso, eu
gostava de dizer isto: penso que andamos
a brincar com uma série de coisas, porque
criámos categorias, seja na psicologia, seja
no direito, e nós temos é pessoas. E nós
sabemos da natureza do comportamento
anti-social, que os crimes mais graves – e
eu não sou nada alarmista, nem acho que
isto esteja a aumentar. Mas parece-me
que, mais do que mudar a lei porque há
mais crimes ou crimes mais graves ou
porque a vítima é uma actriz ou o que for,
considero óptimo se não chegarmos a fazer
384 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
isso no nosso país. Agora, o que me
parece é que as pessoas não atendem à
natureza em que se desenvolvem os
comportamentos anti-sociais mais graves.
Os indivíduos que têm uma medida tutelar
educativa de internamento, supostamente
são os que tiveram um acto mais danoso
ou mais gravoso do ponto de vista criminal,
do ponto de vista de afectar os direitos do
outro. São também os indivíduos que,
provavelmente, tiveram um percurso anti-
social desde mais cedo na vida e com um
desvio comportamental desde mais cedo.
Em X não há problemas porque nas
estatísticas do insucesso escolar – somos
o país com maior taxa de insucesso da
Europa – X não tem insucesso. Mas X é
um mundo à parte. E não tem, porque se
calhar também não são apanhados, porque
algumas zonas para baixo de X todos
sabemos que têm. E eu vejo alguns miúdos
no Hospital que vêm de lá. Mas, quero
dizer, em termos estatísticos não é
representativo.
Mas um indicador grande de adaptação ou
de integração social é o sucesso escolar,
de facto X tem taxas de insucesso
mínimas. Por exemplo, Odivelas, tem cerca
de 40%, enquanto há concelhos – não sei a
de X – mas há concelhos que têm taxas de
abandono e reprovação até ao 9.º ano, de
fracasso escolar de 4% apenas.
Naturalmente, que há aqui uma dimensão
também sociológica e geográfica
importante.
Resumindo, isto era para dizer, porque há
pouco ouvi coisas que me desagradaram
francamente, esta ideia do direito dos
jovens adultos é sempre o mesmo. Isto é
sempre o mesmo, é um indivíduo. E,
portanto, nós falhámos na altura em que
deveríamos ter intervencionado, em
criança, quando lhe era mais fácil
conseguir alguma coisa. Ora, o que temos
em termos de medidas de promoção e
protecção é vergonhoso. E como vocês
sabem, muitas instituições, quando o
magistrado quer pôr lá um miúdo, recusam-
no. Muitas vezes, o miúdo já saltou de
família em família ou de mãe em mãe, ou
de pai em pai, e os mais graves, os que
apresentam comportamento mais violento
são sempre estes. E depois, saltam de
instituição em instituição. Porque as
instituições de acolhimento não têm nem
técnicos, nem capacidade, nem know-how,
nem sabem e nem são obrigadas
legalmente a saber e dependem da
desorganização e do caos que é a
Segurança Social. E depois não querem
estes miúdos que só lhes dão chatices e
não sabem como lidar com eles. “Chutam”
para outro lado. Quantas vezes não
acontece serem os magistrados a ver onde
é que colocam o miúdo, e não têm onde.
Ou seja, é mesmo uma coisa complicada.
São estes miúdos que depois temos
obviamente num Centro Educativo e outros
nem sequer chegamos a ter. Quanto à
questão de como é que se faz a transição
do Centro Educativo para a vida cá fora,
não se faz. Como também a da prisão, que
na teoria pode fazer-se, mas não se faz.
Mas, ainda digo outra coisa. Muitas vezes o
que se consegue em termos de Centro
Educativo é o mesmo que se consegue na
prisão, que é o controlo do comportamento
do recluso, mas não quer dizer que haja
mudança ou uma nova percepção que ele
tem da vida em sociedade. Portanto, nós
estamos, de facto, a gastar rios de dinheiro
para conseguirmos alguma protecção das
pessoas cá fora enquanto estes indivíduos
estão detidos, mas, depois, nem
assumimos que eles vêm de lá igual ou pior
do que quando entraram. Nós estamos a
gastar dinheiro para eles ainda virem fazer
coisas mais graves. Penso que aqui
devemos pensar também em termos desta
responsabilidade.
Anexo
385
No caso dos menores, estou perfeitamente
de acordo. Têm todo o direito a interiorizar
regras, normas de conduta, mas, o centro
tem que ser educativo nesse sentido. E eu
não sei se está a ser. Isto para não falar
nas outras medidas, de que vamos falar a
seguir.
A minha questão é que eu acho que nós,
de facto, não temos nenhuns números e,
portanto, tudo o que se diga é porque
parece na TVI ou na SIC e isto influencia o
pensamento dos decisores.
P4
Mas fará o favor de se lembrar que eu
comecei por referir que utilizava os dados
relativamente ao sistema de internamento
porque eram a fase terminal, ou seja, é
onde chega aquilo em que tudo falhou
antes.
P9
Mas há muitos que estão igualmente, e que
cometeram actos e não chegam.
P4
E por isso mesmo é que é um microcosmo
particularmente sintomático de um iter em
que tudo falhou antes, e daí a importância
destes dados. Com certeza que não vai
pensar que eu estou satisfeito com a
realidade do país quando, eu próprio, a
primeira coisa que salientei foi que, de
facto, não há estudos credíveis nesta
matéria, aliás, não há estudos pura e
simplesmente, não há investigação nesta
área e, pior ainda, mudámos os critérios
estatísticos a meio de um percurso. E,
portanto, até 2006, nós podemos ter uma
série estudada. Se quiser continuar
estudos e investigação da década de 90
sobre a delinquência juvenil, não posso,
porque a série foi interrompida. E, portanto,
eu não tenho critério estatístico fiável neste
momento, para poder fazer uma análise
comparativa.
P9
Mas reconhece que há muitos indivíduos
menores que têm actos que dariam direito
a uma medida tutelar que não chegam
nunca ao sistema. É que o número que nós
temos em Centro Educativo é muito inferior
à realidade porque nós temos muitos
miúdos que estão em instituições de
acolhimento.
P4
Nós estávamos aqui a discutir delinquência
juvenil e delinquência juvenil não é prática
de actos anti-sociais. Não estamos na
Escócia nem na Irlanda do Norte, em que o
sistema de justiça juvenil intervém,
relativamente, a delitos de status. Nós aqui
estávamos só a falar de uma coisa que
ficou clara a partir de 2001, que é haver
intervenção tutelar educativa desde o
momento que seja praticado um facto
qualificado pela lei como crime.
P9
Mas acha que o nosso sistema apanha
todos os factos qualificados pela lei como
crime? É o que eu estou a dizer.
P4
Não. Mas também lhe posso responder a
uma coisa que é sintomática e há pouco
não referi. Se for ler o estudo do OPJ, de
386 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
2004, “Os Caminhos Difíceis da „Nova‟
Justiça Tutelar Educativa”, vai lá encontrar
um dado extraordinariamente sintomático:
dois anos depois de a lei começar a ter
sido aplicada, no MP, é enorme a
percentagem de casos que morrem e não
seguem para diante. E isso, para além de
2002, não sei o que é, mas, pelos dados de
que vou tendo conhecimento através dos
contactos com o MP fui tendo a mesma
percepção, ou seja, apesar de existir a
grande cifra negra que nem sequer chega
ao conhecimento do MP, mesmo dos que
chegam, uma enorme percentagem não
segue para audiência, o processo não
segue.
Mas eu até estou satisfeitíssimo com isto
porque, justamente, o que nós temos é
uma criminalidade bagatelar. E apesar da
Lei Tutelar Educativa, o legislador, que foi
acusado de fazer uma lei medieval em
1999, uma lei bárbara, veja, 9 anos depois,
como é que estamos! Aparentemente
fizemos uma lei branda que não serve para
a delinquência juvenil que temos. Isto é
ridículo.
OPJ
A questão que nós estávamos aqui de
alguma maneira a debater é que
claramente, em 2001, nós separámos, e,
alguns países não o fizeram, os
comportamentos anti-sociais, etc.. A
questão é que à nossa Lei Tutelar
Educativa é necessária a prática de um
acto conhecido do sistema judicial e que
seja qualificado como crime para que haja
a intervenção tutelar educativa, o que não
significa que não haja muitos outros actos
que não são conhecidos do sistema – em
que não há queixa, etc..
P1
É uma coisa muito simples, e que reforça
aquilo que P9 disse. Eu quando vi as duas
leis ao nascerem, achei muito bem que as
coisas se tivessem separado, mas achei
muito mal que não fossem buscar os
ensinamentos de todos os estudos de
desenvolvimento sobre a delinquência, que
provam que os factores de risco estão
presentes para os que cometem crimes e
para aqueles que depois deixam de
cometer. Estamos a falar dos early starters
e dos que fazem umas coisas na
adolescência com uma pseudo-maturidade
e depois deixam. São, na realidade,
praticamente os mesmos, à excepção de
uma ou outra coisa mais grave que
representa, por exemplo, estes cinquenta e
tal que, provavelmente, têm problemas
neurológicos porque são indivíduos que
poderão vir a ser psicopatas.
Eu tenho duas teses de mestrado e uma
delas foi feita na DGRS e a outra foi feita
no EMAT. A colega que recolheu os dados
na EMAT, o que fez foi ver quais os
indicadores que tínhamos e que estavam
sinalizados na EMAT e, portanto, em
processos não tutelares, e os factores de
risco eram aqueles que a literatura
classifica como preditores da delinquência.
Portanto, eu diria que não me incomoda o
decidir em função do facto, do que
cometido. Agora, a medida a aplicar devia
ser em função dos factores de risco que o
individuo comporta e se esses factores de
risco, independentemente de até serem ou
não bagatelas, forem de facto de risco. E
aí, provavelmente, dir-se-ia que esse
indivíduo está num processo, está entregue
à Segurança Social, mas vai levar com um
tratamento como se estivesse no outro
lado, independentemente do facto.
Anexo
387
P4
Só que aí, está a violar flagrantemente a
Convenção dos Direitos da Criança e o
princípio da proporcionalidade.
P1
A questão é essa, o que é que se vai, de
facto, fazer. Eu não vou punir este
indivíduo, não me vou preocupar tanto com
a punição, mas vou-me preocupar com a
educação. Agora, eu tenho que ter um
mecanismo de educação quer num lado,
quer no outro.
P4
Mas não lhe dá uma solução de justiça.
P1
Repare, a ideia é da intervenção. Dois
casos de questão sexual como exemplo
para mostrar esta disparidade: num caso
ele foi internado, noutro foi mandado para a
família para estar em casa. Eu não percebo
como é que foi feita esta avaliação quando
a gravidade do facto é quase a mesma e a
decisão foi tão díspar. Mas o meu princípio
é sempre: se eu me situo só no facto,
enfim, o facto é relevante, mas eu devo-me
situar no processo, e se avalio um conjunto
de factores de risco que são preocupantes,
independentemente desse indivíduo até ao
momento ter parecido um “tipo bonzinho”,
então, se calhar, a intervenção tem de ser
de cima para baixo, independentemente de
ser feita na Segurança Social ou na justiça.
P5
Parece-me que há aqui uma evidência,
depois desta conversa, que é o facto de
que a todos falta o conhecimento que só
um trabalho de fundo, de caracterização
minuciosa, etc.. nos poderia permitir a
todos estarmos no mesmo “clube”, não no
mesmo sítio, é óbvio, mas num sítio
equivalente.
P9
Portugal não é diferente. As mesmas
coisas de que estamos a falar são iguais
em todos os países.
P5
Não, desculpe, mas não me parece. Aquilo
de que eu estou a falar, não é exactamente
a mesma coisa. Os dados de que nós
estamos a falar, muitas vezes, são dados
omissos, são dados entrecortados, são
dados quebrados – estou a falar dos dados
do sistema de justiça.
P9
Das prevalências, mas o que sabemos do
desvio são iguais nos vários estudos dos
vários países que estão disponíveis.
P5
Muito bem. Mas, estamos a falar aí das
trajectórias delinquentes, em termos do
psicológico, ou em termos
desenvolvimentais. Eu estou a falar de
outra coisa, estou a falar dos dados
estatísticos da justiça juvenil, que são
coisas diferentes. Há-de concordar. Uma
coisa é observarmos a prevalência numa
população, outra é certificarmos como é
que isso se concretiza. Portanto, parece-
me que isso falta.
388 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
OPJ
Sim, mas temos o conhecimento suficiente
para sabermos que há uma comunicação,
do ponto de vista dos caminhos, isto é, dos
jovens que estão no sistema prisional, dos
que estiveram no sistema tutelar educativo,
dos que estiveram no sistema de promoção
e protecção. Em relação a isto, há dados
que nos permitem estabelecer estes
percursos. Por outro lado, já percebemos
também, há dados que nos mostram
realidades sociológicas do país muito
diferenciadas.
P5
Mas continuo a achar que falta essa base.
Temos perspectivas diferentes, mas acho
que também há distorções. É que nós
estamos sempre a discutir o problema de
baixar o nível da idade ou endurecer o
regime porque todo o nosso raciocínio é
orientado pela lógica de que Portugal é
Lisboa, Porto e Setúbal e o resto é
província. Porque, se pensássemos ao
contrário, a nossa concepção do que seria
a justiça juvenil, se pensássemos em todos
os outros distritos, se pensássemos a partir
desse ponto, a nossa concepção do que
era ou deveria ser a justiça juvenil seria,
com certeza, diferente. Chamo só a
atenção para esta distorção em que nós
frequentemente incorremos.
Depois, um outro aspecto que tinha a ver
com o alarme social. Falou-se a certa altura
nas questões das etnias. Claro que não
são dados representativos, mas eu
recordo-me que, a dada altura, havia uma
fortíssima sobrerepresentação por relação
à população nacional, tanto de elementos
de etnia cigana como de sujeitos de raça
negra.
Depois, ainda a questão, eu lembro-me de
uma aula do professor Jean Trépanier,
criminólogo canadiano que tinha feito, julgo
que numa cidade dos Estados Unidos, o
seguinte exercício. Primeiro, pegou em 100
indivíduos brancos e em 100 indivíduos
negros, tendo todos sido apanhados em
flagrante a cometer o mesmo acto
criminoso. Segunda etapa, vão à esquadra
95 negros e 80 brancos. Terceira etapa,
iniciam mesmo um processo, 90 negros e
70 brancos. Quarta etapa, chegam a
tribunal, imaginemos, 80 negros e 40
brancos. Quinta etapa, no fim são
condenados 70 negros e 20 brancos.
Isto tem a ver com aquela questão de há
pouco, de como é que vemos as coisas, se
de trás para a frente ou da frente para trás.
Muitas vezes olhamos para o número e não
temos bem a percepção ou o conhecimento
de como é que se chegou àquele número.
Isto parece-me um dado também muito
importante que precisa de um outro tipo de
estudo que não seja simplesmente o
estudo da recolha dos dados, mas o estudo
sobre a própria recolha dos dados, de
alguma forma, para se perceberem todas
aquelas coisas que nos Relatórios de
Segurança Interna são típicas. Uma pessoa
olha para aquilo e é preciso descodificar
todos os anos porque nunca se sabe bem o
que é que lá está dentro.
Depois, por fim, a questão da educação
para o direito. Há a questão da prática do
facto criminoso e, depois, a necessidade de
educação para o direito.
Eu percebo o olhar e a justificação do
interesse de se prestar atenção à educação
para o direito dos psicólogos, mas vejo aí
também um terreno fértil para a criação de
desigualdades do ponto de vista dos
sociólogos.
Já nos anos 60, o Aaron Cicourel, no The
Social Organization of Juvenile Justice,
apresentava casos interessantíssimos de
miúdos que tinham sido apanhados a fazer
exactamente a mesma coisa e enquanto
para uns, que eram filhos do médico, a
Anexo
389
sentença era, vá lá, aparar o relvado à
frente de casa dos pais aos fins-de-semana
durante 3 meses, outros iam para um
centro de acolhimento, os que não
pertenciam a uma classe tão favorecida. E
portanto, como é que nós entramos numa
ponderação de educação para o direito?
