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ENTRE A LEI E A PRÁTICA Subsídios para uma reforma da Lei Tutelar Educativa Boaventura de Sousa Santos Director Científico Conceição Gomes (coord.) Paula Fernando Sílvia Portugal Equipa de investigação Carla Soares Catarina Trincão Fátima de Sousa João Aldeia José Reis 2010

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Contextos Internacionais, Normativos e Institucionais da Justiça de Crianças e Jovens

1

e

ENTRE A LEI E A PRÁTICA Subsídios para uma reforma da Lei Tutelar Educativa

Boaventura de Sousa Santos

Director Científico

Conceição Gomes (coord.)

Paula Fernando

Sílvia Portugal

Equipa de investigação

Carla Soares

Catarina Trincão

Fátima de Sousa

João Aldeia

José Reis

2010

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ÍNDICE

AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................... 9

INTRODUÇÃO GERAL ....................................................................................................................... 15

I. SOCIEDADE E DELINQUÊNCIA JUVENIL

1 A DELINQUÊNCIA DE CRIANÇAS E JOVENS: UM OLHAR SOCIOLÓGICO ....................................................... 27

Introdução ................................................................................................................................ 27

1.1 Exclusão social, insegurança e delinquência: relações complexas ......................................... 29

1.2 O conceito de delinquência juvenil ...................................................................................... 35

1.3 A importância dos media na construção social do fenómeno e das políticas ........................ 37

1.4 A delinquência juvenil na análise sociológica ....................................................................... 40

1.5 As políticas públicas: protecção vs judicialização .................................................................. 47

2 AS CRIANÇAS E JOVENS DELINQUENTES NOS MEDIA ............................................................................. 55

Introdução ................................................................................................................................ 55

2.1 Discursos mediáticos sobre as crianças e jovens .................................................................. 57

2.2 O jovem agressor nas notícias em 2009: temas principais e tipos de discurso ...................... 60

2.3 Caracterizações do jovem agressor ...................................................................................... 69

II. INSTRUMENTOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS E MODELOS DE INTERVENÇÃO

1 AS CRIANÇAS E JOVENS NO DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................... 77

Introdução ................................................................................................................................ 77

1.1 A acção da ONU e do direito internacional – instrumentos relevantes em matéria de justiça

juvenil ..................................................................................................................................... 79

1.2 O direito europeu ................................................................................................................ 85

1.3 A acção da União Europeia .................................................................................................. 90

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2 OS MODELOS DE INTERVENÇÃO .................................................................................................. 101

Introdução .............................................................................................................................. 101

2.1 Os modelos de protecção, de justiça e educativo ............................................................... 101

2.2 A caminho de um modelo comum europeu ....................................................................... 105

III. A JUSTIÇA PENAL DE CRIANÇAS E JOVENS NO CONTEXTO EUROPEU: O CASO DE

FRANÇA E DE ESPANHA

1 O CASO DE FRANÇA .................................................................................................................. 115

Introdução .............................................................................................................................. 115

1.1. As principais características do direito e da justiça de crianças e jovens em França ........... 117

A justiça especializada e a tramitação do processo .............................................................. 118

O processo de apresentação imediata ................................................................................. 122

Medidas e sanções .............................................................................................................. 123

1.2 A reforma da justiça penal de crianças e jovens em França ................................................ 132

A proposta da Comissão Varinard ........................................................................................ 135

1.3. Perspectivas sobre o modelo em discussão ....................................................................... 136

2 O CASO DE ESPANHA ................................................................................................................. 147

Introdução .............................................................................................................................. 147

2.1 A responsabilidade penal das crianças e jovens.................................................................. 147

As medidas .......................................................................................................................... 151

2.2 Perspectivas sobre o debate da justiça penal de crianças e jovens ..................................... 158

2.3 O modelo catalão de justiça juvenil .................................................................................... 164

IV. ENTRE A LEI E A PRÁTICA: A JUSTIÇA TUTELAR EDUCATIVA EM PORTUGAL

1. HÁ FUNDAMENTOS PARA UMA REFORMA ESTRUTURAL? ................................................................. 171

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Introdução .............................................................................................................................. 171

1.1.O (não) conhecimento da dimensão do fenómeno da delinquência juvenil ........................ 174

1.2 Reflexões sobre o modelo de intervenção da Lei Tutelar Educativa .................................... 180

2. BLOQUEIOS NORMATIVOS ......................................................................................................... 187

Introdução .............................................................................................................................. 187

2.1. A (não) uniformização de jurisprudência ........................................................................... 187

2.2 Aperfeiçoamentos legais .................................................................................................... 198

3. DIVERSÃO E MEDIAÇÃO: DOIS INSTITUTOS POR CUMPRIR? ............................................................... 211

Introdução .............................................................................................................................. 211

3.1 A suspensão do processo ................................................................................................... 211

3.2 Mediação........................................................................................................................... 213

4. O PAPEL DOS AGENTES DO SISTEMA JUDICIAL ................................................................................. 221

Introdução .............................................................................................................................. 221

4.1 A Direcção-Geral de Reinserção Social: um papel fundamental na Lei Tutelar Educativa .... 222

Da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores ao Instituto de Reinserção Social ..... 222

A des(res)estruturação das equipas ..................................................................................... 236

Prevenção da criminalidade ................................................................................................. 241

A fase pré-sentencial ........................................................................................................... 243

Da elaboração do relatório social à aplicação da medida ..................................................... 248

4.2 O Ministério Público .......................................................................................................... 252

4.3 O Defensor ........................................................................................................................ 254

5. RISCO E DELINQUÊNCIA: ENTRE A PROTECÇÃO E A LEI TUTELAR EDUCATIVA ......................................... 259

Introdução .............................................................................................................................. 259

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5.1 A articulação processual entre protecção e tutelar educativo ............................................ 260

5.2 A falta de instituições protectoras de contenção................................................................ 263

5.3 O tempo da resposta e a “falha” da protecção ................................................................... 267

5.4 A execução das medidas e a procura de outras respostas .................................................. 269

5.5 A duração das medidas ...................................................................................................... 273

6. E DEPOIS DA EXECUÇÃO DA MEDIDA TUTELAR DE INTERNAMENTO? ................................................... 277

Introdução .............................................................................................................................. 277

6.1 A necessária transição ....................................................................................................... 277

V. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

1 CONCLUSÕES ........................................................................................................................... 291

2 RECOMENDAÇÕES .................................................................................................................... 313

2.1 Prevenção: fundamento último da intervenção tutelar educativa ...................................... 315

Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil.................................................... 316

2.2 Mediação........................................................................................................................... 323

A mediação no inquérito tutelar educativo .......................................................................... 325

A mediação para aplicação de medida tutelar...................................................................... 326

A mediação na execução da medida tutelar educativa ......................................................... 326

2.3 Alterações legais ................................................................................................................ 327

Da (ir)relevância da denúncia por parte do ofendido ........................................................... 328

Medida de internamento em regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-semana

..................................................................................................................................... 329

Iniciativa da apresentação do plano de conduta para aplicação da suspensão do processo .. 330

Manutenção da detenção em flagrante delito no processo tutelar educativo ...................... 332

Outras questões legais......................................................................................................... 333

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2.4 Linguagem jurídica ............................................................................................................. 334

2.5 Desempenho funcional dos profissionais ........................................................................... 337

2.6 Execução da medida de internamento em centro educativo .............................................. 342

2.7 Acompanhamento pós-institucionalização ......................................................................... 344

2.8 O combate ao desperdício de conhecimento ..................................................................... 346

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................................... 351

PAINEL DE DISCUSSÃO .................................................................................................................. 365

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AGRADECIMENTOS

O presente estudo, realizado pelo Observatório Permanente da Justiça

Portuguesa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, foi

solicitado pela Direcção-Geral de Reinserção Social. Um primeiro

agradecimento é, então, devido à Direcção-Geral de Reinserção Social, na

pessoa da sua Directora, Ex.ma Senhora Dra. Leonor Furtado, pela confiança

depositada no Observatório Permanente da Justiça Portuguesa para a sua

realização. Esta é uma temática em que é ainda escasso o conhecimento

produzido, daí ser ainda mais relevante esta solicitação e o interesse

manifestado por aquela Direcção-Geral. A igual escassez e fraca fiabilidade

dos indicadores estatísticos não nos permitiu uma reflexão cabal sobre a

temática. Era nossa intenção fazer essa discussão neste relatório. Contudo, a

impossibilidade de dispormos de dados validados das estatísticas oficiais da

justiça levou-nos a decidir terminar o relatório sem essa informação.

Esperamos, contudo, logo que a Direcção-Geral da Política de Justiça termine

o processo de validação, fazê-lo em complemento a este relatório,

agradecendo, desde já, toda a colaboração prestada.

Para a realização deste estudo e do respectivo relatório, vários

agradecimentos são, igualmente, devidos.

Aos senhores magistrados e demais profissionais que manifestaram a

sua disponibilidade para participarem no painel de discussão que promovemos

e para, em entrevistas, nos darem o seu testemunho, queremos deixar uma

palavra de agradecimento. Assim, pela disponibilidade para participarem no

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10 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

painel de discussão, agradecemos de forma reconhecida aos senhores drs.

António Duarte-Fonseca, Armando Leandro, Daniel Rijo, Francisco Narciso,

Joana Marques Vidal, Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Pedro

Branquinho, Rui Abrunhosa Gonçalves e Tiago Neves.

Agradecemos, também, aos senhores magistrados que, nas comarcas

nas quais incidiu o nosso estudo, nos receberam: Drs. Antónia Soares, Carlos

Azevedo, Fernando de Jesus Monteiro, Henrique Novo, Isabel Palma Calado,

Joaquim Manuel da Silva, Judite Resende, Mafalda Faria Pestana e Teresa

Carla Faria de Brito

Cabe-nos também agradecer a disponibilidade e ajuda prestadas pelos

senhores funcionários judiciais Adélia Macela, António Tavares, Celeste Nunes,

Cristina Godinho, Elisabete Fortes, Elisabete Martins, Fátima Pequito, Isabel

Rodrigues, João Lopes, José Dinis, José Rigal, Luciana Peixoto, Lucília Matos,

Manuela Jerónimo, Maria João Gonçalves, Miguel Candeias, Patrícia Machado,

Paula Parente, Paulo Santos e Vítor Costa.

Destacamos, ainda, a amabilidade e os esclarecimentos prestados pelos

profissionais da Direcção-Geral de Reinserção Social que contactámos para a

elaboração do presente estudo, Dr. Amadeu Baptista, Ana Lavado, Maria Irene

Vidal e Nuno Rodrigues.

Uma reconhecida palavra de agradecimento é devida aos

representantes de órgãos de polícia criminal entrevistados: Comandante

Adérito Marcelino, Intendente Gomes do Vale, Intendente Hugo Palma,

Comissário Sérgio Loureiro, Capitão Pedro Gomes, Tenente Vicente e

Aspirante Alves.

Aos Senhores Drs. José Mouraz Lopes, Paulo Guerra e Rui do Carmo

queremos deixar aqui o nosso grato reconhecimento pela disponibilidade em

discutir connosco esta temática. Essa discussão foi essencial para as

recomendações com que finalizamos este trabalho.

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Além da equipa de investigação, este trabalho contou, em vários

momentos, com o apoio de colegas do Observatório Permanente da Justiça. O

nosso muito obrigado aos Drs. Diana Fernandes, Marta Cancela e Tiago

Ribeiro e, em especial, pelo seu apoio na conclusão deste relatório, às Dras.

Élida Santos e Marina Henriques.

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INTRODUÇÃO GERAL

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INTRODUÇÃO GERAL

O tema da delinquência juvenil tem vindo a ocupar, no contexto europeu,

um espaço crescente no debate público e na agenda política de reforma. A

discussão espraia-se por vários sub-campos fazendo emergir a complexidade

do tema. Cruzam-se os olhares da sociologia, da psicologia, do direito e da

comunicação social sobre a criança e o jovem que praticou um facto que à, luz

da lei, é considerado crime.

Nesse cruzamento, sobressaem duas perspectivas principais: de um

lado, aqueles que procuram alargar o campo da multidisciplinaridade,

mostrando que é nessa intersecção alargada que tem que ser procurada a

resposta; do outro, aqueles que, não negando outras abordagens, tendem a

valorizar a representação social dos jovens como criminosos e desviantes e as

vítimas como vulneráveis.

Para os primeiros, um dos principais pontos de convergência reside na

busca de mais conhecimento sobre o fenómeno da delinquência de crianças e

jovens, mostrando que a acção do Estado não se deve concentrar na vertente

repressiva, mas sim na educação. Salientam, por um lado, as falácias de

categorizações, como “jovens delinquentes”, “crime”, mostrando que a

abrangência das categorias exige mais precisão (por exemplo, importa

distinguir os delitos “bagatelas”, que não buscam ganhos materiais e são fruto

da rebelião e da afirmação identitária, daqueles que, podendo acarretar

violência instrumental, visam o ganho material - roubos, furtos – e/ou a

violência directa contra as pessoas); e, por outro, a estratificação social do

desvio e do crime, em especial, daquele que é efectivamente punido pelas

instâncias judiciais.

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16 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Se é certo que a pobreza e a exclusão social não podem ser vistas, de

per se, como causas do aumento da criminalidade e da violência, aquelas

podem influenciar a perda da eficácia dos mecanismos de regulação social,

propiciando o surgimento de certas formas de comportamentos desviantes.

Acentua-se, por isso, a importância da acção estrutural e integrada que possa

actuar sobre os factores contextuais da vivência dessas crianças e jovens,

sejam eles sócio-culturais ou identitários, destacando a forte articulação entre

exclusão social, risco e comportamentos desviantes e delinquentes.

Do outro lado, destacam-se aqueles que enfatizam o papel do direito e

das instâncias de controlo social na moldagem de comportamentos.

Prevalecem as ideias de responsabilização individual, da culpa, de que a

delinquência de crianças e jovens deve ser tratada segundo uma lógica de

“tolerância zero”, em que nenhum acto delinquente pode ficar sem resposta. O

discurso valoriza as vítimas dos comportamentos delinquentes, nele

incorporando a vitimização e a necessidade de protecção da sociedade em

geral. Este é o campo do designado modelo judiciário que ganha terreno com a

revalorização do papel dos magistrados e das polícias em detrimento dos

técnicos (sociólogos, psicólogos e assistentes sociais). Esta “conversão de

narrativas” traz consigo um discurso que defende mais criminalização de

condutas, abaixamento da idade da intervenção repressiva do Estado, mais, e

por mais tempo, encarceramento de jovens em instituições próprias.

A crise económica e, nalguns países, a mudança ideológica do papel do

Estado, levando a que a sua actuação seja menos relevante nos factores

estruturais do risco e da insegurança e mais incidente no quadro do seu papel

repressivo e de controlo social, privilegiando os factores da insegurança, do

medo e da protecção física dos cidadãos, contribuíram decisivamente para a

mudança do paradigma de intervenção que prevalecia até há algum tempo,

sobretudo, nos países centrais em que o Estado de bem-estar foi mais forte.

A crescente mediatização dos fenómenos criminais, em especial da

criminalidade violenta, e os olhares, em regra simplistas, que os meios de

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Introdução Geral

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comunicação social veiculam sobre o fenómeno da delinquência juvenil

condicionam as representações sociais sobre ele, fomentando o sentimento de

insegurança das populações, e, com ele, as opiniões positivas na defesa de

políticas que mais acentuam a via repressiva.

Entre nós, assume relevância uma terceira via que, valorizando os

argumentos dos que defendem um olhar e uma intervenção estrutural e

integrada, que abarque os diferentes factores contextuais da vivência da

criança e do jovem e a valorização do papel da vítima, situam no âmbito da

acção das instâncias judiciais toda a intervenção, revalorizando o papel central

do Ministério Público, ainda que em articulação com instâncias extra-judiciais,

em especial, com recurso à mediação.

Reconhecendo que a lei, só por si, não resolve todos os problemas e,

muitas vezes, não é no quadro legal que se situam os principais problemas e

bloqueios à concretização dos objectivos das políticas, esta perspectiva apela a

reformas mais concertadas, a uma intervenção mais célere e mais eficiente de

instituições conexas ao sistema judiciário, como as instâncias de segurança

social e de reinserção social, e a uma maior articulação com a acção de

promoção e protecção.

Como melhor veremos ao longo do relatório, a construção e o sentido

dos processos de reforma depende muito dos diagnósticos e das opiniões que

mais o influenciam. As reformas devem procurar melhor responder aos

problemas e desafios sociais encontrando para eles a resposta mais adequada

que, no respeito pelos direitos e garantias consagradas, promova a sua

resolução estrutural. Para tal, é fundamental que o processo de reforma seja o

mais informado possível e permita um debate alargado de modo a que as

opções políticas possam ter em conta as diferentes vertentes e perspectivas da

problemática a que se dirigem. O estudo desenvolvido pelo Observatório

Permanente da Justiça, cujos resultados principais se apresentam neste

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18 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

relatório, tem justamente como objectivo central contribuir para o processo de

reforma em curso.

Para a realização do trabalho de campo, revelou-se adequada a

adopção de uma estratégia de investigação que permitisse recolher informação

cruzando diferentes perspectivas dos principais actores da aplicação da Lei

Tutelar Educativa.

De modo a abarcar tanto as recentes alterações na organização

judiciária, como a diversidade da realidade sociológica, o trabalho de campo

privilegiou, na selecção dos tribunais e serviços auxiliares da justiça onde

decorreu o estudo empírico, as comarcas piloto Baixo Vouga e Grande Lisboa-

Nordeste.

Aplicou-se um plano de pesquisa com recurso a duas técnicas

metodológicas complementares: a realização de entrevistas semi-estruturadas

aos profissionais e a condução de um painel de discussão. O recurso à

metodologia da entrevista semi-estruturada junto dos juízes, magistrados do

Ministério Público, funcionários de justiça e técnicos de reinserção social

procurou obter testemunhos de combinação entre as suas vivências

quotidianas e as perspectivas que propõem, tendo em vista o desenvolvimento

de condições de visibilidade sociológica sobre a aplicação da Lei Tutelar

Educativa.

A realização de um painel contou com a presença e participação de

juízes, magistrados do Ministério Público, psicólogos, bem como de

académicos especialistas em delinquência juvenil, privilegiando uma

abordagem multidisciplinar e colocando-os em confronto orientado face às

problemáticas levantadas no âmbito da investigação em curso.

Começamos por evidenciar, no ponto I.1, intitulado A delinquência de

crianças e jovens um olhar sociológico, os vários contextos do fenómeno,

cientes, por um lado, de que as reformas jurídicas serão tão mais adequadas

quanto mais se conhecer o fenómeno sociológico a que se dirigem e, por outro,

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Introdução Geral

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que a eficácia das respostas, quer de natureza repressiva, quer preventiva

depende muito da forma como agem e se articulam os vários contextos em que

a criança e o jovem se relacionam.

A relação complexa entre meios de comunicação social e justiça tem

despertado estudos e interesse crescentes. Os media, ao seleccionarem e ao

hierarquizarem os acontecimentos que serão notícia, ao convertê-los ou não

em temas de debate, influenciam, decisivamente, não só as percepções

sociais, mas também a agenda de reforma. No ponto I.2, As crianças e jovens

delinquentes nos media, fazemos uma análise das noticias sobre o tema

publicadas nos principais jornais nacionais durante o ano de 2009.

Ao convocarmos, nos pontos II e III, a experiência comparada, casos de

Espanha e de França, e as recomendações internacionais mais significativas

nesta matéria, Instrumentos normativos internacionais normativos e modelos

de intervenção, pretendemos situar o debate num âmbito mais vasto,

mostrando, não só o sentido de outras reformas, mas também, alguns aspectos

do debate que acerca delas se fez nos respectivos países. Se é certo que a

importação de soluções obriga a um processo de adaptação a um contexto

sócio-cultural diferenciado, elas podem, contudo, ajudar na busca de soluções,

quer evidenciado os aspectos positivos, quer os negativos. A escolha daqueles

países deveu-se ao facto de, em ambos, estarem em discussão processos de

reforma nesta matéria.

No ponto IV deste relatório fazemos uma incursão pela aplicação da Lei

Tutelar Educativa. O nosso objectivo não é a avaliação da sua aplicação, que

estava fora do objecto deste trabalho e que também não seria possível no

tempo de que dispusemos para o fazer, mas, tão só, traçar as linhas essenciais

com que se debate essa aplicação, numa espécie de follow-up, passados que

foram cerca de seis anos sobre essa primeira avaliação realizada pelo OPJ e

cujos resultados principais constam do relatório “Os Caminhos Difíceis da

“Nova” Justiça Tutelar Educativa - Uma avaliação de dois anos de aplicação da

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20 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Lei Tutelar Educativa”, de 2004, onde apresentámos um conjunto vasto de

recomendações que, como se verá ao longo deste relatório, se mantêm, na sua

grande maioria, com grande actualidade.

No ponto IV.1, Há fundamentos para uma reforma estrutural?,

procuramos debater qual o lastro em que se poderá fundamentar um processo

de reforma sobre esta matéria e qual deveria ser o seu alcance e sentido.

No ponto IV.2, damos conta dos principais problemas normativos que o

nosso trabalho permitiu identificar. Alguns deles já identificados no trabalho

anterior; outros, emergindo agora com mais destaque.

A Lei Tutelar Educativa prevê um conjunto de respostas processuais

diferenciadas, onde se incluem respostas de diversão, através do instituto da

suspensão do processo e a via da mediação, embora esta mais timidamente.

Como fazer funcionar melhor estas respostas alternativas de modo a abarcar

as situações diferenciadas que constituem a procura judicial nesta matéria? É

este o tema que introduzimos no ponto IV.3 Diversão e mediação: dois

institutos por cumprir?

No ponto IV.4, O papel dos agentes do sistema judicial, damos conta do

papel funcional dos vários intervenientes do sistema na aplicação da lei, de

problemas que enfrentam e de como esse papel poderia ser optimizado. Pela

importância central na aplicação deste lei, damos especial destaque à

Direcção-Geral de Reinserção Social.

O ponto IV.5, Risco e crime: entre a protecção e a Lei Tutelar Educativa,

dá voz às posições que mostram como o risco e o crime não podem, talvez na

maioria dos casos, ser tratados separadamente. O mote é a intervenção

alargada, convocando saberes diferenciados de forma a minimizar o risco e a

insegurança e exclusão sociais, contextos altamente propícios ao

desenvolvimento do desvio e da delinquência.

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Introdução Geral

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Neste caminho também se situa o ponto IV.6, E depois da execução da

medida tutelar educativa?, mostrando que a actuação sobre os factores de

risco e exclusão, tanto podem e devem ocorrer em momento anterior (fase

preventiva essencial da delinquência) à possibilidade de aplicação da lei tutelar

educativa, durante a execução de uma medida, ou posterior à sua execução. A

consolidação da intervenção e dos eventuais efeitos positivos dela decorrentes

exigem um maior suporte para lá do fim da medida, em especial, quando se

tratar de uma medida institucional.

Terminamos este relatório com os destaques, que integram as

conclusões finais, e, à luz do trabalho realizado, com um conjunto de

recomendações. Esperamos com elas e, em geral, com o trabalho produzido,

contribuir para o debate sobre o processo de reforma em curso.

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22 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

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1

I. SOCIEDADE E DELINQUÊNCIA JUVENIL

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A DELINQUÊNCIA DE CRIANÇAS E JOVENS:

UM OLHAR SOCIOLÓGICO

1

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1 A DELINQUÊNCIA DE CRIANÇAS E JOVENS: UM OLHAR SOCIOLÓGICO

Introdução

Como referimos na introdução geral, em qualquer sociedade as

respostas de recorte mais jurídico e judiciário serão tão mais adequadas,

quanto melhor se conhecer e compreender o fenómeno sociológico a que se

dirigem. A eficácia das respostas quer de natureza preventiva, quer repressiva

à delinquência de crianças e jovens depende muito da forma como agem e se

articulam os vários contextos em que o jovem se relaciona: a família, a

comunidade, a escola, as instituições judiciárias.

Maria João Leote de Carvalho (2009), invocando o conceito de

delinquência de exclusão de Wacquant (2007), chama a atenção para a

necessidade das “não conformidades” dos jovens serem pensadas a partir da

sua “articulação com as lógicas de exclusão e de segregação em relação com

os espaços onde tomam corpo”. Entre nós, é necessário aprofundar este

conhecimento com estudos sociológicos sobre esses outros contextos para

além dos institucionais. A importância de se conhecer a verdadeira dimensão

da criminalidade de crianças e jovens, caracterizando as cifras ocultas, as

vítimas, os agressores, os seus vários contextos, de origem e de acção, os

tipos de crime, entre outros, é fundamental para o desenvolvimento de políticas

que mais assertivamente actuem sobre o fenómeno da criminalidade juvenil.

Ao lançar um olhar sobre o contexto social deste fenómeno em Portugal,

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28 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

procuramos, também, alertar para a necessidade crucial de ir para além dos

contextos institucionais.

Tal não significa que a “investigação empírica” tenha estado alheada

face a esta temática. Na verdade, desde a década de 90 que o tema da

delinquência juvenil (dos comportamentos desviantes dos jovens em geral) tem

ganho maior visibilidade em Portugal (Carvalho, 2003, 2005; Seabra, 2005;

Azevedo, 2007). Contudo, os trabalhos que reflectem sobre este fenómeno

foram, por vezes, permeáveis aos “pânicos morais” veiculados pelos media,

tratando a questão do “desvio juvenil”, muitas vezes, sem os devidos cuidados

metodológicos que permitiriam desfazer muitas das “ideias feitas”

empiricamente inverificáveis construídas em torno dele (Pais, 1996: 220;

Lagrange, 2002; Robert, 2002). Entre estas “pré-noções”, contamos as

retóricas que associam a “juventude” à irresponsabilidade ou à “amoralidade”,

ou as que afirmam que as classes populares apresentam uma maior

predisposição para os comportamentos desviantes (Pais, 1996; Lagrange,

2002).

Procuramos aqui analisar alguns destes processos de construção social

da delinquência juvenil, discutindo o modo como as suas representações

sociais, mediáticas e científicas se articulam com os amplos processos de

transformação social e económica das sociedades contemporâneas. Qualquer

modelo de intervenção sobre esta temática não pode ignorar, por um lado, os

contextos sociais e económicos nos quais se inscrevem a delinquência e a

criminalidade de crianças e jovens e, por outro lado, o modo como as

representações sociais acerca destes fenómenos moldam as respostas

societais aos problemas.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

29

1.1 Exclusão social, insegurança e delinquência: relações complexas

A literatura tem mostrado como, nas últimas décadas, o sistema judicial

e a polícia têm vindo a endurecer o modo como lidam com os “jovens

delinquentes” (Mclaughlin e Muncie, 1994; Lagrange, 2002; Carvalho, 2003,

2005; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). A ideia veiculada é que existe um

aumento, quer da repressão policial (associada a uma acção discriminatória,

particularmente dirigida aos indivíduos pertencentes a minorias etnorraciais que

habitam nas periferias urbanas), quer do número de casos de delinquência

juvenil que chegam ao sistema judicial. Alguns daqueles estudos avançam a

hipótese desse aumento estar mais relacionado com a alteração de

representações ao nível da gravidade dos comportamentos desviantes dos

jovens do que com o aumento real da criminalidade juvenil, mostrando como

um conjunto de retóricas responsabilizam a delinquência juvenil por mais

problemas do que aqueles pelos quais os jovens são realmente responsáveis.

Entre os delitos, importa distinguir entre aqueles que não buscam

ganhos materiais e são fruto da frustração, da rebelião e da afirmação

identitária – desrespeito pela autoridade, lutas entre jovens, conflitos com as

autoridades, violência em geral sem destinatário, etc. – e aqueles que,

podendo acarretar violência instrumental, visam primeiramente o ganho

material – furtos e roubos (Lagrange, 2002). Os sistemas de controlo social têm

que saber encontrar respostas, devidamente articuladas, para uns e para

outros.

Também entre nós diversos estudos mostram que o sentimento de

insegurança ligado à delinquência juvenil urbana tem vindo a crescer (Lourenço

e Lisboa, 1992; Pais, 1996; Lourenço, Lisboa e Frias, 1998; Lagrange, 2002;

Carvalho, 2003, 2005; Frias, 2004; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). Contudo,

não se conhecendo a criminalidade real, mas apenas a criminalidade que é

registada pelas autoridades judiciárias (com discrepâncias conhecidas

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30 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

consoante as fontes), não é possível concluir nesse sentido. Reportando-se os

dados não ao total de crimes, mas sim à acção policial, eles podem resultar: (1)

da inflexão nas orientações da acção policial; (2) da alteração das

representações acerca da delinquência juvenil, levando a mais denúncias; (3)

da modificação nas orientações político-legais, que deixam de colocar a tónica

na protecção do jovem.

A criminalidade e a insegurança são fenómenos complexos, podendo a

sua percepção ser parcialmente explicável pela instrumentalização do debate

público levada a cabo por alguns dos actores envolvidos, exigindo-se a melhor

compreensão das dinâmicas de mudança social que estão correlacionadas

com a percepção do seu aumento. Entre estas mudanças, são de realçar a

crise económica, o aumento do desemprego estrutural, a emergência de

diferentes situações de desigualdade, pobreza e exclusão, a crescente

urbanização e a subsequente urbanização da pobreza (Lourenço, 1998;

Seabra, 2005).

Nas últimas décadas, a maioria dos grupos sociais têm vindo a perder

recursos materiais e/ou simbólicos, sendo-lhes mais difícil lidar com a

precariedade e insegurança(s) que crescentemente os atingem, o que levou ao

alargamento das desigualdades e exclusão social. Só a(s) elite(s) e alguns

profissionais altamente qualificados, graças à sua maior disponibilidade de

recursos, se encontram mais protegidos (Young, 2007; Bauman, 2009a,

2009b). A expansão da pobreza, da precariedade e da vulnerabilidade faz com

que a sensação de medo e de insegurança se expanda pela estrutura social.

A crise económica contribui, ainda, para o aumento da sensação de

frustração de determinados indivíduos – em especial dos jovens – que, em

consequência do desemprego e subemprego por ela provocados, vêem o

acesso ao consumo de certos produtos negados ao mesmo tempo que a sua

aquisição frenética continua a ser valorizada e incentivada.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

31

Simultaneamente, a crescente urbanização levou à progressiva diluição

de determinadas formas de solidariedade. Pobres e desempregados, os mais

frágeis habitantes das cidades, foram “relocalizados” em bairros, também eles

“desfavorecidos”, onde o simples facto de neles residir constitui já uma forma

de estigmatização (Paugam, 2003; Castel, 2008). A pobreza e a exclusão, não

contribuindo, causalmente para o aumento da criminalidade e da violência,

podem influenciar a perda de eficácia dos mecanismos de regulação social,

propiciando o surgimento de certas formas de comportamentos desviantes.

Contudo, se aqueles factores podem “incentivar” parcialmente alguns

comportamentos delinquentes, alguns estudos chamam a atenção para o facto

de os indivíduos que sofrem aquelas exclusões não serem os “grandes

agressores” das sociedades, mas sim os seus elementos mais vulneráveis,

como revela a maior taxa de vitimização entre os pobres (Lourenço, 1998;

Seabra, 2005).

A crise económica e a mudança ideológica do papel do Estado na

sociedade comprometeram a capacidade do Estado na promoção do bem-estar

e protecção sociais e, consequentemente, de actuar sobre os factores

estruturais da insegurança, concentrando-se na promessa de protecção física

dos cidadãos com recurso à repressão. A intervenção do Estado passa, assim,

a ocorrer no campo das sensações de insegurança física sentidas pelos

indivíduos, que ele procura activamente aumentar (Bauman, 2009a:100).

Num contexto de debilidade do Estado-Providência, a incapacidade

estatal de lidar com a heterogeneidade tende a remeter para a definição dos

grupos excluídos como “classes perigosas” e para aumentar a criminalização

dos actos, tornando-os “bodes expiatórios” para todas as sensações de

insegurança sentidas. Por esta via, o Estado produz analiticamente uma

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32 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

underclass1, como um sujeito corpóreo homogéneo que permite focalizar as

sensações de receio, sendo responsabilizada por muitos mais problemas

sociais do que aqueles pelos quais é realmente responsável (Young, 2007;

Castel, 2008; Bauman, 2009a, 2009b).

Pela dupla via da exclusão e criminalização, a underclass transforma-se

no alvo da atenção mediática, passa a ser estigmatizada e as contradições

sistémicas tendem a ser ignoradas (Wacquant, 2000; Young, 2007; Castel,

2008; Bauman, 2009a, 2009b). Para além disso, associar ideologicamente a

pobreza à criminalidade justifica o fim do Estado de bem-estar, na medida em

que elimina quaisquer obrigações colectivas para com os pobres, transitando-

se, deste modo, de um regime social assente na protecção das fragilidades

destes sujeitos para outro, baseado na protecção dos não-pobres que são

postos em risco pelos pobres (Castel, 2008; Bauman, 2009a: 82 e ss.).

Assim, ao falarmos da sensação de insegurança associada ao crime,

deparamo-nos com um primeiro problema crucial: a produção de

“conhecimento” sobre o tema, quer falemos das retóricas políticas, quer das

mediáticas, quer, ainda, do discurso dito “científico” (Robert, 2002). Muitos dos

trabalhos académicos, políticos e jornalísticos produzidos sobre a temática em

vez de a “medir”, partem antes do princípio de que a sua posição apriorística é

a correcta e desenvolvem toda a investigação a partir deste ponto inicial,

potencialmente enviesado.

Em Portugal, as preocupações e discussões relativas à criminalidade,

violência e insegurança obedecem, em geral, à mesma lógica que no resto da

Europa, assentando em dados estatísticos discutíveis e que não permitem

1 Onde se inserem os indivíduos mais excluídos dos benefícios do actual modelo societal,

incluindo os jovens provenientes dos grupos localizados na base da estrutura social.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

33

conhecer a sua real dimensão2. Esta circunstância preocupa alguns autores

que admitem que o poder político e os media empolam ideologicamente a

sensação de insegurança e contestam a definição de políticas e medidas com

base nesse empolamento (Lourenço, Lisboa e Frias, 1998; Frias, 2004).

Contudo, ainda que tal se verifique, por parte de alguns actores sociais, esse

empolamento não ocorre num “vazio”, mas parte de algo que já existe na

sociedade, tornando-o em assunto central do debate público. A sensação de

insegurança e o debate em torno dela funcionam, assim, em espiral, auto-

influenciando-se e sobrevalorizando a questão (Robert, 2002; Azevedo, 2007).

A construção social do sentimento de insegurança é, assim, influenciada

por factores contextuais, sócio-culturais e identitários, dos quais se destaca (1)

a relação dos indivíduos com as autoridades (polícia e tribunais), (2) as

características sócio-culturais dos actores que se sentem mais inseguros, e (3)

a relação dos sujeitos com o «outro», particularmente, com as minorias

etnorraciais ou imigrantes (Frias, 2004: 3-4). Não são obrigatoriamente os

habitantes dos bairros onde há mais participação de crimes às polícias que se

sentem mais inseguros. Adicionalmente, não é a frequência da criminalidade,

mas a sua gravidade percepcionada (por exemplo, homicídios) que causa a

sensação de insegurança. Assim, a título de exemplo, o tráfico de droga surge

muito associado à insegurança, não tanto pela sua frequência, mas por ser

negativamente representado pelos actores, por ser percepcionado como

causador de violência (Frias, 2004: 5). Além disso os crimes representados

como mais negativos (homicídios, tráfico de droga, etc.) tendem a chegar ao

conhecimento dos sujeitos através dos media, enquanto aqueles que são

2 A informação estatística oficial expressa não a actividade delinquente, mas a taxa de

actividade policial, que é variável segundo as denúncias efectuadas e as prioridades políticas momentâneas conferidas às polícias (Dubet, 1991; Seabra, 2005). Adicionalmente, as campanhas de sensibilização respeitantes a certas formas de criminalidade, periodicamente levadas a cabo, podem contribuir para um aumento da taxa de denúncias referentes a alguns tipos de crimes, fruto de uma maior acuidade social a esse respeito, sem que, no entanto, aqueles tenham aumentado (Seabra, 2005).

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34 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

considerados “menos negativos” (furtos, etc.) são conhecidos através de outros

actores (amigos, vizinhos, etc.).

A percepção social de insegurança é multifactorial, não provindo só do

crime, se bem que se projecte sobre ele3. O sentimento de insegurança, além

da existência da criminalidade e do seu aumento, decorre, em boa parte, de um

“processo de selecção social do crime como objecto de inquietação, e da sua

construção cultural como risco” (Roché apud Frias, 2004: 2)4.

Para além dos factores acima referidos, o sentimento de insegurança é

também influenciado por características como o sexo, a idade, o nível sócio-

económico, o estado civil, o facto de se viver ou não sozinho, ou de se ter ou

não filhos. Desta forma, os idosos, os sujeitos profissionalmente inactivos, as

mulheres ou os indivíduos com filhos tendem a sentir-se mais inseguros. Em

linhas gerais, a base da estrutura sócio-económica sente-se mais insegura que

as classes médias e superiores quanto ao medo do crime, enquanto o topo da

estrutura se sente-se mais preocupada com a ordem social (relativo à moral, às

normas e valores) que a base. Ou seja, à medida que aumenta o nível de

instrução e o estrato social a que os indivíduos pertencem, a percepção do

problema torna-se mais complexa e este passa a ser socialmente

contextualizado (Lourenço e Lisboa, 1992; Robert, 2002; Frias, 2004). Assim é

compreensível que a reivindicação de políticas securitárias não venha

essencialmente dos sujeitos que estão mais expostos ao crime – provenientes

3 Importa distinguir duas dimensões da insegurança ligada à criminalidade. Por um lado, o

medo do crime e da agressão física pessoal ou de familiares – dimensão individual – que se consubstancia em comportamentos pessoais de protecção da habitação ou na tomada de medidas cautelares face à possibilidade de vitimização (p.ex., não sair de casa à noite). Por outro lado, a preocupação pela ordem social – dimensão social – que se manifesta numa apreensão generalizada com a sociedade, com os seus valores e normas, que pressupõe a percepção de que a criminalidade vai aumentar e a exigência de medidas repressivas face a ela. Medo e preocupação não se auto-implicam, o que desfaz a ideia de que existe uma sensação de insegurança homogénea que percorre toda a sociedade (Lourenço e Lisboa, 1992; Lourenço, Lisboa e Frias, 1998; Robert, 2002; Frias, 2004).

4 Cf. também Lourenço e Lisboa (1992).

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Sociedade e Delinquência Juvenil

35

das classes populares com menos recursos – mas daqueles que,

tradicionalmente, são mais sensíveis a este tipo de problemas sociais (Robert,

2002). Por exemplo, no estudo realizado por Lourenço, Lisboa e Frias, só 29%

dos inquiridos rejeitavam o alargamento da idade de detenção para os 12 anos

(Frias, 2004: 11).

1.2 O conceito de delinquência juvenil

A “juventude” não é uma categoria social homogénea nem estável

quando observada em diferentes espaços-tempo. Usar esta categoria como

forma de classificar um qualquer grupo ignora que os “jovens” não são uma

“unidade social” com “interesses comuns”. Nos grupos de jovens, vários outros

critérios de estratificação se sobrepõem (classista e outros) (Pais, 1990: 140).

Sendo a juventude socialmente construída, os problemas a ela ligados

são também eles mutáveis no espaço-tempo. Actualmente, nas representações

oficiais e mediáticas (da esfera pública em geral), os problemas dos jovens

“são problemas principalmente remetidos para as dificuldades de inserção

profissional, readquirindo cada vez mais relevo outros «problemas»,

associados ao consumo de droga, à delinquência, etc.” (Pais, 1990: 143).

A construção social da “infância” e da “juventude” condicionou o

surgimento representacional do conceito “delinquência juvenil”, vista como algo

que se desvia do tipo ideal de criança protegida e submissa à autoridade

(nomeadamente, familiar). Deste modo, também os comportamentos

percebidos como “delinquentes” são variáveis no espaço-tempo (Ferreira,

1997, 2000; Lagrange, 2002; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). Actualmente, a

ideia dominante é que quando o percurso de crescimento – tanto físico quanto

social – e de construção identitária “é interrompido, a delinquência emerge,

particularmente quando a família, a escola e a comunidade falham na sua

função ou quando permitem que a pobreza, a ignorância ou o abandono se

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36 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

intrometam no dever de educar adequadamente as crianças” (Ferreira, 1997:

914).

A importância da família e da escola nas representações sociais sobre a

delinquência juvenil, sendo estas instituições vistas como incapazes de cumprir

as funções de socialização que lhe são atribuídas. Se se considera que estas

falham, então, outras instituições de controlo social – nomeadamente, a polícia

e o sistema de justiça – vêem justificada a sua intervenção no processo

educativo/socializante dos jovens. O que justifica a criação de instituições

especialmente vocacionadas para lidar com a delinquência juvenil – “centros de

correcção” (McLaughlin e Muncie, 1994: 157)5.

A representação da fragilidade juvenil levou a que, progressivamente, se

impusesse a ideia de “maior tolerância” para os crimes cometidos por “jovens”

que, apesar de estarem “sujeitos às mesmas leis dos adultos, (...) começaram

a ser vistos como não tendo a totalidade da responsabilidade criminal e,

consequentemente, [passaram a estar] sujeitos a penas atenuadas ou a

perdão” (Ferreira, 1997: 915). Surgem, assim, instituições especializadas para

lidar com a delinquência juvenil, leis específicas para os jovens e um sistema

de justiça juvenil para as aplicar. Este processo consolida o conceito moderno

de infância que, entre outros, define direitos próprios para as crianças distintos

dos dos adultos (Lourenço e Lisboa, 1992; McLaughlin e Muncie, 1994;

Ferreira, 1997).

5 O desejo retórico de punição do “criminoso” e protecção do “resto da sociedade” – na

verdade, um mecanismo ideológico de criminalização da pobreza (Wacquant, 2000; Young, 2007; Bauman, 2009a, 2009b) – pode lançar as bases para um aumento exponencial da “população criminosa” que é vista como estando “para além da reabilitação”. Dois motivos essenciais contribuem para esta ideia: 1) o recuo da protecção social e promoção do bem-estar geral dos elementos mais vulneráveis das sociedades; e 2) a “coabitação” entre “criminosos formados” (adultos reincidentes por crimes graves) e “delinquentes juvenis” tem “efeitos latentes” de “ressocialização/socialização secundária” sobre os jovens que, se fossem apoiados, poderiam inserir-se na ordem normativa da sociedade, mas, deste modo, são por ela “rotulados” e marginalizados, não lhes restando outra alternativa exequível que não a entrada numa espiral de desafiliação que os conduza ao “mundo normal do crime”.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

37

Neste processo, nas palavras de Ferreira, “o conceito de «delinquência

juvenil» surge como uma construção social e institucional em torno da qual se

reúnem definições e ideias sobre situações e comportamentos que contrastam

com o conceito ideal que temos da infância e da juventude” (1997: 916).

Contudo, não estamos perante um conceito homogéneo, sendo a gravidade

dos comportamentos delinquentes variável: podem ir contra valores sociais e

institucionais ou ser mais ofensivos à sensibilidade de alguns indivíduos. Para

Ferreira, “a delinquência envolve o conjunto de respostas e de intervenções

institucionais e legais em relação a jovens que cometem infracções criminais

ou que se encontram em situações ou exibem comportamentos potencialmente

delinquentes, nomeadamente, nos casos em que existe grave negligência

familiar ou em que as crianças ou adolescentes revelam comportamentos

desviantes e desajustados da realidade psicossocial do grupo etário a que

pertencem. Embora estes comportamentos desviantes e desajustados possam

não constituir, em rigor, infracções criminais, remetem, no entanto, para a

mesma realidade social que o conceito de “delinquência juvenil” procura

descrever e caracterizar” (1997: 916).

1.3 A importância dos media na construção social do fenómeno e das políticas

Os media desempenham um papel fulcral na definição da delinquência

juvenil como um problema social, condicionando as representações dos

cidadãos sobre a temática. Por um lado, de um modo geral, os media

fomentam um sentimento de insegurança das populações, por outro lado, o seu

discurso é grandemente responsável pela construção da juventude como uma

categoria problemática.

Trabalhos realizados dão conta de como a informação produzida sobre a

delinquência e a criminalidade juvenis é, frequentemente, alvo de deturpação e

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38 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

instrumentalização (Macé, 2002; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). O estudo de

Hugo Seabra (2005) mostra como os jovens se sentem discriminados e

estigmatizados (nomeadamente, racialmente) pela sociedade em geral e pelos

media em particular, estando conscientes da deturpação de informação neles

presente. Este contexto pode criar um ciclo vicioso de estigmatização: os

jovens interpelados por jornalistas, cientes de que o que disserem será

possivelmente deturpado, falsificam e constroem eles próprios a informação

que transmitem, em parte, pois julgam obter poder simbólico no seio do seu

grupo ao serem retratados como agressivos ou perigosos. Como a

(des)informação sensacionalista deste modo comunicada tem um impacto

positivo na atracção de audiências e venda de jornais, os jornalistas que a

recebem sentem que realizaram o seu trabalho e não se preocupam em

aprofundar a investigação (Seabra, 2005). A manipulação noticiosa contribui,

assim, para uma visão mediática que empola a gravidade dos delitos

cometidos por jovens, muitas vezes, associada a uma representação que

incentiva a repressão destes actos (Carvalho, 2001; Seabra, 2005; Azevedo,

2007).

Na Europa, de um modo geral, os “jovens são representados como

criminosos e desviantes, por um lado, e como vítimas vulneráveis, por outro, e

às vezes das duas formas em simultâneo” (Coelho, 2009: 363)6. Apesar de

outras representações existirem (por exemplo, as que vêm a juventude como

energética, divertida, como sendo o futuro das sociedades, etc.), elas são

secundárias perante as anteriores (Carvalho, 2001; Azevedo, 2007; Coelho,

2009). Os media tendem a privilegiar notícias sobre criminalidade juvenil, pois o

crime «faz notícia» (Carvalho, 2001; Azevedo, 2007; Coelho, 2009).

A delinquência juvenil é, muitas vezes, tratada como rotina, através de

pequenas notícias abreviadas e impessoais. Este carácter noticioso permite

6 Cf. também Carvalho (2001) e Azevedo (2007).

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Sociedade e Delinquência Juvenil

39

veicular uma imagem de objectividade e neutralidade jornalísticas, ao mesmo

tempo que, sendo visto como rotina, torna a questão numa preocupação social.

O facto de as notícias serem breves, abreviadas, etc., permite ainda que a

preocupação em torno da criminalidade e da delinquência seja difusa, isto é,

centra-se numa imagem estereotipada e negativa dos jovens em geral, sem

informação contextual. Adicionalmente, a relevância noticiosa do crime explica-

se também por este ir contra a imagem desejável da ordem social, cumprindo a

função de realçar o que é socialmente desejável, criando uma barreira entre

“nós”, os “bons cidadãos” e os “outros”, “jovens delinquentes” (Carvalho, 2001;

Coelho, 2009).

Os autores enfatizam, ainda, o facto de a violência perpetrada por jovens

tender a ser mais mediatizada que a violência cometida contra jovens,

(Azevedo, 2007; Coelho, 2009). Para Coelho, “no quadro de representações

mais punitivas que representam os jovens como causadores de problemas, a

associação deste grupo ao problema social do crime apenas, ou sobretudo,

como consequência da idade poderá ter o efeito de reforçar a demonização

dos jovens criminosos e de facilitar assim a sua exclusão social. Isto porque, ao

subtrair-se o crime do seu contexto estrutural, se nega qualquer relação entre

os crimes cometidos por jovens e os processos e estruturas políticas,

económicas e culturais em que eles vivem” (2009: 371)7.

É ainda identificável, em alguns media, o estabelecimento de relações

causais espúrias e/ou simplistas que procuram explicar a delinquência juvenil,

associando-a directamente às famílias desestruturadas residentes em bairros

degradados, etc.. Concomitantemente, são frequentes as referências à

inimputabilidade dos jovens, apresentada como factor propiciador da

reincidência, veiculando-se a ideia do abaixamento da idade de

responsabilização criminal como forma de diminuir a delinquência juvenil

7 Cf. também Carvalho (2001), Seabra (2005) e Azevedo (2007).

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40 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

(citando fontes populares e oficiais), o que leva à equiparação dos actos

cometidos por jovens àqueles que são perpetrados por adultos (Carvalho,

2001; Seabra, 2005; Azevedo, 2007). Para Seabra, “a associação do

sentimento de insegurança exclusivamente aos comportamentos destes

jovens, a permanente afirmação da existência de „gangs‟ organizados de

jovens africanos, a frequente qualificação do meio de proveniência como

„gueto‟ são, entre muitas outras, algumas das conclusões apresentadas pela

produção jornalística, baseadas numa muito pouco rigorosa investigação e

constituindo uma espécie de fast food para saciar uma opinião pública

habituada a consumir este tipo de notícias e sedenta das mesmas” (2005: 18).

1.4 A delinquência juvenil na análise sociológica

As manifestações do desvio dos jovens iniciam-se, geralmente, por volta

dos 11-12 anos e crescem acentuadamente até aos 16-18, após o que

decrescem célere e marcadamente. Em nenhum outro período da vida, em

nenhum outro grupo etário, se regista uma proporção tão elevada de membros

envolvida em actividades infractoras, o que leva a que se considere a

adolescência como uma idade propícia ao desvio (Ferreira, 2000; Lagrange,

2002). Contudo, “nem toda a divergência [em relação à norma] é desvio. (...) A

diferença transforma-se em desvio quando suscita uma reacção negativa. (...)

O desvio é “objectivado” a partir de actos que infringem normas legais e de

outros considerados consensualmente como errados” (Ferreira, 2000: 57).

É possível encontrar dois grandes modelos de análise sociológica do

desvio juvenil: o modelo de controlo, segundo o qual o desvio resulta do

colapso das estruturas de autoridade e controlo social; e o modelo subcultural,

para o qual ele é uma resposta aos problemas com que os jovens se

confrontam no processo de construção das suas identidades sociais,

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Sociedade e Delinquência Juvenil

41

problemas esses que provêm da tensão entre “dependência” e desejo de

“autonomia” (Ferreira, 1997, 2000; Lagrange, 2002).

O modelo do controlo não procura entender os motivos que levam a que

os jovens tenham comportamentos desviantes, mas sim o que leva a que estes

estejam ausentes. Portanto, considera a infracção, o desvio, a transgressão,

como “pulsões naturais” dos seres humanos que exprimem acções cujos

benefícios não carecem de explicação, devendo, pelo contrário, ser

compreendidos os mecanismos que as inibem. Os laços sociais fortes entre os

indivíduos e a sociedade, representada pela família e pela escola, controlam o

desvio. Quanto mais fortes os laços, menor o desvio; quanto mais fracos, maior

o desvio (Ferreira, 1997: 918, 2000: 57-58).

Duas componentes de controlo são identificáveis: interna e externa. Na

dimensão interna, os laços sociais fortes levam a que o sujeito não deseje que

o seu comportamento seja desaprovado ou negativamente valorizado pelos

outros: é uma forma de autocontrolo que promove a conformidade social,

dando o cumprimento da norma/expectativa uma sensação de “realização

pessoal” ao indivíduo, enquanto, pelo contrário, a sua infracção desperta

sentimentos de “culpa” ou de “auto-reprovação”. Na dimensão externa,

acentuam-se as reacções negativas dos outros e as sanções exteriores ao

sujeito, vincando o carácter coercivo da sanção que se impõe à força ao

indivíduo, e a privação de gratificações associadas à posição que ele ocupa no

grupo. Para Ferreira, “a acção compensatória e punitiva que o controlo externo

exerce tende a inibir as disposições delituosas e a reforçar as orientações

convencionais. A conformidade é inspirada pelo receio das sanções e reacções

negativas” (Ferreira, 2000: 58).

O segundo modelo analítico – o modelo subcultural – pressupõe a

contextualização subcultural dos comportamentos dos jovens, sendo o desvio

visto como uma forma de adesão às normas de grupos cujas representações

sociais diferem daquelas que são socialmente veiculadas na esfera pública. É

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42 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

uma questão de assimilação de comportamentos de actores próximos (família,

amigos, etc.) e de grupos de referência. A não conformidade individual, em

consonância com a atitude grupal, é uma atitude de oposição à autoridade. A

escola é, também, neste modelo uma instituição central, se bem que por

razões diferentes daquelas pelas quais o é para o modelo anterior. É ela que

coloca o indivíduo numa estrutura institucionalizada que exige respeito às

normas e à autoridade, mas também é ela que o coloca em contacto com

grupos de jovens que podem transmitir ao sujeito mensagens de socialização

secundária divergentes das da sua socialização primária (Ferreira, 1997: 918,

2000: 56).

O principal ponto de convergência entre aqueles dois modelos encontra-

se no facto do desvio ser “precedido pelo desprendimento em relação à

conformidade social. Esse desprendimento ganha particular visibilidade a partir

do contexto escolar e traduz-se através das atitudes e associações grupais de

“oposição” (Ferreira, 2000: 64-65). Contudo, os dois modelos atribuem

diferente importância a estas manifestações inconformistas. Para o modelo de

controlo, elas decorrem da desvinculação dos laços sociais, com relevância

para os que se constroem com a escola e com a família. Para o modelo

subcultural, as atitudes de “oposição” são fruto da contradição entre cultura

escolar e determinadas culturas de fracções de classe (na abordagem

classista) ou traduzem a oposição às expectativas sociais normativas a

respeito dos jovens (na abordagem identitária). Contudo, ambas as abordagens

subculturais veêm o grupo como o locus onde se encontram e desenvolvem as

referências desviantes e delituosas (Ferreira, 2000: 65). É a rejeição da

autoridade e normatividade social, consubstanciada na escola, que dita o

processo de construção identitária desviante. Adicionalmente, é na escola que

o jovem encontra grupos que lhe servem de suporte e referência para o desvio

(Dubet, 1991; Ferreira, 1997, 2000). A ruptura escolar é vista como o início do

processo desviante, mas também a “motivação” que estimula e conduz o

processo de procura de associações grupais não conformistas.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

43

Para além destes factores explicativos, são ainda de referir a

importância da estigmatização/rotulagem de que os jovens percebidos como

delinquentes são alvo e das práticas de lazer destes jovens. Estes jovens são

“etiquetados” como delinquentes pelo meio social e jurídico envolvente (Dubet,

1991; Lourenço e Lisboa, 1992; Ferreira, 2000; Debuyst, 2002; Esterle-Hedibel,

2002; Carvalho, 2003, 2005; Seabra, 2005; Azevedo, 2007), consolidado a sua

identidade de delinquente. E, de forma circular, quanto mais se consolida esta

identidade, mais negativamente valorizada ela será socialmente.

As actividades de lazer ao dispor dos jovens implicam que estes tenham

dinheiro para a elas aceder. Particularmente nos jovens oriundos da base da

estrutura social, a prática de pequenos furtos ou de outros comportamentos

delinquentes será uma (muitas vezes, a única) forma de obter estes recursos

ou, podendo mesmo, determinados comportamentos delinquentes assumir em

si um carácter lúdico (Dubet, 1991; Seabra, 2005).

O autor chama, ainda, a atenção para uma outra vertente do factor

“classe social”. Para Dubet (1991), no que toca aos jovens das classes

populares, a falta de integração, a exclusão e a «raiva» sentidas – provenientes

da consciência de estarem inseridos num modelo societal com poucos

benefícios presentes e perspectivas de futuro – pode propiciar períodos de

desvio que são facilitados por um sentimento de base classista que segue

semelhantes orientações no tocante à rejeição parcial da matriz de poder que

os prejudica quotidianamente. Assim, não é a classe social o factor explicativo

preponderante da delinquência juvenil, mas é ela que determina quais serão

esses factores.

Os comportamentos desviantes e delinquentes dos jovens podem ser

parcialmente explicados por socializações grupais e pela necessidade de

conformidade grupal entre adolescentes. Para Ferreira, a adolescência situa-se

entre uma situação de controlo/dependência absoluta e desejo de autonomia e

responsabilidade completas. Só uma pequena parte dos jovens não tem

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44 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

nenhum autocontrolo, enquanto, para a esmagadora maioria, a delinquência é

uma experiência temporária que vai desaparecendo com a aproximação à

idade adulta e não um modo de vida (Ferreira, 1997: 917)8.

Também a relação dos jovens delinquentes com o sistema de justiça

evidencia o carácter explicativo da desigualdade social. Entre os jovens que

cometem actos delinquentes e aqueles que chegam a ser institucionalizados,

passando pelo contacto com as polícias e os tribunais, ocorre um “processo de

filtragem” de base classista (Dubet, 1991; Seabra, 2005; Azevedo, 2007).

O processo que vai da execução do acto delinquente até à sua sanção

insere-se numa estrutura piramidal. Entre os 12 e os 16 anos, 80% a 90% dos

jovens afirmam ter praticado actos delinquentes, sendo esta percentagem

semelhante em todas as classes sociais (Gersão e Lisboa apud Seabra, 2005:

53). Contudo, somente 8% a 10% é denunciada às polícias e, avançando no

processo, apenas 4% a 5% da delinquência juvenil é sancionada. Estes 4% ou

5% do topo da pirâmide são quase inteiramente provenientes das fracções

mais pobres das classes populares (Seabra, 2005)9.

Os jovens que tiveram já algum contacto com a polícia ou com o sistema

de justiça são maioritariamente provenientes da base da estrutura social. O que

não significa a existência de uma “cultura delinquente” de determinadas

fracções das classes populares, mas antes “a natureza de classe da

delinquência é um efeito da natureza de classe do controlo social” (Dubet,

1991: 154). Assim, em contacto mais próximo com o sistema de justiça, na

qualidade de delinquentes, encontramos indivíduos representativos de grande

parte das situações definidas como socialmente problemáticas. Eles provêm de

8 Considera, por isso, que qualquer proposta de redução da idade de responsabilização

criminal penaliza a esmagadora maioria da população jovem que comete actos que, apesar de percebidos como delinquentes, e inserem num processo de crescimento, de transição para a idade adulta.

9 Cf. Azevedo (2007).

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Sociedade e Delinquência Juvenil

45

famílias numerosas, monoparentais com pais ausentes/desconhecidos (em

consequência de divórcio/separação ou de falecimento ou encarceramento de

um dos pais), vítimas de negligência parental e de maus tratos (associados, por

vezes, ao alcoolismo ou toxicodependência de familiares), com frequentes

mudanças do núcleo familiar. Em alguns casos, fugiram de casa cedo, o que

precipitou o seu contacto com o sistema de justiça de crianças e jovens.

Adicionalmente, provêm de fracções das classes populares com baixa

escolaridade e rendimento, com empregos estatutariamente negativamente

valorizados (Carvalho, 2003, 2005).

Desfazendo as pré-noções (nomeadamente, mediáticas) acerca da

delinquência juvenil, os crimes cometidos por estes jovens só minoritariamente

se reportam a actos violentos contra pessoas, sendo maioritários os crimes

contra o património (Lourenço e Lisboa, 1992; Carvalho, 2003, 2005; Seabra,

2005). Contudo, os jovens delinquentes são, muitas vezes, usados por

criminosos adultos para cometerem crimes (por exemplo, tráfico de droga de

pequena dimensão), ficando os adultos protegidos face à justiça. Os jovens

delinquentes ligados a esses crimes são, no próprio acto de execução do

comportamento percebido como crime, vítimas e não criminosos (Garnier-

Muller, 2000; Seabra, 2005)10.

A verdade é que as sociedades tendem a desresponsabilizarem-se por

estes jovens. Sem condições mínimas de vida presentes, com passados

curtos, mas profundamente carregados de ocorrências negativas e sem

perspectivas melhores para o futuro, os crimes por eles cometidos são, muitas

vezes, motivados por necessidades de consumo (básicas, por vezes), o que é

indicado pela enorme quantidade de furtos de produtos alimentares (Carvalho,

2003, 2005; Seabra, 2005). Nas palavras de um jovem institucionalizado

10 Punir estes jovens vítimas de criminosos que os conduzem a comportamentos delinquentes

seria não procurar contextualizar o seu comportamento e rejeitar aprioristicamente a responsabilidade social de os ajudar.

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46 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

entrevistado por Seabra, “prefiro ser ladrão em vez de ser mendigo” (2005:

175). Para mais, as mensagens de socialização recebidas por estes jovens no

seio de uma sociedade de consumo são profundamente conflituantes, entrando

eles em situações de desvio pela impossibilidade de coadunarem os meios ao

seu dispor com os fins que são socialmente – e logo, por eles individualmente –

valorizados (Dubet, 1991; Ferreira, 1997, 2000; Lagrange, 2002).

Todos estes factores “acentuaram a necessidade de uma intervenção

precoce centrada em várias áreas de apoio social, cuja capacidade de

resposta, perante os dados disponíveis, parece não ter existido ou ter sido

escassa, acabando por se reforçar negativamente o quadro social onde estes

jovens se (des)integravam” (Carvalho, 2005: 84). Com uma acção social de

prevenção eficaz, é de supor que grande parte destes jovens não teriam

travado conhecimento com o sistema de justiça de crianças e jovens na

qualidade de perpetradores de actos delinquentes e que teriam, tal como a

maioria dos outros jovens, tido na “delinquência” somente uma “fase de

experimentação de papéis”.

Acresce que, para muitos autores, as instituições de encarceramento

juvenil em que muitos destes jovens se encontraram, encontram e encontrarão,

não desempenham de forma eficiente (ou não desempenham de todo) as

funções de reabilitação e ressocialização que lhes são atribuídas. Os longos

períodos de permanência nestas instituições e em outras que as

complementam, os contactos com outros jovens delinquentes com

comportamentos mais graves que os seus, bem como o facto das

institucionalizações ocorrerem cada vez mais cedo, contrariam o propósito

basilar de existência destas instituições, que passam a contribuir para o

agravamento dos comportamentos delinquentes dos jovens que por elas

passam e criam as condições da sua reincidência, denunciando a falha do

sistema (Dubet, 1991; McLaughlin e Muncie, 1994; Carvalho, 2003, 2005;

Seabra, 2005).

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Sociedade e Delinquência Juvenil

47

1.5 As políticas públicas: protecção vs judicialização

No Ocidente Norte, até aos anos 7011, a abordagem ao problema da

delinquência juvenil inseria-se no modelo mais vasto do welfare state. Neste

contexto, a delinquência era um problema temporário existente nas famílias

que “ficavam para trás” na onda de prosperidade. As instituições de welfare

eram vistas como centrais para debelar o problema, passando a solução não

pelo encarceramento dos jovens, mas sim pela educação das famílias para que

“socializassem correctamente” os filhos e pela reabilitação dos jovens que já

tinham entrado no sistema de justiça. A criminalidade era, assim, percebida

como um problema de desajustamento individual ou familiar, não fazendo

sentido punir os “ofensores” (que não eram tanto «agressores» como vítimas

de um «agressor colectivo»). Estamos, assim, em face de uma grelha de leitura

da criminalidade e da delinquência de cariz «psicologista», que fornecia

simultaneamente a explicação e a solução do problema (McLaughlin e Muncie,

1994).

Também a sociologia se centra, nesta época, nas famílias e

comunidades desprivilegiadas e marginalizadas. Política e cientificamente, a

família, considerada como falhando na disciplina por via da sua crescente

vulnerabilidade, era encarada como a instituição-chave no combate a uma

delinquência percebida como sintoma de problemas familiares. Deste modo,

ela era também a solução para o problema: o casamento dos jovens era visto

como central para combater o seu desvio, ganhando estes através dele,

disciplina e o exercício do controlo familiar, o que inibiria as suas próprias

“predisposições delinquentes” (McLaughlin e Muncie, 1994).

11 Esta data é, naturalmente, variável consoante o país em questão. Em Portugal, o início da

construção do welfare state é tardio.

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48 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Nesta mundividência da delinquência, os conceitos de diagnóstico,

prevenção e tratamento são enfatizados em detrimento das noções de “culpa”,

“responsabilidade individual” ou “punição”, não sendo as crianças vistas como

individualmente responsáveis, mas como vítimas de factores familiares, por sua

vez causados por fenómenos sociais. Assim, valorizava-se a ajuda profissional

(por via de assistentes sociais ou psicólogos) às crianças e às suas famílias,

tornando-se estas últimas objecto da intervenção estatal (McLaughlin e Muncie,

1994).

Respeitando as orientações gerais do modelo, procura-se não colocar os

jovens sob a custódia do Estado, privilegiando-se a intervenção no âmbito da

comunidade. Salienta-se a aposta (pelo menos, retórica) na transformação das

famílias e dos seus elementos em sujeitos capazes de retirar os benefícios de

cidadania do welfare state (McLaughlin e Muncie, 1994).

No terceiro quartel do século XX, as sociedades deparam-se com a falha

do modelo de protecção – que se insere na retórica sobre as falhas do welfare

state, nomeadamente, das acusações conservadoras de que a sua acção

protectora criaria um estrato populacional amoral e seria incapaz de reabilitar

os delinquentes – consubstanciada, essencialmente, na (nunca contrariada)

tendência para o aumento dos jovens retirados às famílias. Com a centralidade

da delinquência juvenil no debate público e com as representações dos jovens

como “incivis”, amorais e violentos, surge também a contestação do

funcionamento da justiça penal de crianças e jovens, generalizando-se as

exigências de responsabilização individual dos jovens e de tratamentos

repressivos do desvio juvenil assentes nas ideias de law and order e crime and

punishment, isto é, tornam-se correntes as reivindicações de endurecimento

legal/penal contra os jovens (McLaughlin e Muncie, 1994; Bailleau, 2002;

Seabra, 2005).

Há construções ideológicas e subjectivas que influenciam o processo,

“desfazendo a imagem de uma justiça cega e neutra” (Adorno, 1991: 151),

transformando-se a punição não somente (ou não principalmente) num

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Sociedade e Delinquência Juvenil

49

processo baseado no acto criminoso de per se, mas também (ou sobretudo)

nas representações de violência, perigo, etc., associadas ao acto (o que se

pune é menos o acto isolado do que a sensação macrossocial de insegurança).

Em simultâneo, desenvolve-se a ideia de que uma justiça democrática (criminal

ou outra) que se quer “social e correctiva, visando restabelecer os equilíbrios

rompidos” não pode ser somente punitiva (Adorno, 1991: 153).

Segundo Bailleau (2002: 386-387), cinco elementos principais são

geralmente evocados para a mudança estratégica no que respeita à

delinquência juvenil nos países europeus.

(1) Em primeiro lugar, é identificável uma crítica aos princípios protectores e

educativos inerentes a um sistema específico de tratamento dos jovens

delinquentes. Esta retórica inscreve-se na crítica geral ao welfare state e à

protecção social estatal, e implica uma rejeição ideológica e normativa das

medidas educativas e um recurso mais frequente ao encarceramento,

simultaneamente, com o abandono progressivo das medidas educadoras

preventivas, que são substituídas pela intervenção judiciária sobre os jovens e

as suas famílias.

(2) Em segundo lugar, procede-se à reavaliação da noção de responsabilidade

e à valorização das vítimas dos comportamentos delinquentes assumindo-se

como nova orientação do processo penal, influenciando os processos e

medidas tomadas face a actos delinquentes.

(3) Prevalece a ideia de que a delinquência deve ser tratada segundo uma

lógica de “tolerância zero”, não devendo nenhum acto delinquente praticado

por jovens ficar sem resposta, o que revaloriza o poder da polícia e da

acusação.

(4) Como quarto princípio, é visível a tendência para a integração de instâncias

não judiciárias – especialistas em delinquência juvenil, etc. – no processo de

implementação de medidas sobre jovens problemáticos.

(5) Por último, verifica-se uma tendência de restrição nos jovens mais velhos (a

partir dos 14-16 anos) em acederem a jurisdições especializadas, defendo-se o

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50 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

seu julgamento, por determinadas infracções, nos mesmos processos dos

adultos.

Para Bailleau, “a delinquência dos jovens era até recentemente tratada

como sintoma e a justiça de crianças e jovens deveria privilegiar a abordagem

educativa. Hoje, ela tende a recentrar-se sobre a lógica dupla da

vulnerabilidade (maus tratos) que provém do direito civil, e da responsabilidade

(delinquência) que provem do direito penal. Tende-se a relativizar os

imperativos de intervenções educativas e a valorizar a actividade dos actores

tradicionais da segurança pública (procuradores, polícia, etc.), insistindo sobre

a necessidade de um tratamento imediato (da justiça em tempo real) de todos

os actos de delinquência (a tolerância zero) cometidos pelos jovens” (2002:

392).

Na medida em que se privilegia a temporalidade curta – intervenção

policial e judicial “no momento” – em detrimento da longa – educação do jovem

e da família sob a orientação estatal –, o sistema judicial expande-se para

áreas que, enquanto vigorava o modelo do welfare, não estavam sob a sua

alçada. Ao mesmo tempo, muda-se de eixo de intervenção, passando-se da

comunidade local/serviços sociais e educativos para a polícia/justiça (Bailleau,

2002: 392).

Na inflexão do modelo de protecção para o modelo judiciário, o “poder” é

transferido dos técnicos de intervenção social (assistentes sociais e outros)

para os magistrados. Em parte, tal decorre do rearranjo ideológico da relação

entre delinquência e privação social, deixando de se enfatizar a causalidade

sócio-económica e política para se retomarem as retóricas de amoralidade,

“incivilidade” de determinadas fracções de classe da base da estrutura social. A

intervenção estatal faz-se sobre os mesmos grupos, mas em moldes distintos.

Com esta “conversão de narrativas”, ressurge um discurso que defende

mais criminalização dos jovens, apostando novamente na sua “relocalização”

em instituições de encarceramento juvenil, sendo no seu interior que as

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Sociedade e Delinquência Juvenil

51

preocupações de protecção do jovem se passarão a efectuar (McLaughlin e

Muncie, 1994). Simultaneamente, tende a aumentar também a intervenção de

controlo na comunidade/família (McLaughlin e Muncie, 1994), transformando-

se a lei e ordem e a justiça e punição em ideias orientadoras, mesmo quando

as medidas se destinam à comunidade, (re)ganhando força a ideologia de

“criminalização da pobreza12”.

12 Segundo Pratt, “em vez da preocupação com a protecção de direitos individuais, a ênfase

situa-se na eficiência e na primazia dos objectivos das políticas. Em vez de uma reflexão sobre as inumanidades e injustiças da instituição, estas características passam a ser reproduzidas na comunidade – nos projectos que deveriam ser alternativas à instituição” (apud McLaughlin e Muncie, 1994: 183).

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AS CRIANÇAS E JOVENS DELINQUENTES NOS

MEDIA

2

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2 AS CRIANÇAS E JOVENS DELINQUENTES NOS

MEDIA

Introdução

A relação entre jovens e justiça obriga à definição de categorias para os

jovens consoante a sua idade (menos de 12 anos; entre 12 e 16 anos; mais de

16 anos) e a sua situação social (em perigo ou a delinquir). Se para o direito e

a justiça nem sempre a fronteira é fácil de traçar, a dificuldade é maior quando

se olha para o mesmo fenómeno usando categorias mais abstractas, como

“menor”, “jovem” ou “criança”, frequentes na categorização dos media. Basta

pensar, por exemplo, que hoje a categoria de jovem oferece escassa precisão

como representante mais lato das visões sociais sobre a maturidade e suas

implicações na vida. Um jovem, no sentido lato que encontramos na nossa

cultura em geral, pode hoje ter mais de 30 anos, fruto das últimas décadas de

prolongamento dos percursos escolares, de adiamento da entrada no mercado

de trabalho, da autonomia financeira, da constituição de família e de outros

símbolos culturais da maioridade.

Mesmo no campo do direito e da justiça cruzam-se, com frequência, no

mesmo caso, as duas dimensões desta justiça: a dimensão protectora

incluindo, por exemplo, as disposições de direito civil relativas à tutela parental,

à adopção, as disposições do direito penal no que diz respeito a crimes

cometidos sobre jovens; e a educativa e repressiva, onde se inclui o regime

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56 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

tutelar educativo. O jovem como vítima a defender versus o jovem como

agressor a corrigir são, frequentemente, a mesma pessoa.

Apesar das dificuldades decorrentes da utilização de categorias amplas,

que dificulta a identificação do grupo de idades em causa e,

consequentemente, a consideração de estarmos ou não perante crianças e

jovens susceptíveis de aplicação da lei tutelar educativa, consideramos

importante analisar como surgem nos media os jovens agressores, aqueles

que cometem delitos e são, por isso, objecto da vertente repressiva da justiça.

A relação entre media e justiça de crianças e jovens deve ser

enquadrada no âmbito da relação mais geral entre media e justiça, uma relação

cujo estudo tem despertado um interesse crescente, especialmente nos países

mais industrializados e, por conseguinte, mais mediatizados. Os media, ao

seleccionarem os acontecimentos que serão notícia, ao hierarquizarem as

notícias, e ao tematizarem-nas e convertê-las em temas de debate, fixam a

agenda pública e, por essa via, influenciam decisivamente as percepções

sociais sobre qualquer fenómeno social. Assim acontece também com as

questões da justiça em geral, incluindo a justiça de crianças e jovens. Essa

influência pode ir muito além das percepções sociais e ser determinante no

desenvolvimento e no sentido de determinada reforma ou medida. Aliás, no

caso do direito e da justiça de jovens, existe a convicção de que o eco na

comunicação social de certo acontecimento foi determinante para a reforma

que se lhe seguiu.

O objectivo deste ponto consiste na identificação do modo como os

jovens agressores surgem nos media. Após breves considerações

metodológicas, procede-se à tipificação do discurso mediático sobre jovens e

justiça em geral, para nele contextualizar o discurso sobre o jovem agressor.

De seguida, apresenta-se uma análise das notícias de imprensa de 2009 onde

surge a figura do jovem agressor, procurando identificar os temas e

características principais, esboçar a sua caracterização mediática e avançar

algumas hipóteses para futura reflexão.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

57

2.1 Discursos mediáticos sobre as crianças e jovens

O discurso mediático sobre crianças e jovens em Portugal não é uma

temática ausente da reflexão e análise entre nós, tendo sido objecto de alguns

trabalhos de investigação (Coelho, 2009; Ponte, 2005, 2009). Por exemplo,

Ponte (2009) analisa exaustivamente o discurso mediático sobre jovens no ano

de 2005 através de metodologias quantitativas e qualitativas complexas. Este

texto, não partilhando esse objectivo, pretende apenas contextualizar a

temática através de uma análise do que a opinião pública pôde conhecer

através dos media, relativamente ao fenómeno da delinquência juvenil.

Tendo em conta a circunspecção do objectivo, optou-se por uma

abordagem interpretativa, cuja complexidade metodológica consistiu em ler os

artigos, ordená-los tematicamente e identificar no subconjunto de artigos sobre

o jovem agressor as principais (sub)temáticas e nexos discursivos. Para tal,

recolheram-se artigos de imprensa relativos a jovens na base de dados de

peças de imprensa da Direcção-Geral de Política da Justiça, que compila

diariamente peças noticiosas relacionadas com a justiça nos diversos meios de

comunicação social. As notícias sobre crianças e jovens que não dissessem

respeito à justiça – por exemplo, centradas no sistema educativo, nas culturas

e hábitos de consumo dos jovens – ficaram excluídas à partida. A pesquisa

inicial centrou-se nos artigos onde constassem os termos "menor", "menores",

"delinquência", "delinquente", "delinquentes". A partir destas palavras-chave

obteve-se um número substancial de artigos, muitos sem relevância para a

nossa análise, dado que, apesar de conterem um dos termos em pesquisa

tratavam de temas que em nada remetiam para os jovens. A nossa análise

incidiu nos artigos publicados durante o ano de 2009 nos seguintes periódicos

de circulação nacional: os diários Correio da Manhã (CM), Diário Económico

(DE), Diário de Notícias (DN), Jornal i (publicado a partir de Maio de 2009),

Jornal de Notícias (JN), Público (Púb) e Primeiro de Janeiro (PJ); e os

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58 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

semanários Expresso (Exp), Sábado (Sáb), Sol e Visão (Vis)13. Desta selecção

resultou um conjunto de 379 artigos sobre os quais incidiu a nossa análise.

A primeira nota de carácter geral a merecer referência é que no conjunto

daqueles artigos onde os jovens são objecto principal do discurso jornalístico,

são-no, sobretudo, como vítimas, não como agressores. Entre o alarmismo da

pedofilia, as atribulações dos conflitos de tutela parental, as angústias

suscitadas pelos jovens desaparecidos, entre outros, a figura do jovem

enquanto agressor, sendo importante, é minoritária. Partindo desta primeira

análise, categorizaram-se os artigos em sete grandes temáticas (Quadro 1).

Quadro 1 - Artigos de imprensa relacionados com a justiça de crianças e

jovens, por temática - 2009

6

18

20

25

91

107

112

0 20 40 60 80 100 120

Outros

Desaparecimentos, raptos, fugas

Riscos das tecnologias da informação

Maus tratos, menores em risco

Delinquência, violência escolar

Abuso sexual de menores, pedofilia

Adopção, tutela parental

Fonte: OPJ

13 As abreviaturas servem para a referência a artigos, que são feitas em nota de rodapé com a

abreviatura e a data do periódico, eventualmente antecedidos do título do artigo entre aspas, se este for considerado de interesse.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

59

As três temáticas principais concentram mais de 4/5 dos artigos e

equilibram-se entre si. A terceira delas, a delinquência, é a única que remete

para o jovem enquanto agressor – à qual dedicaremos a nossa análise

subsequente. Antes disso, porém, um breve olhar sobre as restantes temáticas

poderá ajudar a enquadrá-la.