Estávamos a falar das barreiras
sociológicas. Não é fácil, e aí percebo que,
de facto, possamos entrar em choque com
alguns dos direitos fundamentais, quer
dizer, só porque a minha família não me
pode assegurar a mesma coisa, vou ter de
ser judicialmente sujeito a um tratamento
diferente?
P1
A ideia dos ingleses de começarem cada
vez mais a responsabilizar os pais pelos
comportamentos desviantes dos filhos, a
mim parece-me altamente terapêutica.
OPJ
Bom, isso é uma questão que eu gostava
de introduzir a seguir. Mas isso já nos dá
dados que nos permitem avançar para o
momento seguinte, que é saber se esta
nossa lei e este nosso enquadramento,
apesar de nós acharmos que não vamos
mexer no paradigma, o que é que
precisamos realmente de mudar em termos
de ajustamentos. Mesmo a nível dos
conceitos, acho que tudo está em cima da
mesa. Por exemplo, saber se esse conceito
da própria lei “educação para o direito”,
essa formulação, se ela própria não é
confusa, ou seja, questionar se os próprios
conceitos estão correctos e outros
enquadramentos que realmente
precisamos.
Uma das questões que gostava de ver aqui
discutida é, por exemplo, sabendo que
grande parte destes fenómenos que
chegam ao sistema têm a ver com famílias
desfavorecidas e estratos sociais
complexos, como é que se vai exigir que
sejam eles próprios a fazer um plano de
conduta se fôssemos aplicar a lei tal como
ela está prevista?
Outra questão, sobre a responsabilização
da família, é saber até onde é que
devemos ir na recomendação de haver
aqui uma responsabilização e qual deve
ser essa responsabilização, entre outros
aspectos que gostaria de discutir.
P8
Só um apontamento relativamente a estas
últimas intervenções. É que este problema
de ser necessário a prática do facto
qualificado como crime mais a necessidade
de educação para o direito, parece-me que
o que está mal não é a lei mas é, talvez, a
articulação. Porque, de facto, como foi dito
aqui, também é preciso haver alguns
limites objectivos para as medidas mais
graves, nomeadamente para as medidas
de internamento. Objectivos aqui, no
sentido do indivíduo ter cometido um facto
grave. Apesar disso, reconheço que devem
ter toda a razão quando dizem que pode
haver situações complicadíssimas, crianças
a precisar de apoio, educação para o
direito, mesmo que apenas tenham vindo
ao conhecimento do sistema factos menos
graves. Mas aí, eu julgo que a articulação,
o problema está na prática, na falta de
articulação entre a Lei de Protecção e a Lei
Tutelar Educativa, que está prevista, até no
próprio regime da Lei de Promoção e
Protecção, mas que, provavelmente não
acontece.
Eu acho que podem acontecer
variadíssimas situações. Pode acontecer
que estejamos perante um facto bagatelar,
mas em que se note que aquele indivíduo
precisa de uma intervenção. Mas, se
390 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
calhar, aí devíamos ir para a Lei de
Protecção e essa funcionar devidamente.
OPJ
Era isso que gostaríamos de discutir
melhor na prática. A aplicação em concreto
desta lei, as articulações, também porque a
aplicação depende dos aplicadores, como
é óbvio. Se nós já detectámos fenómenos
de alguma dificuldade de aplicação, será
que a própria lei não deve ser mais
orientadora? E esse, como outros
aspectos, nomeadamente, o da excessiva
judicialização. Por exemplo, há
recomendações que chamam a atenção
para as polícias, o MP, uma maior
intervenção da própria DGRS. A tendência
é logo dizer que não há meios, mas nós
não estamos a falar num quadro do que
deve ser, se não há meios, vamos
reivindicá-los. Portanto, no quadro de uma
intervenção mais articulada, no sentido de
saber, de facto, se as propostas devem
seguir este caminho ou se não devemos
investir noutro tipo de respostas.
INTERVALO
OPJ
Uma das coisas sobre a qual gostava de
vos ouvir é se, do ponto de vista do quadro
normativo, é suficiente a intervenção que
está prevista. Em outras palavras, se o MP
não devia ter aqui um outro tipo de
responsabilidade e um outro tipo de acção
no sentido de procurar encontrar outras
soluções. Eu sei que muitas das medidas
são de protecção, mas mesmo assim, hoje
continua a chegar à fase jurisdicional muita
coisa que talvez pudéssemos resolver de
outra forma. Nós precisamos aqui de outras
articulações e de outras intervenções? A
DGRS, que funciona como uma instituição
que produz relatórios e que depois é ouvida
como testemunha no processo, não deveria
ter outras obrigações e outro tipo de
intervenção de forma que pudéssemos ter,
de facto, identificada a prática de
determinados actos e até atendendo a que
grande parte deles são bagatelares? Se
não deveria haver aqui uma maior relação
com a comunidade, outro tipo de
intervenção não jurisdicional. Que
articulações nós precisávamos para isso?
O MP, por exemplo, também tem limitações
do ponto de vista da própria lei no que
respeita à suspensão do processo, porque
a partir de determinado facto,
abstractamente punível com determinada
pena, já não o pode fazer. Assim, a
questão é se deve haver estes limites ou
não, atendendo a que, para além do acto
criminoso em si, há também a
personalidade e a conduta, tudo isso está
em causa.
P3
Há aqui uma questão prévia a essa sobre a
posição do MP. Aliás, são duas questões
que numa fase se interligam e noutra não.
Há uma questão que coloco, e tem a ver
com aquilo que é muitas vezes levantado e
que não chega ao tribunal. Não chegam à
intervenção tutelar educativa todos os
factos que poderiam chegar. Uma coisa
que também é muito referenciada é o facto
de, por vezes, os jovens cometerem uma
sucessão de factos menos graves, que
dependem de queixa e que ninguém
Anexo
391
sinaliza por diversas razões já aqui
referidas, e, de repente, são apanhados a
cometer um facto ilícito já muito grave.
Assim, grande parte das vezes, eles
começaram muito mais cedo, mesmo na
prática de factos. Aqui estamos perante a
questão de saber se, nesta intervenção,
devia ou não haver referência ao sistema
penal, equiparar quanto ao direito de
queixa e à denúncia. Ou seja, se a
intervenção tutelar educativa devia estar
dependente da queixa do ofendido que é
uma questão que vai levantar-se, pese
embora haja algumas interpretações
díspares, mas são interpretações e há
acórdãos para todos os gostos, como é
normal. Ou seja, independentemente do
tipo de crime todos os factos de que
houvesse conhecimento, deveriam ser
comunicados.
O que eu defendo é que todos os factos,
independentemente do crime, deveriam
chegar e que não é preciso queixa do
ofendido para a intervenção tutelar
educativa. Há quem defenda o contrário.
Vamos lá ver: o que está, actualmente na
lei é que depende de queixa do ofendido e
que pode haver desistência. Há pessoas
que acham que não é preciso uma queixa
formal, bastando a denúncia e que, por
isso, a desistência não é relevante. Mas, a
jurisprudência mais ou menos
generalizada, vai no sentido de que a
desistência é relevante. Portanto, há esta
questão jurídica. Agora, o que eu acho é
que aí a lei devia ser alterada. Claro que
isto tem algumas consequências que é
preciso ter em atenção. E devia ser
alterada, até porque a própria legitimidade
da intervenção tutelar educativa, na minha
perspectiva, devia ser alterada.
OPJ
Mas, próxima do que está no Direito Penal?
P3
Não. Pelo contrário, afastada do que está
no Direito Penal. Porque a intervenção
tutelar educativa não devia estar
dependente de queixa do ofendido. Pelo
que, todos os factos de que houvesse
conhecimento deveriam gerar processo.
Todos os factos podiam dar origem a
intervenção tutelar educativa. Isto porque,
se há aqui uma necessidade de educação
do menor para o direito, se o Estado, se
permite ter legitimidade de intervenção…
OPJ
Mas, quando diz “todos os factos” a que se
refere?
P3
Ora, por exemplo, imaginando que há um
furto de um telemóvel. É um crime que
depende de queixa. A polícia, agora, só
remete para o MP, se a pessoa indicar que
quer procedimento tutelar educativo.
OPJ
Mas, se a pessoa nada disser e a polícia
souber que foi furtado um telemóvel, então,
na sua opinião, devia ir.
P3
Não pode, neste momento. Mas, devia ir
tudo. Qualquer notícia que houvesse.
P7
Tem de se modificar a lei.
392 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
P3
Eu estou a sugerir a alteração neste ponto
concreto porque acho que esse é um dos
pontos que poderia ser alterado.
OPJ
Mas isso é contra, digamos assim, uma
ideia que também está a ser muito
defendida. Porque no seu caso, no fundo, o
que está a defender é a hiper-judicialização
de todos os factos.
P3
Se me deixar acabar, percebe já isso. Bem,
é a hiper-intervenção do Estado que já,
aliás, está fixada. Porque, já em relação à
Lei de Promoção e Protecção está
concebida.
Relativamente aos menores, nós temos
uma concepção, seja ela no âmbito da
legitimidade da intervenção para a
protecção, seja ela na legitimidade da
intervenção no tutelar educativo, que
conflitua com os direitos dos pais em nome
supostamente do poder do Estado para
educar as crianças ou em nome da
segurança, no tutelar educativo. Bom, eu
acho que já temos, em termos conceptuais
gerais, um sistema que já é totalitário
nesse sentido, de intervenção activa do
Estado relativamente às crianças e jovens.
Agora, eu estou a pôr esta possibilidade
porque isso poderia fazer com que fosse
detectado mais cedo esse tal início de
delinquência ou não.
Alterando isto, obviamente que vai
aumentar muito mais as participações,
acontece que isto não era participado ao
tribunal, mas sim ao MP. E o MP teria aí
um princípio de oportunidade de, perante
cada caso concreto, e até de acordo com o
percurso, a personalidade, o facto de o
miúdo já ter cometido muitos factos em que
não houve queixa do ofendido, podia ter
um papel em que instaurava ou não o
inquérito tutelar educativo. Ou então,
encaminhava a situação tomando as
necessárias providências no âmbito da
promoção e protecção.
OPJ
Porque é que não defende a intervenção
aqui, por exemplo, de um sistema de
mediação? Ou de outros sistemas de
desjudicialização que não, propriamente, o
MP?
P3
Esta intervenção do MP, na sua decisão,
claro, estou aqui a pensar e voz alta, mas
não me repugna nada que, nesta decisão
de abrir ou não o inquérito tutelar
educativo, poderia socorrer-se de um
sistema de mediação.
Nós estamos a falar numa intervenção que
é uma intervenção oficiosa do Estado e tem
de haver sempre alguma justificação para o
MP instaurar ou não instaurar. E há aqui,
também, um conjunto de garantias. Eu não
ia mandar imediatamente para mediação
se entendesse que não era preciso
qualquer tipo de intervenção.
Agora, não me repugna que haja aqui
mediação, assim como defendo que,
mesmo no âmbito de um inquérito tutelar
educativo, deve haver uma maior
intervenção da mediação.
O modo como está formulada a mediação
na actual Lei Tutelar Educativa é
extraordinariamente diminuta. Portanto, eu
acentuaria essa intervenção e a
possibilidade de recurso à mediação.
Anexo
393
Tanto quanto sei, em Espanha, nos casos
que são sinalizados ao MP, o primeiro acto
do MP é remeter para a mediação. Ora,
nós também podemos melhorar toda a
intervenção no sentido de acentuar uma
intervenção não jurisdicionalizada.
Portanto, o primeiro passo era o MP ter a
possibilidade, muito mais alargada do que
tem agora, de arquivar ou encaminhar para
a promoção e protecção, ou abrir um
inquérito tutelar educativo. Mas, mesmo
depois de abrir um inquérito tutelar
educativo, acho que as possibilidades de
suspensão provisória do processo e do
recurso à mediação deviam ser
acentuados. Isso, depois, era uma questão
de se ver melhor, sem entrar em grandes
pormenores, quanto até ao limite da pena.
E quanto à suspensão provisória do
processo, aquilo que há pouco referiu de
ser um plano a apresentar pelo próprio,
obviamente que isso funciona hoje, porque
há uma proactividade do MP a apresentar o
plano. Eu alargaria, também, a
possibilidade de aplicação da suspensão
provisória do processo. E retirava da parte
do fundamento para arquivamento do
processo, o que hoje se encontra num
artigo que diz que quando se esteja
perante crimes com limite superior a três
anos, se o MP, embora se tenham
verificado os factos, considerar que não há
necessidade de educação para o direito, o
seu despacho tem de ir ao juiz. Eu sempre
fui contra isso. Considero que era suficiente
ficar por ali. Dava, por isso, uma maior
amplitude a estes mecanismos.
OPJ
De facto, o que nós temos aqui é o
seguinte: no seu enquadramento,
conhecida a prática de um facto qualificado
pela lei como crime por um jovem entre os
12 e os 16 anos, este facto deve ser
comunicado ao MP e depois, o MP, perante
ele e perante o jovem, tendo em conta a
personalidade e o enquadramento familiar
decide, então, o que fazer.
Bom, o que gostava de colocar aqui aos
nossos colegas de painel é o seguinte: o
que nós temos na nossa ideia é a prática
de um facto qualificado pela lei como crime,
e a seguir um processo, a abertura de um
processo judicial, que depois pode até não
ser jurisdicional, mas é judicial. Portanto, é
a intervenção do sistema judicial. Pode não
ser jurisdicionalizado, mas pelo menos
judicial é porque o MP está nos tribunais.
No fundo, o que eu pergunto é se faz
sentido que assim seja. Se não é possível
encontrarmos aqui soluções, equiparadas
ou com proximidades, ao que acontece no
tutelar educativo, no âmbito das comissões
de protecção. Isto é, sabendo que a
realidade mostra que, na grande parte das
vezes, o que está em causa são problemas
sociais e um conjunto de outros aspectos, e
que a criminalidade não é assim tão grave,
no fundo, mais do que a educação para o
direito, o que nós queremos é que as
pessoas vivam na sociedade sem grandes
comportamentos anti-sociais, sendo que
alguns são qualificados como crime.
Ora, não acham que poderíamos ter,
perante determinadas situações – e eu
percebo que possa haver aqui um
intervenção do MP, porque é o MP que
sabe dizer do crime e do interesse mas não
consegue avaliar sozinho – uma
intervenção, digamos, mais sedimentada
ou alargada, em que quase
obrigatoriamente isto tinha que entrar num
sistema parajudicial, e não
necessariamente judicial? Uma intervenção
mais alargada em que nos deixássemos do
papel e do processo.
P3
Mas essa intervenção alargada era como?
394 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
OPJ
Com um sistema, podemos chamar-lhe de
mediação, mas em que estava o MP, ou de
uma instituição.
Os serviços de mediação, por exemplo, no
sistema inglês, têm a intervenção de
técnicos. Não é no âmbito do tutelar
educativo, não sei se funciona, mas em
geral, pode ser uma intervenção alargada
em que tínhamos um serviço parajudicial
em que então se discutia se naquele caso
concreto deveríamos avançar ou não.
Porque é evidente que isto é um paradigma
de funcionamento completamente
diferente, mas o que me faz impressão é
esta questão logo do processo. Porque na
prática, o que está a acontecer é: abre-se o
processo e é o MP que assume, aliás, a
DGRS praticamente não intervém aqui
nesta fase, só mesmo pré-sentencial ou
pela suspensão.
P3
Na intervenção para a suspensão, a DGRS
queixa-se que lhe pedem os relatórios a
meio.
OPJ
Mas, o que acontece é que é o magistrado
do MP que decide, ele próprio, sózinho, na
sua avaliação.
P1
Mas ele decide assessorado por uma
equipa. Se quiser assim, muito bem. Se
preferir sózinho, pois, isso é sempre o
velho problema das convicções.
OPJ
O problema é que é sempre assessorado
por uma equipa quando quer fazer a
suspensão, quando acha que deve fazer a
suspensão.
P1
Se calhar o que se devia fazer aqui era
começar este processo, naturalmente,
sendo o vértice de uma pirâmide, que é
uma equipa que o assessorava. Se ele
fazia só isto sozinho, pois claro que aí
aumenta a probabilidade de erro.
OPJ
Mas, o problema é esse que estou a dizer.
É sempre associado a um processo. O que
nós temos aqui é o MP a decidir que um
caso deve ir para suspensão e pede o
relatório.
Mas a questão que estou a tentar colocar é
se nós não devíamos ter aqui uma equipa
com alguma especialização em vez de
andar com relatórios para trás e para a
frente, perante o caso concreto, discutir o
que está.
P1
É obrigatório fazer uma avaliação. O MP
pode estar com a ideia que é para
suspender e pede o relatório, mas
independentemente disso, o princípio deve
ser sempre a avaliação transversal do
caso. Por uma equipa e, depois, o MP fala
de per si.
Eu vou dizer o que penso sobre isto, em
função daquilo que P3 disse. Eu considero
Anexo
395
que uma das coisas que nos ajuda a dizer
que a justiça em Portugal está no
descrédito que está, é que o cidadão, de
uma forma geral, não tem ideia nenhuma
de que se possa fazer alguma coisa em
relação aos problemas que ocorrem com
ele e por isso, não faz queixa de nada
porque acha que nem pode fazer.
Neste caso o que está a dizer é que isto
cria no cidadão a ideia de que vai ser feita
alguma coisa, isto é, se souber que o MP
vai tomar conta da situação aumenta,
digamos, a credibilidade.
OPJ
Mas a pergunta que eu tenho para lhes
fazer é se acham que, perante bagatelas, a
intervenção deve ser sempre do sistema
judicial?
P3
Repare uma coisa. Mas isso era ir contra
tudo o que se está para aqui a dizer.
OPJ
Mas aqui está tudo em cima da mesa.
P3
Mas isto aqui já é um salto. A alternativa
era, perante a pequena criminalidade (que
tinha de ser definida qual era),
independentemente da personalidade do
jovem, e de ter 4 ou 5 furtos anteriores,
isso ia ser remetido para uma comissão de
mediação, que ia fazer o quê?
P5
Seria uma comissão de avaliação pelo que
percebi, não de mediação.
OPJ
A minha pergunta que está em cima da
mesa é esta: se consideram que perante a
existência de um facto criminoso, se toda e
qualquer prática de um crime por um jovem
entre os 12 e os 16 anos deve merecer a
intervenção do sistema judicial.
P3
Só se o MP considerar que merece uma
intervenção mais formalizada. Porque se o
MP considerar que não merece manda
arquivar ou manda para a mediação.
OPJ
Mas o MP é sistema judicial.
P7
Está a sugerir que as comissões de
protecção podem também ter funções
tutelares educativas?
OPJ
Estou a perguntar se, entre os 12 e os 16
anos, sempre que há a prática de um acto
criminoso deve haver intervenção do
sistema.
P9
Mas, assim, fica registado, não é?
396 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
P1
E aumenta as garantias que se possam
tomar decisões, eventualmente, mais
avisadas.
P3
Mas, desculpe lá. A alternativa da não
intervenção do sistema era perante esses
factos ser um sistema não judiciário mas
oficial.
OPJ
Sim, claro. Estou a falar de sistema judicial.
P3
A intervenção ia ficar nas mãos. Em termos
teóricos não me repugnava muito. O que
eu acho é que nós não temos qualidade
para isso, já não temos qualidade para
aplicar o que temos agora.
Porque o que ia acontecer era que, ou
remetíamos esses factos para as
comissões de protecção e era a
possibilidade de alargamento da
intervenção da comissão de protecção
também nos casos em que se cometesse
crime, mas, aqui, tinha de haver sempre
uma apreciação de uma entidade que tem
de ser o MP. Porque aquilo, apesar de ser
crime, não merece intervenção do tutelar
educativo mas sim da comissão de
protecção. E tínhamos aí essa solução. Ou
então, teria que ser a criação de um novo
sistema com uma nova comissão, como
por exemplo, a DGRS, mas eu isso digo
francamente que não. Até porque uma
entidade ou era uma entidade
completamente nova, tipo os julgados de
paz em que criámos um sistema, uma
estrutura nova com uma intervenção
diferente, ou era pôr essas funções a cargo
de uma entidade que tem já outras funções
no sistema “punitivo” dos jovens, o que
seria um erro. Não tem garantias e é até
um conflito de interesses.
Portanto, a minha perspectiva é essa. Essa
ideia, teoricamente, não me repugna,
implicava alterações e meios se fosse uma
perspectiva de intervenção das comissões
de protecção, mas tinha sempre que aí
haver um juízo. E esse juízo, não vejo outra
entidade que não seja o MP a tê-lo, que era
o seguinte: se apesar de ter cometido um
ilícito, e atendendo a todos os dados,
definir que este vai para este sistema,
aquele vai para aquele sistema. Porque
para qualquer previsão de que vão para
esse sistema, nós tínhamos que ter
primeiro um critério que definisse que
situações é que vão para esse sistema.
P4
Eu tenho uma posição diferente de P3. Eu
acho que uma das grandes deficiências da
Lei Tutelar Educativa é não ter aberto
espaço à mediação. É um defeito desde o
princípio. Fiz essa crítica logo quando foi
apresentado no CEJ o primeiro relatório da
Comissão. Acho que o legislador nesse
propósito foi extremamente tímido. Eu acho
que nós aí podemos aprender imenso com
aquilo que os outros países fazem à nossa
volta e que não é nada complicado. Porque
pode haver entidades administrativas a
fazê-lo. Aliás, nós já temos no Ministério da
Justiça o Gabinete para a Resolução
Alternativa de Litígios, que pode alargar a
sua competência a, por exemplo, casos de
criminalidade bagatelar juvenil.
Eu antes de mais nada queria dizer que a
grande vantagem da Lei Tutelar Educativa
é ser um sistema sancionatório de tipo não
penal. E eu não tenho vergonha nenhuma
Anexo
397
de usar esta expressão “um sistema
sancionatório”. Porque nós não podemos
nem devemos deixar de assumir que a
nossa diferença em relação às leis
europeias está em termos um sistema de
justiça juvenil que é sancionatório mas não
é penal. E é isso que faz a nossa diferença
relativamente, por exemplo, à Polónia.
Porque todos os países da Europa, neste
momento, têm o sistema de justiça uma
vez que praticam todos a ideia da
imputabilidade diminuída ou relativa,
diminuída em função da idade. E é por isso
que há sistemas de justiça juvenil erguidos
sobre uma ideia de imputabilidade
diminuída em função da idade. Os países
que não a têm, são os que têm o tal
sistema de protecção, que são hoje, na UE
e não na Europa, a Bélgica e a Polónia.
Mesmo assim, a Bélgica tem uma
derivação, porque quando se trata de
crimes rodoviários ou crimes
particularmente graves, admite uma ideia
de imputabilidade diminuída, porque desse
modo permite que jovens com menos de 16
anos sejam julgados nos tribunais criminais
comuns, em vez de nos tribunais de la
Jeunesse.
Ora bem, estas são as únicas extensões
que existem na UE. Nós somos diferentes
de todos porque temos um sistema
sancionatório, ele procura dentro do
sancionatório um fim, um escopo
educativo, mas não deixa de ser
sancionatório porque basta não ter
privação da liberdade para ser um sistema
sancionatório. Não devemos ter rebuço em
assumir estas noções.
A vantagem que tem é que não é
estigmatizante porque não é penal. Não
põe o carimbo do registo criminal no jovem
e por isso não contém essa carga penal.
Bom, eu concordo com isto e acho que
esta é a única grande diferença que o
sistema de justiça juvenil português tem,
neste momento, na UE. E isso não é só
reconhecido por mim. Posso citar, pelo
menos, dois autores que dizem,
assumidamente nas suas obras de direito
comparado, que a grande descoberta dos
portugueses foi, de facto, terem instituído
um sistema que é sancionatório,
responsabilizante das crianças e jovens
que praticam factos qualificados como
crime, mas que não tem consequências
penais. Ou seja, não tem os feitos
estigmatizantes e negativos normalmente
associados às reacções penais.
Dito isto, que é para tornar claro em cima
do que construo a ideia que procuro, eu
acho que sempre que um jovem pratica um
facto qualificado como crime há um conflito
com a vítima. Porque tirando os raros
crimes sem vítima, e que na realidade não
são aqueles que os jovens praticam, e
mesmo nesses é a própria sociedade que
se torna vítima, os jovens praticam sempre
crimes com vítimas. Ora, também pode
haver, digamos, equilíbrios de interesses e
resoluções de conflitos que não passem,
forçosamente nem por uma judicialização
nem por uma judiciarização. E eu faço a
distinção porque estou aqui a empregar o
conceito de judicialização relativamente a
um julgamento, ou seja, à intervenção de
um juiz, e estou a empregar a palavra
judiciarização para me referir à intervenção
de um qualquer magistrado, ou seja, do
próprio MP.
Eu acho que a montante disto, pode e deve
haver intervenção estadual que pode ser
por via administrativa, e pode e deve incluir
instâncias de mediação. Porque até crimes
particularmente graves – e eu aí escolho os
crimes a que seja aplicável pena abstracta
igual ou superior a 5 anos – até esta
moldura penal eu considero que é possível
existir, e deve existir, uma composição de
interesses entre o menor e a vítima, porque
isso é responsabilizador e educativo. E ao
fazer-se, ao ser assim, cumpre os
objectivos da lei. À lei o que interessa é
que este menor demonstre, em qualquer
398 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
altura do campeonato, que assumiu os
valores tutelados pelo direito penal. E isso
pode acontecer a qualquer momento. Por
isso é que se valoriza tanto na Lei Tutelar
Educativa, e bem, o princípio da
actualidade, porque senão a lei seria
retributiva que é, aliás, o grande defeito de
todas as legislações europeias, são leis
retributivas. E aí, os senhores psicólogos
têm que compreender que, de facto, o
legislador português agiu muito bem,
porque quando o menor prática um facto
qualificado como crime, não está a pensar
no momento em que ele praticou o crime,
está a pensar no momento em que o julga,
e no momento em que o julga as
necessidades de educação têm de estar
presentes. Se assim não fosse, a lei estava
a retribuir um facto praticado.
O raciocínio que eu queria expender é o
seguinte: eu acho que é perfeitamente
possível até, e deve existir, antes do
processo e mesmo em qualquer altura do
processo, se ele vier a existir. Mesmo
depois na execução das medidas – e aí
não estou a inventar nada, isto passa-se
em Espanha – é possível a existência de
mediação e o fim do processo. E funciona,
aliás, está provado que funciona. Nós
devíamos avançar para tal solução e fazer
evoluir o nosso sistema nesse sentido.
Porque,– e aquilo que há bocado foi dito
aqui como um pouco de crítica porque
podemos ver nisso que a justiça não
funciona, mas apesar disso, eu acho até
que é a diversão a funcionar – muitas
vezes quando o caso chega ao
conhecimento da polícia esta faz diversão,
sempre o fez, não é uma diversão formal,
entre nós, porque não é assumida pela lei,
mas na prática, isso passa-se. E portanto,
muitas vezes, as coisas vão por esse
caminho porque não têm dignidade penal
ou então já se compuseram entretanto.
Eu, realmente, defendo que esta foi uma
grande falha da Lei Tutelar Educativa, e
compreendo-a (quem foi acusado de fazer
uma lei medieval tinha muito medo de dar
passos maiores do que a perna). E,
portanto, na altura, de facto, colocar numa
cultura que era fundamentalmente
judiciária, dar um passo no sentido de uma
desjudiciarização era algo extremamente
atrevido. Agora, acho que todo o balanço
que temos destas experiências a nível
europeu nos pode ensinar imenso. Aliás,
nós já temos, repito, dentro do MJ, uma
estrutura que pode pôr a funcionar
soluções de mediação que evitem que o
processo venha a nascer.
O que me pode ser oposto é a opinião de
que, assim, deixa nas mãos da vítima a
questão da educação ou não educação do
menor para o direito. Mas, eu considero
que não. Eu não posso levar este princípio
da educação do menor para o direito
rigidamente até às últimas consequências.
O que me interessa é a composição de
interesses e a composição de interesses
pode ser um sintoma muito positivo de
responsabilização e de assunção do menor
relativamente aos valores tutelares pela lei
penal. E se isso acontecer, então para que
é que eu quero intervir mais? Que sentido
tem?
P3
Primeiro queria rectificar uma coisa. Eu sou
a favor da mediação. Portanto, eu sou a
favor da mediação em qualquer fase. O
que está aqui em causa é esta fase anterior
que eu acho que pode ir para a mediação,
mas devia ser o MP a determinar se sim ou
não.
Agora, só queria perguntar a P4 – e aí
estamos em desacordo – se o caminho é:
entra uma queixa na polícia, a vítima vai lá
e indica se quer procedimento ou não, e se
fosse um crime até àquela moldura penal,
independentemente de haver muitas ou
poucas queixas, ia para a mediação. E
ficava por ali. É isso?
Anexo
399
P4
Sim, se entretanto, evidentemente, como
acontece em relação a outros processos de
mediação, não chegar a existir
composição, então, o processo terá que
seguir.
P3
Mas a determinação se vai para a
mediação é um processo automático,
porque, no penal, actualmente, quem
determina se vai para a mediação é o MP.
Portanto, a sua ideia é: entra na polícia, vai
para a mediação e esta resulta ou não, e
depois dependerá.
P4
Ou então a vítima não quer mediação
nenhuma e quer o processo.
P2
Por um lado, P4 referiu, por exemplo, que a
mediação seria possível porque grande
parte dos crimes que os menores praticam
têm vítima. Não sei se será bem assim. Há
muitos crimes que eles praticam, como a
desobediência, a condução sem carta,
embriaguez, que até são muito frequentes,
e em que não há vítima. A mediação, aqui,
não seria possível porque sai totalmente
fora do espírito da mediação.
Por outro lado, a maior parte das questões
que se colocam, designadamente a
desistência de queixa e outra, que também
acho muito importante e que foi decidida
num acórdão de fixação de jurisprudência
sobre o desconto dos dias de internamento,
têm a ver com o principal problema, na
minha opinião, deste sistema que é tentar
conciliar duas coisas que são quase
inconciliáveis. E arranjam, então, um
terceiro género, e nisso somos únicos.
Assim, por um lado, é a necessidade que a
sociedade tem de uma lei que diga que
está a defender-se, que está a defender a
sociedade. Por outro lado, a defesa do
menor. E às vezes isso na prática torna as
coisas muito difíceis de conciliar.
Por um lado, foi-se aplicar o processo
penal à Lei Tutelar Educativa porque se
entende que o menor tem direitos e,
designadamente, pode ter advogado, etc..
Mas, por outro lado, muitas vezes quando
nos perguntamos o que fazer nestes casos,
estamos a pensar o que fazer para o
proteger. E isto na prática, às vezes, é
muito difícil.
O conceito de educação do menor para o
direito é onde assenta a Lei Tutelar
Educativa. O direito penal assenta no
conceito da culpa e a imputabilidade
também.
Eu, em rigor, acho que os menores entre
os 12 e os 16 têm culpa, são susceptíveis
de culpa, podem ser passíveis de censura
porque sabem o que fazem e o que não
fazem.
P3
É verdade que sabem o que fazem, mas
isso é diferente da culpa.
P2
Sim, mas podem ser susceptíveis de
censura. Podem ser responsabilizados
penalmente. Eu acho que não pode ser por
aí que não se deva utilizar o direito penal. A
maior parte dos sistemas europeus, pelo
400 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
que sei, têm direitos penais mas são
direitos penais especiais.
A mim, o que me repugna é o abaixamento
do limiar da imputabilidade, ou seja, aplicar
o direito penal comum aos menores é que
considero ser absolutamente repugnante.
Agora, um direito penal especial, onde haja
tribunais próprios, juízes, funcionários,
magistrados e regras específicas já não me
repugna tanto.
A vantagem que isto tem é, até por vezes
na definição e clareza dos conceitos,
porque a necessidade de educação do
menor para o direito substitui, no fundo, a
culpa, dado que aparece como pressuposto
da aplicação da pena.