As questões de adopção e tutela parental devem o seu peso a três

casos mediáticos que suscitaram muita atenção e debate público em 2009: os

casos Alexandra, Martim, e, em menor grau, o caso Esmeralda, cujo auge fora

em 2008. Este foi um dos principais eixos das críticas à justiça portuguesa em

2009, nomeadamente no caso Alexandra, menina russa retirada ao casal

português que a acolhia, e enviada para a família biológica na Rússia, cujas

decisões judiciais suscitaram celeuma e desencadearam uma vaga de opiniões

sobre a crise da justiça portuguesa. O abuso sexual de jovens e a pedofilia, em

vez de um pequeno grupo de casos espectaculares – se exceptuarmos o

processo Casa Pia que, mesmo no ocaso da fase final de julgamento, ressurge

ocasionalmente – compõe-se de numerosos casos pontuais, cuja sucessão

pelas diversas comarcas do país suscita invariavelmente a atenção da

imprensa dita “tablóide” e, ocasionalmente, da imprensa “de referência”, mas

que, em regra, se extingue rapidamente.

Numa segunda linha de notoriedade, e associado ao perigo do abuso

sexual, algumas notícias focam especificamente o risco que as tecnologias da

informação (internet, telemóveis) representam para os jovens, expondo-os a

abusadores e facilitando a acção destes. Outras notícias focam os jovens como

vítimas não de abuso sexual, mas de maus-tratos e em situações de risco,

normalmente associadas a famílias desestruturadas, economicamente frágeis e

afectadas pela violência doméstica. Outras, ainda, concentram-se nos jovens

desaparecidos ou fugidos, explorando a angústia das famílias afectadas,

embora essa temática seja provavelmente menos presente após a saturação

que representou o caso Maddie McCann entre 2007 e 2008. A um nível mais

residual surgem outros temas pontuais, como a problemática dos jovens com

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60 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

pais reclusos, a organização legal e institucional da protecção de crianças e

jovens, ou o papel das comissões de protecção de crianças e jovens na

avaliação do trabalho de jovens nas artes e espectáculos.

Neste contexto em que o jovem é geralmente vítima, importa

compreender o papel que ocupa o jovem desempenha enquanto agressor.

Neste caso, o número de artigos representa ¼ do discurso mediático sobre

jovens e justiça, dominado pela figura do jovem delinquente. Dele ocupamo-

nos em seguida.

2.2 O jovem agressor nas notícias em 2009: temas principais e tipos de discurso

Apesar de em menor número, os artigos sobre delinquência de jovens

são relativamente regulares e contínuos em 2009. Essa regularidade teve duas

excepções: um pico em Maio, motivado por distúrbios no bairro setubalense da

Bela Vista e uma baixa em Agosto, enquadrável na sazonal ausência de

notícias. Caracterizaremos, de seguida, os temas e tipos de discurso principais

desta cobertura.

Os artigos seleccionados foram categorizados de acordo com três temas

principais, conforme o enfoque dominante: (1) os casos de delinquência, (2) as

respostas políticas à delinquência, e (3) o funcionamento do sistema em lidar

com ela.

Os casos de delinquência tiveram, por um lado, uma cobertura regular

de delitos cometidos ao longo do ano (em geral ou mais especificamente na

escola) e, por outro lado, uma cobertura extraordinária, em torno dos distúrbios

da Bela Vista. A cobertura regular coube, sobretudo, aos periódicos Correio da

Manhã, Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Consiste maioritariamente em

artigos informativos, de meia a uma página, que se atêm à descrição dos

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Sociedade e Delinquência Juvenil

61

acontecimentos. Quase sempre a história consiste em furtos ou roubos de

veículos (por vezes carjacking), de estabelecimentos comerciais (bombas de

gasolina, stands de automóveis, supermercados), de residências, mais,

esporadicamente, de pessoas na via pública, caso ocorram em série e

empreguem alguma violência. Mais raramente surgem crimes sexuais,

cometidos por jovens sobre outros jovens;14 crimes contra a integridade física

sem objectivo de roubo, como o gang Bruxelas Street, que agredia jovens que

abordava nas imediações de uma escola no Cacém;15 incêndios;16 ou fugas

dos centros educativos.17

Em matéria de delinquência, no entanto, os distúrbios da Bela Vista

constituem um caso à parte em 2009. Comecemos pelos acontecimentos na

origem do caso, tal como surgiram nos jornais. Numa fuga à GNR no Algarve,

Toninho, jovem de 23 anos oriundo do Bairro da Bela Vista, Setúbal, é alvejado

e morto. Revoltados, jovens do seu bairro concentram-se a 7 de Maio à porta

da esquadra local da PSP. Estalam confrontos com a polícia, incêndios a

viaturas e distúrbios generalizados que se prolongarão aproximadamente por

uma semana. Por volta de 12 de Maio, curiosamente quando a situação parece

acalmar, o bairro está sob os holofotes dos media. Multiplicam-se artigos sobre

as condições de vida no seu interior e a problemática dos "bairros perigosos".

Lê-se que a Bela Vista tem 70% de crianças em risco de pobreza,18 grassa o

14 "[Jovem de 17 anos] Gabou-se no café de violar menino", CM 6/1; "Viola menor com ameaça

de faca", CM 13/11.

15 "Gang do Cacém torturava jovens", CM 12/12; "Gang sequestrava e torturava rapazes com

fogo e facadas", DN 12/12.

16 "Ateavam fogo por brincadeira", CM 10/9; "Irmãs menores detidas por suspeita de fogo

posto", DN 10/9.

17 "Detido último fugitivo do centro do Mondego", JN 23/7; "Menores roubam carro e fogem",

CM 5/11.

18 "Bela Vista tem 70% de crianças em risco de pobreza", DE 12/5.

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62 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

desemprego, os inquilinos devem um milhão em rendas19, é um bairro a

transbordar de raiva e frustração, um monstro de betão de mais de 7 mil

pessoas onde mais de mil recebem Rendimento Social de Inserção, um

cadinho de jovens delinquentes de onde surgiu o conhecido "gang do ATM"20.

Questiona-se nos jornais se este será um caso isolado ou sintoma da

generalidade dos bairros sociais em Portugal, que pode alastrar a qualquer

momento. Arriscam-se paralelos com França, que desde os motins de Clichy-

sous-Bois de 2005 se elevou a símbolo da "ameaça do gueto" nas opiniões

públicas europeias. Busca-se também contrastes, como o caso nacional de

Braga, que teria mitigado o problema abdicando dos bairros sociais,

dispersando e misturando as populações problemáticas pelo território urbano.21

No lastro destes artigos, seguem-se os editoriais, opiniões de cronistas e

de entrevistados. Nestes casos, as opiniões divergem em vários aspectos. Por

exemplo, Leonel Carvalho, ex-secretário-geral do Gabinete Coordenador de

Segurança, atribui os problemas à fragilidade económica e social das

populações dos bairros problemáticos, prova das "falhas no sistema preventivo

e de integração", mas defende um reforço das respostas repressivas,

nomeadamente o internamento compulsivo as partir dos 12 anos, pois "se os

deixamos praticar o crime, começando eles muito novos, aos 16 anos são

criminosos praticamente irrecuperáveis".22 Luís Campos Cunha, um

economista, vê na sua crónica camadas da população desprovidas de valores,

devido aos guetos, ao insucesso escolar, à tolerância face à indisciplina, à falta

de imposição de valores pela escola e pelo extinto Serviço Militar Obrigatório.23

19 "Inquilinos da Bela Vista já devem um milhão em rendas", DN 13/5.

20 "É difícil viver num bairro assim", Visão 14/5.

21 "Braga acabou com os guetos e o crime diminuiu", Jornal i 14/5.

22 "Se os deixamos praticar o crime, aos 16 anos são quase irrecuperáveis", entrevista, Jornal i

14/5.

23 "Bela Vista? Sem dúvida", crónica, P 15/5.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

63

Fernanda Palma, também em crónica, considera que é preciso proteger os

cidadãos reféns da violência, criando um Ministério da Reabilitação Social e um

programa contra a delinquência juvenil de que a Bela Vista e outros bairros

beneficiariam, por fim, a nível penal, criar um "crime de violência urbana" e

impor penas mais severas, para responder ao aumento da violência contra os

agentes da autoridade e os cidadãos.24 Aquela é a única vaga de opinião

relacionada com o jovem agressor que identificámos em 2009, discreta ainda

assim se comparada com vagas sobre o jovem-vítima, como a do caso

Alexandra.

As respostas políticas à delinquência constituem o segundo tema que

domina uma parte dos artigos. Aqui é, sobretudo, a acção do Estado pelos

seus diversos agentes, em vez da acção do jovem, a alimentar a notícia. Os

artigos ao longo de 2009 são dominados por duas questões principais: a

revisão da lei tutelar educativa e a antecipação/alargamento da idade de

imputabilidade penal. A revisão da lei tutelar educativa, em curso, é noticiada

moderadamente desde o seu início. Dois factores estimulam o interesse

jornalístico: os alertas deixados em entrevistas e depoimentos por Batista

Romão, director da PJ do Porto, para um aumento perceptível da delinquência,

detectável no aparecimento de criminosos mais jovens, sem antecedentes,

mais inseguros e mais violentos;25 e as informações fornecidas pelas entidades

envolvidas sobre o processo de revisão. Leonor Furtado, directora-geral da

DGRS, defende a duplicação do quadro temporal das medidas tutelares, de 3

meses – 3 anos para 6 meses – 6 anos, pois o tempo de internamento actual

não permite mudar o comportamento dos jovens, assim como a criação de

centros de detenção para a faixa dos 16 aos 21 anos.26 A nível partidário, nesta

24 "A Bela Vista", crónica, CM 17/5.

25 "Justiça deve combater crime juvenil", entrevista, JN 26/1; "Criminalidade aumentou e

diversificou-se", DN 22/2.

26 "Mais tempo de internato para jovens", CM 17/2.

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64 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

fase, a antecipação da imputabilidade penal encontra defensor apenas no

CDS-PP, todos os partidos políticos recusam-na.27 Rui Rangel, presidente da

AJPC, critica-a em coluna de opinião: antecipar a imputabilidade não reduz a

criminalidade entre os jovens, como demonstra o Reino Unido, que a fixou nos

12 anos e nem por isso reduziu a criminalidade; os jovens devem ser entregues

não às cadeias, mas ao sistema de reinserção social.28

A eclosão dos distúrbios da Bela Vista resgata o tema das respostas

políticas. Para além de respostas de cariz mais sociológico, os media procuram

respostas no plano jurídico-institucional. Reabre-se o debate sobre a fronteira

justiça de crianças e jovens/justiça penal. Em entrevista publicada aquando dos

distúrbios do bairro Bela Vista, embora feita alguns dias antes, Mário Mendes,

secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, embora rejeitando a

antecipação da imputabilidade para antes dos 16 anos, defende a criação de

um subsistema penal para jovens com menos de 16 anos, com "novos

mecanismos de restrição da liberdade, medidas de internamento compulsivo e

uma grande aposta na reinserção juvenil".29 PS e PSD pronunciam-se contra.

Idália Moniz, Secretária de Estado adjunta e da Reabilitação, responde que

urge uma lei tutelar educativa que possa ser mais dura, mas não um

subsistema penal. Armando Leandro, Presidente da Comissão Nacional de

Protecção de Crianças e Jovens em Risco, pronuncia-se no mesmo sentido.

António Martins, da ASJP, defende mais centros educativos e melhores

condições nos mesmos, pois mudar o enquadramento penal não resolve as

coisas.30

27 "Parcerias para centros de delinquentes", DN 24/2.

28 "Redução da maioridade penal", crónica, CM 7/3.

29 "Chefe das polícias quer mais penas para jovens delinquentes", DE 11/5.

30 DE, PJ 12/5, DN 13/5.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

65

Novamente, apenas o CDS-PP diverge, aplaudindo em jornadas

parlamentares a "coragem" de Mário Mendes, ocasião onde Leonel Carvalho

defende novamente a antecipação da idade mínima do internamento fechado

de 14 para 12 anos.31 Dois meses mais tarde, Pinto Monteiro, Procurador-Geral

da República, recoloca a questão: um extenso artigo do DN integra

declarações suas onde afirma que o Governo deve pensar a redução da idade

de imputabilidade, pois "é certo que os menores merecem toda a protecção,

mas (…) há gangs comandados por jovens de 14 e 15 anos que causam

vítimas".32 Fora as reacções de porta-vozes partidários no mesmo artigo, o

assunto não suscita especiais reacções nos dias seguintes.

A vertente mais imediata da resposta política, a revisão da lei tutelar

educativa, também ressurge, com menos impacto imediato, permanecendo na

agenda até ao fim do ano, até porque o Governo havia encarregado um grupo

de trabalho de alterar a lei. De acordo com as notícias dos media, no seu

interior, opõem-se duas filosofias, segundo a propensão para a via penal: a

"reeducação da criança delinquente para o direito" contra o "direito penal dos

pequeninos".33 Várias propostas estão em discussão, nenhuma delas tocando

na imputabilidade, o que aliás extravasaria o âmbito da lei tutelar educativa.

Refere-se a antecipação da idade mínima de internamento em regime fechado

– a medida tutelar mais gravosa – de 14 para 12 anos, mas fontes do grupo de

trabalho informam que a maioria dos seus membros é contra,34 de tal modo

que, em Dezembro, parece estar já fora de causa.35 Menos polémicas parecem

outras medidas, como o prolongamento da duração máxima das medidas

31 DN, JN 12/5.

32 "Imigrantes são 27% dos menores condenados em Portugal", DN 17/7.

33 JN 1/7.

34 DN, PJ 14/7.

35 P 23/11, i 23/12.

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66 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

tutelares de 3 para 5 anos,36 a possibilidade da vítima pedir indemnização nos

processos tutelares educativos,37 ou a substituição da estadia em centro

educativo por vigilância electrónica38.

Os diagnósticos do funcionamento do sistema constituem o último tema

principal de cobertura. Trata-se de artigos que se debruçam sobre o sistema de

reinserção social tal como ele existe, no que tem de bom e de mau. Surgem a

partir de Julho, dois meses após os distúrbios da Bela Vista, e prosseguem

discretamente (1 a 3 por mês), até final do ano. Os mais visíveis entre eles são

os quatro macro retratos do sistema, artigos extensos de página inteira ou mais

que retratam na globalidade o funcionamento do sistema de reinserção social,

pondo a tónica no crescimento de medidas alternativas e na caracterização do

fenómeno com base em indicadores estatísticos.

O DN destaca os 241 jovens que cumprem trabalho a favor da

comunidade, a maioria por furtos, roubos, condução sem carta e crimes contra

as pessoas.39 Mais tarde, refere que 27% dos 199 jovens internados em

centros são estrangeiros e que os internados se mantiveram estáveis em 2008,

apesar do Relatório de Segurança Interna desse ano apontar uma redução da

criminalidade juvenil em 43%.40 O Público, quatro meses depois, dá maior

ênfase ao crescimento das medidas alternativas: entre 2001 e 2008, os

tribunais optaram cada vez mais por medidas como a imposição de obrigações

e o trabalho comunitário, que quase decuplicaram, em detrimento do

acompanhamento educativo, que caiu para metade. Há, no entanto, problemas

de meios: apesar do grosso dos processos não chegar aos juízes, há muita

36 JN 1/7, Por 23/11, Jornal i 23/12.

37 JN 1/7.

38 P 23/11, i 23/12.

39 "Trabalho comunitário é castigo para 241 menores", DN 19/5.

40 "Imigrantes são 27% dos menores condenados em Portugal", DN 17/7.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

67

pendência processual e atrasos por falta de meios nos tribunais e na DGRS, e

os centros educativos estão a ficar sobrelotados. O editorial da mesma edição,

louvando a aposta dos juízes nas medidas alternativas, alerta para esta

sobrelotação "inadmissível".41 O MJ considerará este assunto prioritário e no

final do ano anuncia a abertura no 1º trimestre de 2010 de dois novos centros,

na Madeira e Vila do Conde.42 No final do ano, o "i" refere que, após 10 anos

de vigência da actual Lei Tutelar Educativa, um estudo interno da DGRS

apurou que 40% dos que cumprem medidas de internamento regressam ao

sistema de justiça, mas para Leonor Furtado "não há aumento da criminalidade

juvenil, mas maior visibilidade".43

Outros artigos de diagnóstico do sistema nesta vertente, mais breves,

provêm de intervenções públicas dos seus agentes. Quando as duas

Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJR) de Sintra

apresentam os dados do seu trabalho, as críticas e reivindicações das suas

presidentes – junta nas mesmas instituições de jovens que praticaram crimes

com jovens vítimas de crime, falta de meios, necessidade de centros de

acolhimentos para maiores de 12 anos – merecem divulgação no DN.44 O

mesmo sucede com o alerta de Leonor Furtado para o problema da gravidez

de jovens internadas: há dois bebés nos centros educativos, filhos de jovens ali

internadas, situação para que os centros têm de ser equipados.45 Por fim,

acções concretas das instituições com os jovens também são episodicamente

matéria noticiosa, por exemplo, quando a DGRS leva jovens internados a

41 "Mais crianças e jovens a fazer trabalho a favor da comunidade", Público 23/11.

42 DN 22/12; CM, JN 29/12.

43 "Leonor Furtado: 'Não temos cultura de gangs'", i 23/12.

44 DN 1/7.

45 CM 15/10.

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68 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

concertos ao Festival de Música da Cartuxa, ou quando jovens do centro

educativo da Bela Vista constroem o palco de um concerto no CCB.46

Analisados os artigos em seus temas principais, o tipo de discurso e de

abordagem, de abordagem aos temas, varia perceptivelmente. Não podendo

entrar aqui nas numerosas tipologias de discurso fornecidas pelas ciências

sociais, diremos, de modo simplificado, que identificamos, pelo menos, dois

tipos de discurso principais nas notícias em causa: informativo e interpretativo.

A cobertura do jovem agressor começa por ser, e é maioritariamente, uma

cobertura de discurso informativo sobre casos de delinquência, feita de artigos

que vão dando conta dos casos concretos. Trata-se de artigos que raramente

ultrapassam uma página, cujas fontes se limitam normalmente às forças

policiais, para os factos, e eventualmente à periferia das vítimas (familiares,

amigos, conhecidos, vizinhos) ou às próprias vítimas, para as opiniões de

circunstância, invariável e, compreensivelmente, revoltadas, alarmistas,

negativas. Este tipo de cobertura tem os seus representantes principais no CM,

JN, e, menos, no DN.

A cobertura de discurso mais interpretativo, onde o artigo cede algum

terreno à reportagem e à opinião, o espaço ocupado tende ir para além de uma

página, as fontes citadas alargam-se para os especialistas e os políticos. Aqui,

estão mais representados o DN, o Público, e o novo diário "i ".

Cruzando tipos de discurso com temas, diríamos que o discurso

informativo é mais frequente nos artigos sobre casos de delinquência regulares

(isto é, extra-Bela Vista), enquanto o discurso interpretativo é mais frequente

nos artigos de diagnóstico do sistema e sobre o caso de delinquência

extraordinário da Bela Vista. Os artigos sobre respostas políticas são aqueles

em que mais frequentemente se cruzam estas formas de discurso. O discurso

informativo é o discurso regular e habitual dos media. Por vezes, um caso

46 Exp 14/7, CM 21/11.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

69

concreto atrai mais atenção e transforma-se num caso mediático, abrindo

espaço a um discurso mais interpretativo, como foi, em 2009, o Caso Bela

Vista.

2.3 Caracterizações do jovem agressor

Que caracterização do jovem agressor transparece das notícias? Esta

análise não pretende fazer qualquer caracterização em termos psicológicos ou

sociológicos, apenas possível através de metodologias e discursos

disciplinares respectivos, mas apenas esboçar a sua caracterização mediática.

Sabendo como os media influenciam o senso comum, consideramos

importante identificar o que poderia o cidadão comum saber sobre o jovem

agressor a partir dos jornais.

Baseando-nos nos temas principais, encontramos traços de

caracterização nos artigos de diagnóstico de funcionamento do sistema e de

casos de delinquência. Nos artigos de diagnóstico, o retrato é, em regra, global,

estatístico e impessoal. Já acima referimos alguns desses dados, que

retomamos aqui. Pelos jornais de 2009, o cidadão saberia que há cerca de 200

jovens internados em centros educativos, dos quais cerca de ¼ de origem

estrangeira, e 986 a cumprir outras medidas tutelares na comunidade, dos

quais 39% com acompanhamento educativo, 32% com imposição de

obrigações, 22% com trabalho a favor da comunidade; que as duas últimas

medidas decuplicaram enquanto primeira caiu para metade; que malgrado

estas mudanças internas e uma descida de 43% da criminalidade juvenil em

2008, o número de jovens como um todo no sistema se manteve estável nos

últimos anos. Saberia também que estes jovens são esmagadoramente

rapazes (88%); que 81% deles cometeram crimes contra o património (roubos,

furtos), 9% contra a liberdade sexual, 6% contra a integridade física, e 2%

crimes de tráfico de droga; que a PGD de Lisboa teve em 2006 cerca de 13 mil

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70 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

inquéritos contra jovens (o que estranharia face ao número de jovens

internados) e que registou uma subida dos inquéritos tutelares educativos entre

2006 (4096) e 2008 (4872). Saberia ainda que, apesar dos esforços de

reabilitação, 40% dos jovens internados regressará ao sistema de justiça.

Nos artigos de casos de delinquência encontramos caracterizações mais

ricas do jovem agressor, em termos sociológicos e psicológicos, apesar de, na

generalidade destes artigos, ressalve-se, a caracterização é mínima: a existir,

fica por breves referências ao contexto familiar (invariavelmente "famílias

desestruturadas"), geográfico ("bairros problemáticos"), económico (pobres,

desempregados, "sem fonte de rendimento lícita"), à nacionalidade, caso seja

estrangeira ("nacionalidade croata", "caboverdiano").

No entanto, um pequeno número destes artigos faz da caracterização de

delinquentes específicos e do meio circundante o seu centro. É o que ocorre

quando se dedica duas páginas à história do "Bandido de 13 anos e cara de

anjo que aterrorizava a Amadora"47 ou à história do Gang da Lapa, jovens, nem

todos jovens, que desde 2004 praticavam furtos e roubos numa escalada de

audácia e violência que terminou num megajulgamento com 55 arguidos.48

Aqui, encontra-se um retrato um pouco mais complexo de jovens desprovidos

de valores, sob a indiferença ou a cumplicidade dos pais, "cujas referências

parecem limitar-se cada vez mais ao hip-hop, aos carros de luxo, telemóveis

topo de gama e roupas de marca".49 Na cobertura da Bela Vista, estas

reportagens de perfil (três) centram-se mais no bairro que nos delinquentes em

particular. Abundam imagens de degradação do espaço:

47 Jornal i 12/5.

48 "Iam a casa com pessoas a dormir para levar carros topo de gama", Público 28/4;

"Profissionais do crime antes de fazer 16 anos", JN 9/9.

49 "Profissionais do crime antes de fazer 16 anos", JN 9/9.

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Sociedade e Delinquência Juvenil

71

No prédio cinzento, a entrada faz-se através de um beco inclinado, cimentado, onde se cruzam jovens num rumo indefinido. (…) um deles não perde o tempo necessário para chegar à casa de banho e urina ali mesmo. Dentro, o elevador avariado há meses empurra-nos para seis lances de escadas (…) a pequena cozinha assemelha-se a um insectário – neologismo para um local onde vivem e nidificam insectos de características e proveniências indeterminadas. Aqui, as baratas têm uma clara vantagem, logo secundadas pelas aranhas de pernas altas e finas. (…) Uma lâmpada que pende do tecto é a única iluminação. (…) Na sala, televisor e DVD destacam-se num móvel sem mais nada. Ambos funcionam com uma puxada de electricidade (…) ausência de livros, uma almofada de cor

indefinida e um sofá banal completam a divisão50

.

A caracterização raramente é feita pelos olhos dos próprios

caracterizados. Em toda a cobertura do caso da Bela Vista, e mais geralmente

na cobertura de todo o ano, são raros exemplos de discurso directo como este:

Mas dar a outra face não é para todos. Tome-se o exemplo desta licenciada que não podemos identificar, de origem cabo-verdiana, 20 anos (…) 'O Toninho era um dos nossos, era nosso amigo. A polícia não pode matar' (…) Para esta mulher de olhos pretos doces e voz arranhada, que tem um irmão preso por tráfico de droga, não há perdão. Só revolta. Ela própria acha que podia ter enveredado pelo caminho de Toninho. E sabe que, hoje, os miúdos, aos 13 anos, desinquietam-se, dão expressão à sua insatisfação começando, em bandos, a cometer crimes. Aqui, na Bela Vista, mas também em bairros de Loures e da

Amadora51

.

Os jornais transmitem-nos e associam ao fenómeno imagens que

lembram as de outros países, onde talvez sejam inspiradas: o gueto como

lugar de degradação espacial, de desmoralização humana, de

degenerescência das referências identitárias tradicionais (classe, raça) numa

revolta tão plena de sentido quanto vazia de força emancipatória, deixando

espaço à hegemonia dos símbolos de riqueza, que se vem tornando mais

absoluta que entre as próprias classes abastadas (Nightingale, 1993; Young,

1999, 2007).

50 "Quarto com vista para o bairro", Jornal i 13/5.

51 "É difícil viver num bairro assim", Visão, 14/5.

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II. INSTRUMENTOS NORMATIVOS

INTERNACIONAIS DA JUSTIÇA DE

CRIANÇAS E JOVENS E MODELOS DE

INTERVENÇÃO

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AS CRIANÇAS E JOVENS NO DIREITO

INTERNACIONAL

1

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1 AS CRIANÇAS E JOVENS NO DIREITO INTERNACIONAL

Introdução

Veremos, ao longo deste relatório, como as normas do direito

internacional e as recomendações institucionais são várias vezes convocadas

para criticar algumas das reformas nacionais quanto ao direito e à justiça das

crianças e jovens. Impõem-se, por isso, situar esta temática no contexto do

direito e recomendações internacionais, analisando os instrumentos normativos

mais marcantes em três vertentes principais: no aprofundamento dos direitos

das crianças, na separação entre respostas de natureza sancionatória e

respostas a situações de perigo social e nas respostas à delinquência de

crianças e jovens.

A tomada de consciência internacional sobre a necessidade de criação

de regras próprias dirigidas às crianças e jovens situa-se na primeira metade

do século XX, com a Assembleia da Sociedade das Nações a adoptar, em

1924, uma resolução a endossar a Declaração dos Direitos da Criança,

promulgada em 1923 pelo Conselho da União Internacional de Protecção à

Infância. Em 1946, o Conselho Económico e Social das Nações Unidas

recomendou a adopção da Declaração de 1924, conhecida como Declaração

de Genebra sobre os Direitos da Criança, que continha cinco princípios

relacionados com o bem-estar das crianças, o seu normal desenvolvimento, a

alimentação, a saúde e a protecção contra a exploração.

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78 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Nesse ano, o Conselho Económico e Social criou o Fundo de

Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF). Em 1948, a

Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou a Declaração Universal dos

Direitos do Homem que, no artigo 25.º, referia que a maternidade e a infância

“têm direito a ajuda e a assistência especiais”. Em 1959, a Declaração dos

Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas,

continha referências directas aos direitos das crianças, que também se

encontram no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966, e

no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de

1966. O Pacto das Nações Unidas de 1966, a Convenção Europeia dos

Direitos do Homem, de 1950, e a Carta Social Europeia, de 1961, consagraram

especial protecção ao direito das crianças, associando-o ao seu

desenvolvimento.

Nas décadas de 80 e 90 do século passado, a tomada de consciência

internacional quanto à especificidade dos direitos das crianças conduziu ao

aparecimento de importantes documentos da ONU e de instituições europeias,

assim como à criação de leis em vários países. Estes instrumentos normativos

tornaram-se textos de referência sobre as políticas, não só numa perspectiva

de protecção, mas também no quadro da delinquência juvenil. Destaca-se, em

1989, a adopção, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, da Convenção

sobre os Direitos da Criança, reconhecendo à criança capacidade de auto-

determinação e direito a participar e a ser ouvida em todos os processos que

lhe digam respeito. Neste contexto, também a partir dos anos oitenta foram

introduzidas alterações muito significativas na administração da justiça juvenil,

sendo reconhecida a necessidade de separar o tratamento dos factos

qualificados como crimes cometidos por jovens dos crimes praticados por

adultos.

Para além da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da

Criança, existem outros instrumentos que fixaram regras importantes face à

justiça juvenil, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

79

Administração da Justiça de Menores, conhecidas como Regras de Beijing, de

1985; as Directrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência

Juvenil, ou Princípios Orientadores de Riade, de 1990; as Regras das Nações

Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade, de 1990; o

Relatório Mundial sobre a Juventude: Os Jovens Hoje e em 2015; a

Observação Geral N.º 10 (2007), que versa sobre os direitos das crianças nos

sistemas de justiça de menores; e a reflexão do Grupo Interinstituições sobre

justiça de menores, criado em 1997, com vista à coordenação dos esforços das

organizações internacionais e das autoridades nacionais tendo em vista a

reforma da justiça de menores.

A análise de grande parte daqueles instrumentos já foi feita no relatório

do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa “Os Caminhos Difíceis da

“Nova” Justiça Tutelar Educativa. Uma avaliação de dois anos de aplicação da

Lei Tutelar Educativa”, de 2004, para o qual remetemos. Limitamo-nos a

elencar, com uma referência breve, esses instrumentos, analisando mais em

detalhe apenas os mais recentes.

1.1 A acção da ONU e do direito internacional – instrumentos relevantes em matéria de justiça juvenil 52

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,

adoptada em 1989, iniciou uma nova fase do direito internacional das crianças

ao proceder a uma abordagem integrada dos seus direitos reconhecendo que o

seu desenvolvimento pleno implica a realização dos seus direitos sociais,

52 Para maior desenvolvimento desta temática, ver Gomes (Coord.), 2004: 56-70.

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80 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

culturais, económicos e civis, procurando o equilíbrio entre os direitos das

crianças e os dos seus responsáveis legais, concedendo àquelas o direito

genérico de participar nas decisões que lhes dizem respeito53. Os grandes

princípios orientadores de direito internacional quanto aos direitos das crianças,

plasmados na Convenção, são o princípio da não discriminação, da

salvaguarda do interesse superior da criança, do direito à vida, à sobrevivência

e ao desenvolvimento e da livre expressão das crianças. A Convenção elege o

princípio do interesse superior da criança como aquele que deverá nortear a

actuação dos Estados na defesa intransigente da dignidade da criança.

Concretamente no que se refere à justiça juvenil, cabe aos Estados-

parte reconhecer “à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter

infringido a lei penal o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu sentido

de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos do homem e as

liberdades fundamentais de terceiros e que tenha em conta a sua idade e a

necessidade de facilitar a sua reintegração social e o assumir de um papel

construtivo no seio da sociedade” (cf. artigo 40.º).

Apesar de não se referir explicitamente à imputabilidade penal, a

Convenção impõe aos Estados signatários a obrigação de promover o

estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que a

criança não tem capacidade para infringir a lei penal54 e sugere a criação de

sistemas de justiça especiais para as crianças de idade inferior a 18 anos que

pratiquem factos qualificados como crimes distintos dos sistemas aplicáveis

53 Em 2009 celebrou-se o 20.º aniversário da assinatura da Convenção, texto fundador que

constitui um elemento motor da tomada de consciência do interesse superior da criança, em particular na Europa. De acordo com Jacques Barrot, Vice-Presidente da Comissão Europeia, responsável pela justiça, liberdade e segurança, considerando que a Convenção continua a ser a referência da acção em matéria de protecção das crianças (Barrot, 2009).

54 O estabelecimento deste mínimo legal é, contudo, discricionário, atendendo às diferenças

existentes nos vários sistemas jurídicos na fixação do limite etário mínimo. No entanto, parece resultar da combinação entre as Regras de Beijing e as da Convenção que um limite etário mínimo deverá estar intimamente relacionado com o estádio de desenvolvimento e de maturidade da criança.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

81

aos adultos, em conformidade com a protecção dos direitos humanos e com a

protecção das garantias processuais da criança55.

Regras de Beijing

As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça

de Menores, conhecidas por Regras de Beijing, adoptadas em 1985 pela

Assembleia Geral das Nações Unidas surgem, na sequência da importância

reconhecida à Declaração dos Direitos da Criança, da necessidade de revisão

das legislações, das políticas e das práticas nacionais no âmbito da justiça

juvenil.

As Regras de Beijing incentivam o recurso aos meios extrajudiciais,

evitando o formalismo judicial e afastando a estigmatização, e, para além de

vincarem o papel da comunidade na aplicação de medidas alternativas e de

reeducação, conferem destaque à família ao exigir que os filhos não sejam

separados dos pais, senão em último recurso. No que toca às medidas

aplicáveis, elenca um conjunto de medidas - a aplicar preferencialmente e em

detrimento do internamento numa instituição – como, por exemplo, medidas de

protecção, orientação e vigilância; regime de prova; prestação de serviços à

comunidade; multa, indemnização e restituição; participação em grupos de

aconselhamento; e colocação em família idónea, em centro comunitário ou em

outro estabelecimento vocacionado para o efeito.

55 Recorde-se que, nos termos da Convenção, “(….) criança é todo o ser humano menor de 18

anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”.

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82 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Princípios Orientadores de Riade e Regras para a Protecção de Menores Privados de Liberdade

Em 1990 foram adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas a

Resolução n.º 45/112, referente aos Princípios Orientadores das Nações

Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil, conhecida como Princípios

Orientadores de Riade, e a Resolução n.º 45/113, relativa às Regras das

Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados de Liberdade.

Nos Princípios Orientadores de Riade é sublinhada a importância da

adopção de medidas de prevenção da delinquência juvenil e de medidas que

evitem criminalizar e penalizar jovens por comportamentos que não causem

danos sérios ao seu desenvolvimento ou que não prejudiquem terceiros,

destacando-se a especial importância de políticas preventivas que facilitem

uma socialização e integração das crianças e jovens, onde se incluem

cuidados médicos, alimentação, habitação e educação.

As Regras das Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados

de Liberdade estabeleceram um conjunto de regras mínimas que devem estar

previstas nos ordenamentos jurídicos nacionais, que enquadram aquelas

situações, como a existência de programas de educação e de formação.

Enfatiza-se a importância do regresso à comunidade, prevendo a Resolução

que os jovens devem beneficiar de medidas de apoio na reinserção na

sociedade, na família, na educação e no emprego.

Relatório Mundial da Juventude: Os Jovens Hoje e em 2015

Em 2005, o Programa das Nações Unidas para a Juventude, do

Departamento de Assuntos Económicos e Sociais (DESA), publicou o Relatório

“World Youth Report 2005: Young People Today and in 2015”, que salienta a

necessidade de intensificar investimentos em medidas que permitam

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

83

implementar o Programa de Acção Mundial para a Juventude e realizar os

Objectivos de Desenvolvimento do Milénio56. O relatório analisa a situação dos

jovens no mundo em três perspectivas: os jovens na economia global; os

jovens na sociedade civil; e os jovens em risco no contexto das tendências

mundiais relacionadas com a globalização, educação, emprego, fome e

pobreza.

Observação Geral N.º 10 (2007): os direitos das crianças nos sistemas de justiça de menores

Este documento faz uma análise da evolução das legislações nacionais

no que respeita à adequação do direito e da justiça de crianças e jovens aos

princípios da Convenção de 1989 e formula um conjunto de recomendações

aos Estados-parte tendo em vista a definição e aplicação de uma política global

em matéria de justiça juvenil. Esta política apoio-se em dois eixos centrais: a

prevenção da delinquência juvenil e a introdução de medidas alternativas ao

processo judicial na resposta à criminalidade de crianças e jovens.

Apesar de se reconhecerem os esforços desenvolvidos pelos Estados-

parte no sentido de harmonizar o sistema de administração da justiça de

56 Uma das conclusões é no sentido de que, apesar de estarem a receber mais educação,

ainda existiam 113 milhões de crianças que não frequentam a escola, 130 milhões de jovens analfabetos e cada vez mais jovens desempregados – com especial incidência na Ásia Ocidental, Norte de África e África do Sul do Saara.

Neste relatório avaliam-se, ainda, as tendências mundiais relacionadas com os jovens e o ambiente, as actividades de lazer, a participação no processo de decisão, as relações intergeracionais e as tecnologias da informação e comunicação – de salientar o reconhecimento do contributo que o tempo de lazer pode representar para os jovens quanto à inclusão social, o acesso a oportunidades e o desenvolvimento em geral. Por fim, elencam-se as tendências no que se refere à saúde, VIH/SIDA, abuso de droga, situação das raparigas e das mulheres, conflitos armados e delinquência juvenil, salientando-se que a principal causa de mortalidade dos jovens é o VIH/SIDA, seguida da violência e das lesões. Outras conclusões vão no sentido de reconhecer que existe uma forte ligação entre a vitimização dos jovens e a criminalidade, e que a pobreza, a disfunção familiar, o abuso de substâncias e a morte de parentes são factores de risco que contribuem para a delinquência juvenil.

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84 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

crianças e jovens com a Convenção de 1989, considera-se que muitos deles

ainda têm algum caminho a percorrer no respeito pleno pela Convenção.

Salienta-se, em especial, a ausência ou insuficiência de medidas e políticas

que apostem na prevenção, no sentido de evitar que as crianças entrem em

conflito com a lei.

Na definição do que se deve entender por uma política global de justiça

de crianças e jovens chama-se a atenção para os seguintes elementos

essenciais: prevenção da delinquência juvenil; intervenção sem recurso a

processo judicial; fixação da idade mínima de responsabilidade penal e da uma

idade até à qual poderá ser aplicado o sistema de justiça para crianças e

jovens; e garantias.

No âmbito da prevenção da delinquência juvenil, uma das vertentes

centrais do programa, enfatiza a importância dos programas que visam o apoio

familiar, o designado potencial social dos pais, e promovam a educação dos

jovens; e de programas que envolvam a comunidade, designadamente, no

âmbito das respostas extra-judiciais, promovendo formas de justiça

restaurativa. Recomendando-se, ainda, como idade mínima de

responsabilidade penal os 12 anos.

Resolução ECOSOC 2007/23

Em 2007, o Conselho Económico e Social das Nações Unidas publicou a

Resolução ECOSOC 2007/23 sobre a reforma da justiça de crianças e jovens.

Os Estados são exortados a adoptar planos de acção que integrem medidas no

âmbito da delinquência juvenil e da reforma da justiça de crianças e jovens,

concretamente reduzindo o recurso a medidas cautelares, incentivando a

utilização de mecanismos de desjudicialização, de justiça restaurativa e de

medidas substitutivas do internamento. O documento salienta, ainda, a

importância de munir os agentes da justiça, que trabalham com esta temática,

com formação especializada, sejam magistrados, agentes de forças de

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

85

segurança ou técnicos de reinserção social e funcionários de centros

educativos.

Resolução sobre direitos humanos na administração da justiça, em particular da justiça para menores

Em Março de 2009, a Assembleia Geral das Nações Unidas publicou a

Resolução A/HRC/10/L.15 sobre a promoção e protecção de direitos humanos,

civis, políticos, económicos, sociais e culturais e o direito ao desenvolvimento.

Nesta Resolução, os Estados são convidados a desenvolver programas de

formação dirigidos para a capacitação em direitos humanos, ressaltando as

especificidades próprias da justiça juvenil. A Resolução relembra, ainda, a

necessidade de os Estados desenvolverem estratégias de readaptação e de

reinserção de jovens delinquentes, em particular programas de educação que

potenciem a sua reinserção social.

1.2 O direito europeu

Em Outubro de 2006, o Conselho da Europa enviou aos Estados-

membros um questionário dirigido à recolha de informação sobre a situação no

âmbito da delinquência juvenil. Foram recebidas respostas de trinta e quatro

Estados-membro e a conclusão é que constituem princípios informadores da

legislação da maioria dos Estados-membro, os princípios da

educação/reabilitação dos jovens, da resolução extrajudicial de conflitos, em

especial através da mediação e restauração e da salvaguarda de um processo

que respeita os direitos e as garantias processuais.

Há, contudo, divergências significativas em vários aspectos, como

quanto à idade mínima da responsabilidade criminal, quanto à aplicação de

medidas institucionais e não institucionais, quer quanto ao tipo de medidas,

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86 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

quer quanto à forma como são aplicadas e executadas. Nesse sentido, alguns

países têm desenvolvido programas inovadores no quadro da mediação e da

reconciliação vítima-autor, da prestação de trabalho a favor da comunidade ou

programas educacionais para distintos tipos de autores, como agressores

violentos e agressores sexuais. A conclusão central vai no sentido de uma

grande disparidade nas legislações e práticas dos diferentes países e na

necessidade de implementação de processos de avaliação que permitam a

difusão de boas práticas.

A verdade é que a filosofia do direito da União Europeia relativamente

aos jovens delinquentes não vai no mesmo sentido da tendência actualmente

verificada em muitos Estados europeus, que têm vindo a aproximar, nalgumas

vertentes, o regime aplicável aos jovens delinquentes do regime aplicável aos

adultos. No início desta década, a delinquência juvenil tornou-se um factor de

inquietação social que acabou por legitimar alguns Estados a inserir nos seus

textos legais normas de cunho mais repressivo e securitário, de que são

exemplos a diminuição da idade mínima a partir da qual os jovens podem ser

responsabilizados por comportamentos violadores da lei e o aumento da

duração das medidas, em especial das medidas de internamento.

Assiste-se, assim, em alguns países da Europa a alguma perda da

relevância da condição de criança e jovem sempre que está em causa o

cometimento de um facto qualificado como crime. Para esta viragem de

orientação em muito contribui o crescente sentimento de insegurança57, nem

57 Os novos fenómenos, como a delinquência organizada, os gangs de jovens, o vandalismo

nas ruas, o assédio nas escolas, a violência exercida sobre os pais, os comportamentos xenófobos e os grupos extremistas, a imigração ou a toxicodependência, com maior incidência nas grandes cidades europeias, acabaram por implicar em alguns países europeus, nos anos mais recentes, uma propensão para o endurecimento do direito penal de crianças e jovens, designadamente, através do aumento das sanções aplicáveis. Neste sentido, é de salientar as reformas do direito penal de crianças e jovens introduzidas durante a década de 90 nos Países Baixos, em 1995 em França, assim como, em Inglaterra, o “Criminal Justice Act” que, em 1994, fez aumentar em um ou dois anos a sanção máxima aplicável a jovens entre os 15 e os 18 anos e estabeleceu a possibilidade de internamento de jovens entre os 12 e os 14 anos em centros em regime fechado, durante um período de seis meses a dois anos. Na Inglaterra foi

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

87

sempre suportado em dados empíricos, mas sim em casos muito mediatizados

que condicionam as percepções sociais.

Elencamos, de seguida, as Convenções e Recomendações mais

relevantes na vertente da justiça juvenil, adoptadas no âmbito do Conselho da

Europa, analisadas em detalhe no nosso estudo de 2004 para o qual

remetemos (Gomes, 2004: 70-90). São as seguintes:

Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças

A Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, que

entrou em vigor em 2000, tem como objectivo a promoção dos direitos das

crianças à informação e à participação nos processos que as afectam,

prevendo medidas processuais nesse sentido.

Recomendação (87) 20

Esta Recomendação, sobre “Reacções Sociais à Delinquência Juvenil”,

adoptada pelo Comité de Ministros em 1987, é um dos instrumentos jurídicos

do Conselho da Europa mais importantes em matéria de promoção e protecção

dos direitos das crianças. Centra-se em três temas principais: (1) prevenção da

delinquência juvenil; (2) incentivo à utilização de medidas de diversão, de

desjudicialização e de mediação, evitando que os jovens tenham contacto com

o sistema de justiça criminal; (3) desenvolvimento de garantias e de

aprofundamento de direitos no âmbito do processo judicial, designadamente, o

direito à jurisdição especializada e, sempre que se revele necessário, a

ainda introduzido o “pareting order” que passou a prever que os pais do jovem que cometa uma infracção podem ser obrigados a assistir a cursos de educação ou, ainda, serem punidos com multas.

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88 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

aplicação de medida de internamento em regime fechado, ela tenha uma

duração o mais curta possível, e o direito a programas diversificados, no âmbito

da execução das medidas, que permitam desenvolver competências efectivas.

Recomendação (88) 6

O Comité de Ministros do Conselho da Europa adoptou, em 19888, uma

Recomendação sobre “Reacções Sociais ao Comportamento Delinquente dos

Jovens de Famílias Migrantes”, no sentido de os Estados-membro adoptarem

medidas destinadas à prevenção de comportamentos delinquentes por parte

dos jovens migrantes, designadamente, possibilitando aos jovens de segunda

geração as possibilidades dos autóctones para se poderem integrar no seu

país de residência, começando pela possibilidade de aquisição de residência.

Outras das recomendações vão no sentido do desenvolvimento de medidas

que evitem que as polícias adoptem comportamentos discriminatórios.

Recomendação (2000) 20

Esta Recomendação, sobre “O papel da intervenção psicossocial

precoce na prevenção dos comportamentos criminais”, foi adoptada pelo

Comité de Ministro do Conselho da Europa, em Outubro 2000, tendo como

objectivo central a definição de estratégias de prevenção dos comportamentos

criminais, incluindo medidas de prevenção de factores de risco e protecção,

como, por exemplo, a discriminação racial, a prostituição, a mendicidade, a

negligência. Incentiva-se, ainda, o desenvolvimento de estudos que melhor

permitam conhecer os factores de risco associados a comportamentos

criminais das crianças e jovens.

Recomendação (2001) 1532

Em Assembleia Parlamentar de Setembro de 2001, foi adoptada a

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

89

Recomendação sobre “Uma política social Dinâmica em Favor das Crianças e

Adolescentes em Meio Urbano”, visando a definição de políticas relativamente

a comportamentos anti-sociais dos jovens em meios urbanos e ao fenómeno

da ghetização nos arredores das grandes cidades. A Recomendação encoraja

os Estados-membro a introduzirem outras formas de regulação de litígios, quer

alternativos aos processos judiciais, quer alternativos a medidas detentivas,

defendendo-se a implementação de medidas ao nível da comunidade, medidas

não judiciais e alternativas à privação de liberdade dos jovens. A

Recomendação reforça a ideia de que a resposta principal à violência dos

jovens se deve situar, não na repressão ou na sanção, mas sim na prevenção

que deve surgir o mais cedo possível. A Recomendação reconhece, ainda, que

esta resposta passa necessariamente por uma acção mais concertada entre os

diversos parceiros locais e nacionais e por uma troca de experiência entre

países.

Recomendação (2003) 20

Esta Recomendação, adoptada pelo Comité de Ministros em Setembro

de 2003, versa sobre novos modos de tratamento da delinquência juvenil e

sobre o papel da justiça juvenil, que, nalguns casos, pode ser aplicada a jovens

adultos com menos de 21 anos. De entre as recomendações, destaca-se a

ênfase nas medidas de prevenção da para-delinquência e da reincidência, no

desenvolvimento de medidas inovadoras de aplicação na comunidade e que

envolvam os diferentes actores sociais, nomeadamente, polícias, autoridades

judiciárias, serviços de educação, emprego, saúde, e na formação sobre o

exercício das responsabilidades parentais.

Recomendação (2008) 11

Esta Recomendação, sobre as regras europeias para os jovens

delinquentes objecto de sanções ou de medidas, adoptada pelo Comité de

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90 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Ministros em 5 de Novembro de 2008, é dirigida à execução das medidas, quer

as aplicadas na comunidade, quer as que implicam a privação de liberdade,

visando melhor proteger os direitos e a segurança dos jovens que entram em

conflito com a lei e aos quais são aplicadas sanções ou medidas, promover a

sua saúde física e mental, bem como o seu bem-estar social aquando da

execução de medidas quer em meio aberto, quer institucionais. A aposta na

educação, nas várias vertentes do jovem infractor, assume também aqui um

papel central.

1.3 A acção da União Europeia

O desenvolvimento de políticas efectivas de prevenção da criminalidade

impulsionadas pelo Conselho Europeu de Tampere, de 1999, sobre a criação

de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça na União Europeia, tem

constituído uma das apostas da acção da União Europeia, salientando-se a

importância do reforço da rede de autoridades nacionais competentes, bem

como da cooperação entre organismos nacionais especializados nesta área,

designadamente no âmbito da delinquência juvenil, da criminalidade em meio

urbano e da criminalidade associada à droga.

Com este pano de fundo teve lugar, em 2000, em Portugal, a

Conferência de Alto Nível sobre Prevenção da Criminalidade, que reformou as

conclusões do Conselho Europeu de Tampere e ensaiou a definição de uma

estratégia europeia contra a criminalidade. No mesmo ano, no quadro do

Seminário “A Justiça de Menores na Europa”, foram relembrados os programas

e as iniciativas desenvolvidas para a juventude e partilhada informação sobre

as respostas dos Estados-membro aos problemas levantados pela

delinquência juvenil.

As conclusões do Seminário foram no sentido de que a delinquência

juvenil é, sobretudo, um fenómeno urbano, existindo uma relação estreita entre

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

91

a delinquência juvenil e o crescimento urbanístico desordenado, especialmente

nas periferias das grandes cidades; entre delinquência juvenil e exclusão

social, económica e cultural; entre delinquência juvenil e movimentos

migratórios, com as desadaptações sociais associadas, que acentuam as

fragilidades das instâncias tradicionais de socialização, designadamente da

família e da escola, face aos primeiros sintomas de desvio social, às

dificuldades em transmitir valores fundamentais sociais; e a relação entre a

prática de crimes e a existência de problemas de foro psiquiátrico e de

consumo de álcool. Analisou-se, ainda, a mediatização da delinquência juvenil

e o seu efeito nas percepções de insegurança.

Em termos de respostas à delinquência juvenil, salientam-se as

seguintes: a) a luta contra a delinquência juvenil tem que respeitar e promover

os direitos humanos e os direitos da criança; b) as respostas à delinquência

juvenil requerem uma abordagem integrada, de cariz preventivo, assistencial,

policial e judiciário, não constituindo apenas tarefa das entidades policiais e

judiciárias; c) uma intervenção pluridisciplinar é essencial para a compreensão

do fenómeno da delinquência juvenil e para a elaboração e execução de

programas e de decisões mais adequados, quer para a prevenção primária,

quer para a reincidência; d) é crucial uma articulação e coordenação

sistemáticas entre todas as entidades; e) as estratégias de prevenção devem

ser conduzidas por grande número de actores e aptas a permitir uma

intervenção precoce, que detecte os primeiros factores de risco, devendo ter

uma base local inserida em estratégias globais de desenvolvimento social e

urbanístico eficazes, por forma a contrariarem a exclusão social e a

marginalização urbana, o desemprego, a falta de oportunidades de educação e

o absentismo escolar, desempenhando os sistemas educativo, de formação

profissional e emprego um papel essencial na prevenção da delinquência

juvenil.

Apesar das diferenças entre os Estados-membro quanto ao sistema de

medidas aplicáveis a jovens, a conclusão foi no sentido de existir uma

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92 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

tendência comum em todos os países da União Europeia na prioridade

dispensada a medidas de conteúdo reparador do ofendido ou da comunidade e

a medidas de conteúdo probatório e educativo executadas na comunidade. As

medidas detentivas são, assim, reservadas para os casos mais graves.

Do Seminário resultou o propósito de iniciar um caminho comum de

fixação de regras mínimas que inspirem e orientem a aproximação dos vários

sistemas jurídicos europeus e que dê consistência à perspectiva europeia de

tratamento da delinquência juvenil. Foi, ainda, tomada a iniciativa de criação de

uma Rede Europeia de Prevenção da Criminalidade, orientada

designadamente para a delinquência juvenil, e a proposta de criação de um

Observatório Europeu sobre a Delinquência Juvenil.

Esta Rede Europeia de Prevenção da Criminalidade (REPC) acabou por

ser criada por decisão do Conselho da União Europeia, em Maio de 2001,

visando contribuir para o desenvolvimento de acções de prevenção da

criminalidade, quer a nível da União, quer a nível local e nacional. As áreas da

delinquência juvenil, da criminalidade em meio urbano e da criminalidade

associada à droga constituem o objecto de intervenção privilegiado desta

Rede58.

No que respeita a programas concretos de prevenção da criminalidade,

salienta-se, em 2001, o Programa Hipócrates59, no âmbito da prevenção da

58 A REPC tem os seguintes objectivos concretos: facilitar a colaboração, os contactos e a

troca de informações e de experiências; analisar as acções existentes no âmbito da prevenção da criminalidade; definir os principais domínios de colaboração e organizar anualmente a entrega do Prémio Europeu de Prevenção da Criminalidade; organizar conferências, seminários e encontros; reforçar a cooperação com os países candidatos; e apresentar anualmente ao Conselho um relatório sobre as actividades desenvolvidas (Jornal Oficial, 2001).

59 O Programa Hipócrates, criado por um período de dois anos (2001 e 2002), visava a

promoção e a cooperação entre todas as organizações públicas e privadas dos Estados da União com participação na prevenção da criminalidade. As prioridades deste programa na prevenção geral da criminalidade baseavam-se nos três temas prioritários identificados pelo Conselho Europeu de Tampere, entre os quais figurava a delinquência juvenil.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

93

criminalidade e, em 2002, o Programa-quadro AGIS60, com vista ao co-

financiamento de projectos de cooperação entre Estados-membro.

Como a inserção social e laboral constituem dois dos eixos

fundamentais para a prevenção e o combate à delinquência juvenil, são várias

as estratégias, agendas, projectos e programas adoptados pelos sucessivos

Conselhos Europeus e pelas instituições comunitárias, sendo de destacar, pela

sua relação mais próxima com a temática dos jovens infractores, o Programa

Operacional de combate à discriminação, inserido no Objectivo n.º 1 do Fundo

Social Europeu.

Um exemplo de aplicação deste Programa, no domínio da justiça de

crianças e jovens, é o da Fundación Diagrama, em Espanha, que co-administra

com as comunidades um programa operacional dirigido aos jovens que estejam

a cumprir ou tenham cumprido medidas ou sanções privativas de liberdade. O

objectivo desse programa é preparar, de modo individualizado e integral, um

itinerário de inserção social e laboral para os jovens, nessas circunstâncias

começando mesmo antes do jovem abandonar o centro de internamento. Os

resultados obtidos, até ao momento, são considerados muito positivos (cf.

Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre A prevenção da

delinquência juvenil, as formas de tratamento da mesma e o papel da justiça de

menores na União Europeia, 2006).

60 Em 2002, o Programa-quadro AGIS prosseguiu e ampliou a acção dos anteriores programas,

designadamente dos Programas Grotius II - Penal, Oisin II, Stop II, Hipócrates e Falcone, no âmbito da cooperação policial e judiciária em matéria penal.

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94 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Parecer “A prevenção da delinquência juvenil, as formas de tratamento da mesma e o papel da justiça de menores na União Europeia”

O Comité Económico e Social Europeu (CESE) da União Europeia, em

10 de Fevereiro de 2005, elaborou um parecer sobre “A prevenção da

delinquência juvenil, as formas de tratamento da mesma e o papel da justiça de

menores na União Europeia”, que veio a ser aprovado em 2006. Este Parecer

versa sobre as seguintes temáticas: causas da delinquência juvenil, limitações

dos sistemas tradicionais de justiça juvenil, novas tendências da justiça de

crianças e jovens, tratamento actual no âmbito da União Europeia,

conveniência de um quadro europeu de referência sobre a justiça juvenil e

propostas para uma política europeia de justiça de crianças e jovens.

A delinquência juvenil é considerada, neste Parecer, como um dos

fenómenos sociais mais preocupantes, cuja resposta passa pela articulação

das seguintes linhas de acção: prevenção; medidas tutelares educativas; e

integração e reinserção social dos jovens infractores. Considera-se, por isso,

que a “a elaboração de uma estratégia comum de luta contra a delinquência

juvenil devia ser um objectivo alvo de maior atenção no seio da União

Europeia”, não só porque afecta uma parte especialmente sensível da

população, mas também porque, ao fazê-lo, se está a prevenir a delinquência

adulta do futuro. Contudo, apesar do reconhecimento da importância da

temática, plasmada em vários projectos e políticas, considera-se que faltam,

ainda, “instrumentos e medidas orientados para o fenómeno específico da

delinquência protagonizada por jovens”.

Salienta-se, assim, a ausência ou deficiência de coordenação e de

integração das políticas nacionais dos Estados-membro, o que leva a que

exista uma grande heterogeneidade no tipo respostas a este fenómeno social,

dificultando, também, a análise comparativa da situação nos diferentes países

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

95

da União Europeia, desde logo, porque “cada um define como entende a

delinquência juvenil com base em variáveis diferentes61. Em consequência, o

Comité Económico e Social Europeu da União Europeia considera importante a

definição de medidas de coordenação e de orientação que facilitem uma

gestão europeia do fenómeno, mas também de políticas de informação

adequadas e que “contribuam para desdramatizar e ajustar a percepção

exageradamente negativa”. Aliás, considera-se mesmo que um quadro

comunitário de referência poderia servir para limitar ou impedir mesmo as

tendências regressivas que são patentes em alguns Estados-membro.

Salientam-se, ainda, importantes diferenças em termos de regimes

sancionatórios, como, por exemplo, no que se refere aos limites mínimos da

idade da responsabilidade criminal ou ao limite máximo de aplicação da

jurisdição especial para os jovens, à existência ou não de um direito penal

juvenil com sanções específicas ou, como ocorre nalguns países, aplicando-se

aos jovens as mesmas penas que aplicam aos adultos, ainda que prevendo

limites e atenuações especiais.

No Parecer pode ler-se, também, que “nos países europeus há cada vez

mais a percepção de um aumento da delinquência juvenil bem como da

gravidade dos delitos cometidos por jovens” e que, perante esta constatação,

“os cidadãos exigem mecanismos de controlo mais eficazes, o que está a levar,

em muitos países, a um endurecimento da legislação de menores”.

O Parecer incorpora um conjunto de propostas, tendo em vista uma

política europeia de justiça de crianças e jovens, partindo dos seguintes

pressupostos:

61 O Parecer salienta que, apesar de existirem diversas normas internacionais no quadro da

ONU e do Conselho da Europa sobre a delinquência juvenil e justiça de menores, “a sua força vinculativa é escassa ou nula (com a excepção (…) da Convenção sobre os Direitos da Criança) e apresentam apenas normas mínimas comuns para toda a comunidade internacional. (…) a União Europeia devia aspirar e ter como objectivo melhorar e tornar mais eficazes no seu território os princípios estabelecidos internacionalmente”.

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96 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

(1) Em todos os países da União Europeia vão surgindo, em maior ou menor

grau, “fenómenos relativamente semelhantes que exigem respostas também

parecidas: crise das instâncias tradicionais de controlo social informal (família,

escola, trabalho), aparecimento nos grandes núcleos urbanos de guetos em

que uma percentagem importante dos seus habitantes se encontram em risco

de exclusão social, novas formas de delinquência juvenil (violência doméstica e

na escola, bandos juvenis, vandalismo urbano), abuso de drogas e de álcool,

etc.”;

(2) Regista-se uma aproximação progressiva entre os modelos de justiça

juvenil dos Estados-membro da União Europeia, impondo-se o chamado

modelo de responsabilidade, associado à justiça retributiva ou reparadora.

Contudo, entre os vários Estados, existem grandes diferenças, como a idade

para a exigência de responsabilidade penal juvenil, sendo desejável alcançar-

se uma harmonização progressiva dos modelos e sistemas de prevenção,

protecção, intervenção e tratamento do fenómeno da delinquência juvenil e da

justiça de crianças e jovens.

(3) A intervenção deve ser multidisciplinar e multi-institucional, integrando as

ciências sociais e de comportamento, e diferentes instituições e organizações

(administrações públicas, regionais e locais, serviços sociais de diferentes

âmbitos, aparelho policial e judicial, organizações sem fins lucrativos, empresas

privadas através de projectos de responsabilidade social empresarial,

associações de famílias, actores económicos e sociais, etc.).

Considerando que a sociedade da informação, a evolução tecnológica, a

permeabilidade das fronteiras e outros factores análogos desempenham um

papel importante na generalização dos fenómenos de delinquência juvenil, o

"efeito de contágio" desses comportamentos não deve ser subestimado. Como

recomendações concretas, o CESE considera, entre outras, as seguintes:

(1) Produção de indicadores quantitativos actualizados e comparáveis sobre a

situação da delinquência juvenil nos países da UE, de forma a ser conhecida a

verdadeira extensão do problema, condição fundamental para as políticas e

medidas a desenvolver;

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

97

(2) Considera-se importante a existência de normas mínimas ou orientações

comuns entre todos os Estados-Membro em relação às políticas de prevenção,

reeducação e ressocialização, passando pelo tratamento policial e judicial dos

jovens em conflito com a lei penal. Essas normas deviam basear-se nos

princípios gerais de direito internacional, designadamente, na Convenção sobre

os Direitos da Criança;

(3) Criação de um observatório europeu sobre a delinquência juvenil, com o fim

de facilitar o estudo permanente deste fenómeno, sendo a investigação e o

conhecimento utilizados como ferramentas de ajuda à adopção de políticas e à

definição de estratégias de resposta.

Considerando que as diversas questões relativas à justiça de jovens são

abordadas de forma dispersa pelas diferentes políticas da União Europeia

(liberdade, segurança e justiça, juventude, educação e formação, emprego e

assuntos sociais), recomenda-se uma coordenação operacional entre todos os

serviços envolvidos.

As características específicas do fenómeno da delinquência juvenil,

assim como o seu próprio carácter dinâmico e mutante, exigem uma formação

especializada e permanente dos profissionais, bem como a participação das

organizações e dos profissionais da sociedade civil (organizações do "terceiro

sector", associações, famílias, ONG, etc.).

Nesse sentido, considera-se que as políticas comunitárias adoptadas

deveriam ter em conta o papel das organizações sindicais e empresariais na

concretização da integração e inserção sócio-laborais e profissionais dos

jovens em situação de exclusão social. Recomenda-se, ainda, que a Comissão

Europeia estabeleça linhas orçamentais de apoio à protecção de crianças e

jovens, prevenção da delinquência juvenil e tratamento dos jovens infractores.

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98 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Observatório Europeu de Justiça Juvenil

Como uma das inovações institucionais mais relevantes, destaca-se a

criação do Observatório Europeu de Justiça Juvenil (OEJJ), sediado em

Bruxelas, em 13 de Julho de 2008, sendo o culminar das conclusões da II

Conferência Internacional do Observatório Internacional de Justiça Juvenil

(OIJJ) "A Justiça Juvenil na Europa: Um marco para a integração", realizada

em Bruxelas em Outubro de 2006.

O OEJJ inscreve a sua acção no âmbito da acção do Conselho Europeu

de Justiça Juvenil, como órgão central de estudo e análise desta problemática,

podendo integrar órgãos da administração pública dos Estados-membro,

universidades, centros académicos e organizações não governamentais.

É um organismo que visa contribuir para a melhoria permanente da

justiça juvenil na Europa, incentivando a colaboração entre administrações

públicas, universidades e ONG´s. Tem como objectivos a criação de um

espaço europeu de reflexão sobre a temática, o desenvolvimento de iniciativas

e o estabelecimento de processos de boas práticas tendo em vista a educação

e a integração social dos jovens em conflito com a lei.

No desenvolvimento dos seus objectivos, o OEJJ prevê a realização das

seguintes actividades: iniciativas de colaboração com e entre entidades e

associações no âmbito da justiça juvenil, universidades e administração

pública, bem como com organismos europeus; constituição de grupos de

trabalho e redes de peritos a nível europeu nas áreas da prevenção, de

resolução de conflitos e integração social; criação de fundos documentais e

estatísticos; e apresentação de propostas e recomendações relativamente à

definição e à aplicação de políticas no âmbito da justiça juvenil.

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OS MODELOS DE INTERVENÇÃO

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2 OS MODELOS DE INTERVENÇÃO

Introdução

O tratamento da delinquência juvenil foi objecto, ao longo dos tempos,

de transformações que implicaram respostas institucionais distintas. Tais

respostas começaram por ser idênticas às dispensadas aos adultos

condenados pala prática de factos qualificados como crimes, não havendo

instituições especializadas em delinquência juvenil, de acordo com um modelo

que se pode designar punitivo. Apenas a partir de meados do século XIX se

registaram tentativas para tratar de forma diferenciada os jovens delinquentes,

separando-os dos adultos. Começou a defender-se a proibição de

encarceramento de menores de 18 anos, tendo surgido a primeira instância

específica de controlo penal para os jovens. Desde então a justiça de crianças

e jovens tem assumido diferentes modelos de intervenção: modelo de

protecção, tutelar ou assistencial, modelo de bem-estar ou educativo e modelo

de responsabilidade ou de justiça (Gomes, 2004: 40-52). Destacam-se, ainda,

o emergente modelo de justiça restaurativa, o modelo de política criminal

norteamericano e o designado modelo comum europeu.

2.1 Os modelos de protecção, de justiça e educativo

Para o modelo de protecção, a criança não é responsável pelos seus

actos, mas vítima das circunstâncias, pelo que não deve ser punida. O

comportamento criminal está ligado a limitações sociais, económicas e físicas

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102 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

e, por isso, qualquer intervenção do Estado não deve ter como objectivo punir o

delinquente em particular, mas constituir uma atenuante a essas limitações

(Tutt, 1991), isto é, a intervenção a fazer deve ser orientada pelas

necessidades e não pelo facto praticado. O modelo de protecção caracteriza-

se, fundamentalmente, pelos seguintes aspectos: equiparação quanto à forma

de processo e às medidas aplicáveis entre crianças delinquentes e crianças

que se encontrem em situações vistas como socialmente indesejáveis ou em

risco; processo informal, conduzido em regra pelo juiz, com escassas garantias

e visando quase exclusivamente apurar a personalidade do jovem e as suas

condições sócio-familiares (a observação é um ponto essencial deste modelo);

e livre aplicação e livre revisão, pelo juiz, de medidas de protecção, de

assistência e/ou educação, de duração indeterminada (Moura, 2000).

Na segunda metade do século XX foi dada uma nova visibilidade aos

direitos das pessoas, surgindo importantes documentos internacionais nesta

matéria. Diversos países passaram a adoptar, também, legislação que

reconhecia os direitos específicos das pessoas particularmente vulneráveis,

nomeadamente em função da idade. Esta alteração do contexto social levou à

denúncia de abusos a que estavam sujeitos jovens que não beneficiavam de

qualquer protecção processual e de casos de muitos jovens sujeitos a medidas

de duração indeterminada. Foi, deste modo, posta em causa a filosofia do

modelo de protecção, concluindo-se que os jovens não recebiam nem

tratamento eficaz, nem sanções dissuasoras para combater o seu

comportamento criminal (D‟Amours, 2000: 95-115).

A flexibilidade no processo de escolha e aplicação da medida; a falta de

garantias processuais dos jovens, dos seus pais e dos seus representantes; o

facto de conduzir a uma intervenção bastante selectiva desproporcionada,

tanto na duração como na intensidade; bem como o facto de se entender que a

aplicação de uma medida visa mais a prevenção de futuros crimes do que a

resposta ao facto praticado, o que leva a estender o controlo judiciário de

cunho parapenal a crianças que se encontram em situações de “irregularidade

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

103

social” ou em “risco”, são factores que afastaram este modelo da maioria dos

ordenamentos jurídicos.

O modelo educativo de justiça juvenil, associado ao Estado de bem-

estar, caracterizava-se por prever um tratamento multidisciplinar, incluindo

psicólogos, trabalhadores sociais, educadores, entre outros profissionais, aos

jovens delinquentes e aos que, pela sua situação de desamparo, necessitavam

de assistência. Este modelo era favorável à desformalização dos

procedimentos e à não aplicação de medidas de internamento. Defendia a

acção educativa através de programas a executar no âmbito da família e da

comunidade, a desinstitucionalização e a desjudicialização, evitando que o

jovem fosse sujeito a procedimento judicial (Cabezas Salmerón).

O modelo de justiça realçava, não as necessidades específicas do jovem

delinquente, mas sim o acto que este praticara. O jovem deve assumir a

responsabilidade das suas escolhas e das suas atitudes e a sanção aplicada

deve ser proporcional à gravidade do delito cometido. O modelo distingue as

crianças em risco ou com dificuldades de adaptabilidade social das crianças

que praticam factos qualificados como crime, prevendo um processo de

natureza desformalizada que salvaguarda as garantias de defesa essenciais do

jovem e as medidas aplicáveis, dando igualmente prioridade à função

educativa.

O debate sobre a legitimidade e a capacidade de intervenção judicial, no

que toca especialmente ao problema da juventude e da delinquência, num

momento de crise do Estado Providência, levou ao surgimento de um conjunto

de críticas em diversos sistemas jurídicos, a partir da década de oitenta, e à

discussão em torno da opção entre o modelo de justiça (em que se privilegia a

defesa da sociedade e o respeito dos direitos, liberdades e garantias dos

jovens) e o modelo de protecção (em que se privilegia a intervenção do Estado

na defesa do interesse do jovem sem que lhe seja formalmente reconhecido o

direito ao contraditório).

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104 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

As mais recentes recomendações de organismos europeus incentivam à

desjudicialização das respostas. Neste contexto, o designado modelo dos 4 d´s

– descriminalização, desinstitucionalização, diversão e devido processo – e

com ele associado o modelo de justiça restaurativa, emergem na literatura e

nas recomendações com crescente intensidade. A mediação reparadora e a

procura de conciliação mostram-se como caminhos alternativos e eficazes,

evitando a estigmatização que o contacto com o sistema de justiça produz nos

delinquentes e nas vítimas, na reabilitação dos jovens infractores e na sua

inserção na comunidade (Cuesta Arzamendi, 2008).

Segundo Vázquez González (2008), nos Estados Unidos da América, a

sequência de um amplo debate social desencadeado por partidos políticos e

meios de comunicação social, impôs-se uma corrente, claramente populista e

neoconservadora, na política penal juvenil, que defende a utilização de

medidas de diversão como a mediação e a reparação para a delinquência

juvenil leve ou de baixa gravidade e a remissão da delinquência juvenil grave

para o sistema penal dos adultos, apesar das estatísticas não mostrarem um

aumento da delinquência juvenil nem uma maior gravidade dos delitos. A

emergência deste modelo reflectiu-se sobretudo em Inglaterra, na sequência

de casos que aumentaram o medo e o alarme social62, legitimando propostas

de lei mais duras. Ainda segundo o autor, os resultados desta política mais

dura são evidentes e os jovens condenados a medidas de internamento

subiram dos 500 em 1993 para cerca de 9.000 em 2003 e, além do aumento do

número de jovens a cumprirem medidas de internamento, aumentou também a

duração do tempo de internamento (Vázquez González, 2008).

Como veremos de seguida, também nos países da Europa têm ocorrido

reformas e projectos de reforma com vista a diminuir a idade mínima para exigir

62 Por exemplo, o caso de James Bulger, de dois anos, assassinado em 1993 por duas

crianças de 10 anos.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

105

responsabilidade penal, a excluir a aplicação da jurisdição de menores aos

jovens adultos entre 18 e 21 anos, ao alargamento das situações em que se

priva o jovem de liberdade, à duração máxima das medidas aplicadas e ao

fortalecimento da posição processual das vítimas.

2.2 A caminho de um modelo comum europeu

Alguns autores, como Cuesta Arzamendi, levantam a possibilidade de

existir um modelo de reeducação e de reinserção de crianças e jovens a nível

europeu, considerando existirem princípios e orientações comuns a vários

países. Posição idêntica tem sido defendida por instituições europeias, como o

Parlamento Europeu e o Comité Económico e Social, avançando para o

desenvolvimento de uma estratégia europeia integrada em matéria de

delinquência juvenil. Apesar de valores e princípios jurídicos comuns, não

existe um modelo unitário de intervenção face aos comportamentos

delinquentes das crianças e jovens, existindo na Europa distintos modelos

(modelo de bem-estar; modelo de justiça; modelo de intervenção mínima;

modelo de justiça restaurativa), embora nenhum deles em estado puro, mas

registando-se, nos vários países, elementos dos vários modelos. Esta

verificação dificulta o objectivo de construção de um modelo europeu.

Recomendações recentes vão no sentido da intervenção mínima e da justiça

restaurativa, abandonando-se as posições tutelares ou de protecção mais

tradicionais. O debate centra-se na alternativa entre os modelos de bem-estar,

que destacam a vertente educativa, social ou comunitária, e os designados

modelos de responsabilidade.

Para Cuesta Arzamendi, as instituições europeias não podem desenhar

por completo um sistema europeu unitário de reeducação e de reinserção de

jovens, podendo formulá-lo a partir das declarações, resoluções e

recomendações europeias que incluem um conjunto de princípios e estratégias

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106 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

comuns. O autor chama, no entanto, a atenção para uma questão central da

construção desse modelo: a necessidade de aprofundamento do conhecimento

da realidade da delinquência juvenil através de metodologias similares, que

permitam uma comparação a nível europeu. Para o autor, a prevenção e

reinserção social devem constituir políticas-chave que devem envolver todos os

actores sociais e institucionais. Os textos europeus mais recentes e a doutrina

são unânimes em considerar que a intervenção preventiva, apesar dos

resultados não serem visíveis de imediato, é a mais adequada, com a

vantagem de não sobrecarregar o sistema de justiça63.

O autor elenca os seguintes princípios e estratégias que devem inspirar

a intervenção sobre jovens que praticam factos qualificados pela lei penal como

crimes:

(1) Integração dos sistemas de intervenção no âmbito da política juvenil;

(2) Preferência, sempre que possível, pela solução de conflitos por vias como a

mediação ou outras de carácter restaurativo, retardando a actuação dos

sistemas de controlo formal e, sobretudo, as respostas de cariz sancionador ou

punitivo;

(3) Generalização das vias de diversão em todos os níveis de intervenção, em

particular se combinadas com a aplicação de mecanismos ou sistemas de

reparação ou conciliação com a vítima ou a comunidade;

(4) Assegurar o respeito pelos direitos e garantias fundamentais dos jovens e

do seu direito a participar, com conhecimento informado, nos procedimentos

que os afectem;

63 Para o autor, os “jovens maus” são frequentemente “jovens tristes” (the “bad kids” are often

the “sad kids”), ou seja, aqueles que não têm ocupação, com condições de vida e alojamento não adequadas, oriundos de famílias necessitadas de ajuda social, jovens de famílias imigrantes com problemas de integração, éticos e culturais, com fracas perspectivas de emprego, jovens vítimas de abusos e delitos, em suma, com problemas subjacentes ao comportamento delituoso, que não se podem contornar se se pretende, de facto, prevenir a criminalidade (Cuesta Arzamendi, 2008).

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

107

(5) Intervenção mínima e flexibilidade quanto às sanções e medidas, as quais

devem ser sempre adaptadas ao interesse do jovem e ter um carácter

individualizado, adequado à idade, desenvolvimento, capacidades e

circunstâncias pessoais, tendo como limite a gravidade da infracção cometida e

uma duração estritamente necessária e ser orientadas para a reeducação e

integração social;

(6) Controlo regular da execução e acompanhamento por órgãos

independentes, devendo ser feita uma permanente avaliação do sistema no

seu conjunto.

De acordo com Cuesta Arzamendi, a elaboração de regras mínimas

europeias deve orientar-se, por um lado, pela prioridade de uma intervenção

preventiva levada a cabo por programas gerais e específicos para jovens em

risco de exclusão social e pela necessidade de sistemas eficazes de apoio no

processo de inserção. Por outro lado, deve ainda ser privilegiada a

profissionalização e a especialização dos intervenientes e o desenvolvimento

de vias alternativas de resolução de conflitos. Entre outras orientações,

destacam-se:

(1) A fixação de um limite etário mínimo para a aplicação de um sistema de

responsabilidade penal específico para jovens, que não poderá depender

apenas do critério biológico, mas atender, também, à maturidade e

discernimento64;

(2) A jurisdição de menores e os serviços sociais deverão ser dotados de meios

adequados ao tratamento dos infractores que não atinjam a idade mínima de

64 Esse limite devia fixar-se nos 14 anos, como indica a Associação Internacional de Direito

Penal, idade abaixo da qual apenas deveriam ser aplicadas medidas educativas. Cf. Resoluções do XVII Congresso Internacional de Direito Penal, 12-18 Setembro de 2004, em Pequim (China), na Revue Internacionale de Droit Pénal, 75, 3-4, 2004, pp.808 - apud Cuesta Arzamendi.

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108 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

responsabilidade penal, sem excluir as medidas de contenção, impostas de

forma coactiva e com as devidas garantias65;

(3) A redução da tendência de “hipercriminalização” de alguns sistemas e de

aplicação da privação de liberdade como resposta a comportamentos anti-

sociais constitutivos de infracções juvenis “em razão da sua condição”, que

deveriam ter um tratamento preferencial pela via civil ou dos serviços sociais;

(4) Assegurar o direito de participação do jovem nos procedimentos que o

afectem, com garantias processuais, bem como a abertura de vias eficazes de

revisão ou de recurso em sede judicial;

(5) A elaboração de um regime específico de sanções para os jovens

infractores com respostas distintas das dos adultos, preferencialmente na

comunidade, distinguindo os casos de responsabilidade penal dos de

perigosidade, com fixação de franjas de idade para a imposição de

determinados tipos de sanções ou medidas privativas;

(6) A redução da aplicação de medidas que impliquem a privação da liberdade,

incluindo o internamento preventivo, devendo todo o internamento ser

estritamente regulamentado, quer quanto à duração máxima e modalidades

aplicáveis a cada faixa etária, quer quanto aos órgãos competentes66.