OPJ
Mas, a questão é saber se é o magistrado
do MP, individualmente, e ainda que peça
uns relatórios, que está em melhores
condições de aferir perante um facto
qualquer e um menor, porque quando
arquiva também faz um juízo e diz que não
tem especial necessidade da educação
para o direito e isso podia-nos levar a saber
que, se calhar, até tinha essa necessidade.
P2
Isto tem a ver com o papel que o MP e com
os tais interesses que são, por vezes,
difíceis de conciliar. Se o papel do MP aí
for o de ver o que é melhor para o menor e
se for, também, a defesa da sociedade, são
dois papéis muito difíceis de conciliar, na
minha opinião, de acordo com esse
sistema.
OPJ
Mas, o problema é que neste sistema é ao
MP que exigimos essa definição. Na sua
opinião devíamos mudar este procedimento
ou é assim que está bem? Ou seja, perante
o conhecimento da prática de um acto
criminoso, há lugar à abertura de um
processo judicial, que corre no MP
primeiro. Depois, a partir daí, depende do
magistrado do MP a decisão de suspender,
pedir relatórios. E é certo que, com limites,
(já veremos se deveria ser mais alargado),
mas, dentro dos limites, a questão que
estávamos a discutir é se antes da abertura
do processo no tribunal, todo e qualquer
facto qualificado pela lei como crime deve
seguir esta via ou não.
P2
Mesmo sem atender a estas questões
meramente pragmáticas, se o MP, agora,
investigasse todos os crimes semipúblicos
como públicos, que no fundo é o que está a
fazer, o sistema rebentava em termos
penais.
OPJ
Por exemplo, uma das questões que estão
aqui a ser discutidas é saber o seguinte:
estou a ler recomendações de estudos,
etc.. “(…) Até que ponto, de preferência,
sempre que possível pela solução de
conflitos, por vias como a mediação ou
outras de carácter restaurativo, retardando
a actuação dos sistemas de controlo formal
e sobretudo as respostas de carácter
sancionatório ou punitivo”. Obviamente, há
aqui uma gradação. Reparem quando se
diz “retardando as respostas dos sistemas
de controlo formal”, isto é, quando o MP
actua no âmbito de um sistema judicial, há
aqui o controlo formal. É disso que estamos
a falar.
Anexo
401
Portanto, há recomendações claras no
sentido de que, mesmo perante a situação
da prática de um facto qualificado pela lei
como crime se deve retardar a resposta do
controlo formal que obedece a regras,
procedimentos, obedece a um conjunto de
princípios que, obviamente, os sistemas
não formais não têm. Se virmos, por
exemplo, a tramitação dos processos nos
tribunais é diferente da dos julgados de
paz.
Há de facto recomendações e, obviamente,
dentro do controlo formal ainda há aqui
outro tipo de gradação que será evitar
sempre que possível medidas de cariz
sancionatório ou punitivo e depois as de
internamento e por aí fora.
P2
Os problemas dos menores têm que ser
resolvidos. Não sei se a melhor forma seria
o MP nesses casos. Estou convencido que
talvez não fosse.
P3
O sistema de mediação que está a ser
utilizado relativamente às outras
mediações, seja a penal, seja a familiar, no
âmbito do Gabinete de Resolução
Alternativa de Litígios, também não.
OPJ
Não usemos a palavra mediação. Porque
senão vamos logo falar em mediação do
sistema de resolução alternativa de
conflitos. Vamos falar em outras soluções.
P8
A questão da queixa é pertinente porque,
provavelmente, haverá muitos casos que
não chegam a ser conhecidos porque a
vítima não apresenta queixa e pode haver
variadíssimas razões para não apresentar
queixa: os tais receios, achar que não vale
a pena, e mesmo as discriminações
sociais, porque, por exemplo, o filho de pai
rico paga e acabou, e nem chega a entrar
no sistema, e a criança que não tem pais
que possam pagar, essa é que entra no
sistema.
Eu simpatizo com essa ideia de não ser
preciso queixa porque pode haver
necessidades de educação para o direito e
não haver queixa. Haver crime, não haver
queixa e haver necessidade de educação
para o direito, até por causa dessa
discriminação, dessa disparidade, etc..
Agora, a questão da mediação. À partida,
também simpatizo com a mediação, só que
eu acho que as coisas podem colidir, de
facto. É certo que isto também depende do
que é que entendemos por mediação e
como é que isto seria posto em prática,
penso eu. Isto, porque pode haver
necessidades de educação para o direito e
pode dar-se o caso – como a mediação
tem aquele sentido muito reparador – de o
menor pagar e reparar, sendo uma forma
de a situação ficar resolvida, mas a
necessidade de educação para o direito
mantém-se.
OPJ
Vamos usar uma solução que não seja
uma solução logo direccionada para as
instâncias de controlo.
402 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
P8
Mas a questão que eu coloco, que tem a
ver com a ideia de reparação, da vítima se
sentir compensada.
OPJ
Deixe-me só introduzir aqui um dado.
Imaginemos que podíamos passar para
uma solução, com uma articulação com a
promoção e protecção em que nós, apesar
da existência de um facto qualificado pela
lei como crime, a própria vítima estaria de
acordo numa solução independentemente
da existência de reparação, se entendesse
que aquele caso precisava de uma medida
de promoção e protecção. Porque, por
exemplo, não sei se é educação para o
direito, mas pelo menos para as regras em
sociedade, precisava de uma medida de
acompanhamento.
P8
A questão – por isso é que coloquei aqui o
meu dilema, digamos assim – é o que
vamos fazer com a mediação. Que
medidas concretas vão ser propostas. Ou
melhor, formas de não entrar no sistema
formal e de controlo.
Por exemplo, estou a pensar nas escolas.
Falou-se, há pouco, muito sobre as
escolas, pequenos crimes praticados por
menores, etc.. Será que é realmente
necessário entrar no sistema? Não deveria
haver um gabinete preparado para lidar
com as situações das escolas, onde
estivesse um psicólogo, um jurista, entre
outros. Agora, nunca só na perspectiva –
embora as palavras às vezes, gerem
equívocos – de reparar a vítima. Eu acho
que não pode ser só a vítima directa do
crime a ficar satisfeita com a solução. Tem
que ser algo diferente. Tem que ser a
sociedade, enquanto vítima mais ou menos
directa ou indirecta daquele facto, e tem
que ser ajudar o menor. E eu até considero
que a expressão “educação do menor para
o direito” é educação para os valores
fundamentais da comunidade, para se
comportar sem ferir esses valores. E,
nesse aspecto, até me satisfaz a expressão
“educação para o direito”.
Eu estou-me a lembrar, por exemplo, na
Holanda, em que há uns gabinetes
(sistema HALT) e que julgo que funcionam
bem, porque intervêm muito precocemente,
com pequenos crimes.
P4
É uma solução administrativa.
OPJ
É disso que estamos a falar. Por exemplo,
uma das recomendações é “generalização
das vias de diversão em todos os níveis de
intervenção, em particular se combinadas
com a aplicação de mecanismos ou
sistemas de reparação ou conciliação com
a vítima ou com a comunidade”.
P4
Para os casos dos crimes sem vítima.
OPJ
Repare, estamos a falar da pequena
criminalidade em ambiente escolar, o
vandalismo.
Anexo
403
P8
Muitas vezes, não tem nada a ver com a
reparação económica. Mas sim, o ir pintar
as paredes que estão danificadas, reparar
os bancos de jardim, etc.. Aí, eu acho bem.
OPJ
Mas o que está em cima da mesa e
esqueçamos a palavra mediação porque
senão voltamos logo aos quadros da
mediação. Falamos, então, de sistema de
controlo, ou não, sistema imediato.
Portanto, saber se devemos logo fazer
intervir os sistemas de controlo – o MP, o
tribunal e por aí fora – ou se devemos
encontrar aqui outras vias, outras soluções
que não levem logo a intervir o processo
como hoje aqui temos.
P4
Ou seja, do ponto de vista doutrinário,
aquilo que se denomina de introdução de
medidas de diversão.
OPJ
Não sei se querem questionar mais alguma
coisa só sobre este ponto.
P8
Não. Sobre este ponto, realmente a minha
dúvida era sobre o tipo de reparação da
comunidade e da vítima. Porque senão
estávamos a tentar resolver um problema e
ele entrava por outro lado.
OPJ
Sobre esta questão eu gostava realmente
de continuar a rodar a mesa.
P5
Esta questão, numa certa dimensão,
parece-me mais facilmente respondível por
pessoas da área do direito. Confesso que,
em parte, tenho alguma dificuldade em
responder a isto. Parece-me que esta
introdução de medidas de diversão tem
potencial e pode recorrer facilmente, como
aliás já faz muitas vezes, não na diversão
inicial mas depois no reencaminhamento
dos casos, por exemplo miúdos que têm
determinadas medidas de trabalho
comunitário, etc., recorrer a esses mesmos
serviços, sem necessidade de
sobrecarregar o sistema com a criação de
muitos serviços novos, embora às vezes
fosse preciso, por exemplo nas escolas há
muito espaço para isto.
A mim, parece-me uma boa ideia, mas
volto a frisar, estou a referi-lo do ponto de
vista da intervenção social.
P7
Ora bem, eu não tenho nada contra as
medidas de diversão, mas se o MP
estivesse assessorado com serviços de
mediação, e se houvesse um alargamento
das competências do MP em matéria de
arquivamento do inquérito, de suspensão
do processo etc., a mediação no âmbito do
MP também poderia contribuir para que,
realmente, o MP fizesse a triagem e muitos
casos não entrassem na fase jurisdicional.
404 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
OPJ
Ora bem, não estamos na fase judicial,
estamos no MP, há as polícias que darão o
conhecimento ao MP das queixas que lhe
forem apresentadas, ou se há um facto
conhecido, etc., e se o MP tivesse uma
assessoria, mesmo que não precisasse do
relatório, se fosse assessorado por mais
pessoas, e pudéssemos ajuizar disto no
âmbito do MP, daria para resolver a
questão por aí.
O que eu pergunto é se, uma vez o caso no
sistema de controlo, no tribunal, no sistema
judicial, se havia essa abertura suficiente
para, de alguma maneira, termos logo aqui
uma cultura de processo excessiva, isto é,
no momento, do ponto de vista cultural e da
formação do próprio MP, se temos
condições para implementarmos um
sistema desses em que o magistrado do
MP tivesse em conta as posições dos
psicólogos, dos sociólogos, no fundo, a
tomarem-se medidas não com esta cultura
de processo que temos hoje, mas antes de
discussão de equipa.
P7
Na minha opinião, acho que sim. Agora,
voltamos à questão dos meios. Eu sei que
os meios podem ser atribuídos, mas quero
dizer, aí o MP teria que estar assessorado.
OPJ
Mas acha viável avançar para uma solução
destas, neste momento?
P3
Eu acho viável, tanto quanto acho viável a
anterior, que é a existência de serviços que
correspondam. Porque nós podemos ter
aqui, e era o que eu estava a defender – e
sei que em Espanha é assim – serviços
mas não dentro dos tribunais. Aliás sou
contra serviços dentro dos tribunais.
Mas tudo depende como é que a lei vai
ficar escrita. Porque se a lei disser: 1ª
hipótese: recebida uma participação, não
abro inquérito tutelar educativo, abro um
procedimento próprio que teria de ser
desenvolvido, remete para os serviços x.
Mas eu defendo uma coisa ligeiramente
diferente e, se estiver assim na lei, até
estou a ver os meus colegas todos
contentes. Porque é sempre a primeira
coisa que faz, pedir o relatório, e não devia
fazer, porque a lei não diz isso. Um
inquérito tutelar educativo, é uma grande
diferença relativamente ao penal, a
primeira coisa a fazer é ouvir o menor. Mas
vai ver que na grande parte dos casos, a
primeira coisa que o MP faz é pedir o
relatório à DGRS, seja o que for. Isto para
dizer que essa cultura, obviamente que não
seria por bons motivos, era porque a lei o
impunha, mas pode e deve criar-se.
Eu sentia uma coisa diferente mas isso
podia burocratizar e tem a ver com a tal
concepção que eu tenho do papel do MP
em toda esta jurisdição. Não é só o seu
papel no âmbito do tutelar educativo, é o
seu papel na família e menores, na
promoção e protecção, de quais são os
interesses. Então eu aí punha esta
comunicação, quer dizer, não era
obrigatório remeter imediatamente para os
tais serviços, remeteria aqueles casos que
considerasse adequado face aos
interesses tanto de promoção e protecção,
como os interesses do tutelar educativo.
Eu tinha esta nuance, mas claro que isso
tem de se decidir. A questão é se
queremos remeter o MP para um
paradigma de uma intervenção meramente
rígida.
Anexo
405
P7
O MP faz muitas vezes mediação.
P3
Não faz mediação, tem atitudes
mediadoras.
Repare uma coisa, eu acho que haverá
casos em que nem sequer é preciso ir para
os tais serviços, em que se ouvirmos ali o
menor, o processo acaba, morre por ali.
P4
É o que se passa na polícia em certos
países.
P7
Se o auto vier bem elaborado pelas polícias
traz também já um relatório sobre o
enquadramento familiar, etc..
P3
Há casos em que é ouvir apenas. Nem
sequer exigiam a intervenção de um
sistema mais formal.
Agora, de qualquer maneira, e mais uma
vez manifesto essa preocupação, que é a
de que quaisquer serviços desse género
têm que ser bem pensados do ponto de
vista técnico, dar resposta atempada e têm
que ter alguns limites de intervenção por
questões de direitos fundamentais que
estão em causa e da gravidade dos factos.
O modo como foram estruturados os
serviços de mediação, no âmbito das
respostas à mediação familiar e penal, na
minha opinião pessoal obviamente
discutível, não funcionam e a qualidade da
própria mediação é altamente posta em
causa porque há uma lista de mediadores
que intervêm caso a caso.
P9
Sou sensível à proposta de P3 mas vejam
porque aqui pode haver algum
desconhecimento da minha parte. Pelo
conhecimento que tenho das Comissões de
Protecção de Crianças e Jovens, falha
imenso num serviço desse tipo. Portanto,
se a proposta é criar-se um outro serviço
como alternativa aos factos chegarem ao
MP, eu temo que vamos fazer mais uma
coisa que vai causar entropia no sistema,
porque não vai responder em tempo útil,
não vai ter meios nem recursos para dar
respostas adequadas. Também podia
entrar a DGRS, mas o MP ainda pode ser
assessorado por técnicos mais qualificados
e que possam fazer informações
tecnicamente mais fundamentadas de
necessidade ou não necessidade.
Depois, pergunto uma coisa, mesmo por
ignorância: na sua proposta de não
depender a participação do MP da queixa
da vítima, começaríamos a ficar – sem lhe
chamar cadastro – mas ficaríamos, de
facto, com o registo. Portanto, se nos
aparecer um miúdo com uma quarta ou
uma quinta queixa, pode-se decidir da
abertura ou não de um processo a partir
das queixas acumuladas, ou não?
P3
Não. O que pode, com certeza, é dar-nos
uma ideia do processo actual que estamos
a ver, do seu historial e da sua
necessidade de educação para o direito.
406 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
P9
Informa melhor a posteriori de haver outros
factos, mesmo que sejam menos
relevantes.
P3
E podem-se juntar todos, se tiverem tempo,
se não estiverem prescritos, etc..
P9
Na minha opinião isto é um benefício. Já
estamos à espera de um facto com uma
determinada gravidade, e precisamos disso
para abrir um processo, mas se tivermos
esta outra informação, eu acho que era
preferível.
P3
A minha proposta inicial tem várias
vertentes. Uma delas é uma questão de
concepção de sistema, que é uma
intervenção em que se considera que a
participação do ofendido ou não, em si
mesmo, é que delimita a intervenção do
Estado. É a assunção pela comunidade
sobre se aquele menor deve ou não ser
sujeito a sistemas mais formais. Portanto, é
uma questão de sistema que, também tem
alguma importância. E aquilo que eu
defendi, por um lado, é uma visão
discutível, sobre o ponto de vista da
concepção, de uma intervenção mais
estatizante, chamemos-lhe assim,
relativamente a questões de menores. E,
por outro lado, tem uma consequência
prática que é o boom de processos, ou seja
a capacidade de o MP responder de uma
maneira eficaz a este tipo.