Devem, ainda, ser definidos os parâmetros de resposta comum e de

tratamento dos designados “menores delinquentes de alta perigosidade”, com

frequência associados à imagem de jovens de cor, pertencentes a populações

marginais e imigrantes. Nesse sentido, deveria existir um plano de cooperação

65 Na opinião do autor esta solução é mais razoável do que reduzir a idade mínima, podendo,

contudo, ser deixada em aberto como resposta excepcional, para os jovens quase a completar os 14 anos que cometam factos qualificados como crimes muito graves e cujo tratamento, no âmbito do sistema de protecção, não se revele oportuno e adequado, considerando a sua capacidade de discernimento e perigosidade

66 O internamento deverá ser reservado a casos excepcionais e o regime fechado apenas

aplicado a infracções violentas ou graves praticada por jovens, com pelo menos 15-16 anos

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

109

policial e penal europeu no âmbito das infracções cometidas por jovens

adultos, entre os 18 e os 21 anos.

Cuesta Arzamendi defende que o caminho deve passar, numa primeira

fase, pela formulação normativa – e não meras recomendações ou propostas

de princípios – das orientações, quer no plano da prevenção, quer no das

respostas e tratamento da delinquência juvenil. Para o autor, essas orientações

deveriam constituir condicionantes da expansão das políticas punitivas,

promovendo a vertente educativa como princípio básico e diversificando o

elenco de sanções e a sua aplicação flexível (Cuesta Arzamendi, 2008).

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III. A JUSTIÇA PENAL DE CRIANÇAS E

JOVENS NO CONTEXTO EUROPEU: O

CASO DE FRANÇA E DE ESPANHA

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O CASO DE FRANÇA

1

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1 O CASO DE FRANÇA

Introdução

Apresentamos, neste ponto, uma breve perspectiva do direito e da

justiça de crianças e jovens em França, dando especial ênfase à reforma em

curso, que veio colocar o tema no centro do debate político.

A Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945 (Ordonnance n.º 45-174 du

2 février 1945 relative à l’enfance délinquante67) marcou uma primeira grande

ruptura no tratamento das infracções cometidas por jovens, ao privilegiar os

princípios gerais de protecção e educação das crianças e jovens, dando

especial relevância à vertente educativa sobre a vertente repressiva que

pressuponha uma responsabilidade penal do jovem reduzida e sempre

proporcional à sua idade. O jovem, não só não deveria ser julgado como um

adulto, como ainda a jurisdição de menores devia procurar aplicar medidas de

protecção e de educação individualizadas através de acompanhamento

educativo com apoio de técnicos especializados.

Até à década de 90 do século passado, as alterações legais que se

sucederam foram no sentido de uma maior diversificação das respostas à

67 Ver in

http://66.196.80.202/babelfish/translate_url_content?.intl=br&lp=fr_pt&trurl=http%3a%2f%2fwww.textes.justice.gouv.fr%2findex.php%3frubrique%3d10086%26ssrubrique%3d10088%26article%3d11029 (Novembro de 2009).

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116 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

delinquência juvenil, mas sem colocar em causa a finalidade educativa e de

reintegração social dos jovens que cometiam crimes68.

A partir dos meados dos anos 90 inicia-se uma discussão reformista

nesta matéria, que veio culminar na publicação de várias leis com reflexos na

justiça de crianças e jovens, enfatizando-se como linhas orientadoras a

importância da prevenção e a ideia de uma maior responsabilização dos jovens

delinquentes. No seu lastro estava a percepção social de aumento de crimes,

em especial contra a propriedade, praticados por jovens. Este processo de

reforma teve como importante marco a apresentação do Relatório da Comissão

Varinard, com vista à criação de um Novo Código da Justiça Penal de Menores

(CJPM), cuja conclusão está prevista para meados de 2010.

68 Ainda neste período, destaca-se a Lei de 1 de Setembro de 1945 (Ordonnance du 1er

septembre 1945) que procedeu à reestruturação do organismo central responsável em matéria de jovens: a Direction de l'Education Surveillé e a Lei de 23 de Dezembro de 1958, relativa à protecção judiciária das crianças em perigo (Ordonnance du 23 décembre 1958 relative à la protection judiciaires de l’enfance en danger). No caso de infracções cometidas, o ordenamento jurídico previa o apoio de equipas multidisciplinares (sob a direcção da Direction de l'Education Surveillée), constituída por educadores, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras, que deveriam propor ao juiz de menores a medida educativa mais adequada, tendo em conta a personalidade e o contexto sócio-familiar do jovem, e acompanhá-lo durante o período da execução das medidas.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

117

1.1. As principais características do direito e da justiça de crianças e jovens em França

Como já foi referido, o regime legal da justiça de crianças e jovens em

França está consagrado na Lei n.º 45-174 de 2 de Fevereiro de 1945, cuja

maioria dos artigos foi alterada pelas sucessivas reformas69.

Desde a década de 90 do século passado, o aumento da criminalidade

juvenil, mas, sobretudo, a crescente percepção de insegurança por ela

causada, levou ao “endurecimento” da resposta judicial aos crimes praticados

por jovens, com a aplicação de algumas medidas criadas para adultos, como a

medida de controlo judiciário70 e a suspensão com regime de prova,

concomitantemente com um aumento das situações de detenção71. A vertente

responsabilizadora do jovem acentua-se com a introdução, na ordem jurídica,

da obrigação de reparação à vítima pelos danos causados.

No campo processual, a designada Lei Toubon, publicada a 1 de Julho

de 1996, introduz alterações significativas, designadamente, prevendo um

processo judicial mais célere, de modo a que o julgamento possa ocorrer o

mais próximo possível da prática do facto; e um papel mais activo do Ministério

Público, que desenvolve parcerias com instituições civis (câmaras municipais,

delegações do Ministério da Educação, etc.).

69 A Lei de Fevereiro de 1945 sofreu, até à data, 31 reformas parcelares, tendo sido sujeita a

dezasseis modificações nestes últimos vinte anos, fazendo com que aos primeiros 44 artigos se juntem agora mais 34. Dos 44 artigos originais apenas 6 se mantêm inalterados.

70 Esta medida impõe a obrigação do jovem posto em liberdade se colocar ao dispor da justiça

e de cumprir determinadas obrigações (proibição de frequentar certos locais ou certas pessoas, obrigação de apresentação periódica no posto de polícia, etc.).

71 Para Dominique Youf “a detenção de menores já não é mais considerada como um mal

absoluto, mas como um mal necessário” (Youf, 2009: 100).

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118 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

As alterações mais significativas nesta matéria ocorreram com a

publicação da Lei de Orientação e de Programação para a Justiça, de 9

Setembro de 2002 (Loi d’orientation et de programmation pour la justice -

LOPJ). Destaca-se a criação de centros educativos em regime fechado

(Centres Educatifs Fermés (CEF)), destinados aos jovens reincidentes com

idades compreendidas entre os 13 e os 18 anos, e a obrigação de

acompanhamento de um programa educativo; a possibilidade do Ministério

Público requerer o julgamento de um jovem num prazo muito curto (entre dez

dias e um mês); a previsão legal do princípio da responsabilidade penal dos

jovens, sempre que se considere que os mesmos tenham capacidade de

entendimento; e a criação de um novo tipo de medida penal para crianças e

jovens com mais de 10 anos (as sanções educativas).

Salientam-se a seguir algumas das principais características do direito e

da justiça penal para os jovens, em vigor na ordem jurídica francesa.

A justiça especializada e a tramitação do processo

Compete a uma justiça especializada (Tribunal pour enfants ou Cour

d’assises des mineurs72) o julgamento de jovens pela prática de um crime ou

delito73 (artigo 1 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945). Consagra-se,

assim, o princípio de uma justiça especializada, com tribunais e magistrados

72 Os Tribunaux pour enfants, sediados nos tribunais de grande instância, têm competência

para julgar os delitos e os crimes praticados por menores de 16 anos e são constituídos por um juiz de menores e por dois juízes não profissionais. O Ministério Público é representado por um procurador especializado. As Cours d’assise des mineurs têm competência para julgar os crimes de jovens de mais de 16 anos, sendo compostas por três juízes (um juiz do tribunal de recurso, que preside, e dois juízes-adjuntos) e um júri constituído por nove cidadãos sorteados das listas eleitorais. Existe, ainda, uma terceira jurisdição de menores, com competência na área da promoção e protecção de crianças em perigo e no julgamento de factos de pequena gravidade praticados por jovens, que é exercida pelo juiz de menores (Juge des Enfants) do tribunal de grande instância.

73 Em França, existem três tipos de infracções à lei penal: a contravenção, o delito e o crime,

cuja classificação é determinada pelo tipo de sanção aplicável.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

119

especializados, e de um processo penal próprio que deve sempre atender à

evolução da personalidade do jovem, com o mesmo juiz a acompanhar a fase

de instrução, de julgamento e de execução da medida ou da pena aplicada74.

O processo judicial inicia-se com a intervenção do Ministério Público,

dado que a notícia da prática de um delito ou de um crime por parte de um

jovem é a ele remetida. O MP pode solicitar informações complementares

através de um relatório social (enquête social)75. Após a análise do caso

concreto e a qualificação dos factos como contravenção, delito ou crime, o MP

pode tomar uma das seguintes três decisões: arquivar o processo; pronunciar o

jovem sob condição, quando este confessa os factos, aplicando-lhe uma

medida alternativa ou recorrendo à chamada composition pénale76; remeter o

processo para o juiz de menores ou para o juiz de instrução. O MP, antes de

decidir, pode ainda solicitar ao serviço de reinserção social que actua junto do

tribunal (SEAT)77 uma medida de apoio à instrução do processo78.

74 Cf. artigo 20-9 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945.

75 Este relatório incide sobre as condições sócio-familiares do joveme é elaborado por um

técnico da Protection Judiciaire de la Jeunesse (PJJ).

76 Esta forma de extinção do procedimento criminal por parte do MP foi criada para os adultos,

em 2005, tendo sido introduzida na justiça de menores em 2007. Pode ser aplicada a jovens com pelo menos 13 anos de idade, sempre que se considere que é uma medida adequada à sua personalidade e quando tiverem praticado uma infracção punível com pena de prisão não superior a cinco anos. O MP pode propor ao jovem o cumprimento de uma das seguintes medidas, cujo prazo de execução não pode exceder um ano: obrigação de frequentar um curso de formação cívica, frequência assídua às aulas ou a um curso de formação profissional, colocação numa instituição ou num estabelecimento público ou privado de educação ou de formação profissional; acompanhado psicológico ou psiquiátrico, ou comprometer-se a desenvolver uma determinada actividade de cariz social ou profissional. O MP terá que obter, para além do consentimento do própriojovem, o consentimento dos seus representantes legais (cf. artigo 7-2 da Lei n.º 45-174, de 2 Fevereiro de 1945).

77 Os Services éducatifs auprès du tribunal” (SEAT) são departamentos da DPJJ e são

responsáveis por prestar todo o apoio aos jovens e suas famílias, pela promoção da orientação educacional dos jovens delinquentes, devendo juntar ao processo, sempre que lhes seja solicitado pelo procurador da república, pelo juiz de menores ou pelo juiz de instrução, um relatório escrito contendo toda a informação relevante sobre a evolução da situação do jovem e, ainda, uma proposta de aplicação de uma medida educativa.

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120 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A intervenção do juiz ocorre em diversas fases. Em primeiro lugar,

através de uma audição no seu gabinete, após ser recebido o processo, do

jovem e dos seus representantes legais, designadamente, para um melhor

conhecimento da situação familiar, escolar e social do jovem79.

Após esta audição, o juiz, que tem sempre a faculdade de solicitar aos

serviços competentes informações complementares, poderá, desde logo,

aplicar ao jovem, durante um determinado período de tempo, uma medida

provisória, nomeadamente, a sua colocação em centro de acolhimento ou a

realização de uma actividade de cariz social ou profissional, assim como

poderá aplicar medidas de carácter preventivo, como o controlo judiciário ou a

detenção provisória80.

Decorrido o período de tempo de execução da medida provisória

aplicada, ou caso não tenha sido aplicada nenhuma medida, o juiz, depois de

receber as informações complementares solicitadas, poderá decidir pelo

arquivamento do processo ou pelo prosseguimento dos autos para a fase de

julgamento.

78 As medidas de apoio à instrução do processo são medidas de apoio à tomada de posição e

de fundamentação das decisões dos magistrados (MP e juiz de menores). Trata-se da recolha de um vasto conjunto de informação que permita um melhor conhecimento da situação em geral dojovem, incidindo, essencialmente, sobre aspectos como a sua personalidade, percurso de vida, a sua vida familiar e integração social. Podem ser de três tipos: a) recolha de informação sócio-educativa; b) inquérito social; c) investigação (informações que permitam retirar conclusões mais precisas relativamente à vida do jovem delinquente, no sentido de mapear todos os problemas que possam influenciar o crescimento do jovem). Cf. MinistériodaJustiça,http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10043&article=18659 (Consultado em Janeiro de 2010).

79 É de referir que aquando desta primeira audição, caso o jovem ou seus representantes

legais não se façam acompanhar por advogado, o juiz ordenará a nomeação oficiosa de um advogado para assegurar a defesa do jovem. O juiz pode sempre requerer informações complementares, designadamente através de relatório social ou de exames médicos.

80 A detenção provisória só pode ser aplicada a maiores de treze anos. Os pressupostos da

sua aplicação e a sua duração variam de acordo com a idade do jovem infractor e o tipo de infracção cometida. Em todo o caso, esta medida de carácter preventivo, nas situações em que admite uma maior distensão temporal, nunca pode ter duração superior a um ano.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

121

Na fase de julgamento, se ao jovem tiver sido aplicada uma medida

provisória, o tribunal deve sempre solicitar a realização de um relatório de

avaliação da execução da medida à entidade responsável pelo

acompanhamento do jovem.

Havendo lugar à condenação, o juiz pode aplicar medidas educativas,

sanções educativas ou uma pena81. A escolha do tipo de medida ou sanção

depende sempre das circunstâncias do caso e da personalidade do jovem. É

de referir que, quer as medidas educativas, quer as penas82, podem ser

aplicadas a jovens com idades compreendidas entre os 13 e 18 anos. As

sanções educativas podem ser aplicadas a jovens a partir dos 10 anos (cf.

artigo 2.º da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945) 83.

Se o jovem tiver menos de dezasseis anos e a moldura penal aplicável à

infracção em causa não for superior a sete anos de prisão, o juiz poderá, ainda,

realizar um julgamento menos solene (Jugement rendu en chambre du conseil).

Nestes casos, o juiz, ainda que considere o jovem culpado pela prática

dos factos que lhe são imputados, poderá decidir pela dispensa da aplicação

de qualquer medida, desde que considere verificada a sua reintegração na

sociedade, que o dano tenha sido reparado e a perturbação provocada pelo

jovem tenha desaparecido. Poderá, ainda, decidir por uma pena de

admoestação; pela entrega do jovem aos seus pais, progenitor que o tenha à

sua guarda, tutor ou a pessoa idónea; pela colocação do jovem, por um

período não superior a cinco anos, sob protecção judiciária; em

estabelecimento médico ou médico-pedagógico para jovens e adequado à sua

81 A distinção entre estas três categorias de sanções é explanada infra.

82 A aplicação de uma pena a um jovem tem em consideração a atenuação especial da sua

responsabilidade penal. Sempre que é aplicada uma pena de prisão efectiva ou suspensa, o Tribunal tem que fundamentar, mostrando as razões especiais que levaram à escolha da pena.

83 As sanções educativas foram criadas pela Lei de Orientação e de Programação para a

Justiça, de 9 Setembro de 2002.

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122 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

situação; ou pela obrigação de realizar uma actividade de cariz social ou

profissional (mesure d’activité de jour).

Havendo condenação, o juiz de menores exercerá as funções que, por

regra, são da competência do juiz de execução das penas.

O processo de apresentação imediata

Uma das inovações da Lei de Orientação e de Programação para a

Justiça, de 9 Setembro de 2002, foi a criação do processo denominado de

processo de apresentação imediata (procédure de présentation immédiate),

através do qual o MP, verificados determinados requisitos legais, apresenta um

jovem a juízo no Tribunal de Menores num prazo relativamente célere. O

recurso a este tipo de processo exige que não seja necessário proceder a

qualquer acto de investigação; que já exista um relatório social do jovem; e

que, até à data da realização da audiência, o jovem fique sujeito a uma medida

de carácter preventivo (controlo judiciário ou detenção provisória). O

julgamento deverá sempre ter lugar entre o décimo dia após a notificação ao

jovem dos factos que lhe são imputados e antes de perfazer um mês. A

audiência é sempre realizada no gabinete do juiz, na presença do jovem, do

seu advogado e do MP. Se for necessário, o representante do serviço ao qual o

jovem foi confiado poderá também estar presente.

Este processo pode ser aplicado a jovens com mais de dezasseis anos,

acusados por factos puníveis com pena de prisão igual ou superior a um ano,

quando sejam detidos em flagrante delito, ou com pena igual ou superior a três

anos de prisão, nos restantes casos. Também pode ser aplicado a jovens, com

idades compreendidas entre os treze e dezasseis anos, desde que a pena

abstracta a aplicar seja entre cinco e sete anos de prisão. Neste último caso, o

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

123

julgamento deverá sempre ter lugar entre o décimo dia após a notificação ao

jovem dos factos que lhe são imputados e antes de perfazer dois meses84.

Medidas e sanções

A lei consagra, como acima se referiu, a possibilidade de aplicação de

dois tipos de medidas de carácter preventivo distintas: o controlo judiciário e a

detenção provisória.

O controlo judiciário, que permite a manutenção do jovem em liberdade,

impõe a sua sujeição a um conjunto de obrigações, sejam elas de protecção,

assistência, vigilância ou educação85. Comporta, ainda, a possibilidade de

ordenar a frequência de curso de formação cívica, aulas em estabelecimento

escolar ou curso de formação profissional. Esta medida pode ser aplicada,

desde que verificadas determinadas condições, a jovens a partir de 13 anos

que pratiquem um crime.

A detenção provisória, sendo prevista como possível, é uma medida de

excepção, só podendo ser utilizada nos casos previstos na lei e quando for de

todo indispensável ou se considere que a aplicação de uma qualquer outra

medida de prevenção seja insuficiente para o caso concreto. Esta medida só

pode ser aplicada a jovens com mais de treze anos. Se o jovem tiver entre 13 e

16 anos, só poderá ser aplicada se for acusado pela prática de um crime ou

tiver voluntariamente violado as obrigações do controlo judiciário a que estava

sujeito. Se o jovem tiver mais de 16 anos, além da verificação de um dos dois

requisitos anteriores, também poderá ser sujeito a esta medida se estiver

84 Cf. artigo 14-2 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945.

85 Como, por exemplo, deixar de frequentar determinado lugar ou de contactar com

determinada pessoa, comparecer regularmente perante um determinado órgão de polícia.

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124 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

indiciado pela prática de um delito (em matéria correccional) punido com

sanção superior ou igual a três anos86.

A duração da detenção provisória depende do tipo de infracção

praticada pelo jovem. Em matéria correccional, ou seja, quando esteja em

causa a prática de um delito, e a pena de prisão na qual o jovem incorre não for

superior a sete anos, a detenção provisória não pode ser superior a um mês,

podendo ser renovável por uma só vez pelo mesmo período de tempo. Nos

outros casos, não pode ser superior a um ano.

Em matéria criminal (ou seja, quando esteja em causa a prática de um

facto qualificado como crime), para os jovens com idades compreendidas entre

os 13 e os 16 anos, a detenção provisória não pode ser superior a seis meses,

podendo ser renovável por uma só uma vez, pelo mesmo período de tempo.

Como referimos anteriormente, ao jovem podem ser aplicados três tipos

de sanções: penas, sanções educativas e medidas educativas. A lei em vigor

tem como princípio orientador a prevalência da vertente educativa sobre a

repressiva, o que determina a opção pela aplicação de uma pena tão só

quando, tendo em conta a personalidade do jovem, todas as restantes medidas

de carácter educativo se mostrem insuficientes. Por outro lado, a escolha da

medida da pena tem sempre em conta o princípio da sua especial atenuação

em função da idade, que se traduz no facto de, aos jovens de dezasseis anos,

não poder ser aplicada uma pena cuja medida exceda metade da pena prevista

no Código Penal. Se o jovem tiver entre dezasseis e dezoito anos, a aplicação

deste princípio fica à consideração do juiz que, através de decisão

devidamente fundamentada, poderá afastar a sua aplicação. As medidas

educativas, sanções ou penas podem ser aplicadas individual ou

cumulativamente.

86 Cf. nota 73.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

125

Medidas Educativas

O juiz pode aplicar aos jovens, entre os treze e dezoito anos, um

conjunto de medidas educativas87, a saber:

a) Admoestação (Avertissement solennel);

b) Entrega do jovem (Remise) - o jovem é mantido no seio familiar, entregando-

o aos seus pais, a um tutor ou ao progenitor que o tenha à sua guarda;

c) Institucionalização com carácter educativo (Placement éducatif) - visa a

retirada do jovem do seu ambiente habitual com o objectivo de lhe permitir um

quadro de vida seguro e estruturante. O jovem, além de poder ser entregue a

um estabelecimento ou serviço da DPJJ88, em alternativa, também poderá ser

87 Como se verá adiante, algumas destas medidas educativas podem ser aplicadas pelo

Tribunal no decurso do processo judicial, a título provisório.

88 As estruturas vocacionadas para este tipo de resposta à delinquência juvenil dependentes da

Direction de la Protection Judiciaire de la Jeunesse são: Lares e Centros Educativos (Foyers et centres d'action éducative (FAE )) que recebem jovens delinquentes com o objectivo de orientar a sua educação, propondo uma solução devidamente adaptada à sua situação concreta. Os jovens podem ficar durante longos períodos nestes centros que investem em planos de acção vocacionados para a reinserção do jovem num quotidiano de vida comunitária; Centros de institucionalização imediata (Centres de placement immédiat (CPI )), preparados para receber jovens delinquentes considerados como “prioritários”. Ou seja, destinam-se a acolhimentos considerados como urgentes e que, por regra, têm uma duração de três meses. Esta institucionalização pode ser acompanhada de uma medida de controlo judiciário de forma a avaliar o comportamento do jovem num quadro de uma apertada vigilância por parte do educador que o acompanha para a aplicação de futuras medidas. Durante o período de institucionalização o jovem deverá seguir um plano de actividades que lhe permita progredir em termos de reeducação, ressocialização e reestruturação do seu tempo livre. Sempre que a realização dessas actividades implique deslocações ao exterior, o jovem será acompanhado pelo educador por ele responsável; Centros educativos “reforçados” (Centres d’éducation renforcée (CER)) destinados, principalmente, a acolher jovens delinquentes com comportamentos e percursos desviantes e necessidades de socialização urgentes. Apenas acolhem pequenos grupos de jovens delinquentes (seis a oito), durante curtos períodos de tempo (até seis meses). O objectivo a desenvolver é a ruptura temporária do jovem com o seu meio envolvente e o seu modo habitual de vida. Para tal, é-lhes ministrado um plano educativo baseado num envolvimento nos actos da vida quotidiana dojovem, promovendo acções e actividades pedagógicas permanentes que favoreçam a mobilização e a aprendizagem das regras da vida em sociedade; e, Centros educativos em regime fechado (Centres éducatifs fermés (CEF)). Acolhem exclusivamente jovens delinquentes com idades compreendidas entre os treze e os dezoito anos com uma forte taxa de reincidência. Trata-se de um regime de institucionalização privativa da liberdade, aplicado na sequência da violação das regras de institucionalização em regime aberto ou de obrigações imposta pelo juiz ao jovem delinquente.

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126 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

entregue a pessoa idónea. Durante o período de execução da medida, o juiz é

informado da evolução da situação do jovem;

d) Medida de apoio ou de reparação (Mesure d’aide ou de réparation) - o jovem

é obrigado a reparar o prejuízo causado à vítima ou a prestar um serviço em

seu benefício ou no interesse da comunidade, com uma duração, em regra,

não superior a quatro meses89;

e) Liberdade sob vigilância (Liberté surveillée) - o jovem é mantido em

liberdade, mas sob vigilância e controlo de um profissional habilitado para o

efeito (educador). Trata-se de uma medida que comporta uma dupla vertente:

vigilância e acção educativa90;

f) Protecção judiciária (Mise sous protection judiciaire) - o jovem fica sob a

responsabilidade dos serviços da Direction de la Protection Judiciaire de la

Jeunesse (DPJJ)91 com competência na reinserção social dos jovens

Neles, também podem ser colocados jovens que estejam sob medidas de vigilância ou controlo, ou jovens condenados em pena de prisão suspensa na sua execução mediante cumprimento de regime de prova, ou, ainda, no seguimento da concessão da liberdade condicional.

Durante o período de permanência (por regra seis meses) é traçado ao jovem um intenso plano de actividades de modo a aprender a ter um quotidiano estruturado e adquirir conhecimentos de base para poder seguir uma carreira profissional. Além disso, existe também um acompanhamento psicológico e médico. Caso o jovem viole as obrigações que lhe foram impostas ou tente a fuga do estabelecimento, poder-lhe-á ser aplicada, consoante a sua situação concreta, prisão preventiva ou pena de prisão efectiva.

89 A medida prestada para com a vítima exige o seu consentimento. Esta medida pode ter lugar

desde o início do processo, tanto pode ser aplicada pelo Ministério Público, como pelo juiz de instrução ou, ainda, pelo juiz de menores.

90 Esta medida pode ser aplicada a título provisório durante a fase de instrução ou após a

realização da audiência de julgamento. Se for aplicada provisoriamente, a evolução do comportamento e da personalidade do jovem durante a sua execução irão determinar a decisão judicial. Se for ministrada a título definitivo, o seu cumprimento irá permitir desenvolver uma acção educativa junto do jovem no seu ambiente sócio-familiar. Cf. Ministério da Justiça Francesa. In http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10043&article=18660 (consultado em Janeiro de 2010).

91 A DPJJ, tutelada pelo Ministério da Justiça e das Liberdades, reúne em si um conjunto de

atribuições relacionadas com a justiça de crianças e jovens e a promoção da cooperação interinstitucional nesta matéria. Compete a este organismo, designadamente, apoiar os magistrados nas tomadas de decisões, executar as decisões dos tribunais relativamente à

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

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delinquentes, que os acompanha, quer enquanto estiverem sujeitos a uma

medida de institucionalização, quer se forem entregues à sua família. Esta

medida só pode ser aplicada após a realização do julgamento e tem como

duração máxima cinco anos, podendo manter-se após a maioridade;

g) Actividades executadas durante o dia (Activité de jour) - Medida criada pela

Lei de 5 de Março de 2007, relativa à prevenção da delinquência, que consiste

na participação do jovem em actividades de inserção escolar ou profissional

junto de instituições habilitadas para executar este tipo de medida. Destina-se,

essencialmente, a jovens não escolarizados ou com pouca escolarização e

pode ser aplicada, por decisão do juiz, a título provisório, aquando da

realização da primeira audição no seu gabinete, ou, em sentença proferida pelo

tribunal. O juiz pode ordenar o cumprimento desta medida cumulativamente

com a aplicação de outras medidas educativas, sanções educativas ou penas,

mesmo sendo elas privativas da liberdade. A sua duração deve permitir que se

cumpram os objectivos a que se destina, mas não deve ir além dos doze

meses.

Sanções Educativas

Como já foi referido, as sanções educativas foram criadas pela LOPJ,

em 2002, e podem ser aplicadas a todas as crianças e jovens com mais de dez

anos de idade à data da prática da infracção. Para os jovens com mais de treze

anos, a sua aplicação justifica-se sempre que, por um lado, as medidas

educativas não sejam consideradas suficientes e, por outro, a aplicação de

uma pena seja considerada excessiva. Algumas destas medidas poderão ser

aplicadas individualmente ou em conjunto. São elas:

institucionalização de jovens em regime fechado ou aberto; garantir o acompanhamento educativo dos jovens; e, controlar e avaliar o conjunto das estruturas públicas e privadas que acolhem jovens por ordem do tribunal. Para desenvolver estas atribuições com vista à educação e reinserção social e profissional dos jovens existem equipas multidisciplinares compostas por educadores, assistentes sociais, psicólogos, professores e enfermeiros.

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128 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

a) Apreensão de objecto (Confiscation d’un objet) que tenha sido utilizado na

prática da infracção ou seja o produto desta;

b) Proibição (Interdictions) de frequentar determinado lugar onde tenha sido

cometida a infracção ou proibição de contactar com a vítima e eventuais

cúmplices na prática da infracção. Estas proibições só podem ser aplicadas

pelo prazo máximo de um ano;

d) Reparação (Mesure d’aide ou de réparation) - Tal como na vertente

educativa, esta sanção obriga o jovem a reparar o prejuízo causado à vítima ou

a prestar um serviço em seu benefício ou no interesse da comunidade;

c) Formação cívica (Stage de formation civique) – frequência de uma formação

de carácter cívico, por período não superior a um mês, com vista a

consciencializar o jovem das suas obrigações para com a sociedade;

e) Institucionalização (Placement) - Esta medida consiste em colocar o jovem

numa instituição especializada para acolher jovens delinquentes ou crianças

em risco. A lei prevê dois tipos de institucionalização: em centro educativo fora

da área de residência do jovem, sob condição de frequência de um programa

psíquico, educativo e social, por período não superior a três meses, prorrogável

uma única vez pelo período de um mês para os jovens com idades

compreendidas entre os dez e os treze anos; em estabelecimento escolar, em

regime de internato pelo período correspondente a um ano escolar, com

autorização de visitar a sua família aos fins-de-semana e nas férias escolares;

g) Realização de trabalhos escolares (Exécution de travaux scolaires) –

destina-se, essencialmente, aos jovens não escolarizados ou com pouca

escolarização, ficando o jovem sujeito à obrigação de realizar os trabalhos

escolares.

f) Admoestação (Avertissement solennel) – medida de advertência solene feita

ao jovem.

As medidas são acompanhadas pelo serviço competente, que deverá

informar o tribunal. A violação do cumprimento obriga o jovem a comparecer

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

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perante o juiz, que lhe poderá aplicar uma medida de institucionalização em

estabelecimento destinado a jovens delinquentes em idade escolar.

As penas

As penas aplicáveis aos jovens com idades compreendidas entre os

treze e os dezoito anos, estão previstas no direito penal de adultos92, sendo

que, quer a escolha da pena, quer a escolha da sua medida, tem que ser

sempre ponderada considerando a especial atenuação da sua

responsabilidade penal. As penas previstas são as seguintes:

a) Pena de prisão (Peine d’emprisonnement) – o princípio geral para a

aplicação de uma pena de prisão a jovens é o da sua especial atenuação, isto

é, não pode ser fixada uma pena de prisão superior a metade da pena prevista

para a prática do crime. Contudo, para os jovens com mais de dezasseis anos,

este princípio pode ser excluído quando se verifique uma das três seguintes

situações: quando as circunstâncias do caso e a personalidade do menor o

justifiquem; nos casos de reincidência da prática de um crime de homicídio,

contra a integridade física ou psíquica de uma pessoa; e nos casos de

reincidência na prática de um crime cometido com violência e de forma

voluntária, ou de uma agressão sexual.

Os jovens condenados em pena de prisão efectiva são colocados em

estabelecimentos prisionais específicos para jovens ou em estabelecimentos

92 A aplicação de uma destas penas, ao contrário das medidas educativas e das sanções

educativas que podem ser aplicadas pelo juiz de menores em audiência de gabinete, só podem ser aplicadas pelo Tribunal de Menores ou pela Cour d’Assises des Mineurs em audiência de julgamento. Durante o cumprimento da pena, os jovens com menos de dezasseis anos têm a possibilidade de prosseguir os seus estudos acompanhados por professores do ensino escolar e os que tenham mais de dezasseis anos, beneficiam da possibilidade de frequentar um curso de formação profissional.

À saída do estabelecimento prisional, o jovem deverá ser apoiado e acompanhado por serviço educativo competente.

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130 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

prisionais que disponham de uma ala para o efeito, sendo sempre garantido

que não mantêm contacto com os demais condenados maiores de idade93.

b) Pena de multa (Amende) – a pena de multa, que apenas pode ser aplicada a

jovens com mais de trezes anos, não pode exceder metade da pena de multa

prevista para adultos e nunca poderá ser superior a 7.500 euros94;

c) Estágio de cidadania (Stage de citoyenneté) – a aplicação desta pena

alternativa à pena de prisão tem como objectivo a consciencialização do menor

relativamente aos valores de tolerância e de respeito pela dignidade humana,

às consequências da sua responsabilização penal e não cumprimento das leis

em geral e às regras de vivência e convivência em comunidade e, assim, poder

contribuir para o sucesso da sua reintegração social. A duração máxima desta

pena é de um mês e a carga diária deve ser adequada à idade do menor

condenado, nunca podendo ser superior a seis horas diárias. A execução desta

pena é acompanhada pelos serviços da PJJ;

d) Prestação de trabalho a favor da comunidade (Travail d’intérêt général) –

consiste na condenação de um menor a prestar trabalho não remunerado e

com interesse geral para a comunidade, apenas podendo ser aplicada a um

menor com mais de dezasseis anos à data da prática do delito ou do crime. A

sua aplicação exige o consentimento prévio do menor;

e) Pena suspensa com regime de prova (Sursis avec mise à l’épreuve) – a

pena de prisão aplicada a um jovem pode ser suspensa na sua execução, com

ou sem regime de prova. A condenação do jovem neste tipo de pena só pode

ocorrer se o jovem tiver mais de treze anos e a pena de prisão efectiva

aplicada não for superior a cinco anos de prisão. Durante a sua execução, o

jovem terá que se submeter a medidas de controlo como, por exemplo, ter uma

93 A lei prevê que os funcionários destes estabelecimentos prisionais recebam formação

específica para lidar com jovens, actuando em conjunto, nomeadamente, com educadores dos serviços de protecção judiciária da juventude (PJJ). Cf. Ministério da Justiça Francesa. In http://www.ado.justice.gouv.fr/php/page.php?ref=4d1 (consultado em Janeiro de 2010).

94 Cf. artigo 20-3 da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de 1945.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

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residência fixa que pode ser estabelecida pelo tribunal; submeter-se a um

tratamento médico; não contactar com determinadas pessoas; exercer uma

actividade profissional ou frequentar formação. Em caso de violação das

obrigações impostas, o juiz de menores pode ordenar a prorrogação da medida

por mais três anos ou revogar a suspensão da execução da pena de prisão;

f) Monitorização sócio-judiciária (Suivi sócio-judiciaire) – ao jovem condenado

pela prática de uma ou várias infracções de carácter sexual pode ser aplicada

uma pena que o obriga a submeter-se e a respeitar determinadas medidas de

vigilância e de apoio. A monitorização do cumprimento destas obrigações é da

competência do juiz de menores. Tendo em conta que o objectivo é prevenir a

reincidência, podem ser aplicadas obrigações como, por exemplo, a proibição

de frequentar determinados lugares ou de contactar com determinadas

pessoas, a proibição de exercer determinadas profissões ou actividades e a

obrigação de se submeter a um tratamento. Em caso de incumprimento, o juiz

pode ordenar que o jovem passe a cumprir a pena de prisão efectiva fixada em

audiência de julgamento.

É de salientar que existe um conjunto de penas aplicáveis a adultos que

não podem ser aplicadas aos jovens, designadamente a proibição de residir em

território francês, a proibição de exercício de direitos cívicos e a proibição de

exercer cargos públicos, uma determinada profissão ou actividade social. Em

contrapartida, o cumprimento de uma pena sob vigilância electrónica pode ser

aplicada a jovens com idades compreendidas entre os dezasseis e os dezoito

anos, desde que assuma carácter educativo ou potencie a reintegração social

do jovem. São igualmente aplicáveis aos jovens as disposições do Código de

Processo Penal francês que contemplam a possibilidade de dispensa de pena

ou suspensão do processo.

Desde Janeiro de 2005, a competência para o acompanhamento da

execução da pena aplicada ao jovem é da competência do Juiz de menores,

apoiado pelos serviços da PJJ.

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132 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

1.2 A reforma da justiça penal de crianças e jovens em França

O processo em curso da reforma da justiça penal de crianças e jovens

iniciou-se em Abril de 2008, com a criação pelo Ministério da Justiça francês,

de uma comissão95, presidida por André Varinard96, com a missão de

apresentar uma proposta de reforma da Lei n.º 45-174, de 2 de Fevereiro de

1945. Nesse sentido, foi pedido àquela Comissão não apenas que procedesse

à reestruturação do texto legal que, em virtude das muitas e sucessivas

alterações legais, se tornara demasiadamente complexo, mas também que

avançasse com uma proposta de revisão da justiça penal de crianças e jovens.

Após a apresentação do relatório daquela Comissão, em Dezembro de

2008, a então Ministra da Justiça, Rachida Dati, defendeu que o objectivo

último era o de criar mecanismos legais que possibilitassem evitar que a

França se tornasse num país com uma comunidade de jovens ancorada na

delinquência, salientando que uma em cada seis infracções era cometida por

um jovem e que a sua faixa etária era cada vez mais baixa97.

O trabalho a apresentar deveria, assim, encontrar respostas para quatro

grandes objectivos na área da justiça penal de crianças e jovens: respeito dos

princípios fundamentais que regem a justiça de crianças e jovens, combinando

as exigências de justiça com a protecção de jovens; a clareza e a objectividade

95 A Comissão era composta por nove magistrados (dois juízes de menores), quatro membros

da DPJJ, três advogados, dez deputados e seis docentes universitários. Cf. Ministério da Justiça Francês. In http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10017&ssrubrique=10026&article=14380 (consultado em Dezembro de 2009).

96 Advogado e professor da Universidade "Lyon III – Jean-Moulin”, com doutoramento em

direito privado e ciências criminais.

97 Cf. Ministério da Justiça francesa. In

http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10016&ssrubrique=10259&article=16324. (consultado em Dezembro de 2009).

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

133

da redacção legal; a promoção da celeridade e eficácia das decisões judiciais;

e a proporcionalidade das sanções às infracções cometidas pelos jovens.

Para o Governo, só com o cumprimento daqueles quatro objectivos seria

possível proteger a sociedade contra os actos da delinquência juvenil, que

considerava cada vez mais frequentes em França, mas, também, proteger os

próprios jovens delinquentes. Nas palavras da então Ministra da Justiça: “só

assim é que se poderá proteger os jovens delinquentes, uma vez que a sua

maior ameaça não é o facto de não cumprirem as decisões judiciais, mas não

conseguirem afastar-se da criminalidade”. Defendia, por isso, que a reforma

deveria ter em linha de conta que os jovens precisam de sentir a vertente da

autoridade, que considerava com uma das principais linhas orientadoras da

reforma em curso98 99.

A Comissão apresentou um relatório100, cujas recomendações

procuravam conciliar, por um lado, a necessária autonomia do direito penal de

crianças e jovens, sustentada no princípio do primado educativo e no carácter

subsidiário da sanção ou pena e, por outro lado, a exigência de adoptar

98 “Um menor necessita de autoridade. Esta autoridade deve ser exercida tanto com firmeza

como com humanidade. É a linha directriz da reforma que desejamos”, in http://www.gouvernement.fr/gouvernement/le-rapport-varinard-sur-la-reforme-de-la-justice-des-mineurs (Outubro de 2009). Ainda segundo a Ministra, enquanto em 1990 menos de 100.000 jovens entraram no sistema judicial, em 2002, este número quase duplicou para 180.000 e, em 2007, já eram mais de 200.000.

99 De acordo com os dados apresentados pelo Ministério da Justiça, em 2008 cerca de 218.000

jovens foram identificados pelas polícias o que, em termos percentuais, representa cerca de 17% do total das pessoas identificadas pelas polícias. Desses 218.000 jovens, perto de 161.000 foram apresentados ao Procurador da República e acusados pela prática de uma infracção e desses 161 000 cerca de 83.000 fora apresentados a um juiz de instrução ou a um juiz de menores. Ver « Les chiffres clés de la justice des mineurs (2008) », in http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10271(Outubro de 2009); http://www.presse.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10093&ssrubrique=10720&article=16321 (Janeiro de 2010).

100 In http://www.gouvernement.fr/sites/default/files/legacy/Rapport_Commission_Varinard.doc

(consultado em Dezembro de 2009).

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134 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

medidas repressivas que pudessem ser aplicadas aos jovens reincidentes que

causavam na sociedade civil francesa um sentimento de insegurança101.

Recentemente, Michèle Alliot-Marie, actual Ministra da Justiça, tem vindo

a anunciar que o projecto de lei relativo ao novo Código da justiça penal de

crianças e jovens, proposto pela Comissão Varinard, será finalizado até ao

Verão de 2010102. Apresentou os três grandes objectivos orientadores daquele

projecto de lei: reforçar a legibilidade (modernização e simplificação da

terminologia) e a eficácia processual para assegurar uma execução rápida e

eficaz das decisões judiciais; encontrar respostas adequadas à realidade da

actual delinquência juvenil; e promover a intervenção conjunta de todos os

intervenientes processuais, nomeadamente dos pais, para uma maior

responsabilização, e das vítimas para uma maior consciencialização103.

101 Neste sentido, ver o discurso de André Varinard aquando da apresentação pública do

relatório, in http://www.gouvernement.fr/gouvernement/le-rapport-varinard-sur-la-reforme-de-la-justice-des-mineurs (Outubro de 2009).

102 Cf. Ministério da Justiça francesa. In

http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10267&article=17942 (Consultado em Dezembro de 2009).

103 Cf. Ministério da Justiça francesa. In

http://www.justice.gouv.fr/index.php?rubrique=10042&ssrubrique=10043&article=18669 (consulta em Janeiro de 2010).

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

135

A proposta da Comissão Varinard

A proposta da Comissão, de acordo com os grandes objectivos da

reforma, assentava em quatro pontos-chave: a previsão legal de uma resposta

para cada acto de delinquência; assegurar a recolha de informação suficiente

sobre a personalidade e a situação sócio-familiar do menor antes da tomada de

qualquer decisão; garantir a coerência das decisões com o percurso penal do

menor; e reforçar o carácter excepcional da aplicação de uma medida privativa

da liberdade.

A Comissão tentou clarificar a questão da idade a partir da qual um

menor pode ser responsabilizado penalmente, sugerindo que tal idade se

fixasse nos doze anos104. No que se refere aos jovens com menos de doze

anos, sugere que lhes seja aplicado um regime especial, isto é, sempre que

estejam envolvidos na prática de infracções cometidas juntamente com jovens

com mais de doze anos, poderão ser ouvidos com todas as garantias,

podendo-lhes ser aplicada uma sanção educativa, ou serem sujeitos a uma

breve detenção ou a uma medida de assistência educativa que lhes permita

beneficiar do regime dos jovens em risco.

Recomenda, ainda, que seja mantida a idade de dezoito anos até à qual

todos os jovens devem ser julgados segundo as regras aplicáveis às crianças e

jovens, designadamente, no que respeita à exigência de uma jurisdição

especializada, à atenuação especial da pena em função da idade e à aplicação

de sanções penais especiais. Admitindo, contudo, que tal princípio possa

excluir a possibilidade de existirem regimes próprios para os jovens com idades

mais próximas da maioridade. A resposta penal deve, assim, ter em conta a

104 Como já referimos, actualmente um jovem, seja qual for a sua idade, pode ser acusado em

processo penal desde que se considere e reconheça que esse jovem possui “capacidade de entendimento”. Para evitar esta situação pouco clara, a Comissão propõe fixar como idade mínima de responsabilização penal de um jovem, a idade de doze anos.

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136 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

idade do menor e adequar-se proporcionalmente em termos repressivos, de

modo a que quanto mais a idade do menor esteja perto da maioridade, mais o

regime aplicável deva ser similar ao que se aplicaria a um adulto.

Uma outra proposta da Comissão refere-se à necessidade de redefinir a

forma como decorre a audiência de julgamento. Assim, propõe diferentes

formas de julgamento: no gabinete do juiz de menores; por um juiz singular

sempre que o menor não se encontre detido e não seja reincidente; por um

colectivo em Tribunal de Menores (constituído por um juiz de menores e por

dois juízes não profissionais); e perante um Tribunal Correccional para

Menores. Esta última forma de julgamento é uma inovação e traduz-se na

criação de um tribunal correccional composto por três juízes, sendo apenas um

deles juiz de menores. Este tribunal teria competência para julgar os jovens

com uma forte taxa de reincidência, com idades compreendidas entre os

dezasseis e os dezoito anos e, eventualmente, jovens adultos no ano a seguir

à sua maioridade105.

1.3. Perspectivas sobre o modelo em discussão

Apresentamos um conjunto de questões e críticas ao modelo em

discussão, seguindo as diferentes fases de elaboração do Novo Código da

Justiça Penal de Menores, por uma questão de sistematização.

Salientamos, nesta fase, pela repercussão que teve, um artigo106 da

autoria do director do Centre national de la recherche scientifique (CNRS)107, o

105 Cf. Ministério da Justiça francesa. In http://www.gouvernement.fr/gouvernement/le-rapport-

varinard-sur-la-reforme-de-la-justice-des-mineurs (consulta em Janeiro de 2010).

106 In

http://tempsreel.nouvelobs.com/actualites/20081127.OBS2871/?xtmc=arlette_chabot&xtcr=10. (consulta em Dezembro de 2009).

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

137

sociólogo Laurent Mucchielle, onde analisa as declarações públicas do

Governo quanto à reforma em curso. Salienta o consenso quanto à

necessidade de elaboração de um texto legal claro e coerente. No entanto,

teme que este argumento esconda o verdadeiro objectivo da reforma:

endurecer ainda mais o regime legal aplicável aos jovens, aumentando o

número de condenações, de uma forma mais célere, e a jovens com idades

cada vez mais baixas.

Em primeiro lugar, coloca em causa os fundamentos apresentados pelo

Governo, em especial os indicadores de aumento da delinquência juvenil e da

diminuição da idade dos delinquentes108, considerando que os dados não

permitem aquelas conclusões, mas apenas que a média de idades se mantém

constante.

Em segundo lugar, chama a atenção para a generalização da expressão

“menores delinquentes”, que inclui situações muito para lá dos casos de jovens

que cometem crimes graves, como a violação, o roubo ou o tráfico. Para o

autor, o que os números demonstram é que apenas 1,3% dos jovens

condenados o são pela prática de infracções susceptíveis de serem

classificadas como crimes e que os restantes 98,7% respeitam a infracções

menos graves, como, por exemplo, pequenos furtos, actos de vandalismo,

ofensas à integridade física simples ou consumo de droga.

Salienta, ainda, a sua discordância quanto à ideia, muito enfatizada, de

que, por regra, apenas são aplicadas aos jovens delinquentes medidas

educativas e que os juízes têm uma atitude de laxismo na aplicação de

sanções. Justifica a sua crítica apresentando dados que mostram que a pena

107 Estabelecimento público de investigação pluridisciplinar, sob tutela do Ministério do Ensino

Superior e da Investigação.

108 De acordo com a sua análise dos dados estatísticos das polícias, na realidade, o que se

verifica é um aumento generalizado da delinquência, que já se tem vindo a verificar há mais de trinta anos.

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138 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

de prisão representa um terço das penas aplicadas aos jovens com idades

compreendidas entre os treze e os dezasseis anos e cerca de 40% das penas

aplicadas aos jovens com mais de dezasseis anos.

Após a apresentação do Relatório da Comissão Varinard sucederam-se

várias reacções, de magistrados e educadores, que colocavam em causa

muitas das propostas avançadas. Uma das propostas que gerou maior

controvérsia foi a fixação da responsabilidade penal dos jovens a partir dos

doze anos, o que, na prática, se traduz na possibilidade dos jovens com doze

anos de idade que tenham cometido um crime virem a ser condenados numa

pena privativa de liberdade.

A Associação Francesa de Magistrados da Juventude e da Família

(AFMJF)109 foi uma das vozes mais críticas, considerando, em diversos artigos,

que a nova reforma traduz-se na negação das finalidades da justiça de

crianças e jovens. Destaca-se um texto publicado em 26 de Janeiro de 2009110.

Esta Associação começa por criticar o facto das conclusões apresentadas pela

Comissão não se apoiarem em estudos sociológicos, acabando por espelhar

muitas declarações do discurso público marcado pela caracterização de uma

delinquência juvenil cada vez mais violenta, mais nova, e em maior número.

Também critica a leitura, que considera enviesada, dos dados estatísticos

apresentados pelo Governo que apenas retratam a actividade das polícias e

dos tribunais, sem proceder a uma avaliação da evolução dos comportamentos

dos jovens delinquentes.

109 É de referir que esta associação, apesar de ser a única associação representativa dos

magistrados ligados à área das crianças e jovens, não foi convidada a participar na Comissão Varinard, tendo sido apenas auscultada.

110 Cf. Relatório da Associação Francesa de Magistrados da Juventude e da Família. “O futuro

da justiça de menores depois da comissão Varinard: A educação enganosa para uma verdadeira aceleração da repressão”. 26 de Janeiro de 2009. In http://afmjf.argonos.net/IMG/pdf_analyseAFMJF_rapport_varinard_26-1-2009.pdf (consultado em Janeiro de 2010).

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

139

De entre as 70 propostas da Comissão, admite que cerca de 40 são

inovações consensuais. No entanto, esta Associação alerta para as

contradições que ressaltam de uma leitura mais atenta do documento. Uma

dessas contradições prende-se com o não cumprimento do princípio da

especialidade da justiça de crianças e jovens e que, no texto, acaba por ser

muitas vezes afastado, designadamente por se continuarem a aplicar aos

jovens mecanismos processuais do direito penal de adultos.

Mas, para a AFMJF, a proposta que mais contradiz os princípios a que

deve obedecer o direito e a justiça de crianças e jovens, é a da criação de um

tribunal correccional para os jovens com mais de dezasseis anos. Critica,

desde logo, a sua composição, uma vez que apenas seria constituído por um

juiz de menores, levando a que, estando em minoria, apenas se destinaria a

manter a aparência do cumprimento do princípio da especialidade. Para a

AFMJF, esta inovação legal iria violar as recomendações do Comité de Direitos

da Criança das Nações Unidas e estaria, ainda, a afastar-se das disposições

da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, que vão no sentido

dos Estados promoverem a adopção de leis, processos e institutos

especialmente criados e pensados para os jovens.

Uma outra crítica é dirigida ao princípio da fixação do limite da idade de

18 anos para a aplicação da jurisdição de menores. Sugere que deve ser

seguida a tendência de outros países, como a Alemanha, Áustria, Holanda,

Espanha, Eslovénia, Croácia e Lituânia, nos quais se prevê a possibilidade de

poderem vir a aplicar-se aos jovens adultos (até aos 21 anos) as mesmas

disposições que se aplicariam aos jovens sempre que o seu desenvolvimento o

justifique.

Um outro aspecto a merecer a crítica da Associação é o que designam

como desaparecimento do primado educativo pela negação do apoio educativo

aquando a execução de uma pena ou sanção. De facto, no entender desta

Associação, o recurso à vertente educativa na resposta penal é, por um lado,

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140 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

restritivo e condicionado, dado que as soluções legais não se centram no

jovem delinquente, mas sim na infracção que este cometeu. Por outro lado, a

possibilidade de cumular uma pena com uma sanção reflecte o não

reconhecimento da diferente natureza da vertente sancionatória e da vertente

educativa. A limitação da duração máxima das sanções educativas a um ano

ilustra esta ideia, na medida em que impede a continuação do

acompanhamento do jovem após a execução da sanção. Outras soluções

propostas, como a possibilidade de institucionalização de um jovem com

menos de doze anos e a encarceração de um jovem com mais de doze anos

são também exemplos que a Associação considera colocar em causa o

primado educativo da justiça de crianças e jovens.

Uma outra voz crítica ao Relatório da Comissão Varinard é a de

Dominique Youf111, que, entre outros, dá especial ênfase ao facto de considerar

ter deixado de existir uma diferenciação de natureza entre sanções educativas

e penas, conferindo-se a ambas a mesma finalidade educativa. A diferença na

sua aplicação apenas depende da idade do jovem, do tipo de infracção

cometida e do seu percurso penal. Esta visão contradiz o efeito dissuasor das

sanções educativas, considerando que “toda a justiça penal de menores deve

assentar sobre a progressividade das sanções educativas e das penas de

modo a que o menor delinquente fique dissuadido de reincidir. Deve ser o

destinatário de uma mensagem clara e coerente de que o custo da passagem

ao acto será progressivamente mais elevado em função da evolução do seu

comportamento” (Youf, 2009: 124-125).

111 Doutorado em filosofia, é investigador associado da Universidade Paris IV-Sorbonne,

possuindo uma longa experiência profissional junto de jovens delinquentes e autor de numerosas obras sobre os direitos das crianças.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

141

A contestação geral às propostas do Relatório Varinard levou o

Ministério da Justiça a apresentar um projecto-lei112, o qual está actualmente a

ser submetido a uma larga concertação, que reflecte um retrocesso

relativamente aos primeiros objectivos da reforma e às propostas apresentadas

pela Comissão Varinard. Assim, desapareceram do projecto-lei propostas

bandeira, como a fixação da responsabilização penal dos jovens aos doze anos

e a criação de um tribunal correccional para os jovens com mais de dezasseis

anos.

Contudo, a AFMJF volta a criticar o diploma legal113. Caracteriza aquele

projecto-lei como um verdadeiro retrocesso histórico sem precedentes, desde

logo pela negação expressa do princípio da especialidade ao prever que as

disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal sejam

susceptíveis de aplicação aos jovens, salvo nos casos em que exista uma

disposição específica prevista no Código da Justiça Penal de Menores. Um

outro exemplo desse retrocesso é o quase desaparecimento da figura do juiz

de menores e, por consequência, do abandono do primado educativo e do

estatuto de menor114.

A AFMJF considera que as disposições do projecto-lei implicariam o

desaparecimento da figura do juiz de menores encarregado de acompanhar o

jovem ao longo de todo o processo, surgindo um juiz de menores com uma

presença “intermitente”. O Ministério Público volta a ter competências

alargadas para conduzir o inquérito e decidir sobre as medidas de investigação

112 Não foi possível conhecer, em detalhe, este projecto dado que não se encontra

publicamente disponível.

113 Cf. Associação Francesa de Magistrados da Juventude e da Família. In

http://www.afmjf.fr/Projet-de-code-de-justice-penale.html (consultado em Janeiro de 2010).

114 Actualmente, o juiz de menores é um magistrado especializado, que procura intervir numa

perspectiva de continuidade e de conhecimento global da situação dojovem, de forma a decidir com base no primado educativo e procurando aplicar uma medida ou uma sanção adequada ao percurso e à evolução do jovem, podendo, para tal, chamar a si todos os processos que respeitem ao mesmo jovem.

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142 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

relativamente à personalidade e situação do jovem. O juiz de menores passa a

intervir, essencialmente, na fase de julgamento ou, anteriormente a esta fase,

quando seja convocado para se pronunciar sobre as propostas do Ministério

Público. Esta nova realidade é, na opinião da AFMJF, muito desfavorável à

realização dos objectivos da justiça de crianças e jovens, dado que poderá

acontecer que o juiz de menores tenha o primeiro contacto com o processo

apenas naquelas duas situações. Em consequência, deixa de poder exercer o

seu papel de garante da coerência das medidas aplicadas a um jovem.

Esta Associação critica, também, o encurtamento da duração máxima

das medidas de investigação e das sanções educativas, por considerar que

pode levar a que o resultado daquelas medidas não se venha a mostrar

eficiente, sobretudo estando em causa jovens com personalidades complexas

ou com comportamentos desajustados ou delinquentes já muito enraizados.

A AFMJF considera ainda como aspecto negativo o afastamento da

intervenção dos pais do jovem na escolha das medidas e sanções educativas,

acabando reduzidos a um papel de espectadores passivos.

Apesar de a lei prever que a idade mínima para a responsabilização

penal se fixe nos treze anos, ainda assim para a AFMJF a reforma acaba com

o estatuto de criança, ao prever um regime especial para os jovens com idades

compreendidas entre os dez e os treze anos que, na prática, para além de se

revelar menos protector, acaba por pôr em causa o princípio da

responsabilização a partir dos treze anos, ainda que essa responsabilização

seja de natureza cível.

Tal posição da AFMJF não significa uma ausência de resposta aos actos

cometidos por jovens entre os dez e os treze anos, mas sim que a resposta

deve ser outra. Essa resposta deve, em primeiro lugar, emanar daqueles que

detêm a seu cargo a responsabilidade pela educação do jovem e, só em

segunda linha, ao juiz de menores, cuja resposta deverá poder acompanhar o

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

143

jovem e a sua família no âmbito das soluções previstas para as crianças em

risco.

Para a AFMJF, a reforma (e avança com um conjunto de propostas

nesse sentido) deve melhorar a justiça penal de crianças e jovens,

designadamente, no sentido de desenhar um direito penal e processual de

crianças e jovens verdadeiramente autónomo; imputar um carácter reparador à

justiça de crianças e jovens, responsabilizando e integrando as comunidades

locais pela não adopção de medidas capazes de afastar comportamentos

delinquentes; e avançar e assegurar a especialização de todos os profissionais

que intervenham nesta área.

Também a Associação Carrefour National de l'Action Éducative en Milieu

Ouvert (CNAEMO)115 teceu várias críticas ao Projecto-Lei do Código da Justiça

Penal de Menores. Considera, desde logo, que a proposta de reforma surge no

contexto de uma ideologia, que vem ganhando crescente importância social,

que favorece a resposta estigmatizante dos comportamentos desviantes em

detrimento de uma reflexão sobre as respostas mais adequadas para os

comportamentos socialmente disfuncionais. Considera que o projecto-lei

descura o objectivo central da protecção dos jovens – o jovem delinquente

deve sempre ser encarado como um jovem em perigo – centrando a sua acção

na infracção cometida e não no jovem, além de colocar em causa o princípio da

continuidade do acompanhamento do jovem, uma vez que o juiz de menores

tinha uma dupla competência: acompanhar o jovem em matéria penal e cível.

Uma outra crítica apontada também por outros operadores, é a previsão

de disposições legais que limitam a liberdade de apreciação do juiz de

menores, designadamente, a fixação de uma graduação rígida das medidas e a

115 Associação criada em 1981 com o objectivo de promover o encontro, o diálogo e a

investigação entre profissionais e associações que actuam na área da acção educativa em regime aberto. (cf. http://www.cnaemo.com)

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144 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

fixação de uma pena mínima para os jovens reincidentes com mais de

dezasseis anos, que aproximam o regime penal dos jovens do regime penal

previsto para os adultos, e das previsões legais que, supostamente com o

objectivo de uma justiça mais célere, acentuam o seu carácter repressivo, em

prejuízo do conhecimento da personalidade e da situação do jovem116.

Dominique Youf sintetiza as diferentes críticas ao diploma, considerando

que, quer para os autores do Projecto-Lei, quer para a Comissão, estão em

causa “adultos em miniatura e não crianças e adolescentes” (Youf, 2009: 222),

cujo estado de menoridade, em vez de lhes permitir beneficiar de medidas

educativas que lhes possibilitem desenvolver as suas capacidades, lhes

permite, sobretudo, beneficiar de uma atenuação da responsabilidade penal,

afastando a articulação e o diálogo entre o judiciário e o educativo (Youf, 2009:

223-225).

116 Cf. CNAEMO. “À propos du Projet de Code de Justice Pénale de Mineurs ». Setembro de

2009. In http://www.cnaemo.com/site/pdf/CNAEMO_Ord_45[1].pdf.

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O CASO DE ESPANHA

2

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2 O CASO DE ESPANHA

Introdução

Em Espanha, o tema da delinquência juvenil e das reformas a este

respeito tem estado, nos últimos anos, no centro do debate e da agenda

política, muito influenciado pelos casos mediáticos que têm condicionado

algumas das alterações legislativas de cunho mais repressivo. O

endurecimento na resposta aos crimes praticados por jovens conduziu,

designadamente, ao aumento das medidas de detenção e de colocação em

regime fechado e, para a criminalidade menos grave, ao aumento de medidas

alternativas. Para muitos autores, estas novas medidas, como resposta aos

receios da opinião pública, apesar de continuarem a apelar aos princípios da

ressocialização e da reeducação dos jovens, afastavam-se da reinserção e

aproximavam-se antes da prevenção geral. Analisamos, neste ponto, a

evolução recente do actual quadro legal sancionatório da delinquência juvenil e

damos conta de algumas das opiniões sobre esta temática117.

2.1 A responsabilidade penal das crianças e jovens

117 Sobre a evolução histórica da reforma do direito das crianças e jovens em Espanha, na

vertente dos jovens e o crime, remetemos para Gomes (Coord.), 2004: 93-96.

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148 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A responsabilidade penal das crianças e jovens é, desde 2001, regulada

pela Ley Orgánica 5/2000, de 12 de Janeiro (Ley Reguladora de la

Responsabilidad Penal de los Menores - LORPM), entretanto sujeita a quatro

alterações legislativas, a última das quais através da Ley Orgánica 8/2006, de

04 de Dezembro.

Logo no ano da sua aprovação, a conjuntura social de alarme que

apelava ao reforço da protecção de bens e pessoas contra atentados

terroristas e delitos graves (Bernuz Beneitez, 2005) desencadeia uma primeira

alteração à LORPM, pela Ley Orgánica 7/2000, de 22 de Dezembro, que

introduziu especificidades relativas a delitos de terrorismo praticados por

jovens118.

Em 2003, a Ley Orgánica 15/2003, de 25 de Novembro, aditou à

LORPM a disposición adicional sexta, no sentido de serem sancionados com

“mais firmeza e eficácia” os delitos cometidos por pessoas que, mesmo sendo

menores de idade, se revistam de especial gravidade. O legislador determinou,

ainda, a possibilidade de prolongar o tempo de internamento, o cumprimento

das sanções em centros em que se reforcem as medidas de segurança e,

ainda, a possibilidade daquelas serem cumpridas, a partir da maioridade, em

centros penitenciários.

A regulamentação da LORPM concretizou-se com o Real Decreto

1774/2004, de 30 de Julho, que entrou em vigor em Março de 2005. Este

118 Como referimos no estudo do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, de 2004,

atendendo “à gravidade dos crimes praticados que desencadeiam a aplicação da Lei 7/2000, a preocupação do legislador já não incide na defesa dos interesses do jovem, mas sim, na defesa da sociedade”. De acordo com Nieves Mulas, a alteração introduzida na LORPM pela Ley Orgánica 7/2000 “representou uma ruptura com a coerência interna do sistema da LORPM, pois implicou a quebra dos seus princípios inspiradores, orientados para a integração social dos jovens. A Ley Orgánica 7/2000 constitui uma exasperação do rigor punitivo que deixou de lado a evolução pessoal do jovem e que, portanto, se opõe ao princípio da ressocialização” (Sanz Mulas, 2003: 392). Para ilustrar esta ideia salienta-se o facto de a medida de internamento em regime fechado poder alcançar a duração máxima de dez anos para maiores de 16 anos e de cinco anos para os jovens com menos de 16 anos.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

149

diploma, nos termos do seu preâmbulo, visou desenvolver a LORPM nas três

áreas seguintes: actuação da Polícia Judicial e da equipa técnica, execução

das medidas cautelares e definitivas e regime disciplinar dos centros

educativos119.

A mais recente alteração à LORPM ocorreu com a aprovação da Ley

Orgánica 8/2006, de 4 de Dezembro, que entrou em vigor em 15 de Janeiro de

2007. Como é referido na Exposição de Motivos, cinco anos após a aprovação,

o Governo procedeu a uma avaliação da sua aplicação, que conclui por

resultados positivos, apesar de terem sido apontadas algumas disfunções.

Para as corrigir, por um lado, procedeu-se a alterações correctivas à lei, por

outro lado, a lei foi alterada no sentido de uma maior proporcionalidade entre a

resposta sancionadora e a gravidade do facto cometido. Esta última alteração

veio atender à existência de dados considerados pelo Governo como

indiciadores de um aumento dos delitos cometidos por jovens, a par de grande

preocupação social associada a uma percepção de impunidade das infracções

mais frequentes, como os delitos contra o património.

Para o legislador, a LORPM continua a prever como princípios

orientadores o superior interesse das crianças e jovens e as garantias

constitucionais, de acordo com as normas de direito internacional, em especial

da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989,

assim como a natureza formalmente penal, mas materialmente sancionatório-

educativa do procedimento e das medidas aplicáveis aos jovens infractores; a

diferenciação das faixas etárias com diferentes efeitos processuais e

119 Este regulamento foi objecto de numerosas críticas por parte de advogados e ONG´s que aí

viam um endurecimento encoberto do tratamento penal das crianças e jovens – contrariando o espírito da lei – estando o regulamento orientado para garantir a ordem dos centros de internamento, com medidas inspiradas no Regulamento Penitenciário de adultos (Cabezas Salmerón, 2007).

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150 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

sancionadores120; a flexibilidade na adopção e execução das medidas do caso

concreto; o controlo judicial da execução; a especial incidência na reparação do

dano causado e na conciliação do delinquente com a vítima; e a fixação de um

sistema célere para o ressarcimento de danos e de prejuízos às vítimas ou a

outros prejudicados, prevendo-se um procedimento rápido e pouco formalista

para o ressarcimento de danos e um amplo direito de participação das vítimas.

O diploma destaca a conveniência da reparação do dano causado e a

conciliação do delinquente com a vítima, por meio da mediação121,122.

120 A lei acolhe o sistema biológico puro (responsabilidade penal dos jovens entre os 14 e os 18

anos), distinguindo-se duas faixas etárias (dos 14 aos 16 anos e dos 17 aos 18 anos), por se entender que esses estratos etários apresentam diferenças que exigem um tratamento distinto, do ponto de vista científico e jurídico.

121 A mediação como instrumento de resolução de conflitos no âmbito penal insere-se no

conceito de justiça restaurativa ou reabilitadora, pressupondo uma alteração de paradigma, pois visa restaurar o equilíbrio mediante a reparação (acção positiva) e não por meio do castigo ao jovem infractor (acção negativa). A mediação pressupõe um processo de responsabilização não punitivo, suprimindo sentimentos de vingança, ressentimentos e medos, toma em consideração a vítima, seus direitos e situação, sem menosprezar os direitos que cabem ao infractor (Aedo Rivera, 2008: 65). Na perspectiva de Prieto Lois, a mediação penal apresenta benefícios educativos, económicos e sociais. Benefícios educativos porque tanto a vítima como o infractor participam activamente no processo de resolução do conflito, tentando chegar a acordos que permitam conciliar a vítima e o infractor; benefícios económicos porque os trâmites são agilizados e a intervenção judicial é reduzida, o que diminui o volume de trabalho do tribunal; e benefícios sociais por favorecer a agilização da justiça, reduzindo a morosidade judicial e permitindo uma resposta rápida a delitos que provocaram alarme social (Prieto Lois, 2009). Junto de jovens infractores os programas de mediação penal assumem especial importância, pois os seus objectivos proporcionam uma assunção de responsabilidade pelos jovens, que são responsabilizados pelas suas acções e suas consequências, sendo-lhes ensinadas formas mais construtivas de resolução de conflitos (Pulido Valero, 2008: 151). Na perspectiva da vítima, o processo de mediação constitui uma possibilidade de restituição, ao ouvir o autor do seu prejuízo, superando os seus receios face à sua presença e obtendo as respostas às suas perguntas. Por meio do diálogo, a vítima relata ao jovem como se sente e como deseja ser reparada, participando activamente no processo educativo e responsabilizador do jovem e na solução do conflito que a afecta. Quanto à sociedade, a mediação contribui para criar um modelo de justiça distante do carácter punitivo, no qual se devolve às partes implicadas no conflito capacidade para o resolver, gerando confiança e segurança nos indivíduos e na comunidade. O encontro entre as partes converte-se, assim, numa oportunidade de enriquecimento (Andrea Carrasco et al, 2008: 163).

122 Importa referir que, em Espanha, a mediação penal juvenil pode ter lugar no início do

procedimento judicial, na fase de instrução - no caso do facto imputado ao jovem constituir um delito menos grave ou falta - ou durante a execução da medida, ficando neste caso sem efeito a medida antes imposta, o que terá lugar quando o juiz, sob proposta do Ministério Público ou do jovem e ouvidos a equipa técnica e o representante da entidade pública de protecção ou

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

151

De acordo com o legislador, a LO 8/2006 adequa o tempo de duração

das medidas à gravidade dos delitos e à idade dos jovens infractores, sendo

eliminada do seu âmbito de aplicação a possibilidade, estabelecida na LO

5/2000, de aplicar a lei aos jovens entre os 18 e os 21 anos, atendendo a

certas características do indivíduo, como adiante se verá, esta alteração tem

vindo a ser amplamente criticada por alguns autores.

As medidas

A LORPM estabelece um amplo catálogo de medidas susceptíveis de

serem aplicadas a jovens: internamento em regime fechado123; internamento

em regime semiaberto; internamento em regime aberto; internamento

terapêutico em regime fechado, semiaberto ou aberto; tratamento ambulatório;

assistência num centro de dia; permanência em casa ou em centro durante o

fim-de-semana; liberdade vigiada124; proibição de aproximar-se ou comunicar

com a vítima, com familiares desta ou com outras pessoas que o juiz

determine; convivência com outra pessoa, família ou grupo educativo125;

reforma de jovens, entenda que tal acto e o tempo de duração da medida já cumprido exprimem de forma suficiente a reprovação que merecem os factos praticados pelo jovem. De acordo com Marcela Rivera, a possibilidade de mediação na fase de execução desenvolve os princípios de oportunidade, flexibilidade na adopção da medida e de interesse superior do jovem, prevendo a faculdade de ficar sem efeito até uma medida privativa da liberdade (Aedo Rivera, 2008: 71)

123 O internamento em regime fechado é aplicado nos casos em que os factos praticados

estejam tipificados como delitos graves no Código Penal ou em leis penais especiais; ou sendo factos tipificados como delitos menos graves, na sua prática tenha havido recurso a violência, a intimidação ou risco grave para a vida ou para a integridade física; ou no caso dos factos tipificados como delitos terem sido praticados em grupo ou o jovem pertencesse ou actuasse ao serviço de um bando, organização ou associação, mesmo que com carácter transitório, que se dedicasse a tais actividades.

124 A medida de liberdade vigiada consiste no acompanhamento da actividade do jovem na

escola, no centro de formação profissional ou no local de trabalho, com o objectivo de superar os factores que conduziram ao cometimento do delito.

125 Com esta medida pretende-se que, durante o tempo estabelecido pelo juiz, o jovem conviva

com outra pessoa, com uma família que não a sua ou com um grupo educativo seleccionado

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152 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

trabalho a favor da comunidade; realização de tarefas sócio-educativas126;

admoestação; privação da autorização para conduzir ciclomotores e veículos a

motor; e, após a Ley Orgánica 7/2000, a medida de inabilitação absoluta127.

Com a alteração de 2006, os pressupostos de aplicação da medida de

internamento em regime fechado foram alterados, passando também a prever-

se a prática de delitos graves e de delitos cometidos em grupo ou quando o

jovem pertença ou actue ao serviço de um bando, organização ou associação

que se dedique à prática dessas actividades128.

para orientar o jovem no seu processo de socialização. Esta medida visa proporcionar ao jovem um ambiente de socialização positiva, no que diz respeito ao desenvolvimento da vertente sócio-afectiva. A convivência será, como referimos, limitada temporalmente pelo juiz, pois decorrido algum tempo, o jovem regressará à sua família de origem, pelo que a medida não pode implicar uma ruptura radical com os vínculos entre o jovem e a sua família.

126 O jovem submetido a esta medida, sem recurso a internamento nem a liberdade vigiada,

deverá realizar actividades específicas de conteúdo educativo, com o fim de desenvolver a sua competência social e a sua reinserção na comunidade. Esta medida pode ser imposta de forma autónoma ou pode ser combinada com outra medida mais complexa

127 Esta medida, introduzida pela Ley Orgánica 7/2000, de 22 de Dezembro, é dirigida aos

delitos de terrorismo, e implica a privação definitiva de todas as honras, empregos e cargos públicos, mesmo que electivos, assim como a incapacidade para obter os mesmos ou quaisquer outros cargos, empregos públicos ou honras e de ser eleito para um cargo público, durante o tempo de duração da medida. A lei precisa, ainda, no caso da prática dos crimes de terrorismo previstos nos artigos 571.º a 580.º do Código Penal, sem prejuizo da aplicação de outras medidas aplicáveis no âmbito da LORPM, a imposição, também, da medida de inabilitação absoluta a menores de 18 anos, por um período entre quatro e quinze anos para além da duração da medida de internamento em regime fechado, atendendo à gravidade do delito, ao número de factos e às circunstâncias concretas. Nestes casos, até ter sido cumprida metade da medida, não poderá ter lugar qualquer revisão.

128 O legislador pretendeu dar resposta aos factos cometidos por jovens vinculados a bandos e,

de acordo com alguns autores - Feixa, C. e Canellles, N. apud Díaz Cortés, 2008 - sobretudo a bandos de imigrantes de origem latino-americana. Os autores consideram como natural o processo de agrupamento de adolescentes, bem como o agrupamento de adolescentes imigrantes, pois para além dos conflitos próprios da adolescência, estão presentes os conflitos decorrentes de possuírem uma cultura distinta da do país onde vivem, o que gera problemas de adaptação que os grupos juvenis, como espaços de apoio e de amizade, ajudam a vencer. Autores como W. Thomas e D. Swaine (apud Díaz Cortés, 2008), consideram que, à semelhança do que aconteceu nos EUA, em El Salvador, no México e no Equador, a criminalização dos bandos, não só não acaba com eles como os converte em algo endémico e reforça esses grupos. Não defendem, por isso, como adequada a agravação da pena por os jovens actuarem em grupo, considerando que assim se criam estereótipos que afectam o natural desenvolvimento dos jovens como membros da sociedade e estigmatizam o colectivo

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

153

Com a LO 8/2006 passou a constituir fundamento para aplicar uma

medida, o risco do jovem atentar contra bens jurídicos da vítima. Foi criada

uma nova medida, que consiste no afastamento do jovem da vítima, seus

familiares ou outra pessoa que o juiz determine. A LO 8/2006 procedeu, ainda,

ao alargamento da duração da medida cautelar de internamento, que passou

de 3 meses prorrogável por mais 3 meses, para 6 meses prorrogável por mais

3 meses. Foi também revisto o regime de imposição e execução de medidas,

outorgando a lei ao juiz amplas faculdades para individualizar a(s) medida(s)

que o jovem deva cumprir.

O legislador de 2006 reforçou o reconhecimento dos direitos das vítimas,

designadamente o direito de serem informadas das decisões que afectem os

seus interesses e a possibilidade do procedimento conjunto das pretensões

penais e civis. Um objectivo da LO 8/2006 foi, ainda, acolher no processo de

crianças e jovens as novas funções do secretário judicial previstas na LO

6/1985, após a reforma operada pela LO 19/2003 (cf. Exposição de Motivos).

Para a escolha da medida ou medidas o juiz terá em conta, não apenas

a prova e a valoração jurídica dos factos, mas especialmente a idade, as

circunstâncias familiares e sociais, a personalidade e o interesse do jovem,

baseando-se nas informações fornecidas pelas equipas técnicas. O juiz deverá

fundamentar a escolha da medida e fixar a sua duração.

A execução das medidas é feita sob o controlo do juiz de menores, ao

qual compete adoptar todas as decisões que sejam necessárias para proceder

à sua execução efectiva, decidir as propostas de revisão, aprovar os

de imigrantes, que ficam associados à delinquência. Apesar da reforma defender que as alterações visam o interesse superior da criança, a norma referida, de acordo com Díaz Cortés (2008), coloca os jovens numa situação mais gravosa do que a dos adultos delinquentes. No mesmo sentido, Concepción Carmona Salgado, censura a criação da agravação no casos dos jovens actuarem em grupo ou bando, que considera uma medida discriminatória e repressiva, medida essa não prevista para os delinquentes adultos, além de ser em grupo que, em regra, os jovens praticam factos já qualificados pela lei como crimes (Carmona Salgado, 2008: 269).

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154 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

programas de execução, conhecer a evolução dos jovens durante o

cumprimento das medidas através de informações dos técnicos, decidir os

recursos que se interponham contra as resoluções tomadas sobre a execução

das medidas, tomar conhecimento e actuar na sequência de petições e de

queixas apresentadas pelos jovens que afectem os seus direitos fundamentais,

realizar regularmente visitas aos centros e efectuar entrevistas com os jovens,

formular à entidade pública propostas e recomendações que considere

oportunas sobre a organização e o regime de execução das medidas. A

execução das medidas aplicadas pelos juízes de menores é da competência

das Comunidades Autónomas e das cidades de Ceuta e de Melilla, as quais,

de acordo com as suas respectivas normas de organização, levarão a cabo a

criação, direcção, organização e gestão dos serviços, instituições e programas

adequados para garantir a correcta execução das medidas previstas na

LORPM129.

129 Descrevemos de seguida, no caso da Comunidade de Madrid, a actuação da Agencia de la

Comunidad de Madrid para la Reeducación y Reinserción del Menor Infractor que, no quadro do Estatuto de Autonomía de la Comunidad de Madrid foi criada em 2004, com o fim de concentrar, desenvolver e executar os programas e acções necessários nesta matéria.

A Agencia tem como objectivo central a execução de programas e acções que contribuam para a reinserção e educação dos jovens. A lei confere à Agencia, entre outras, as seguintes competências e funções: a) execução das medidas privativas e não privativas da liberdade aplicadas pelos magistrados; execução das medidas cautelares; intervenção, através das equipas técnicas, nos procedimentos judiciais; supervisão dos programas elaborados pelos centros educativos, equipas de meio aberto ou outros profissionais designados para a execução das medidas impostas; assegurar a disponibilidade de lugares suficientes e compatíveis com os fins de reeducação e reinserção; promover a via extrajudicial para a efectivação da reparação, assim como o desenvolvimento da mediação entre vítima e infractor; coordenação com o tribunal e demais instituições relacionadas com o processo de execução das medidas impostas a jovens; cooperação e coordenação com os diferentes organismos públicos da Comunidad de Madrid e com organismos privados, em matéria de prevenção de condutas e atenção dispensada a jovens delinquentes; garantir, em coordenação com o Instituto del Menor y la Familia, os recursos residenciais apropriados para jovens com medidas em meio aberto e saídas autorizadas na execução das medidas de internamento; controlo das autorizações de saída em fins-de-semana, férias e outros tipos de saídas; seguimento do trabalho com os jovens delinquentes e suas famílias; realização de acções de formação para os profissionais que trabalhem com jovens delinquentes, assim como a realização de estudos e investigação sobre o tema; desenvolvimento de políticas de reinserção social dirigidas a jovens delinquentes, tanto durante a execução como após a execução das medidas; garantir a assistência jurídica dos jovens; desenvolver a aplicação dos processos de determinação de

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

155

As medidas de internamento são compostas por dois períodos, o

primeiro dos quais decorre no centro educativo e o segundo em regime de

liberdade vigiada, na modalidade fixada pelo juiz. A duração total da medida de

internamento não pode exceder a duração prevista na lei (artigo 7 da LORPM

com as alterações da LO 8/2006).

De acordo com a LORPM na redacção da LO 8/2006, o regime geral de

aplicação e duração das medidas é o seguinte: quando os factos cometidos

sejam qualificados como falta, apenas podem ser impostas medidas de

liberdade vigiada, até um máximo de 6 meses; admoestação; permanência de

fim-de-semana, até um máximo de quatro fins-de-semana; prestação de

trabalho a favor da comunidade, até 50 horas; privação de condução ou de

idade dos menores delinquentes não identificados; tramitação do procedimento de reagrupação familiar dos jovens estrangeiros não acompanhados que não se encontrem tutelados pela Comunidad de Madrid; garantir a assistência sanitária integral, incluindo a saúde mental, a prevenção e reabilitação do jovem, a assistência escolar, formativa e de lazer; zelar para que o pessoal que intervém seja idóneo para o desempenho das funções; e autorizar e controlar a aplicação dos meios de contenção necessários para evitar e reprimir actos de violência ou intimidação ou lesões dos jovens ou outras pessoas e para impedir actos de fuga e danos nas instalações.

A Agencia dispõe de um programa de reparações extrajudiciais que visa proporcionar um distinto modo de resolução de conflitos e potenciar novas formas de reacção face às infracções cometidas. A intervenção extrajudicial constitui uma alternativa ao processo judicial, baseada nos princípios da oportunidade e responsabilidade, com a participação activa do infractor (Madrid Liras, 2008: 273).

Uma conclusão foi no sentido da insuficiência das respostas e intervenções judiciais que se vinham aplicando em geral a todos os jovens, sempre que estavam em causa grupos especiais, como as jovens grávidas, os jovens que praticaram delitos relacionados com abusos sexuais ou aqueles com problemáticas de consumo de substâncias tóxicas, entre outros. A Comunidad de Madrid desenvolveu, assim, programas especializados para jovens de 14 e 15 anos; programas para jovens grávidas ou com filhos menores de 3 anos; o programa DIAS, para jovens implicados em delitos contra liberdade sexual; programa para jovens implicados em delitos de maus tratos familiares, dada a multiplicidade de variáveis que podem chegar a gerar um funcionamento desadaptado do jovem e sua família, não existe um modelo de tratamento estandardizado aplicável a todas elas; programa terapêutico relativo ao consumo de substâncias tóxicas, com o objectivo de proporcionar um espaço residencial e de convivência que apoie e reforce o processo de desabituação-reabilitação do jovem e desenvolva intervenções de carácter sócio-educativo em simultâneo com a aplicação da medida judicial, para facilitar a progressiva integração dos jovens em contextos normalizados (Madrid Liras, 2008: 275).

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156 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

outras licenças administrativas, até 1 ano; proibição de se aproximar e de

comunicar com a vítima, familiares desta ou com outra pessoa que o juiz

determine, até 6 meses; e realização de tarefas sócio-educativas, até 6 meses.

Haverá lugar a medida de internamento em regime fechado quando os

factos praticados estejam tipificados como delito grave pelo Código Penal ou

por leis penais especiais; o delito for qualificado como menos grave, mas tenha

sido usada violência ou intimidação ou tenha havido grave risco para a vida ou

integridade física; os factos tenham sido praticados em grupo; e o jovem actue

ao serviço de um bando, organização ou associação, mesmo que

transitoriamente.

A lei prevê, como regra, que a duração das medidas não poderá exceder

os dois anos (sendo descontado o tempo cumprido em medida cautelar). No

caso da medida de prestação de trabalho a favor da comunidade, a sua

duração não pode ir além de 100 horas e a medida de permanência em fim-de-

semana não pode ultrapassar os oito fins-de-semana. Estas regras gerais

podem, contudo, sofrer alterações nos seguintes casos:

(1) Se, à data dos factos, o jovem tiver 14 ou 15 anos, a medida aplicada

poderá atingir a duração de 3 anos. No caso de prestação de trabalho a favor

da comunidade, o máximo será de 150 horas e, se se tratar de permanência

em fim-de-semana, não poderá ir além de 12 fins-de-semana.

(2) Para os jovens que, à data da prática dos factos qualificados como crime

tenham completado 16 ou 17 anos, a duração máxima das medidas será de 6

anos, de 200 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade ou, caso

se trate de permanência em fins-de-semana, de 16 fins-de-semana.

(3) Se o facto praticado for de extrema gravidade (ou se houver reincidência) o

juiz poderá impor uma medida de internamento em regime fechado de 1 a 6

anos, completada com outra medida de liberdade vigiada com assistência

educativa até um máximo de 5 anos.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

157

A lei, na redacção da LO 8/2006, passou a prever, no caso de o facto

praticado ser punível com pena de prisão de 15 ou mais anos, que ao jovem

devem ser impostas as medidas seguintes:

(1) Se à data da prática dos factos o jovem tiver 14 ou 15 anos, deverá ser

aplicada uma medida de internamento em regime fechado de 1 a 5 anos de

duração, complementada por outra medida de liberdade vigiada até 3 anos;

(2) Se à data da prática dos factos o jovem tiver 16 ou 17 anos, deverá ser

aplicada uma medida de internamento em regime fechado de 1 a 8 anos

complementada por outra medida de liberdade vigiada com assistência

educativa até 5 anos.

Caso o delito cometido se insira no catálogo de acções terroristas, o juiz,

sem prejuízo das demais medidas aplicáveis, também aplicará ao jovem uma

medida de inabilitação absoluta com uma duração entre 4 e 15 anos para além

da duração da medida de internamento em regime fechado, atendendo à

gravidade dos factos, ao número de delitos e às demais circunstâncias do caso

concreto.

As alterações à LORPM têm, assim, vindo progressivamente a

endurecer na resposta aos factos qualificados como crimes praticados por

jovens. Montero Hernanz (2007) estabelece o paralelo das medidas aplicáveis

a um jovem de 14 anos autor de um homicídio, em três momentos distintos,

consoante a data em que os factos tivessem sido praticados: antes da entrada

em vigor da LORPM; na vigência da LORPM até à reforma de 2006; e após a

reforma de 2006, chamando a atenção que o endurecimento foi mais marcado

após LO 8/2006. O Quadro seguinte ilustra este endurecimento da resposta

aos factos qualificados como crimes praticados por jovens.

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158 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Idade do autor Antes da LO 5/2000 LO 5/2000 (antes da

LO 8/2006)

LO 5/2000 (após a LO

8/2006)

14-15 anos

Máximo: medida de

internamento de

2 anos

Máximo: medida de

internamento de

4 anos seguida

de 3 anos de

liberdade vigiada

Máximo: medida de

internamento de 5

anos seguida de 3

anos de liberdade

vigiada

Fonte: Montero Hernanz, 2007

2.2 Perspectivas sobre o debate da justiça penal de crianças e jovens

As recentes reformas à LORPM têm provocado um forte debate em

Espanha com posições divergentes alicerçadas em argumentos que enfatizam

diferentes visões do papel do Estado na resposta à delinquência juvenil.

Apresentamos de seguida, uma perspectiva desse debate.

Para a maioria dos autores, parece consensual que a Lei de 5/2000

introduziu um modelo misto de justiça de crianças e jovens, o designado

modelo de responsabilização, acolhido na Convenção das Nações Unidas

sobre os Direitos das Crianças (Bernuz Beneitez, 2005). Este modelo tem

como objectivo central o interesse superior do jovem, o que leva a que a

intervenção tenha em conta o delito cometido e uma pluralidade de factores

psicossociais. Ora, para alguns, as sucessivas reformas da LORPM mostram

que se têm vindo a considerar outros interesses ao mesmo nível, ou mesmo,

colocando em primeiro plano o dano cometido e o interesse, quer da sociedade

que reclama punição, quer da vítima. Por exemplo, para Bernuz Beneitez todas

as alterações posteriores à Lei 5/2000 desvinculam-se da tendência que a

Convenção impõe de minimizar o internamento, privilegiando a execução de

medidas em contexto comunitário e sócio-familiar. Ainda para aquela autora, a

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

159

resposta prevista no ordenamento jurídico para os casos de reincidência e de

delinquência de extrema gravidade não tem em conta alguns princípios

essenciais da jurisdição de menores (Bernuz Beneitez, 2005).

Lina Díaz Cortés (2008) também defende que a reforma acentua a

resposta punitiva e faz perder relevância no interesse do jovem. Centra a sua

crítica na alteração introduzida pela LO 8/2006 – aplicação da medida de

internamento nos casos de pertença do jovem a bandos ou a associações

criminosas – por considerar constituir um reflexo do modelo de seguridad

ciudadana na justiça de crianças e jovens. A autora contesta o principal

fundamento em que se apoiou esta alteração (aumento da criminalidade grave

cometida por jovens) por considerar que os indicadores estatísticos conhecidos

não espelham essa realidade130, apesar de, em 2005, o Governo justificar as

alterações no que respeita à duração das medidas para os delitos mais graves

e para aqueles cometidos em bando com a necessidade de responder ao

alarme social (Bernuz Beneitez, 2005). Para a autora, estamos perante

reformas condicionadas pela politização do novo modelo de seguridad

ciudadana, que procura dar resposta a exigências populares perante crimes

graves e violentos (Díaz Cortés, 2008).

As recentes alterações à LORPM, que revalorizam o cariz punitivo da

sanção, têm sido também colocadas em causa por alguma doutrina por

considerarem que elas admitem como prioritários os fins de prevenção geral.

Considera-se que o modelo de reacção penal deve ter em conta as

especificidades dos jovens como sujeitos em desenvolvimento e não uma

transposição para os jovens do direito penal dos adultos. Acresce, segundo

Esther Fernandéz Molina (2006), se no inicio da vigência daquelas alterações,

a prática judiciária, graças à margem de flexibilidade da lei, procurava acentuar

130 Cf. “La criminalidade en España en 2006”. Gabinete de Estudios de Seguridad Interior de la

Secretaria de Estado de Seguridad del Ministerio del Interior – In http://www.mir.es/DGRIS/Balances/Balance_2006/pdf/Balance_Criminalidad_2006.pdf

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160 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

a resposta na educação e no interesse do jovem, nos últimos anos acentua-se

uma vertente mais punitiva em consonância com todo o contexto de política

criminal131.

Para autores como Montero Hernanz (2007), a reforma tem sido

fortemente condicionada pela mediatização de alguns casos de extrema

violência, como o crime da catana, ocorrido em Abril de 2000132, o crime de

San Fernando133, em Maio do mesmo ano (que terá motivado a reforma

aprovada pela LO 7/2000), o homicídio de Sandra Palo, em Maio de 2003134

(que terá conduzido à reforma operada pela LO 15/2003), e o homicídio de um

131 Refira-se que para a Amnistia Internacional, a reforma de 2006 significou um passo atrás na

justiça de crianças e jovens ao afastar-se das normas internacionais sobre o direito e a justiça de jovens. Cf. Amnistía Internacional. La reforma de la Ley de Responsabilidad Penal del Menor vulnera la Convención de Derechos del Niño de Naciones Unidas. 21-06-2006. http://www.es.amnesty.org/noticias.

132 O crime da catana foi cometido por um jovem de 16 anos que assassinou os seus pais e a

sua irmã, com síndroma de Down, em 01 de Abril de 2000, com cerca de 70 golpes de uma espada japonesa de samurai, enquanto dormiam. A gravidade do crime e o facto de o jovem ter sido colocado em liberdade após concluir 6 meses de medidas cautelares, enquanto aguardava julgamento, causou grande alarme social. Viria a ser condenado em Junho de 2001 a uma medida de internamento num centro terapêutico e a mais 2 anos de liberdade vigiada. Em Setembro de 2003 conseguiu fugir durante uma saída terapêutica, organizada pelo centro de menores onde se encontrava internado, sendo capturado 4 horas mais tarde.

133 Ficou conhecido como o crime de San Fernando o assassinato de uma rapariga com 16

anos por duas jovens de 16 e 17 anos, suas colegas, em 26 de Maio de 2000. As duas jovens, afirmaram que queriam ficar famosas e saber o que se sentia ao matar uma pessoa, aparentemente influenciadas por um filme de terror norte-americano de 1996 – The Craft – que alcançou certo êxito em Espanha. As jovens foram condenadas a 8 anos de internamento em regime fechado, revisto aquando do cumprimento de metade da medida, e a mais 5 anos de liberdade vigiada.

134 Quatro indivíduos, três dos quais menores de 18 anos, violaram, assassinaram e

queimaram a jovem Sandra Palo, de 22 anos, em 16 de Maio de 2003, perto de Madrid. Os pais da vítima, sua família e alguns vizinhos iniciaram uma campanha para a modificação da lei no sentido de permitir a acusação particular, tendo recolhido mais de 700.000 assinaturas. O alarme social produzido e a mobilização conseguida em torno do caso culminaram, 6 meses após os factos, na reforma da lei no sentido pretendido – introdução na LO 15/2003 do artigo 25.º, relativo a acusação particular.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

161

adolescente em Barcelona, em Outubro de 2003, aparentemente por membros

de um gang135 (Montero Hernanz, 2007).

A mediatização daqueles crimes e os diagnósticos, a partir deles, dos

comentadores da comunicação social, que mostravam a delinquência juvenil

cada vez mais violenta e exigiam medidas mais severas e políticas de

“tolerância zero” apresentando os centros educativos como hotéis de luxo,

criaram um contexto em que prevaleciam as percepções sociais negativas e

aumentou a pressão social para a reforma.

Como refere Cabezas Salméron, os factos qualificados como crime,

primeiro foram notícia, depois escândalo e, rapidamente, foram introduzidos em

anteprojecto de lei, sem que tenha havido estudos sobre o tema de forma

serena e fora da discussão mediatizada (Cabezas Salmerón, 2007). Reclama-

se, por isso, que as reformas assentem em diagnósticos sociológicos, na

reflexão sobre os objectivos e princípios que devem presidir ao direito e à

justiça de crianças e jovens e não sejam induzidas pela ocorrência de factos

pontuais, ainda que muito dramáticos (Del Valle, et al, 2009).

Acresce que, em especial no que se refere às alterações introduzidas

pela LO 8/2006 relativamente ao sancionamento da “pertença” a bandos, várias

vozes se têm manifestado, colocando em causa a “eficácia” desse

endurecimento demonstrado pelos estudos de criminologia que evidenciam a

fragilidade dos objectivos de prevenção geral e da dissuasão, defendendo, por

isso, uma maior centralidade de políticas públicas que apostem na educação

dos imigrantes de segunda geração, de forma a atenuar as diferenças e dando-

lhes as necessárias ferramentas de educação e formação que lhes permita a

entrada no mercado de trabalho, isto é, uma intervenção que estabeleça o

135 O assassinato de Ronny Tapias em Barcelona gerou um conjunto de notícias sobre bandos

juvenis, criando uma imagem, colada à delinquência, dos jovens imigrantes de origem latina que vivem em Barcelona.

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162 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

circuito educação-formação-inserção laboral e social (Aebi, 2008: 49-50 e

Cercas Domínguez, 2008: 93).

Além das sanções e medidas, um outro foco em debate no âmbito da

LORPM, prende-se com os limites de idade (mínima e máxima) aos quais se

aplica a lei. Nesta matéria, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989

fixou a maioridade aos 18 anos, ao considerar que criança é todo o ser humano

menor de 18 anos, estabelecendo, assim, o limite máximo, mas sem ter

determinado um limite mínimo, referindo expressamente que os Estados-parte

realizarão todas as acções necessárias para definir a idade mínima antes da

qual se presumirá que as crianças não têm capacidade para infringir as leis

penais. Ou seja, a Convenção sobre os Direitos da Criança delegou nos

Estados-parte a fixação da idade mínima em função do seu contexto sócio-

económico e cultural, registando-se diferenças notórias no limiar mínimo da

“idade penal” entre os diversos países (Portugal, 12 anos; França, 10 anos; 13

anos na Polónia; 14 anos em Espanha; 15 anos na República Checa,

Dinamarca, Finlândia, Eslováquia e Suécia; e 16 anos na Bélgica), não

obstante, em alguns desses países, entre os 7 e os 15 anos, as medidas

previstas não são propriamente penais, ou são mais benévolas, e exclui-se das

primeiras franjas de idade a medida de internamento (González del Real,

2008).

Quanto ao limite máximo, há países que prevêem uma aplicação

extensiva, em determinadas condições, até aos 21 anos, como é o caso de

Portugal, Áustria, Alemanha, Itália, Grécia e Holanda. A LORPM, na sua

redacção original, previa essa possibilidade, que veio, contudo, a ser derrogada

com a reforma operada pela LO 8/2006, que prevê, no caso do jovem

completar 18 anos durante o cumprimento de uma medida de internamento, a

possibilidade de continuação do cumprimento da medida num centro

penitenciário se a conduta do jovem não corresponder aos objectivos propostos

na sentença.

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

163

Em Espanha, a discussão, à semelhança do que sucede em outros

países, centra-se, ainda, na possibilidade de aplicação da LORPM a menores

de 14 anos, confrontando-se opiniões divergentes. Montero Hernanz (2008)

equaciona essa possibilidade em duas situações: se estiverem em causa

factos graves e jovens multireincidentes. O juiz González Armengo situa esta

discussão no “aparente fracasso de uma lei de âmbito civil que abarca os

menores de 14 anos - a Lei de Protecção Jurídica do Menor”, dado que, no

quadro desta lei, não existem medidas de contenção, o que torna

absolutamente inócuas as decisões nessa matéria aplicadas a jovens que

ainda não completaram 14 anos, mas que são já “autênticos delinquentes”.

Defende, por isso, que, em face de comportamentos “gravíssimos”, se baixe a

idade até aos 13 ou mesmo até aos 12 anos, devendo ser modificada a lei

nesse sentido (González Armengo, 2008).

Diferente é a opinião de outros autores e operadores judiciários, como

Castany Prado. Para este autor, confrontam-se duas lógicas, que revelam

diferente conceptualização da intervenção educativa com jovens de 14 anos: a

lógica judicial e a lógica assistencial. A primeira considera que é mais fácil

educar e trabalhar sob coacção, enquanto a lógica assistencial considera que

todo o delito é indício de uma carência educativa e, antes de se optar pela via

judicial, deve optar-se por preencher esse vazio. Para o autor, baixar para 12

anos o limite inferior de responsabilidade penal coloca em causa o verdadeiro

objectivo da justiça juvenil – devolver ao jovem uma liberdade concebida em

termos de autonomia, uma responsabilidade que se aprende assumindo

responsabilidades, o que implica um longo período de aprendizagem (Castany

Prado, 2008).

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164 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

2.3 O modelo catalão de justiça juvenil

Em Espanha, no âmbito das competências transferidas às comunidades

autónomas, a Catalunha desenvolveu um modelo singular e avançado de

justiça juvenil. O modelo afasta-se, quer do enfoque penitenciário, quer do

enfoque assistencialista e protector, apostando na responsabilização dos

jovens por meio de medidas concebidas e aplicadas por órgãos distintos dos

da protecção de crianças e jovens e dos serviços penitenciários, destacando-se

a missão dos serviços de justiça juvenil, a cargo da Dirección General de

Justícia Juvenil.

Os principais vectores do modelo catalão de justiça juvenil são os

seguintes: separação entre as funções de protecção de crianças e jovens e de

justiça juvenil; aplicação dos princípios de oportunidade e de intervenção

mínima, assim como mediação entre autor e vítima136; responsabilização dos

jovens como elemento central das intervenções, desenhadas para favorecer a

autonomia e a integração pessoal; intervenções transitórias fomentando a

participação da família, dos serviços sociais e da comunidade; intervenções

integradas, baseadas na coordenação e no trabalho transversal de equipas

profissionais altamente qualificadas; e reforço das garantias legais dos jovens e

protecção do direito à intimidade das vítimas e dos autores dos delitos (cf.

Generalitat de Catalunya).

As características basilares do sistema, apresentadas pela Generalitat

de Catalunya são um bom nível de coordenação entre os operadores do

136 O programa de mediação e reparação tem como referência as recomendações do Conselho

da Europa e das Nações Unidas sobre as reacções sociais e penais da delinquência juvenil, assim como as orientações da mediação penal. A LO 5/2000 prevê a conciliação e a reparação entre o jovem infractor e a vítima, para permitir a resolução extrajudicial do conflito. A lei regula o procedimento e os efeitos jurídicos da conciliação e da reparação, bem como de outras soluções extrajudiciais, atribuindo a função de mediação entre jovem e vítima à equipa técnica (cf. Generalitat de Catalunya).

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A Justiça Penal de Crianças e Jovens no Contexto Europeu: o Caso de França e de Espanha

165

sistema de justiça juvenil, a aposta na mediação entre o jovem e a vítima como

alternativa de resolução do conflito, assim como a preferência pela aplicação

de medidas em meio aberto, a atenção individualizada prestada aos jovens nos

distintos programas de intervenção, a boa preparação técnica e especialização

dos profissionais das várias equipas e a resposta da comunidade.

A Generalitat de Catalunya definiu cinco linhas de actuação no âmbito

da justiça juvenil (cf. Generalitat de Catalunya).

(1) A primeira linha prende-se com os sujeitos afectados – os jovens, as

famílias e as vítimas. O objectivo é o de proporcionar um tratamento adequado

às necessidades dos jovens, considerando, quer os seus perfis, quer os seus

contextos familiares e comunitários. Prevê-se o estabelecimento de protocolos

de intervenção em saúde mental e toxicodependência, ou outras medidas

terapêuticas; aprofundar a participação das famílias através de sessões de

informação e de grupos de auto-ajuda, mas também pela inclusão das famílias

nos programas para os jovens; e assegurar o apoio às vítimas.

(2) A segunda linha prende-se com as normas e a sua aplicação,

designadamente, com a intensificação da comunicação e a criação de espaços

de reflexão periódica entre os serviços de justiça juvenil, os magistrados e

demais profissionais e entidades envolvidos no sistema de justiça juvenil, que

ajudem, não só à disseminação de processos de boas práticas, mas também à

formulação de propostas de reforma.

(3) A terceira linha de orientação refere-se à comunidade e à promoção da

participação social em rede. Visa-se estimular a coordenação e concertação da

acção entre as instituições, melhorar a permeabilidade do sistema de justiça

juvenil e estimular as suas relações com os cidadãos, através da realização de

protocolos com organizações que possam desenvolver programas de

tratamento ou de inserção dos jovens, estimulando a participação de

voluntários em determinadas actividades dos centros educativos e em tarefas

auxiliares em meio aberto, apostando na divulgação das actividades

desenvolvidas para fomentar o conhecimento e a sensibilidade social

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166 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

relativamente aos jovens com problemas de inadaptação ou de práticas

delituosas. Estas orientações também se dirigem a acções de prevenção.

(4) A gestão organizativa e dos recursos humanos e materiais constitui a quarta

linha de actuação, considerando-se a importância de dispor de equipamentos e

de recursos humanos suficientes e de qualidade. Foram desenvolvidas acções

concretas para a realização daqueles objectivos, que actuaram, sobretudo, no

âmbito da organização e gestão dos serviços. Salienta-se o esforço de

adequação dos perfis profissionais das equipas, sendo de destacar a

incorporação da figura do psicólogo nas equipas em meio aberto e a aposta na

formação contínua de todos os profissionais da justiça juvenil, com cerca de 40

horas de formação por ano para cada profissional. A reforma organizativa tinha

um objectivo de eficácia, impulsionando a descentralização de competências e

de recursos dos centros e equipas, o reforço do papel das equipas e da

interdisciplinaridade na tomada de decisões, a adopção de novas metodologias

de trabalho por objectivos.

(5) A quinta linha de orientação refere-se à avaliação da eficácia do sistema de

justiça e do impacto da acção deste e, em geral, da acção desenvolvida na

execução das medidas. Visa-se, igualmente, o intercâmbio de experiências e

metodologias de intervenção com sistemas de justiça juvenil de outras

comunidades autónomas e de outros países, fomentar a investigação e a

avaliação em cooperação com o meio académico.

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IV. ENTRE A LEI E A PRÁTICA: A

JUSTIÇA TUTELAR EDUCATIVA EM

PORTUGAL

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HÁ FUNDAMENTOS PARA UMA REFORMA

ESTRUTURAL?

1

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1. HÁ FUNDAMENTOS PARA UMA REFORMA ESTRUTURAL?

Introdução

Nas experiências acima referidas (casos de Espanha e de França) são

colocadas em evidência questões de oportunidade, razões e sentido das

reformas. Como vimos, muitos autores acentuam as fragilidades dos processos

de reforma que, na ausência de estudos sociológicos que sustentem os

discursos políticos que lhes estão subjacentes, emergem como reformas

motivadas, sobretudo, por razões de natureza política e condicionadas por

ideologias securitárias e neoliberais. Salienta-se, por isso, não só a

necessidade de melhor conhecer os contextos sócio-culturais da delinquência

juvenil e o perfil dos seus sujeitos (por exemplo, as condições de vida nas

periferias das grandes cidades hiper-urbanizadas e as desigualdades de

oportunidades das populações imigrantes), mas também a real dimensão e as

características dos comportamentos delinquentes das crianças e jovens.

A crise económica e a mudança ideológica do papel do Estado levam ao

recuo da intervenção deste na promoção do bem-estar e coesão sociais e,

consequentemente, a negligenciar a actuação sobre os factores estruturais do

risco e da insegurança. A intervenção do Estado passa, assim, cada vez mais,

a ocorrer no quadro do seu papel repressivo e de controlo social, embarcando

nas percepções de insegurança, não empiricamente sustentadas. Este cenário

é acentuado pela acção dos media, cujo discurso sobre os fenómenos de

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172 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

delinquência juvenil, não só fomenta o sentimento de insegurança nas

populações, como é grandemente responsável pela construção de

determinadas categorias (“jovens”, “imigrantes”, “negros”) como socialmente

problemáticas.

O trabalho de campo realizado foi orientado pela seguinte interrogação:

há razões para uma reforma legal da delinquência juvenil e, se sim, qual deve

ser o seu conteúdo e alcance?

Antes de analisarmos as opiniões identificadas no decurso do trabalho

de campo relativamente a esta vertente, deixamos três notas quanto à

construção dos processos de reforma.

A primeira nota é que as reformas estruturais de determinado sector da

justiça devem ser alicerçadas em estudos de diagnóstico que possam informar

o debate e as soluções em discussão. O conteúdo e o curso das reformas são

certamente diferentes consoante o diagnóstico que, no processo reformista, for

mais valorizado: o diagnóstico dos comentadores da comunicação social,

muitas vezes induzido pela mediatização de um determinado caso (entre nós

costumam ser apontados vários exemplos de reformas despoletadas pela

mediatização de um caso específico nesta matéria, o famoso “caso Lídia

Franco”); o diagnóstico dos operadores do sistema que, em regra, integram as

comissões de reforma; e o diagnóstico sócio-jurídico que analisa a lei na sua

dinâmica de aplicação, identificando os problemas que reclamam uma solução,

de natureza legislativa, organizacional ou outra.

O diagnóstico dos operadores do sistema tem uma forte vertente

funcional e corporativa, vinculada às percepções da sua experiência e às

preocupações dos profissionais. O diagnóstico sócio-jurídico, assente na

avaliação sólida e rigorosa do desempenho do sistema judicial e das

instituições conexas, mostra o funcionamento real do sistema judicial no seu

conjunto. Este diagnóstico não ignora os outros, até porque também eles

incorporam uma verdade sobre o sistema, ainda que parcelar, mas com a qual

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

173

é importante articular. Ao cruzar diferentes percepções, confrontando-as com

dados e indicadores objectivos, este diagnóstico procura uma aproximação à

realidade, ao modo de funcionamento do sistema de justiça e aos problemas

com que a lei se confronta na sua aplicação. Sabemos que muitos dos

problemas não têm natureza legal, isto é, não decorrem da lei em si mesma,

mas sim das condições da sua aplicação, pelo que, não se actuando sobre

elas, de nada serve alterar a lei.

É este tipo de diagnóstico de carácter sócio-jurídico que deve estar no

lastro dos processos de reforma estruturantes do sistema de justiça. O

processo de reforma será tanto mais sólido e devidamente orientado quanto,

numa perspectiva sistémica, mais tiver em conta as várias dimensões da

realidade a que se dirige, ainda que, a final, as opções e soluções possam ser

motivadas por condicionantes de natureza política ou económica.

A segunda nota, relacionada com a primeira, evidencia a necessidade

de as políticas públicas de justiça incorporarem uma perspectiva sistémica. É

claro que as reformas não podem reformar todo o sistema em simultâneo, nem

mesmo um determinado sector. Mas, quando se intervem em determinado

sector, deve partir-se de uma visão global. Esta visão ajuda a evitar, não só

incongruências na aplicação da lei, mas também a encontrar soluções mais

alargadas que, por exemplo, olhem para outras sinergias institucionais

existentes na sociedade e não só para os tribunais judiciais como os

destinatários “óptimos” de toda a procura de tutela judicial.

A terceira e última nota faz apelo ao adensamento de um olhar para o

direito e para a justiça nas sociedades contemporâneas pela via da democracia

e da cidadania. O direito e a justiça são instrumentos centrais da qualidade da

democracia, do exercício efectivo dos direitos humanos, sobretudo, quando o

Estado recua no compromisso social com os cidadãos. Ora, num quadro de

crise social e de escassez de recursos, as reformas do direito e da justiça não

podem permitir desperdícios de experiências e de oportunidades.

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174 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

À semelhança do que ocorreu nas experiências acima referidas, também

entre nós o trabalho de campo evidenciou a fragilidade do conhecimento

empírico sobre esta temática em várias dimensões, o que impede uma

discussão devidamente informada sobre a necessidade e o sentido de uma

reforma. Chama-se a atenção, desde logo, para a falta de indicadores

disponíveis que permitam conhecer, quantitativa e qualitativamente, o

fenómeno nas suas múltiplas dimensões. Vimos, nos pontos I.1 e I.2, como a

percepção sobre a delinquência juvenil, sem a baliza dos dados, é vaga e pode

ser falaciosa. De que grupos etários estamos a falar? Qual a natureza dos

factos praticados? Qual a sua gravidade? Quais os factos tipicamente

praticados por determinados grupos etários? Os casos isolados, de alta

gravidade, em regra muito mediatizados, podem desempenhar um papel

central na denúncia de determinadas patologias do sistema que apenas por

causa deles são conhecidas, mas podem não justificar de per se alterações

legais, ainda que pontuais.

1.1 O (não) conhecimento da dimensão do fenómeno da delinquência juvenil

Verificámos já, no âmbito de um outro trabalho137 direccionado

exclusivamente à justiça penal de adultos, que os fenómenos criminais em

geral (causas, perfis dos seus agentes, natureza da criminalidade,

características regionais, etc.) são pouco conhecidos. O conhecimento que

existe, além de escasso é, ainda, muito fragmentado, e desconhece-se, com

rigor metodológico, a criminalidade oculta. Recomendámos, no referido

trabalho que, a curto prazo, fosse realizado um estudo de vitimologia que

137 Cf. Gomes, (coord.) (2009). A justiça penal: uma reforma em avaliação. Coimbra: Centro de

Estudos Sociais/Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

175

permitisse identificar, com recurso a metodologias científicas, as cifras negras

do crime e as áreas mais vulneráveis da sociedade portuguesa a exigirem uma

alteração da política criminal. Esta recomendação resulta da definição correcta

das políticas públicas de justiça penal exigir um conhecimento mais densificado

e articulado sobre esta matéria, sendo esse conhecimento crucial para uma

correcta definição da política criminal mas, também, das estratégias de

investigação e da política de criminalização ou descriminalização de certas

condutas.

A consideração do fenómeno da delinquência juvenil reclama a

ponderação de duas especificidades. Por um lado, trata-se de uma realidade

cujo conhecimento efectivo é ainda mais limitado do que o verificado na

criminalidade de adultos, o que resulta numa valorização ainda superior das

percepções individuais, normalmente associadas às visões reflectidas pela

comunicação social e permeáveis a “pânicos sociais” ligadas a “sentimentos”

de insegurança não empiricamente fundamentados.

Por outro lado, o vazio de conhecimento sobre o fenómeno da

delinquência juvenil, associado à existência de uma lei-quadro de política

criminal, condiciona as atitudes dos operadores quanto ao tratamento da

delinquência juvenil, permitindo derivas penalistas. Ora, já salientámos a

necessidade de consideração autónoma, apesar de em permanente diálogo

com as restantes vertentes do sistema, das respostas institucionais aos

comportamentos delinquentes de crianças e jovens atenta à idade dos sujeitos

aos quais se dirige. Assim, se se exige um conhecimento mais profundo dos

fenómenos associados à criminalidade de adultos, essa necessidade é

superlativizada em relação à delinquência juvenil.

Efectivamente, os dados disponíveis relativamente à delinquência juvenil

indicam a existência de um processo de selecção dos comportamentos que

recebem uma resposta do sistema judicial de base classista, reproduzindo

desigualdades sociais.

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176 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Relembramos aqui a seguinte conclusão do estudo já citado de Gersão

e Lisboa (apud Seabra, 2005): entre os 12 e os 16 anos, 80% a 90% dos

jovens afirmam ter praticado actos delinquentes, sendo esta percentagem

semelhante em todas as classes sociais; 8% a 10% da criminalidade é

denunciada às polícias; e apenas 4% a 5% atinge o topo da pirâmide, isto é, é

sancionada. Sendo que, neste caso, os agentes são quase inteiramente

provenientes das classes populares. Aliás, toda a literatura sobre o tema é

consensual quanto ao processo de filtragem de base classista que percorre a

relação das crianças e jovens que praticam factos qualificados pela lei como

crime com o sistema de justiça. Uma das questões, a que importa dar resposta,

é a de saber que factos são estes.

Ora, mesmo quanto aos factos conhecidos qualificados pela lei como

crime, isto é, aqueles que são objecto de denúncia e chegam ao conhecimento

das autoridades de controlo social, os indicadores disponíveis são escassos e

pouco consistentes. Não foi possível obter e trabalhar, para este relatório

,indicadores das estatísticas oficiais da justiça138 que nos permitissem detalhar

o volume e a natureza destes comportamentos que chegam ao sistema de

justiça, do perfil dos seus actores e vítimas, incidência regional e do

desempenho funcional do sistema, quer quanto à “selecção” dos processos nas

várias fases processuais, quer quanto aos tempos de tramitação.

Aliás, esta dificuldade é também referida pela Procuradoria-Geral

Distrital de Lisboa (PGDL) no documento “A intervenção Tutelar Educativa no

Distrito Judicial de Lisboa”, de Julho de 2009139, que sistematiza alguns dados

relativos a inquéritos de processos tutelares educativos (ITE) abertos entre

2006 e 2008, que a seguir se referem. Embora circunscritos ao distrito de

138 Uma vez que os dados ainda careciam de validação e a DGPJ não os pode, por isso,

disponibilizar.

139 In www.pgdlisboa.pt, acedido em Janeiro de 2010.

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177

Lisboa, consideramos importante, pela sua pertinência, inclui-los neste

trabalho.

Quanto ao número de inquéritos tutelares educativos (ITE) abertos, que

nos dão a dimensão da mobilização do sistema com estes tipos de

comportamentos delinquentes, os indicadores salientam um ligeiro crescimento

em 2007, relativamente a 2006, de cerca de 18,7% (cujo peso se distribui pelos

Tribunais de Família e Menores de Lisboa, Sintra, Vila Franca de Xira e Ponta

Delgada). De 2007 para 2008 os números mantêm-se sensivelmente idênticos

(apenas mais 12 ITE no total dos tribunais de família e menores), destacando-

se o caso do Barreiro onde se verificou um aumento de ITE entrados: 34,9%140.

Estes dados parecem estar em consonância com os constantes do

Relatório Anual de Segurança Interna de 2008 que, em “Adenda”, revela que

naquele ano os actos qualificados como crime praticados por menores de 16

anos decresceram, face a 2007, cerca de 43,5%, incidindo nos distritos de

Lisboa, Setúbal e Porto cerca de metade das ocorrências, o que mostra, como

acima já referimos, a urbanização do fenómeno, também, de algum modo,

indiciada pelo crescimento da actividade grupal (segundo o mesmo relatório,

com um crescimento em 2007, comparativamente com o ano anterior de cerca

de 35%).

O mesmo documento da PGDL refere que o peso relativo dos

requerimentos para abertura de fase jurisdicional nos inquéritos tutelares

educativos findos tem vindo a registar um valor decrescente (12,3% 2006;

11,3% em 2007 e 9% em 2008). Por sua vez, o peso relativo dos processos

findos por despacho de arquivamento do Ministério Público, com fundamento

na desnecessidade de aplicação de medida tutelar, sendo o facto qualificado

140 É necessário ter em atenção que os números absolutos de inquéritos tutelares entrados

são, com excepção de Lisboa, em regra, bastante inferiores a um milhar, pelo que pequenas variações, na ordem de escassas dezenas, podem representar variações percentuais significativas.

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como crime punível com pena de prisão de máximo não superior a três anos

(cf. artigo 87.º, n.º 1, al. c) da LTE) no total de processos findos, tem vindo a

diminuir (5,8% em 2006; 3,6% em 2007 e 1,7% em 2008).

Um outro dado que nos parece relevante e que vem ao encontro de

questões acima referidas contrapõe os números conhecidos (ou, noutra

perspectiva, a sua ausência) às percepções dos operadores e à definição de

políticas e estratégias com base nelas. Por exemplo, pode ler-se que “a

evidência de que a pertença a grupos que se dedicam à criminalidade violenta

não implica uma exigência de idade mínima; a verificação do acentuar da

tendência para a precocidade do início de carreiras criminais; o aumento da

violência no crime, são tudo factores que o MP não pode deixar de considerar

na escolha do modelo de acção que adoptará em matéria tutelar educativa” (cf.

PGDL, 2009).

Mais à frente, fazendo apelo a alguns casos concretos141, salienta-se

que “é à luz desses dados que o MP não pode, sem quebra da sua

responsabilidade social e institucional, deixar de proceder a uma análise da

intervenção que tem vindo a ter nos inquéritos tutelares educativos”. E, como

que “duvidando” de alguns dos indicadores, aponta para a necessidade de

avaliação criteriosa dos dados que, no que respeita aos requerimentos de

abertura da fase jurisdicional, considera muito baixos sobretudo por se

registarem em localidades em que existe “sinalização de actividade violenta e

habitual de menores, assumindo ou não características grupais”.

Na verdade, de acordo com os dados conhecidos, não é possível inferir

alterações significativas no volume, perfil ou características dos factos

qualificados como crime pela lei penal e dos seus actores que possam justificar

141 “(…) um assalto com arma de fogo e violação numa loja da Amadora; o esfaqueamento

violento de um menor por outro menor em Almada; um caso de violação em grupo em Loures; ou um jovem armado que, em Sintra, terá aberto fogo sobre a Polícia” (cf. PGDL, 2009).

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179

e informar qualquer processo de reforma estrutural, o que não significa que não

existem. Diferente é a necessidade de debate e reflexão, com apelo a outras

áreas do saber, que todos os indicadores devem merecer no sentido de apurar

as melhores estratégias de resposta.

As opiniões dos operadores judiciários142, ouvidos no curso do trabalho

de campo, reproduzem a ausência de indicadores pelos quais seja possível

aferir, com rigor, a intensidade e o sentido das dinâmicas de mudança. Por

exemplo, um dos intervenientes no painel de discussão, a partir da diminuição

do número de jovens internados em centros educativos, que extrapola para o

conjunto das medidas tutelares educativas aplicadas pelos tribunais no período

2001-2009, conclui que a delinquência juvenil não é muito grave e extensa:

(…) ao longo de nove anos – 2001 a 2009 – a população dos centros educativos diminuiu. Aumentou até 2003 e, desde aí, vem descendo com sobressaltos de três em três anos. Por exemplo, agora aumentou ligeiramente – cerca de 20 unidades em 2009 – mas tinha descido em 2008 e 2007. Acresce que se se considerar o Relatório de Segurança Interna referente a 2008, o capítulo referente à delinquência juvenil deixou de existir, ou seja, tornou-se estatisticamente inexpressivo. Até 2008, a criminalidade registada até aos 16 anos correspondia, há uma série de anos, a 1% da criminalidade total registada no país. Se, em 2008, no Relatório de Segurança Interna este dado deixou de existir, tenho de concluir que deixou de existir por se ter tornado estatisticamente inexpressivo (P4).

O mesmo interveniente chama a atenção para um outro indicador, que

considera particularmente sintomático: o número de jovens internados em

regime fechado que corresponderá às situações de prática de factos mais

graves.

(…) a população em regime fechado manteve-se mais ou menos constante, tendo registado momentos de grande descida. O regime fechado, por exemplo, nunca ultrapassou 51 menores, em 2002, e desde então, tem oscilado entre 32 – valor mínimo que foi registado

142 De forma a garantir o anonimato, a identificação dos operadores judiciais entrevistados

durante o trabalho de campo faz-se pela expressão Ent., seguida de J (magistrado judicial), MP (magistrado do Ministério Público), TRS (técnico de reinserção social), e de um número aleatório atribuído a cada um dos entrevistados. A referência aos participantes no painel de discussão é P, seguida de um número aleatório.

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em 2007 – e 49, valor maior registado em 2008. Eu acho que poucos países da Europa – e nem falo de países da UE – se podem orgulhar de ter tão poucas crianças e jovens internados ou em situações de privação de liberdade como nós temos. O que quer dizer que não temos, ao contrário do que se pensa, problemas de delinquência juvenil particularmente graves. A minha conclusão é que se não ultrapassámos, em Portugal, em nove anos, os 51 menores internados, que é o valor de 2002, repito, acho que podemos, neste aspecto, dar-nos por satisfeitos (P4).

1.2 Reflexões sobre o modelo de intervenção da Lei Tutelar Educativa

A necessidade de dotar o processo relativamente a jovens que tenham

praticado factos qualificados pela lei penal como ilícitos criminais de uma

estrutura mais formalizada, salvaguardando a protecção de garantias

fundamentais das crianças e jovens, consagradas, quer constitucionalmente,

quer em instrumentos internacionais ratificados por Portugal, foi um dos

motores da Reforma do Direito de Menores que culminou com a publicação de

três diplomas emblemáticos: a Lei n.º 133/99, de 28 de Agosto, que alterou o

Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na parte respeitante aos processos

tutelares cíveis; a Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, que aprovou a Lei de

Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP); e a Lei n.º 166/99, de 14

de Setembro, que aprovou a Lei Tutelar Educativa (LTE)143.

O modelo adoptado pelo Lei Tutelar Educativa é um modelo tributário de

uma concepção mitigada, enveredando por uma terceira via entre os modelos

proteccionistas e os modelos de justiça aproximados do regime penal de

adultos144, balançando entre uma “disciplina mais garantística do ponto de vista

processual” e “uma estratégia responsabilizante” (Moura, 2000: 114).

143 Como veremos infra, esta reforma previa, ainda, como essencial para alcançar os seus

objectivos a reforma do regime penal dos jovens adultos, que representaria o fechar de um ciclo de reforma.

144 Esta é, pelo menos, a posição alvitrada pelos defensores do modelo seguido pela Lei

Tutelar Educativa. Embora, de um ponto de vista académico, em Portugal, não se façam sentir

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181

A ausência de estudos e indicadores que permitam análises detalhadas,

bem como inferir se, de facto, há alterações significativas nas dinâmicas da

delinquência juvenil, não aconselham reformas estruturantes nesta matéria que

impliquem, por exemplo, mudança de paradigmas ou de princípios subjacentes

ao actual modelo que informa a Lei Tutelar Educativa.

Neste quadro, a manutenção do actual modelo subjacente à Lei Tutelar

Educativa em vigor, no que respeita às suas linhas estruturantes, foi

consensual entre os actores ouvidos durante o trabalho de campo. Por

exemplo, matérias como a alteração dos limites de idade para a aplicação da

medida de internamento em regime fechado, endurecimento das medidas a

aplicar, possibilidade de aplicação de penas (sujeita a determinadas condições)

que, como vimos, estão em discussão ou foram introduzidas no ordenamento

jurídico de alguns países, não mereceram adesão. Reclama-se, sim,

enfaticamente, a reforma do regime penal especial dos jovens adultos, como

fim de um ciclo iniciado com as aprovações das Leis de Promoção e Protecção

de Crianças e Jovens em Perigo e Tutelar Educativa.

Esta circunstância não implica, no entanto, que se esqueçam eventuais

alterações, de natureza cirúrgica, que permitam correcções de alguns aspectos

já diagnosticados como bloqueios à concretização dos objectivos da lei.

Uma das apostas da Lei Tutelar Educativa, como via instrumental de

atingir o seu objectivo de responsabilização aliado à protecção das garantias

das crianças e jovens, foi a positivação pormenorizada do processo.

Abandonou-se a aparente flexibilidade da Organização Tutelar de Menores e a

maior margem de conformação equitativa por parte do aplicador da lei, tornou-

críticas consideráveis a este modelo, não sendo contestada a sua categorização como um “meio-termo” entre os modelos de protecção e os modelos de justiça, não raras vezes, durante o nosso trabalho de campo, o actual modelo foi apelidado de “direito penal dos pequeninos”. Estamos em crer, contudo, como se compreenderá ao longo dos diversos pontos desta secção, que tal percepção não estará alicerçada numa análise crítica do modelo legislativo, mas sim distorcida pela experiência acumulada de disfunções práticas das finalidades legislativas.

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182 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

se objectiva a tramitação processual do processo tutelar educativo e criou-se,

legalmente, momentos de maleabilidade e plasticidade, como forma de

adaptação à rápida mutação das circunstâncias envolventes do jovem145.

A certeza e segurança jurídicas146 surgem como características de

promoção da justiça e da igualdade, aliando-se às ideias de previsibilidade e

estabilidade da vida jurídica, permitindo aos destinatários das normas

conhecer, aprioristicamente, as consequências jurídicas dos seus actos.

Assume-se, claramente, o desiderato de cumprimento do princípio da previsão

ou determinabilidade das normas jurídicas147, enquanto subprincípio integrador

da protecção da segurança jurídica relativamente a actos normativos, elemento

constitutivo do Estado de direito.

Assim, algumas soluções legislativas, tal como já tínhamos verificado no

nosso primeiro estudo de 2004, continuam a ser apontadas como ambíguas,

necessitando de clarificação legislativa, ou como desajustadas à realidade

sociológica que lhes é inerente. Procuraremos, no ponto seguinte, traçar o

145 Reportamo-nos aqui, por exemplo, às possibilidades legalmente previstas de revisão da

medida tutelar educativa aplicada.

146 Segundo Gomes Canotilho (2003: 257), os princípios da segurança jurídica e da protecção

da confiança – elementos constitutivos do Estado de direito – “andam estreitamente associados. (…) Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos”.

147 Recorrendo às palavras de Gomes Canotilho (2003: 258), “o princípio da determinabilidade

das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas ideias fundamentais. A primeira é a da exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória não pode ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o caso concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente da regulamentação legal, pois um acto legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos”.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

183

diagnóstico dos operadores relativamente ao impacto negativo de algumas

soluções legislativas.

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BLOQUEIOS NORMATIVOS

2

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2. BLOQUEIOS NORMATIVOS

Introdução

O trabalho realizado pelo OPJ em 2004, “Os Caminhos Difíceis da

„Nova‟ Justiça Tutelar Educativa – Uma avaliação de dois anos de aplicação da

Lei Tutelar Educativa”, no âmbito desta temática, identificava um conjunto de

problemas que os operadores judiciários atribuíam à lei, dificultando, não só a

sua aplicação prática, como também o alcance dos seus objectivos e

princípios. O decurso da vigência da lei resolveu alguns deles,

designadamente, pela via jurisprudencial, necessitando outros de uma

intervenção legislativa. Procuramos, neste ponto, identificá-los nas suas linhas

essenciais.

2.1. A (não) uniformização de jurisprudência

Já em 2004, no relatório acima referido, dizíamos que “uma das maiores

dificuldades que emerge do discurso dos actores no que respeita ao processo

tutelar educativo prende-se com a dificuldade de interpretação de algumas

disposições legais, que originam, muitas vezes, procedimentos diferenciados

de tribunal para tribunal e, mesmo dentro do mesmo tribunal, de magistrado

para magistrado” (2004: 308).

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188 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Destacámos, nessa altura, no discurso dos actores, as seguintes

questões:

(1) A (ir)relevância da desistência de queixa quando o jovem tiver praticado

facto qualificado pela lei penal como crime semi-público ou particular;

(2) O desconto do tempo da medida cautelar na medida tutelar educativa

aplicada;

(3) Os internamentos em fim-de-semana.

Não nos referíamos a situações típicas de abertura, propositada da lei,

que densificam a ideia de que a actividade de julgar se reconduz, também, à

própria criação do direito, através da amplitude particular do momento da

escolha da norma aplicável e da necessidade de interpretação da norma

seleccionada, mas sim a circunstâncias em que juízes diferentes proferem

decisões distintas para casos análogos, pondo em crise o princípio da previsão

das normas jurídicas.

Volvidos seis anos sobre a publicação de tal estudo, de volta aos

tribunais e ao meio social em trabalho de campo, deparámo-nos com duas

situações significativas.

Em primeiro lugar, uma das questões suscitadas, com frequência, nas

entrevistas realizadas a operadores judiciários, no curso daquela primeira

investigação, foi a disparidade de procedimentos no que respeitava à

relevância dada ao tempo passado em medida cautelar de guarda em Centro

Educativo, no tempo da medida tutelar educativa aplicada em decisão final,

defendendo, a maioria dos entrevistados, a necessidade de clarificação

legislativa quanto a esta operação.

Do discurso dos operadores judiciários entrevistados no âmbito do

presente projecto de investigação não surgiu, relativamente à questão,

qualquer preocupação quanto à interpretação normativa, o que será o resultado

da publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

189

de Justiça, com data de 08 de Outubro de 2008 (Processo n.º 07P2030). Com

este acórdão colocou-se termo à questão que vinha dividindo os tribunais,

fixando-se jurisprudência no sentido que, em processo tutelar educativo, não

há lugar ao desconto do tempo de permanência do jovem em centro educativo,

quando, sujeito a tal medida cautelar, vem, posteriormente, a ser-lhe aplicada a

medida tutelar de internamento148.

Aquele acórdão de uniformização de jurisprudência comportou vários

votos vencidos (Maia Costa, Raúl Borges, Simas Santos, António Colaço e

Santos Carvalho, todos nos termos do voto de vencido do Conselheiro Artur

148 Segundo o acórdão em análise, “é da resposta à amplitude da regra do desconto, se restrita

ao processo penal, ou se, alargadamente, por analogia, ao processo tutelar educativo, conducente ao abater o tempo de guarda em centro educativo à duração da medida de internamento, que emerge o sentido decisório a imprimir ao recurso, sendo incontroverso que a LTE é completamente omissa a respeito desse desconto”. O ponto de partida para esta reflexão e que sustenta a sentido decisório do acórdão é o facto de a teleologia das penas criminais se situar num plano quantitativa e qualitativa diferenciado do processo tutelar educativo, sendo esta, desde logo, uma razão fundamental para marcar a diferença entre o direito tutelar educativo e o criminal. Por outro lado, refere-se ainda que a filosofia que preside à aplicação das medidas tutelares se inspira em princípios que, pela sua especificidade, marcam a diferença dos que presidem à aplicação de penas, estruturando a adopção daquelas sob o império da necessidade de educação para o direito, manifestada na prática do facto e subsistente no momento para a decisão do direito, sob o signo da proporcionalidade. Segundo aí se argumenta, tanto assim é que, não obstante a prática de um acto qualificado pela lei penal como crime, a intervenção estatal não é imperativa, se se concluir que, ainda assim, o facto é de pequena gravidade, não afirmando evidente e evitável ruptura com valores de relevância comunitária, ainda socialmente toleráveis, atribuídos a uma juventude só acidentalmente maculada. Nesta lógica discursiva, avança-se, então, para a conclusão de que o modo de cumprimento da medida de internamento, tanto no regime aberto como semi-aberto, é distinto do modo de cumprimento da pena, e que, por igual ordem de razões, também a prisão preventiva não equivale ao tempo de guarda em centro educativo uma vez que, pese embora lhe estar ínsita limitação de liberdade, aqui também o seu regime legal se caracteriza por laivos de justificada flexibilização (cf. Tomé D'Almeida Ramião, in Lei Tutelar Educativa, Anotada e Comentada, Quid Juris, Março de 2004, 102; em contrário Paulo Guerra, Jurisprudência Crítica, in R e v . DGRS , Ano I, Setembro de 2008). Face ao exposto, conclui-se que, ao inscrever-se o regime de guarda já no processo da medida tutelar, enquanto seu preliminar, o desconto do tempo de duração da guarda, comprimindo a duração da medida de internamento, não deixaria de funcionar in malem partem. Ou seja, será, portanto, o próprio interesse do menor que arreda a aplicação do instituto. Neste seguimento, defende-se que o legislador, conhecedor de todas as assimetrias existentes entre o processo tutelar educativo e o processo penal, se relegou a um bem justificado e eloquente silêncio, dando à estampa um diploma regulador de forma global e autónoma a matéria, não se inserindo na sua vontade a transposição pura e simples do desconto penal, por lacuna de regulamentação, sendo certo que o único (desconto) previsto no tempo de cumprimento da medida de internamento é o atinente à fuga e não regresso após saída autorizada (cf. artigo 155. °, n.º 1 e 2, da LTE).

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190 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Rodrigues da Costa). De acordo com os fundamentos constantes deste voto

vencido, considera-se que se deveria ter fixado jurisprudência no seguinte

sentido: “Em processo tutelar educativo, e na sequência da aplicação de uma

medida de internamento, é aplicável, por analogia, a norma do artigo 80.º do

Código Penal, devendo proceder-se ao desconto, naquela medida, do tempo

de permanência do menor em centro educativo, em virtude da sujeição a

medida cautelar de guarda”.

A amplitude da divergência dentro do Pleno das Secções Criminais do

Supremo Tribunal de Justiça sugere que esta questão não se encontra, em

definitivo, ultrapassada149. Aliás, no âmbito do trabalho de campo, ela

ressurgiu, não na vertente das divergências de interpretação, mas da

discordância quanto ao sentido da decisão.

Se a jurisprudência – enquanto “momento de objectivação e

estabilização de uma já experimentada realização problemático-concreta do

direito, com o valor normativo que resulta de uma presunção de justeza dessa

realização” (Neves, 1993: 156) – colmatou a indefinição jurídica quanto à

possibilidade ou não de desconto da medida cautelar de guarda na medida

tutelar educativa, já não teve tal condão quanto aos restantes problemas

identificados no anterior projecto de investigação.

Os operadores entrevistados continuam a expressar soluções diversas

relativamente à possibilidade de desistência de queixa e ao internamento em

regime semiaberto por período de um a quatro fins-de-semana. Mas, o sentido

do discurso dos entrevistados mudou de forma substancial. Assim, surge a

segunda situação significativa emergente do trabalho de campo realizado: em

geral, apagou-se no discurso dos actores aplicadores da lei o sentimento de

inquietação pela indefinição da solução jurídica. As decisões díspares sobre

casos análogos continuam a preencher o discurso dos entrevistados. No

149 Sobre esta questão, cf. Duarte-Fonseca (2005).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

191

entanto, surgem nos seus discursos como uma constatação da normalidade da

realidade vivida, assumindo as dissemelhanças interpretativas e perfilhando

posições de iure condendo, muitas vezes associadas a diferentes soluções

legislativas quanto a questões conexas.

É por parte de quem tem que actuar de acordo com as orientações

definidas pelo aplicador da lei (aqui em sentido lato, incluindo também o

Ministério Público), nomeadamente, os órgãos de polícia criminal, que surge

um maior desassossego com aquela realidade, atendendo, sobretudo, aos

seus destinatários:

É um termo muito vago e que provoca muitas interpretações – esse é outro dos problemas do nosso sistema jurídico porque há interpretações para todos os gostos. No MP, cada procurador tem a sua interpretação, o que coloca as polícias (que é quem actua no terreno) numa situação muito complicada. E, geralmente, o que isto provoca é que, na dúvida, não se faz. Salvaguarda-se o que se pode. E portanto, só se actua quando há um perigo mesmo marcado, que seja de tal maneira evidente que não possa dar azo a interpretações divergentes. (…) Quer a LTE, quer a lei de protecção estão sujeitas a inúmeras interpretações e isso dificulta o trabalho de toda a gente. (…) repare que os próprios procuradores têm liberdade de interpretação dos factos. E eu lembro-me de estar numa reunião com o procurador e este ter uma interpretação sobre determinado facto e a procuradora-adjunta dizer, claramente, que não fazia assim nos seus processos. Daí a dificuldade. Não sei para quem o processo vai e mesmo sabendo, não posso dizer ao meu agente que faça assim se for o procurador x, mas se for o procurador y, já é de outra maneira. Isto provoca o tal sentimento de impunidade. E tal deve-se há falta de certeza e segurança jurídica. E nos jovens isto tem muita importância. Um jovem tem que ter uma família com valores de um determinado tipo de certeza e coerência. Naturalmente que, um pai que diz sim e a mãe que diz não, as crianças interpretam isso a seu favor. Passando isso ao sistema jurídico, acontece o mesmo (Ent. 3OPC).

A clivagem no discurso dos aplicadores da lei assume particular relevo

quanto à questão da relevância ou não da desistência de denúncia por parte do

ofendido.

O artigo 72.º, n.º 2, da Lei Tutelar Educativa (LTE), prevê expressamente

que a legitimidade para a denúncia cabe ao ofendido nos casos em que o facto

praticado pelo jovem for qualificado como crime, cujo procedimento depende

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192 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

de queixa ou da acusação particular150. Apesar de prever expressamente o

impulso do ofendido para a instauração de inquérito tutelar educativo no caso

de factos qualificados como crime de natureza semipública ou particular, a lei

omite qualquer referência à possibilidade de desistência desta denúncia por

parte do ofendido que, a ter relevância jurídica, determinaria o arquivamento

dos autos.

Tal omissão determinou, desde o início da entrada em vigor da lei,

posições divergentes quer na doutrina151, quer nas decisões proferidas nos

tribunais quanto a casos análogos, que não foram apaziguadas por qualquer

intervenção de cariz jurisprudencial.

Assim, decisões divergentes proferidas no mesmo tribunal continuam a

ser uma realidade. Para uns, a LTE não dá qualquer relevância à vontade do

ofendido para efeitos de extinção do procedimento tutelar educativo:

No outro dia foi uma bicicleta à porta de um supermercado. O miúdo até lá foi devolvê-la e tudo. O senhor veio cá dizer que não queria nada, porque o rapaz já tinha ido entregar a bicicleta. Mas, o que é certo é que não havia nada a fazer (Ent. 5J).

Para mim não admite desistência. Nós podemos sempre arquivar os processos quando achamos que não há necessidade de educação para o direito. Não é uma terceira pessoa que não conhece o processo que vem determinar o seu destino (Ent. 4MP).

150 A Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 266/VII, de 17 de Abril de 1999, assume

expressamente tal opção legislativa: “a relevância atribuída à iniciativa do ofendido, nos casos em que segundo as regras comuns, o procedimento depende de queixa ou de acusação particular, pode parecer contraditória com as finalidades do processo. Mas não é, no plano de harmonização de interesses. Na verdade, as condições de procedibilidade estão ligadas ou à reduzida gravidade ou a necessidades de tutela de certos direitos da vítima, entre os quais a intimidade. Qualquer das razões permanece válida quando o agente do facto é menor de 16 anos. Quanto à gravidade, porque se tornam menos imperativas as razões que determinam a necessidade de educação do menor para o direito e, havendo-as, será razoável atribuir-se a um membro da comunidade (o ofendido) o primeiro juízo sobre elas; quanto à tutela da vítima, porque a menoridade não diminui (pelo contrário, pode agravar) o interesse na disponibilidade do direito à acção”.

151 Defendendo a irrelevância da desistência da denúncia por parte do ofendido, cf. Rodrigues e

Duarte-Fonseca, 2003: 183. Tributário de posição contrária, cf. Carmo, 2002: 125-126.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

193

Há interpretações muito diferentes. Para mim a lei não permite. Mas isto é cada cabeça sua sentença. No mapa estatístico da PGD aparece lá “PTE findos por desistência de queixa”, o que quer dizer que pela PGD é admissível. Mas a lei não admite porquê? Primeiro, por uma razão dogmática. Existe uma diferença entre queixa e denúncia e a LTE fala em denúncia e não em queixa. Segundo, porque no processo penal quando há necessidade de queixa, fica na disponibilidade da pessoa no interesse de quem se pretende a recomposição da sua situação. Na LTE o processo é exigido no interesse do ofensor (Ent. 2MP).

Para outros, a lei, não só exige um impulso inicial por parte do ofendido

para se despoletar o inquérito tutelar educativo, como admite expressamente

que a desistência da vontade de prosseguir o procedimento tutelar educativo

contra o jovem deverá determinar o arquivamento dos autos:

Na minha interpretação a lei permite. (…) A vítima também tem o direito de não querer continuar (Ent. 3MP).

(…) o que está, actualmente, na lei é que depende de queixa do ofendido e que pode haver desistência (P3).

A diversidade jurisprudencial quanto a esta questão não é, no entanto,

vivida pelos entrevistados como perturbante, mas sim como uma verificação do

que sucede em tantos outros casos e domínios152.

Atente-se que não estamos aqui perante o que é comummente

apelidado por parte da Teoria do Direito como direito em acção, quando

interpretado e integrado de acordo com as concepções do momento, como

direito vivo e em permanente mutação e adequação. Falamos antes de claras

opções legislativas que, desde o seu nascimento, suscitaram decisões

díspares para casos absolutamente análogos.

152 “(…) se a intervenção tutelar educativa devia estar dependente da queixa do ofendido. Essa

é uma questão que vai levantar-se, pese embora haja algumas interpretações díspares, mas são interpretações e acórdãos há-os para todos os gostos como é normal ou habitual (…)” (P3).

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194 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

No seu diagnóstico sobre a apelidada “crise da justiça”, Diogo Freitas do

Amaral (2000: 255) afirma que “outro dos mais sérios problemas da justiça

portuguesa (e decerto um dos que mais a desprestigiam aos olhos do público)

é a possibilidade de um qualquer supremo tribunal – e o mesmo se passa,

infelizmente, com o Tribunal Constitucional – adoptar e manter, sobre uma

mesma questão de direito, orientações contraditórias, conforme a secção que

julgou o processo ou até, em alguns casos, conforme o grupo de juízes a quem

coube apreciar a causa. Isto é, pura e simplesmente, intolerável, pois põe em

causa certeza do direito: sobre inúmeras questões importantes, o cidadão

português não sabe quais são os seus direitos e (pior ainda) sabe que certos

direitos lhe serão reconhecidos se o processo couber por sorteio à 1.ª Secção

lhe serão negados se for parar à 2.ª Secção! O mesmo supremo tribunal

adopta e mantém, sem nada ou pouco poder fazer em contrário,

jurisprudências contraditórias sobre as mesmas questões de direito, algumas

de importância capital. Há que pôr termo, urgentemente, a esta esquizofrenia

do nosso sistema judicial, que a legislação actual consente e para a qual

propõe vias de solução altamente ineficientes”.

No domínio da Lei Tutelar Educativa, a dificuldade de atingir uma

jurisprudência estabilizada é acrescida, dada a ausência de tradição de recurso

nestas matérias153.

O reduzido acervo jurisprudencial atinente ao processo tutelar educativo

poderá ter explicação no também diminuto número de processos existentes

nos tribunais (quando comparados com outras áreas do direito). Não obstante,

153 Após realizar um levantamento sobre os temas relacionados com a aplicação da Lei Tutelar

Educativa na jurisprudência publicada dos tribunais superiores. Chegámos à conclusão que o leque de acórdãos disponíveis sobre esta matéria é assaz reduzido. Reconduzem-se, essencialmente, aos seguintes temas: aplicabilidade do habeas corpus ao processo tutelar educativo; direito de audição do menor antes da decisão de prorrogação da medida cautelar; suficiência da decisão do Ministério Público para o arquivamento por desnecessidade de aplicação de medida tutelar quando estejam em causa vários factos qualificados pela lei penal como crime; requisitos do requerimento de abertura da fase jurisdicional e consequências da sua rejeição; e execução sucessiva de medidas incompatíveis.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

195

a existência de interpretações distintas sobre uma mesma questão jurídica que

vigoram durante quase uma década tornar expectável a emergência de

recursos sobre tais matérias, a verdade é que tal não sucedeu. O facto de

estarmos perante uma área do direito pouco apelativa para a advocacia, que é

percepcionada como pouco interventiva, poderá também concorrer para a

escassez de recursos154.

Como referíamos anteriormente, a questão da relevância ou não da

desistência de denúncia por parte do ofendido surge, no discurso dos

operadores entrevistados, intrinsecamente aliada à crítica, por parte de alguns,

da solução normativa encontrada para a intervenção inicial do ofendido. Não

raras vezes, durante o trabalho de campo, surgiram vozes contra a

necessidade de denúncia por parte do ofendido para haver uma intervenção

tutelar educativa155:

A intervenção tutelar educativa não devia estar dependente de queixa do ofendido. Pelo que, todos os factos de que houvesse conhecimento deveriam gerar processo (…). Todos os factos podiam dar origem a intervenção tutelar educativa. Isto porque, se há aqui uma necessidade de educação do menor para o direito, o Estado se permite ter legitimidade de intervenção (P3).

A superfluidade do impulso por parte do ofendido surge como resposta à

necessidade de intervenção do jovem num estádio inicial do seu percurso de

delinquência, por um lado, e como forma de mitigar a delinquência omissa dos

registos oficiais de delinquência juvenil, por outro lado.

154 É de notar que os acórdãos publicados relacionados com a LTE surgem fundamentalmente

em casos em que foi aplicada a medida tutelar educativa de internamento, ou seja, nos casos-limite do sistema.

155 Esta questão assume, também, pertinência numa outra perspectiva. Por alguns

entrevistados, foi manifestada a preocupação com as dificuldades de apresentação de denúncia pelo ofendido, devido a algum receio de futuras represálias, principalmente quando se trata de jovens que residem na mesma área geográfica que as vítimas.

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196 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

(…) esta questão da queixa (…) é pertinente porque, provavelmente, haverá muitos casos que não chegam a ser conhecidos, porque a vítima não apresenta queixa. E pode haver variadíssimas razões para não apresentar queixa – os tais receios, achar que não vale a pena, e mesmo as discriminações sociais, porque, por exemplo, o filho de pai rico paga e acabou e nem chega a entrar no sistema. E a criança que não tem pais que possam pagar, essa é que entra no sistema. Eu simpatizo com essa ideia de não ser preciso queixa, porque pode haver necessidades de educação para o direito e não haver queixa. Haver crime, não haver queixa e haver necessidade de educação para o direito, por causa dessa discriminação, dessa disparidade, etc. (P8).

Insistindo na vertente preventiva, os que defendem a dispensa de

denúncia por parte do ofendido vêem, ainda, nesta solução uma outra

virtualidade: o facto de o jovem tomar contacto com as consequências do acto

praticado num momento temporal mais próximo da prática do facto.

Portanto, eu diria que o facto de (…) esse jovem ser chamado, ser logo confrontado com isso – eventualmente pode até ser na polícia, mas muito próxima do momento em que o facto ocorreu, tem de certeza um impacto significativo na modificação do comportamento. Outra coisa é decidir que vai ser ouvido, mas aí vem a questão de quando será ouvido, e daí por um mês já não tem impacto nenhum. Digamos que me agrada essa perspectiva, que seja sentida pelo menor, independentemente do contexto onde é ouvido, como consequência daquilo que fez. E há outro princípio também muito importante, que é, dizendo a expressão inglesa que muito me agrada – the first cut is the deepest. Isto é, a primeira pancada pode ser a mais eficaz e a que causa mais impacto e, muitas das vezes, nós fazemos isto. É a velha história da admoestação (P1).

Contudo, na perspectiva dos entrevistados, a alteração da LTE no

sentido da prática de qualquer facto qualificado pela lei como crime dar origem

à intervenção tutelar educativa, independentemente da vontade do ofendido,

iria exigir muito mais da acção do Ministério Público.

O MP teria aí um princípio de oportunidade perante cada caso concreto e, até, de acordo com o percurso, a personalidade do infractor, o facto de já ter cometido muitos factos em que não houve queixa do ofendido porque este nada queria – podia ter aí um papel de oportunidade de instaurar ou não o inquérito tutelar educativo. Ou então, encaminhava a situação, tomando as necessárias providências, no âmbito da promoção e protecção (P3).

Aquela posição está longe de ser consensual, esbarrando com a posição

assumida por alguns operadores que denunciam uma certa tendência para a

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

197

defesa de uma hiperjudicialização dos conflitos em matéria tutelar educativa,

alertando para a reflexão mais lata sobre o papel do sistema judicial e,

sobretudo, sobre a selectividade dos casos que, efectivamente, devem passar

à fase jurisdicional.

Nós temos aqui um procurador que acusa tudo. Até acusa duas estaladas entre miúdos. Acusa mesmo sem haver queixa. Vai pelo 146.º ou 143.º. (…) Aqui entendeu-se que era preciso um MP a controlar os miúdos como criminosos. Ele acusa tudo. Mas, depois os procuradores não seguem a mesma tendência nos julgamentos (…).E não é inócuo trazer um miúdo à sala de audiência (Ent. 4J).

Eu tive um miúdo aqui que veio a julgamento por falsas declarações. Ele era guineense e quando se identificou na polícia deu-lhes a sua alcunha. Foi acusado por falsas declarações. Veio cá o pai explicar que o nome que ele tinha dado era o nome pelo qual era conhecido (Ent. 5J).

À semelhança do que verificámos no nosso estudo referido, continua a

verificar-se uma aplicação díspar quanto à determinação de internamento em

regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-semana, ora como

medida substitutiva pelo incumprimento de medida tutelar não institucional, ora

como forma de reforçar o cumprimento da medida não institucional (não se

substituindo a esta).

Alguns entrevistados chamam, também, a atenção para o facto de este

instrumento da lei demandar a preparação dos Centros Educativos para

receber estes jovens.

Seria uma coisa pensável e sem problemas – tal como existe em outros sistemas, até como medida, e é inspirado na legislação alemã – e funcionaria se os centros educativos estivessem adequadamente preparados para o fazer. Não estando, é evidente que se torna difícil.

A outra questão que se tem levantado é fácil de resolver. É indicar na lei que o internamento de fim-de-semana – que é uma consequência do não cumprimento de uma medida não institucional – não faz cessar essa medida não institucional. É um complemento em termos de advertência. Agora, a verdade é que tenho muitas reservas em manter o internamento de fim-de-semana se os centros, de facto, não se prepararem para o efeito.

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198 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Agora, não posso é condenar a medida, como tese de princípio, porque ela funciona em outros sistemas (P4).

2.2 Aperfeiçoamentos legais

Verificámos algum paralelismo entre as questões jurídicas que se

levantavam há seis anos atrás, no último trabalho de investigação realizado

pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa sobre a Lei Tutelar

Educativa, e as questões que emergem agora.

No entanto, nem só de velhas questões cuidou o discurso dos

operadores entrevistados no âmbito deste trabalho. Surgiram, agora, novas

questões emergentes de um contacto mais duradouro com a nova lei: a

necessidade de apresentação por parte do jovem do plano de conduta para

aplicação da suspensão provisória do processo (que deixa a aplicação de tal

instituto nas mãos das diferentes práticas dos profissionais do foro e dos

técnicos de reinserção social)156; e o reduzido âmbito do conceito de flagrante

delito em processo tutelar educativo. Reclama-se, ainda, a necessidade de

revisão da conceptualização de algumas medidas e a necessidade de

redefinição do conteúdo da execução da medida de internamento. A questão

da ausência de resposta institucional e legal aos jovens carentes de

necessidades especiais ao nível da saúde mental que tenham praticado factos

qualificados pela lei penal como crime foi, novamente, levantada. Por último,

surgiu, ainda, no discurso dos operadores uma preocupação com o âmbito de

aplicação futura, que se anuncia, da vigilância electrónica aos jovens.

Quanto à segunda questão, de acordo com o disposto no artigo 52.º da

LTE, “o menor só pode ser detido em flagrante delito por facto qualificado como

crime punível com pena de prisão” (n.º 1), sendo que “a detenção só se

156 A primeira das questões enumeradas será mais detidamente analisada em ponto próprio.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

199

mantém quando o menor tiver cometido facto qualificado como crime contra as

pessoas a que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão

superior a três ano ou tiver cometido dois ou mais factos qualificados como

crimes a que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, superior a

três anos, cujo procedimento não dependa de queixa ou de acusação

particular” (n.º 2).

Segundo alguns entrevistados, a redacção da lei não é clara quanto às

situações em que é possível manter a detenção.

A lei é um pouco confusa no que toca à questão do flagrante delito, ou seja, se estamos legitimados a manter ou não a detenção do menor para ser presente ao juiz (Ent. 2OPC).

Na opinião de outros, a possibilidade de manutenção da detenção

deveria ser alargada a outros factos qualificados como crime.

O artigo 52.º da LTE define um conceito de flagrante delito mais reduzido do que o do processo penal. Se um gang rodear um jovem a quem ficam com um telemóvel, esta situação está impedida de vir a tribunal para primeiro interrogatório. O roubo não é crime contra as pessoas, mas sim contra o património. Só é possível o primeiro interrogatório se estiverem a assaltar duas pessoas (Ent. 2MP).

O grande problema está no tipo de ilícito. Se não for um crime contra pessoas, um roubo em que há violência, ou um homicídio… Ou seja, tratando-se apenas dos furtos ou do dano, limitamo-nos a identificar o menor, fazer o auto e encaminhar para o tribunal. A nossa intervenção acaba por aqui (Ent. 5OPC).

No lastro da defesa do alargamento do conceito de flagrante delito e da

possibilidade da manutenção da detenção surge, via de regra, a invocação da

premência de uma resposta expedita àqueles jovens, por forma a incorporar a

consciência da consequência dos actos praticados. Aliás, a importância da

intervenção próxima da prática do facto delituoso, o que nem sempre, ou

raramente, é compatível com os tempos dos tribunais, é ressaltada, não só

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200 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

pelos vários autores que se dedicam ao estudo deste fenómeno157, mas

também pelos operadores judiciários que nele intervêm.

A grande dificuldade que eu encontro é a lentidão do processo. Essa é a grande dificuldade. Entre o momento em que o menor é identificado, da situação de desvio, e a decisão passa muito tempo. Na prática, estamos a falar de meses e por vezes de anos. Por vezes, há situações limite em que quando finalmente há uma decisão o menor já ultrapassou a idade para se aplicar a LTE. Quer dizer, eu tenho ali um menor que é abrangido por um regime que tem um espaço temporal reduzido. E repare, eles começam a cometer os primeiros actos tipificados como crimes, pelos 13 ou 14 anos. O miúdo entra no sistema. E quando se consegue uma decisão, muitas vezes, o menor já está a atingir a idade limite para ser alvo de alguma intervenção. Esta intervenção tem de ser rápida, tem de ser às semanas, não pode ser aos meses, e nunca de maneira alguma, aos anos (Ent. 1OPC).

Por outro lado, penso que se deve intervir o quanto antes. E, de facto, um erro da LTE é intervir demasiadamente tarde (Ent. 3OPC).