Portanto, tem uma questão conceptual e
uma questão pragmática.
P1
Toda a gente sabe que um dos aspectos
mais eficazes para a modificação de um
comportamento é a contingência em
relação ao comportamento que se quer
modificar. E eu vejo essa proposta,
independentemente do lado para onde se
possa tomar, mas a ideia que o sistema
português, em termos gerais, ande sempre
a fazer pouco das vítimas e a proteger os
presumíveis agressores.
Eu tenho sempre defendido que, em
determinadas situações, e sobretudo no
caso dos menores, é preferível actuar por
excesso do que por defeito, porque quando
se actua por defeito, depois quando se
quer actuar verdadeiramente, já não se
consegue, de facto, fazer nada.
Portanto, eu diria que o facto de se tomar
logo em atenção uma queixa, esse jovem
ser chamado, ser logo confrontado com
isso, eventualmente pode até ser na polícia
e o processo seguir, muito próximo do
momento em que o facto ocorreu, tem de
certeza um impacto significativo na
modificação do comportamento. Outra
coisa é decidir que vai para ali para ser
ouvido, mas aí vem a questão de quando
será ouvido, e daí por um mês já não tem
impacto nenhum.
Portanto, digamos que agrada-me essa
perspectiva e que seja sentida pelo menor,
independentemente do contexto onde é
ouvido, como consequência daquilo que
fez. E há outro princípio também muito
importante, que é the first cut is the
deepest. Isto é, a primeira pancada pode
ser a mais eficaz e a que causa mais
impacto e, muitas das vezes, nós fazemos
isto.
Anexo
407
OPJ
Mas assim é o sistema que nós já temos.
Como é que se explica que o sistema falhe
tanto? Porque, aparentemente, para quem
por lá passa não tem tido resultado.
P9
Porque não é só o princípio da
contingência. É que também há outros
princípios como é o da frequência, se quer
punir um comportamento, não pode deixar
que só à centésima ocorrência é que ele
seja punido e porque teve 99 vezes em que
não aconteceu nada…
OPJ
Sim, mas então o que defendem é que
perante um facto criminoso a acção seja
tão imediata quanto possível. Mas que
acção é essa?
P1
Eu disse no início que me parecia com
probabilidade a dar frutos maiores se isto
for controlado pelo MP, porque este tem o
poder de modificar mais as coisas, a não
ser que este poder seja dado às tais
entidades de diversão. Mas era preciso ver
como é que funcionaria. Não é uma coisa
que me repugne à partida.
Agora, essas entidades de diversão não
podem representar uma coisa em que o
menor chega lá e cede, porque aí não tem
eficácia nenhuma. E aí, é evidente que ser
ouvido por um magistrado, pelo MP, a
coisa muda, de facto, de figura. É mais
nesse sentido de eficácia que estou a
defender. Agora, é evidente que aqui temos
um problema, são os mesmos, depois, a
fazer mais coisas. A questão é se há meios
ou não há.
P9
Mas isso permitia uma série de coisas, que
é, provavelmente, o mesmo magistrado
ouvir várias vezes o mesmo menor. Há
aqui também um efeito. Mesmo que não
seja uma punição, nem é uma decisão nem
é um processo, só o facto de ele saber que
vai ser ouvido por causa de um
comportamento que teve, já tem efeito.
Muitas vezes o que acontece é que há uma
sensação grande de impunidade, mesmo
ao nível dos centros educativos. Aqui é que
eu acho que é educar, não para o direito,
mas é educar para dizer que há uma
consequência para as coisas. A melhor
maneira é mesmo mostrar que há uma
consequência.
P1
A falha destes indivíduos é falta de
pensamento num sentido alternativo, ou
seja, ver outras soluções. Porque, por
exemplo, o problema típico de um
delinquente é resolver os problemas
através da agressão.
Assim, o que deve ser feito é ensinar-lhes
pensamento alternativo, outras soluções, e
depois pensamento consequente. Eles não
têm pensamento consequente, na maior
parte dos casos. Eles fazem uma coisa e
dizem “a consequência vai ser o quê?
Nada!”. O pensamento é: “Vou-me safar”.
Mas também, se forem apanhados já se
lembram como é que foi da outra vez, ou
do outro colega e saem “na maior”.
Portanto, essa ideia de não se projectar no
futuro, no sentido de uma eficácia da
sanção, é evidente que ajuda à
impunidade.
408 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
P4
Mas isso também funciona para a entidade.
Eu, por exemplo, que conheço bem o
programa HALT, acho que o mesmo é
exemplar a esse respeito e funciona muito
bem. O jovem é sempre chamado com a
família e quando entra na entidade, na
autoridade administrativa, muito claramente
são-lhe apontados os objectivos e não lhe
é perguntado como quer. O sistema está
montado daquela maneira e ele vai fazer
isto e aquilo. Tem o seu fato-macaco, as
suas ferramentas, etc.. Está tudo
preparado para dar resposta a determinado
tipo de delinquência.
Isso era outra coisa que eu gostaria que
viéssemos a ter oportunidade de falar, e
que é outro insucesso da Lei Tutelar
Educativa, porque ela não foi cumprida
nem foi aplicada num sentido da
especialização da intervenção em função
do tipo de delinquência. Nós praticamos,
ainda hoje, na aplicação da Lei Tutelar
Educativa, utilizando a expressão dos
jovens “tudo ao molho e fé em Deus”.
Portanto, trata-se da mesma maneira o
agressor sexual e o indivíduo que rouba
carteiras.
OPJ
Depois faríamos um última ronda,
sobretudo, sobre a forma como está
aplicada nas medidas, essa intervenção da
DGRS, onde é que devíamos ter outro tipo
de intervenção, onde e como é que
podemos articular melhor, ou se é que
devemos, esta intervenção da DGRS e de
outras instituições. No fundo, como fazer
aqui funcionar redes.
P6
Eu penso que, daquilo que ouvi, nós temos
de atender a quais são os interesses dos
jovens, quais são as suas necessidades e
qual é a possibilidade de nós actuarmos da
forma mais cedo possível.
A educação para o direito é evidente, não
sei se não deveria ser explicitada, que é a
ofensa, aqueles valores que a sociedade
democrática escolhe para uma vida justa e
progressiva e, portanto, é a ofensa a
valores fundamentais. Numa sociedade
democrática a penalização é a ultima ratio.
Portanto, a educação é para estes valores.
Nem são valores de civilidade. A civilidade
é outra coisa. São valores tão importantes
cuja ofensa constitui crime, que é a última
reacção que a sociedade tem.
Logo, parece-me que é de toda a vantagem
para os jovens que seja assinalado isso, ou
seja, que quando ele os ofende haja uma
possibilidade pedagógica, não
estigmatizante, para ele saber que fez mal.
E ele sabe que fez mal, o que me parece é
que não tem culpa penal. Tem, por isso,
vantagem que lhe seja sinalizado o facto. E
depois que seja avaliado se, realmente, foi
um acto de procedimento, se foi um acto
ocasional, para ver qual o significado, no
fundo.
P6
Mas como ele tem que viver uma vida em
sociedade deve ser-lhe assinalado esse
facto e depois ser avaliado desde logo.
Mas de facto, no tribunal de menores tive
algumas situações em que iam lá menores,
porque furtavam fruta e aquilo para eles
não era nada.
Portanto, deve ser-lhes assinalado esse
facto e depois, ser avaliado, porque uma
das coisas que se disse aqui é
extremamente importante: isto tem de ser
Anexo
409
com a maior rapidez possível. É que por
vezes, passado determinado lapso de
tempo, dependendo, também, da idade
dele, já nem se identifica com o acto, o acto
já não tem qualquer relevância, porque
entretanto cresceu mas, enfim, cada caso é
um caso.
Há, pois, necessidade daquelas
sinalizações de forma educativa e não
estigmatizante.
Eu não sou nada contra a diversão. Sou
partidário da diversão. Mas não sei se aqui,
na nossa cultura e no nosso sistema será,
neste momento a coisa mais adequada, se
estaremos preparados para a
tempestividade da intervenção.
OPJ
E uma maior abertura dentro do MP?
P6
Isso parece-me que sim, portanto, neste
momento, eu acho que sim que a diversão
é uma solução boa, até porque numa
sociedade complexa há necessidade de
procurarmos soluções diversas, sobretudo
com a heterogeneidade que quem está
junto do terreno, em princípio, terá mais
facilidade de compreender isso. Mas é
preciso que seja bem e sejam garantidos
os direitos. Portanto, tem que ser algo
pensado, devidamente, com obrigação
determinada na lei. Se for possível isso,
não vejo nenhum inconveniente, mas não
sei se será possível neste momento da
nossa evolução.
Por outro lado, tem de haver sempre uma
fiscalização, digamos, do MP. Agora,
quanto a mim, teoricamente, isso agrada-
me mais.
Quanto à questão da vítima, é evidente que
a vítima tem de ser considerada. Agora,
não se pode condicionar o interesse da
criança ao interesse da vítima. O problema
é este. Porque o interesse da criança é
superior ao interesse da vítima, neste
momento, com todo o respeito pela vítima,
claro. Neste caso, ele não é um adulto, é
alguém que está em formação. E, portanto,
o próprio interesse da vítima pode ser
prejudicado se for necessário ao interesse
superior da criança. Portanto, essa
reparação, essa construção com a vítima
tem de ser feita com muita autenticidade e
sem, digamos, a ditadura da vítima.
Neste momento actual, parece-me que não
deveria depender de queixa, todos os
casos deveriam ser considerados de uma
forma ou de outra, numa fase de diversão
ou pelo MP. Mas, para isto correr bem tem
de haver uma cultura diferente, de todos
nós, uma formação diferente e além disso,
meios diferentes. Portanto, não faz sentido
que os tribunais de família e menores
tenham milhares de processos com meia
dúzia de magistrados. Uma das coisas
importantes é a criança ter direito a um
magistrado. Se formos para a solução da
não diversão, tem direito ao magistrado, ao
juiz, ao MP. Portanto, não faz sentido que
vá alguém apreciar a sua conduta e nem
fale com ele. Eu considero que tem de o
ouvir. A não ser que seja uma coisa
completamente anódina.
O magistrado do MP, bem preparado, ao
ouvir o menor, e uma vez que vem ele e os
pais, pode ali avaliar, desde logo, não vai
pedir logo relatório, vai ouvir e vai perceber.
OPJ
E precisamos do relatório? Será que
podemos evoluir para um sistema onde o
que fica escrito é o mínimo e em que há
uma avaliação, uma conversa de outro
410 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
tipo? Ou precisamos, de facto, desse
relatório.
P1
Eu acho que é muito pouco seguro
estarmos só baseados naquilo que se diz.
Eu baseio-me na experiência das prisões
em que, se não estiver tudo por escrito,
não funciona.
OPJ
É que, de facto, é o problema da escrita, do
peso do relatório.
P1
Sim, mas repare, há relatórios e relatórios.
O que acontece é que há pessoas que
escrevem 10 páginas e só se aproveita um
parágrafo. O que provavelmente seria
preciso, era uma cultura de como redigir
bem os relatórios. Mas isso é uma outra
questão. Já agora, gostava de deixar aqui
uma outra dica, em função do que P6
disse. Não se justifica que cada vez mais
não haja só magistrados especializados. E
isto para evitar que um magistrado esteja,
por exemplo, 3 anos no tribunal de família,
onde até era um bom magistrado, e ao fim
desse tempo seja corrido para outro. Isso,
por exemplo, aumenta extraordinariamente,
julgo eu, a eficácia dos processos.
Lá está o exemplo dos espanhóis que,
neste âmbito, criaram os julgados para as
questões da violência doméstica. Pode até
aquilo ter alguns defeitos, mas eu acredito
que em termos de eficácia do processo, as
coisas funcionam muito melhor. Está ali
tudo concentrado, e as pessoas não andam
a divergir, nem os próprios magistrados.
P4
Mas ainda em relação ao que P6 disse, só
para lembrar, esta questão de introdução
de métodos de diversão não foi só
pensada, historicamente, em defesa dos
interesses do menor, está, também, muito
ligada a uma ideia de economia judiciária.
Ou seja, reservar os tribunais para os
casos realmente dignos da intervenção dos
tribunais. Aqueles em que a sociedade não
foi capaz de resolver os seus conflitos.
P6
Eu acho isso óptimo. Mas agora, neste
momento, parece-me que e, sem prejuízo
de se estudar isso, esta ideia do MP com
essa possibilidade de que falámos não é
viável, porque isto exige tempo e recursos.
P4
Poderíamos começar por pequenos
passos, ou seja, tal como se fez em relação
à reforma de organização judiciária, criar
experiências-piloto, “não dar passos
maiores do que a perna”.
OPJ
A questão é que nós, de facto, no sistema
para adultos, e eu chamo, por exemplo a
atenção para o caso da violência
doméstica, estamos a tentar criar
experiências e a considerar que só a
resposta penal, do sistema punitivo, não é
suficiente e não funciona se não tiver
associada outro tipo de resposta.
Enfim, também gostava de os ouvir em
relação, por um lado, se nós não devíamos
introduzir aqui mecanismos de
responsabilização mais forte das famílias.
Porque este enfoque apenas na criança de
Anexo
411
12 anos e até antes, será que não estamos
a ser demasiado brandos com as famílias?
P6
Neste aspecto, temos cada vez mais, que
utilizar o sistema todo.
OPJ
E das respostas das medidas que temos
como é que vamos integrar mais, como é
que vamos flexibilizar e integrar a
protecção, a comunidade, a escola? Por
exemplo, como é que podemos dar
resposta à violência em meio escolar sem
integramos activamente a escola? Senão,
andamos a gastar dinheiro para nada, sem
consequências, sem responsabilizar a
família, ou seja, sem que a família sinta, ela
própria, que também ganha ou perde com
isto.
P7
Neste caso, aliás, muito mediático do
jovem que leva uma pistola para a escola
e, ocasionalmente, faz um disparo e atinge
um colega, eu pergunto: “como é que a
família, noutro processo, não é
responsabilizada?” Como é que o jovem
tem acesso a uma pistola, sabemos que a
retirou ao pai, mas a questão é onde é que
o pai a tinha deixado para que o jovem a
conseguisse retirar tão facilmente? Isto tem
de ser apurado. E já não falo em
responsabilidade civil, porque a culpa in
vigilando não é nada, falo de
responsabilidade criminal.
Há um tempo atrás aconteceu isso e já tem
acontecido, mais vezes do que seria
desejável, casos de jovens que têm acesso
a armas de fogo, que disparam e atingem
pessoas e depois, fica por ali, nem se fala
disso. Se fosse de outro modo falava-se. O
pai foi responsabilizado e chamado a
julgamento.
OPJ
Mas acham que é preciso alterar a lei, ou
se é um problema de prática? O que é que
nos falha? As normas que temos agora
permitem-nos essa responsabilização?
P7
Neste caso sim.
OPJ
No caso das armas. E se não for armas? E
se for, por exemplo, uma medida de
acompanhamento educativo, em que os
pais têm de zelar no sentido de que a
criança tem de, obrigatoriamente, ir à
escola? Tem aqui um conjunto de
injunções mas em que eles próprios se
demitem dessa responsabilidade, de o
levar, de o obrigar a frequentar, ou seja,
fazer um esforço nesse sentido.
P1
Aquilo que a investigação demonstra é que
a intervenção com menores que melhor
funciona é uma intervenção multi-sistémica,
com todos os subsistemas que lhe dizem
respeito. Um subsistema é o menor, outro é
a família, outro é a escola, outro é o grupo
de pares mas, é evidente, que isto é uma
intervenção cara.
Já agora, só “puxando a brasa à minha
sardinha”, tenho alguns casos que me são
enviados pelo tribunal para intervir com
menores. E o tribunal pede até que eu
estabeleça um plano de intervenção. Nessa
412 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
intervenção, eu nunca prescindo, no caso
de menores não institucionalizados – no
caso de menores institucionalizados pode
ser um pouco diferente – de intervir com os
pais, pelo menos com os pais, a educação
parental.