No entanto, são os próprios entrevistados a reconhecer que a lentidão

do processo não está umbilicalmente associada a esta lei, mas sim a factores

de natureza cultural e organizacional, amplamente debatidos por nós no âmbito

de outros trabalhos158, que também afectam a sua aplicação prática.

Já na vigência de outras leis eu não via grande celeridade. Portanto, não é por esta LTE que o processo se tornou mais lento. A morosidade da justiça é um problema muito antigo e que se verifica a muitos níveis. E nos menores, onde devemos intervir rápido, é um problema ainda maior. Devia existir aqui um mecanismo um pouco semelhante ao processo sumário para área penal, aqui tem de existir uma lógica semelhante. Eu sei que há muitos cuidados que se têm de ter, porque é um menor... Mas o problema é esse, perdemos muito tempo em avaliações e ponderações e na prática há inacção. O que o jovem sente é impunidade. Ele consegue roubar uma, duas vezes…sete vezes… (Ent. 1OPC).

157 Cf. ponto I.1.

158 Cf, a título exemplificativo, Gomes (coord). 2009. A Justiça Penal – uma reforma em

avaliação. CES/OPJ: Coimbra; Gomes (coord). 2009. Os Caminhos Difíceis da “Nova” Lei Tutelar Educativa – Uma avaliação de dois anos de aplicação da Lei Tutelar Educativa; Gomes (coord). 2003. A Reinserção Social dos Reclusos – Um contributo para o debate sobre a reforma do sistema prisional. CES/OPJ: Coimbra.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

201

Os operadores manifestaram, ainda, a necessidade de cuidado com, por

um lado, a conceptualização da medida tutelar não institucional de conteúdo

obrigacional e, por outro, com o conteúdo da medida tutelar de internamento.

O leque de medidas tutelares educativas previstas na lei é amplo,

prevendo-se como medidas não institucionais as seguintes: admoestação159;

privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter permissão para

conduzir ciclomotores160; reparação ao ofendido161; realização de prestações

económicas ou de tarefas a favor da comunidade162; imposição de regras de

159 A admoestação é a medida tutelar educativa não institucional que consiste na repreensão

solene pelo juiz ao jovem, na presença do defensor e do MP. Como prevê o artigo 9.º da LTE, essa repreensão consiste na explicação do carácter ilícito da conduta do jovem e suas consequências, e a exortação no sentido de que o jovem deve adequar o seu comportamento às normas e valores jurídicos.

160 A medida tutelar educativa de privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter

permissão para conduzir ciclomotores pode ser aplicada por um período mínimo de um mês e máximo de um ano (artigo 10.º da LTE).

161 A medida tutelar educativa de reparação ao ofendido pode consistir na apresentação de

desculpas; compensação económica, total ou parcial, pelo dano patrimonial que o ofendido sofreu; e realização, em benefício do ofendido, de uma actividade ligada ao dano sofrido. Nos termos do artigo 11.º da LTE, a primeira modalidade pode revestir uma das seguintes duas formas: (1) o jovem manifestar, na presença do juiz e do ofendido, a intenção de não repetir actos semelhantes; (2) agir simbolicamente de forma que mostre arrependimento pelo acto cometido. O pagamento da compensação económica pode ser efectuado em prestações, devendo o juiz atender às disponibilidades económicas do jovem. A terceira modalidade – actividade exercida em benefício do ofendido – não pode ocupar mais de dois dias por semana e três horas por dia, devendo ter em consideração o período de repouso do jovem e o seu horário escolar. Esta actividade tem a duração máxima de doze horas.

162 A LTE prevê, no seu artigo 12.º, a medida de prestações económicas ou tarefas a favor da

comunidade, que “consiste em o menor entregar uma determinada quantia ou exercer actividade em benefício de entidade, pública ou privada, de fim não lucrativo”. A actividade exercida tem a duração máxima de 60 horas, não podendo exceder os 3 meses. Embora o objectivo geral desta medida seja, tal como o das restantes medidas tutelares educativas, educar o jovem para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade (artigo 2.º, da LTE), ela pretende também responsabilizar o jovem pelo facto cometido e pelas suas consequências; possibilitar a realização de uma tarefa útil para a comunidade; reparar, de forma simbólica, o dano provocado; e fazer compreender ao jovem o sentido e a utilidade das tarefas para a comunidade.

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202 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

conduta163; imposição de obrigações164; frequência de programas formativos165;

e acompanhamento educativo166 (artigo 4.º da LTE).

A medida institucional, prevista no artigo 4.º da LTE, é o internamento

em centro educativo. Esta medida, a mais grave aplicável a jovens entre os 12

e os 16 anos que tenham praticado factos qualificados pela lei como crimes

(artigo 1.º da LTE), é a que implica maior restrição da liberdade e da

autonomia, consistindo, de acordo com o n.º 1 do artigo 17.º da LTE, no

afastamento temporário do jovem do seu meio habitual de vida e da utilização

de programas e de métodos pedagógicos, a interiorização de valores

conformes ao direito e a aquisição de recursos que, no futuro, lhe possibilitem

163 A medida de imposição de regras de conduta visa criar ou fortalecer as condições para que

o jovem se comporte de forma adequada às normas e valores essenciais da vida em comunidade. A lei faz referência a algumas das regras de conduta que o Tribunal poderá impor: não frequentar certos meios, locais ou espectáculos; não acompanhar determinadas pessoas; não consumir bebidas alcoólicas; não frequentar certos grupos ou associações; e não ter em seu poder certos objectos. Tais regras podem ser aplicadas por um período máximo de dois anos.

164 A medida tutelar educativa de imposição de obrigações tem o objectivo de sedimentar o

percurso escolar ou de formação profissional do jovem, bem como fortalecer as condições psicobiológicas necessárias ao desenvolvimento da sua personalidade. Entre as obrigações impostas podemos encontrar a obrigação de frequentar um estabelecimento de ensino, com controlo de assiduidade e frequência; um centro de formação profissional, ou seguir uma formação profissional; sessões de orientação em instituição psicopedagógica e seguir as orientações que lhe forem prescritas; praticar actividades em clubes ou associações juvenis; e submeter-se a programas médicos (por exemplo, médico psiquiátrico) para tratar casos de habituação alcoólica, consumo habitual de estupefacientes, doença infecto-contagiosa ou sexualmente transmissível e anomalia psíquica.

165 A medida tutelar educativa de frequência de programas formativos tem em vista a

participação do jovem em programas de ocupação de tempos livres; educação sexual; educação rodoviária; orientação psicopedagógica; despiste e orientação profissional; aquisição de competências pessoais e sociais; e em programas desportivos.

166 A medida de acompanhamento educativo consiste na execução de um projecto educativo

pessoal “que abranja as áreas de intervenção fixadas pelo Tribunal” (artigo 16.º, n.º 1, da LTE), com a duração mínima de 3 meses e máxima de 2 anos. Esta medida pode ser combinada com outras medidas tutelares educativas, pois ao jovem pode ser aplicada cumulativamente, por mais do que um facto, uma medida de acompanhamento educativo e uma qualquer outra medida não institucional a executar simultaneamente. A medida de acompanhamento educativo pode, também, ser articulada com uma medida de internamento em centro educativo, quando a revisão desta última conduz à sua substituição.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

203

orientar a sua vida de forma social e juridicamente responsável167. A medida de

internamento pode ser aplicada em regime aberto, em regime semi-aberto e

em regime fechado, sendo executada em Centro Educativo, por determinação

do Tribunal168.

Os entrevistados no âmbito do presente projecto de investigação

defendem que a lei lhes fornece uma amplitude suficiente de medidas tutelares

educativas a aplicar, que permitem responder às necessidades de educação

para o direito do jovem. No entanto, alguns afirmaram que a lei não responde

com detalhe suficiente ao conteúdo das medidas, nomeadamente no caso das

medidas de conteúdo obrigacional não restaurativo.

Relativamente às medidas de conteúdo obrigacional não restaurativo, como a medida de imposição de condutas e obrigações, era urgentíssimo, de facto, rever a conceptualização

167 O artigo 7.º, n.º 1, a LTE determina que a medida tutelar “deve ser proporcionada à

gravidade do facto e à necessidade de educação do menor para o direito manifestada na prática do facto e subsistente no momento da decisão”. A medida de internamento aplica-se aos casos em que, encontrando-se reunidos os respectivos pressupostos legais, não é adequada e suficiente nenhuma medida não institucional, dada a gravidade dos factos e as necessidades de educação para o direito. Quanto à duração das medidas de internamento, a lei determina no artigo 7.º, n.º 2 da LTE que as mesmas não podem, “em, caso algum, exceder o limite máximo da pena de prisão prevista para o crime correspondente ao facto”. Assim, a duração da medida de internamento está directamente referenciada ao limite máximo da pena de prisão prevista para aquele facto.

168 A Portaria n.º 102/2008, de 1 de Fevereiro, procedeu à revisão da Rede Nacional de

Centros Educativos, com vista a, como se lê no preâmbulo do diploma, “uma melhor e maior eficácia na distribuição, quer territorial quer de recursos, que permitam uma resposta mais qualificada em termos educativos e formativos, bem como dar resposta a um requisito fundamental que consiste na proximidade face ao local de proveniência dos menores, estabelecido na Lei Tutelar Educativa”. Nesses termos, a Rede Nacional de Centros Educativos é actualmente composta pelos seguintes equipamentos: a) Centro Educativo de Santa Clara, em Vila do Conde; b) Centro Educativo de Santo António, no Porto; c) Centro Educativo do Mondego, em Cavadoude, Guarda; d) Centro Educativo dos Olivais, em Coimbra; e) Centro Educativo Padre António Oliveira, em Caxias, Oeiras; f) Centro Educativo da Bela Vista, em Lisboa; g) Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa; h) Centro Educativo da Madeira, no Santo da Serra, Funchal; e i) Centro Educativo dos Açores, tendo estes dois últimos sido criados pela Portaria n.º 102/2008, de 1 de Fevereiro. Por esta Portaria foram, assim, extintos os Centros Educativos seguintes: a) Centro Educativo de Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia; b) Centro Educativo de São José, em Viseu; c) Centro Educativo de São Fiel, em Louriçal do Campo, Castelo Branco; d) Centro Educativo Dr. Alberto do Souto, em Aveiro; e) Centro Educativo de São Bernardino, em Atouguia da Baleia, Peniche; e f) Centro Educativo de Vila Fernando, em Vila Fernando, Elvas.

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204 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

destas medidas que ficou muito mal resolvida na lei. De facto, há, justificadamente, muitas queixas a este respeito porque está mal desenhado. Neste sentido, a nova lei belga é, talvez, das legislações europeias, a que melhor resolve estas medidas de conteúdo obrigacional não restaurativo. Entre nós ela devia ser melhor definida. Há ali muitas confusões (P4).

E, também, no que respeita à medida de frequência de programas

formativos.

Uma outra necessidade, ligada à regulamentação das medidas não institucionais, era instituir verdadeiros programas educativos adaptados aos tipos de delinquência mais frequentes para frequência na comunidade. Não é fazer apenas programas de meras competências pessoais e sociais como tem sido feito (P4).

Estes entrevistados defendem que o tribunal se limita a aplicar a medida,

devolvendo aos técnicos de reinserção social o total controlo sobre o conteúdo

da sua execução, duvidando da suficiência dos programas aplicados aos

jovens delinquentes.

Eu sugeria que os programas dissessem à frente – empírica e cientificamente validados. Porque, essa questão das competências sociais pode ser uma “chachada”. Há, de facto, programas que estão empírica e cientificamente validados e aquilo resulta. Por isso, não temos de inventar nada, temos apenas de adaptar. É evidente que pode haver um ou outro ajustamento, em termos culturais por exemplo, mas na base já lá está, mais do que documentada. Não é uma panaceia. Tem literatura, efectivamente, que ajuda a tornar as coisas credíveis (P1).

À semelhança das medidas tutelares educativas não institucionais, o

conteúdo da execução da medida de internamento tem sido alvo de críticas.

Segundo Neves (2008), o tempo passado no centro educativo possibilita a

aquisição de algumas competências sociais, um alargamento do espectro

cultural e comportamental dos educandos, mas esse tempo pode “revelar-se

insuficiente para uma inversão consciente e sustentada das suas trajectórias”

devido, essencialmente, a duas razões: a escassez de trabalho específico de

intervenção com os educandos e a cisão com o exterior, imposta pelo quadro

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

205

legal previsto para o internamento em regime fechado e mesmo em regime

semiaberto.

O “acanhamento reeducativo” referido pelo autor, combinado com as

carências quantitativas e qualitativas dos funcionários do centro educativo

estudado, constitui, na sua perspectiva, “um obstáculo à exploração do carácter

potencialmente educativo das situações do quotidiano”, havendo a frequente

opção pela contenção dos educandos ou pela desvalorização dos seus

comportamentos em detrimento da mediação das relações; para a sua

infantilização; para o diminuto grau de exigências das aprendizagens; e para a

adopção de posições defensivas pelos funcionários.

Estas preocupações ressaltaram, também, no discurso dos operadores

entrevistados. Na perspectiva de alguns profissionais, o acompanhamento

dispensado ao jovem durante a execução da medida de internamento é

deficiente, no que respeita à reabilitação psicossocial, quer individual, quer em

termos de programas grupais, devendo explicitar-se, legalmente, qual o

conteúdo obrigatório da mesma.

Em termos organizativos têm de cumprir um programa de formação e alternância com a escolaridade, que os miúdos não têm tempo para fazer nenhum programa, quanto mais o acompanhamento individual! Portanto, há um problema, os técnicos não têm tempo para intervir – a não ser que intervenhamos aos sábados de manhã – porque não há uma hora e meia durante a semana para fazer o programa... O que eles fazem é formação e é escola. São aqueles programas de formação profissionalizante, com oficinas, ateliers etc., e depois, a escola (P9).

Ainda no âmbito das medidas, uma questão recorrente prende-se com a

reivindicação de maior combinação das medidas, bem como da articulação

com medidas no âmbito tutelar educativo.

O que não faz muito sentido é que o acompanhamento educativo que é cumprido no tempo. E o que é que acontece se no fim do período persistir a necessidade de educação? (P9).

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206 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Uma outra questão é a duração das medidas em si mesma, por vezes

insuficiente para cumprir determinado programa ou objectivo. A defesa, em

geral, não foi pela alteração da duração das medidas, mas sim, pela

possibilidade de flexibilizar, de modo expedito, a sua duração. Esta alteração

da duração da medida teria que ser fundamentada e sempre por ordem judicial.

Das questões mais veementemente abordadas pelos entrevistados,

reportada como uma lacuna legal, foi a da carência de respostas para os

problemas relacionados com a saúde mental das crianças e jovens que

pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime. Estas lacunas já

haviam sido salientadas em 2004, aquando do estudo “Os Caminhos Difíceis

da “Nova” Justiça Tutelar Educativa. Uma avaliação de dois anos de aplicação

da Lei Tutelar Educativa”.

Naquele estudo referimos que os jovens com necessidade de respostas

clínicas de foro psiquiátrico eram tendencialmente encaminhados para o Centro

Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, no qual, entre os funcionários, existia

um médico psiquiatra e de um terapeuta da fala.

A ausência de diferenciação e especialização da intervenção para

jovens com necessidades especiais de saúde mental foi, novamente, referida

pelos operadores.

Além de ser urgente diferenciar e especializar a intervenção em centro educativo, eu acho que era necessário instituir o internamento para tratamento médico e médico-psicológico, mesmo que não executado numa instituição da justiça. (…) Não temos respostas da saúde, mas é preciso exigi-las, porque os poucos números que temos vão, exactamente, no sentido de grandes carências a este respeito (P4).

É que nós sabemos, também, que muitos dos jovens que estão com medidas de internamento, têm problemas graves de saúde mental e, com certeza, não devia ser aquela instituição fechada a adequada para aquele problema (P3).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

207

Na perspectiva de um entrevistado, o sistema não está apetrechado

para responder às necessidades de jovens que revelem psicopatologias

associadas à delinquência juvenil.

O que se faz é um décimo ou menos do que devia ser feito (…). Porque, de facto, não há um modelo decente que atenda à saúde mental ou à psicopatologia associada ao comportamento criminal. (…) Os indivíduos que têm uma medida tutelar educativa de internamento, supostamente, são os que tiveram um acto mais danoso ou mais gravoso, do ponto de vista criminal e de afectação dos direitos do outro. Só que também temos indivíduos que, provavelmente, tiveram um percurso anti-social e um desvio comportamental desde mais cedo na vida (P9).

Por último, a eventual aplicação à justiça juvenil de mecanismos de

vigilância electrónica foi colocada em discussão pelos vários operadores

entrevistados. Alguns entrevistados revelaram dificuldade em compreender a

utilidade da vigilância electrónica na justiça de crianças e jovens, tendo

presente o seu fundamento de educação do jovem para o direito.

Mas qual é a eficácia das pulseiras? Qual é a finalidade se o objectivo das medidas é de educação do menor para o direito e de inserção social?

Tem que ser avaliado na finalidade da medida e num plano integrado. Porque em termos de inserção social, qual é o efeito relativamente à mentalidade e à inserção dos valores? Eu acho que é uma medida que tem que ser discutida (P3).

Não obstante, os entrevistados foram consensuais a defender que o

recurso à vigilância electrónica apenas poderá ser visto como uma alternativa a

medidas restritivas da liberdade, e nunca como um instrumento que garanta a

execução de medidas não institucionais.

Tem havido grandes ventos no sentido de introduzir no sistema juvenil a vigilância electrónica, mas eu espero que a vigilância electrónica seja instituída como uma alternativa ao internamento e não como um reforço de medidas executadas na comunidade. Porque é bom lembrar, sobretudo para os que se têm preocupado muito com a penalização do sistema de justiça juvenil, que nos adultos a pulseira electrónica é uma privação de liberdade. Por isso, é bom respeitar a proporcionalidade e, ao instituí-la no sistema de justiça juvenil, a colocar a funcionar só como alternativa à privação de liberdade institucional (P4).

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208 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

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DIVERSÃO E MEDIAÇÃO: DOIS INSTITUTOS

POR CUMPRIR?

3

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3. DIVERSÃO E MEDIAÇÃO: DOIS INSTITUTOS POR CUMPRIR?

Introdução

Ciente da diversidade de situações que chegam ao sistema de justiça

formal de crianças e jovens, a Lei Tutelar Educativa previu a possibilidade de

respostas processuais diferenciadas. Prevê-se, assim, a possibilidade de

arquivamento liminar do inquérito, o arquivamento por desnecessidade de

aplicação de medida tutelar e a suspensão do processo. A lei prevê, ainda, a

possibilidade de recurso à mediação que, como se verá, tem tido uma baixa

utilização. Pretendemos aqui reflectir sobre a possibilidade de maior utilização

deste instituto, não só como meio de evitar a submissão do jovem a

julgamento, mas também como mecanismo ou instrumento de execução da

medida aplicada.

3.1 A suspensão do processo

A suspensão do processo é gizada pela Lei Tutelar Educativa como uma

das manifestações mais expressivas daqueles mecanismos de diversão,

obviando à submissão do jovem ao efeito estigmatizante da audiência, quando

o facto qualificado pela lei penal como crime praticado seja punível com pena

de prisão de máximo não superior a cinco anos. No entanto, com o objectivo de

apelar à participação do jovem, como forma de o envolver na responsabilização

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212 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

pelo facto praticado, a lei determina que “o menor apresente um plano de

conduta que evidencie estar disposto a evitar, no futuro, a prática de factos

qualificados pela lei como crime” (cf. artigo 84.º, n.º 1, da LTE).

Esta enunciação legal tem determinado práticas diversificadas nos

diversos tribunais. Alguns magistrados defendem que o texto legal impõe que

seja o próprio jovem a sugerir a suspensão do processo, através da

apresentação do plano de conduta. Nesta perspectiva, não caberá ao

magistrado do Ministério Público sequer sugerir tal possibilidade legal. Para os

magistrados que defendem esta posição, o baixo número de suspensões deve-

se, sobretudo, à falta de proactividade dos defensores dos jovens.

Durante 6 anos trabalhei em Cascais em processo penal. Foi em Cascais que mais se aplicaram suspensões provisórias do processo e onde se aplicaram as primeiras pulseiras electrónicas, onde se aplicaram mais prestações de trabalho a favor da comunidade. Isto tudo porque são medidas que podem ser aplicadas oficiosamente. Mas a LTE, no artigo 84.º, exige que o menor apresente um plano de conduta. Não é ao MP que incumbe dizer à pessoa para apresentar o plano de conduta. Em Cascais, os defensores faziam-no. Aqui não. (…) Isto passa tudo ao lado de pessoas que não querem saber disto. Se houvesse requerimento não tinha problema nenhum em aplicar. Defendo a transferência de competência para o MP desde que com o apoio de um relatório social (Ent. 2MP).

Noutras comarcas, é o Ministério Público a sugerir ao jovem a

apresentação do plano de conduta e a encaminhá-lo para os serviços de

reinserção social, com vista ao auxílio em tal tarefa.

O tribunal de (…), por exemplo – embora não tenha a ver com o que vocês estão a estudar – o que faz, por vezes, é pedir-nos um relatório social no âmbito do inquérito, e depois quando a procuradora chama o jovem, no momento da audição do menor, a própria procuradora junto com o advogado, ajuda o menor a elaborar o plano de conduta. Ora aí, nesse momento, é-nos pedido já para acompanhar o jovem no âmbito de uma suspensão do processo e desistem do relatório, mas não é assim muito vulgar. Em (…) acontece, temos algumas situações destas de suspensão do processo (Ent. 1TRS).

Verificamos, assim, que a redacção legal determina, não só

interpretações e práticas diferenciadas, sujeitando os jovens a disparidades e

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

213

desigualdades de oportunidades intoleráveis, como um bloqueio a uma maior

aplicação deste instituto que deve ser sanado.

3.2 Mediação

No âmbito da Lei Tutelar Educativa, o recurso à mediação é, também,

visto como um importante mecanismo de diversão, que deveria ser sempre

ordenado durante o procedimento tutelar educativo. Apesar de prevista,

possibilitando uma ampla margem de conformação pela autoridade judiciária

competente, a mediação foi acolhida de forma tímida no seio da Lei Tutelar

Educativa.

Eu penso que uma das grandes deficiências da Lei Tutelar Educativa é não ter aberto espaço à mediação. (…) Acho que o legislador nesse propósito foi extremamente tímido. Eu acho que nós aí podemos aprender imenso com aquilo que os outros países fazem à nossa volta e não é nada complicado. Porque pode haver entidades administrativas a fazê-lo. Aliás, nós já as temos! No MJ temos o Gabinete para a Resolução Alternativa de Litígios, que pode alargar a sua competência a, por exemplo, casos de criminalidade bagatelar juvenil. (…) Eu defendo que esta foi uma grande falha da LTE, e compreendo-a. Na altura, numa cultura que era fundamentalmente judiciária, dar um passo no sentido de uma desjudiciarização era algo extremamente atrevido. Agora, acho que todo o balanço que temos destas experiências a nível europeu nos pode ensinar imenso (P4).

Não obstante a amplitude de respostas que o modelo comporta, elas

não permitirão responder ao desafio de conseguir respostas de oportunidade

fora do paradigma judiciário. A questão que se coloca é de saber se todos os

factos, ainda que qualificados com crime, mas de gravidade reduzida, devem

ter um tratamento dentro do processo judicial, ainda que não ultrapassem a

fase de inquérito no âmbito da acção do Ministério Público.

No curso do trabalho de campo foi possível discutir esta questão, aliás

em debate em outros países, onde se questiona a hiper-judicialização das

condutas de crianças e jovens. Poderemos, em traços largos, agregar as

opiniões sobre esta questão em duas categorias: de um lado, aqueles que

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214 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

olham para o problema pelo ângulo do perigo social em que se encontram

essas crianças e jovens, dos seus contextos sócio-familiares, da dificuldade em

distinguir actos delinquentes, de comportamentos reactivos de revolta, de

frustração169, evidenciando a importância de uma intervenção estrutural sobre

as causas e os contextos das condutas170; do outro os que enfatizam o

princípio da legalidade e, ainda, para alguns prevalecendo a ideia de que a

delinquência de crianças e jovens deve ser tratada segundo uma lógica de

“tolerância zero”, não devendo nenhum acto delinquente praticado ficar sem

resposta, o que revaloriza o papel das instâncias judiciárias171.

O curso do trabalho de campo identifica, entre nós, o que poderemos

designar de uma terceira via que, valorizando os argumentos dos que

defendem uma intervenção estrutural, coloca a oportunidade da intervenção

judiciária, em primeiro lugar, na disponibilidade da vítima e, sobretudo, no papel

central do Ministério Público.

Confrontados com a questão de saber se perante a existência de um

qualquer facto criminoso toda e qualquer prática de um facto qualificado pela lei

169 Entre os delitos, importa distinguir entre aqueles que não buscam ganhos materiais e são

fruto da frustração, da rebelião e da afirmação identitária – desrespeito pela autoridade, lutas entre jovens, conflitos com as autoridades, violência em geral sem destinatário, etc. – e aqueles que, podendo acarretar violência instrumental, visam primeiramente o ganho material – furtos e roubos (Lagrange, 2002). Os sistemas de controlo social têm que saber encontrar respostas, devidamente articuladas, para uns e para outros (Lagrange, 2002).

170 Eles provêm de famílias numerosas, monoparentais com pais ausentes/desconhecidos (em

consequência de divórcio/separação ou de falecimento ou encarceramento de um dos pais), vítimas de negligência parental e de maus tratos (associados, por vezes, ao alcoolismo ou toxicodependência de familiares), com frequentes mudanças do núcleo familiar. Em alguns casos, fugiram de casa cedo, o que precipitou o seu contacto com o sistema de justiça de menores (Carvalho, 2003, 2005).

171 “A reflexão e a intervenção, no plano local, podem passar pela articulação com os OPC em

vista à detecção de bloqueios no tratamento das participações e outro expediente; à identificação de áreas de “cifras negras”, ou de situações de ilicitude típica que, embora conhecidas das instâncias formais de controlo, não estejam a ser formalizadas em participação. A obrigatoriedade de recepção de denúncia ou queixa pelos órgãos de polícia criminal deve inibi-los de proceder à avaliação casuística do mérito dos factos ou a pré juízos sobre o destino final das queixas” (cf. PGDL, 2009).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

215

penal como crime, por um jovem entre os 12 e os 16 anos, deve merecer a

intervenção do sistema judicial, a maioria dos magistrados entrevistados

entendem que a decisão deverá ficar nas mãos do Ministério Público.

No âmbito da intervenção do MP, não me repugna nada que a decisão de abrir ou não o inquérito tutelar educativo se socorresse de um sistema de mediação. Nós estamos a falar numa intervenção que é uma intervenção oficiosa do Estado e tem aqui de haver sempre alguma justificação para o MP instaurar ou não instaurar o procedimento. E há aqui, também, um conjunto de garantias – eu não ia mandar imediatamente para mediação se entendesse que não era preciso qualquer tipo de intervenção. No âmbito de um inquérito tutelar educativo, deve haver uma maior intervenção da mediação. Mas, no âmbito do inquérito, como é que pode ser feito? Porque o modo como está formulada a mediação na actual Lei Tutelar Educativa é, digamos, um “cheirinho”, extraordinariamente diminuto. Portanto, eu acentuaria essa intervenção e a possibilidade de recurso à mediação. (…) Também podemos melhorar toda a intervenção no sentido de acentuar uma intervenção não jurisdicionalizada. O primeiro passo era o MP ter a possibilidade muito mais alargada do que tem agora de arquivar, ou encaminhar para a promoção e protecção ou abrir um inquérito tutelar educativo. Mas, mesmo depois de abrir um inquérito tutelar educativo, acho que as possibilidades de suspensão provisória do processo e do recurso à mediação deviam ser acentuados (P3).

A maioria dos magistrados entrevistados, rejeitando, como princípio, a

mediação fora do sistema judicial, reclama uma maior abertura à escolha de

mecanismos de diversão ao dispor do Ministério Público, fazendo recair sobre

esta magistratura a responsabilidade pela mobilização, no caso concreto, das

diferentes soluções legislativas.

(…) se o MP estivesse assessorado pelos serviços de mediação – mediação no âmbito do MP – e se houvesse um alargamento das competências do MP em matéria de arquivamento do inquérito, de suspensão do processo, etc., isso também poderia contribuir para que, realmente, o MP fizesse a triagem e muitos casos não entrassem na fase jurisdicional (P7).

Eu penso que a diversão é uma solução boa, até porque numa sociedade complexa há necessidade de procurarmos soluções diversas. Mas, é preciso que sejam garantidos os direitos, tem que ser algo devidamente pensado, tem de haver sempre uma fiscalização, digamos, do MP. (…) Não faz sentido que os tribunais de família e menores tenham milhares de processos com meia dúzia de magistrados. A criança tem direito a um magistrado. Se formos para a solução da não diversão, tem direito ao magistrado, ao juiz, ao MP. Portanto, não faz sentido que vá alguém apreciar a sua conduta e nem fale com ele. Eu considero que tem de o ouvir. O magistrado do MP, bem preparado, ao ouvir o menor, e uma vez que vem ele e os pais, pode avaliar, não vai pedir logo relatório, vai ouvir e vai perceber (P6).

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216 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Apesar de ser aquela a tendência da opinião da maioria, surgiram vozes

no sentido da criação de um espaço de mediação a montante do sistema

judicial.

Pode haver equilíbrios de interesses e resoluções de conflitos que não passem, forçosamente, nem por uma judicialização nem por uma judiciarização. E eu faço a distinção porque estou a empregar o conceito de judicialização relativamente a um julgamento, à intervenção de um juiz, e estou a empregar a palavra judiciarização para me referir à intervenção de um qualquer magistrado, ou seja, do próprio MP. Eu acho que a montante pode haver intervenção estadual, que pode ser pela via administrativa e que pode e deve incluir instâncias de mediação. Até em crimes particularmente graves, eu considero que é possível existir uma composição de interesses entre o menor e a vítima, porque isso é responsabilizador e educativo. E, ao ser assim, cumpre os objectivos da lei (P4).

Também simpatizo com a mediação, só que eu acho que as coisas podem colidir. É certo que também depende do que entendemos por mediação e como seria posto em prática, porque pode haver necessidades de educação para o direito e pode dar-se o caso – como a mediação tem aquele sentido muito reparador – de o menor pagar e, assim, reparar, sendo uma forma de a situação ficar resolvida, mas a necessidade de educação para o direito mantém-se. (…) O que é que vamos fazer com a mediação? Que medidas concretas vão ser propostas? Ou melhor, qual a forma de não entrar no sistema formal e de controlo? Por exemplo, estou a pensar nas escolas e nos pequenos crimes praticados por menores – será que é realmente necessário entrar no sistema? Não deveria haver um gabinete preparado para lidar com as situações das escolas onde estivesse um psicólogo, um jurista, etc.? Agora, nunca só na perspectiva de reparar a vítima, não pode ser só a vítima directa do crime a ficar satisfeita com a solução. Tem que ser algo diferente. Tem de ser a sociedade, enquanto vítima mais ou menos directa ou indirecta daquele facto, e tem de se ajudar o menor. E eu até considero que a expressão «educação do menor para o direito» é educação para os valores fundamentais da comunidade, para se comportar sem ferir esses valores. E nesse aspecto, até me satisfaz a expressão, educação para o direito. Eu estou-me a lembrar, do exemplo da Holanda, com uns gabinetes, que julgo que funciona bem, porque intervêm muito precocemente, para pequenos crimes (…). Muitas vezes não tem nada a ver com a reparação económica mas sim ir pintar as paredes que estão danificadas, reparar os bancos de jardim, etc. (P8).

Nós já temos, dentro do MJ, uma estrutura que pode pôr a funcionar soluções de mediação que evitem que o processo venha a nascer. O que me pode ser oposto é a opinião de que assim, deixa nas mãos da vítima a questão da educação ou não educação do menor para o direito. Mas eu considero que não. Eu não posso levar este princípio da educação do menor para o direito rigidamente até às últimas consequências! O que me interessa é a composição de interesses e a composição de interesses pode ser um sintoma muito positivo de responsabilização e de assunção do menor relativamente aos valores tutelares pela lei penal. E se isso acontecer, então para que é que eu quero intervir mais? Que sentido tem? (P4).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

217

A possibilidade de recurso à mediação fora do sistema judicial é, no

entanto, controversa. Levantam-se as seguintes objecções fundamentais: o

facto de o recurso à mediação sem controlo do Ministério Público poder

“esconder” a existência de um conjunto plúrimo de queixas; a protecção dos

direitos fundamentais do jovem; e a forma como a mediação é estruturada,

exigindo-se qualidade técnica.

Se o auto vier bem elaborado pelas polícias traz também já um relatório sobre o enquadramento familiar, etc.. Há casos em que é ouvir apenas. Nem sequer exigiam a intervenção de um sistema mais formal. De qualquer maneira, e mais uma vez, manifesto essa preocupação, que quaisquer serviços desse género têm que ser bem pensados do ponto de vista técnico, têm que dar resposta atempada e têm que ter alguns limites de intervenção por questões de direitos fundamentais. Na minha opinião, o modo como foram estruturados os serviços de mediação, no âmbito das respostas à mediação familiar e penal, não funciona e a qualidade da própria mediação é altamente posta em causa porque há uma lista de mediadores que intervêm caso a caso (P7).

Surgiram, ainda, opiniões no sentido do investimento na mediação, não

apenas como forma de composição do litígio e de obviar à submissão do jovem

a uma audiência, mas ainda como mecanismo ou instrumento ao serviço da

execução da medida aplicada.

Eu acho que é perfeitamente possível e que deve existir, antes do processo e mesmo em qualquer altura do processo, se ele vier a existir. Mesmo depois, na execução das medidas – e aí não estou a inventar nada, isto passa-se em Espanha – é possível a existência de mediação até ao fim do processo – e funciona, está provado que funciona. Nós devíamos avançar para tal solução e fazer evoluir o nosso sistema nesse sentido (P4).

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O PAPEL DOS AGENTES DO SISTEMA JUDICIAL

4

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4. O PAPEL DOS AGENTES DO SISTEMA JUDICIAL

Introdução

Desde o momento em que a prática de um ilícito desencadeia a abertura

de um processo e determina a necessidade de intervenção das instâncias de

controlo social, são vários os agentes que, no âmbito desse processo,

desempenham um papel activo e de cuja acção depende, em grande medida, a

qualidade e eficácia dessa intervenção. Se é certo que a decisão última cabe

ao juiz do processo e, por isso, assume um papel crucial, a verdade é que, por

um lado, a sua acção ocorre em um número muito limitado de casos (dado que

a maioria não transitará para a fase jurisdicional) e, por outro lado, na sua

assessoria, assume papel central a Direcção-Geral de Reinserção Social

(DGRS).

Centramo-nos, neste ponto, no papel da DGRS, do Ministério Público e,

ainda que por razões diferentes, do defensor. Analisamos como esses papéis

são percepcionados, quer nas suas actuais competências e circunstâncias de

desempenho, quer no discurso dos seus próprios agentes e ou de outros que

com eles se articulam. O objectivo é que esta reflexão possa contribuir para

aumentar a eficácia e a qualidade do desempenho funcional. Como já

amplamente referimos, não basta alterar a lei se não forem criadas condições

que permitam, na prática, alcançar os objectivos da reforma.

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222 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

4.1 A Direcção-Geral de Reinserção Social: um papel fundamental na Lei Tutelar Educativa

Os serviços de reinserção social assumem, no quadro da Lei Tutelar

Educativa, uma particular importância, recaindo sobre os mesmos a missão de

auxiliar o tribunal na tarefa de avaliar a situação concreta do jovem e a

necessidade de educação para o direito, bem como acompanhar a execução

das medidas tutelares educativas aplicadas. A avaliação ponderada e criteriosa

de cada situação, o acompanhamento individualizado de cada jovem e o

trabalho interdisciplinar dos vários técnicos que compõem as equipas da DGRS

são, assim, elementos fundamentais para alcançar as metas que a Lei Tutelar

Educativa se propõe alcançar.

A intervenção dos serviços de reinserção social nos processos que

envolvem jovens agentes de factos qualificados pela lei como crime teve uma

evolução, de acordo, não só com as opções legislativas relativas ao modelo

substantivo e processual a aplicar a esses casos, mas também tendo em

atenção opções de carácter organizativo da própria Administração.

Consideramos, por isso, para melhor compreender o seu papel, começar por

traçar a evolução dos serviços a que estavam cometidas as funções de

acompanhamento dos jovens. Daremos, ainda, conta de alguns resultados do

trabalho de campo realizado relativamente à intervenção daqueles serviços,

sem esquecer os constrangimentos com que se deparam no exercício das suas

funções.

Da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores ao Instituto de Reinserção Social

A aprovação da Organização Tutelar de Menores, em 1962, como

resposta à necessidade de reunir num só texto legal as normas respeitantes às

crianças com comportamentos delinquentes ou com outro tipo de problemas

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

223

ligados à infância, passando a intervenção estadual a orientar-se por um

modelo de protecção maximalista (Rodrigues e Duarte-Fonseca, 2003: 5),

determinou a criação, através do Decreto-Lei n.º 44287, de 20 de Abril de

1962, da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores (DGSTM), a quem

competia “dirigir os serviços de justiça relativos a menores sujeitos a jurisdição

especializada, promover a execução das medidas decretadas pelos tribunais

de menores, orientar os serviços de assistência social e superintender nos

estabelecimentos dependentes”. Previa-se, assim, que “o serviço de

assistência social junto dos tribunais centrais [seria] realizado pelos assistentes

ou auxiliares sociais que a Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores

especialmente afecte a esse fim”, prevendo-se regime idêntico para os

tribunais comarcãos (cf. n.º 1, do artigo 6.º, e artigo 9.º do Decreto-Lei n.º

44288, de 20 de Abril de 1962). Na dependência da DGSTM estavam, ainda,

os estabelecimentos tutelares de menores, que, nos termos do artigo 110.º do

Decreto-Lei n.º 44288, de 20 de Abril de 1962, podiam ser das seguintes

espécies: Centros de observação anexos aos tribunais centrais; Institutos

médico-psicológicos; Institutos de reeducação; Lares de semi-internato; Lares

de semiliberdade; Lares de patronato.

A entrada em vigor da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada

pelo Decreto-Lei n.º 523/72, de 19 de Dezembro, que atribuía a competência

para a orientação dos serviços de execução de medidas decretadas pelos

tribunais de menores, a superintendência na sua organização e funcionamento

e a elaboração de estudos referentes à inadaptação social, protecção e defesa

dos jovens à Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores (cf. artigo

26.º), determinou a aprovação do seu Regulamento, através do Decreto n.º

200/73, de 3 de Maio. A DGSTM era composta por serviços centrais, que

compreendiam os serviços técnicos e os serviços de administração (cf. artigo

4.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio), e por serviços externos, constituídos

pelos estabelecimentos tutelares de menores (cf. artigo 20.º do Decreto n.º

200/73, de 3 de Maio), cabendo-lhe, ainda, exercer as funções de órgão

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224 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

executivo da Federação Nacional das Instituições de Protecção à Infância172

(cf. artigo 3.º, n.º 2, do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio).

As competências que implicavam uma maior interacção com os jovens

eram executadas através do serviço de execução de medidas, ao qual

incumbia, essencialmente, o acompanhamento dos jovens durante o período

em que havia intervenção judicial junto deles173 e do serviço de assistência

social, ao qual estava reservada, não só a competência para a realização de

inquéritos sociais com vista ao conhecimento do jovem, mas ainda as

competências necessárias à reintegração social do jovem, através do auxílio às

suas famílias, aos jovens em liberdade assistida ou condicional ou a antigos

internados174,175.

172 Nos termos do artigo 27.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio, incumbia à FNIPI, organismo representante de Portugal na Union Internationale de Protection de l‟Enfance, “como organismo coordenador das actividades em prol da juventude, colaborar com instituições nacionais, estrangeiras e internacionais que se ocupem dos problemas da protecção moral, social ou jurídica de menores”.

173 Cf. artigo 8.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio. Ao serviço de execução de medidas competia organizar os processos individuais dos jovens sujeitos à acção dos tribunais tutelares, promover a distribuição destes pelos estabelecimentos, assegurar o cumprimento das disposições legais relativas à aplicação, alteração e cessação das medidas e prover ao necessário expediente.

174 Cf. artigo 9.º do Decreto n.º 200/73, de 3 de Maio. Ao serviço de assistência social competia realizar os inquéritos sociais necessários ao conhecimento dos jovens, à individualização do seu tratamento e à preparação da sua reintegração social; estabelecer com as famílias dos jovens em observação ou internados nos estabelecimentos as necessárias relações de auxílio e de esclarecimento, procurando remediar as causas que hajam dado lugar à intervenção do tribunal; vigiar, orientar e amparar os jovens em liberdade assistida e em liberdade condicional; exercer acção de patronato a favor de antigos tutelados, procurando, durante o período necessário à sua readaptação social, ampará-los moral e materialmente; organizar os lares de patronato destinados a antigos internados e assegurar o respectivo serviço social; procurar junto das entidades patronais a obtenção de trabalho para antigos internados ou jovens em regime de semi-internato, semiliberdade, liberdade assistida ou liberdade condicional; proceder a inquéritos e à elaboração de relatórios destinados a instruir os processos cíveis da competência dos tribunais de jovens e dos tribunais de família; orientar e verificar a acção das pessoas em relação às quais tenha sido instituído o regime de assistência educativa; fiscalizar a assistência de jovens a espectáculos públicos, nos termos da legislação em vigor; dar parecer, a solicitação da Direcção-Geral do Trabalho e Corporações, sobre os pedidos de autorização do trabalho de jovens e, bem assim, fiscalizar as condições em que esse trabalho é exercido.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

225

A Organização Tutelar de Menores sofre alterações, em 1978, pelo

Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na sequência da Revolução de Abril,

procurando dar resposta a exigências do exercício da cidadania. Tais

alterações têm como pano de fundo a adaptação às novas disposições da Lei

n.º 82/77, de 6 de Dezembro, que “introduziu profundas alterações à

organização dos tribunais judiciais. Entre elas, as que se referem à

competência dos tribunais de família e menores” (cf. preâmbulo). Não obstante,

procedeu-se a outras alterações mais profundas, nomeadamente no que

respeita aos estabelecimentos tutelares e aos centros de observação e acção

social e no âmbito da assessoria técnica, prevendo-se a criação, ao nível do

processo tutelar, de um único dossier do jovem.

Em 1980, na sequência da reforma da OTM de 1978, a DGSTM é

reestruturada. O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 506/80, de 21 de Outubro,

realça o facto de a OTM ter definido “em novos parâmetros a acção tutelar do

Estado relativamente aos menores socialmente inadaptados e em perigo,

nomeadamente reformulando a natureza e objectivos da Direcção-Geral dos

Serviços Tutelares de Menores (DGSTM)”. A diferente configuração do papel

dos lares de semi-internato, de transição e residenciais, bem como a regulação

dos estabelecimentos tutelares de menores com precisão “exige que os

preceitos [da OTM] tenham o devido acolhimento em sede própria - a lei

orgânica da Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores. Esta, em vigor

desde 1972, está hoje totalmente desajustada à nova realidade. A OTM exige

ainda a reorganização dos serviços centrais da DGSTM, que, como órgão

executivo das decisões dos tribunais, urge dotar dos meios necessários à

prossecução dos seus objectivos” (cf. preâmbulo).

175 Além do serviço de execução de medidas e do serviço de assistência social, os serviços técnicos compreendiam o gabinete de estudos e o serviço de inspecção.

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226 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A DGSTM, que passa a ser um departamento do Ministério da Justiça,

“tem como objectivo estudar, orientar, coordenar e controlar a execução das

medidas decretadas pelos tribunais de menores e outras aplicadas no âmbito

da legislação tutelar de protecção de menores, prevenção e reeducação dos

seus comportamentos socialmente inadaptados” (cf. artigo 1.º do Decreto-Lei

n.º 506/80, de 21 de Outubro), incumbindo-lhe, entre outras atribuições,

superintender na organização e funcionamento dos serviços tutelares de

menores (cf. artigo 2.º, n.º 1, al. b)) e, “tendo em vista o ensino profissional e a

aquisição de hábitos de trabalho dos menores tutelados, [organizar] o

funcionamento de oficinas e de explorações agro-pecuárias, de modo que a

aprendizagem das artes e ofícios seja seguida, ou intercalada, da participação

em produção útil” (cf. artigo 2.º, n.º 2).

À semelhança do modelo anterior, a DGSTM dispõe de serviços

centrais, que se dividem em serviços técnicos e serviços de apoio, e de

serviços externos, que são os estabelecimentos tutelares de menores e que “se

destinam, consoante a sua espécie, ao exercício de acção social sobre os

menores e o seu meio, à sua observação, à aplicação de medidas de

protecção, à execução de medidas tutelares decretadas pelos tribunais e à

acção de pós-cura” (cf. artigos 14.º e 29.º)176.

Os departamentos dos serviços técnicos são agora dotados de maior

precisão na descrição das suas atribuições e competências, apostando-se na

divisão das diversas Direcções de Serviços em Divisões, tendo em atenção um

maior grau de especialização dos seus vários membros.

176 Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 506/80, de 21 de Outubro, os estabelecimentos tutelares educativos podem ser das seguintes espécies: centros de observação e acção social; institutos médico-psicológicos; estebelecimentos de reeducação; lares de semi-internato; lares de transição; lares residenciais; centros de acolhimento especializado. Prevê-se ainda a existência de estabelecimentos polivalentes que desenvolvem actividades próprias de mais do que um dos tipos de estabelecimentos referidos.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

227

Assim, os serviços técnicos passaram a compreender três Direcções de

Serviços (a Direcção de Serviços de Tratamento de Menores em Instituição177;

a Direcção de Serviços de Colocação, Acompanhamento e Apoio Social e

Médico-Psicológico178; e a Direcção de Serviços de Estudo, Documentação e

Informação Técnica179) e uma Divisão de Serviços Económicos (cf. artigo 14.º).

Em 1982, é criado, em regime de instalação e no contexto da entrada

em vigor do Código Penal de 1982, o Instituto de Reinserção Social (IRS),

“vocacionado para cobrir toda a área de intervenção social no que toca às

medidas penais institucionais ou não, mas prevendo-se, desde já, o

alargamento da sua acção à prevenção criminal ligada a fenómenos de

marginalidade e ainda à integração social de quem por eles é afectado. Do

mesmo passo, prevê-se que idêntica área tocante aos menores possa vir a

integrar-se na esfera da competência do Instituto” (cf. preâmbulo do Decreto-

Lei n.º 319/82, de 11 de Agosto).

177 A Direcção de Serviços de Tratamento de Menores em Instituição, à qual compete a orientação, coordenação e controlo do exercício das actividades de formação moral, intelectual e física e das actividades disciplinares nos estabelecimentos tutelares de menores (cf. artigo 15.º), compreende a Divisão de Orientação Pedagógica, orientada, essencialmente, para o desenvolvimento de programas de formação moral, cívica, escolar e de ensino profissional nos estabelecimentos tutelares, e a Divisão de Animação de Tempos Livres, vocacionada para as actividades de ocupação de tempos livres dos jovens (cf. artigo 16.º a 18.º).

178 À Direcção de Serviços de Colocação, Acompanhamento e Apoio Social e Médico-Psicológico, que compreende a Divisão de Processos, Acolhimento e Colocação e a Divisão de Serviços Sociais e Médico-Psicológicos, “cabe orientar, coordenar e controlar o encaminhamento dos jovens confiados à protecção dos serviços e a sua observação, educação ou reeducação, no plano da acção médico-psicológica e do serviço social, em internato, em meio aberto ou em regime de pós-cura” (cf. artigo 19.º). À recém-criada Divisão de Processos, Acolhimento e Colocação passou a competir, entre outras funções, a preparar e organização individual da documentação administrativa respeitante à situação jurídica e vicissitudes da vida de cada jovem, durante a execução da medida aplicada pelo tribunal ou pelo centro de observação e acção social competente (cf. artigo 21.º).

179 Nos termos do disposto no artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 506/80, de 21 de Outubro, “à Direcção de Serviços de Estudo, Documentação e Informação Técnica cabe assegurar os objectivos da DGSTM em matéria de estudo e resolução dos problemas respeitantes à delinquência e inadaptação juvenis e aos jovens em perigo, celebração e execução de acordos de cooperação com entidades nacionais, públicas ou privadas, colaboração a nível internacional e acções de formação especializada, aperfeiçoamento e actualização do pessoal técnico”.

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228 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Apesar de se prever um regime de instalação durante o período de 3

anos, o IRS, dirigido essencialmente ao desenvolvimento de actividades de

serviço social prisional e pós-prisional, bem como à implementação das

medidas penais não institucionais existentes ou que venham a ser consagradas

na lei, relativamente a delinquentes imputáveis e inimputáveis (cf. artigo 2.º, n.º

1, do Decreto-Lei n.º 319/82, de 11 de Agosto), logo no ano seguinte, vê o seu

enquadramento orgânico definido, através do Decreto-Lei n.º 204/83, de 20 de

Maio.

Com este diploma legal, as competências tutelares do Estado

relativamente aos jovens passam a ser repartidas entre o novo Instituto de

Reinserção Social e a Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores.

Destaca-se, logo no seu preâmbulo, a necessária “articulação do Instituto de

Reinserção Social com os órgãos e serviços do sistema da administração da

justiça, designadamente os tribunais, a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais

e a Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores, cuja ligação constitui

requisito indispensável à cabal e correcta aplicação do Código Penal,

legislação complementar e outros diplomas já em vigor, designadamente em

matéria de menores e execução das penas. O mesmo se diga em relação a

outras entidades públicas e privadas que prosseguem objectivos ou

desenvolvam acções complementares da reinserção social de delinquentes, do

apoio e protecção de menores e da prevenção criminal em geral”.

O IRS assume, assim, como objectivo fundamental “promover a

prevenção criminal, designadamente através da reinserção social de

delinquentes, imputáveis e inimputáveis, que cumpram medidas criminais

institucionais ou não institucionais, bem como do apoio a menores em perigo

ou de difícil adaptação social “(cf. artigo 2.º), incumbindo-lhe, entre outras

atribuições, intervir na execução de medidas aplicáveis a jovens delinquentes

ou a menores (cf. artigo 3.º, n.º 1, al. f)). Essas atribuições deverão ser

executadas pelo IRS “em estreita ligação com os tribunais criminais, de

execução das penas, de menores e de família e com os Serviços Prisionais,

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

229

Tutelares de Menores e de Combate à Droga, por forma a obter-se a máxima

eficácia das medidas criminais e tutelares, institucionais ou não institucionais,

no sentido que lhes está fixado no Código Penal e demais legislação aplicável”

(cf. artigo 48.º).

Para a realização de tais competências, aquele diploma prevê a

integração dos técnicos de serviço social do quadro da Direcção-Geral dos

Serviços Tutelares de Menores afectos ao serviço de apoio social junto dos

tribunais de família e de menores no IRS (cf. artigo 96.º, n.º 1, al. b)).

Esta dualidade de intervenção tutelar do Estado em matéria de jovens,

entre a DGSTM e o IRS, manteve-se até 1995. Neste ano é publicado o

Decreto-Lei n.º 58/95, de 31 de Março, que reestrutura o IRS, acolhendo no

seu seio “as atribuições e meios afectos à DGSTM, que se extingue. (…) Com

a presente reestruturação consagra-se e implanta-se um sistema de

intervenção social de justiça que assegure de forma racional, global e integrada

a assessoria técnica a todos os tribunais, designadamente nas jurisdições

penal, de jovens e de família, o apoio psicossocial a menores, jovens e adultos

intervenientes em processos judiciais e respectivas famílias, segundo princípios

de voluntariedade, corresponsabilização, a articulação interinstitucional e a

intervenção comunitária, a cooperação judiciária internacional nos termos das

convenções aplicáveis e o apoio às comissões de protecção de menores por

comarca ou concelho” (cf. preâmbulo).

Para tanto, prevê-se a transição para as carreiras de técnico superior de

reinserção social e de técnico-adjunto de reinserção social dos funcionários da

DGSTM, atendendo aos seus antigos provimentos e habilitações literárias (cf.

artigo 108.º e 109.º).

A intervenção do IRS em matéria de crianças e jovens assume especial

relevância, o que é patente desde logo na enunciação legal dos seus

objectivos. Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, daquele diploma, “o Instituto é o

órgão auxiliar da administração da justiça que tem como missão assegurar a

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230 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

intervenção social com o objectivo de proteger os direitos e interesses dos

menores, prevenir a marginalização social e a delinquência, contribuindo para

uma vida jurídica e socialmente integrada de menores, jovens e adultos”. Ao

IRS passou, assim, a caber um conjunto vasto de atribuições relacionadas com

a jurisdição de menores180.

Concretamente, no âmbito do apoio a decisões judiciárias, o artigo 6º

previa a sua competência para “a elaboração de relatórios que consubstanciam

o diagnóstico e prognóstico da situação de menores, seus progenitores ou

outras pessoas a quem sejam confiados, para apoio a decisões judiciárias,

nomeadamente para aplicação de medida adequada”; “o acompanhamento do

menor, do jovem ou adulto durante o processo decisório, no âmbito do direito

de menores, de família e penal, por solicitação da competente autoridade

judiciária ou em cumprimento de disposição legal”; “a elaboração e envio ao

tribunal de relatórios de avaliação dos processos de acompanhamento

referidos na alínea anterior ou que se realizem no âmbito da execução de outra

medida judicial confiada ao Instituto”; “o desenvolvimento de acções na

comunidade, visando o envolvimento de entidades públicas e particulares, por

forma a serem criadas condições favoráveis à tomada de decisões judiciais e

respectiva execução, no âmbito das jurisdições de menores, família, penal e

outras, e à prevenção de situações de carência e de marginalização social”; e

“a participação em audiência e em diligências judiciárias, por solicitação ou

180 Designadamente contribuir para a definição das políticas de defesa e protecção de crianças

e jovens, de reinserção social de jovens e adultos e de prevenção da marginalidade e da delinquência; assegurar o apoio técnico aos tribunais na tomada de decisões, designadamente, no âmbito das jurisdições de família e de menores e da jurisdição penal; intervir na execução de medidas judiciais aplicadas a jovens em articulação, sempre que necessário, com outras entidades públicas e particulares; intervir na execução de penas e medidas de execução na comunidade aplicadas a jovens e adultos, em articulação, sempre que necessário, com outras entidades públicas e particulares; assegurar o apoio às comissões de protecção de jovens, nos termos da legislação aplicável; contribuir para a articulação entre o sistema de administração da justiça e a comunidade, designadamente, através do apoio a instituições particulares e a cidadãos e grupos de cooperadores voluntários que prossigam objectivos de prevenção da marginalidade e da delinquência, de protecção e apoio à criança, de reinserção social de jovens e adultos e de apoio à vítima de infracções penais (cf. artigo 3.º).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

231

mediante autorização do juiz ou do Ministério Público, no âmbito da respectiva

competência”.

No que respeita à execução de medidas, aplicadas a jovens, na

comunidade e em instituição, a competência do IRS era, igualmente, extensa,

incumbindo-lhe a elaboração, execução, acompanhamento e avaliação dos

planos individualizados dos jovens181,182.

O Decreto-Lei n.º 58/95, de 31 de Março, previa, ainda, um conjunto

vastos de competências do IRS relativas “ao apoio a crianças, jovens e adultos

intervenientes em processos judiciais, na resolução de problemas e situações

de carência, [que se traduz] em acção social complementar da intervenção das

demais entidades públicas responsáveis por essas situações na comunidade e

181 Previa-se, no seu artigo 7.º, no âmbito da execução de medidas na comunidade, a competência para “a) a elaboração do plano individualizado de execução da medida aplicada; b) o acompanhamento do menor, em execução do plano, envolvendo todas as iniciativas que promovam a adequação do enquadramento familiar e social às suas necessidades de desenvolvimento e de inserção social; c) a elaboração de relatórios para a avaliação, periódica e final, da execução da medida; d) a articulação com os tribunais, abrangendo a planificação, a execução e a avaliação do acompanhamento, bem como a comunicação imediata das ocorrências relevantes no processo de execução da medida; e) a cooperação com a família e com entidades públicas e particulares intervenientes na execução da medida judicial e no processo de educação e de inserção social do menor”.

182 Nos termos do artigo 8.º, além da definição do colégio em que o menor é acolhido, “a intervenção do Instituto na execução de medidas aplicadas no âmbito do direito de menores e cumpridas nos colégios ou outros equipamentos sociais de acolhimento, educação e formação previstos no presente diploma abrange, designadamente: a) o acolhimento do menor e, quando necessário, o aprofundamento ou actualização do diagnóstico da sua situação; b) a elaboração e permanente actualização do plano individualizado de execução da medida judicial aplicada; c) a criação de condições pedagógicas, escolares, formativas, de saúde e de manutenção que permitam assegurar ao menor um desenvolvimento harmonioso e uma vida em responsabilidade e autonomia; d) o acompanhamento do menor, nas várias vertentes do seu processo de desenvolvimento, segundo o plano individualizado; e) a articulação com a família e meio social de origem do menor, por forma que este mantenha e reforce os laços com a sua comunidade e esta melhor o compreenda e enquadre e, quando tal não for possível ou adequado, a procura e definição de soluções alternativas; f) a articulação com os tribunais, abrangendo a planificação, a execução e a avaliação do acompanhamento, bem como a comunicação imediata das ocorrências relevantes no processo de execução da medida judicial; g) o acompanhamento e apoio, sempre que necessário e adequado, na fase inicial do regresso do menor à comunidade”.

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232 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

visa a criação de condições facilitadoras dos processos de inserção e

reinserção social” (cf. artigo 12.º)183.

Do Instituto de Reinserção Social à Direcção-Geral de Reinserção Social

Na sequência da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo

Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho, que indicava como um dos seus

objectivos o desenvolvimento das competências do Instituto de Reinserção

Social nos domínios da prevenção criminal e das penas alternativas à prisão, a

par das funções que já desempenhava no âmbito da reinserção social,

aproveitando-se para clarificar a esfera de acção deste Instituto e da Direcção-

Geral dos Serviços Prisionais” (cf. preâmbulo)184, e na sequência do Programa

de Acção para a Entrada em vigor do Direito de Menores, aprovado pela

Resolução do Conselho de Ministros n.º 108/2000, de 19 de Agosto, nos

termos do qual se assumia o compromisso de reorganizar o IRS até Dezembro

de 2000, foi aprovada a nova Lei Orgânica do IRS, pelo Decreto-Lei n.º 204-

A/2001, de 26 de Julho, cumprindo o objectivo de reformar “a sua organização,

183 Nos termos do artigo 13.º, o apoio do Instituto a crianças, jovens e adultos, que é sempre facultativo e pressupõe a solicitação e participação dos seus destinatários, “abrange: a) o atendimento, o estudo adequado do problema ou situação de carência e a elaboração de diagnósticos; b) a informação e os esclarecimentos sobre direitos e regalias sociais, condições de acesso e entidades responsáveis; c) o encaminhamento e a articulação, com entidades particulares e entidades públicas competentes, para a resolução dos problemas, nomeadamente de educação, acção social, segurança social, emprego e formação profissional, habitação, cultura, desporto, ocupação de tempos livres e de saúde, designadamente em matéria de saúde mental, toxicodependência, alcoolismo, doenças transmissíveis e reabilitação; d) o acompanhamento e apoio psicossocial directo, com o contributo de outras entidades; e) a concessão supletiva de apoio sócio-económico pontual à acção das competentes entidades públicas e entidades particulares, na medida das necessidades e dos meios disponíveis; f) o acolhimento temporário em equipamentos sociais geridos pelo Instituto ou por outras entidades no âmbito de acordos ou contratos celebrados; g) a integração em projectos e acções de aprendizagem, de formação e colocação profissional e de ocupação temporária, com eventual apoio sócio-económico; h) a eventual cobertura de riscos e danos no âmbito dos serviços de acolhimento, da execução de medidas de trabalho a favor da comunidade e da integração em projectos e acções referidos nas alíneas anteriores, através da celebração de contratos de seguro”.

184 Uma das previsões expressas da Lei Orgânica do Ministério da Justiça de 2000 foi a sucessão das competências do IRS relativas à promoção da reinserção social dos reclusos pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (cf. artigo 31.º, n.º 5).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

233

para dar resposta a desafios essenciais precisamente no âmbito (…) da

execução da reforma do direito de menores, consubstanciada pela Lei de

Protecção das Crianças e Jovens em Perigo e, com especial impacto nos

serviços de reinserção social, a Lei Tutelar Educativa, que entraram em vigor

em Janeiro de 2001” (cf. preâmbulo).

O IRS, “órgão auxiliar da administração da justiça responsável pelas

políticas de prevenção criminal e reinserção social, designadamente nos

domínios da prevenção da delinquência juvenil, das medidas tutelares

educativas e da promoção de medidas penais alternativas à prisão” (cf. artigo

2.º), avoca, no domínio da jurisdição de menores, entre outras, as seguintes

atribuições: contribuir para a definição da política criminal, em particular nos

domínios da reintegração social de jovens e adultos e de prevenção da

delinquência; assegurar, nos termos da lei, o apoio técnico aos tribunais na

tomada de decisões no âmbito dos processos penal e tutelar educativo e dos

processos tutelares cíveis; assegurar, nos termos da lei, a execução de

medidas tutelares educativas; participar em programas e acções de prevenção

do crime, em especial nos domínios da delinquência juvenil; assegurar a

gestão dos centros educativos de menores e de outros equipamentos e

programas para apoio à reintegração social de jovens e adultos (cf. artigo 3.º).

Com a LOIRS, a divisão orgânica do IRS assume maior complexidade,

passando a possuir serviços centrais, divididos em serviços de coordenação e

apoio à actividade operativa e serviços de apoio à gestão e de administração, e

serviços desconcentrados, que são os seguintes: direcções regionais; núcleos

de extensão; direcção dos serviços de reinserção social nas Regiões

Autónomas dos Açores e da Madeira; e centros educativos (cf. artigos 12.º e

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234 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

24.º). Aqueles serviços de coordenação e apoio são, por sua vez, decompostos

em departamentos e estes em divisões185.

Na sequência da aprovação do Programa de Reestruturação da

Administração Central do Estado (PRACE), através da Resolução do Conselho

de Ministros n.º 124/2005, de 4 de Agosto, foi publicado o Decreto-Lei n.º

206/2006, de 27 de Outubro, que aprova a reforma orgânica do Ministério da

Justiça e marcou uma nova etapa dos serviços de reinserção social. Nas

palavras do legislador, “as alterações introduzidas na Direcção-Geral dos

Serviços Prisionais e no serviço de reinserção social, agora com estatuto de

direcção-geral, fazendo-se eco dos estudos levados a cabo sobre o sistema

prisional e de reinserção social e, mais latamente, sobre a justiça penal e de

menores, abrem caminho a profundas reformas nestes domínios, sobretudo na

vertente de gestão e administração dos estabelecimentos de reclusão ou de

acolhimento de menores e dos recursos que lhes estão afectos” (cf.

preâmbulo). É assim que o IRS passa a integrar a administração directa do

Estado, no âmbito do Ministério da Justiça, transformando-se em Direcção-

Geral de Reinserção Social (DGRS) (cf. artigos 4.º e 27.º).

A DGRS, a quem compete a missão de “definir e executar as políticas de

prevenção criminal e de reinserção social de jovens e adultos, designadamente

pela promoção e execução de medidas tutelares educativas e de penas e

medidas alternativas à prisão” (cf. artigo 15.º), no que respeita à jurisdição de

menores, perde, com esta Lei Orgânica do Ministério da Justiça, a competência

para assegurar o apoio técnico aos tribunais na tomada de decisões no âmbito

dos processos tutelares cíveis186, que é transferida para o Instituto da

185 Para uma descrição mais pormenorizada da orgânica do IRS após a LOIRS de 2000, cf.

Gomes (coord.), 2003: 196-198.

186 Nos termos do artigo 15.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Ministério da Justiça de 2006, a DGRS prossegue as seguintes atribuições: a) Contribuir para a definição da política criminal, especialmente nas áreas da reinserção social de jovens e da prevenção da criminalidade; b) Assegurar o apoio técnico aos tribunais na tomada de decisão no âmbito dos processos penal

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

235

Segurança Social, nos termos do artigo 38.º e 18.º, n.º 2, al. j), do Decreto-lei

n.º 211/2006, de 27 de Outubro, que aprova a Lei Orgânica do Ministério do

Trabalho e da Solidariedade Social.

Assim, em 2007, é aprovado o Decreto-Lei n.º 126/2007, de 27 de

Abril187, na sequência da Lei Orgânica do Ministério da Justiça de 2006, que

estabelece a estrutura orgânica da actual DGRS. Segundo o seu preâmbulo, “o

novo modelo orgânico dos serviços de reinserção social reflecte a missão

fundamental da DGRS, serviço responsável pelas políticas de prevenção

criminal e reinserção social. Nesse sentido, assume-se como objectivo

prioritário a necessidade de melhorar e potenciar os processos de reinserção

social de pessoas menores de idade (entre 12 e 18 anos), de jovens adultos

(entre 18 e 21 anos) e de adultos, designadamente, nos domínios da

prevenção da delinquência juvenil e da promoção de medidas penais

alternativas à prisão determinadas pelo tribunal, tendo a sua execução na

comunidade o objectivo de permitir a reabilitação do jovem ou adulto sem o

privar do contacto diário com a realidade social”. A especialização, o aumento

dos níveis de operacionalidade e de eficácia e a redução de custos (através da

e tutelar educativo; c) Assegurar a execução de medidas tutelares educativas e de penas e medidas alternativas à prisão, a execução de penas e medidas com recurso a meios de vigilância electrónica e colaborar com a DGSP na preparação da liberdade condicional, assegurando o seu acompanhamento, bem como o da liberdade para prova; d) Conceber, executar ou participar em programas e acções de prevenção da criminalidade e contribuir para um maior envolvimento da comunidade na administração da Justiça penal e tutelar educativa, através da cooperação com outras instituições públicas ou particulares e com cidadãos que prossigam objectivos de prevenção criminal e de reinserção social; e) Assegurar a gestão e segurança dos centros educativos e de outros equipamentos destinados à reinserção social de jovens; f) Promover a formação técnica especializada dos seus funcionários e colaborar nas acções que lhes sejam dirigidas; g) Recolher, tratar e divulgar os dados estatísticos relativos aos centros educativos e à reinserção social e colaborar com a DGPJ na compilação dos dados que devam integrar a informação estatística oficial na área da Justiça; h) Programar as necessidades de instalações dos serviços de reinserção social e colaborar com o IGFIJ, I. P., no planeamento e na execução de obras de construção, remodelação ou conservação; i) Assegurar o fornecimento e a manutenção dos equipamentos dos serviços de reinserção social e centros educativos, em articulação com o ITIJ, I. P. e a estrutura do MJ responsável por aquisições.

187 Alterado, posteriormente, pelo Decreto-Lei n.º 121/2008, de 11 de Julho, sem mutações significativas.

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236 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

eliminação de estruturas intermédias) são objectivos eleitos pelo legislador

como fundamentais.

A DGRS, serviço central da administração directa do Estado dotado de

autonomia administrativa, dirigida por um director-geral, coadjuvado por três

subdirectores, passa a dispor de sete unidades orgânicas desconcentradas (as

delegações regionais), coincidentes com o nível II das NUTS, sendo os centros

educativos também designados por unidades orgânicas desconcentradas (cf.

artigos 1.º e 3.º). Nos termos do artigo 6.º, n.º 2, em cada delegação regional

ou centro educativo actuam equipas de reinserção social.

A des(res)estruturação das equipas

Os serviços de reinserção social sofreram, assim, ao longo dos anos,

diversas reestruturações, tendo como pano de fundo as diferentes atribuições

que lhe foram cometidas. Os movimentos de ampliação ou redução das suas

competências foram determinando mutações na constituição e na organização

das equipas que têm a seu cargo o acompanhamento do menor no âmbito das

diferentes medidas aplicadas. Com maior destaque, realçam-se dois momentos

chave da vida dos serviços de reinserção social, que representam movimentos

opostos (um de dilatação da composição das equipas, e outro da sua

compressão): o ano 1995, em que o então IRS recebe as competências da

antiga DGSTM, bem como o corpo de funcionários que lhe era afecto; e o ano

2006, em que a já DGRS perde a competência no âmbito dos processos

tutelares cíveis, bem como um conjunto alargado de técnicos.

Nós aqui temos quatro colegas que foram para a Segurança Social. (…) Para a Segurança Social foi uma colega que era psicóloga que trabalhava na área de Família e Menores que é uma excelente profissional (Ent. 3TRS).

Os técnicos de reinserção social entrevistados, bem como outros

operadores do sistema que, com frequência, se articulam com estes serviços,

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

237

atribuem a estas sucessivas adaptações dos serviços de reinserção social

duas consequências fundamentais no funcionamento interno das equipas. A

primeira tem a ver com o actual desequilíbrio na configuração das equipas e a

falta de critérios fundamentados para a sua composição. Do trabalho de campo

resultou que as diferentes valências, que só uma equipa multidisciplinar

tornaria possível executar, não são cumpridas. Recorda-se que a importância

da intervenção multidisciplinar está presente em todos os estudos sobre esta

temática. Ora, acontece que a composição das equipas não tem, ou pelo

menos não tem sempre, como critério, a formação de origem dos diferentes

técnicos, sendo possível constatar situações absolutamente assimétricas, o

que dificulta ou impede mesmo a definição e execução de determinados

programas ou abordagens, ficando a intervenção com o jovem muito aquém do

objectivo a que se deveria propor.

Penso que faz todo o sentido haver, nomeadamente, duas grandes áreas, a área social e a psicológica, que são as duas áreas charneira para a intervenção. (…) mas as equipas estão desequilibradas, as opções… Por exemplo, nós tínhamos mais psicólogos nos centros... do que os outros centros todos. Nós tínhamos um psicólogo para cada unidade e alguns centros não tinham nenhum. Por isso, era impossível, nesses centros, desenvolverem certo tipo de intervenções (…). Eu penso que tem que ser definido o que se quer para a intervenção e definir-se qual o perfil do sujeito, do técnico. Em 2007 com a saída do cível da nossa competência também saíram uns colegas. (…) Eu não consigo perceber… Houve pessoas que saíram, ou quiseram sair, mas penso que houve uma descaracterização de técnicos que ficaram. As pessoas estavam sobrecarregadas e têm muito trabalho… (Ent. 4TRS).

A indiferenciação da carreira de técnico de reinserção social,

englobando na mesma carreira técnicos com diferentes valências formativas, é

avançada como uma das explicações causais da falta de atenção que é dada à

colocação dos técnicos nas diversas equipas em função da sua mais valia de

conhecimento.

A carreira é outra matéria. Para aplicar a medida de internamento é preciso relatório de perícia e a perícia tem um valor brutal em termos judiciais. Quem faz isso são os psicólogos, mas eles são técnicos de reinserção social como os outros. Não têm diferenciação de carreira e é outro mal entendido tremendo que não sei se algum dia se vai resolver. Pode ser agora com a criação da Ordem dos Psicólogos e ao que parece os psicólogos para fazer a avaliação psicológica tem de estar inscritos na Ordem. Mas, a maior

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238 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

parte dos psicólogos não tem actividade privada fora daqui. Há muito poucos. (…) São histórias de uma instituição que optou sempre por essa carreira generalista do técnico de reinserção social sem fazer a diferenciação dos conhecimentos, o que considero um equívoco e sempre defendi a diferenciação na intervenção (Ent. 5TRS).

Este entrevistado chama, igualmente, a atenção para o facto de a

colocação dos diferentes técnicos nas várias equipas e a atribuição de

competências às mesmas ter que levar em linha de conta outros factores,

como, por exemplo, a garantia de que o técnico utiliza frequentemente os seus

conhecimentos especializados por forma a não perder conhecimento.

A formação dedicada tem que ser praticada. Estava a lembrar-me, por exemplo, da equipa x, que deve ter uma perícia de 6 em 6 meses. Ora, mesmo que [o psicólogo] faça [perícias de seis em sei meses] perde rotinas. Ele pode ter uma matriz de compreensão do problema, que não se perde, mas depois na avaliação psicológica há um conjunto de instrumentos que são auxiliares no diagnóstico e para os quais é preciso ter rotinas. (…) Normalmente temos dois tipos de instrumentos: o menor responde, nós assinalamos, colocamos no computador, no programa, e sai o resultado. Outra via mais rica tem a ver com a percepção e a projecção do sujeito. Tem a ver com o fenómeno projectivo, eu ponho no exterior alguma coisa que vem dentro de mim e isso é outro trabalho que a psicologia tem desenvolvido e que é muito enriquecedor para conhecer o indivíduo (Ent. 4TRS).

A segunda consequência que os técnicos entrevistados relacionam mais

proximamente com as alterações de competências dos serviços de reinserção

e que se prende, também, de forma particular, com a perda das competências

relacionadas com os processos tutelares cíveis é o enfoque excessivo nos

comportamentos delituosos, que deriva numa visão predominantemente

penalista por parte dos próprios técnicos, que actuam em ambas as valências.

Quando houve este enfoque da Direcção-Geral no delito eu disse para mim “finalmente” mas senti logo um arrepio. Porquê? É o Penal que esmaga. Para mim esse é o problema (Ent. 4TRS).

O enfoque no delito faz perder de vista, na intervenção que se revelar

necessária com o jovem, as várias vertentes do problema que culminaram na

prática pelo jovem de um facto qualificado pela lei como crime e que, numa

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

239

perspectiva de educação para o direito e de prevenção da reincidência, são

fundamentais ter em conta. Voltaremos a esta temática mais à frente, por ora

apenas ressaltamos que esta é uma preocupação evidenciada pelos técnicos

de reinserção social.

A visão penalista da intervenção, em sede da delinquência juvenil,

encontra várias manifestações. Por exemplo, a visão securitária é a mais

sentida nos centros educativos, evidenciado as limitações de intervenção na

execução da medida de internamento.

[Vejo] claramente no Centro Educativo, essa contaminação desta visão penalista. Não há nada para mudar, não queremos mudar coisa nenhuma, é controlar… Portanto, toda essa dimensão de desenvolvimento que existe na Lei Tutelar Educativa é minimizada (…) (Ent. 4TRS).

Também a atribuição, simultânea, ao mesmo técnico, de processos

tutelares educativos e de processos penais, a sobrecarga das equipas de

reinserção social com as solicitações no âmbito do processo penal, a limitação

a nível de recursos humanos, contribuem para esta tendência de invasão da

visão penalista no âmbito da intervenção tutelar educativa.

Salienta-se, aliás, contrariando a ideia da necessidade de uma

intervenção muito próxima do cometimento do facto ilícito, que também os

próprios tribunais de família e menores acabam por marginalizar os processos

tutelares educativos, dada a urgência e o volume dos processos de promoção

e protecção.

Eu quando vim para aqui, estive com os quatro magistrados dos tribunais de família e disseram-me todos que a protecção esmaga, sufoca, é um conjunto de situações muito problemáticas, com muitos problemas, nomeadamente, com a as institucionalizações dos menores em risco. A parte do tutelar é menor. Evidentemente que os que os preocupa mesmo é a protecção, não só pelo volume de trabalho, como pela realidade das situações, e isso cria-me muita apreensão. (…) É preciso formação. Eu quando vi esta especialização da Direcção-Geral [no delito] também cedo percebi que havia um risco da penalização da intervenção tutelar e penso que, neste momento, isso é muito visível especialmente nos Centros Educativos (Ent. 4TRS).

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240 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Uma outra questão levantada prende-se, ainda, com as condições de

exercício das funções dos técnicos, que dificultam e diminuem a qualidade da

sua intervenção no âmbito das várias tarefas concretas. A pressão das

solicitações por parte dos tribunais esbarra, por um lado, como os limitados

recursos humanos existentes e, por outro, com a exigência de execução de

tarefas meramente burocráticas que vão afastando os técnicos do terreno

social.

O número de solicitações ou acompanhamentos de execuções de

medidas por técnico diverge entre equipas, não estando definido (ou, pelo

menos, não sendo respeitado) um número ideal de processos desta natureza

atribuído a cada técnico, que executa as tarefas inerentes, em acumulação

com outro tipo de tarefas e intervenções.

Aqui na equipa [quantos acompanhamentos de medida são atribuídos a cada técnico]? Conforme as solicitações vêm. Mas têm 4 ou 5 casos, não têm mais e nem podem.… (Ent. 3TRS).

Temos estudado muitos modelos, temos feito grandes pesquisas, e de todos os modelos apontam para que o case load dos técnicos que intervêm junto dos jovens seja de 5 jovens por técnico, mas [aqui a média é] para aí uns trinta. E falo só de acompanhamentos, porque depois há todo o pré-sentencial, que acaba por ser um tsunami para os acompanhamentos, porque não deixa tempo livre (Ent. 1TRS).

Tem sido feito um bom caminho, e a própria experiência dos técnicos que trabalham com os jovens tem contribuído muito (...) mas, neste momento, vai necessariamente, começar a ser pior porque temos menos horas, menos tempo disponível para acompanhar as medidas. Ou seja, estamos cada vez a saber melhor lidar com as coisas, cada vez a caminhar num sentido de ir ao ponto fulcral – porque claro tem de se perceber que não podemos intervir em tudo – e depois não temos material humano para executar correctamente as tarefas (Ent. 2TRS).

Salientam as exigências com tarefas de “trabalho de gabinete”, de

carácter geral, que retiram tempo à intervenção junto do meio social e à

necessária articulação com outras organizações, em especial da comunidade,

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

241

no desenvolvimento de programas associados à execução de determinada

medida.