Pelo que, eu acho que, aqui, quando o
tribunal ordena uma intervenção, cabe, de
facto, à equipa técnica dizer e definir o tipo
de intervenção que vai ser feita, os
aspectos e as pessoas envolvidas. É
evidente que se os pais não aparecerem lá,
eu escrevo ao tribunal um fax informando
que a intervenção está completamente
posta em causa porque os pais não
colaboram e, portanto, há que actuar.
Agora, só para vos indicar uma brincadeira:
conheço uma pessoa que está a trabalhar
numa escola terrível, com miúdos terríveis.
Um dos miúdos não ia às aulas e o que
esta senhora fez, foi chamar a assistente
social que trabalha junto da escola e que
teve uma acção altamente eficaz. Foi a
casa do menor e disse ao pai: “senhor, se o
seu filho não vier mais à escola, corto-lhe o
rendimento social de inserção”. O homem
disse duas ou três coisas e no dia seguinte
o miúdo estava na escola. Isto é actuar no
subsistema familiar!
A ideia é, se esta intervenção não for assim
concertada e só interviermos com o menor,
é uma perca de tempo porque, depois, o
resto não se generaliza. Porque isso era
assumir, mais uma vez, que aquele
indivíduo era o portador de todos os
defeitos do problema quando, em geral,
efectivamente, sabemos que não.
P4
Bem, daquilo que eu sei relativamente à
responsabilização parental, nos países que
a têm praticado, nomeadamente o Reino
Unido e, ultimamente, a França, esta com
soluções mais do tipo punitivo,
nomeadamente com o corte de regalias
económicas, ao que parece, a avaliação
que tem sido feita em termos de boas
práticas é que funciona a imposição de
programas de educação parental. Agora,
as sanções de tipo punitivo e não
responsabilizadoras, não têm tido êxito,
nomeadamente na França há sectores
muito críticos dizendo que elas têm
contribuído para agravar a precariedade da
situação das famílias. Ora, isso em
Portugal seria muito provável. Mas eu
realmente acho, daquilo que tenho ouvido
de colegas de outros países, que a
imposição de programas de educação
parental tem dado frutos até porque, muitas
vezes, os pais têm problemas de não o
saberem ser e eles próprios querem saber
e afirmar-se como pais. Por isso, têm
funcionado.
P3
A responsabilização dos pais tem que ser
encarada um pouco neste sentido, porque
aquela ideia de criminalizar a
responsabilização dos pais, que é, muitas
vezes, o que está subjacente quando
pedem mais responsabilização, não
servirá. Eu considero que essa ideia é de
afastar totalmente.
P4
Aliás, se vir as últimas recomendações do
Comité do Conselho de Ministros de
Novembro de 2008 relativas às crianças e
jovens às quais são aplicadas medidas na
comunidade e em instituição, que é, de
facto, um apanhado de todas as últimas
grandes recomendações internacionais dos
últimos anos, enfim, indo um pouco mais
além delas, vê-se que a linha é,
claramente, a de uma responsabilização
positiva dos pais e não uma criminalização
dos pais.
Anexo
413
OPJ
O problema é que, entre nós, de facto, não
trabalhamos, na prática, essa
responsabilização.
P4
Eu penso que no sistema de protecção,
com a regulamentação das medidas, se
deram passos nesse sentido.
P6
Sobretudo na formação parental têm-se
feito progressos. Há cinco universidades a
fazer a avaliação de várias aqui de X…
P3
No plano de execução da medida,
chamemos-lhe assim, o plano de
intervenção educativa é, salvo erro, dado
na parte de execução das medidas e pode-
se fazer uma previsão de que se deve fazer
a tal análise sistémica e que poderá haver,
quando os pais não aderirem a actos
necessários para a concretização daquele
plano, o poder de ser imposta a obrigação
de frequentar. Nesses termos, acho que
sim. Na criminalização tipo crime de
desobediência, multa e retirada de
subsídios, funciona como conversa. Porque
na prática, em algumas regiões, isso tem
acontecido e tem havido ali alguma
tentativa de que não seja assim. Um
grande número de famílias recebem o
rendimento social de inserção, têm
menores a cargo, se eles violam algum
daqueles princípios retiram-lhe o
rendimento social de inserção. Se eles já
têm dificuldade em termos de sustento dos
menores, ao ser-lhes retirado, estes ficam
em perigo. E, depois, temos de os retirar
para o acolhimento. Ora, não faz sentido.
OPJ
Há aqui uma intervenção forte da DGRS na
Lei Tutelar Educativa em todo o processo,
mas aparece sempre com uma função de
assessoria e, por vezes, ouvida no tribunal
no seu lugar de testemunha. Questiona-se
se a DGRS deveria ter aqui outro papel, do
ponto de vista da lei, por um lado.
Por outro lado, gostava de saber se vos
parece bem que a partir de uma
determinada medida e, sobretudo, de
acompanhamento em Centro Educativo,
em regime aberto ou semi-aberto, se essas
medidas devem não terminar mas ser
sempre seguidas por uma outra medida de
acompanhamento educativo, ainda que o
jovem já tenha ultrapassado os 16 anos.
Isto é, se uma medida, sobretudo, em
regime de detenção, deve terminar assim,
findo o seu período.
P9
De facto, acho que passamos a vida a dizer
que isto não é penal mas depois todo o
raciocínio que desenvolvemos assenta no
penal, até mesmo nos prazos que são
concedidos para decidir a duração da
medida. É que claramente não se coaduna
com o que é exigido, depois, em termos de
resultado, porque em três meses para
qualquer destas medidas não se consegue
fazer nada, nem sequer em termos
burocráticos. Esta é uma questão que
deveria ser mais discutida e aprofundada,
porque isto permite a alguns magistrados
decidir por uma duração mínima, sendo
que, depois, todos os técnicos se queixam
414 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
nos serviços que tal não resulta em nada.
Isto em termos de duração das medidas.
Quando toda a investigação e todas as
boas práticas, bem como alguns bons
critérios de outros países acerca dos
programas elegíveis para serem usados
nesta área da reabilitação dos menores,
implicam durações superiores ou um maior
número de semanas de trabalho. Portanto,
acho que algumas coisas deviam ser
revistas a este nível.
OPJ
E as medidas devem ser mais
combinadas? Isto é, imaginando que
podemos ter medidas mais curtas de
detenção, depois seguidas de uma medida
de acompanhamento.
P9
Isso acho que sim. O que não faz muito
sentido é que haja um acompanhamento
educativo, que é cumprido num tempo, que
acaba porque acaba a medida que foi
imposta, mesmo se no fim do período de
acompanhamento persistir a necessidade
de educação. Porque sabe, esta não é uma
medida de reabilitação, é uma medida no
que está entre as medidas. Ou seja,
cumprida a pena, acabou, não se pode
prolongar uma pena. E o que me preocupa
é que nós estamos aqui com menores.
Mas, no limite, este raciocínio podia ser
feito com adultos porque, de facto, se não
houve a modificação de comportamento
que se espera que houvesse, porque é que
vai acabar a medida se é uma medida de
reabilitação?
P1
Por exemplo, na avaliação dos processos
de intervenção descobrimos que tínhamos
de facto, previsto inicialmente, por
hipótese, doze sessões e depois, na
avaliação do processo, vemos que são
necessários mais seis. Mas, indicámos que
era doze e a medida acabou.
OPJ
Como é que responde a isto? É uma
questão de direito dos cidadãos? Não. Este
cidadão tem direito a uma maior
intervenção do Estado. É também um
direito deste cidadão que precisa desta
intervenção.
P3
Primeiro, acho que, realmente, há que
flexibilizar o final das medidas,
designadamente com um período de
acompanhamento após a saída. Estamos a
falar do internamento. Eventualmente, há
aqui um acompanhamento educativo que
não é internamento. Depois temos que
tentar definir que tipo de intervenção seria
essa, se seria ainda no âmbito de uma
medida, digamos, reportando um pouco à
liberdade condicional, o que eu não
gostaria muito, confesso. Porque eu acho
que tem de ser um acompanhamento para
a inserção, que pode não ser para uma
transição de um regime para outro. Ou
seja, se isto funcionasse muito bem, podia
ser feito no âmbito da protecção, mas,
como nós sabemos, a articulação é difícil e
nesse aspecto será complicado porque o
sistema de Segurança Social não se
articula com o restante.
Assim, para mim há várias hipóteses.
Primeiro, é no âmbito da própria medida
haver uma previsão, que aliás já hoje é de
Anexo
415
certa forma feito, de numa fase final a
medida ser alterada no sentido de uma
inserção na comunidade. Ou seja, a
medida deixa de ser de internamento, é
revista e passa a ser um acompanhamento
educativo ou aquilo que fosse preciso para
a reinserção. Ainda estamos na fase do
cumprimento da medida.
Há outra possibilidade que é a medida em
si terminar e terminar mesmo enquanto
medida, e mesmo assim verificar-se que há
necessidade de acompanhamento daquele
jovem para ele ser inserido,
designadamente com medidas de apoio de
inserção, por exemplo, autonomia de vida
como existe na promoção e protecção.
Assim, apesar de terminada a medida, se o
menor precisa de algum apoio para ter
casa, para formação profissional, etc.,
haver esta possibilidade e esta
possibilidade ser assegurada porque está
prevista na lei, bem como os serviços que o
fazem.
Por fim, há uma terceira possibilidade, a
que eu não digo que não mas que, a ser
tem de funcionar com algumas garantias,
que é a seguinte: o menor está a cumprir
medida de internamento, durante a qual
cumpre um programa de formação
profissional ou terapêutico, seja o que for, e
que se prevê não vir a estar terminado
antes de terminada a medida de
internamento. A mim não me repugna que,
justificadamente, com base na necessidade
de cumprimento e dizendo por quanto
tempo mais, o tribunal prolongue a medida.
Porque há aqui, também, a questão de
saber em que regime é que vai funcionar.
Isto é, se for uma mera formação
profissional, eventualmente poderá ser
cumprida não estando internado, estando
cá fora, se houver condições, desde que
ele se comprometa e continue a frequentar
a formação profissional. Mas, se for uma
intervenção de um programa terapêutico,
por exemplo, ou outra situação que
pressuponha que ele continue na mesma
situação de internamento em que está
sujeito, nesses casos, justificadamente, e
com limites no tempo, desde que seja com
ordem judicial, a mim não me repugna o
prolongamento.
Repugna-me um prolongamento
desproporcional e sem justificação de
objectivos a atingir. Ou seja, uma coisa é
eu estar a ser sujeito a um internamento, a
um cumprimento de medida, estar a ter
êxito e ser essencial que o mesmo continue
para poder ser realmente eficaz. Outra
coisa é considerar-se que o menor ainda
não está preparado, que a formação não foi
suficiente, apesar de todo o tempo que lá
esteve. Aí é um insucesso da intervenção,
mas isso são consequências possíveis.
Porque aí estariam a violar-se os direitos
fundamentais do menor, como a liberdade,
porque não podemos manter a pessoa
privada da liberdade indefinidamente.
OPJ
Mas, neste caso, a intervenção não é de
pena, é de pré-educação.
P3
Mas é que a intervenção do Estado para a
educação do menor para o direito tem
limites. A própria intervenção no âmbito da
protecção no interesse do menor tem
limites e limites constitucionais. E, aqui,
estamos com limites, que são os direitos
dos cidadãos principalmente quando está
em causa uma medida que implica a
privação da liberdade.
A legitimidade do Estado para intervir na
educação do cidadão tem limites. É por
isso que aqui estão reportados às duas
coisas. Não é só a mera necessidade de
intervenção de educação do menor para o
direito que pressupõe legitimidade do
416 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Estado para a intervenção, porque então
estávamos num Estado reeducador.
P9
Acho que há aqui duas questões. Uma é a
questão das situações em que se
implementou a medida, o menor cumpriu
mas não temos resultados. Acaba-se ou
não se acaba?
A outra questão é, independentemente de
haver alguma coacção legal ou de se
prolongar o prazo da medida, mesmo
objectivos estabelecidos, era oferecermos
a possibilidade ao menor, e estou a pensar
naqueles que têm medida de internamento,
de terem livremente, se quiserem, por
exemplo, uma área de transição para a
vida activa ou algum tipo de apoio mas já
sob regime de voluntariado que hoje não
funciona nem existe. Quer dizer, existia em
x, mas foi fechado.
P4
O sistema está preparado para isso. São
as pontes com a Lei de Promoção e
Protecção que não estão a funcionar
OPJ
Na sua opinião essas pontes são
suficientes? Porque é que não são?
P6
Porque não há uma ligação suficiente entre
os dois sistemas.
OPJ
Mas não há porque a lei não permite, ou é
a prática?
P6
É a prática. O que me parece é que estas
medidas de transição devem ser
consideradas dentro da duração da
medida, uma transição. Sem prejuízo da
protecção depois. Estou a dizer enquanto a
medida durar. Não quer dizer que depois
não possa ir para a protecção.
P9
Mas tem de ser para além da medida.
Porque a questão é que se tem um miúdo
destes num Centro Educativo, conseguem-
se resultados, ele sai do Centro Educativo
e volta para o meio e para a família de
origem, alguns já nem estão muito
adaptados.
P4
Tem toda a razão. Mas são planos
diferentes e fins diferentes. E esta
possibilidade existe, está oferecida, não
está é cumprida.
Primeiro: a lei, no instituto da revisão, está
preparada para uma grande flexibilidade,
permite ao juiz flexibilidade, consoante as
necessidades do menor, de alterar a
medida, podendo até acabar com a medida
de um momento para o outro,
independentemente da duração mínima
que tiver estabelecido.
Isto porque está a falar nos 3 meses ou nos
6 meses, se for o regime fechado, por
exemplo, mas o juiz pode, aplicando o
instituto da revisão, pôr termo à medida
antes da duração mínima, em nome do
princípio da actualidade das necessidades
Anexo
417
de educação para o direito. O que está aqui
a querer acautelar-se é o interesse superior
do menor.
Se não fosse assim caíamos numa falsa
ideia. Entre nós tem andado a cultivar-se a
ideia de pretender copiar do sistema
espanhol a chamada liberdade vigiada, que
é um internamento em Centro Educativo
complementado, obrigatoriamente, por um
período de liberdade vigiada. O que existe
também no sistema de internamento a
partir dos 10 anos, no Reino Unido, em que
os menores a quem são decretadas
medidas de internamento têm,
obrigatoriamente, um período de liberdade
vigiada. E isto acontece por uma razão
muito simples, não é em nome do interesse
do menor, é no interesse da segurança da
sociedade. É um interesse securitário
porque se subordina este período de
liberdade vigiada, e que se chama
exactamente assim, corresponde a um
período de liberdade condicional. Trata-se
de um período em que cabe ao menor
provar como é que se porta. Se não se
portar bem volta para dentro do centro.
Mas, como disse, isto não foi feito em
nome do interesse do menor.
Mas nós quando falamos aqui na Lei
Tutelar Educativa em período de liberdade
assistida – não lhe quero chamar vigiada –
estamos a falar no interesse do menor.
Ora, se falamos no interesse do menor e
de apoiar o menor, então há que agilizar,
nesse aspecto, os mecanismos da
promoção e protecção que sempre
estiveram contemplados na lei desde o 1.º
momento. Uma das vantagens desta lei foi
não ter querido ir para um modelo de
justiça e fechar a porta a um modelo de
protecção, daí ter-se deixado ficar a ponte
com o sistema de protecção. Porque, um
jovem que precisa de escola, de casa, de
formação profissional, está em risco, se
isso não funcionar, de não ter o seu
desenvolvimento adequado. Portanto, é a
promoção a funcionar.
O que é errado é continuar a ver-se que,
para ter escola, para dar formação
profissional é preciso privar de liberdade.
Então, tínhamos que ter muitas prisões
para jovens para ultrapassar o nosso
problema de iliteracia e de abandono
escolar.
A lei já tem este mecanismo. Agilize-se
este mecanismo. E não esquecer que os
países onde isto foi instituído, foi a
liberdade vigiada após o internamento
obrigatória, mas porque aí as medidas de
internamento são muito longas, em
Espanha, subiram para oito a dez anos.