Nós estamos muito prejudicados em termos de tempo para ir para o terreno. Essa é que a génese do nosso trabalho e cada vez mais estamos fechados no gabinete a trabalhar no computador. A escrever emails, a receber emails, a executar tarefas para a estatística, a apresentar resultados e o nosso tempo e deles [dos restantes técnicos] para o exterior está muito prejudicado. O técnico está muito limitado em termos do que é de facto a sua génese operativa, que é trabalhar no meio social com o jovem, com o arguido, com a comunidade em geral, com as instituições (Ent. 3TRS).

Para realçar a inoperância do sistema nesta matéria, este entrevistado

dá o seguinte exemplo.

Há já há muitos anos estive em França, em Lyon, e visitámos o Tribunal de Lyon. Eu vi a forma como, já nessa altura, os colegas trabalhavam. Trabalhavam num gabinetezinho simples ao lado do magistrado, mas tinham ali só “x” tempo de permanência, porque eles trabalhavam por bairro, por zonas geográficas e passavam o tempo no exterior e, no fim dia, tinham uns formulários quase para preencher de cruz com poucos espaços em aberto, onde davam conta a magistrado, periodicamente, todas as semanas, da evolução da situação. Era um trabalho espectacular e não tem nada a ver com este tipo de gabinetes, ao pé deles é um luxo, um super-luxo (Ent. 3TRS).

A reorganização judiciária e a adaptação das equipas às NUTS de

nível II, centralizando a localização das equipas e alargando a sua competência

territorial, demanda dificuldades acrescidas.

É complicado pelo seguinte: porque nos deparamos com falta de recursos humanos, falta de viaturas, falta de tempo, obviamente, e mais distâncias. E, portanto, às vezes para trabalhar um caso, uma tarde não chega. Por exemplo, para X é uma tarde. Portanto, houve uma dispersão maior. A reorganização das comarcas levou a uma maior dispersão em termos geográficos (Ent. 5TRS).

Prevenção da criminalidade

Uma das missões inscritas na Lei Orgânica da Direcção-Geral da

Reinserção Social é a de prevenção da criminalidade, seja através do

contributo para a definição da política criminal nessa matéria, seja através da

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242 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

concessão, execução ou participação em programas e acções de prevenção da

criminalidade (cf. artigo 2.º, n.º 2, al. a) e d)). Alguns entrevistados denunciaram

a falta de incentivo nesta área particular de actuação da Direcção-Geral de

Reinserção, que se encontra ainda por cumprir, não só por esta entidade, mas

ainda pelas restantes instituições que prosseguem tal objectivo. Contudo, como

foi ressaltado nos estudos acima referidos, esta é uma área crucial no âmbito

da delinquência juvenil. Pouco adianta o desenvolvimento de grandes

programas de acção, no âmbito da execução de medidas em concreto, se

pouco se aposta em políticas e medidas de prevenção.

Parece-me que, perante a nossa realidade, o que há mais é um problema de prevenção e depois, no fim, de reintegração (P8).

Primeiro, a prevenção, nós não temos cultura de prevenção primária e não tem sido muito o esforço que têm feito as comissões de protecção juntamente com a rede social, para que os programas de prevenção primária sejam uma realidade (P6).

A perda de competências na área tutelar cível é, também, apontada

como uma das razões para o desinvestimento na prevenção.

No Tutelar Cível nós podemos fazer (…) Eu tinha pedidos do hospital, não tinha nada a ver com o tribunal. Tinha pedidos das escolas, do Centro de Emprego.... Fiz trabalhos de intervenção com as escolas: a escola secundária com miúdos problemáticos (...). Foi muito interessante (Ent. 4TRS).

Chama-se a atenção para o facto de, sendo a prevenção da

criminalidade uma das missões da DGRS, não se mostra necessário levar a

cabo quaisquer alterações ao nível das competências da DGRS para o seu

cumprimento, mas sim uma reestruturação dos serviços que permita um

contacto mais próximo dos técnicos com o meio social.

Eu penso que o serviço de uma forma geral precisaria de uma reorganização e de uma reestruturação, centrando-se na sua génese, que está escrita na carta de missão da Senhora Directora-geral e que faz parte da lei orgânica. É fundamental apostar na

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

243

prevenção da delinquência, na reincidência, o que pressupõe um efectivo trabalho exterior intenso, com recursos humanos adequados em formação, em qualidade. É preciso inverter um pouco o que está, mais para o exterior e menos para dentro. Essa é a questão de fundo (Ent. 3TRS).

Para fazermos uma intervenção mais eficaz e mais especializada e aproveitando o conhecimento do terreno, – quando falo do terreno falo de que aquele jovem relaciona-se com este e que a figura de referência é aquele, e que se este jovem está envolvido com o outro jovem é uma determinada gravidade, mas se for com outro grupo já é outra –, ou seja, aproveitar este conhecimento para fazer uma intervenção junto dos jovens, a tal prevenção secundária e mesmo terciária. Nós precisamos de ter mais pessoas para poder chegar e estar mais tempo com estes jovens. Se interviermos todos os dias, todas as semanas, a longo prazo poupa-se muito dinheiro e tempo, quer aos tribunais, quer às pessoas e quer, em última análise, e que é mais importante, à própria segurança do cidadão (Ent. 2TRS).

A fase pré-sentencial

Os serviços de reinserção social, especificamente as equipas do IRS,

até 2007, e da DGRS, a partir de tal data, têm tido, desde o início da entrada

em vigor da Lei Tutelar Educativa, uma intervenção essencial na modelação

dos contornos do próprio processo tutelar educativo. Além da sua acção no

âmbito do acompanhamento da execução de medidas tutelares educativas

aplicadas, a sua intervenção é, desde logo, essencial no primeiro momento do

processo, na condução do caso concreto, para melhor aferição dos caminhos a

trilhar pela autoridade judiciária, seja o Ministério Público ou o juiz, dependendo

da fase processual em causa.

Assim, nos termos do artigo 71.º da LTE, o tribunal, aqui indicado em

sentido amplo, englobando tanto o Ministério Público como o Juiz, pode

socorrer-se, como meio de obtenção de prova da informação ou de relatório

social, com o objectivo de conhecer a personalidade do jovem, a sua conduta e

inserção sócio-económica, educativa e familiar, sendo obrigatória a elaboração

de relatório social com avaliação psicológica quando for de aplicar medida de

internamento em regime aberto ou semiaberto. Ao passo que a informação

pode ser solicitada, em alternativa, aos serviços de reinserção social ou a

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244 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

outros serviços públicos ou entidades privadas, o relatório social é

necessariamente elaborado pelos serviços de reinserção social.

Resulta do trabalho de campo desenvolvido que, na fase de inquérito

tutelar educativo, o Ministério Público, além de eventuais informações que

podem ser pedidas às escolas e IPSS com as quais o jovem tenha contacto,

em regra, solicita aos serviços de reinserção social relatório social, com vista à

aferição da eventual necessidade de educação para o direito.

Este momento de avaliação e diagnóstico, por parte dos técnicos de

reinserção social, é qualificado pelos próprios técnicos como um ponto

fundamental da acção tutelar educativa, identificando-o como um momento de

verdadeira intervenção e não de mero diagnóstico, permitindo a dinamização

de vários elementos do contexto social do jovem, nomeadamente, a família e a

escola.

Um entrevistado relata dois exemplos que consideramos expressivos,

não só da importância que o relatório pré-sentencial pode assumir na definição

da medida a aplicar, mas também da importância do trabalho em rede com o

envolvimento de actores da comunidade e da família, mas que para o qual é

preciso dispor de técnicos e de tempo.

Tivemos recentemente (..) três miúdos suspeitos de terem estragado um campo de golfe e eles recusam, dizem que entraram, mas o senhor diz que eles partiram coisas no valor de quase 4 mil euros. Eles disseram que não, que realmente entraram, nem tiveram de saltar nada, porque nem tinha vedação, mas só mudaram os sinalizadores de sítio, foi o que fizeram e não fizeram mais nada. Eu fui à escola e achei a directora de turma fabulosa. Já tinha percebido várias coisas, mas ainda não tinha dado o passo seguinte. Era um miúdo do 10º ano que estava a acabar de chegar àquela escola e eu falei com a professora da escola onde ele fez o 3º ciclo. Falei com a mãe – uma situação complicada e problemática com um divórcio litigioso… Portanto, pai, mãe, o miúdo, professora... activei ali um conjunto de pessoas através da escola (…). Tem ali algum risco, para mim não tanto do ponto de vista delinquencial. É um miúdo com estrutura, que se descambar é um rapaz mais para o consumo. (…) Mas, o que quero salientar é a activação de recursos (Ent. 4TRS).

A equipa de.... fez um relatório social de um rapazinho com 12 anos. O ano passado chumbou e envolveu-se com um grupo de miúdos em desacatos e praticou furtos. De tal maneira que a colega achou que era de ponderar a medida de internamento. Deu essa notícia ao Tribunal e o Tribunal, como manda a lei, pediu um relatório social e psicológico e

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

245

veio parar a mim (...) Eu fiz a avaliação e a minha proposta é uma imposição de obrigações porque me dei conta que há um conjunto de intervenções que, entretanto, se mobilizaram desde o final do ano lectivo passado, quando se deu conta que estava mesmo a derrapar… É um miúdo inteligente. Havia um grupo e a intervenção tutelar do tribunal desmembrou o grupo. Um miúdo mais velho daquele grupo está a cumprir medida de internamento no Porto. A escola percebeu que tinha que os separar e ele foi para outra escola. Falei com o presidente do conselho executivo da escola que o recebeu, um homem interessantíssimo, atentíssimo, que concordou com a minha visão que o rapaz estava outro, tinha percebido… E, entretanto, eu descubro que há uma psicóloga no centro de saúde que tinha começado a fazer uma coisa com o miúdo em termos de intervenção, com uma queixa que tinha vindo da parte da Comissão de Protecção (…) Acabei de lhe ligar. Vou lá na segunda-feira comunicar-lhe aquilo que descobri. (…) houve um gato que entrou na vida do rapaz, além do avô. Aquilo teve uma alteração porque o miúdo começa a cuidar, a ter preocupações de cuidado e envolvimento emocional e isso ajudou o miúdo. Mas, eu dei conta de outras coisas e eu telefonei-lhe a dizer que vou lá e ela também manifestou interesse… Porque eu fui falar com ela saber se ela já tinha feito alguma avaliação para não estar a repetir provas… Ela estava acompanhá-lo, eu fiz o que tinha a fazer, para lhe dar a conhecer (…) No contexto institucional, fui mexer com estas três entidades: avó, Centro de Saúde e escola e levo recado a todos. Isso aconteceu ali, está a acontecer em ..., com dois ou três casos… Na segunda-feira ligou-me a directora de turma da escola de ... – tenho ali o relatório que ainda nem fiz – estive lá na quarta-feira. (…) Um miúdo deu uns socos e uns pontapés a um colega no intervalo na escola e o pai do rapaz vitima queixou-se. (…) Eu conheço o miúdo, que dizem que não fala nada, mas eu tive que o mandar embora, porque fala-se dos cavalos e ele era outra pessoa. Depois de falar com o pai e com a mãe e de falar com a escola percebi uma outra parte que ninguém tinha percebido (…). Portanto, eu é que levei para a escola a ideia que tinha ficado da entrevista com os pais. E levei à mãe depois o que se tem passado do lado da directora de turma (Ent. 4TRS).

A intervenção pré-sentencial dos técnicos de reinserção social é vista

como o momento em que podem “agarrar o miúdo” (Ent. 4TRS), criando uma

dinâmica de intervenção que permite, rapidamente, impulsionar a mudança do

contexto social dojovem, envolvendo os diferentes agentes que podem ter uma

intervenção positiva na alteração do seu comportamento e, por essa via,

determinar a natureza da medida a aplicar.

Em consonância com as dificuldades de resposta acima já referidas, foi

também salientada a demora na execução do relatório social pré-sentencial,

cujo prazo de 30 dias é, por vezes, largamente ultrapassado.

Como é amplamente referido ao longo deste relatório, a rapidez da

intervenção, devidamente articulada com a comunidade e com a família,

relativamente ao jovem que assume comportamentos anti-sociais que

configuram um ilícito criminal é fundamental para que seja eficiente. Neste

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246 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

campo, como temos vindo a demonstrar, os serviços de reinserção social

desempenham um papel crucial. Daí a importância de se organizarem e serem

dotados dos meios essenciais para o desempenho cabal dessa função.

A extensão da intervenção dos técnicos de reinserção social na fase pré-

sentencial é, no entanto, diferenciada. Em áreas geográficas em que o tipo de

delinquência juvenil é mais grave e o número de solicitações mais elevado, a

acção daqueles técnicos nesta fase tende a ser, efectivamente, de mera

avaliação, estando mais presentes os constrangimentos acima referidos.

A primeira condicionante é a distância entre os técnicos de reinserção

social e o contexto social do jovem. Resultou do trabalho de campo que,

apesar do esforço em avaliar o jovem no seu contexto social, as condições de

que dispõem as rotinas e práticas enraizadas, não raras vezes, determinam

que seja o jovem a deslocar-se à equipa de reinserção social e não o técnico a

deslocar-se ao ambiente daquele.

Nós tentamos, também, aproximar-nos dos jovens, portanto, se são jovens de X tentamos que sejam atendidos em X. Em X também temos um local de atendimento que é nos Bombeiros de X. Não quer dizer que façamos sempre isso, até porque para a fase pré-sentencial, às vezes também os convocamos para aqui e não vamos ao seu encontro. E estou a lembrar-me também das escolas, por vezes vamos ter com os jovens às escolas e atendemo-los lá, mais para as medidas (Ent. 1TRS).

Apesar de mais visível nos grandes centros urbanos, com um grande

volume de solicitações dirigidas à DGRS, a distância entre o técnico de

reinserção social e o meio social do jovem também ocorre em comarcas de

menor dimensão, fruto de opções organizativas por parte da DGRS.

Efectivamente, a criação de equipas especializadas determinou a acumulação

numa única equipa da competência para a avaliação pré-sentencial de um

conjunto de circunscrições territoriais desconcentradas. Daí que tenham sido

referidas práticas de convocação do jovem para comparecer na equipa de

reinserção social, não sendo o técnico a deslocar-se à localidade do jovem,

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

247

bem como a acrescida dificuldade de intervenção por parte de técnicos que

não têm um conhecimento mais próximo daquele meio.

Para já, não conheço X… Perco-me. Não conheço os recursos, é preciso estarmos integrados no meio e nós não estamos (Ent. 4TRS).

A intervenção articulada junto da comunidade e a criação dos elos de

ligação entre os vários agentes do sistema de apoio ao jovem, apesar de

consideradas de importância capital, são também reclamadas para outras

entidades que não as equipas de reinserção social, embora elas possam

beneficiar dessa articulação. Alguns técnicos de reinserção social

entrevistados, atenta a limitada intervenção por parte do Instituto de Segurança

Social que intervém no âmbito de um apoio concreto, consideram que, mais do

que o Estado, essa intervenção deve recair sobre a sociedade civil organizada.

Acho fundamental haver uma entidade que esteja atenta a que o jovem, numa idade ainda precoce, precise de ajuda para, por exemplo, se aguentar na escola, ter explicações, ou para ter uma ocupação em vez de estar com os outros em actos de violência, isso é fundamental e pode fazer diferença (Ent. 2TRS).

A convocação de entidades privadas (ONG, IPSS, etc.) para assumir

esta tarefa surge “a par e passo” com a denúncia de um défice de recursos

humanos por parte das equipas de reinserção social que impossibilitam um

acompanhamento mais próximo da situação do jovem.

A posição assumida pelos técnicos de reinserção social acaba por ser

imbuída de alguma contradição, uma vez que se, por um lado, se defende com

veemência, os efeitos positivos de uma intervenção tutelar pré-sentencial,

reclamando a abertura de uma maior espaço de actuação aos técnicos de

reinserção social nessa fase, por outro lado, invoca-se, frequentemente, a

impossibilidade prática do desenvolvimento da actividade pré-sentencial.

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248 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A segunda condicionante prende-se com a exígua importância que a

elaboração dos relatórios sociais apresenta na avaliação individual do técnico

para efeitos de carreira profissional.

[N]o SIADAP (…) a execução de relatórios tem um peso. Foi conferido ao relatório social pré-sentencial tutelar educativo o peso de um ponto e meio o que é uma anedota. O máximo é quatro, que é, por exemplo, a perícia. (…) não faz sentido nenhum porque as pessoas são penalizadas por isso. Isso não é valorizado (Ent. 4TRS).

Da elaboração do relatório social à aplicação da medida

Após a elaboração do relatório social, o técnico de reinserção social que

o produziu apenas retoma, em regra, contacto com a situação, caso haja

alguma solicitação do tribunal nesse sentido, nomeadamente, para prestar

informações actualizadas sobre a concreta situação do jovem ou para prestar

depoimento em tribunal. Resultou do trabalho de campo que tal solicitação só

surge quando, entre o momento da elaboração do relatório social e a data do

julgamento, decorra um período de tempo que leve a autoridade judiciária a

considerar a eventualidade de ter ocorrido uma qualquer alteração.

No caso de haver uma grande distância a nível temporal entre a decisão e o relatório, poderá, ou não, ser ouvido o técnico em julgamento. Isso passará, naturalmente, pela decisão do juiz (Ent. 2TRS).

Depende do tempo que vai desde que é feito o relatório pré-sentencial até que… às vezes passa-se mais de um ano e o jovem já não é o mesmo (Ent. 1TRS).

Alguns técnicos defenderam, no entanto, que o envolvimento sistemático

do técnico no desenrolar de todo o processo judicial traria benefícios,

essencialmente de duas ordens de razão. Por um lado, permitiria que o técnico

de reinserção estabelecesse uma ponte mais profícua entre o sistema judicial,

a sua linguagem encriptada e o jovem. Por outro lado, possibilitaria um

acompanhamento mais próximo e uma avaliação mais actualizada da situação

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

249

concreta, o que é tanto mais relevante quanto o facto de a plasticidade dos

contextos do jovem ser em grau bastante elevado. Um técnico entrevistado

sintetiza da seguinte forma estas duas vantagens.

O ideal, naturalmente, é que nós estivéssemos presentes [ao longo do processo] por duas ordens de razão. A primeira é que poderíamos ter uma atitude pedagógica que o tribunal não tem, de explicar. Quando há uma audiência preliminar, o jovem sai do tribunal a pensar que não lhe aconteceu nada e, às vezes, as coisas piores acontecem nesse momento. Ou então vai a tribunal à leitura de sentença e não percebe nada e ninguém lhe explica, e sai do tribunal com uma sensação de impunidade que propicia a ocorrência de novas situações. Nós devíamos lá estar nem que fosse para lhes dizermos várias vezes de maneira a que percebessem. Se nós não o fazemos, alguém tem que o fazer porque isso é um erro grave do tribunal. A segunda é que nós começamos logo ali a ganhar o miúdo, porque, por vezes, as coisas mudam muito rapidamente e nós temos essa capacidade de perceber e de falar com as pessoas na comunidade e perceber que aquele jovem teve aquele processo e participações naquele momento, mas depois mudou. E a própria lei diz que a aplicação da medida deve ter a ver com o próprio momento da aplicação (Ent. 2TRS).

Aquelas dimensões, muito próprias dos processos tutelares educativos,

foram uma constante nas entrevistas realizadas no presente projecto de

investigação. A elevada mutabilidade das situações envolvendo jovens exige

que a informação dada ao tribunal, e com base na qual este irá proferir uma

decisão, deva ser o mais actualizada possível.

O relatório pré-sentencial, normalmente, é suficiente. Mas, como eu disse, a nível da tutelar educativo as coisas mudam muito rapidamente. O que nós vemos na maior parte dos países europeus, onde há uma maior proximidade, até geográfica porque os serviços acabam por estar no tribunal, e existe obrigatoriedade de estar alguém da DGRS em todos os momentos judiciais (Ent. 2TRS).

A distância entre o mundo judicial e a realidade dos jovens, que tem

expressão máxima na ausência de compreensão da linguagem técnica

utilizada no tribunal, é um obstáculo à correcta realização dos fins previstos na

Lei Tutelar Educativa. A falta de compreensão pelo jovem do discurso que lhe é

dirigido não deixa de ser um fracasso do objectivo da medida. São identificadas

duas situações patológicas. Por um lado, o tribunal continua a dirigir-se aos

jovens numa linguagem encriptada, não possuindo a capacidade de

transformação dessa mera linguagem em comunicação explícita. Por outro,

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250 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

assiste-se à demissão, também nesta sede, do papel de explicação e

informação que deveria ser atribuído ao defensor.

Os menores antecipam com muita ansiedade a ida ao tribunal, vão ao tribunal, são ouvidos e depois vão embora. De seguida vêm aqui ter comigo e eu pergunto: “Então o que é que aconteceu?” E eles respondem que se vieram embora, que já está tudo feito. Acontece muitas vezes, um menor estar em acompanhamento comigo, ir a uma audiência a tribunal, e depois desaparece, está meses e meses sem aparecer, porque pensam que já está tudo resolvido. Ora, é evidente que não, porque aquele foi só mais um processo para além dos outros dois ou três que tem, mas como foi ao tribunal e não aconteceu nada, pensam que está tudo resolvido, que está “safo”. E isso é catastrófico (Ent. 2TRS).

É um pouco como as seguradoras, só quem lá trabalha é que percebe a linguagem. E aqui nos tribunais é o mesmo. Ninguém percebe a linguagem. Nem nós muitas vezes (Ent. 1TRS).

O tribunal pode ter uma linguagem própria até para o seu próprio funcionamento e entendimento das pessoas que fazem parte do processo judicial. Mas, tem de haver um momento de “tradução”. Explicar ao jovem. E depois questioná-lo também – “ explica lá o que é que aconteceu.” – e seu fizer esta pergunta ele vai dizer uma coisa completamente ao lado. E enquanto ele não disser aquilo que aconteceu e perceber minimamente o que é que vai acontecer e qual é a sua situação processual, não pode sair do tribunal (Ent. 2TRS)

188.

Apesar de a maioria dos técnicos entrevistados defender que seria

produtivo, pelas razões avançadas, a presença do técnico ao longo de todo o

processo judicial, levantam, em simultâneo, a questão da impossibilidade

188 Esta mesma questão é realçada por alguns órgãos de polícia criminal: “A relação que temos

com eles é mais fácil, é mais terra a terra, é muito mais directa. Nós percebemos a linguagem deles. Mas, a sensação que eu tenho é que eles, quando chegam ao tribunal, ou quando chegam a uma instituição, a linguagem que é usada é uma linguagem de adultos: “A medida de coação, medida tutelar…o que é isto?” Se ouvir uma sentença, não vai perceber muito bem… O que é uma medida suspensa, o que é isto na prática? Eu tenho amigos que me telefonam e perguntam: “Eu recebi uma notificação da DGV, da BT…explica-me lá o que isto quer dizer!” Uma coisa tão simples como uma multa de trânsito em que a pessoa é notificada, e tem lá todos os procedimentos, tramitação que ela pode seguir, e olha-se para aquilo e pensa-se “o que é isto?”. E são pessoas com alguma cultura, com alguma capacidade de entendimento que um miúdo não tem. Quando um adulto, muitas vezes com formação superior, não consegue perceber o que é que está num documento, como é que um jovem de 14 ou 15 anos há-de perceber. É preciso adaptarmo-nos” (Ent. 1OPC).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

251

prática de uma maior envolvimento dos técnicos, fruto do excessivo volume de

solicitações para o limitado espectro de recursos humanos.

O estatuto do técnico de reinserção social quando é notificado para

prestar depoimento em sede de audiência de julgamento, enquanto

testemunha, é, também, motivo para reacções adversas, reivindicando um

papel diferenciado, que lhes permitisse, por exemplo, prestar depoimento por

videoconferência ou serem ouvidos com prioridade relativamente aos restantes

convocados.

Nós temos o mesmo tipo de pressão que qualquer outra testemunha sofre e, para alguns técnicos da reinserção social, o momento de prestar depoimento no tribunal tem um stress adicional que não teria que ter. Se eu faço uma avaliação psicológica e vou falar como testemunha, é completamente diferente do que falar como perito. E eu sou perito, não sou testemunha, não vou falar sobre os factos, não vou falar sobre outra coisa que não aquilo que eu fiz, que só eu poderia ter feito. E esse estatuto, esse reconhecimento pelo tribunal é, para mim, fundamental. Depois, somos os últimos a ser ouvidos e, por vezes, nem somos chamados. Perdemos uma tarde de trabalho e ficam relatórios por fazer e miúdos por acompanhar. Tem que se arranjar um meio-termo (Ent. 2TRS).

O técnico não pode ser considerado uma testemunha. O técnico é um elemento auxiliar do magistrado na situação em causa (Ent. 3TRS)

189

Além desse factor, a desestabilização que a deslocação a tribunal para

prestação de depoimento gera nas equipas é objecto de enfoque nas várias

entrevistas realizadas.

Andamos de mala aviada, tipo caixeiro-viajante, uns dias estamos aqui – eu amanhã vou para … – andamos sempre com a pasta atrás, com processos para trás e para a frente... Suponhamos que o técnico está notificado para lá estar às nove e meia, mas atrasa-se pela manhã fora, tem que lá estar não se pode vir embora. Só se pode vir embora se for dado sem efeito, se for adiado ou se for dispensado. E isso traz-nos problemas, uma manhã ali sem fazer nada! (Ent. 3TRS).

189 Um outro técnico refere essa situação: “Os técnicos do Instituto Nacional de Medicina Legal,

que também faz perícias sobre personalidade e são chamados como peritos, e nós como testemunhas. Nós conhecemos o jovem, não porque o vimos passar na rua, mas porque somos profissionais e o tribunal nos solicitou esse conhecimento” (Ent. 1TRS).

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252 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Já temos andado à procura de várias soluções, nomeadamente com a Sra. Juiz Presidente, a ver se seria possível arranjarmos uma sala no tribunal com meios para irmos trabalhando e já nos foi dito que sim, mas ainda não demos o passo final. Já tentamos uma outra hipótese, como o tribunal está perto, que nos telefonassem quando fosse a altura de nos ouvirem e rapidamente chegávamos ao tribunal. Não é fácil porque o próprio tribunal é uma máquina cheia de rotinas e de hábitos (Ent. 1TRS).

4.2 O Ministério Público

A Lei Tutelar Educativa e, em geral, a jurisdição de menores, confere ao

Ministério Público um papel central. É ao Ministério Público que cabe a primeira

avaliação da ilicitude da conduta concreta e da melhor e mais adequada

resposta do direito à prática de factos ilícitos por uma criança e/ou jovem,

podendo arquivar liminarmente o inquérito190, suspender o processo ou

requerer a abertura da fase jurisdicional. Importa, por isso, conhecer um pouco

melhor, algumas questões levantadas no âmbito do exercício da acção do

Ministério Público.

A primeira, relaciona-se com a falta de orientações comuns da hierarquia

do Ministério Público, que leva a que se verifique uma grande disparidade de

práticas entre magistrados do Ministério Público, em vários aspectos. Por

exemplo, enquanto alguns assumem uma grande proactividade no

envolvimento com a comunidade, e, em especial, com a escola, outros não.

Tenho dado imenso peso aos relatórios dos estabelecimentos de ensino. Tive reunião com as escolas. Na zona de x tenho 30 liceus. Fiz reuniões com os directores de turma para explicar qual a competência das várias instituições. E aí começou a surgir toda uma série de preocupações (Ent. 2MP).

190 No caso do facto praticado qualificado pela lei penal ser um crime de consumo de

estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o MP poderá arquivar liminarmente o inquérito e encaminhar o jovem para serviços de apoio e tratamento.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

253

O Sr. Procurador tem feito um trabalho muito bom com as escolas, andou por todas as escolas do concelho a explicar o que poderia ser considerado crime ou não, que tipo de informação as escolas deveriam fornecer para ele poder também decidir (Ent. 1TRS).

A propósito da relação com a escola e da falta de orientações foi

concretamente, evidenciada a dificuldade de concretização do conceito de

“violência escolar”, que está a conduzir a actuações muito diferenciadas por

parte dos magistrados do Ministério Público. Há magistrados que acusam

“tudo”, e mesmo que acusam “de mais”.

Nós temos aqui um procurador que acusa tudo. Até acusa duas estaladas entre miúdos. Acusa mesmo sem haver queixa. Vai pelos artigos 146.º ou 143.ºdo Código Penal. Aqui faz-se um “direito penal de menores”. Criou-se uma secção de inquéritos de processos tutelares educativos. Há um procurador que faz todos os inquéritos. O inquérito é tramitado na secção do MP. Aqui entendeu-se que era preciso um MP a controlar os miúdos como criminosos. Ele acusa tudo. Mas depois os procuradores não seguem a mesma tendência nos julgamentos (Ent. 4J).

O procurador daqui acusa de mais. É uma estratégia definida pela procuradoria (Ent. 4J).

Foi, de facto, possível identificar no terreno diferentes “tendências”,

evidenciadas por aqueles profissionais, havendo procuradores que procuram,

em sede de inquérito, a solução mais adequada para o caso concreto,

enquanto que outros enviam, em regra, os casos para julgamento.

Se ler o estudo do OPJ, “Os Caminhos Difíceis da Justiça Tutelar Educativa”, encontra um dado extraordinariamente sintomático: dois anos depois da lei começar a ser aplicada, no MP é enorme a percentagem de casos que morrem e não seguem para diante. Pelos dados de que vou tendo conhecimento através dos contactos com o MP, tenho a mesma percepção. Isto é, apesar de existir a grande cifra negra que nem sequer chega ao conhecimento do MP, mesmo dos que chegam, uma percentagem enorme não segue para audiência. Mas, eu até estou satisfeitíssimo com isto, sabe porquê? Porque, justamente, a criminalidade que nós temos é uma criminalidade bagatelar (P4).

Aquela diferente atitude no processo tem, também, efeitos na aplicação

de mecanismos de diversão:

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254 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Em x resolviam-se muitos casos no Ministério Público. Aqui não. Vai tudo para a frente, vai tudo para julgamento (Ent. 5J).

O desempenho funcional do MP, convoca questões já identificadas no

âmbito de outros trabalhos: as questões da organização do MP; das

orientações da hierarquia (sem perda de autonomia dos magistrados); e da

formação especializada dos agentes para o exercício de determinadas

funções191. Estas são questões às quais urge dar resposta. Dada a

centralidade do desempenho funcional do MP na jurisdição de menores, é

fundamental que se implementem políticas concretas que permitam as

mudanças necessárias.

4.3 O Defensor

Ao defensor é atribuído um papel importante, não só na defesa dos

direitos e garantias do jovem delinquente, mas também na procura proactiva da

melhor solução no interesse do jovem e na sua educação para o direito. O

defensor pode, ainda, desempenhar um papel importante na ligação com a

família.

Na perspectiva dos operadores entrevistados, a atitude dos advogados,

que representam os jovens no âmbito de processos tutelares educativos, é

variável, desde defensores muito empenhados, a outros que não demonstram

interesse em conhecer o caso concreto e desempenham um papel passivo.

Há advogados que fazem o seu trabalho e vão para além do seu trabalho, em que se nota interesse genuíno. E outros que estão ali e “faça-se justiça.” Eu não consigo dizer que haja uma tendência de comportamento, varia muito. Mas não associo isso ao facto de ser ou não um defensor oficioso. Eu não consigo ver uma tendência, por serem mais jovens, mais

191 Cf. Gomes (coord.), 2009.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

255

velhos, por serem oficiosos. Normalmente os advogados que são pagos são mais diligentes. Mas, nos advogados oficiosos, eu já vi de tudo. Já vi advogados genuinamente preocupados com o que se estava a passar com o miúdo e advogados que o encaram como mais um fardo (Ent. 1OPC).

A opinião dos técnicos de reinserção social é mais assertiva quanto ao

papel dos advogados que consideram pouco diligentes e preocupados.

Na área tutelar educativa não estão muito nem por dentro, nem interessados. Normalmente, orientam o menor e a família para virem aqui aos serviços. Não temos casos em que o advogado faça um plano. Em penal temos casos em que o advogado faz tudo, faz os requerimentos todos e alguns em que o utente nem sabe o que são nem ao que se destinam mas, na tutelar educativa, não (Ent. 3TRS).

Ainda no plano do defensor, chama-se, também, a atenção para o pouco

conhecimento que, em regra, o advogado oficioso tem da situação, aparecendo

“no momento” e não havendo espaço para conversar com o jovem, havendo

mesmo alguns que não tentam sequer contactar os jovens.

O advogado, se é de famílias com posses económicas, até acompanha todo o processo, porque é um advogado contratado. Agora, grande parte das vezes são defensores oficiosos e aparecem apenas no momento (Ent. 1TRS).

Mas, também sabemos que há advogados que se preocupam em reunir com a família antes e conversam e explicam (Ent. 2TRS).

Ao actual sistema de nomeação dos defensores oficiosos foram

apontados problemas geradores de atrasos no início das diligências.

Por vezes, torna-se um entrave quando queremos ouvir o menor, porque perdemos imenso tempo. O SInOA, há alturas em que funciona bem, mas outras alturas funciona muito mal! (Ent. 4OPC).

A nova forma de nomeação do defensor traz algumas complicações porque nem sempre os nomes que aparecem estão disponíveis. Normalmente os que estão disponíveis não demoram muito tempo a chegar. E sempre que há um problema nós reportamos à Ordem

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256 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

dos Advogados. Mas, acho que à escala que estamos há todo o interesse em manter aleatoriedade nas coisas. Se existir escolha, que ela seja feita pela Ordem. Que especialize porque tinha vantagens para os menores ter um advogado que tivesse mais propensão para esta matéria (Ent. 1OPC).

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RISCO E DELINQUÊNCIA: ENTRE A PROTECÇÃO

E A LEI TUTELAR EDUCATIVA

5

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5. RISCO E DELINQUÊNCIA: ENTRE A PROTECÇÃO E A LEI TUTELAR EDUCATIVA

Introdução

Como amplamente temos vindo a referir, os autores que mais se têm

dedicado ao estudo do fenómeno da delinquência de crianças e jovens, bem

como os agentes que, no terreno, têm que aplicar a lei e, com ela, encontrar

respostas para o fenómeno, enfatizam a complexidade das causas dos

comportamentos delinquentes e reivindicam o adensamento da articulação

entre as instâncias judiciais, outras instâncias do Estado, em especial da

Segurança Social, a comunidade e a família. Atribuem à ausência de respostas

articuladas muito do insucesso (ou do fraco sucesso) das medidas no sentido

de que elas não estarão a responder aos objectivos de prevenção da

reincidência. Há um largo consenso de que esta é uma via que, entre nós, tem

que ser muito mais trabalhada e que será a chave para uma resposta global

com mais qualidade e mais eficácia. Por exemplo, alargar a duração de uma

medida em mais alguns meses pode ser benéfico e necessário, mas pouco

resolverá se depois se “deixar o jovem entregue à sua sorte”, sujeito dos

mesmos factores de risco e de exclusão social sem qualquer rede de

protecção.

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260 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

5.1 A articulação processual entre protecção e tutelar educativo

Uma primeira articulação, amplamente consensual, mas que é

necessário, na prática, densificar, é entre a via tutelar educativa e a via de

promoção e protecção. Se é certo que todos aplaudem a separação entre a

Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro)

e Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro), também reconhecem

que são muitas as situações “cinzentas” em que o problema emerge na “veste

da lei tutelar educativa”, mas que tem no seu lastro uma clara situação a

precisar da intervenção, muitas vezes já falhada, no âmbito tutelar educativo.

Como foi amplamente enfatizando, e sem deixar de lado a

responsabilidade pessoal, os “factores de risco” são, em regra, os mesmos e

parecem existir muitas “falhas” nos sistemas de protecção.

Eu quando vi as duas leis ao nascerem, achei muito bem que tivessem sido separadas as coisas, mas muito mal que não fossem buscar os ensinamentos de todos os estudos de desenvolvimento sobre a delinquência que provam que os factores de risco estão presentes para os que cometem crimes e para aqueles que depois deixam de cometer (…) à excepção de uma ou outra coisa mais grave… (P1).

Em 1999 já a família era problemática, e o que me surpreende é como é que o Estado permite que uma mãe cuide de sete filhos e ao fim do quarto que já é criminoso – já nem estou a falar de tutelar educativo, estou a falar de crime – ainda tem mais três filhos para criar que são menores, acabando todos por ser criminosos. (…) a mais nova anda agora aí nos furtos. Esses miúdos já passaram pela promoção e protecção todos os sete, o que mostra que o sistema falhou, quer o social, quer o penal. O sistema social, pelo menos, porque tenho dificuldade em compreender como o Estado saiba que uma mãe não consegue educar os seus filhos e permita que ela eduque os sete da mesma maneira. Este é um caso limite, mas em outra escala acontece com frequência (Ent. 3OPC).

Conheço uma tese de mestrado em que se pegou em todos os processos tutelares educativos daquele ano – eram mais de 200 processos. Desses 200, cerca de 80% tinham tido processos de promoção e protecção antes. Dá a ideia que tudo falhou, mas não sabemos. Devíamos até ter feito o estudo ao contrário: partindo de quantos miúdos com processo de promoção e protecção e, no futuro, quantos chegam a tutelar educativo. E isso não temos. De qualquer maneira, mesmo com esse enviesamento, a realidade é um pouco chocante. Significa que, pelo menos, da totalidade dos processos tutelares educativos

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

261

daquele ano, cerca de 80% já tinham tido outro antes. Portanto, nós estamos a falhar muito antes, mas também durante e depois (P9)

192.

Não me faz espécie decidir em função do facto, do ilícito que foi cometido. Agora, a medida a aplicar devia ser em função dos factores de risco que o indivíduo comporta e se esses factores de risco - independentemente de até serem bagatelas, ou não ter sido uma bagatela - forem de facto de risco. E aí, provavelmente, dir-se-ia, este indivíduo tem um processo, mas vai levar com um tratamento como se estivesse do outro lado, independentemente do facto (P1).

Já no estudo do OPJ, realizado em 2004, esta questão emergiu com

forte relevância, mantendo-se, hoje, grande parte dos problemas e disfunções

dessa articulação e dos efeitos então identificados.

192 O mesmo operador refere: “Não há estudos bastantes, nem estratégias suficientes para

actuar nesse sentido. Não é quando se chega aos 12, 13 anos... Muitos dos miúdos que estão em instituições que são centros de acolhimento, podiam estar num centro educativo, porque são iguaizinhos... Eu tive algum contacto com um centro educativo e foi um dos que foi fechado. Continuou com os técnicos da Segurança Social. As miúdas estão iguais Esta mesma questão é realçada por alguns órgãos de polícia criminal: “A relação que temos com eles é mais fácil, é mais terra a terra, é muito mais directa. Nós percebemos a linguagem deles. Mas, a sensação que eu tenho é que eles, quando chegam ao tribunal, ou quando chegam a uma instituição, a linguagem que é usada, é uma linguagem de adultos: “A medida de coação, medida tutelar…o que é isto?” Se ouvir uma sentença, não vai perceber muito bem… O que é uma medida suspensa, o que é isto na prática? Eu tenho amigos que me telefonam e perguntam: “Eu recebi uma notificação da DGV, da BT…explica-me lá o que isto quer dizer!” Uma coisa tão simples como uma multa de trânsito em que a pessoa é notificada, e tem lá todos os procedimentos, tramitação que ela pode seguir, e olha-se para aquilo e pensa-se “o que é isto!”. E são pessoas com alguma cultura, com alguma capacidade de entendimento que um miúdo não tem. Quando um adulto, muitas vezes com formação superior, não consegue perceber o que é que está num documento, como é que um jovem de 14 ou 15 anos há-de perceber. É preciso adaptarmo-nos” (Ent. 1OPC). em termos de problemáticas, de autocontrolo, de comportamento agressivo, de instabilidade emocional. São as mesmas e segundo as técnicas, estão iguais ou piores. Portanto, é preciso termos noção que a lei, tal como está formulada, não é feliz numa coisa: baseia muito o tipo, a duração e a gravidade da medida em função do acto que deu origem ao processo – é assim na prática sim. E não está aferido, nem tem peso suficiente o que se chama na lei – também, quanto a mim, de forma infeliz – a necessidade de educação para o direito. Nós não temos dados. Só um estudo longitudinal que agarrasse nuns milhares de miúdos é que nos poderia dizer qual a prevalência do comportamento anti-social e qual o tipo de actos que são considerados anti-sociais e que têm relação com o crime na idade adulta. Não temos esse estudo. Há alguns estudos feitos, como o de Cambridge” (P9).

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262 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Um dos aspectos salientados relaciona-se com um problema a reclamar

uma solução de natureza processual. Considerando que a “mistura” de

problemáticas não é compatível com a compartimentação que o sistema

judicial faz, os agentes judiciais defendem que os processos de promoção e

protecção e os processos tutelares educativos relativos aos mesmos jovens,

quando existam, deveriam tramitar por apenso. Por esta via, não só a acção de

todo o sistema sobre aquela situação será certamente mais adequada,

permitindo uma visão de conjunto, como serão poupados recursos, por

exemplo, com a repetição de relatórios sociais. O desenvolvimento informático

do sistema permite esse conhecimento e articulação. O que é necessário é,

feitos os ajustes legais, desenvolver um programa de acção adequado para

essa implementação. Vejamos alguns depoimentos que muito bem ilustram

esta situação.

A lei foi boa do ponto de vista da divisão entre a promoção e protecção e a tutelar educativa, mas criou-se uma divisão inaceitável. Nós não sabemos se o jovem tem um processo tutelar educativo ou um processo de promoção e protecção. O processo devia ser tramitado por apenso para podermos conhecer o caso como um todo (Ent. 4J).

Reconheço que pode haver situações complicadíssimas, crianças a precisar de apoio, educação para o direito, mesmo que apenas tenham vindo ao conhecimento do sistema factos menos graves. Mas, eu julgo que o problema está na prática, na falta de articulação entre a Lei de Protecção e a Lei Tutelar Educativa, que está prevista até no próprio regime da Lei de Protecção, mas que, provavelmente, não acontece. Podem acontecer variadíssimas situações, pode acontecer que estejamos perante um facto bagatelar, mas em que se note que aquele indivíduo precisa de uma intervenção. Mas, se calhar aí, devíamos ir para a Lei de Protecção, e essa funcionar devidamente (P8).

Em relação à articulação com a lei de promoção e protecção, na prática não há qualquer interligação. Quando estive na CPCJ, ouvi respostas que não gostei e que contrariei, como «a partir de agora, isto sendo um crime, passa para o tribunal e nós já não temos nada a ver com isso». Ora, a questão que se impunha era, precisamente «E a questão social que está por detrás desse facto criminoso?» A CPCJ, a partir do momento em que a questão passa para o tribunal, parece que já não tem nada que ver com a situação e que se criam portas estanques – mas está na lei, não estão a cometer irregularidades. Há uma falta de articulação. Os tribunais não se articulam com ninguém! (Ent. 3OPC).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

263

5.2 A falta de instituições protectoras de contenção

Neste âmbito, uma questão que impede uma melhor execução prática

dos objectivos do direito, também já amplamente referida no nosso estudo de

2004193, é aquela que se relaciona com a carência de instituições de

contenção, no âmbito dos processos de promoção e protecção, o que, como

então referimos, levava a que alguns operadores afirmassem que fazem uma

espécie de “espera” até que o jovem cometa um ilícito com alguma gravidade

de modo a que, no âmbito da lei tutelar educativa, possa vir a ser internado em

centro educativo, funcionando essas instituições como instâncias de promoção

e protecção, desvirtuando a sua função última e não respondendo, da forma

mais eficaz, ao problema base daqueles jovens. Esta posição mantém-se

actual.

Às vezes até espero que as crianças cometam um crime para os colocar num centro educativo. É que se for uma coisa rápida, eles apanham um susto e é possível pará-los (Ent. 6J).

As instituições de acolhimento que existem, nas palavras de

entrevistados, “não têm nem técnicos, nem capacidade, nem know-how”. Esta

ideia foi amplamente salientada ao longo do trabalho desenvolvido.

Revela-se, assim, necessária a redefinição de políticas e de estratégias

de acção que, não colocando em causa o actual modelo distinto de intervenção

no âmbito da promoção e protecção e tutelar, bem como o total respeito pelos

direitos e garantias das crianças e jovens sujeitos à aplicação da Lei Tutelar

Educativa possam, de facto, assegurar a sua protecção face ao risco a que

estavam sujeitos. Os seguintes depoimentos são elucidativos quanto a esta

situação.

193 Cf. Gomes (coord.), 2004: 292.

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264 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A grande falha é não haver instituições de contenção nos processos de promoção e protecção. Os miúdos estão sempre a fugir! (Ent. 6J).

Às vezes, nos despachos, colocamos: «medida de acolhimento em qualquer instituição». É que senão eles fogem e envolvem-se em gangs (Ent. 4J).

Ora, o que temos em termos de medidas de promoção e protecção é vergonhoso! E como sabem, muitas das instituições, quando o magistrado quer pôr lá um miúdo recusam-no... Muitas vezes, o miúdo já saltou de família em família, ou de mãe em mãe, ou de pai em pai, e os mais graves, realmente os que apresentam comportamento mais violento, são sempre estes. E depois, saltam de instituição em instituição! (…) não querem estes miúdos que só lhes dão problemas e não sabem como lidar com eles! «Chutam» para outro lado. Quantas vezes não acontece aos magistrados andarem a ver onde é que «enfiam» o miúdo – perdoem-me a expressão – e não têm onde. São estes miúdos que depois temos, obviamente, num centro educativo, e outros nem sequer chegamos a ter (P9).

Chama-se a atenção que é na faixa etária dos 12 aos 16 anos que mais

se sente a necessidade dessas instituições, sendo que é também nessa idade

que a “aproximação à delinquência” mais facilmente se concretiza. Reivindica-

se, por isso, uma maior intervenção do Estado, quer preenchendo directamente

essa lacuna, quer exercendo a sua função de regulador de supervisão na

verificação das condições de atribuição de subsídios às IPSS que acolhem

crianças.

Há muitas associações que acolhem as crianças, com 5, 6, 7 anos, mas a idade de 12 a 16 anos… não aceitam porque são muito problemáticos. Há aqui um grande distanciamento: ou temos aqueles que são quase criminosos, e esses vão para os centros de acolhimento; ou temos aqueles que começaram a apresentar comportamentos problemáticos e nós não temos resposta para eles. Aqui é que há uma grande falha, acho que é neste faixa que o sistema está a falhar mais (Ent. 1OPC).

Não podemos fazer muito nos processos de promoção e protecção. As instituições são de regime abertíssimo. Vão para uma casa de acolhimento de emergência, e fogem. Só existe uma instituição de contenção, para raparigas e só com 12 vagas. Há instituições que não querem lá delinquentes ou jovens a partir de certa idade. Para uma miúda de 14 ou 15 anos - espertíssima, boa aluna, que de repente passou-se - estamos à espera de vaga desde Agosto para um centro de acolhimento. Não há instituições adequadas. No início as instituições dizem que há vagas e depois quando vai o historial da miúda dizem que já não há vagas. Isto é muito grave. Não dizem directamente que não aceitam (Ent. 3MP).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

265

Além da carência de instituições de acolhimento é, igualmente, realçada

a carência e pouca eficácia de programas para essas crianças e de uma maior

articulação com a sociedade civil e com a família.

A intervenção tem que ser a vários níveis. Primeiro, a prevenção primária. Têm que existir instituições no bairro, vinte vezes mais do que há. Mais IPSS (Ent. 2TRS).

Associações da sociedade civil acho que não têm que ser do Estado, há muitas agora com o Programa Escolhas, há vários projectos aqui na comarca, e são projectos que estão nos próprios bairros, estão junto da população, estão nas escolas, e acabam por estar muito mais próximos da realidade destes jovens. São poucos para o problema que existente, mas são os que conseguem estar a intervir diariamente com os jovens e que os jovens sentem que são parceiros, são alguém a quem podem recorrer (Ent. 1TRS).

A intervenção que funciona, é uma intervenção multi-sistema, com todos os subsistemas que lhe dizem respeito. Um subsistema é o menor, outro é a família, a escola, o grupo de pares – mas é evidente que isto é uma intervenção cara. Tenho alguns casos que me são enviados pelo tribunal para intervir com menores. E o tribunal pede, até, que eu estabeleça um plano de intervenção. Ora, nessa intervenção eu nunca prescindo – no caso de não estarem institucionalizados, porque aí pode ser um pouco diferente – de intervir com os pais, pelo menos com os pais. Fazemos muito a definição de competências parentais. Porque muitas vezes há pais que não sabem ser pais e é por isso que os filhos estão como estão. Pelo que, eu acho que aqui quando o tribunal ordena uma intervenção, cabe, de facto, à equipa técnica dizer e definir o tipo de intervenção que vai ser feita, os aspectos e as pessoas envolvidas. (…) a avaliação que tem sido feita, em termos de boas práticas, é que funciona a imposição de programas de educação parental. Agora, as sanções de tipo punitivo e não responsabilizadoras não têm tido efeito. Sobretudo em França, há sectores muito críticos dizendo que elas têm contribuído para agravar a precariedade da situação das famílias. Ora, isso em Portugal, seria muito provável. Mas eu realmente acho, daquilo que tenho ouvido de colegas de outros países, que a imposição de programas de imposição parental tem dado frutos – até porque, muitas vezes, os pais têm de problemas de não o saberem ser. E eles próprios querem saber e afirmar-se como pais (P1)

194.

194 Outro interveniente refere, ainda, que “A ideia de criminalizar a responsabilização dos pais,

que é, muitas vezes, o que está subjacente quando se pede mais responsabilização, não servirá. Eu considero que essa ideia é de afastar totalmente. (…) Na prática, em X tem acontecido. Isto é, um grande número de famílias recebem o rendimento mínimo, têm menores a cargo. Se eles violam algum daqueles princípios retiram-lhe o subsídio. E se eles já têm dificuldade em termos de sustento dos menores, com o subsídio, ao ser-lhes retirado, estes ficam em perigo. E depois temos de os retirar para o acolhimento. Ora, não faz sentido” (P3).

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266 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A escola e os pais aparecem no discurso dos operadores como, em

muitos casos, pouco interventivos e mesmo demissionários.

Na Lei Tutelar Educativa, de acordo com técnicos de reinserção social,

existe “uma clara ausência de mecanismos que vinculem os pais ou os

detentores da guarda do jovem ao apoio da execução da medida”. Nestas

situações referem que, quando “se verificam acentuadas fragilidades no

exercício da função educativa”, apenas conseguem encontrar algum suporte na

Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, nomeadamente através dos

Cursos de Competência Parentais promovidos pelas CPCJ. Na perspectiva dos

técnicos de reinserção social, era essencial que, aquando do acompanhamento

de medidas tutelares aplicadas a jovens com um perfil de marcada

delinquência, se alargassem as abordagens efectuadas às famílias que

constituem “um dos principais factores de protecção ou de risco para o desvio”,

pois em consequência desta falta de articulação, “muitas das aquisições dos

jovens não são acompanhadas de algumas mudanças necessárias no sistema

familiar que mantendo o seu funcionamento habitual, não actuam como

facilitadoras da mudança” (cf. Brazão, et al., 2009).

Se é certo que, no caso dos pais, essa atitude é, em regra, atribuída à

sua desestruturação social, ela própria causal do risco e da conduta da criança

e do jovem, e ou à incapacidade de lidar com a situação, no caso da escola

pela sua condição de organismo público e pela importância social que assume

a intervenção deveria ser mais concertada e sistematizada. Reclama-se, assim,

uma maior aproximação a esta realidade por parte do Estado, quer

directamente, quer em articulação com a sociedade civil e outros organismos

públicos, em especial a escola. Esta articulação é essencial, sobretudo no

plano da prevenção.

Os miúdos ficam de manhã à noite sozinhos. Eles vivem sózinhos. Muitos crescem sem afectos. Não há supervisão parental. Isto tem tudo a ver com a falta de capacidade dos pais para acompanharem os filhos. E isto está cada vez mais grave com a crise económica. A não ser que haja processos de promoção e protecção, os pais não põem os filhos nos ATLs, nos infantários. Uns irmãos criam os outros. Temos muito mais processos de

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

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promoção e protecção. São muito poucos os processos que se mantém nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens. A maior parte vem para cá (Ent. 3MP).

Estes miúdos que vivem na rua, em que a mãe sai às 5 horas da manhã de casa e volta às 8 horas ou 9 horas da noite porque tem três empregos. O pai é alcoólico, ou está nas obras, e faz o mesmo horário e o miúdo é libertado nas ruas… esse miúdo cresce com os valores da rua, dos mais velhos. Há aqui um grande trabalho que as instituições e organizações de solidariedade fazem que é tirá-los da rua. O grande problema destes miúdos e que nós identificamos como problema quando estamos na CPCJ, é falta de capacidade. Nós identificamos os problemas e depois para onde os encaminhamos? O que precisamos é de espaços onde os miúdos possam estar quando os pais não estão (Ent. 1OPC).

Deveria haver, também, um acompanhamento maior por parte das escolas e dos professores, porque um aluno desses falta a muitas aulas e nem quer saber. Tem muito livre. Estou um pouco afastado dessa realidade da escola, não sei se há controlo ou não há, se os pais são alertados ou não. Mas acho que nestas situações os pais deveriam fazer algo e se não o fizessem eles, teria de o fazer alguém. Mas, nunca deixar arrastar, por muito tempo, esta situação. Porque se o pai e a mãe são incapazes de educar, devem ser substituídos nessa função (Ent. 2OPC).

5.3 O tempo da resposta e a “falha” da protecção

Um outro aspecto, muito enfatizado, prende-se com o tempo de

intervenção efectiva. Todos os entrevistados reconhecem, como demasiado

longo, o tempo que vai desde que a situação de perigo é detectada ou desde o

conhecimento da prática do ilícito até à decisão sobre uma medida (tutelar ou

educativa) e ao seu efectivo cumprimento. A intervenção, até pela idade de

quem vai ser objecto dela, tem que ser o mais próximo do facto que a

despoletou. A intervenção “rápida” é a mais eficaz na prevenção, podendo

evitar, designadamente, o cometimento de crimes de maior gravidade.

Eu acho que se se actuasse mais a montante, logo quando aparecem estes fenómenos, com acompanhamento talvez se conseguissem outros resultados (Ent. 2OPC).

Onde há necessidade de intervir é a montante da Lei Tutelar Educativa, porque um jovem não começa a delinquir aos 14 anos (Ent. 2MP).

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268 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A celeridade na resposta a comportamentos desviantes é, assim, vista

como uma necessidade, sobretudo em faixas etárias muito jovens.

Seja quais forem as medidas, considero essencial a celeridade, porque a este nível os miúdos evoluem muito rápido. Um ano à espera de uma decisão é demasiado tempo. Tem que ser imediato e no sentido de perceber que o melhor interesse da criança não é, necessariamente conhecer, até ao pormenor o que aconteceu. Interessa, antes, perceber que há ali um problema e resolvê-lo. Às vezes nas questões judiciais andamos presos por pormenores. Se no caso dos adultos pode ter alguma relevância, no caso das crianças não tem porque não deve ser essa a preocupação principal, mas sim perceber se a criança está em risco e é aquela situação que tem de ser resolvida e não, necessariamente, o facto que ocorreu (Ent. 3OPC).

É transversal aos vários profissionais da justiça a percepção de que

quando um jovem chega ao âmbito da LTE já, em muitos casos, terá falhado a

devida intervenção no âmbito tutelar.

Nós falhámos na altura em que deveríamos ter intervencionado, em criança, quando lhe era mais fácil conseguir alguma coisa (P9).

Quando estamos a falar da falta de resposta do sistema vamos necessariamente bater à questão da falta de respostas de promoção e protecção. (…) Há estudos que referem que, em algumas comunidades e nalguns pontos do país, há fenómenos novos que é preciso ter em atenção, relativamente ao percurso criminoso – se é que isso existe – de crianças com 7, 8 ou 9 anos e por vezes até menos! Tem de se fazer qualquer coisa. Há que caracterizar o problema e ver como é que vamos responder (P3).

A intervenção com o jovem ou com a criança já vem desde a CPCJ (…). Quando nos chegam os processos aos 12 ou 13 anos, o jovem está com um processo tutelar educativo, muitas vezes já teve uma intervenção junto da CPCJ. Nós também sentimos que quanto mais precoce for essa intervenção, mais importante vai ser, depois, a alteração do estilo de vida do jovem, do estilo de vida da família, porque nós acabamos por intervir não só no jovem, mas também em todo o contexto, em todo o meio (Ent. 1TRS)

195.

195 E ainda: “Eu penso que se deveria tentar ir à raiz do problema – às famílias. Penso que uma

solução seria responsabilizar os pais destes menores delinquentes entre os 10 e os 12 anos para que a intervenção pudesse ser mais precoce. De facto, temos jovens de 14 e 15 anos que estão altamente referenciados pela CPCJ, e têm praticado sucessivamente roubos, tráfico,

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

269

(…) o que lhes é tentado ensinar lá não tem o mesmo resultado, porque está junto de colegas que, por exemplo, fomentam um determinado tipo de comportamento. Ou seja, pode até querer aprender e sair deste ciclo, mas não consegue devido à pressão do grupo. Eles estão juntos com os colegas, não estão com os educadores. Eu gosto de falar com exemplos. O x era um miúdo que faleceu, que conheci com 16 anos mas que já tinha uma história antiga. Já não se enquadra bem nesta questão da LTE, mas é só para perceber esta questão da influência do grupo. Era um rapaz muito alto com uma postura que gostava de sobressair. E para o fazer escolheu, junto com mais 3 ou 4, por meio de coacção, roubar as sapatilhas, casacos, telemóveis de outros miúdos, à porta das escolas. Houve, nessa altura, de facto, um pico de roubos por via da sua acção. Era considerado um mito no bairro y. Foi detido por nós várias vezes, mas nunca ficou em prisão preventiva e continuava a praticar roubos, bem como os outros miúdos, até já sem ele. Ora, só quando ficou em prisão preventiva é que foi provocado o efeito contrário. Nas primeiras vezes, ele tinha os outros miúdos cá fora e faziam grande algazarra. Nesse dia, ele saiu cabisbaixo e disse-lhes: «vou dentro». E à volta ficou tudo na «mó de baixo». Depois, prendemos mais dois ou três miúdos e a coisa resolveu-se. Houve um exemplo que ajudou a dissuadir os outros. Ou seja, não foi preciso responsabilizar todos os miúdos para eles perceberem que aquilo era errado e tinha consequências. Daí que, no caso da LTE, o caso do x, de que falei, arrastou-se demasiado tempo. Penso que, por vezes, uma medida tomada imediatamente, tem um efeito muito mais dissuasor e eficaz. Basta imaginar que nenhum pai castiga o seu filho por uma coisa que este fez há cinco semanas atrás (Ent. 3OPC).

5.4 A execução das medidas e a procura de outras respostas

O trabalho de campo realizado não permite avaliar a execução das

medidas e, como já assinalámos, não era esse o objectivo desta investigação.

Podemos, contudo, referir como nota geral que, ao mesmo tempo que são

salientados alguns aspectos que, na opinião dos operadores, poderiam ser

melhorados, também é salientada a qualidade e o esforço da DGRS, com os

meios de que dispõe – e a falta de meios também é muitas vezes salientada –

furtos, ofensas à integridade física, e já com algum grau de violência. Violência esta que é apenas física durante o dia, mas, com recurso a armas brancas, por exemplo, à noite. Só podemos concluir que as medidas não estão a funcionar, para o que contribui o facto dos processos serem morosos” (Ent. 6OPC).

“Nós não temos cultura de prevenção primária e não tem sido muito o esforço que têm feito as comissões de protecção juntamente com a rede social, para que os programas de prevenção primária sejam uma realidade. O esforço destas instituições não tem tido muito sucesso, é pouco mas está em progresso” (P6).

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270 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

na execução das múltiplas funções, salientando-se algumas inovações,

sobretudo, no âmbito da medida de acompanhamento educativo.

Deixamos aqui algumas notas (apenas aquelas que obtiveram um leque

mais alargando de opiniões comuns) que emergiram no discurso dos

operadores pela busca por um outro tipo de respostas que potenciem mais

eficácia de resultados das medidas aplicadas no sentido da prevenção da

reincidência. São operadores que, no seu quotidiano, lidam com estas

problemáticas, por serem eles próprios agentes da aplicação ou da execução

das medidas. A sua percepção ocorre, assim, num ambiente informado,

devendo, por isso, ser valorada.

(…) muita da ineficácia, ou pelo menos da sensação de ineficácia, no que toca aos pequenos delitos, vem do facto de as medidas previstas na lei não serem devidamente executadas. De facto, ou não são executadas, ou são executadas de maneira deficiente e não há um estudo sobre isso. – como é o acompanhamento tutelar educativo, está a ser assegurado, está a funcionar? Nunca foram regulamentadas! Não há estruturas nem referências. E isso é uma falha imensa (P3).

(…) não é preciso mudar a lei, o que é preciso é executar o que está na lei e criar as estruturas necessárias (P7).

Um dos maiores problemas que sinto nestes processos prende-se com a demora - cerca de 3 meses - e deficiência da resposta por parte dos técnicos. A resposta dada não é adequada, nem criativa, e denota uma evidente falta de recursos humanos. Exemplos disso são os relatórios apresentados pela DGRS que são cada vez mais fracos, uma vez que, por um lado, os técnicos deixaram de ir aos locais e passaram a chamar as pessoas às suas instalações e, por outro lado, são cada vez menos criativos (Ent. 5J).

E de facto é complicado. (…) se a equipa estivesse dotada de um número suficiente de técnicos e que só fizessem aquela matéria tutelar educativa, não obstante as dificuldades com que contamos de adesão do jovem, aí seria uma intervenção diferenciada, mais exaustiva e mais rigorosa. Assim, faz-se o melhor que se pode, mas nem sempre é possível

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

271

fazer tudo aquilo que está estipulado no manual ao nível do acompanhamento educativo. Não é possível. Mas tenta-se seguir e fazer. Mas não é fácil (Ent. 3TRS)

196.

Também no âmbito deste trabalho, voltou a ser salientado o problema da

consequência da não adesão ou de não cumprimento, por parte do jovem, da

medida aplicada não institucional no âmbito da questão mais vasta da

flexibilização de medidas, a que já aludimos no ponto IV.2.2.

No entanto, foram as medidas de internamento que mais questões

levantaram. Desde logo, o problema da localização dos centros educativos,

ainda mais centralizados em consequência da extinção de várias unidades com

a publicação da Portaria n.º102/2008197, o que distancia as crianças e jovens

das respectivas famílias e, na opinião de vários técnicos, pode dificultar a sua

reintegração depois da saída do centro, mas também a sua própria vivência

dentro dele.

Sobre o efeito das medidas em meio institucional, reconhecendo-se que

elas possibilitam a aquisição de competências sociais e comportamentais

significativas, já se duvida se o tempo aí passado seja suficiente “para uma

inversão consciente e sustentada das suas trajectórias” devido,

essencialmente, a duas ordens de razão: por um lado, a escassez de trabalho

196 E refere, ainda, o mesmo técnico: “Eu acho importante termos uma equipa especializada,

até porque nos permite conhecer e trabalhar com o tutelar educativo. Penso que trabalhar com menores implica uma dedicação diferente. E até a interpretação não pode ser feita de forma tão inócua, tem de ser muito mais envolvida, falar com outras pessoas, com muito mais tempo, e tem de ser muito mais eficaz. Ora, é um trabalho que desgasta e não existe, de modo nenhum, um reconhecimento daquilo que é feito aqui, e do que deviam ser os investimentos a nível de recursos que têm de existir no âmbito tutelar educativo. Mas, também, ao mesmo tempo, é o que faz sermos específicos e termos uma grande variedade geográfica, nós conseguimos fazer tudo, mas não ao mesmo tempo” (Ent. 3TRS).

197 Foram extintos os centros educativos seguintes: a) Centro Educativo de Corpus Christi, em

Vila Nova de Gaia; b) Centro Educativo de São José, em Viseu; c) Centro Educativo de São Fiel, em Louriçal do Campo, Castelo Branco; d) Centro Educativo Dr. Alberto do Souto, em Aveiro; e) Centro Educativo de São Bernardino, em Atouguia da Baleia, Peniche; e f) Centro Educativo de Vila Fernando, em Vila Fernando, Elvas.

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272 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

específico de intervenção com os educandos e, por outro lado, a cisão com o

exterior, imposta pelo internamento em regime fechado e mesmo em regime

semiaberto (cf. Neves, 2008).

A maioria dos entrevistados manifestou uma posição, em simultâneo, de

um melhor ajustamento da duração das medidas e de mais investimento na

definição de programas adequados. São, a esse respeito, expressivos os

seguintes depoimentos.

Também para Ana Zita Silva, “num lugar onde se pretende ressocializar

jovens, a opção não pode ser o isolamento, a competição ou a existência de

uma subcultura marginal dentro das instituições que têm a seu cargo esta difícil

tarefa”, pelo contrário, “a aposta deve ser no incitamento do trabalho de grupo,

da cooperação, entreajuda, resolução de conflitos e educação para objectivos,

ou seja, a promoção de competências pessoais e sociais que diminuam os

factores de risco associados”, finalizando com a convicção de que tal só é

possível “recorrendo a modelos comportamentais, de técnicos que centram a

sua abordagem num paradigma de proximidade e de empatia, verdadeiros

agentes de mudança e parceiros de relação” (cf. Silva, 2009).

Ana Manso e Ana Almeida (2009) dão conta das conclusões de um

estudo de carácter quantitativo sobre o discurso de 15 jovens do sexo

masculino, entre os 14 e os 18 anos, institucionalizados num Centro Educativo.

O objectivo do estudo é as percepções subjectivas dos jovens

institucionalizados sobre a ordem jurídica em geral e a medida de

internamento, em particular. Quanto à medida de internamento a percepção

dos jovens - ainda que valorizem as suas aprendizagens durante o tempo de

internamento - apenas reveste carácter sancionatório. O discurso destes jovens

demonstra, segundo as autoras, que estes têm uma concepção ambígua

relativamente à medida de internamento que, em simultâneo, se revela como

punitiva e educativa. No que concerne ao Projecto Educativo Pessoal os jovens

vêem-no como “moeda de troca” com o tribunal, uma vez que se este for

cumprido a medida aplicada pode ser revista. Uma vez findo o cumprimento da

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

273

medida, os jovens reconhecem a possibilidade de ocorrerem algumas

mudanças positivas, mas deixam transparecer muitas dívidas, incertezas e

receios (cf. Manso e Almeida, 2009).

5.5 A duração das medidas

A duração do período de internamento em centro educativo nem sempre

é conciliável com a frequência de cursos de formação, com a duração do ano

escolar, ou com a duração de tratamentos terapêuticos, como foi amplamente

focado no decurso desta investigação.

A prática o que nos mostra é que, por vezes, não é feito cálculo correcto. Há jovens que estão a cumprir a medida de internamento e que se depois do terminus da medida lá estivessem ou continuassem a cumpri-la cá fora mais 3 ou 4 meses, terminavam aquele curso que estavam a tirar. Enquanto que se acabar a medida, termina por ali e já não podem terminar a formação. Ora, isto acontece muitas vezes. Se tudo funcionasse muito bem, tinham começado o curso antes, mas por vezes até há questões relacionadas com o início do ano escolar e que têm de ser acauteladas. E falamos em cursos, mas podíamos falar numa intervenção terapêutica que até estava a dar resultado e, de repente, é interrompida (P3).

Por vezes, as medidas são demasiado curtas para inverter trajectórias delinquentes. Por isso, a intervenção é feita, muitas vezes, demasiado tarde. E nós não podemos querer o melhor de dois mundos, isto é, querer o internamento, mas ao mesmo tempo, demonizá-lo, querer transformar as crianças, mas não dar tempo para a transformação, ter um interesse superior, mas depois, esse interesse superior passar a ser o tentar sair o mais rapidamente possível do mecanismo que nós criámos para inverter o percurso. (…) O que eu noto é que não é muito claro qual é, exactamente, o mandato do centro educativo. Não há um modelo educativo! (…) o que eu encontrei em vez desse modelo educativo, foi um mecanismo de defesa institucional em que o centro educativo está essencialmente preocupado e atento à gestão da potencial desordem. Se queremos diferenciar o tratamento, acho que temos de correr riscos e acho que parte da educação passa por assumir poder fazer algumas coisas. Pode correr melhor ou pior. Mas um centro educativo não pode estar, quase exclusivamente, orientado para a gestão e para supressão da imponderável catástrofe, briga ou fuga. Isso aí é que me parece altamente castrador e muito pouco educativo, no sentido de que não alarga, antes pelo contrário, apresenta uma visão completamente dicotómica e simplista do mundo – ou é bem ou é mal, ou é preto ou é branco (P5).

Eles fazem actividades de formação, actividades escolares e desportivas, bem como ocupação de tempos livres. Mas, em termos de reabilitação psico-social - quer individual ou

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274 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

em termos de programas grupais - é praticamente inexistente. Em termos organizativos têm de cumprir um programa de formação e alternância com a escolaridade, que os miúdos não têm tempo para fazer nenhum programa, quanto mais o acompanhamento individual! Portanto, há um problema, os técnicos não têm tempo para intervir - a não ser que intervenhamos aos sábados de manhã - porque não há uma hora e meia durante a semana para fazer o programa... O que eles fazem é formação e é escola. São aqueles programas de formação profissionalizante, com oficinas, ateliers etc., e depois, a escola (P9).

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E DEPOIS DA EXECUÇÃO DA MEDIDA TUTELAR

DE INTERNAMENTO?

6

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6. E DEPOIS DA EXECUÇÃO DA MEDIDA TUTELAR DE INTERNAMENTO?

Introdução

A ausência de mecanismos que permitam uma aproximação do jovem

sujeito a medida de internamento ao meio aberto, criando pontes que

consintam na solidificação do trabalho realizado no centro educativo, continua

a ser uma preocupação dos entrevistados no âmbito do presente projecto de

investigação. Este acompanhamento na saída do Centro Educativo é visto

como um dos componentes essenciais para o sucesso da aplicação da medida

tutelar. Mapeamos, neste ponto, alguns dos problemas que condicionam esta

aproximação.

6.1 A necessária transição

A Lei Tutelar Educativa prevê expressamente o princípio da

jurisdicionalização da execução das medidas tutelares educativas (artigo 28.º,

n.º 1, alínea c), e 39.º da LTE), conferindo ao juiz um conjunto de competências

quer fiscalizadoras, quer participativas198. A execução da medida de

198 A título de exemplo, compete ao juiz “ordenar os procedimentos que considere adequados

face a ocorrências que comprometam a execução e que sejam levadas ao seu conhecimento”, “acompanhar a evolução do processo educativo do menor através dos relatórios de execução

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278 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

internamento sofre, na LTE, especial densificação, prevendo-se a elaboração

de um projecto de intervenção educativa próprio para o jovem (artigo 162.º da

LTE), sujeito a homologação judicial (artigo 164.º da LTE), e a informação

periódica do Tribunal quanto à execução da medida e à evolução do processo

educativo do jovem (artigo 154.º da LTE).

Por outro lado, um dos baluartes da Lei Tutelar Educativa prende-se

com a consagração do princípio da actualidade no que respeita quer à escolha

da medida tutelar educativa aplicável, quer no que respeita à sua execução e

revisão. Tomando sempre em consideração o facto cometido como baliza

exigida pelo princípio da proporcionalidade, o actual regime tutelar educativo,

consciente da rápida mutação que as circunstâncias envolventes do jovem

sofrem, privilegia o momento actual do jovem.

Prevê, assim, dois conjuntos de situações em que a medida aplicada

pode ser revista: um no sentido do seu aligeiramento e outro no sentido de

reforçar o cumprimento de uma medida. No primeiro caso, estatui que as

medidas tutelares possam ser sempre revistas desde que se verifique a

impossibilidade superveniente da sua execução por facto não imputável ao

jovem; onerosidade excessiva superveniente da execução da medida aplicada;

desajustamento da medida ao jovem, no decurso da sua execução, de forma a

que se frustrem manifestamente os seus fins; desnecessidade da continuação

da execução por força dos progressos educativos alcançados pelo jovem

(artigo 136.º, n.º 1, alíneas a) a d) da LTE). Nestes casos, tratando-se de

revisão de medida de internamento, abre-se ao juiz a possibilidade de manter a

medida aplicada, reduzir a sua duração, modificar o regime da sua execução,

substituir por medida não institucional, suspender a execução da medida de

das medidas”, “decidir sobre os pedidos e as queixas apresentados sobre quaisquer circunstâncias da execução das medidas susceptíveis de pôr em causa os direitos dos menores” e “realizar visitas aos centros educativos e contactar com os menores internados”.

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

279

internamento ou pôr termo à medida aplicada, declarando-a extinta (artigo

139.º, n.º 1, da LTE).

No segundo caso, que engloba as situações em que o jovem se colocou

intencionalmente em situação de impossibilidade de cumprimento da medida,

ou em que houve uma violação grosseira ou persistente dos deveres inerentes

ao cumprimento da medida199, tratando-se de revisão de medida institucional, o

Tribunal pode proferir uma advertência quanto à gravidade da conduta do

jovem e às suas consequências, prorrogar a medida por um período até um

sexto da sua duração (nunca excedendo o limite máximo legal de duração

previsto), e modificar o regime de execução, substituindo-o por outro de grau

imediatamente mais restritivo, desde que a aplicação da medida de

internamento resulte da prática de facto qualificado pela lei como crime a que

possa ser aplicada esse regime mais restritivo (artigo 139.º, n.ºs 2 e 3, da LTE).

Por outro lado, como corolário do princípio da actualidade, a lei fixa a

possibilidade de revisão das medidas tutelares a qualquer momento, a

requerimento do Ministério Público, do jovem, dos pais ou representantes

legais, do defensor do jovem, mediante proposta dos serviços de reinserção

social, ou oficiosamente200; e ainda a obrigatoriedade de revisão da medida

tutelar decorrido um ano do início da sua execução, da anterior revisão, ou da

aplicação da medida (nos casos em que a execução da medida não se tenha

iniciado imediatamente)201, prevendo prazos mais estreitos para as medidas de

internamento em regime semiaberto e fechado (seis meses)202.

199 Cf. artigo 136.º, n.º 1, alíneas e) e f), da LTE. Uma outra situação reporta-se ao cometimento

pelo jovem com idade superior a 16 anos de infracção criminal (cf. artigo 136.º, n.º 1, alínea g).

200 Cf. artigo 137.º, n.º 1, da LTE.

201 Cf. artigo 137.º, n.º 2, da LTE.

202 Cf. artigo 137.º, n.º 4, da LTE.

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280 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

A Lei Tutelar Educativa procurou, assim, dentro da execução da própria

medida tutelar de internamento, criar momentos de flexibilidade que

permitissem dar uma resposta acompanhada da evolução do jovem. Questão

diferente é a de saber como está essa flexibilidade a operar na prática. Essa

filosofia da lei é realçada por alguns entrevistados.

(…) o juiz pode, aplicando o instituto da revisão, pôr termo à medida antes da duração mínima. E porquê? – em nome do princípio da actualidade das necessidades de educação para o direito. O que está aqui a querer acautelar-se é o superior interesse do menor (P4).

Alguns entrevistados enfatizaram a preocupação de aproveitar essa

abertura da lei para fazer a aproximação do jovem ao meio aberto.

Nós quando estávamos nos Olivais tentávamos sempre que fosse possível e fizesse sentido para o jovem em causa antecipar a saída e nós fazíamos muito isso, com acompanhamento educativo ou com uma medida que permitisse algum suporte (…). Nunca caiam de pára-quedas ali. Havia sempre essa preparação (Ent. 4TRS).

O que tem acontecido também é a revisão da medida de internamento para medida de acompanhamento educativo e, portanto, conseguimos fazer um pouco esta passagem para o meio livre (Ent. 1TRS).

Os PEP são periodicamente reformulados, com alteração do regime da medida (Ent. 2MP).

Eles fazem planos de aproximação do menor ao meio aberto e à família. As medidas podem ser sempre alteradas (Ent. 4MP).

O mencionado trabalho de acompanhamento do jovem quando este sai

do centro educativo é visto como essencial, de acordo com a consideração

segundo a qual a intervenção no meio social do jovem é um dos componentes

essenciais para o sucesso da aplicação de qualquer medida tutelar.

Aquilo que a investigação demonstra é que a intervenção que, entre nós, funciona, é uma intervenção multi-sistema, com todos os subsistemas que lhe dizem respeito. Um

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

281

subsistema é o menor, outro é a família, a escola, o grupo de pares – mas é evidente que isto é uma intervenção cara (P1).

Um dos entrevistados defendeu mesmo que este deveria ser um

trabalho a realizar desde o início da execução da medida de internamento,

através de um trabalho conjugado com a família e o jovem.

O que é necessário é que, efectivamente, se veja quais são as condições em que o jovem está ou que estará quando se extinguir a medida e voltar ao seu meio natural. Quando entra no Centro Educativo, é necessário, desde logo, começar a preparar o seu regresso. Pelo menos no trabalho possível com a família. E depois, naturalmente, fazer intervir o sistema, se isso significar, naturalmente, uma situação de perigo. Ou então, se não se verificar uma situação de perigo, mas significar uma dificuldade social, são os serviços sociais que devem responder a essa situação (P4).