P6
O que é necessário é que, efectivamente,
na execução da medida se veja quais são
as condições em que o jovem está ou que
estará quando se extinguir a medida e
voltar ao seu meio natural. Quando entra
no Centro Educativo, é necessário, desde
logo, começar a preparar o seu regresso,
pelo menos no trabalho possível com a
família. E depois, naturalmente, fazer
intervir o sistema de protecção se isso
significar, naturalmente, uma situação de
perigo. Ou, então, se não se verificar uma
situação de perigo mas significar uma
dificuldade social, são os serviços sociais
que devem responder a essa situação.
P9
A minha ideia é que, dentro da DGRS,
deve ter alguns normativos no sentido de
estes miúdos, depois de saírem, terem
algum acompanhamento por parte deles,
mas que não funciona.
P4
Houve um despacho, ao nível do PETI –
Programa de Eliminação do Trabalho
418 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
Infantil – que estendeu a sua acção, não só
ao trabalho infantil mas às piores formas de
trabalho infantil que consubstanciam
situações de perigo, e ao fazê-lo, acabou
por se vir a permitir, por despacho
governamental, que os menores no caso
da suspensão do processo, ou seja, no
quadro da diversão impura por parte do
MP, e também no caso da cessação das
medidas de internamento, viessem a
aproveitar, num esquema de promoção e
protecção, do que se tinha aberto no que
concerne às piores formas de trabalho
infantil. E, portanto, pudessem integrar a
chamada escolarização acompanhada de
diplomas de preparação profissional, o que
agora se chama Cursos EFA (Cursos de
Educação e Formação de Adultos).
P3
Teoricamente concordo com esta
“separação de águas”. Mas, vamos à
prática. E a prática o que nos mostra é que,
por vezes, não é feito cálculo correcto. Há
jovens que estão a cumprir a medida de
internamento e que, se depois do terminus
da medida lá estivessem ou continuassem
a cumpri-la cá fora mais 3 ou 4 meses,
terminavam aquele curso que estavam a
tirar. Enquanto que se acabar a medida,
termina por ali e já não podem terminar a
formação. Ora, isto acontece muitas vezes.
Se tudo funcionasse muito bem, tinham
começado o curso antes mas, por vezes,
até há questões que têm que ver com o
início do ano escolar e que têm de ser
acauteladas. E falamos em cursos, mas
podíamos falar numa intervenção
terapêutica e que até estava a dar
resultado e, de repente, é interrompida.
Mas, em relação a esta possibilidade que
eu pus, de haver, com todas as garantias
judiciais, um prolongamento da medida,
temos de atender à prática.
OPJ
Até porque, este prolongamento da medida
pode, de facto, não ser possível articular.
Porque, por exemplo, imaginando – ainda
mais agora, com esta alteração da
localização dos centros educativos – o
jovem pode ser de Lisboa e toda a
intervenção estar a ocorrer no Porto e,
depois de sair, ele vem para o seu meio,
para Lisboa e aí já não é possível voltar a
levá-lo ao Porto para acabar o curso.
P3
A outra questão é a questão da saída. O
que sabemos, na prática, e atendendo até
a como ficou a lei escrita, é que a ligação
entre as duas leis, sobretudo em relação a
esta saída, tem algumas dificuldades, não
só porque as estruturas da Segurança
Social, que deviam assegurar isso, não
respondem, mas até ao nível processual.
Isto porque, se o menor sai com 16 ou 17
anos e não tiver nenhum processo de
promoção e protecção antes, já não pode
ser instaurado. São estas as dificuldades
práticas. Portanto, ali já não se pode
instaurar porque já tem mais de 16 anos. E
se for instaurado, tem de se começar pelas
comissões de protecção. Não tem sentido.
O que eu considero é que se devia alterar
esta ligação em termos processuais. Eu
tinha aqui apontada uma alteração com a
qual, talvez, não concordem muito. Em
incidente processual suscitado por apenso
ao processo tutelar educativo, o juiz do
processo tutelar educativo aplicava a
medida de promoção e protecção.
P6
Já o pode fazer provisoriamente.
Anexo
419
P3
Mas aqui haveria uma excepção ao regime
actual e o próprio juiz aplicava-lhe a
medida de promoção e protecção que seria
assegurada. Isto em termos jurídicos e
processuais podia resolver-se assim e acho
que com todas as garantias.
P6
O problema é que, em muitos casos, já tem
18 anos.
P3
Sim, exactamente, mas isso é outra
questão. Mas pode ter medida até aos 21.
P6
A saída para o sistema de protecção é uma
das soluções mas não é a única, porque
muitas vezes já não é possível.
OPJ
Nós já temos um regime especial até aos
21 anos. E no âmbito deste regime especial
não se poderia encontrar uma solução?
P6
Mas aí é no âmbito de uma pena. Eu acho
que neste caso só pode ser uma solução
social.
P3
Mas esta que eu estou a falar, não seria
uma pena. Era aplicado no próprio
processo por apenso, pelo juiz do
processo, a medida de protecção e seguia,
depois, as leis da promoção e protecção.
Ou seja, até aos 18 anos podia impor, a
partir daí e até aos 21, só se eles
quisessem, ou seja, com a aceitação.
Depois, há uma outra questão que é de
quem é que vai executar esta medida de
promoção e protecção, que têm que ser os
serviços da Segurança Social.
P6
Não tem que ser, se a lei estabelecer que
deve ser a mesma equipa da DGRS.
P3
Mas isso tem que ser a lei a estabelecer.
Quais são as possibilidades do juiz de fazer
executar a medida? Porque nós estivemos
aqui, e muito bem, a aflorar muitas
questões e foi referida a falta de
capacidade de resposta dos serviços de
execução das medidas, mas isso é
realmente uma corrida que temos que
acentuar. Porque muita da ineficácia ou,
pelo menos, da sensação de ineficácia, da
intervenção tutelar educativa, no que toca
designadamente aos pequenos delitos,
vem do facto de as medidas previstas na lei
não serem executadas. Não são
executadas ou são executadas de maneira
deficiente e não há aí um estudo sobre
isso. Como é o acompanhamento tutelar
educativo? Como é que está a funcionar?
Está a ser bem assegurado? Todas as
medidas anteriores, como a formação
profissional, como é que estão a funcionar?
Nunca foram regulamentadas. Não há
estruturas, nem referências. E isso é uma
falha imensa porque, na prática, isto não
420 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
funciona porque nunca foram executadas,
são medidas que estão no papel, são
aplicadas pelo tribunal mas, grande parte
delas não funciona.
P7
Portanto, não é mudar a lei, é executar o
que está na lei e criar as estruturas
necessárias.
P1
Mas isso, repare, isso é a história antiga do
antigo IRS que, quando foi criado, até se
dizia que estavam proibidos de fazer
intervenção. Depois, quando descobriram
que tinham de fazer intervenção, já não
tinham técnicos para a fazer porque os
tinham deixado ir embora. Agora, estão
com esse problema de défice…
P5
Eu acho que é interessante toda esta
discussão em torno da possibilidade de
prolongamento da medida para lá do
internamento mas acho que, a montante,
ainda falta falar alguma coisa acerca do
internamento propriamente dito. Já
estamos a antecipar o depois. E antes, e
durante, o que é que se passa lá naquele
quotidiano? Por exemplo, no Centro
Educativo X, acho muito curioso que, dos
vários programas educativos e terapêuticos
que estão propostos no Regulamento Geral
dos Centros Educativos, o Centro
Educativo só não desenvolvia um deles. E
era, precisamente, aquele que se dirigia à
satisfação de necessidades específicas
associadas ao comportamento delinquente.
Eu acho isto absolutamente extraordinário.
E é este “olhar para dentro” que eu acho
que, obviamente não negligenciando todas
as questões processuais e de articulação
dos serviços a um nível mais macro, mas o
olhar mais micro também me parece
fundamental. Senão corremos o risco de
desenhar uma grande imagem, mas
quando aproximamos vemos que está
vazio lá dentro. Vêem-se os grandes traços
do edifício mas olhando lá para dentro
perguntamos onde é que estão as coisas,
afinal.
Por outro lado, também me parece, que
pelo menos desde o caso Casa Pia, muito
marcante na sociedade portuguesa, se tem
assistido cada vez mais, àquilo que eu
chamo a “demonização” do internamento.
Portanto, cada vez mais vemos o
internamento como a medida de último
recurso. Ora bem, se, por um lado, entendo
e percebo isto perfeitamente, por outro
lado, tem o reverso da medalha que o facto
de, por vezes, as medidas serem
demasiado curtas para inverter trajectórias
delinquentes. Assim como a intervenção é
feita, muitas vezes, demasiado tarde. E,
portanto, nós não podemos querer o
melhor de dois mundos, isto é, querer o
internamento, mas ao mesmo tempo
demonizá-lo, querer transformar as
crianças mas não dar tempo para a
transformação, ter um interesse superior
mas depois esse interesse superior passar
a ser o tentar sair o mais rapidamente
possível do mecanismo que nós criámos
para inverter o percurso.
Obviamente que eu reconheço que isto é
complicado e, seguramente, estão aqui
pessoas que já pensaram muito mais sobre
isto do que eu e, de forma nenhuma, quero
pôr isso em causa. Mas a partir da minha
perspectiva eu acho isto, de alguma forma,
extraordinário. Porque, com base na
experiência que conheço de Centro
Educativo, o que eu noto é que não é muito
claro para ninguém exactamente, qual é o
mandato do Centro Educativo. Não há um
modelo educativo.
Uma coisa me parece. Se nós queremos
tratar os menores como os adultos – eu
Anexo
421
não estou a dizer que isto acontece assim
de uma forma evidente – mas se queremos
diferenciar o tratamento que damos a um
menor delinquente do tratamento que
damos a um adulto criminoso, acho que
temos de correr riscos e acho que parte da
educação passa por assumir correr alguns
riscos. Pode correr melhor ou pior. Mas, um
Centro Educativo talvez não possa estar,
quase exclusivamente, orientado para a
gestão e para supressão da imponderável
catástrofe, briga ou fuga. Isso aí é que me
parece altamente castrador e muito pouco
educativo no sentido em que não alarga,
antes pelo contrário, apresenta uma visão
completamente dicotómica e simplista do
mundo, ou é bem ou é mal, ou é preto ou é
branco.
P9
Nem há tempo para mais nada. Porque
está tão estigmatizado que é mil vezes pior
do que uma prisão.
P7
Mas não estão lá psicólogos?
P5
Não. Atenção! É que os psicólogos,
normalmente estão distantes, com funções
de gestão. Quem passa o tempo com os
educandos são os monitores que, para o
serem, basta terem o 12.º ano e não têm
cursos de formação especializada.
Portanto, os que têm formação técnica
especializada para lidar com a delinquência
estão em tarefas de gestão, para as quais
várias vezes nem sequer têm formação. Os
outros, que são mais “indiferenciados” e,
claro, há uns que têm mais ou menos
experiência ou jeito do que outros, é que
estão 8 horas por dia com os educandos.
Isto é que é o modelo, isto é que é o
queremos e o que temos. Por isso, aqui é
que me parece que deviam ser mudadas
as coisas e, obviamente, que o sistema
juvenil não se reduz ao internamento, mas
é, de alguma forma, como já se disse, o
último reduto onde se colocam grandes
questões.
Parece-me também notável que
coloquemos tanto dinheiro num sistema do
qual não avaliamos os efeitos. Nós não
temos dados de reincidência. Quando eu
há pouco, durante a primeira parte, falava
dos dados que nos faltam, refiro-me, por
exemplo, a que nós não temos dados
específicos sobre a reincidência, e não digo
apenas reincidência no sistema juvenil
mas, também, depois, no mundo adulto.
OPJ
De facto esse estudo não existe e ninguém
quer fazê-lo.
P5
E, se quisessem, não era assim tão difícil.
P1
Há uma pessoa que se tem dedicado um
pouco a isso, o Dr. X da Direcção-Geral
dos Serviços Prisionais. É por isso que é
tão fácil fazer uma tese de doutoramento
nos países escandinavos, porque as
estatísticas estão certinhas e têm aquilo
compilado desde os anos 40 e 50, mas
enfim, no nosso sistema é difícil. Estamos
aqui a falar de coisas que são muito
importantes para uma apreciação. Nós
vamos tentar estudar um indivíduo que sai
422 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
da prisão, 3 meses depois passámos lá e o
processo dele está, provavelmente, num
canto qualquer.
OPJ
Os serviços prisionais têm agora um
sistema novo que regista, têm sempre o
mesmo número mecanográfico que permite
fazer o registo dessas entradas. Agora, é
preciso aprofundar o estudo do fenómeno
da reincidência, mas mais do que isso.
Conseguimos detectar quantas vezes as
pessoas entram no sistema, mas é preciso
avaliar porque é que elas entram, fazer
estudos de acompanhamento.
P4
Mas se quisesse fazê-lo na reinserção
social também podia fazê-lo. Porque
também têm um número único de
processo.
OPJ
Só não existe um número único da DGRS
com a DGSP.
P5
Há pouco falávamos na mediação mais na
fase inicial, de instrução dos processos,
etc.. Eu acho que a mediação seria uma
excelente estratégia para implementar no
quotidiano de um Centro Educativo. O que
não falta lá são conflitos. E em vez de se
colocar o conflito “a martelo” dentro de um
quadrado que não se pode fechar, poderia
usar-se todo o potencial pedagógico que
uma situação de conflito tem. E está mais
do que demonstrado e mais do que
trabalhado, existem, aliás, imensos
programas para isso. É uma questão de os
querer utilizar. Ou então, é deixar andar
neste regime, que eu não digo que seja
negro, porque não são maltratados, são
bem alimentados e têm, em muitos
aspectos, melhores condições que cá fora,
mas, digo que é um regime cinzento.
P3
Há um ano, P3 e eu estivemos em Nápoles
num seminário onde um técnico de
reinserção social apresentou dados de um
estudo, enfim, metodologicamente não
muito consistente, apontando para 60% de
reincidência relativamente a jovens que
tinham passado pelos centros educativos,
ou seja, fazendo um estudo dentro do
próprio sistema de internamento. Assim,
60% dos jovens internados tinham voltado
ao Centro Educativo.
P1
Resta saber se os outros 40% não fizeram
entrada no sistema penal. Porque se me
disser assim, que 60% reincidiram mas os
outros 40% não, apesar de tudo,
considerando os factores de risco, já não é
nada mau.
P4
Mas isto é um estudo incipientíssimo! Já dá
um indicador que, realmente, é
preocupante. O único estudo que se fez
sobre reincidência, a sério, em Portugal, foi
feito nos anos 60 pela Dra. Maria Rosa
Crucho de Almeida, nos serviços prisionais.
Tirando esse, nunca mais se fez nenhum.
Anexo
423
OPJ
Não só nos prisionais como também, de
facto, neste âmbito que até é mais
fundamental para percebermos os
percursos. Nós temos noção de muitas
falhas, mas, se calhar, é necessário traçar
aqui grandes histórias de vida para que
percebamos, realmente, onde é que acaba.
P4
Eu não sei se há tempo para falar nisso
mas era uma das coisas importantes a
referir, além de ser urgente: diferenciar e
especializar a intervenção em Centro
Educativo. Eu acho que, neste âmbito, era
necessário instituir o internamento para
tratamento médico e médico-psicológico,
mesmo que não executado numa
instituição da justiça.
Aliás, como se faz em Espanha, e aí
podemos copiá-los à vontade que vamos
no bom caminho. Não temos respostas da
saúde, mas é preciso exigi-las, porque os
poucos números que temos vão,
exactamente, no sentido de grandes
carências a este respeito.
O CEJ aderiu a um projecto que é
subsidiado pela Comissão Europeia,
estando sediado em Bruxelas e tem,
justamente, na mira o estudo das carências
ao nível dos sistemas de justiça juvenil na
União Europeia relativamente ao
tratamento médico e médico-psicológico.
De facto, no fundo trata-se de um
diagnóstico comparativo das necessidades
em matéria de tratamento médico e
médico-psicológico e da saúde em geral
nos sistemas de justiça juvenil na Europa e
é um projecto muito interessante porque as
carências, pelo menos entre nós, são
gritantes.
P3
Este debate sobre os modelos ou
programas de intervenção nos centros
educativos, é um debate que era
importante ser feito, para além da
avaliação, por pessoas interiores, que
estão a trabalhar, e, depois, por pessoas
exteriores.