No entanto, para um número significativo de entrevistados, a

possibilidade de revisão da medida de internamento, permitindo a sua

substituição por medida não institucional, não é suficiente para alcançar as

finalidades da lei. Avançam-se dois argumentos. Por um lado, realça-se o facto

de o jovem, quando sai do centro educativo, regressar, em regra, para o

mesmo meio social que esteve na origem do seu comportamento, sem que o

seu contexto social e familiar tenha tido alteração significativa.

Quando um indivíduo sai do centro educativo tem sempre a escolha e tem sempre a capacidade, mas continua a ter os mesmos problemas e as mesmas forças centrífugas que tinha antes, nomeadamente os pares, a falta de alternativas, quer a nível escolar quer a nível profissional, a mesma família, se calhar o mesmo pai maltratante ou a mesma mãe negligente (Ent. 2TRS).

Os que estão nos centros educativos estão numa redoma e os colegas dessas instituições até mudaram algumas formalizações, alguns pensamentos, até conseguiram fazer um bom trabalho junto daqueles jovens, ao nível de pensamentos, emoções, através de estágios de grupo ao nível de competências sociais e pessoais. Só que depois, cá fora, está tudo na mesma. O jovem evoluiu, mas a família está exactamente na mesma, o bairro na mesma, assim que sai cá para fora, ele próprio tem de se adaptar. Assim, é muito importante esta passagem, sair dali e voltar a saber viver onde vivia, com aquela família naquele bairro, e ajuda se essa passagem for feita com a nossa ajuda – de equipa não institucional – com a nossa colaboração (Ent. 1TRS).

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282 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Defende-se, assim, que a medida de internamento deveria incorporar

nela mesmo um período de aquisição de competências, mas em meio

aberto203.

A medida de internamento deveria prever, ela própria, um período de adaptação. Penso que fazia algum sentido que houvesse essa proporcionalidade entre o tempo de internamento e algum tempo de acompanhamento. (…) Era uma supervisão. Tínhamos preocupação de o integrar no contexto escolar, numa profissão. A lei carece de algum ajuste que previsse dar continuidade à intervenção do internamento. Há ali um intervalo, rotinas que se perdem, às vezes vão até para outros locais, até vemos que fazia sentido ir para outra zona, porque a família até fez movimento para sair daquele meio mais problemático ou entretanto há outro familiar até com um enquadramento diferente (Ent. 4TRS).

Mais do que baixar idades ou endurecer medidas, o que tinha de ser melhor pensado, para adequar-se a estas idades – algo que fizesse a transição – exactamente nos casos mais graves, os que vão para internamento – entre a vida no Centro Educativo e a vida cá fora. Aqui penso que há uma lacuna grave. Os princípios gerais parecem-me até muito bem pensados e parece que não temos de embarcar sempre no que se passa nos outros países, até porque a nossa realidade é diferente, agora, a transição seria importante (P8).

A ausência de um momento de transição entre o meio contentor do

centro educativo e o regresso ao seu meio de origem é encarada, assim, como

um dos obstáculos ao cumprimento dos objectivos previstos na execução da

medida de internamento, podendo dar origem ao desperdício das experiências

vividas e das competências pessoais e sociais entretanto adquiridas.

203 Um dos entrevistados avança propostas alternativas: “Eu penso que há que flexibilizar o

final das medidas, designadamente com um período de acompanhamento após a saída. (…) Para mim há várias hipóteses: Primeiro, no âmbito da própria medida, deve haver uma previsão, que aliás, de certa forma, já hoje é feito, de numa fase final a medida ser alterada no sentido de uma inserção na comunidade. Ou seja, a medida deixa de ser de internamento, é revista e passa a ser um acompanhamento educativo ou aquilo que fosse preciso para a reinserção. – ainda estamos na fase do cumprimento da medida. Há outra possibilidade que é a medida em si terminar e terminar enquanto medida, e mesmo assim verificar-se que há necessidade de acompanhamento daquele jovem, até com medidas por exemplo para autonomia de vida como existe na promoção e protecção. Assim, apesar de terminada a medida, mas se o menor precisa de algum apoio para ter casa, para formação profissional etc., ser assegurado este apoio. Possibilidade esta que, inclusive, está prevista na lei bem como as entidades que a devem assegurar” (P4).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

283

O segundo argumento avançado para criação legal daquele momento de

transição dentro da própria medida de internamento prende-se com a

dificuldade prática relatada numa correcta articulação entre, por um lado, as

equipas da Segurança Social e as equipas da DGRS, e, por outro entre a Lei

de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo e a Lei Tutelar

Educativa.

Eu penso que tem de ser um acompanhamento para a inserção – pode não ser uma transição de um regime para outro – ou seja, se isto funcionasse muito bem, podia ser feito no âmbito da protecção. Mas, como nós sabemos que a articulação é difícil e que nesse aspecto será complicado, porque o sistema de segurança social não se articula com o restante (P3).

Resulta, assim, do trabalho de campo, que, em regra, as equipas da

DGRS deixam de ter qualquer contacto com jovem quando a medida de

internamento cessa no termo do seu prazo, havendo estanquidade no

momento de intervenção destes técnicos. Depois, apesar de não raras vezes

os jovens sujeitos a medidas tutelares educativas terem tido já processos de

promoção e protecção, a partir do momento em que se regista a prática de um

facto qualificado pela lei como crime por tal jovem, a intervenção por banda da

promoção e protecção, em regra, cessa.

Intercomunicabilidade?... Já várias vezes tenho tido situações em que há processo tutelar e houve processo de protecção, mas depois fechou porque o miúdo não aderiu, fez-se o acordo mas não adere, entretanto vai mesmo para o delito e a comissão fecha-se à intervenção porque já esgotou os recursos (Ent. 4TRS)

204.

204 Chama-se a atenção para o facto de o problema não estar na lei, mas sim na prática: “O

sistema está preparado para isso. São as pontes com a lei de promoção e protecção que não estão a funcionar. (…) Não há uma ligação suficiente entre os dois sistemas. (…) É a prática. Essas medidas de transição devem ser consideradas dentro da duração da medida. (…) Sem prejuízo da protecção depois. Estou a dizer enquanto a medida durar. Não quer dizer que não possa ir para a protecção depois (…) E esta possibilidade está oferecida, não está é cumprida” (P4). Reafirmando que o que importa é cumprir a lei e agilizar os mecanismos de promoção e protecção: “Se falamos no interesse do menor, em apoiar o menor, então há que agilizar,

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284 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Em relação à articulação com a lei de promoção e protecção, na prática, não há qualquer interligação. Quando estive na CPCJ, ouvi respostas que não gostei e que contrariei, do género: “a partir de agora, isto sendo um crime, passa para o tribunal e nós já não temos nada a ver com isso”. Ora, a questão que se impunha era, precisamente – e a questão social que está por detrás desse facto criminoso? A CPCJ, a partir do momento que a questão passa para o tribunal parece que já não tem nada que ver com a situação e que se criam portas estanques – mas está na lei, não estão a cometer irregularidades (Ent. 3OPC).

Salientam-se, ainda, algumas dificuldades que se prendem com as

próprias opções legislativas, nomeadamente com os limites etários impostos

para que seja possível uma intervenção da Lei de Promoção e Protecção.

Se o menor sai com 16 ou 17 anos, e não tiver nenhum processo de promoção e protecção antes, já não pode ser instaurado (P3).

Mas, os entrevistados chamam a atenção para as cautelas que deverão

necessariamente ser observadas na consideração desta questão. Assinalam a

necessidade absoluta de respeito pelo princípio da proporcionalidade na

previsão de um período de adaptação ao meio aberto e a necessidade de

distinguir entre aquelas situações em que, chegando ao final da medida, a

intervenção pura e simplesmente falhou, daqueloutras em que não foi possível

alcançar todas as finalidades da medida por questões práticas e objectivas,

externas ao jovem. Neste contexto, há quem defenda que os fundamentos que

levaram à criação de uma liberdade vigiada em Espanha e no Reino Unido não

nesse aspecto, os mecanismos da promoção e protecção que sempre estiveram contemplados na lei, desde o 1.º momento. Uma das vantagens desta lei foi não ter querido ir para um modelo de justiça e fechar a porta a um modelo de protecção, daí ter-se deixado ficar a ponte com o sistema de protecção. Porque, um jovem que precisa de escola, de casa, de formação profissional, está em risco, se tal não funcionar, de não ter o seu desenvolvimento adequado. (…) O que é errado, é continuar a ver-se que para ter escola e dar formação profissional, é necessário privar de liberdade. Então, tínhamos que ter muitas prisões para jovens, para ultrapassar o nosso problema de iliteracia e de abandono escolar. A lei já tem este mecanismo. Agilize-se este mecanismo. E não esquecer que, os países onde isto foi instituído, o que foi fixado foi a liberdade vigiada obrigatória após o internamento, mas, porque aí as medidas de internamento são muito longas – como se disse, em Espanha, por exemplo, subiram para 8, 10 anos. Mas nós quando falamos aqui na LTE em liberdade assistida – não lhe quero chamar vigiada – estamos a falar no interesse do menor” (P4).

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Entre a lei e a prática: a justiça tutelar educativa em Portugal

285

tiveram por base o interesse do jovem e sim interesses da segurança da vida

em sociedade.

Entre nós tem andado a cultivar-se o pretender copiar do sistema espanhol, a chamada liberdade vigiada que é um internamento em centro educativo complementado, obrigatoriamente, por um período de liberdade vigiada. O que existe também no sistema de internamento, a partir dos 10 anos, no Reino Unido, em que os menores a quem são decretadas medidas de internamento têm, obrigatoriamente, um período de liberdade vigiada. Mas isto acontece porquê? Por uma razão muito simples – não é em nome do interesse do menor, é no interesse da segurança da sociedade. É um interesse securitário porque se subordina a este período de liberdade vigiada e que se chama exactamente assim, correspondendo a um período de verdadeira liberdade condicional. Trata-se de um período em que cabe ao menor provar como é que se porta. Se não se portar bem volta para dentro do centro. Mas como disse, isto não foi feito em nome do interesse do menor (P4).

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V. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

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CONCLUSÕES

1

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1 CONCLUSÕES

1. Risco social, crime e insegurança são temas que, quando se fala de

delinquência juvenil, amiúde se interligam e que, no contexto europeu, têm

vindo a ocupar um espaço crescente no debate público e na agenda política.

Contudo, e não só entre nós, nem sempre a reflexão em torno deles assenta

em dados que permitam analisar com rigor os principais contornos da realidade

social que lhes está subjacente, como, por exemplo, a verdadeira dimensão da

criminalidade de crianças e jovens, caracterizando as cifras ocultas, as vítimas,

os agressores e os tipos de crime que chegam às instâncias formais de

controlo, bem como os seus vários contextos de origem e de acção, de modo a

desenvolverem-se políticas que mais assertivamente actuem sobre o fenómeno

da criminalidade juvenil. Na sua ausência ou deficiência prevalecem as

percepções sociais induzidas por um contexto, em geral de grande

mediatização do crime e da justiça.

2. Os estudos que sobre esta temática têm vindo a ser desenvolvidos

chamam a atenção para a construção social do conceito de delinquência

juvenil, vista como algo que se desvia do tipo ideal de criança protegida e

submissa à autoridade, e para a sua variabilidade no espaço e no tempo, muito

influenciada pelos meios de comunicação social e pelas representações sociais

que veiculam sobre a delinquência juvenil. A forma como a informação é

produzida e tratada no discurso mediático, contribuindo para a manipulação

noticiosa dos jovens, enquanto categoria problemática, e situando o enfoque

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292 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

nas situações de maior gravidade, por um lado, condiciona as representações

dos cidadãos e, por outro, fomenta o sentimento de insegurança das

populações.

3. A tentativa de desconstruir a imagem veiculada pela comunicação

social levou-nos à reflexão em torno do discurso mediático sobre crianças e

jovens e justiça, categorizado através da análise das notícias de imprensa de

2009, procurando identificar os temas e as suas características principais.

Paradoxalmente, no conjunto dos artigos seleccionados onde os menores são

objecto principal do discurso jornalístico, são-no, sobretudo, como vítimas, não

como agressores. A figura do menor agressor surgiu numa cobertura mediática

que teve três temas principais – os casos de delinquência, as respostas

políticas à delinquência e o funcionamento do sistema que lida com ela – e dois

tipos principais de discurso informativo e interpretativo.

4. Os casos de delinquência tiveram uma cobertura regular ao longo do

ano, com uma cobertura extraordinária em torno dos distúrbios da Bela Vista.

Tratam-se, geralmente, de furtos ou roubos de veículos (por vezes carjacking),

de estabelecimentos comerciais (bombas de gasolina, stands de automóveis,

supermercados), de residências, mais esporadicamente de pessoas na via

pública, caso ocorram em série e empreguem alguma violência. Mais

raramente surgem crimes sexuais, cometidos por jovens sobre outros jovens,

crimes contra a integridade física sem objectivo de roubo, como o gang

Bruxelas Street, que agredia jovens que abordava nas imediações de uma

escola no Cacém, incêndios ou fugas dos centros educativos.

5. As respostas à delinquência, no discurso dos media, centram-se,

sobretudo, na acção do Estado, sendo os artigos dominados por duas questões

principais: a revisão da lei tutelar educativa e a antecipação/alargamento da

idade de imputabilidade penal. A eclosão dos distúrbios da Bela Vista resgata o

tema das respostas políticas. Para além de respostas de cariz mais

sociológico, os media procuram respostas no plano jurídico-institucional e

reabre-se o debate sobre a fronteira justiça de menores/justiça penal. Os

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Conclusões

293

diagnósticos do funcionamento do sistema surgem em artigos que se

debruçam sobre o sistema de reinserção social, pondo a tónica no crescimento

de medidas alternativas.

6. A cobertura do jovem agressor começa por ser uma cobertura de

discurso informativo sobre casos de delinquência, o discurso regular e habitual

dos media. O discurso mais interpretativo, onde o artigo cede algum terreno à

reportagem e à opinião, recorre ao alargamento das fontes citadas para os

especialistas e os políticos. O discurso informativo é mais frequente nos artigos

sobre casos de delinquência regulares, enquanto o discurso interpretativo é

mais frequente nos artigos de diagnóstico do sistema e sobre o caso de

delinquência extraordinário da Bela Vista. Os artigos sobre respostas políticas

são onde mais se cruzam estas formas de discurso. A caracterização mediática

do jovem agressor é, na maioria dos casos, feita com recurso a um retrato

impessoal e baseado em informações de carácter estatístico. Nos artigos em

que a caracterização do jovem agressor é sociologicamente mais densa, as

referências principais referem-se ao contexto familiar, à localização geográfica,

à situação económica e à nacionalidade, caso seja estrangeira.

Que ideia fará um leitor de jornais do jovem agressor? Uma ideia

relativamente difusa, mas poderosamente normativa: um jovem rapaz,

possivelmente de outra etnia, de famílias problemáticas, proveniente de bairros

perigosos, pobre, pouco educado, fascinado por símbolos de riqueza como

carros de alta cilindrada, telemóveis, roupas caras. Nunca a etnia é referida se

for a "nossa", a dominante; raramente é mulher; raramente é de classe média

ou alta. O discurso representa a selectividade dos media na rotulagem do que

é delinquente.

7. A criminalidade e a insegurança são fenómenos complexos que, para

a sua compreensão, exigem o conhecimento das dinâmicas de mudança que

lhes estão correlacionadas, analisadas no ponto 1 do relatório. Destacamos

aqui a crise económica e o crescimento do desemprego estrutural e com eles

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294 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

mais pobreza, desigualdade e exclusão social. A crise económica contribui,

ainda, de forma directa, para o aumento da sensação de frustração, em

especial dos jovens que, em consequência do desemprego e subemprego por

ela provocados, vêem negado o acesso ao consumo de certos produtos

socialmente muito valorizados. Também a crescente urbanização provocou

uma relocalização dos habitantes das cidades socialmente mais frágeis em

bairros desfavorecidos do ponto de vista social. Neste contexto, a pobreza e a

exclusão, embora não contribuindo, de per se, para o aumento da criminalidade

e da violência, podem influenciar a perda de eficácia dos mecanismos de

regulação social, propiciando o surgimento de comportamentos desviantes.

8. Estudos vários mostram que a relação dos jovens delinquentes com o

sistema de justiça evidencia o carácter explicativo das desigualdades sociais,

isto é, entre os jovens que cometem actos delinquentes e aqueles que chegam

a ser institucionalizados, passando pelo contacto com as polícias e os tribunais,

ocorre um processo de filtragem de base classista. Os jovens que tiveram já

algum contacto com a polícia ou com o sistema de justiça são maioritariamente

provenientes da base da estrutura social, o que não significa a existência de

uma cultura delinquente de determinadas fracções das classes populares, mas

antes que a natureza de classe da delinquência é um efeito da natureza de

classe do controlo social. Aliás, a desconstrução das pré-noções da

delinquência juvenil passa por esclarecer que os crimes cometidos por estes

jovens só minoritariamente se reportam a actos violentos contra pessoas,

sendo maioritários os crimes contra o património. Os actos delinquentes por

eles cometidos são, muitas vezes, motivados por necessidades de consumo,

de que é indício a enorme quantidade de furtos de produtos alimentares. A

socialização destes jovens no seio de uma sociedade de consumo é

profundamente conflituante, entrando em situações de desvio pela

impossibilidade de coadunarem os meios ao seu dispor com os fins que são

socialmente valorizados.

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Conclusões

295

9. Dois modelos principais destacam-se na análise sociológica da

delinquência juvenil: o modelo de controlo, segundo o qual o desvio resulta do

colapso das estruturas de autoridade e de controlo social; e o modelo

subcultural, que consiste numa resposta aos problemas com que os jovens se

confrontam no processo de construção da sua identidade social, problemas

esses que provêm da tensão entre dependência e desejo de autonomia. O

modelo do controlo não procura entender os motivos que levam a que os

jovens tenham comportamentos desviantes, mas sim o que leva a que estes

estejam ausentes. Os laços sociais fortes entre os indivíduos e a sociedade,

representada pela família e pela escola, controlam o desvio. Quanto mais fortes

os laços, menor o desvio; quanto mais fracos, maior o desvio. O modelo

subcultural pressupõe a contextualização dos comportamentos dos jovens,

sendo o desvio visto como uma forma de adesão às normas de grupos de

referência, isto é, como uma questão de assimilação de comportamentos de

actores próximos (família, amigos, etc.), cujas representações sociais diferem

daquelas que são socialmente veiculadas na esfera pública.

10. A crise económica e, nalguns países, a mudança ideológica do papel

do Estado, cuja actuação se centra menos nos factores estruturais do risco e

da insegurança e mais no quadro do seu papel repressivo e de controlo social,

privilegiando os factores da insegurança, do medo e da protecção física dos

cidadãos, contribuíram decisivamente para a mudança do paradigma de

intervenção que prevalecia até há algum tempo, sobretudo, nos países centrais

em que o Estado de bem-estar foi mais forte. Neste contexto, o insucesso das

instituições tradicionais de socialização (a família e a comunidade), o desvio e

a delinquência convocam, cada vez mais, a intervenção das instituições

formais do controlo social, isto é, instituições especializadas para lidar com a

delinquência juvenil, leis específicas para os jovens e um sistema de justiça

juvenil para as aplicar.

11. Na abordagem sócio-jurídica a esta temática, salientam-se duas

posições principais: de um lado, aqueles que defendem mais criminalização

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296 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

das condutas e endurecimento das instâncias de controlo, apostando na

relocalização dos jovens em instituições de encarceramento juvenil, sendo no

seu interior que as preocupações de protecção se passarão a efectuar; de

outro, aqueles que defendem uma maior aproximação e intervenção da

comunidade e da família como instâncias de controlo e de prevenção da

delinquência. Para estes, os longos períodos de permanência dos jovens em

instituições, os contactos com outros jovens delinquentes com comportamentos

mais graves que os seus, contrariam o seu propósito basilar de educação para

o direito, passando, pelo contrário, a contribuir para o agravamento dos

comportamentos delinquentes dos jovens que por elas passam. Acentua-se,

por isso, a importância da acção estrutural e integrada que possa actuar sobre

os factores contextuais da vivência dessas crianças e jovens, sejam eles sócio-

culturais ou identitários, fazendo destacar a conexão entre exclusão social,

risco e comportamentos desviantes e delinquentes.

12. As normas de direito internacional são frequentemente convocadas

na discussão sobre esta matéria, em especial, para colocar em causa opções

de reforma de vários Estados relativas ao direito e à justiça das crianças e

jovens. Daí a importância da contextualização deste tema no âmbito do direito

e das recomendações internacionais, de que dá conta o relatório, analisado de

acordo com três vertentes: aprofundamento dos direitos das crianças,

separação entre respostas de natureza sancionatória e respostas a situações

de perigo social e respostas à delinquência de crianças e jovens. Nestas

conclusões referimos as duas últimas.

No que respeita à separação entre respostas de natureza sancionatória

e respostas a situações de perigo social, destacam-se as Regras Mínimas das

Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, conhecidas por

Regras de Beijing, adoptadas em 1985 pela Assembleia Geral das Nações

Unidas que incentivam o recurso aos meios extrajudiciais, como meio de evitar

o formalismo judicial e de afastar a estigmatização. Os Princípios Orientadores

de Riade, por sua vez, relevam a importância de políticas preventivas que

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Conclusões

297

facilitem uma socialização e integração das crianças e jovens, onde se incluem

cuidados médicos, alimentação, habitação e educação. Nesse sentido,

sublinham a importância da adopção de medidas de prevenção da delinquência

juvenil e de medidas que evitem criminalizar e penalizar jovens por

comportamentos que não causem danos sérios ao seu desenvolvimento ou

que não prejudiquem terceiros. A necessidade de um maior investimento na

prevenção é ressaltada pela Observação Geral n.º 10 (2007), salientando a

ausência ou insuficiência de medidas e políticas que apostem na prevenção no

sentido de evitar que as crianças entrem em conflito com a lei. Enfatiza-se a

importância de programas que visem o apoio familiar, o designado potencial

social dos pais, promovam a educação dos jovens e envolvam a comunidade,

designadamente, no âmbito de respostas extra-judiciais e na promoção de

formas da justiça restaurativa.

13. No campo das respostas à delinquência de crianças e jovens, a

Observação Geral N.º 10 (2007) considera que uma política global de justiça de

crianças e jovens deve ter em atenção os seguintes elementos essenciais:

prevenção da delinquência juvenil, intervenção, sempre que possível, sem

recurso a processo judicial, fixação da idade mínima de responsabilidade penal

e de uma idade até à qual poderá ser aplicado o sistema de justiça para

crianças e jovens e assegurar garantias processuais.

No que respeita à justiça juvenil, a Convenção das Nações Unidas sobre

os Direitos da Criança atribui aos Estados-parte, entre outros, a obrigação de

promover o estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume

que a criança não tem capacidade para infringir a lei penal, sugerindo a criação

de sistemas de justiça especiais para as crianças de idade inferior a 18 anos

que pratiquem crimes distintos dos aplicáveis aos adultos. No que toca às

medidas aplicáveis, as Regras de Beijing, além de elencarem um conjunto de

medidas preferenciais a aplicar em detrimento do internamento em instituição,

reforçam o papel da comunidade e da família na aplicação de medidas

alternativas e de reeducação. A reinserção social é também uma preocupação

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298 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

presente nas recomendações internacionais. Nesse sentido, as Regras das

Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados de Liberdade salientam,

igualmente, a importância da adopção de medidas de apoio na reinserção na

sociedade, na família, na educação e no emprego.

14. O enquadramento da delinquência juvenil no âmbito europeu

incorpora algumas tendências comuns, mas também discrepâncias na ordem

jurídica dos Estados-membros. Assim, se os princípios da

educação/reabilitação dos jovens e da resolução extrajudicial de conflitos, em

especial através da mediação, e da salvaguarda de um processo que respeita

os direitos e as garantias processuais informam a legislação da maioria dos

países, há divergências significativas em vários aspectos, como quanto à idade

mínima da responsabilidade criminal, quanto à aplicação de medidas

institucionais e não institucionais, quer quanto ao tipo de medidas, quer quanto

à forma como são aplicadas e executadas (por exemplo, alguns países

desenvolveram programas inovadores no quadro da mediação e da

reconciliação vítima-autor, da prestação de trabalho a favor da comunidade ou

programas educacionais para distintos tipos de autores, como agressores

violentos e agressores sexuais).

Nos últimos anos, em alguns países europeus, como é o caso de

Espanha, verifica-se uma tendência de aproximação, nalgumas vertentes, entre

o regime aplicável aos jovens delinquentes e o regime aplicável aos adultos. A

condição de criança e jovem perde relevância sempre que está em causa o

cometimento de um facto qualificado como crime. Para esta viragem de

orientação em muito contribui o crescente sentimento de insegurança, nem

sempre suportado em dados empíricos, mas sim em casos muito mediatizados

que condicionam as percepções sociais.

15. Longe de sufragar essa tendência, as convenções e recomendações

mais relevantes na vertente da justiça juvenil, adoptadas no âmbito do

Conselho Europeu, têm-se concentrado nos seguintes princípios e orientações:

a) Promoção dos direitos das crianças à informação e à participação nos

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Conclusões

299

processos que as afectam (Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos

das Crianças); b) Prevenção da delinquência juvenil; incentivo à utilização de

medidas de diversão, de desjudicialização e de mediação, evitando que os

jovens tenham contacto com o sistema de justiça criminal; desenvolvimento de

garantias e de aprofundamento de direitos no âmbito do processo judicial,

designadamente, o direito à jurisdição especializada e, sempre que se revele

necessário, a aplicação de medida de internamento em regime fechado, que

ela tenha uma duração o mais curta possível; e o direito a programas

diversificados, no âmbito da execução das medidas, que permitam desenvolver

competências efectivas (Recomendação (87) 20); c) Prevenção de

comportamentos delinquentes por parte dos jovens imigrantes,

designadamente, possibilitando aos jovens de segunda geração as

possibilidades dos autóctones para se poderem integrar no seu país de

residência, começando pela possibilidade de aquisição de residência

(Recomendação (88); d) Definição de estratégias de prevenção dos

comportamentos criminais, incluindo medidas de prevenção de factores de

risco e protecção, como, por exemplo, a discriminação racial, a prostituição, a

mendicidade, a negligência (Recomendação (2000) 20); e) Definição de

políticas relativamente a comportamentos anti-sociais dos jovens em meios

urbanos e ao fenómeno da ghetização nos arredores das grandes cidades

(Recomendação (2001) 1532); f) Novos modos de tratamento da delinquência

juvenil e sobre o papel da justiça juvenil, que, nalguns casos, pode ser aplicada

a jovens adultos com menos de 21 anos, com ênfase nas medidas de

prevenção da para-delinquência e da reincidência e desenvolvimento de

medidas inovadoras de aplicação na comunidade que envolvam os diferentes

actores sociais (Recomendação (2003) 20); g) Execução das medidas visando

melhor proteger os direitos e a segurança dos jovens que entram em conflito

com a lei, promovendo a sua saúde física e mental, bem como o seu bem-estar

social (Recomendação (2008) 11).

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300 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

16. Numa perspectiva prática, os programas e as iniciativas, no âmbito

do Conselho da Europa, dirigidos à problemática da delinquência juvenil são

orientados de acordo com as seguintes directrizes: a) respeito e promoção dos

direitos humanos e dos direitos da criança; b) abordagem integrada, de cariz

preventivo, assistencial, policial e judiciário, não constituindo apenas tarefa das

entidades policiais e judiciárias; c) intervenção pluridisciplinar, como via

essencial para a compreensão do fenómeno e para a elaboração e execução

de programas e de decisões mais adequados, quer numa perspectiva de

prevenção primária, quer de reincidência; d) articulação e coordenação ampla e

sistemática entre as diferentes entidades; e) ampla estratégia de prevenção, de

base local, que permita uma intervenção precoce e que possa contrariar a

exclusão social, a marginalização urbana, o desemprego, a falta de

oportunidades de educação e o absentismo escolar.

Como instrumento de orientação e de aproximação dos vários sistemas

jurídicos europeus, destaca-se a Rede Europeia de Prevenção da

Criminalidade que visa contribuir para o desenvolvimento de acções de

prevenção da criminalidade, quer a nível da União, quer a nível local e

nacional. As áreas da delinquência juvenil, da criminalidade em meio urbano e

da criminalidade associada à droga constituem o objecto de intervenção

privilegiado desta Rede.

Além de programas e acções concretas, como os Programa Hipócrates

e AGIS, no âmbito da prevenção da criminalidade, destaca-se, ainda, o

Observatório Europeu de Justiça Juvenil, criado em 13 de Julho de 2008, como

órgão central de estudo e análise desta problemática, podendo integrar órgãos

da administração pública dos Estados-membros, universidades, centros

académicos e organizações não-governamentais.

17. Co-existem nos países da União Europeia a adopção combinada de

medidas de diferentes tipos de modelos de intervenção sobre os

comportamentos delinquentes das crianças e jovens: modelo de bem-estar;

modelo de justiça; modelo de intervenção mínima e modelo de justiça

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Conclusões

301

restaurativa. No contexto da criação de normas mínimas ou orientações

comuns entre os Estados-membros, alguns autores colocam em discussão a

possibilidade de construção de um modelo único de reeducação e de

reinserção de jovens, com as seguintes orientações: a) Prioridade de uma

intervenção preventiva levada a cabo por programas gerais e específicos para

jovens em risco de exclusão social; b) Necessidade de sistemas eficazes de

apoio no processo de inserção; c) Profissionalização e especialização dos

intervenientes; d) Desenvolvimento de vias alternativas de resolução de

conflitos; e) Fixação de um limite etário mínimo para a aplicação de um sistema

de responsabilidade penal específico para crianças e jovens; f) Meios

adequados ao tratamento dos infractores que não atinjam a idade mínima de

responsabilidade penal, sem excluir as medidas de contenção, impostas de

forma coactiva e com as devidas garantias; g) Redução da tendência de

hipercriminalização de alguns sistemas e de aplicação da privação de liberdade

como resposta a comportamentos anti-sociais constitutivos de infracções

juvenis em razão da sua condição, que deveriam ter um tratamento preferencial

pela via civil ou dos serviços sociais; h) Direito de participação do jovem nos

procedimentos que o afectem, com garantias processuais, bem como a

abertura de vias eficazes de revisão ou de recurso em sede judicial; i)

Elaboração de um regime específico de sanções para os jovens infractores

com respostas distintas das dos adultos, distinguindo os casos de

responsabilidade penal dos de perigosidade, com fixação de franjas de idade

para a imposição de determinados tipos de sanções ou medidas privativas; e j)

Redução da aplicação de medidas que impliquem a privação da liberdade,

incluindo o internamento preventivo.

18. Analisamos nos pontos III.1 e III.2 os casos de França e de Espanha

por se tratar de países em processo de reforma do direito e da justiça no

âmbito da delinquência de crianças e jovens. No caso da França, esta é uma

matéria que tem vindo a sofrer diversas alterações com um duplo propósito:

diversificar as respostas à delinquência juvenil e enfatizar a importância da

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302 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

prevenção e da maior responsabilização dos jovens delinquentes. No campo

processual, procura-se, ainda, com vista à aproximação entre o momento da

prática dos factos e a aplicação de uma medida, tornar o processo mais célere.

O processo de reforma iniciou-se, em 2008, com a criação de uma comissão

pelo Ministério da Justiça francês, presidida por André Varinard, com a missão

de apresentar uma proposta, não só de reestruturação do texto legal, muito

complexo, em virtude das muitas e sucessivas alterações legais, mas também

de apresentar uma proposta de revisão da justiça penal de crianças e jovens.

19. Desenvolve-se a ideia, partilhada pela Administração, de que a

protecção da sociedade contra os actos delinquentes passa pela necessidade

de o jovem sentir a vertente da autoridade. De entre as recomendações

apresentadas destaca-se a fixação nos 12 anos como a idade a partir da qual

se deve responsabilizar penalmente o jovem, devendo manter-se as regras

aplicáveis aos jovens até aos 18 anos, novos procedimentos de audiência de

julgamento, nomeadamente, o julgamento perante tribunal correccional para

jovens, composto por três juízes, sendo apenas um juiz de menores.

Algumas das opções foram muito criticadas, sendo-lhes apontadas

falácias nas razões em que se fundamentam (argúi-se a falta de suporte

estatístico e empírico para a conclusão de que existe um aumento da

delinquência juvenil). De entre as opções que mereceram maior contestação,

destaca-se o abaixamento da idade de responsabilidade penal das crianças e

jovens para 12 anos e o afastamento do princípio da especialidade da justiça

de crianças e jovens (com a criação de um tribunal correccional para jovens

com mais de 16 anos). A contestação geral às propostas do Relatório levou o

Ministério da Justiça a apresentar um projecto-lei, em discussão, que reflecte

um retrocesso relativamente aos primeiros objectivos da reforma e às

propostas apresentadas pela Comissão Varinard. Assim, desapareceram do

projecto-lei propostas bandeira, como a fixação da responsabilização penal dos

jovens aos doze anos e a criação de um tribunal correccional para os jovens

com mais de dezasseis anos.

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Conclusões

303

20. Em Espanha, desde 2001, que a responsabilidade penal das

crianças e jovens tem sido objecto de várias alterações, a última das quais pela

Ley Orgánica 8/2006, de 04 de Dezembro. Com esta lei, os pressupostos de

aplicação da medida de internamento em regime fechado foram alterados,

podendo aplicar-se em caso de prática de delitos cometidos em grupo ou

quando o menor pertença ou actue ao serviço de um bando, organização ou

associação que se dedique à prática dessas actividades. Passou também a

constituir fundamento para aplicar uma medida, o risco do jovem atentar contra

bens jurídicos da vítima e foi criada uma nova medida, que consiste no

afastamento do jovem da vítima, seus familiares ou outra pessoa que o juiz

determine. A lei procedeu, ainda, ao alargamento da duração da medida

cautelar de internamento, que passou de 3 meses prorrogável por mais 3

meses, para 6 meses prorrogável por mais 3 meses e foi revisto o regime de

imposição e execução de medidas, conferindo a lei ao juiz amplas faculdades

para individualizar a(s) medida(s) que o jovem deva cumprir. No que respeita

às medidas aplicáveis e sua duração, as alterações à LORPM têm vindo

progressivamente a endurecer na resposta a alguns factos qualificados como

crimes praticados por jovens, como, por exemplo, nos casos de reincidência e

cometimento de delitos de alta gravidade com a alteração substancial da

duração das medidas.

Se, para alguns autores, a LORPM e sucessivas alterações têm

assentado num modelo de responsabilização que visa o interesse superior da

criança, tendo em conta, não só o delito cometido, mas também uma

pluralidade de factores psicossociais; para outros, as sucessivas reformas da

LORPM mostram que se tem vindo a considerar outros interesses ao mesmo

nível, ou mesmo, colocando em primeiro plano o dano cometido e o interesse

da vítima e, sobretudo, da sociedade que reclama punição.

21. Em vários países, os processos de reforma da justiça de crianças e

jovens têm sido criticados pelas suas fragilidades de sustentação teórica e

empírica e por não entrarem em linha de conta com o conhecimento dos

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304 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

contextos sócio-culturais da delinquência juvenil, o perfil dos seus sujeitos e

com a real dimensão e características dos comportamentos delinquentes das

crianças e jovens. Em Portugal, deparamo-nos com uma situação idêntica. Os

dados empíricos objectivos sobre o fenómeno da delinquência juvenil são

escassos, o que leva à valorização das percepções individuais muito

associadas às visões reflectidas pela comunicação social e permeáveis a

“pânicos sociais” ligados a “sentimentos” de insegurança, não empiricamente

fundamentados. Neste contexto, a retórica de reforma facilmente pode ser

dominada pelos diagnósticos dos comentadores da comunicação social e dos

operadores do sistema. Para a concretização de políticas mais assertivas,

também entre nós se revela necessário um conhecimento mais profundo das

várias vertentes do fenómeno da delinquência juvenil, desde logo, com a

produção de indicadores consistentes que, como mostrámos no relatório, não

existem.

22. A ausência de estudos e indicadores que permitam análises

detalhadas, bem como inferir se, de facto, há alterações significativas nas

dinâmicas da delinquência juvenil, não aconselham reformas estruturantes

nesta matéria que impliquem, por exemplo, mudança de paradigmas ou de

princípios subjacentes ao actual modelo que informa a Lei Tutelar Educativa. A

opinião dos operadores foi também consensual quanto à manutenção do actual

modelo no que respeita às suas linhas estruturantes. Os bloqueios identificados

no âmbito da justiça tutelar educativa não são reconduzidos à própria lei, mas

sim à sua aplicação prática. Esta circunstância não exclui, no entanto, que se

esqueçam alterações, de natureza cirúrgica, que permitam correcções de

alguns aspectos já diagnosticados como bloqueios à concretização dos

objectivos da lei ou em que as soluções legislativas se revelaram desajustadas

à realidade sociológica que lhes é inerente.

Se é certo que alguns do problemas legais, identificados no nosso

estudo de 2004 foram superados pela jurisprudência, como foi o caso da

relevância dada ao tempo passado em medida cautelar de guarda em Centro

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Conclusões

305

Educativo, noutros aspectos continuam a verificar-se soluções diversificadas,

reclamando-se, assim, uma intervenção clarificadora do legislador no interesse

da segurança e certezas jurídicas, especialmente sentidas pela condição da

população a que se dirige. Apresentam-se, assim, propostas de alteração

relativamente à possibilidade de desistência de queixa e ao internamento em

regime semiaberto por período de um a quatro fins-de-semana, à necessidade

de apresentação, por parte do jovem, do plano de conduta para aplicação da

suspensão do processo; e quanto à possibilidade de manutenção da detenção

em flagrante delito no processo tutelar educativo. Reclama-se, ainda, a

necessidade de revisão da conceptualização das medidas e a necessidade de

redefinição do conteúdo da execução da medida de internamento, tornando-se

obrigatória a previsão de programas educativos adequados e cientificamente

validados.

Uma das questões mais veementemente abordadas pelos entrevistados,

que reportam como uma lacuna legal, foi a carência de respostas para os

problemas relacionados com a saúde mental das crianças e jovens que

pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime e da, consequente,

inexistência de diferenciação e especialização da intervenção para jovens com

aquelas necessidades específicas.

Ainda no âmbito das medidas, a eventual aplicação à justiça juvenil de

mecanismos de vigilância electrónica é considerada apenas como uma

alternativa a medidas restritivas da liberdade e nunca como um instrumento

que garanta a execução de medidas não institucionais.

23. A possibilidade de recurso à mediação foi acolhida de forma tímida

no seio da Lei Tutelar Educativa, defendo a maioria dos operadores

entrevistados a necessidade de alargamento e incentivo do recurso a este

instituto, não apenas como forma de composição do litígio e de obviar à

submissão do jovem a uma audiência, mas ainda como mecanismo ou

instrumento da execução da medida aplicada. No entanto, os caminhos de tal

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306 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

alargamento não são unívocos. A maioria dos magistrados entrevistados,

rejeitando como princípio a mediação fora do sistema judicial, reclama uma

maior abertura à escolha de mecanismos de diversão ao dispor do Ministério

Público, fazendo recair sobre esta magistratura a responsabilidade pela

adaptação ao caso concreto das diferentes soluções legislativas. Houve,

contudo, outros operadores que consideram possível e desejável construir um

espaço de mediação a montante do sistema judicial.

A possibilidade de recurso à mediação fora do sistema judicial é

controversa. São levantadas as seguintes objecções fundamentais: a ausência

de controlo do Ministério Público poder “esconder” um conjunto plúrimo de

queixas; não assegurar totalmente a protecção de direitos fundamentais do

jovem; e a forma como a mediação está estruturada nem sempre prever a

qualidade técnica necessária.

24. Desde que a prática de um ilícito desencadeia a abertura de um

processo e determina a necessidade de intervenção das instâncias de controlo

social, são vários os agentes que, no âmbito desse processo, desempenham

um papel activo e de cuja acção depende, em grande medida, a qualidade e

eficácia dessa intervenção. Desde logo, a Lei Tutelar Educativa atribuiu ao

Ministério Público um papel fundamental, cumprindo-lhe adaptar,

processualmente, o destino do inquérito aos vários casos concretos que se lhe

deparam. Esta amplitude de actuação do Ministério Público, que tem por

objectivo encontrar soluções diversificadas para situações diversas, tem

gerado, na prática, disparidades e desigualdades entre jovens, muito induzidas

pela ausência de linhas de orientação comuns da hierarquia, não só

relativamente às circunstâncias de opção pelos vários mecanismos de

diversão, mas também quanto às diligências a realizar e ao envolvimento no

contacto com a sociedade civil.

25. Também ao defensor a Lei Tutelar Educativa atribuiu um papel

preponderante, não só na defesa dos direitos e garantias do jovem delinquente,

mas também na procura proactiva da melhor solução no seu interesse e na sua

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Conclusões

307

educação para o direito. Não obstante, esta função não tem vindo a ser

cumprida de forma cabal. Normalmente assegurada por defensores nomeados,

a defesa dos jovens é tendencialmente pontual e passiva.

26. Os serviços de reinserção social (DGRS) assumem, no quadro da

Lei Tutelar Educativa, particular importância, recaindo sobre os mesmos a

missão de auxiliar o tribunal na tarefa de avaliar a situação concreta do jovem e

a necessidade de educação para o direito, bem como acompanhar a execução

das medidas tutelares educativas aplicadas. A avaliação ponderada e criteriosa

de cada situação, o acompanhamento individualizado de cada jovem e o

trabalho interdisciplinar dos vários técnicos que compõem as equipas da DGRS

são, assim, elementos fundamentais para alcançar as metas que a Lei Tutelar

Educativa se propõe alcançar.

Contudo, algum desequilíbrio na composição profissional das equipas e

as sucessivas adaptações às mudanças organizacionais determina que as

diferentes valências, que só uma equipa multidisciplinar tornaria possível

executar, nem sempre sejam cabalmente cumpridas. Várias vozes

manifestaram, ainda, a preocupação de que a perda das competências

relacionadas com os processos tutelares cíveis tenha dado origem a uma

cultura que coloca um enfoque excessivo nos comportamentos delituosos,

derivando numa visão predominantemente penalista por parte dos próprios

técnicos. Esta circunstância pode ser agravada quando ao mesmo técnico são

atribuídos, simultaneamente, processos tutelares educativos e processos

penais.

27. A centralidade das funções da DGRS nesta matéria exige uma maior

capacitação de recursos técnicos e, quiçá, uma outra organização e articulação

com o sistema de justiça. A pressão das solicitações por parte dos tribunais

esbarra, por um lado, como os limitados recursos humanos existentes e, por

outro, com a exigência de execução, por parte dos técnicos, de múltiplas

tarefas, também induzidas pelo funcionamento burocrático do sistema judicial,

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308 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

que vão afastando os técnicos do terreno social, o que acaba por ter

consequências na prevenção da delinquência juvenil. Reclama-se, por isso,

mais proximidade aos diferentes contextos do jovem e mais acompanhamento

de todo o processo.

28. Referimos amplamente, ao longo do relatório, que o fenómeno da

delinquência juvenil não pode receber uma resposta única por parte do sistema

judicial e para(judicial). A própria reforma do direito de crianças e jovens, ao

separar a Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de

Setembro) da Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro)

reconheceu a existência de zonas “cinzentas”, em que as pontes entre aqueles

dois tipos de intervenção eram necessárias. Verificámos, no entanto, que

permanecem ou mesmo se terão agravado as dificuldades de articulação entre

as duas leis, continuando, nalguns caos, a lei tutelar educativa a assumir-se

como resposta a lacunas de intervenção da promoção e protecção. A

justificação mais frequentemente avançada para esta contaminação da

promoção e protecção pela tutelar educativa foi a ausência de instituições de

contenção no âmbito dos processos de promoção e protecção, aliada à

frequente recusa por parte das instituições de acolhimento de crianças e jovens

que revelem comportamentos problemáticos.

29. No âmbito da aplicação prática da lei tutelar educativa, destaca-se

um problema transversal a todo o tipo de processos do sistema judicial: o

problema da morosidade. Todos os estudos e recomendações alertam para a

importância da celeridade em processos desta natureza, como condição de

uma intervenção eficaz. O sistema de justiça continua, contudo, a não ser

capaz de responder a essa necessidade, fruto, não só das suas próprias

incapacidades culturais e organizativas, mas também das desarticulações entre

os vários agentes e dos desperdícios de conhecimento do jovem e do seu

contexto social, que leva a que, por vezes, se espere por informações que já

constam de outros processos. A execução das medidas tutelares aplicadas

também constituiu uma das preocupações centrais dos vários entrevistados,

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Conclusões

309

surgindo com maior acuidade duas questões: o necessário investimento em

programas educativos cientificamente validados e a necessidade de melhor se

definirem os conteúdos de algumas medidas tutelares educativas.

30. A ausência de mecanismos que permitam uma aproximação gradual

do jovem, sujeito a medida de internamento, ao meio aberto, criando pontes

que consintam na solidificação do trabalho realizado no centro educativo,

continua a ser uma deficiência do sistema. Este acompanhamento, na saída do

centro educativo, é visto como um dos componentes essenciais para o sucesso

da aplicação da medida tutelar. Os momentos de flexibilidade, criados pela lei

dentro da execução da medida tutelar de internamento, não se revelam

suficientes. De entre os problemas identificados, emerge a dificuldade prática

de articulação entre a acção tutelar e a acção da promoção e protecção.

Encontrar uma resposta de flexibilização da saída de centro educativo é

fundamental. Mas pode não ser suficiente. Tratando-se de crianças e jovens e

relembrando o que acima se disse sobre a relação complexa entre risco social

e delinquência juvenil, a prevenção da reincidência pode passar, em muitos

casos, pelo acompanhamento continuado do jovem no âmbito da promoção e

protecção.

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RECOMENDAÇÕES

2

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2 RECOMENDAÇÕES

São duas as conclusões principais deste estudo. A primeira é que mais

do que a mudança na lei, o que é necessário é criar as condições para a

sua plena e efectiva aplicação prática. É no desempenho funcional das

instâncias de controlo e de reinserção social, cujos problemas estão

diagnosticados, alguns deles, há vários anos, nas articulações que as

diferentes instituições, públicas e privadas a actuar no terreno, devem

estabelecer que se devem concentrar os esforços na busca de uma resposta,

mais eficiente e eficaz, no combate à delinquência de crianças e jovens.

O fim último da intervenção do Estado nesta matéria deve conjugar

protecção e controlo social, isto é, não deve privilegiar a acção securitária de

potenciais vítimas e da sociedade em geral dos fenómenos delinquentes, mas,

também, procurar, no maior número de casos possíveis, resolver o problema

estrutural que está no seu lastro. Esta é, aliás, a via securitária mais

consolidada a médio e longo prazo. Faltam-nos estudos de reincidência, que é

urgente realizar, mas o conhecimento existente e as percepções sobre o

fenómeno da delinquência juvenil fazem-nos avançar com a hipótese de que a

grande maioria das crianças e jovens a quem é aplicada uma medida tutelar

educativa, não só já tinha tido um processo de promoção e protecção, como

continuará, na sua vida jovem e adulta, a ser objecto da intervenção das

instâncias de controlo formal, quer com mais processos tutelares, quer já no

âmbito da acção da justiça criminal. Pergunta-se, então, para que serve aquela

múltipla intervenção, despendendo-se recursos enormes (magistrados,

técnicos, funcionários) sem que produza um resultado eficazmente

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314 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

consolidado? A manter-se este modelo de intervenção, burocrático e sem

reflexão consequente, de pouco servirão as reformas legais.

Consideramos, por isso, que é preciso olhar, numa perspectiva sistémica

e com coragem política, para a realidade nas suas várias vertentes. Se, em

geral, os fenómenos sociais não devem ser compartimentados, no caso de

crianças e jovens, essa estanquidade ainda é mais perniciosa. No modelo

actual de intervenção, as desarticulações no âmbito da intervenção social

acabam por se repetir no contexto judicial. Neste, a articulação que se

reclama, além de permitir uma decisão que tenha em conta a situação da

criança ou jovem na sua plenitude espartilhada por vários processos tem,

ainda, um objectivo central de combate ao desperdício. A informação existente

em um dado processo pode servir a necessidade de um outro evitando a sua

repetição com o consequente desperdício de tempo e dinheiro. É na avaliação

do caso concreto que os magistrados (Juiz e Ministério Público) têm que decidir

a necessidade ou não de informações complementares.

A segunda conclusão geral é que a discussão sobre a resposta

institucional à delinquência juvenil, que encontra uma das suas

dimensões na Lei Tutelar Educativa, é pouco informada em estudos e

dados consistentes, dominada por pré-compreensões induzidas por

conhecimentos parciais e, muitas vezes, pela pressão da comunicação social e

suas retóricas discursivas centradas em casos ou episódios-limite. Este viés do

conhecimento condiciona a leitura do fenómeno, experimentando uma

tendência para reduzir o enfoque a questões de particular gravidade. A

discussão tende a centrar-se no que constitui as representações sociais da

gravidade dos comportamentos desviantes e na necessidade de lhes dar

resposta, esquecendo-se as diferenças várias que a temática encerra.

A escassez de dados oficiais e de estudos empíricos relacionados com a

delinquência juvenil pode ainda ter consequências na prática judiciária, uma

vez que tais representações sociais tendem também a sedimentar-se nas

percepções dos operadores, informadas pela sua experiência profissional, pelo

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Recomendações

315

contacto pontual com alguns fenómenos e pelo que é reproduzido pelos meios

de comunicação social.

Apesar de escassos, os dados oficiais existentes, como se refere nos

pontos I.1 e IV.1, não indiciam um agravamento da delinquência de crianças e

jovens. Em consonância, os operadores entrevistados não colhem percepções

mais negativistas, que justifiquem a alteração do modelo adoptado pela Lei

Tutelar Educativa, embora alguns, sobretudo os que exercem funções nos

grandes centros urbanos, manifestem alguma preocupação quanto ao

agravamento das condutas delinquentes de alguns jovens e, em especial,

quanto ao desenvolvimento da sua acção grupal. Não obstante ter sido

referida a necessidade de alguns ajustamentos pontuais da lei, a tónica

das fragilidades no combate à delinquência de crianças e jovens não é

colocada na opção pelo actual modelo tutelar educativo, mas sim nas

condições da sua aplicação prática. A necessidade de responder a uma

pressão social da insegurança, não empiricamente fundamentada, não se

confunde, assim, com aquiescências apriorísticas de um certo status quo.

À luz do trabalho realizado apresentamos, de seguida, os principais

pontos que, no nosso entender, convocam uma intervenção nesta matéria.

2.1 PREVENÇÃO: FUNDAMENTO ÚLTIMO DA INTERVENÇÃO TUTELAR EDUCATIVA

Há uma ideia transversal ao discurso de magistrados e técnicos: a acção

sobre o risco e a prevenção da delinquência devem nortear as políticas

públicas de controlo social dirigidas às crianças e jovens, corporizando a

unidade do sistema de intervenção, de modo a congregar as várias instituições

públicas, privadas e do terceiro sector. A plêiade de instituições que no

âmbito da protecção e tutelar contactam com o jovem e com os seus

contextos familiares, escolares e sociais, deve transportar na sua acção o

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316 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

referencial unificador de um programa estrutural público de prevenção da

delinquência juvenil.

A urgência de uma intervenção precoce junto do jovem é um lugar-

comum nas recomendações e instrumentos normativos internacionais e

nacionais. Em diametral oposição, ou, pelo menos, não lhe dando a mesma

consistência prática, salientam-se as fragilidades e dispersão programáticas, a

intervenção burocratizada e sobreposta de várias instituições, a ausência de

um diálogo articulado entre as mesmas, o desperdício da experiência e do

conhecimento adquirido sobre os jovens e os seus contextos, mas também do

conhecimento das instituições de proximidade. O edifício do sistema de

intervenção junto da criança e do jovem em desvio e/ou delinquente é,

assim, construído sem um sólido alicerce: a prevenção, que deve procurar

precatar o crime e a violência, partindo da identificação concreta dos factores

de risco e do desvio, definindo medidas que, em acção concertada entre as

várias entidades, possam actuar sobre os grupos socialmente mais

vulneráveis.

A nossa primeira recomendação vai, assim, para a urgente execução de

um Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil, com vista à

identificação dos factores de risco associados aos comportamentos

delinquentes dos jovens, à definição das áreas de intervenção, ferramentas a

utilizar, entidades e articulação entre elas, bem como da programação

calendarizada.

Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil

A elaboração de um plano nacional para a prevenção da

delinquência juvenil tem, desde logo, uma virtualidade basilar: a

convergência num único documento de uma agenda estratégica, que

mobiliza um conjunto diversificado de instituições e organismos com

olhares e competências diferentes sobre a mesma realidade social.

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Recomendações

317

Apesar de um contexto de crise e de contenção do investimento social do

Estado, a adopção de um plano de prevenção da delinquência juvenil sustenta-

se numa proposta de combinação de diferentes desideratos (desde logo,

controlo e justiça social) num quadro de maior eficiência e de qualidade da

acção conjunta do Estado e da sociedade. A médio e longo prazo, os ganhos

decorrentes do combate a desperdícios vários superarão algum esforço de

investimento inicial. O importante é que tal Plano seja devidamente organizado,

coordenado e avaliado. Cremos que, com ele, será possível, com coerência,

enriquecer a diversidade de respostas possíveis e dotar de unidade a

intervenção multi-facetada e multi-disciplinar das várias instâncias.

Como vimos ao longo do relatório, é nas situações-fronteira em que o

jovem, na maioria das vezes em risco, indicia os primeiros sinais de pré-

delinquência que o sistema de intervenção falha. Mas, também, depois de

delinquir, no modo como acautela a reinserção e previne a reincidência.

Sucumbe ou é insuficiente, quer na actuação sobreposta e desarticulada das

várias entidades, quer no vazio deixado pela inexistência de organismos com

as valências adequadas. Aquele Plano incorporará a delimitação e

articulação da acção das várias entidades, a definição de um programa

progressivo de acção e de investimento em equipas estruturadas de

modo a responderem às diversas situações. Avivamos aqui, pela sua

relevância, as respostas necessárias, por um lado, às situações que reclamam

cuidados de saúde mental e/ou de outras patologias e, por outro, aqueloutras

em que se revele necessário assegurar uma institucionalização contentora da

criança ou do jovem fora da acção da lei tutelar educativa.

Acresce, ainda, que a adopção de um plano nacional especificamente

voltado para a prevenção da delinquência juvenil apartará o tratamento deste

fenómeno de tentações penalistas, designadamente, da tentativa de encontrar

na Lei-Quadro de Política Criminal as prioridades no âmbito da justiça tutelar

educativa. A realidade autónoma abarcada pelo fenómeno da delinquência

juvenil reivindica que as respostas que lhe sejam dirigidas sejam libertadas do

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318 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

espartilho da política criminal definida para adultos. Assim o exigiam já as

Directrizes de Riade.

Incorporando instituições de diferente natureza, fins e competências, a

organização e coordenação desse Plano pode distribuir-se por mais de um

sector do Estado, englobando, assim, várias entidades. Consideramos,

contudo, que dadas as suas actuais competências e funções, conhecimento da

problemática e inserção no terreno, a Direcção-Geral de Reinserção Social

pode desempenhar um papel central.

Princípios gerais

O Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil constituirá

uma resposta institucional articulada tendo em vista a identificação e acção

sobre os factores de risco que podem influenciar o surgimento ou agravar a

reincidência de fenómenos de delinquência juvenil e deverá assentar nos

seguintes princípios gerais:

Planeamento a curto, médio e longo prazo e intervenção articulada

O investimento na prevenção da delinquência juvenil é um processo

complexo, que exige a definição de objectivos e planeamento a curto, médio e

longo prazo e intervenções articuladas junto dos vários factores de socialização

da criança e do jovem.

Heterogeneidade geográfica e sócio-cultural

Os programas de prevenção da delinquência juvenil devem prever a

complexidade da realidade social, rejeitando-se tendências para apresentação

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Recomendações

319

de um modelo único que não atenda à diversidade dos contextos sócio-

culturais.

Intervenção de base piramidal

Tendo em conta o respeito pela autonomia e livre desenvolvimento da

personalidade do jovem e que este se forma junto da comunidade onde cresce,

dever-se-á construir uma intervenção de base piramidal, em que a base é

constituída pelas instituições comunitárias e a acção formal do controlo social

ocupará um espaço mais reduzido.

Linhas Estratégicas da Intervenção

O Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil definirá um

conjunto de linhas estratégicas de intervenção. À luz do trabalho realizado

avançamos, como linhas a dar especial relevância, as seguintes:

Levantamento de recursos e de boas práticas

Considerando a diversidade institucional e da realidade social, é preciso

proceder a uma inventariação das boas práticas e dos recursos existentes na

comunidade tendo em vista a sua futura optimização. Essa inventariação é

fundamental para apurar as necessidades sociais e de intervenção local e de

proximidade, e, a partir de tal conhecimento, desenvolver estratégias de

intervenção conjuntas, pontes de diálogo e de informação e, eventualmente,

definir competências e objectivos para o conjunto das instituições.

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320 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Prevenção pela integração

Os programas de prevenção da delinquência juvenil deverão ser

especialmente dirigidos aos factores de socialização das crianças e jovens e

promover a intervenção nos seus espaços estruturais – comunidade, redes de

sociabilidade social, escola e família –, com respeito pelo livre desenvolvimento

da sua identidade. Neste âmbito, é de ter em especial atenção:

a) as experiências de mediação social, com a capacitação de actores

estratégicos ao nível local para a pacificação e solução de conflitos e promoção

dos direitos humanos, devendo dar-se especial atenção às experiências

conhecidas entre nós de mediação intercultural. As profissões jurídicas, ao

intervirem nos processos de promoção da mediação social, enquanto

formadores, dão à comunidade ferramentas técnicas para a resolução de

conflitos, mas também recebem conhecimento sociológico para a compreensão

do carácter social dos conflitos;

b) aos programas de capacitação dos jovens para os direitos, com

enfoque nas especificidades de género, multiculturalismo (imigração) e etnia,

de forma que se tornem actores multiplicadores, reproduzindo o conhecimento

adquirido perante os seus pares;

c) aos programas de formação, incluindo projectos educacionais e de

formação profissional, e de inclusão social de jovens expostos a situações de

violência e de especial vulnerabilidade social;

d) às acções culturais, artísticas e desportivas, especialmente dirigidas

aos jovens;

e) aos processos de democratização e participação dos jovens no

processo educativo, incentivando o sentimento de pertença ao meio escolar;

f) aos processos de capacitação e promoção da participação activa da

mulher, com especial atenção às situações de vulnerabilidade, como, por

exemplo, violência de género.

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Recomendações

321

Envolvimento da comunidade

A estruturação da intervenção social de base piramidal tem como

fundamento a necessidade de envolvimento da própria comunidade, não só no

plano da intervenção, mas também na definição de prioridades de investimento

local nesta matéria. A criação de um espaço de participação local, onde a

própria comunidade possa reflectir sobre os pontos nevrálgicos, modos e

prioridades da intervenção, permitirá, em simultâneo, aproveitar o

conhecimento privilegiado da proximidade e responsabilizar a própria

comunidade pelos resultados obtidos. Para este espaço deverão ser trazidos

os próprios jovens, enquanto membros activos da sociedade, de modo a

envolvê-los directamente nos processos de prevenção da delinquência juvenil.

Em alguns países, os processos participativos têm sido implementados

através da realização de sessões públicas entre a sociedade civil e instituições,

públicas, privadas e do terceiro sector (a promover pela(s) entidade(s) mais

directamente responsáveis pelas políticas de intervenção), bem como através

da criação de conselhos da comunidade para a discussão de determinada

política pública, fomentando, assim, um espaço comum de identificação de

necessidades, discussão de projectos de intervenção, reivindicação política,

controlo e compromisso por parte da sociedade civil.

Qualificação dos profissionais

Identificámos três bloqueios principais a uma intervenção eficaz nesta

matéria: o desequilíbrio na composição das equipas, considerando a formação

dos profissionais que as compõem; a falta de formação direccionada para a

prevenção da delinquência; e a limitação das metodologias aplicadas na

intervenção social. Este é um ponto central para a concretização de um modelo

de intervenção qualificada. É necessário definir o padrão de

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322 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

multidisciplinaridade indispensável ao conhecimento integrado da realidade

social, enriquecendo as várias equipas com valências formativas diversificadas,

investindo na sua formação continuada, com ênfase não só na formação sócio-

técnica, mas também na formação para os direitos humanos e para o

atendimento de grupos sociais vulneráveis (mulheres, homossexuais,

imigrantes, etc), dotando-os, ainda, das ferramentas exigíveis à prossecução

dos seus objectivos.

Sistema de monitorização e avaliação

Perpassa ao longo texto um conhecimento fragmentado do fenómeno da

delinquência juvenil, decorrente, não só dos limitados dados oficiais, mas

também do enfoque sectorial dos estudos empíricos realizados sobre

fenómenos específicos. O investimento no conhecimento do fenómeno junto

das áreas metropolitanas com maior densidade populacional é disso exemplo.

Os programas de prevenção devem basear-se em estudos de diagnóstico e

prognóstico, e ser objecto de monitorização exigente durante a sua aplicação.

Não se trata de novidade particular, constituindo a avaliação ongoing um

instrumento preferencial da avaliação de planos de execução a médio-longo

prazo.

Partindo dos princípios gerais acima enunciados, e tendo por base as

linhas estratégicas de intervenção delineadas, o Plano deve prever um

conjunto de tarefas concretas e respectiva calendarização de modo a que

estabeleça uma execução eficaz.

Apesar de o sistema tender a centra-se no remedeio do mal cometido,

isto é, na prevenção secundária e na prevenção terciária, às quais o Plano

também se dirige, embora o seu enfoque seja na prevenção primária, ainda

assim há caminhos por trilhar, em especial, com o investimento na justiça

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Recomendações

323

restaurativa e no acompanhamento pós-aplicação de medida tutelar educativa

pós-institucionalização.

2.2 Mediação

A Lei Tutelar Educativa mostrou-se tímida no acolhimento da mediação,

não obstante a convergência com os princípios e recomendações

internacionais de desjudicialização e informalização da justiça, que se

depreende da sua Exposição de Motivos, segundo a qual “a mediação ou,

numa acepção mais ampla, a „justiça reparadora‟ ou „restaurativa‟ tem vindo a

ser considerada, por alguns observadores, como uma nova e promissora

modalidade de resposta ao crime”. Publicada em 1999, ano em que as

experiências de mediação no sistema (para)judicial ainda eram escassas entre

nós, a Exposição de Motivos da Lei Tutelar Educativa dá conta da titubeante

posição assumida quanto à sua validade e papel a desempenhar no combate à

delinquência juvenil.

Salienta-se a validade da dogmática, enquanto alternativa aos modelos

retributivos e de reinserção “nos sistemas de delinquência juvenil objecto de

tratamento penal pelo abaixamento dos limiares de imputabilidade”, mas argúi-

se que “nos outros, a sua função deve examinar-se mais como instrumento de

educação e de inserção e menos como forma de pacificação em que a

comunidade ficaria quite com o facto, ainda que o jovem pudesse não melhorar

com a intervenção comunitária”. Assume-se, contudo, que a mediação, no

âmbito da Lei Tutelar Educativa, deverá entender-se “como modo de resolver a

situação-problema sem recurso a procedimentos formais”, tendo sempre em

vista a educação do jovem para o direito como fundamento da intervenção

tutelar educativa.

Apesar da margem de discricionariedade enunciada pela lei no que

respeita ao procedimento de mediação, a LTE, optando por uma via mais

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324 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

restrita, integrou o recurso à mediação apenas no contexto da diversão (como

forma de alcançar a suspensão do processo – artigo 84.º, n.º 3) ou como forma

de obter um consenso quanto à medida tutelar a aplicar na audiência preliminar

(artigo 104.º, n.º 3, alínea b)). Acresce que o recurso à mediação surge como

mera possibilidade, sujeita ao poder discricionário do juiz (no âmbito da

audiência preliminar), ou exige a iniciativa do próprio jovem, seus pais,

representante legal ou quem tiver a sua guarda de facto (na suspensão do

processo).

A mediação é, assim, acanhada, não possuindo expressão significativa

na intervenção tutelar educativa, o que não surpreende que, na prática, não

tenha conseguido alcançar consistência suficiente para se tornar uma resposta

do sistema.

A afirmação da mediação como via alternativa à resposta formal,

convocando, no processo de composição do litígio, não só o envolvimento

activo de agressor e vítima, mas também da família e da comunidade permite

criar mais um filtro para aquelas situações que não devem ser submetidas ao

estigma inerente à audiência formal. Mas, sobretudo, potencia a pacificação

social e a prevenção da reincidência ou actuar mais rapidamente e com o

envolvimento de todas as partes próximas do conflito: jovem delinquente,

vítima e comunidade, colocando o jovem, de forma mais eficaz, em contacto

directo com as consequências dos seus actos.

É, assim, indispensável estimular o recrudescimento da mediação

no âmbito tutelar educativo. À semelhança do que ocorre em outras áreas do

direito, há opiniões divergentes quanto ao modelo de justiça restaurativa a

adoptar. Propõem-se mecanismos de composição dos litígios fora do sistema

judicial, podendo, para alguns casos, substituir-se o procedimento tutelar

educativo pela composição do litígio no âmbito da mediação oficialmente

reconhecida; o recurso à mediação no âmbito do processo judicial, sob a égide

da autoridade judiciária competente; ou a previsão daquele mecanismo como

instrumento de execução de uma medida tutelar educativa aplicada.

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Recomendações

325

A marca distintiva da justiça restaurativa, e, dentro desta, da mediação,

é, justamente, a sua diversidade, que deverá ser acolhida na Lei Tutelar

Educativa. Contudo, dada a fraca implementação deste recurso, talvez seja,

pelo menos num primeiro momento, que, atendendo às atribuições estatutárias

do Ministério Público relativas à infância e juventude, a mediação seja

incentivada no âmbito da sua intervenção.

Propomos, assim, a criação de um sistema de “tribunal

multiportas” (Galanter: 1993), que abarca no seu seio aqueles diferentes

mecanismos de composição dos litígios, abrindo a possibilidade de oferecer

respostas diferenciadas a situações diversas e de contrapor ao sistema

autoritário clássico o potencial emancipatório que a promoção do consenso

abarca. A Lei Tutelar Educativa deverá acolher, assim, momentos diferentes de

possibilidade de recurso à mediação, com objectivos distintos.

Chama-se a atenção que a criação de determinada inovação deve ser

cuidadosamente planeada e dotada das condições para o seu funcionamento

eficaz. Para uma inovação desta natureza, as suas características de

proximidade, celeridade e informalidade devem ser plenamente asseguradas.

Caso contrário, rapidamente a inovação multiplica as resistências e se

transforma em algo descartável. A via das experiências piloto, cuidadosamente

avaliadas, é sempre a via mais segura.

A mediação no inquérito tutelar educativo

À semelhança das opções tomadas no âmbito da mediação penal para

adultos, no âmbito do inquérito tutelar educativo, a par da possibilidade de

impulso por parte do jovem, seus representantes legais ou quem tenha a sua

guarda de facto à data, deverá ser expressamente prevista a competência ao

Ministério Público para, entendendo que a mediação poderá responder

adequadamente às exigências de prevenção, remeter o inquérito para

mediação. A previsão expressa do recurso à mediação no inquérito tutelar

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326 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

educativo, além de o seu impulso ser também explicitamente da

competência do Ministério Público, deixa, assim, de se cingir à

elaboração e execução do (espartilho) do plano de conduta com vista à

suspensão do processo, podendo dar origem ao seu arquivamento, após

o cumprimento do acordo alcançado em sede de mediação. Este acordo

deverá ser sujeito a homologação por parte do Ministério Público, que sindicará

o seu conteúdo, nomeadamente para evitar acordos que ofendam a dignidade

do jovem ou que sejam manifestamente desproporcionados. A execução do

acordado deverá, da mesma forma, ser aferida pelo Ministério Público, que, em

caso de cumprimento, arquivará os autos.

Além da avaliação quanto às exigências de prevenção do caso concreto,

que deverão sempre ter como referência que a composição de interesses

poderá ser um sintoma positivo de responsabilização do jovem e assunção dos

valores tutelados pela lei penal, dever-se-á prever quais os factos qualificados

como crime que poderão dar origem a tal processo de mediação, por referência

à moldura penal aplicável.

A mediação para aplicação de medida tutelar

A possibilidade de determinação da intervenção dos serviços de

mediação na audiência preliminar é solução legislativa de manter, devendo ser

estimulado o recurso a esta forma de composição dos interesses, através da

escolha de uma medida tutelar negociada, que permita uma responsabilização

do jovem pelos actos praticados.

A mediação na execução da medida tutelar educativa

A possibilidade de recurso à mediação não se deve esgotar, enquanto

mecanismo de obviar a realização da audiência e aplicação de medida tutelar

ao jovem infractor, devendo completar-se tal sistema com a sua previsão do

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Recomendações

327

durante a execução da medida tutelar educativa aplicada, como ferramenta de

conciliação entre o jovem infractor e a comunidade, que aqui fecha o ciclo da

sua intervenção no fenómeno da delinquência juvenil.

Para tanto, dever-se-ão aproveitar as estruturas de base já existentes,

como os gabinetes de mediação de conflitos que funcionam em algumas juntas

de freguesia, incentivando-se o seu alargamento, pelo menos, às localidades

em que o fenómeno da delinquência juvenil seja mais intenso.

2.3 Alterações legais

A Lei Tutelar Educativa procurou, como via instrumental para atingir o

seu objectivo de responsabilização aliado à protecção das garantias das

crianças e jovens, dotar o processo de positivação pormenorizada, tornando a

tramitação processual objectiva criando, legalmente, momentos de

maleabilidade e plasticidade, como forma de adaptação à rápida mutação das

circunstâncias envolventes do jovem. É, assim, que a certeza e segurança

jurídicas surgem como características de promoção da justiça e da igualdade,

aliando-se às ideias de previsibilidade e estabilidade da vida jurídica.

Não obstante, algumas previsões normativas continuam a gerar

soluções diferentes para casos semelhantes, à semelhança do verificado no

nosso estudo de 2004. Recomenda-se, por isso, que o legislador clarifique

alguns pontos. Destacamos dois: a relevância a dar à desistência de denúncia

por parte do ofendido e a consequência da aplicação da medida de

internamento em regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-

semana, na execução da medida tutelar não cumprida.

Resultou, ainda, no curso do trabalho de campo, a necessidade de

serem alterados alguns aspectos específicos da lei em vigor. Reportamo-nos à

previsão da necessidade de apresentação, por parte do jovem, do plano de

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328 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

conduta para aplicação da suspensão do processo (que deixa a aplicação de

tal instituto nas mãos das diferentes práticas dos profissionais do foro e dos

técnicos de reinserção social); e o reduzido âmbito da manutenção da

detenção no flagrante delito em processo tutelar educativo.

Da (ir)relevância da denúncia por parte do ofendido

A Lei Tutelar Educativa assumiu expressamente a opção legislativa de

dar relevância à iniciativa do ofendido, nos casos em que, segundo as regras

do direito penal, o procedimento dependeria de queixa ou de acusação

particular, desconcentrando para um membro da comunidade (o ofendido) o

primeiro juízo sobre a necessidade de educação do jovem para o direito. No

entanto, a lei é omissa quanto à relevância ou irrelevância da desistência desta

denúncia por parte do ofendido no destino do procedimento tutelar educativo, o

que tem gerado, como demonstrámos no relatório, interpretações distintas e

práticas diversificadas nos vários tribunais. É, assim, necessário tomar uma

opção clara quanto a esta matéria e plasmá-la na lei.

Defendemos que deve ser dada relevância à desistência da

denúncia por parte do ofendido, que deverá culminar no arquivamento do

procedimento tutelar educativo. Fazemo-lo por três razões principais. A

primeira, em coerência com o acima referido quanto à importância da

composição de litígios no seio da própria comunidade. Em segundo lugar, em

situações não raras, trata-se de matérias atinentes à reserva da vida privada do

ofendido que deverá ser protegida e submetida à sua disponibilidade. Em

terceiro, não é despiciendo realçar que, em caso de desistência de denúncia,

ao Ministério Público está reservada a avaliação e decisão de, considerando

haver fundamento para tal, instaurar processo de promoção e protecção ao

jovem em causa.

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Recomendações

329

Medida de internamento em regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-semana

A maleabilidade e plasticidade do processo tutelar educativo está

expressamente prevista na apreciação do cumprimento das medidas tutelares.

Quanto às medidas tutelares não institucionais, o legislador previu, para as

situações em que o jovem se tenha colocado intencionalmente em situação

que inviabilize o cumprimento da medida ou a tenha violado, de modo grosseiro

ou persistente, os deveres inerentes ao seu cumprimento, a possibilidade de o

juiz, na sua revisão, ordenar o internamento em regime semi-aberto, por

período de um a quatro fins-de-semana.

Continua a verificar-se a disparidade de interpretação daquela norma

legal, sendo a mesma aplicada como medida substitutiva pelo incumprimento

de medida tutelar não institucional, mas também como forma de persuadir o

jovem ao cumprimento da medida não institucional (não se substituindo a esta).

Também aqui é preciso fazer cessar a incerteza jurídica e tomar uma opção

legislativa.

Da nossa parte, entendemos que a aplicação do internamento em

regime semi-aberto, por período de um a quatro fins-de-semana, não deve

fazer cessar a medida tutelar não institucional aplicada e não cumprida. A

medida tutelar educativa não institucional primeiramente aplicada é a que

corresponde à necessidade de educação do jovem para o direito, devendo o

internamento em fins-de-semana, a manter-se, ser visto como um instrumento

ao serviço da medida tutelar determinada para persuasão do jovem ao seu

cumprimento e como mais uma ferramenta de educação para o direito.

No entanto, o trabalho de campo desenvolvido demonstrou que ao

internamento em regime semi-aberto, por período de um a quatro fins-de-

semana, não é reconhecida, na prática, qualquer capacidade de persuasão do

jovem ou sequer é entendida como um momento de possibilidade de

intervenção junto do jovem. O internamento é frequentemente executado vários

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330 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

meses após a sua aplicação e os centros educativos não se encontram

apetrechados para desenvolver uma intervenção direccionada a esses jovens.

Ademais, são os próprios técnicos que referem a dificuldade de

desenvolvimento de ferramentas de intervenção para um período tão reduzido

e fragmentado.

Tratando-se de medida que a experiência mostra ser ineficaz, a sua

aplicação é negativa do ponto de vista do projecto educativo do jovem, sendo o

próprio sistema a reproduzir o seu próprio fracasso. É, assim, necessário

repensar a pertinência desta medida. Abrem-se duas alternativas: ou se

densifica a sua aplicação ou mostrando-se ineficiente e mesmo perniciosa

para a coerência do sistema deve ser abolida e substituída por alternativas

mais eficientes.

Iniciativa da apresentação do plano de conduta para aplicação da suspensão do processo

Defendemos uma concepção de tribunal que permita albergar no seu

seio diferentes respostas a situações diversas. A suspensão do processo,

prevista na Lei Tutelar Educativa, dá corpo à preocupação de diversificar as

respostas à criminalidade de pequena e média gravidade, evitando o efeito

estigmatizante da submissão do jovem a uma audiência. A previsão da

participação dos pais, representante legal ou pessoa que tenha a guarda de

facto do jovem na elaboração do plano de conduta, tem a virtualidade de

chamar e responsabilizar os membros mais próximos da convivência social do

jovem à participação na resolução da situação-problema.

Apelando à necessidade da participação do jovem e da sua

responsabilização face aos factos praticados e ao desvalor social que os

mesmos transportam, o legislador desenhou o instituto da suspensão do

processo como um acto de envolvimento do jovem, determinando que um dos

pressupostos para a aplicação desta medida de diversão é a apresentação

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Recomendações

331

pelo jovem de um plano de conduta que evidencie estar disposto a evitar, no

futuro, a prática de factos qualificados pela lei como crime.

As atitudes adoptadas pelos magistrados do Ministério Público face a

este pressuposto são variadas, acolhendo posições que defendem a não

ingerência do Ministério Público sequer na sugestão de apresentação de um

plano de conduta e na informação da existência de tal possibilidade legal, e

outras que, além de sustentarem a prestação desta informação, promovem

junto do jovem e da sua família, por vezes em articulação com o técnico de

reinserção social, a elaboração de tal plano. A iniciativa do defensor do jovem

na sugestão e apresentação de um plano de conduta com vista à suspensão

do processo é escassa.

As divergências de actuação originam uma desigualdade intolerável no

acesso a esta medida de diversão, restringindo a potencialidade que abarca.

Ademais, estamos, em regra, perante jovens com amplas carências do ponto

de vista social e económico e fortes dificuldades na organização por si ou em

coordenação com a sua família mais próxima da construção de um plano que

permita responder adequadamente às exigências da lei.

Defendemos, assim, que, contando com a nova via da mediação acima

referida, cabe aqui ao Ministério Público um papel fundamental na

avaliação dos casos em que será de, oficiosamente, promover junto do

jovem, dos seus pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua

guarda de facto, a opção pela suspensão do processo. Verificando estarem

cumpridos os pressupostos para a sua aplicação, deve o Ministério Público

procurar alcançar a concordância do jovem e, sempre que possível, dos seus

pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, para a

construção de um plano de conduta pactuado, com a intervenção activa dos

serviços de reinserção social, que devem elaborar parecer ou juntar

informações actualizadas sobre a conduta do jovem e a sua inserção sócio-

económica, educativa e familiar, e participar activamente na elaboração do

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332 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

plano, com vista à suspensão do processo. Esse plano que será sempre, em

última análise, da responsabilidade do jovem, não podendo ser imposto nem

pelos serviços de reinserção social, nem pelo Ministério Público, deverá ser

remetido ao Ministério Público.