P7
Mas não há uma comissão de avaliação?
OPJ
De fiscalização. Como todas as comissões
de avaliação, funciona no âmbito da
Assembleia da República.
P3
Mas essa comissão tem uma função
também útil, é um olhar exterior que, por
vezes, é óptimo.
OPJ
Mas é necessário saber os princípios e os
critérios, e é preciso enfim, uma avaliação
técnica.
P4
Deixe-me só meter aqui uma questão que
me tem preocupado muito. Tem havido
grandes ventos no sentido de introduzir no
sistema de justiça juvenil a vigilância
electrónica.
424 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
OPJ
O Ministro já anunciou.
P4
Pois, mas eu espero que a vigilância
electrónica seja instituída apenas como
uma alternativa ao internamento e não
como um reforço de medidas executadas
na comunidade. Porque, é bom lembrar,
sobretudo para os que se têm preocupado
muito com a penalização do sistema de
justiça juvenil, que nos adultos a pulseira
electrónica é uma privação de liberdade.
Por isso, é bom respeitar a
proporcionalidade e, ao instituí-la no
sistema de justiça juvenil, a colocar a
funcionar só como alternativa à privação de
liberdade institucional.
P8
Desculpem, se nos centros não há
educação para o direito, com a pulseira
electrónica muito menos haverá!
P3
Mas acho que esta questão da pulseira é
uma questão importante. Por acaso é pena
não a termos aqui discutido. É importante
perceber qual é o objectivo, a finalidade e a
eficácia.
OPJ
Eu fiquei absolutamente perplexa, quando
vi no jornal, que tinha saído no Orçamento
de Estado.
P3
Mas qual é a eficácia das pulseiras? Qual é
a finalidade se o objectivo das medidas é
de educação do menor para o direito e de
reinserção social?
P4
Aí já estamos noutro sistema. Já não é a
pulseira electrónica do sistema passivo que
tínhamos como alternativa no quadro da
medida de permanência obrigatória na
habitação. O que está aqui em causa já
são as medidas de vigilância activa, ou seja
o GPRS. Eu aí até me calo, porque acho
que até pode ser bom, que o jovem possa
ir à escola e à formação profissional e se
garanta que, exactamente, naquelas horas,
ele lá está.
P3
Mas isso tem que ser avaliado na finalidade
da medida e num plano integrado. Porque
em termos de reinserção social, qual é o
efeito disto relativamente à mentalidade, ao
desenvolvimento e à inserção dos valores?
Eu acho que isto é uma coisa a discutir. E
agora, só para agilizar, em termos de
recomendações para funcionamento do
sistema, há aqui coisas que nunca se
falaram, para além da regulamentação das
medidas. Existe a necessidade urgente de
se estabelecer um sistema de registo, não
só das medidas, porque esse já existe, mas
sim a possibilidade de um sistema
informático em rede, através do qual
rapidamente se consiga saber quantos
processos tem o menor, para se poder
fazer até a aplicação de uma medida, como
manda a lei, ou seja, de uma maneira
integrada. Isso nunca funcionou. Ora,
pessoas que andam tão preocupadas com
a reacção à delinquência juvenil, não
Anexo
425
percebo como é que querem reagir com um
sistema que não sabe que um menor tem
um processo em Faro e tem outro em
Bragança! Quem vem a saber é a DGRS,
que manda ofícios mas, entretanto, o
tribunal o que quer é julgar aquele caso,
que dá menos trabalho, e, depois, se há-de
julgar o outro, e por aí fora.
Há uma outra questão que, em termos
processuais, talvez valesse a pena reflectir
e que se liga um pouco com a questão de
quando um menor tem um processo, e
comete outros crimes, no fundo, o cúmulo
de medidas ou o cumprimento sucessivo.
Isto também é importante rever.
P7
Só uma ideia muito rápida, como forma de
contrapor também à ideia do abaixamento
da idade da imputabilidade, julgo que
poderia ser encarada a possibilidade de o
limite máximo do internamento passar de 3
para 5 anos. Porque seria até uma forma
de contrapor essa ideia e vem dar razão a
algumas situações, como por exemplo, se
o menor tem 15 anos e 11 meses, e
comete um crime de homicídio, o máximo
que pode acontecer é ser aplicada uma
medida de internamento que pode ir, no
máximo, até 3 anos. Já se tiver 16 anos, ou
seja, mais um mês, apanha uns bons anos.
P3
Mas isso é o problema de todos os limites
etários. É a mesma coisa que um menor de
11 anos e 10 meses estar no sistema de
protecção e já não é aplicada medida do
sistema tutelar educativo. Isto é aleatório e
é o tal risco que temos com algum tipo de
sistema e limites etários.
Eu acho um exagero 5 anos.
P4
Neste estudo em que eu participei, as
conclusões que, como digo, vão ser agora
publicadas, apontam no sentido de
considerar extraordinário que Portugal e a
Suíça sejam, de facto, os países que têm
um limite máximo tão baixo para o
internamento em regime fechado. Portanto,
considera-se que os nossos 3 anos, com a
Suíça, são um caso raro, no contexto da
União Europeia.
De qualquer modo, e na linha da
intervenção que P7 fez, eu acho que
estávamos na altura de fazer evoluir o
sistema para algo que não foi feito quando
a Lei Tutelar Educativa foi publicada, que
era diferenciar, em função da faixa etária,
os limites de duração das medidas. E,
portanto, não faz sentido, do meu ponto de
vista, que um jovem de 16 anos esteja
sujeito aos mesmos limites que um jovem
de 14 anos.
Eu penso que, nas faixas etárias de 12 a
14 e, depois, de 14 a 16 e até de 16 a 18,
porque, como se sabe, o tribunal pode
intervir depois dos 16 e até aos 18,
relativamente a factos anteriores praticados
até aos 16 anos, que de facto, a duração
das medidas pudesse ter limites maiores
porque isso está de acordo com o princípio
da necessidade e da actualidade da
necessidade de educação para o direito.
É evidente que, se aos 16 anos um jovem
ainda mostra necessidades educativas
relativamente a um facto que ele praticou
aos 14 anos e, se passaram 2 anos e
essas necessidades educativas, no
momento em que o tribunal julga, ainda
persistem, eu acho que os limites desta
medida devem ser consideravelmente
maiores.
Portanto, acho que essa diferenciação era
oportuna. E isso ia um pouco na linha de
poder, por essa via, aumentar o
426 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
internamento relativamente a jovens mais
velhos. É evidente que, cumprindo o
princípio da proporcionalidade
relativamente aos adultos, nunca se
aplicaria uma privação de liberdade que
pudesse ser superior àquela que um adulto
teria se praticasse o mesmo tipo de facto.
P9
Acho que a questão de P5 foi muito
importante mas, depois, fomos para as
pulseiras electrónicas e perdemo-nos um
bocadinho. Mas de facto os juristas estão
muito preocupados com a questão
processual, da decisão e do tipo de
medida. E, depois, deixa-se, praticamente,
para a DGRS a aplicação das medidas e o
conteúdo do que se faz.
Agora já é um pouco tarde, mas, de facto,
não sei se não valia a pena reflectir acerca
disto. Porque, mesmo a maneira como as
medidas estão designadas na lei não é de
uma interpretação clara. Claro que, depois,
cada um dá a sua interpretação e a prática
das coisas também as constitui de uma
determinada maneira. Mas, sobretudo a
questão do internamento e é por isso que
eu choco um pouco com o nome e com a
necessidade de ser educado para o direito
e chamar-se Centro Educativo. De facto,
eles são educativos só se forem ver quer
ao regulamento dos centros, quer o que os
miúdos fazem (eles fazem actividades de
formação, actividades escolares e
desportivas bem como ocupação de
tempos livres), mas em termos de
reabilitação psicossocial, quer individual ou
em termos de programas grupais, é
praticamente inexistente.
Eu desde que tenho contacto com o então
IRS, e foi sempre a partir dos centros
educativos ou dos menores em risco, que
ouço que há sempre um projecto de
regulamentação interna, estão sempre a
fazer o regulamento interno, estão sempre
à procura dos programas, e os programas
já existem em muitos países há imenso
tempo. Há nove anos nós fechámos a
tradução do primeiro em português, para o
IRS. E, entretanto, com o tempo, fiz uma
pesquisa e encontrei mais dois ou três
programas, pagos pelo IRS para serem
implementados nos centros educativos, e
que eu saiba, nunca foram.
Agora, de há um ano para cá é que andam
numa correria a tentar ver quais são os
programas que vamos levar. Embora a
questão tenha sido sempre quais seriam os
programas, mas fazê-los nunca ninguém
quis.
É tudo muito bonito e interessante e,
finalmente, temos um programa, mas
quando se percebe que aquilo é uma tarde
de trabalho por semana para dois técnicos,
ou se querem dois grupos, já são duas
tardes de trabalho para dois técnicos, ao
longo de quarenta semanas, já não querem
assim tanto o programa…
P4
Quando, na realidade, era extremamente
simples porque não faltam programas por
essa Europa fora que poderiam ser
aplicados à população portuguesa.
P9
Em termos organizativos, eles
organizaram-se de uma maneira que têm
de cumprir um programa de formação e
alternância com a escolaridade que os
miúdos não têm tempo para fazer nenhum
programa, quanto mais o acompanhamento
individual.
Portanto, há aqui um problema, em que os
técnicos nem têm tempo para intervir. A
não ser que intervenhamos aos sábados de
Anexo
427
manhã, porque não há uma hora e meia
durante a semana para fazer o programa.
P3
Mas o que é que eles fazem? É escola, é
formação?
P9
É formação e é escola. São aqueles
programas de formação profissionalizante,
com oficinas, ateliers, etc., e depois, a
escola.
OPJ
É a ideia de que a escolaridade e a
aprendizagem de uma formação resolve o
problema da reinserção social.
P9
Exactamente. Porque é um grande preditor.
De facto, a dificuldade é o insucesso
escolar. Mas podemos também dizer uma
coisa, que é um pouco irritante. Nos
centros educativos, se for Natal ou Páscoa
ou se vier alguma instituição de
solidariedade, todas as portas se abrem
para fazer rappel cá fora, a ceia, etc., para
isso já se param as aulas e pára-se tudo,
porque é festa! Mas, para o que seria de
rotina, que deveria fazer parte do pacote e
devia ser o ponto forte, eles não estão com
os miúdos uma vez por semana. Como é
que pode haver um acompanhamento?
Portanto, se não estão, como é que
esperam que haja uma intervenção eficaz?
P4
E o regime aberto foi completamente
pervertido, porque não existe tal como esta
desenhado na lei.
P9
Sim, de facto, não existe.
Só mais duas pequenas notas, se me
permitem. Um delas, que me choca
particularmente, a certa altura na lei vem
designado “perícia sobre a personalidade”.
Ora, tecnicamente, num indivíduo de 14
anos, não há personalidade, pelo que
deveria, antes de mais, mudar-se esta
formulação para uma “perícia psicológica”,
para “padrões de comportamento
desviante” ou algo do género, ou mesmo,
“avaliação psicológica”, mas não chamar
“perícia sobre a personalidade”.
P4
Isso foi uma colagem ao Processo Penal.
Já agora, uma vez que falámos de
programas educativos, uma outra
necessidade, ligada à regulamentação das
medidas não institucionais, era instituir
verdadeiros programas educativos
adaptados aos tipos de delinquência mais
frequentes para frequência na comunidade.
Não é fazer apenas programas de meras
competências pessoais e sociais como tem
sido feito. Aliás, esta medida, para mim de
forma extraordinária, tem sido muito
aplicada pelos tribunais e eu adorava saber
que tipos de programas é que foram
realmente executados.
428 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA
P9
Não queira saber! Podíamos fazer um
inquérito a todos os técnicos dos centros
educativos ou das equipas a perguntar o
que entendem por competências pessoais
e sociais. Bastava fazer isto. E depois
analisar os resultados…
P1
Eu sugeria que os programas dissessem à
frente “empírica e cientificamente
validados”. Porque, essa questão das
competências sociais pode ser uma
“chachada”. Há, de facto, programas que
estão empírica e cientificamente validados,
e aquilo resulta. Por isso, não temos de
inventar nada, temos apenas que adaptar.
É evidente que pode haver um ou outro
ajustamento, em termos culturais por
exemplo, mas a base, já lá está mais do
que documentada. Não é uma panaceia.
Tem literatura, efectivamente, que ajuda a
tornar as coisas credíveis.
P9
Há ainda a questão da duração das
medidas do acompanhamento educativo,
que depois não se coadunam com a
duração de alguns programas.
Andam, neste momento, a fazer uma coisa
híbrida que é seleccionar quais os
programas que implementam no Centro
Educativo e os que implementam em
regime externo em medidas não
institucionais. E, na minha opinião, estão a
escolher coisas que vão permitir que se
indique que o programa foi feito não sei
quantas vezes, mas em que o impacto vai
ser muito pouco ou nulo, porque estão a
reduzir e compactar demasiado esses
programas. Precisamente, porque também
não acreditam que sejam capazes de trazer
os menores no mesmo dia, na mesma hora
durante muito tempo.
Isto é muito complicado, porque, por
exemplo, no dos agressores domésticos,
abriu-se um sistema de rotação. Eles
podem entrar em várias fases. O programa
é contínuo, não pára. Ora, aqui é um pouco
complicado. Penso que é necessário algo
com princípio, meio e fim, sobretudo nestes
casos específicos. Por exemplo, nos
programas de educação rodoviária, etc.,
podem fazer-se esses programas
contínuos em que os miúdos vão entrando
e têm de cumprir um determinado número
de sessões. Agora, em casos específicos
de competências pessoais, como por
exemplo, nos agressores sexuais, não vejo
que isso se faça facilmente.
P4
Não, isso é mesmo um programa de
intervenção em Centro Educativo. Eu visitei
centros na Holanda especificamente
destinados a esta problemática. Não
recebem outro tipo de delinquência.
Relativamente às medidas de conteúdo
obrigacional não restaurativo, como a
medida de imposição de condutas e de
imposição de obrigações, era urgentíssimo,
de facto, rever a conceptualização destas
medidas que ficou muito mal resolvida na
lei. De facto, há, justificadamente, muitas
queixas a este respeito porque está mal
desenhado. Neste sentido, a nova lei belga
é, talvez, das leis europeias, a que melhor
resolve estas medidas de conteúdo
obrigacional não restaurativo. Porque
temos as medidas restaurativas de
reparação ao ofendido e de prestações à
comunidade, mas esta medida que é, aliás,
muito comum em todos os sistemas de
imposição de condutas ou de obrigações,
devia ser melhor desenhada. Há ali muitas
confusões. Aliás, a Dra. Eliana Gersão
publicou num livro do CEJ, um artigo onde
Anexo
429
adianta muitas propostas interessantes a
este respeito.
P9
E em relação àquele internamento aos fins-
de-semana?
P4
Seria uma coisa pensável e sem
problemas, tal como existe noutros
sistemas, até como medida, que é
inspirado na legislação alemã, funcionaria
se os centros educativos estivessem
adequadamente preparados para o fazer.
Não estando, é evidente que se torna
difícil.
P1
Mas é bom para desenvolver programas
não é? Já saberíamos que naqueles dias lá
estão.
P9
Exactamente.
P4
A outra questão que se tem levantado é
fácil de resolver. É claramente indicar na lei
que o internamento de fim-de-semana, que
é uma consequência do não cumprimento
de uma medida não institucional, não faz
cessar essa medida não institucional. É um
complemento em termos de advertência.
Agora, a verdade é que tenho muitas
reservas relativamente a manter o
internamento de fim-de-semana se os
centros, de facto, não se prepararem para
o efeito. Agora, não posso condenar a
medida como em tese de princípio, porque
ela funciona noutros sistemas.
P3
E há outra questão em debate, que é saber
se quando se considera que o
acompanhamento educativo não foi eficaz
e não há adesão, se se pode alterar para
uma medida mais gravosa como o
internamento.
Já não é hora para discutir o problema dos
direitos fundamentais, mas é verdade que
isto levanta problemas de garantias.
OPJ
Quero reiterar o meu agradecimento por
esse vosso tempo.