Manutenção da detenção em flagrante delito no processo tutelar educativo

Os critérios de manutenção da detenção em flagrante delito do jovem

têm, desde a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa, suscitado críticas que

se prendem, por um lado, com a ausência de clareza da lei e, por outro, com o

seu reduzido âmbito de aplicação.

A lei estabelece dois critérios para a manutenção da detenção em

flagrante delito: a prática de facto qualificado como crime contra as pessoas a

que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão superior a

três anos; ou a prática de dois ou mais factos qualificados como crimes a que

corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, superior a três anos, e

que corresponda a crime publico.

O critério de definição da manutenção ou não da detenção em flagrante

delito cabe, em primeira linha, aos órgãos de polícia criminal que, face ao caso

concreto, necessitam de dar uma resposta imediata à situação-problema,

integrando dada realidade social no conceito ínsito na lei. Esta é uma situação

típica de toda de decisão on the spot. A lei necessita, assim, de ser clara e

facilmente aplicável à generalidade das potenciais situações em que pode

ser aplicada. A redacção legal do artigo 52.º da Lei Tutelar Educativa não

cumpre aquela finalidade de clareza.

Existem, ainda, um conjunto de situações excluídas da possibilidade de

manutenção de detenção em flagrante delito, que se considera deverem ser

previstas. Tendo em consideração que a manutenção da detenção em

flagrante delito determina a audição do jovem pelo juiz num curto período de

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Recomendações

333

tempo, que tal acto pode ser importante na alteração da trajectória do jovem, e

que se encontram asseguradas todas as garantias de defesa e de protecção da

dignidade do jovem, entendemos que a possibilidade de manutenção de

detenção de flagrante delito pode ser alargada para os casos em que o jovem

tenha cometido facto qualificado como crime a que corresponda pena máxima,

abstractamente aplicável, de prisão superior a três anos.

Outras questões legais

Em 2004, no Relatório intitulado “Os Caminhos Difíceis da „Nova‟ Justiça

Tutelar Educativa – Uma avaliação de dois anos de aplicação da Lei Tutelar

Educativa”, recomendámos já um conjunto de alterações à LTE que continuam

a fazer sentido e que aqui reproduzimos:

a) No seguimento do direito internacional e do exemplo da Ley Orgânica

Reguladora de la Responsabilidad Penal de los Menores, em Espanha, a LTE

deveria abranger todos os factos qualificados pela lei penal como crimes

praticados por jovens até aos 18 anos, passando para a maioridade o limiar da

imputabilidade penal. Com esta reforma poderíamos tornar mais eficaz a acção

da LTE e evitar que um jovem aos 16 anos seja “engolido” pelo sistema

prisional em que é colocado, em muitos casos, na mesma situação e em

contacto com os adultos reclusos;

b) A concepção prevalecente na lei, do jovem ser um actor social

(sujeito), deve levar à substituição na LTE do conceito de menor pelo de jovem

(crianças com mais de 12 anos);

c) A actual LTE é considerada restritiva na combinação/cumulação de

medidas. Assim, há que ponderar a viabilidade de o juiz passar a ter

legalmente a possibilidade de maior flexibilidade na aplicação de mais medidas

combinadas/cumuladas entre si;

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334 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

d) O alargamento da possibilidade de se recorrer a “mecanismos de

diversão” para jovens que tenham praticado factos qualificados como crime

com molduras penais abstractas mais graves daquelas que actualmente se

encontram previstas na lei;

e) A alteração do regime jurídico das medidas tutelares educativas:

i. de modo a prever a realização obrigatória do “cúmulo jurídico” de

medidas tutelares educativas e evitar a desestabilização da aplicação

sucessiva de medidas;

ii. de modo a flexibilizar a sua aplicação (por exemplo, a possibilidade de

passar da medida de internamento à medida de acompanhamento educativo e,

se esta não resultasse, voltar ao internamento);

iii. de modo a proibir a possibilidade de aplicação da prisão preventiva

quando o jovem está a cumprir uma medida tutelar educativa institucional.

2.4 Linguagem jurídica

É quase desnecessário afirmar a necessidade de que o desenrolar de

qualquer acto processual seja acessível, do ponto de vista cognitivo, ao seu

destinatário: o cidadão. Este cuidado constitui reivindicação antiga,

nomeadamente por parte do Conselho da Europa (vide, Recomendações n.º

R(81)7 e n.º R(94)12). A sua compreensão do processo, das suas

consequências e do conteúdo dos vários actos cumpre, não só a garantia

básica de se poder defender dos factos que lhe são imputados e de participar

activamente no processo que poderá condicionar o seu futuro, pelo menos,

imediato, como também é requisito essencial para o reconhecimento dos factos

praticados, do seu desvalor social e para a assunção de comportamentos

alternativos em face das consequências possíveis para os actos praticados. Se

estas exigências se encontram em qualquer processo judicial que envolva

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Recomendações

335

adultos, serão, com toda a certeza, superlativadas em processos que envolvam

jovens.

A Lei Tutelar Educativa não foi insensível àquelas preocupações. Em

diversos momentos alerta para a utilização de linguagem simples e clara, por

forma a que o jovem possa compreender, e para a necessidade de a decisão

ser explicada ao jovem (vista como um plus face à fundamentação necessária).

Prevê-se, ainda, de forma inovadora, a necessidade de acompanhamento do

jovem por defensor, que além de assegurar as suas garantias de defesa,

deverá também constituir um interface privilegiado entre o formalismo inerente

a um processo judicial e o jovem.

Não obstante, o discurso jurídico, mesmo nos processos que envolvem

jovens, continua dominado pela retórica tradicional, resistente a transformações

e adaptações, tornando-se imperceptível para os sujeitos exteriores ao mundo

do direito. A linguagem jurídica transporta em si manifestações de poder, ao

reservar a um pequeno número, em regra aos profissionais, a compreensão do

seu significado. O discurso jurídico, ao mesmo passo que estratifica no seu

conhecimento, é profundamente exclusivo ao deixar de fora do seu círculo de

influência o seu principal destinatário: o cidadão delinquente e/ou vítima.

A manutenção de um discurso fechado sobre si mesmo constitui, de

uma forma geral, um obstáculo ao acesso ao direito e à justiça por parte dos

cidadãos e, no caso concreto da Lei Tutelar Educativa, prejudica fortemente a

expectativa de eficácia da sua aplicação. O distanciamento entre o jovem e o

tribunal, bem como entre o jovem e o seu defensor, é notório essencialmente

quando comparamos com a proximidade de linguagem que os mesmos

conseguem alcançar com os técnicos de reinserção social e com os órgãos de

polícia criminal. Frequentemente, são estes que servem de descodificadores da

linguagem jurídica, o que pode gerar incompreensões e informações erradas,

já que não têm um conhecimento integrado do processo.

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336 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Verificámos, ao longo do trabalho de campo, que o ensimesmamento da

retórica jurídica tradicional nos processos tutelares educativos se deve

essencialmente a práticas rotineiras, à falta de sensibilização dos diversos

actores judiciários para a necessidade de descolamento do discurso jurídico

formal e à falta de apetrechamento de magistrados e advogados para assumir

competências que não se prendem com o core da resolução do litígio que se

lhes apresenta.

Os momentos comunicacionais com o jovem têm que ser,

definitivamente, assumidos pelo tribunal como etapas nevrálgicas de

cumprimento dos objectivos pretendidos com a intervenção tutelar educativa.

Este problema capital não se soluciona com alterações legislativas.

Ultrapassar este obstáculo é bem mais complexo, exigindo uma mutação

da cultura jurídica dominante, o que reclama responsabilidades, em primeiro

lugar, das próprias instituições de ensino do direito, que olvida a necessidade

de envolvimento dos seus licenciados com os destinatários da lei, preparando-

os apenas para a compreensão do mundo jurídico. Em segundo lugar, dos

órgãos responsáveis pela formação quer das magistraturas, quer dos

advogados.

A formação, que não poderá ser apenas a inicial – muitas vezes é a

rotina que determina a utilização de linguagem encriptada-, mas,

essencialmente, contínua deve dar especial atenção à sensibilização dos

operadores para as necessidades de exteriorização do conteúdo dos actos

processuais e das decisões, sendo esta, também, uma via essencial para a

legitimação da justiça. O direito e a justiça não podem continuar a falar para si

mesmo.

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Recomendações

337

2.5 Desempenho funcional dos profissionais

A Lei Tutelar Educativa constituiu um desafio à prática jurídica e técnica

dos diferentes operadores e o seu desempenho funcional constitui uma variável

central da sua aplicação prática. No decurso do trabalho de campo, resultou a

necessidade de investir no aprofundamento de algumas valências desse

desempenho considerando os diversos actores.

Os Magistrados Judiciais

Os magistrados judiciais são os actores judiciários que, dado o seu

recorte de competências e funções desenhadas na lei, mais distantes se

encontram do jovem e do seu contexto social. O juiz conhece o caso concreto

através das informações que lhe são transmitidas pelos restantes actores do

sistema, incumbindo-lhe, posteriormente, devolver ao jovem e aos restantes

intervenientes processuais uma solução que corresponda à realização da

justiça no caso concreto.

A adequada preparação do magistrado judicial para a condução de

processos tutelares educativos, atendendo às especificidades inerentes à

juventude e aos contextos sócio-culturais da grande maioria dos seus

sujeitos, é essencial para que possa cumprir os objectivos que lhe estão

impostos. Tal preparação obtém-se com formação permanente e com políticas

de colocação dos magistrados judiciais nos juízos especializados de acordo

com a sua própria formação especializada.

O actual Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redacção dada com a

alteração à Lei de Organização e Formação dos Tribunais Judiciais, reforça

esta ideia de especialização, prevendo que o provimento de lugares em juízos

de competência especializada depende de frequência de curso de formação,

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338 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

de obtenção do título de mestre ou doutor em direito ou de prévio exercício de

funções, durante, pelo menos, três anos, em todos os casos na respectiva área

de especialização. Neste último caso, o magistrado judicial tem que frequentar

um curso de formação sobre a respectiva área de especialização no prazo de

dois anos.

Apesar das conhecidas críticas que recaem, essencialmente, sobre a

argumentação da impossibilidade de cumprimento do normativo legal,

entendemos que aquele é um avanço positivo da lei.

É, assim, essencial investir na formação especializada dos magistrados

judiciais a exercer funções nos tribunais ou nos juízos de família e menores. É

importante realçar que, frequentemente, aos processos tutelares educativos

não é conferida centralidade. Os tribunais encontram-se divididos entre a

necessidade de dar resposta ao volume imposto pelos processos de divórcio

de regulações das responsabilidades parentais e a urgência da resposta nos

processos de promoção e protecção, o que implica uma desvalorização relativa

dos processos tutelares educativos. Recomendamos, assim, que sejam, não só

dotados aqueles tribunais dos recursos necessários, como seja dada especial

atenção formativa a esta área e que os respectivos programas de formação

contemplem formação em direito tutelar educativo, mas também noutras áreas

do saber, como a sociologia, a psicologia, os direitos humanos, etc., de forma a

possibilitar aos magistrados judiciais desenvolverem o contacto com

perspectivas que permitam compreender o conflito enquanto fenómeno social,

bem como os potenciais impactos e consequências das decisões por si

proferidas.

Os Magistrados do Ministério Público

O Ministério Público assume um papel central na condução de todo o

processo tutelar educativo. Sobre o Ministério Público recaem as opções

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Recomendações

339

essenciais que irão determinar o andamento do processo: a opção pelo

arquivamento do inquérito por inexistência do facto, por insuficiência de indícios

da prática do facto, ou por desnecessidade de aplicação de medida tutelar

educativa, pela suspensão do processo, ou pelo requerimento para a abertura

da fase jurisdicional. O Ministério Público decide, ainda, a forma que o

processo tramitará e propõe a aplicação de medidas tutelares educativas. Por

outro lado, é o Ministério Público quem centraliza o conjunto de informações

que são chamadas ao processo e, dado o seu modelo funcional, possui a

virtualidade de poder interagir com as diversas instituições que tiveram

qualquer intervenção junto do jovem. O Ministério Público tem, assim, a

potencialidade ímpar de conhecer os contextos sociais e escolares da área

geográfica de influência do tribunal em que se encontra colocado e de os

potenciar no sentido da definição de medidas que se dirijam à globalidade da

situação concreta. Reclama-se, deste modo, a adopção de políticas e de

condições que permitam a assunção plena destas competências por parte do

Ministério Público.

Assim, o que supra se referiu quanto às exigências de formação e

de especialização como pressuposto para a colocação nos tribunais ou

juízos de família e menores para os magistrados judiciais, aplicam-se,

igualmente, para os magistrados do Ministério Público. Acresce que esta é

uma questão de particular importância até porque verificámos existir casos de

acumulação de serviço entre um tribunal de família e menores e um juízo ou

vara criminal. Esta é uma prática que não pode continuar a ocorrer, originando

uma indesejável contaminação do mundo do direito tutelar educativo pelo do

direito penal dos adultos.

Tendo em conta as suas competências na mobilização dos mecanismos

de diversão que deverão ser utilizados com base em critérios pré-definidos a

nível nacional e tendo por base uma estratégia coerente de intervenção

relativamente ao fenómeno da delinquência juvenil, é, ainda, necessária a

definição de guidelines para a aplicação dos diferentes institutos ao

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340 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

dispor do processo tutelar educativo. Essa definição, que incumbirá ao

próprio Ministério Público, terá a maleabilidade necessária para a adaptação às

circunstâncias concretas do caso.

Os Advogados

Uma das principais inovações da LTE foi a previsão da presença do

defensor do jovem. A garantia do processo equitativo, com respeito pelos

direitos, liberdades e garantias dos jovens, depende da qualidade da defesa

assegurada ao jovem. Tendo em atenção que na esmagadora maioria dos

casos se trata de defensor nomeado, deve ser dado especial enfoque ao

sistema de nomeação. A recente reforma do sistema de nomeação do

patrocínio judiciário, que instituiu o SINOA, procurando trazer transparência nos

critérios de nomeação, não assegura a especialização da defesa, uma vez que

não há controlo quanto à capacidade técnica do defensor nas áreas

preferenciais da sua eleição.

Também aqui é preciso investir em formação. Esta formação tem que

ser ministrada pela própria Ordem dos Advogados que deve condicionar o

patrocínio nesta área do direito a quem a frequente. Até porque tratando-se

de uma área do direito tendencialmente menos lucrativa para a advocacia, é

natural que os esforços de actualização e autoformação nesta área sejam

menores.

Os Técnicos de Reinserção Social

Os serviços de reinserção social, ponte entre o tribunal e o jovem,

são actores-chave na prevenção e combate à delinquência juvenil.

Assumem, estatutariamente, funções de prevenção da delinquência juvenil,

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Recomendações

341

constituem a voz que transmite as informações sócio-familiares do jovem ao

tribunal e o braço que executa as decisões judiciais. No desenho que prevemos

para o Plano Nacional para a Prevenção da Delinquência Juvenil assumem,

igualmente, um papel de enorme centralidade.

Verificámos, no entanto, que as mutações na constituição das equipas,

ao longo dos anos, fruto das alterações estatutárias da actual Direcção-Geral

de Reinserção Social, determinaram alguma desestruturação da sua

composição e de critérios fundamentados para a sua configuração. Por outro

lado, em algumas circunscrições verificámos, ainda, a existência de equipas

que se dedicam simultaneamente ao processo tutelar educativo e ao processo

penal de adultos, o que coloca em causa o princípio da especialização, mas,

ainda, potencia a contaminação que acima já referimos.

Uma equipa devidamente estruturada é essencial para o sucesso da

Lei Tutelar Educativa. Recomendamos, assim:

a) Os técnicos das equipas de reinserção social que intervêm no

processo tutelar educativo não devem acumular funções relativas ao processo

penal de adultos;

b) A definição do número ideal de processos tutelares educativos por

técnico de reinserção social e o redimensionamento das equipas em função

daquela definição;

c) A definição da composição ideal de uma equipa de reinserção social,

tendo em conta as diferentes valências formativas dos técnicos, procurando a

constituição de equipas multidisciplinares;

d) A limitação das exigências burocráticas às equipas de reinserção

social, incentivando o contacto dos técnicos de reinserção com o contexto

social dos jovens.

e) A redefinição do peso do relatório pré-sentencial na avaliação de

desempenho dos técnicos de reinserção social;

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342 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

f) Não sendo tecnicamente possível a redefinição do seu estatuto

processual, os técnicos de reinserção social devem ter no sistema de justiça

um tratamento condigno que tenha atenção essa especificidade,

designadamente, no que respeita às condições em que são ouvidos em

tribunal. Deve ponderar-se, pelo menos nas comarcas onde o volume de

trabalho o justifique, a sua audição por vídeo-conferência;

g) Também no que se refere aos técnicos de reinserção social se deve

dar especial atenção à área da formação que deve incorporar uma vertente de

conhecimento e de reflexão sobre teorias e práticas no âmbito da prevenção da

delinquência, mas também sobre as ferramentas em que devem assentar os

vários programas a desenvolver no âmbito da execução das medidas.

2.6 Execução da medida de internamento em centro educativo

A medida de internamento em centro educativo, medida mais gravosa

prevista na LTE, possui, segundo a própria letra da lei, a potencialidade de

oferecer ao jovem, por via do afastamento temporário do seu meio habitual,

programas e métodos pedagógicos, com vista à interiorização de valores

conformes ao direito e a aquisição de recursos que lhe permitam, no futuro,

conduzir a sua vida de modo social e juridicamente responsável.

Os objectivos previstos na lei para o cumprimento e execução da medida

de internamento em centro educativo só podem ser alcançados se estes forem

dotados daqueles programas e métodos pedagógicos. Decorre, contudo, do

trabalho realizado que, tendencialmente, os centros educativos estão imbuídos

de uma lógica de contenção e ocupação do jovem, o que coloca a questão da

necessária reflexão sobre a redefinição do modelo de intervenção no centro

educativo.

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Recomendações

343

É preciso, em definitivo, adoptar programas de intervenção

psicossocial e programas educativos e implementá-los plenamente nos

centros educativos, reconhecendo-os como instrumento fundamental da

execução da medida de internamento, o que implicará a libertação dos jovens

de outras actividades para a participação em tais programas.

A questão da gestão do tempo dos jovens em cumprimento de medida

de internamento assume especial relevo em dois sentidos distintos: por um

lado, os jovens continuam sobrecarregados com actividade lectivas, de

formação ou lúdicas, não havendo tempo disponível para a intervenção

psicossocial; por outro, alguns programas exigem, não uma intervenção grupal,

mas um acompanhamento individual do jovem por parte do técnico

responsável, o que acrescenta dificuldade na compatibilização com os próprios

técnicos de reinserção social. Uma melhor definição dos tempos do centro

educativo é parte integrante da programação das estratégias de intervenção

junto do jovem.

Lacuna frequentemente indicada pelos operadores é a da ausência de

resposta para as situações relacionadas com a saúde mental. A ausência

de diferenciação e de especialização da intervenção em centro educativo no

âmbito da saúde mental do jovem reclama a necessidade de instituir um

internamento para tratamento médico e médico-psicológico, ainda que não

executado numa instituição da justiça.

Por último, defendemos que a possibilidade de aplicação da vigilância

electrónica no âmbito da Lei Tutelar Educativa não pode assumir um

paralelismo estrito com a sua aplicação no âmbito do direito penal. Assim, o

recurso à vigilância electrónica deverá apenas ser utilizada como substitutiva

de medidas privativas da liberdade e nunca como reforço de medidas não

institucionais.

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344 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

2.7 Acompanhamento pós-institucionalização

Um dos handicaps mais marcante da intervenção tutelar educativa

relaciona-se com o período posterior ao cumprimento da medida, em especial,

posteriormente ao cumprimento de medida de internamento. Mais uma vez se

esbarra nos obstáculos sistémicos da intervenção junto do jovem, nas

desarticulações entre a Lei Tutelar Educativa e a Lei de Promoção e Protecção

das Crianças e Jovens em Perigo. Para que não haja desperdício das

experiências adquiridas e das competências pessoais e sociais, entretanto

desenvolvidas, prescreve-se um momento de transição entre o meio contentor

do centro educativo e o regresso ao meio de origem do jovem, que deverá ser

incorporado dentro da duração da própria medida tutelar aplicada, admitindo-

se, apenas para esse efeito, o seu alargamento nos termos que agora a lei já

prevê, e sempre em obediência ao princípio da proporcionalidade.

Não se trata de um modelo, semelhante ao espanhol, que implique a

previsão de um período de liberdade vigiada, de um período de cumprimento

de outra medida não institucional ou de alargamento da medida.

Defendemos que a transição do jovem do centro educativo para o

meio social não deverá ser orientada por um reforço sancionatório, mas

por uma adequada ponderação entre as necessidades de educação para o

direito do jovem e o respeito pelos direitos, liberdades e garantias e

assegurada pela possibilidade de flexibilização obrigatória da medida de

internamento e, posteriormente, pela adequada articulação com os

mecanismos previstos na Lei de Promoção e Protecção das Crianças e

Jovens em Perigo.

O desiderato dos objectivos enunciados não depende apenas da pró-

actividade e melhor apetrechamento de recursos dos organismos da reinserção

social. Temos amplamente salientado o papel dos serviços de promoção e

protecção nesta matéria. Daí que é crucial que a tutela competente opere uma

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Recomendações

345

profunda reestruturação nesses serviços de modo a que, por si, ou em

articulação com entidades externas, desde que devidamente supervisionadas,

possam corresponder aos objectivos da lei, da justiça e, sobretudo, às

carências das situações sociais a que se dirigem.

Assim, propomos três vias de intervenção:

(1) Deverão ser incentivados os mecanismos legalmente previstos de

revisão da medida de internamento, no sentido de melhor avaliar as

necessidades actualizadas do jovem;

(2) Dever-se-á prever, obrigatoriamente, que, pelo menos, o último terço

da medida de internamento aplicada seja substituído por uma medida não

institucional;

(3) Posteriormente ao cumprimento da medida, a integração do jovem no

meio social deve ser suportada pela adequada articulação com os mecanismos

previstos na Lei de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo,

que cumpre um papel relevante em várias etapas do desenvolvimento do

jovem. As medidas acima recomendadas no âmbito da prevenção pela

integração podem ser adaptadas para uma intervenção no âmbito da

reinserção social, que podem, assim, ser utilizadas como mecanismos ao

serviço da prevenção terciária ou da reincidência.

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346 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

2.8 O combate ao desperdício de conhecimento

Verificámos, ao longo do trabalho de campo, que a criança e o jovem,

bem como a sua família e as redes de sociabilidade, em especial as mais

carenciadas, sofrem intervenção multi-sistémica, passando por diversas

instituições públicas, privadas e do terceiro sector.

Os resultados de algumas destas intervenções, bem como os

diagnósticos dos técnicos que nelas actuam, são, frequentemente, dirigidos às

instâncias judiciais. Noutras palavras, o Tribunal, aqui entendido em sentido

amplo, englobando o Ministério Público, é, recorrentemente, destinatário das

informações recolhidas por aquelas instituições. Esta informação, que pode ter

sido recolhida com vista a objectivos diferenciados e, portanto, recorrendo a

metodologias próprias orientadas para aqueles fins, é disseminada por

diferentes juízos ou secções do tribunal e por processos distintos (por exemplo,

processo de promoção e protecção, regulação das responsabilidades

parentais, processo tutelar educativo, que podem correr termos no mesmo

tribunal, mas que, em regra, não se encontram).

O carácter plúrimo das informações e dos processos da criança ou

jovem leva, por vezes, à dispersão do conhecimento produzido sobre aqueles,

bem como sobre os seus factores de socialização e de perigo. É necessário

criar mecanismos que permitam ao Tribunal e, essencialmente, ao

Ministério Público, dado o papel central que assume na direcção dos

processos relativos às crianças e jovens, conhecer os processos

existentes relacionados com uma dada criança ou jovem, bem como as

informações sociais que agregam. Tal conhecimento permitirá, não só uma

informação mais contextualizada, e melhor decidir, como também evitar

desperdícios e repetições desnecessárias de solicitações, de que, aliás, com

frequências as instituições para-judiciais se queixam.

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Recomendações

347

Recomendamos, por isso, que se estude a viabilidade técnica da

apensação de processos relativos à mesma criança ou jovem.

Independentemente da viabilidade da solução técnica, o cruzamento de

informação deve ser assegurado. Pode ser garantido pela criação de uma

base de dados – a actual informatização do sistema de justiça permite estas

soluções – que congregue informações sobre processos instaurados

relativamente à criança ou jovem, nomeadamente, medidas de promoção e

protecção ou tutelares educativas aplicadas.

O Ministério Público assumirá uma dupla centralidade. Por um lado,

incumbir-lhe-á dar o primeiro impulso no registo do processo na base de dados

(que será posteriormente alimentada ou pelo Ministério Público, caso o

inquérito finde sem abertura de fase jurisdicional, ou pela secção de porcessos,

no caso de o processo findar nesta fase. Por outro lado, competirá ao

Ministério Público, aquando da instauração de um inquérito tutelar educativo,

fazer a primeira consulta aos processos existentes naquela base de dados e,

obrigatoriamente, incorporar as informações sociais constantes dos processos

aí registados.

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ANEXO

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PAINEL DE DISCUSSÃO205

Centro de Estudos Sociais

29 de Janeiro de 2010

205 A identificação dos intervenientes do painel de discussão faz-se pela letra P, seguida de um

número atribuído a cada participante em função da ordem pela qual intervieram.

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Anexo

367

OPJ

Começaríamos pelos discursos europeus

sobre a delinquência juvenil.

P1

Há uma coisa que para mim é transversal a

isto tudo, há quase que uma referência

escondida na Europa e o problema da

delinquência juvenil é, sobretudo, o

problema de um conjunto de minorias

(imigrantes de terceira ou eventualmente,

quarta geração). Eu não conheço, a esse

nível, a realidade aqui em Portugal – pode

ser que não seja bem assim – mas há

também um discurso político, às vezes um

pouco encapotado, que defende que isto é

um problema, de facto, de pessoas que

não deviam estar na Europa. Essa é a

parte ideológica.

Por outro lado, a investigação diz-nos há

muitos anos é que a probabilidade destes

grupos estarem mais marginalizados,

sofrerem mais os impactos, por exemplo de

qualquer crise económica, é maior, e por

isso vemos aquelas coisas em França.

Enfim, há países onde isto, provavelmente,

será mais complicado e, portanto, essa

questão que pode ou não entrar nas

questões do tão em voga “politicamente

correcto” pode ser também relevante e

significar que esta criminalidade juvenil é

uma criminalidade que já está muito mais

associada a determinados tipo de grupos.

Nós temos, por exemplo, uma clivagem, e

vemos muito bem isso entre a zona do

Porto, o Norte, e Lisboa. No Porto não há,

praticamente, nenhum problema com

qualquer indivíduo de raça negra. Já se

formos a Lisboa, é o que se vê – e porquê?

Talvez, também, porque a grande maioria

habita ali. Quero dizer, é um problema dos

indivíduos de raça negra, um problema da

zona de Lisboa, um problema de Portugal,

enfim, não sei efectivamente como é que

esta questão pode ser abordada mas a

dimensão da delinquência juvenil ligada, de

facto, a grupos étnicos, que até quase

historicamente sofrem algum grau de

segregação e que começa logo pelos

problemas económicos, requer também, se

calhar, algum cuidado.

Enfim, mas como digo, não sei, não

conheço, confesso, nenhum estudo que

indique se isto está mais ou menos

tipificado.

OPJ

Não está. Por exemplo, neste nosso

trabalho, uma das zonas com que

trabalhámos é, justamente, uma zona que

tem duas áreas muito diferenciadas com

realidades sociológicas muito

diferenciadas.

A questão, desde logo, é esta, é que

havendo estas realidades sociológicas tão

distintas, como acentuou, com uma

componente de grupos, de gerações

excluídas socialmente para as quais a

resposta judicial aparece sem outros

suportes, ou com poucos outros suportes.

Nestes casos de que é que serve a

resposta judicial?

P2

Aquilo que eu posso referir, com limitações

pessoais nestas circunstâncias, uma vez

que estou a coordenar mas não

propriamente na área de menores, tenho

um conhecimento só prático, daquilo que

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368 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

vai entrando e acontecendo. Não será tanto

a questão de uma etnia ou de uma raça,

mas é o problema dos brasileiros que têm

vindo também a aumentar muito. Eu não

sei até que ponto é que esse sentimento

que se nota que existe, ou seja, que o

aumento do crime violento se deve a essa

tal cultura, dos brasileiros, que é diferente

da nossa – mas não sei se isso

corresponde ou não à verdade porque não

temos estudos em relação a isso. A única

coisa que posso dizer, com base num

pequeno estudo que fiz, é que, de 2007

para 2008, houve efectivamente uma

duplicação do número de crimes violentos

(por exemplo: roubos) incluindo também,

os praticados por nós.

P3

Relativamente aos menores, as

estatísticas, designadamente até aos 16

anos, indicam isso?

P2

Não.

P4

Se nós olharmos para aquilo que é o reduto

terminal do sistema, que são os internados,

e como toda a gente sabe, é o fim da linha,

o que encontramos numa perspectiva

diacrónica, é uma diminuição da população

internada.

Eu trouxe-lhe alguns números. Em Portugal

– aliás o CES está numa posição

privilegiada, porque o OPJ tem aquela

ligação à Direcção-Geral de Política de

Justiça tendo acesso às estatísticas da

actividade dos tribunais, que os

investigadores não têm. Eu tenho-as

através do Ministério da Justiça, mas só

tenho estatísticas consolidadas até 2006.

Assim, o que verifico é uma paridade muito

grande entre a aplicação de medidas pelos

tribunais e depois a população internada.

Portanto, há sempre, de facto, um

paralelismo muito grande o que leva a que

podemos extrapolar conclusões a partir da

perspectiva diacrónica da população dos

centros, relativamente à actividade dos

tribunais.

Ora, aquilo que se tem passado é que,

curiosamente, ao longo de uma série de

nove anos (2001 a 2009) a população dos

centros educativos diminuiu. Aumentou até

2003 e depois, desde aí, vem descendo

consecutivamente com sobressaltos de três

em três anos. Por exemplo, agora

aumentou ligeiramente em poucas

unidades (cerca de 20 unidades em 2009)

mas tinha descido imenso em 2008 e 2007.

Portanto, isto leva-me a pensar que se, no

Relatório Anual de Segurança Interna

referente a 2008, o capítulo referente à

delinquência juvenil deixou de existir,

significa que tornou-se estatisticamente

inexpressivo. Até 2008, a criminalidade

registada até aos 16 anos correspondia, há

uma série de anos, a 1% da criminalidade

total registada no país. Ora, se em 2008,

no Relatório de Segurança Interna, este

dado deixou de existir, tenho de concluir

que deixou de existir por se ter tornado

estatisticamente inexpressivo. E isto

porque, se nós compararmos com o relevo

que foi dado a outro tipo de criminalidades,

se fosse o caso da criminalidade juvenil ter

aumentado, logicamente ela não deixaria

de constar daquele relatório. Ora, foi

exactamente o contrário que aconteceu,

deixou de existir.

Por outro lado, a população julgada pelos

tribunais de família e menores diminuiu,

portanto, o número de medidas aplicadas

diminuiu ao mesmo tempo que diminuiu o

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Anexo

369

número de menores. E o “fim da linha”, ou

seja a população internada, como digo,

também diminuiu.

Há ainda algo que é, particularmente

sintomático: ver o que se passou

relativamente aos crimes mais graves,

porque estes levam ao internamento em

regime fechado. Aliás, a Lei Tutelar

Educativa está feita de propósito para fazer

essa diferenciação, uma vez que não se

pode aplicar o internamento em regime

fechado senão a crimes particularmente

graves. Ora, a população em regime

fechado manteve-se mais ou menos

constante e, pelo contrário, registou

momentos de grande descida.

Eu tenho algumas indicações sobre isso.

Em relação, por exemplo, ao regime

fechado, ele nunca ultrapassou 51

menores, que foi o dado de 2002, e desde

então, tem oscilado entre 32, que foi o valor

mínimo registado em 2007, e 49 que foi o

valor maior registado em 2008.

O que posso dizer, muito sinceramente, é

que poucos países da Europa, e nem falo

de países da UE, se podem orgulhar de ter

tão poucas crianças e jovens internados ou

em situações de privação de liberdade

como nós temos. O que quer dizer que não

temos, ao contrário do que se pensa,

problemas de delinquência juvenil

particularmente graves.

Dir-me-á que, possivelmente, a situação

seria diferente se a lei, como aliás já se tem

querido, não tivesse estes limites

relativamente à aplicação do internamento.

E portanto, o internamento deveria ser

aplicado independentemente do princípio

da proporcionalidade. Aí teríamos

seguramente maior movimento ao nível do

internamento em regime fechado, em

especial porque há um movimento

securitário muito influenciado pela opinião

pública.

Se analisar a população dos

estabelecimentos de menores, sempre na

mesma data, ou seja, em 31 de Dezembro,

aquilo que encontra é que sempre foram

alimentados em maioria pelo regime

semiaberto. A maior parte da população

está em semiaberto. Curiosamente, o

regime aberto, que começou de forma

quase inexpressiva, tem vindo a crescer

ainda que com alguns sobressaltos.

A minha conclusão é de facto que, em

termos gerais, e baseando-me apenas

nisto, porque, infelizmente, nós não temos

estudos de caracterização relativamente à

população que chega aos tribunais

independentemente de vir a ser julgada ou

não, baseando-me naquilo que,

consensualmente para a doutrina e para a

investigação, é sempre o “fim da linha”, que

é a privação de liberdade, conclui-se,

portanto, a este respeito, que é aí que vai

parar a criminalidade mais grave

forçosamente, porque são todos os

instintos securitários sociais em acção, em

alarme, em alerta.

Ora, se isto não acontece, se não

ultrapassámos, em Portugal, em nove anos

os 51 menores internados, que é o valor de

2002, acho que podemos, neste aspecto,

dar-nos por satisfeitos.

OPJ

Portanto, na sua perspectiva, esta ideia de

que entre nós há um aumento da

delinquência juvenil é uma ideia alarmista.

Bom, de facto, os dados do Relatório Anual

de Segurança Interna que referiu, revelam,

e depois foi feita uma adenda ao relatório

de 2008, que os actos praticados por

menores de 16 anos face a 2007,

desceram cerca de 43%, mas, grande parte

dos fenómenos criminais que encontramos

ocorrem em Lisboa, Setúbal e Porto e

aumentaram os actos criminosos

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370 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

praticados por 3 ou mais indivíduos. Ou

seja, aumentou o fenómeno de grupo. E

isso aumentou face a 2007, segundo os

dados do Relatório, acresceu em 35%, isto

é, há aqui uma nova realidade, ou, pelo

menos, a manifestação dessa realidade de

fenómenos de grupo que também emergiu

no nosso trabalho de terreno.

Mas, nos estudos de caso que estamos a

fazer, o que está a acontecer é que, numa

zona que tem um certo contexto, a

percepção dos magistrados e pelos

números das entradas nos tribunais, não

houve nenhum aumento significativo, não

há nenhuma mudança, nenhuma alteração,

nem do ponto de vista qualitativo nem

quantitativo. Continua a tratar-se de

pequenos furtos.

Pelo contrário, numa outra zona os dados

empíricos são outros e a própria percepção

dos magistrados é outra. E aí sim, é-nos

dito que tem vindo a aumentar um tipo de

criminalidade violenta praticada pelos

jovens. Violência que incide, grande parte

das vezes até, sobre outros jovens. Isto

condiz com aquilo que P4 estava a dizer.

Nós temos, de facto, realidades

sociológicas muito diferenciadas. Muitos

destes casos são de pessoas que estão

desintegradas socialmente, com todos os

problemas sociais daí decorrentes.

P4

Eu concordava consigo se estivéssemos a

falar de jovens adultos, que é algo com que

ninguém se tem preocupado. O que é

escandaloso e não tenho vergonha de

empregar a palavra, e é outro dos

paradoxos, pegando agora na sua deixa, é

que de facto, onde a delinquência juvenil

tem aumentado é na faixa dos jovens

adultos, e estrondosamente. Basta olhar

para os relatórios de segurança interna.

Aliás, historicamente, nós sabemos desde

o Hirschi e do Gottfredson que em qualquer

momento no espaço e no tempo, a

delinquência sempre foi forte entre os 18 e

os 25 anos, mas particularmente na faixa

entre os 18 e os 21 anos.

Ora, nós demo-nos ao luxo de não

completar a reforma do direito de menores

em 1999, não legislando sobre jovens

adultos e metemos a cabeça na areia,

orgulhosamente, até hoje, a este respeito.

OPJ

Gostava que também tivéssemos em

atenção que muitos destes jovens adultos a

que nos estamos a referir, e nós temos um

trabalho específico sobre isso, foram “

clientes” do tutelar educativo, uma boa fatia

deles.

Nós, num trabalho que fizemos na área da

reinserção social do sistema prisional,

chegámos a um resultado, agora não me

recordo da percentagem concreta, mas sei

que eram números muito elevados de

indivíduos que entram no sistema prisional

e passaram por esta fase.

Portanto, a intervenção de que nós

estivemos aqui a falar, e não só aqui mas

também no tutelar educativo, tem a ver

com isto.

O que eu queria saber era se todo este

discurso em contexto europeu faz sentido

no nosso país.

P5

O meu conhecimento dos dados vai

exactamente no mesmo sentido pelo que

não vou repetir. Gostava só de salientar

que qualquer alarme social, qualquer

pânico moral, é, por definição, difuso e

portanto, quem faz isto sabemos que são

miúdos, são jovens. Não sabemos bem se

têm 14 se têm 20 anos, ou se têm 15 ou

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Anexo

371

18. Mas depois, no sistema, eles são

tratados de forma diferente. Eu acho que

os dados estatísticos que temos indicam

bem esta diferença entre o que nós

chamamos os menores e os jovens

adultos.

Da interpretação que eu faço dos dados, de

facto, o grande peso do crescimento, em

termos gerais, é nos jovens adultos e não

nos menores. Isto parece-me ser um erro

de focagem que os pânicos morais quase

necessariamente provocam. Depois, a

questão do alarme social, pelo menos já

desde o século XVIII ou XIX, está bem

documentada a existência de alarmes

sociais. E, portanto, se de facto eles

correspondessem à realidade, nós

provavelmente nem existíamos, já nos

tínhamos morto uns aos outros porque os

alarmes são de tal forma recorrentes e

graves que parece que a tendência é

sempre no sentido da decadência das

relações e não me parece, apesar de tudo,

que hoje as nossas sociedades sejam

assim tão violentas e tão insustentáveis do

ponto de vista relacional. Não me parece,

mas não nos esqueçamos de que hoje em

dia somos muitos mais e isso por si gera

outra dinâmica demográfica. Isso, se

calhar, vale a pena ter em conta.

P4

Cada vez que em Portugal se pediu a

descida da idade de imputabilidade, isso

está sempre na sequência de um caso

horrendo. Foi o caso do gang da auto-

estrada com a Lídia Franco, por ser a Lídia

Franco a aparecer na televisão e ser,

realmente, uma personagem, enfim,

causadora de emoções, logrou aquilo que

mais ninguém tinha conseguido, que foi

acordar a silly season de 2000.

P5

E foi a partir daí que se gerou o Programa

Escolhas.

P4

Exactamente, tem toda a razão. E não só

isso. Os partidos políticos saíram dessa

vez a terreno a pedir a descida da idade da

imputabilidade dos 18 para os 14 anos.

Segundo caso: o caso da transexual

Gisberta. Ora bem, se nós formos aqui

para o lado, para Espanha, encontramos

exactamente a mesma coisa, o mesmo

fenómeno. Ou seja, o caso do niño de la

catana, o caso da rapariga que foi morta na

paragem do autocarro, o caso do sem

abrigo que estava em Barcelona metido

dentro da Caixa Multibanco. Todos estes

crimes particularmente horrorosos, mas

sem que haja, de facto, em Espanha,

também, uma correspondência do aumento

da delinquência juvenil em geral. Houve, de

facto, estes casos pontuais de crimes

horrendos mas que levaram a que a

pressão mediática fosse tão forte que,

reforçando aquilo que P5 está a dizer, acho

que este alarme é um alarme induzido.

Nem sequer é um alarme natural, é um

alarme induzido pelos media e, por isso,

tem como consequência um duplo efeito. E

isto tem acontecido em outras sociedades,

eu só estou a utilizar o caso aqui ao lado

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372 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

como exemplo. Tem acontecido em

França, em Itália. Eu acompanho há anos o

que acontece nos cárceres para menores

em Itália porque estive ligado ao projecto

Ferrante Aporti. Curiosamente, uma coisa

interessantíssima, que em Portugal não

tenho visto porque foi o único país que não

alinhou no último grande estudo

comparativo internacional sobre as

crianças imigrantes não acompanhadas. A

Espanha, França, Itália, aliás, quase todos

os países da UE participaram neste estudo

da Comissão Europeia. Nós temos a

publicação em várias línguas, mas Portugal

não entrou neste estudo e, portanto, apesar

de nós termos, pelos dados empíricos que

vou recolhendo, crianças imigrantes não

acompanhadas que vão chegando ao

sistema de justiça, não temos este estudo

feito na mesma perspectiva que os outros.

Mas, por exemplo, o caso de Itália é

paradigmático quanto a isso. Se nós

formos ver ao longo de uma década, a

população nos cárceres para menores, os

chamados Istitutos di rieducazione, tem

mudado de nacionalidades consoante as

expressões migratórias, ao ponto de neste

momento, não haver jovens italianos. O

que há são jovens magrebinos por

exemplo, apesar de que, quando estive a

estudar no Ferrante Aporti, o problema

eram os zingari, os ciganos, as populações

nómadas. O Ferrante Aporti estava cheio

de nómadas.

Quando a população magrebina realmente

se tornou uma população tida, sob o ponto

de vista social, como perigosa,

automaticamente a justiça começou a

encher as instituições de menores com

crianças e jovens desta origem.

Eu, em Portugal, não tenho notado, pelo

que me contam, que nos internatos para

jovens isso tenha acontecido.

P3

Houve agora, no caso das raparigas, um

aumento das medidas de internamento

feminino mas é um fenómeno recente.

Aumentou com as romenas que, em

princípio, até não serão menores.

P4

Sim, mas aumentou 4 unidades. Isto é

inexpressivo.

OPJ

Como temos tão poucos, quando dizemos

que aumenta, aumenta muito.

P4

Claro, tínhamos 18 raparigas internadas

em 2002, agora temos 24. Isso quer dizer

alguma coisa?

P1

Deixe-me só dar um dado. O meu colega

que dirige um colégio no Porto, o que ele

me disse, quando fui acompanhar uma

rapariga que foi para lá estagiar, foi que

desde há vários meses os miúdos que

temos aqui não são do norte, vêm de

Lisboa.

P4

Isso tem a ver com uma estratégia de

distribuição do sistema relativamente às

colocações. Isso é outra coisa, outro

fenómeno.

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Anexo

373

P6

Parece-me que tudo isto está muito ligado

com a situação social. Na minha zona, em

10 anos, a população aumentou 60%. E

tem uma sociedade civil frágil, suponho

também que será bastante frágil, dado os

problemas na promoção e protecção.

Por exemplo tem uma escola que tem 19

nacionalidades. Tem mais população já do

que Lisboa e não tem as suas infra-

estruturas, e não tem a pirâmide invertida,

na base, tem mais jovens e, portanto,

mostra que há uma relação em que tem um

apoio social diminuto. Há uma freguesia

que tem cento e quarenta mil habitantes e

tem dois ou três assistentes sociais, não

sei bem.

Isto só para dizer que está tudo muito

conjugada esta ideia. Parece que o facto

de haver mais, enfim, fenómenos de

delinquência, este fenómeno das 19

nacionalidades à primeira vista acreditei,

mas fiquei um pouco estupefacto por causa

da minha experiência mas, estive em x é o

ano passado, onde há uma com 31

nacionalidades! Mostra que o que importa é

que há zonas com uma heterogeneidade e

com desafios ao nível da multiculturalidade

que implicam fenómenos sociais e de redes

sociais.

De modo que não sei se os fenómenos de

delinquência aí são tão significativos como

isso…

OPJ

Gostava de ouvir os magistrados que estão

no terreno se há alguma razão entre nós

para que alteremos a lei, ou usemos este

enquadramento para, digamos, aumentar a

rigidez normativa do sistema.

Não quero dizer com isto que as respostas

sejam adequadas. O que quero dizer é

que, por exemplo, em Espanha, aumentou-

se o tempo das medidas, da duração do

internamento, etc.. Houve um

endurecimento. E entre nós, não há

nenhuma razão para que sequer esta

questão esteja em cima da mesa.

P4

E pior ainda, o vaso comunicante entre os

centros educativos e as prisões, porque,

automaticamente, quando se atinge a

maioridade passa-se a executar a medida,

dita educativa, no estabelecimento

penitenciário.

OPJ

Eu gostava de ouvir os magistrados,

porque esta, parece-me que é uma questão

absolutamente central, porque condiciona o

sentido daquilo que nós vamos propor.

Enfim, não estamos a falar da aplicação da

lei, da problemática, se ela é eficaz se não

é. Gostava de falar dessas coisas a seguir.

Agora é, de facto, sobre os princípios que

nos devem nortear.

P3

Começando por aquela questão do modelo

europeu, saber se os problemas que nós

temos aqui são os mesmos que têm a nível

europeu e que levaram a um

endurecimento, há logo aqui algumas

questões que importa colocar.

Primeiro, está em saber o modo como na

Europa, de uma forma bastante diversa de

uns para outros, as respostas que dão ao

nível de enquadramento jurídico e de

aplicação judiciária no que concerne à

delinquência entre os 12 e os 16 anos tem

sido muito distinta.

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374 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

E há aqui um caminho, oo modo como em

França, em Inglaterra e em Espanha se

têm encarado estas questões, o que estes

países seguiram e que, de certa forma, terá

de ser pensado com o modo, o percurso

que nós seguíamos.

Em Portugal, na altura em que se fez a

grande discussão e alteração de paradigma

da antiga Organização Tutelar de Menores

para a Lei Tutelar Educativa e para a Lei de

Promoção e Protecção, optou-se pelo que,

no fundo, é uma nova concepção do

sistema na sua integridade, optou-se por

construir um paradigma de enquadramento

jurídico distinto e inovador. O pouco que

conheço dos outros sistemas jurídicos, é

que enquadraram sempre estas questões

no Direito Penal ou no Direito de protecção

muito em termos civilísticos. E o que aqui

se tentou construir, com algumas

contradições e com alguns paradoxos, mas

também, de certa forma, no início de uma

elaboração teórica que acho estimulante,

foi uma resposta distinta, em termos

teóricos, que encarasse esta realidade

como uma realidade própria que merecia

uma resposta própria.

Isto remete-me, um pouco, para a

necessidade que nós temos actualmente,

de criar novos direitos – por exemplo o

direito do ambiente é um novo direito que

sai do paradigma do civil e do penal e outro

tipo de desafios aos quais os juristas e o

quadro jurídico respondem sempre com

grandes dificuldades, porque sair daqueles

quadros com que estudámos é um pouco

complicado.

E aqui eu acho que houve esse início de

elaboração teórica, como disse, com

algumas contradições, e que depois vai na

prática levar a algumas contradições e a

algumas dificuldades.

Eu acho que ainda hoje na aplicação da lei,

nós temos alguma dificuldade, quando há

alguma questão, em tentar elaborar

teoricamente, de acordo com esta resposta

e essa proposta que nos é oferecida e

continuamos sempre a distinguir: isto é

penal, isto é civil.

Isto para dizer que há uma tendência muito

grande para encarar as questões da

delinquência juvenil – e aqui também há

uma certa indefinição do que é que é a

delinquência juvenil, porque quando

pensam na delinquência juvenil, ao mesmo

tempo dos relatórios, pensam nos jovens

dos 12 até aos 20 anos, e aqui há

respostas distintas – como delinquência de

menores, delinquência de adultos, e

portanto, colá-la o mais possível à resposta

que existe para os adultos. E quando se

acentua a resposta securitária, está-se a

encarar a questão da delinquência juvenil

abaixo dos 16 anos muito à semelhança da

delinquência para adultos.

Curiosamente (isto é um à parte mas que

tem também uma reflexão) enquanto para

os adultos consideramos que é bom

aplicar-lhes medidas alternativas na

comunidade, diversidade, para os menores,

talvez por considerarmos que eles ainda

estão debaixo do pendor autoritário em que

nos é permitido isso, para os educar o

melhor é “metê-los lá dentro”.

Ou seja, tem-se esta ideia, para educar os

adultos, o melhor é colocá-los cá fora, para

os menores não. Isto é um pouco

paradoxal mas é assim que acontece.

Mas, voltando à questão, eu acho que a

reflexão sobre o que está a acontecer em

termos europeus é importante mas

sabemos muito pouco sobre isso. Falamos

todos sobre isso, mas poucos sabem e

conhecem, em termos de lei e teóricos, o

que é que acontece nos diversos países da

Europa que, aliás, são muito distintos e até

sobre os sistemas práticos que eles

utilizam.

De qualquer maneira, esta construção do

modelo europeu é muito estimulante, mas

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Anexo

375

ainda estamos muito no princípio, como

estamos relativamente à construção do

modelo europeu penal, que é a dificuldade

de encontrarmos um enquadramento.

E começa logo pela dificuldade de

conceitos, porque a delinquência juvenil em

Espanha é até uma determinada idade, em

Inglaterra é completamente distinta,

portanto, há aqui ainda um grande caminho

a percorrer.

Quanto à questão do sistema, da sensação

de segurança ou insegurança já foi aqui

dito e isto já foi estudado. O clima ou

sensação de insegurança é muito diferente

da insegurança propriamente dita e isso

está mais que estudado. Isto é para dizer

que nós temos que nos preocupar, neste

momento, em saber qual é realidade

portuguesa quanto a esta questão.

Já foram aqui adiantados muitos dados e

são os que existem, mas são muito poucos.

Há uma enorme falta de estudos para nós

sabermos, realmente, qual o tipo de

delinquência cometida até aos 16 anos,

caracterização do tipo de delinquentes

(estou a falar em delinquentes, menores

que cometem factos ilícitos até aos 16

anos, ou até aos 18, ou até aos 21). Depois

estas questões vão-se pegar, como vão

também pegar-se com a Lei de Promoção

e Protecção anterior, é inevitável, porque,

quando estamos a falar da falta de

resposta do sistema, vamos

necessariamente bater à questão da falta

ou não de resposta de promoção e

protecção e por aí fora até chegar a outra.

Assim, há uma enorme falta de estudos

para saber, no sistema, o que é que

acontece com os que estão no sistema

prisional, quantas sinalizações têm em todo

o sistema, não só do judiciário, mas até do

próprio sistema de Segurança Social,

desde que nasceram até irem lá parar.

Isto tudo continua por fazer, pelo que

estamos a viver muito de sensações,

porque os números todos nos dizem isto

que P4 nos disse.

Depois há a sensação dos que “trabalham

com”, e esses também têm muito a

sensação conforme os universos que

conhecem. Se eu for um magistrado de um

tribunal de competência comum, em que

tenho promoção e protecção, crime, cível,

processos relativos ao tutelar educativo,

vejo a realidade de uma determinada

maneira. Se eu estiver num tribunal em que

o trabalho é só inquéritos tutelares

educativos, nem sequer faço os

julgamentos, apanho-os ali, a minha

realidade passa a ser aquela.

É que tudo isto também tem influência

nesses estudos, nessas sensações, e tem

influência também, claro, o tal sentimento

de insegurança que os magistrados

sentem, como seres humanos que são, e

que depois transferem na aplicação do

modo como apreciam os casos.

Isto para dizer que há alguns estudos que

nos dizem, por exemplo, a Maria João

Leote de Carvalho está a fazer um estudo

num bairro que nos remete já para algum

conhecimento de que, efectivamente, em

algumas comunidades e nalguns pontos do

país, há fenómenos novos que é preciso ter

em atenção, relativamente ao percurso

criminoso (se é que isso existe) e ela

conta-nos coisas em relação a crianças

com 7, 8 ou 9 anos, e por vezes até menos,

que, realmente, nos levam a concluir que

tem de se fazer qualquer coisa. Mas, aí é

caracterizar o problema e depois ver como

é que vamos responder.

Ora, mesmo nessas comunidades e nesses

tribunais que abrangem essas áreas mais

problemáticas, que são muito distintas e

estão mais ou menos identificadas nos

tribunais de família e menores o que se vê

é que o aumento nos processos não se tem

verificado, ou o aumento que há não é

significativo.

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376 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Por exemplo, eu conversei com alguns

colegas (lá está, a sensação!) do tribunal

de família e menores de x e eles dizem que

a gravidade aumentou um bocadinho mas

nada de especial.

Há um estudo da Procuradoria-Geral

Distrital de Lisboa, um documento, que

refere que há muitos factos, há muitos

menores que cometem factos ilícitos e que

não chegam a tribunal.

Assim, na sequência disto, considero, em

primeiro lugar, a necessidade da existência

de estudos, que é fundamental. Pois a

questão é, se não há um aumento e se há

esta ideia de que haverá, especialmente,

em determinadas zonas, factos muito mais

complicados, mas esses factos

complicados não chegam ao sistema,

qualquer análise que fazemos do sistema

não chega, porque não é por alterar esta

Lei Tutelar Educativa que eles vão chegar

ao sistema. Não é por irmos aumentar a

penalização que vai resolver esse

problema, que é prévio.

Eu vou-me calar agora e só me vou referir

depois a outra questão que é a eficácia ou

não deste modelo. Eu claramente acho

que, neste momento, com os dados que

temos em Portugal, o paradigma do

enquadramento jurídico desta lei não deve

ser alterado. Muito claramente o digo.

Outra coisa distinta é dizer que há ali

alguns aspectos para apurar. Mas,

francamente, acho que há aqui outro

problema, que embora seja um problema

de aplicação, eu não quero deixar de

chamar a atenção, que é a questão da

saúde mental. É que nós sabemos,

também, que muitos dos jovens que estão

com medidas de internamento têm

problemas graves de saúde mental e com

certeza não devia ser aquela instituição

fechada a adequada para aquele problema.

E esta questão deixo em cima da mesa.

P2

Era só para fazer uma precisão rápida

porque depois acabei por não terminar. Os

números são complicadíssimos. Aquilo que

eu estava a falar, é que houve

efectivamente uma duplicação de crimes,

na perspectiva de criminalidade

participada, em termos de inquéritos, ou

seja, não é o crime efectivamente

cometido, é apenas um indício. Por

outro lado, eu não estava a falar em

relação aos menores. Era uma realidade

geral. Isto é importante referir.

OPJ

Sim, mas podia ter descido e até ter

aumentado no seu distrito. Mas, o que

estamos, de facto, agora aqui a tentar

perceber é justamente isso. É se o nosso

paradigma jurídico de enquadramento

desta situação deve ser alterado.

Por um lado, coloca-se a questão se a

imputabilidade deve descer dos 16 anos,

havendo quem inclusive entenda que a

idade mínima para se aplicar a Lei Tutelar

Educativa também deve descer dos 12.

A questão é se deve ou não mudar e

descer porque há quem tenha esse

discurso entre nós, não só no que respeita

à idade mas também no que respeita às

medidas, ao endurecimento, ao

procedimento, saber se devemos ter um

procedimento ainda de tramitação do

processo mais rígido, mais próximo do

processo penal, porque há quem o

defenda. Estamos no âmbito das grandes

linhas e discutir depois a eficácia da lei.

P2

Só para partilhar um número a respeito das

idades. Na população internada, na série

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Anexo

377

dos últimos 5 anos, o que se verifica é que

a maior percentagem de população com

idade de 12 e 13 anos no sistema foi, no

máximo, de 4,5% e ela, neste momento, há

dois anos que se situa nos 2%.

Portanto, não há qualquer justificação para

reclamar a aplicação da Lei Tutelar

Educativa, incluindo o internamento, a

idades mais baixas do que os 12 anos.

OPJ

Outra coisa diferente é algo que eu não

queria discutir agora. Mas abro um

parêntesis. Há, de facto, nos nossos

trabalhos, quem reivindique para idades

mais baixas, não propriamente o

internamento tutelar educativo, mas uma

resposta institucional diferente. Mas isso é

outra questão. É precisarmos de respostas

institucionais.

Por exemplo, cito um caso identificado no

trabalho de campo de um outro estudo que

estamos a realizar: um caso de abuso

sexual de uma criança com 9 anos, que

tinha sido sinalizado pela Comissão de

Promoção e Protecção, pela polícia,

chegando ao MP, e, um ano depois, estava

no judicial. Eu encontrei isto na secção de

processos para que o juiz aplicasse uma

medida de promoção e protecção. E eu

perguntei: “Então, mas neste ano onde é

que a criança esteve?” e a criança estava

em casa, no meio em que havia sido

agredida. Portanto, havia aqui problemas

graves e, de facto, não há resposta das

instituições.

P3

Sem querer adiantar muito da conversa,

isso remete-nos para a reflexão de saber

se, de facto, o Centro Educativo é a

resposta adequada.

OPJ

Há também quem defenda o discurso de

que é outra resposta institucional mas não

estão a defender a resposta institucional do

Centro Educativo.

P3

Mas há quem defenda, perante esse tipo

de problema, que a resposta institucional é

um Centro Educativo. E aí está a

perspectiva, na minha opinião, das

respostas fáceis para problemas

complexos, porque enquanto eles estão lá

fechados no Centro Educativo, estão

fechados e nós estamos livres deles.

P7

Penso que há um certo consenso dos

práticos, ou com alguma ligação à prática,

que realmente não temos um problema

grave de delinquência juvenil em Portugal.

Porque não se pode confundir a realidade

nacional com o que se passa em 2 ou 3

centros urbanos, ou na sua periferia.

Por exemplo, X não tem um problema

grave de delinquência juvenil ou sinais de

gangs organizados.

Agora, também não podemos subestimar

alguns problemas que devem merecer a

nossa reflexão, que são mal estudados,

não entram nas estatísticas, como o caso

da violência escolar. E há casos de formas

sofisticadas de violência escolar que não

são tratadas, são mal conhecidas, com

poucas respostas, a nível mesmo

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378 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

institucional e que devem merecer alguma

preocupação e até, sobretudo, alguma

reflexão.

OPJ

Mas não é a Lei Tutelar Educativa como

está que lhes vai responder.

P7

Pois não. Eu recordo-me que, no direito

penal, falava-se na justiça das empresas,

um palavrão em alemão que tenho medo

de não pronunciar bem e não vou dizer.

Mas, aqui também deveria haver, a nível da

comunidade escolar, respostas não

institucionais, mas que deveriam ser até

mais eficazes do que aquelas.

Eu faço parte da Associação de Pais na

Escola Secundária que frequenta a minha

filha, e o que eu vejo é que lá é tratado e

discutido, ao nível da Associação, que a

escola hoje não tem meios para pôr os

meninos na linha, porque se fala de

fenómenos que para mim, também eram

pouco conhecidos, ou melhor, que sempre

existiram mas que agora atingem uma

sofisticação que, realmente, é de espantar,

como é o caso de formas de “copianço”

(como dizíamos antigamente), dantes toda

a gente copiava, mas hoje há formas

sofisticadas que são autênticas fraudes.

A comunidade escolar parece que não tem

respostas e não sei se nós, a nível

institucional, temos essas respostas.

Portanto, nada de pessimismos em relação

à delinquência juvenil, agora, há

fenómenos que deveriam ser melhor

reflectidos e melhor estudados.

OPJ

Mas isso, da sua experiência, tem ideia de

estarmos numa fase ou num momento em

que as nossas respostas fazem pela

alteração do paradigma que hoje temos de

resposta dogmática.

P7

Não, não. Alguns ajustamentos talvez. Eu

sou totalmente contra o abaixamento da

idade da imputabilidade e nem vejo que

haja razões para isso. Se isso corresponde

ao requisitório de algumas forças políticas

julgo que, enfim, não se pode ignorar isso e

também não acho que isso seja um tabu,

que não possa ser discutido, mas parece-

me que não devemos ir por aí.

OPJ

Por exemplo, para alguns fenómenos de

alguma gravidade ou alguns casos de

gravidade, de delinquência grave, actos

criminosos graves conhecidos, claro,

porque, efectivamente, falta-nos em

Portugal um grande estudo sobre a

vitimização e de criminologia, que possa

informar nomeadamente a definição das

políticas criminais. Como é que podemos

definir políticas criminais com fundamento

se não sabemos exactamente qual é a

criminalidade oculta ou se há, de facto, um

aumento da criminalidade ou uma

diversidade de fenómenos?

Por exemplo, os abusos sexuais e a

violência doméstica, aparentemente, são

fenómenos que não aumentaram, o que

aumentou foi as queixas. Mas, claro, esta é

a percepção que temos, não sabemos se

isso corresponde à realidade.

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Anexo

379

P7

Em relação à violência escolar, temos que

entender previamente, sobre o que é a

definição de violência escolar.

A Procuradoria-Geral, muitas vezes, pede-

nos estatísticas sobre violência escolar.

Mas o que é a violência escolar? Nos já

demos um contributo à Procuradoria-Geral

Distrital de x, há cerca de 2 anos no sentido

de uma definição ou proposta de definição

de violência escolar. A Procuradoria-Geral

da República nunca deu resposta. Pede-

nos estatísticas sobre a violência escolar

mas ainda não a definiu.

P8

Ora bem, eu estou de acordo com a maior

parte das coisas que se disseram. Não

tenho uma percepção sobre a realidade,

porque estou a dar aulas sobre a Lei

Tutelar Educativa mas não conheço nem

estou a lidar todos os dias com estas

situações. Mas, tenho falado com vários

magistrados e também a sensação que

tenho é que não havendo, de facto, indícios

seguros de haver um aumento de

criminalidade grave – penso ser importante

esta distinção entre a pequena

criminalidade e a criminalidade grave, o tal

paradoxo de, por um lado, se apelar a

medidas não formais e, por outro lado, ao

endurecimento das medidas, também tem

a ver com isto, se realmente houvesse

dados seguros de que o nosso país estava

com um problemas grave de criminalidade

juvenil, acho que faria sentido pensar-se

noutras medidas, noutro sistema.

Parece-me que, perante a nossa realidade,

felizmente, que o que há mais é um

problema de prevenção e depois, no fim,

de reintegração, porque aquilo que tenho

ouvido e que também já foi aqui repetido, é

que grande parte dos jovens que cometem

crimes entre os 12 e os 16, grande parte

deles depois vão cometer crimes aos 18,

20 ou 21 e por aí fora. As tais “carreiras

delinquentes” que começam muito cedo.

Eu tenho pensado muito, mais do que

baixar idades, ou endurecer medidas,

porque é que não há algo de semelhante,

tinha de ser melhor pensado, soluções que

se adeqúem a estas idades. Algo que

fizesse a transição exactamente nos casos

mais graves (os que vão para

internamento) entre a vida no Centro

Educativo e a vida cá fora. Porque eles até

podem ter um comportamento óptimo lá

dentro. Aqui, penso que há uma lacuna. O

sistema em si, os princípios gerais

parecem-me até muito bem pensados,

agora, a transição seria importante.

OPJ

Nós já vamos falar disso, porque essa, de

facto, é uma lacuna. Agora também

gostava de ouvir P6 porque tem uma janela

de observação privilegiada.

P6

Acho que alguns sistemas estão pouco

conformes com o que a Europa põe o seu

timbre, que é os direitos humanos. Quero

dizer, há uma deriva neoliberal, desculpem

lá dizer isto, neoconservadora, em que se

atende apenas ao sentimento de

segurança e se diz que são eles os

culpados, os que vieram, afinal, substituir a

mão-de-obra que já não temos. E penso

que temos, pelo menos, de procurar

soluções que estejam de acordo com os

princípios que nós defendemos, os direitos

humanos, a atenção e a ética do cuidado

com os mais vulneráveis, a não ser que a

situação das pessoas exijam o

endurecimento das coisas. Por outro lado,

isto esquece o que é uma carência do

jovem, tem direitos como os outros e tem

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380 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

direitos específicos resultantes das

necessidades e características da sua

evolução. Portanto, não se pode pretender

que o sistema penal seja adequado, na

minha perspectiva, a estes jovens em

desenvolvimento.

Não me parece que seja de nós

embandeirarmos em arco com o sistema

europeu. É que a tendência tem de ser,

pelo menos, levada ao crivo, enfim, da

análise da ética disso e da necessidade de

protecção que as pessoas têm.

Parece-me, e P3 falou de alguma

originalidade do nosso sistema entre os

outros, que não há razão para abandonar o

nosso sistema do ponto de vista dos

princípios.

Mas também não podemos fechar os olhos

à realidade. E o que me parece que há

também é uma falta de coordenação, de

articulação da intervenção dos vários

actores.

Primeiro, a prevenção, nós não temos

cultura de prevenção primária e não tem

sido muito o esforço que tem feito nas

comissões de protecção juntamente com a

rede social para que os programas de

prevenção primária sejam uma realidade. O

esforço destas instituições não tem tido

grande êxito, mas está em progresso.

Agora, o problema é este, o princípio do

direito da criança à interiorização das

regras e limites é um princípio que não está

a ser cumprido, nem nas famílias, ou em

muitas das famílias, nem nas escolas (com

toda esta dificuldade que há na escola,

aliás, já fomos sensibilizados para isso). A

Secretaria-Geral tem estado interessada

em que a prevenção seja um facto e que

haja a responsabilização institucional das

pessoas que têm a seu cargo crianças,

seja na escola ou noutros. Há que ter em

atenção que isto tem de ser interligado com

uma certa cultura geral do direito da

criança, mas de forma pedagógica e de

acordo com o estado de desenvolvimento

da criança. Penso que isto deve ser

também dito e deve entrar na forma de

abordar os problemas.

Depois, põe-se outro problema que é até

aos 12 anos. Eu concordo com a

concepção que foi seguida na lei, seguiu

um caso de protecção. Eu penso que o

sistema de protecção quer o mais informal,

como o das entidades, e cumprindo a

subsidiariedade, depois as comissões dos

tribunais têm de ter em atenção a estas

formas, diferença de valores que se criam,

e nisto estamos atrasados. Não há estudos

bastantes, nem estratégias suficientes para

actuar nesse sentido. Não é quando se

chega aos 12, 13 anos.

Assim, tem que se ter mais atenção a este

caminho de prevenção, e de atender

também a estas idades, e saber se,

realmente, as soluções institucionais que

existem são bastantes ou não, e o que é

que podem melhorar. Portanto, existe todo

este aspecto dos 0 aos 12 anos. Penso eu

que isto deve ser pensado. Mas não em

medida, em baixar a idade da

imputabilidade, como também não é baixar

dos 14 anos.

A concepção do sistema parece-me

correcta.

OPJ

Concorda, de facto com este consenso?

P6

Concordo. Precisamos de o tornar eficaz.

Não há nada nos livros sobre o

abaixamento da idade. Mas, concordo,

realmente …

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Anexo

381

OPJ

Se nós não tornamos o sistema mais

eficaz, a solução vai para um caminho, que

P3 estava já a anunciar, de facilitismo. Isto

é, em vez de atentarmos, de facto, na

qualidade das respostas, o que vamos

fazer é encontrar formas de a baixar. Sobre

a aplicação da lei em concreto falaremos a

seguir. Mas só para dizer o seguinte: P4,

não sei se leu há uns dias no jornal, que

havia cerca de 20 ou 30 jovens com

medida de internamento à espera de uma

vaga para cumprir a medida? Portanto,

também, aparentemente, parece que há

esse fenómeno.

P4

É um fenómeno meramente aparente

porque tem de ter em conta que, e nisso

estamos muito aquém da Espanha,

Portugal nunca foi transparente em revelar

as fugas dos Centros Educativos. Conhece

alguma estatística de fugas de centros?

OPJ

Não. Não se admite que fogem.

P4

Eu também não. Só que sucede o que

acontecia nos serviços tutelares de

menores de onde sou originário, ou seja, o

sistema nunca o revelou. E, portanto, como

não podia revelar, os menores fugiam dos

centros mas as vagas tinham que ficar

cativas, porque, na realidade, quando

fossem apanhados pela polícia tinham que

voltar ao centro.

Ora, nos centros educativos passa-se

exactamente a mesma coisa. Há menores

à espera de vaga, por um lado, porque se

reduziram os Centros Educativos e,

portanto, isso é uma política de gestão dos

centros que é questionável. Reduziram-se

os centros, reduziram-se as equipas e o

número de estabelecimentos com a

justificação de que não eram necessários.

O que acontece é que há jovens que fogem

dos centros, mas esses jovens, como

disse, têm que ficar com a sua vaga lá

porque a polícia pode trazê-los a qualquer

momento. Aliás, é obrigatório, como sabe,

nos termos da Lei Tutelar Educativa, pedir

imediatamente a detenção do jovem e a

recondução.

Obviamente, enquanto a vaga estiver

afecta, e é esta a terminologia que a DGRS

adopta, à semelhança do que se passava

no IRS e, antes dele, nos Serviços

Tutelares de Menores relativamente à

categoria dos menores afectos. Há, por

isso que distinguir, relativamente à

população internada, a dos menores

afectos que são todos os que deram lá

entrada alguma vez na vida.

OPJ

Mas, o que eu quero dizer é que há mais

medidas a serem aplicadas.

P4

Não, não há mais medidas. Veja as

estatísticas dos tribunais – e por isso é que

eu lhe dizia há bocado que tenho seguido

de perto a aplicação das medidas pelos

tribunais relativamente às entradas nos

centros e, particularmente, no que toca à

medida de internamento não tenho visto

senão um paralelismo. Se for ver, as

decisões acompanham, ao fim e ao cabo,

na sua linha de descida ou de subida, por

exemplo, num determinado momento, sem

haver, de qualquer modo, um movimento

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382 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

de retrocesso no sentido de um aumento

generalizado. As entradas nos centros

estão sempre de acordo e em paralelo com

as medidas de internamento aplicadas.

P4

Eu tenho aqui no computador uma curva

diacrónica que lhe posso mostrar.

P3

Eu não vou fazer uma intervenção grande.

Era só para dizer que é curioso como nós

estamos a discutir aqui isto e só discutimos

o internamento, parece que não há mais

nenhuma medida.

P9

Todos já falaram e quase todos foram para

a questão do internamento. Parece que a

única medida tutelar educativa que existe é

de internamento!

É só uma percepção, portanto vale o que

vale, mas eu estou de acordo com o que

todos disseram sobre a ideia de que não

devemos ir para uma coisa mais fechada

ou mais punitiva ou baixar os limites das

idades. Tenho perfeita noção que não é por

aí que as coisas passariam a funcionar. Até

porque já vários o reconheceram, o

problema põe-se antes, não se põe só a

partir da idade em que se pode aplicar a

Lei Tutelar Educativa e, portanto, isto não

iria resolver.

A eficácia das medidas é outra questão que

será discutida a seguir. Em relação a este

paradigma, também acho que não é o mais

feliz mas, no geral, estou de acordo.

Só gostava de dizer duas ou três coisas,

algumas até num papel, se me permitirem,

de “advogado do Diabo”.

Os números que apresentou, para mim não

me informam de nada acerca das possíveis

prevalências da delinquência juvenil por

dois motivos: é evidente que muitos dos

miúdos que cometem actos que seriam

crime ou que dariam direito a alguma

medida tutelar educativa das que estão na

lei, não chegam sequer aos tribunais. Isto

para mim é muito claro. Segundo, muitos

dos miúdos que estão em instituições, que

são centros de acolhimento, podiam estar

num Centro Educativo porque são

iguaizinhos.

Eu tive algum contacto com o Centro

Educativo de x que era só de miúdas e foi

um dos que foi fechado. Continuou com os

técnicos da DGRS, a gestão passou para a

Segurança Social. As miúdas estão iguais

em termos de problemáticas, de

autocontrolo, de comportamento agressivo,

de instabilidade emocional. São as

mesmas, e segundo as técnicas de lá,

estão iguais ou piores.

Portanto, é preciso termos noção que a lei,

falando ao nível do paradigma, tal como

está formulada, isto no olhar de um leigo e

perdoem-me se estou a dar alguma

“dentada” grande no direito, mas, de facto,

não é feliz numa coisa: baseia muito o tipo,

duração e gravidade da medida em função

do acto pelo qual o miúdo tem o processo.

Eu sei que não na teoria, mas na prática

sim, e não está aferido nem tem peso

suficiente o que se chama na lei – também,

quanto a mim, de forma infeliz e perdoem-

me as pessoas responsáveis pela lei – “a

necessidade de educação para o direito”.

Ou seja, nós não temos, de facto, dados. E

só um estudo longitudinal que agarrasse

nuns milhares de miúdos é que nos poderia

dizer, de facto, qual a prevalência do

comportamento anti-social e qual o tipo de

actos que são considerados anti-sociais e

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Anexo

383

depois constituídos crime ou que têm

relação com o crime depois na idade

adulta. Nós não temos esse estudo. Há

alguns estudos feitos, há um estudo que já

vai em 17 anos, é o de Cambridge, que, de

facto, fez isto e tem as prevalências que

são conhecidas. Há uma prevalência muito

maior de comportamento anti-social do que

aquela que corresponde, já nem digo a

todos os miúdos que nós temos, que já

nem sei quantos são com medidas da lei,

mas digo para os que estão com medida

tutelar educativa.

Gostava de dar mais dois ou três dados, de

que os vossos comentários me foram

chamando a atenção ou me foram fazendo

recordar.

Aqui há dois anos em Lisboa, ajudei numa

tese de mestrado de um rapaz que pegou

em todos os processos tutelares educativos

daquele ano, já não me recordo se eram 10

meses ou 12 meses. Aquilo tinha mais de

200 processos tutelares educativos.

Desses 200, de cor, sei que cerca de 80%

tinham tido processos de promoção e

protecção antes. Ora, isto não nos diz

quantos, dá a ideia que tudo falhou, mas

não sabemos, porque devíamos até ter

feito o estudo ao contrário, partindo de

quantos miúdos com processo de

promoção e protecção e agora, no futuro,

quantos é que chegam a tutelar educativo.

E isso nós não temos, de facto, o que é

uma pena porque também não era assim

tão difícil, mesmo que perdêssemos algum

tempo com uma série de miúdos para

experiências de contacto, não era assim

tão complicado se houvesse aqui alguma

investigação associada a estes processos.

De qualquer maneira, mesmo com o

enviesamento de estarmos a olhar ao

contrário, da frente para trás, é um pouco

chocante. Significa que, pelo menos,

repare-se que era a totalidade dos

processos tutelares educativos daquele

ano e da totalidade cerca de 80% já tinham

outro antes. Portanto, nós estamos a falhar

muito antes, mas também durante e

depois. E era em relação a isto que queria

ser um bocadinho incisivo.

Estou sempre a dizer que, de facto, o que

se faz é um décimo ou menos do que devia

ser feito para pôr em causa o modelo de

intervenção dos centros educativos e

mesmo de acompanhamento dos miúdos.

Porque, de facto, não há um modelo

decente que atenda àquilo que P3 referiu,

como a saúde mental ou a psicopatologia

associada ao comportamento criminal.

Outro dia zanguei-me e numa discussão

acesa disse: “Vocês nem sabem quantos

miúdos têm perturbação de conduta, e eu

aposto que têm todos. E vocês nem isso

avaliam à entrada num Centro Educativo,

portanto, o resto, tudo o que digam a partir

daqui, vale zero”. Isto numa brincadeira,

entre dois amigos. E ela disse-me: “Por

acaso sabemos”. E eu perguntei: “Mas

sabem como, vocês avaliam?”, ao que ela

me respondeu: “Foi-me encomendado e eu

fiz uma avaliação a posteriori”. Ora, a

posteriori vale o que vale. Mas a posteriori,

mais de 80% dos miúdos dos Centros

Educativos sinalizam com a perturbação de

conduta. Nada de novo. Provavelmente,

até sinalizariam mais do que o 80% se

fosse uma avaliação feita ao vivo e no

momento certo.

Portanto, do ponto de vista da psicologia, e

sem querer ser muito presunçoso, eu

gostava de dizer isto: penso que andamos

a brincar com uma série de coisas, porque

criámos categorias, seja na psicologia, seja

no direito, e nós temos é pessoas. E nós

sabemos da natureza do comportamento

anti-social, que os crimes mais graves – e

eu não sou nada alarmista, nem acho que

isto esteja a aumentar. Mas parece-me

que, mais do que mudar a lei porque há

mais crimes ou crimes mais graves ou

porque a vítima é uma actriz ou o que for,

considero óptimo se não chegarmos a fazer

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384 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

isso no nosso país. Agora, o que me

parece é que as pessoas não atendem à

natureza em que se desenvolvem os

comportamentos anti-sociais mais graves.

Os indivíduos que têm uma medida tutelar

educativa de internamento, supostamente

são os que tiveram um acto mais danoso

ou mais gravoso do ponto de vista criminal,

do ponto de vista de afectar os direitos do

outro. São também os indivíduos que,

provavelmente, tiveram um percurso anti-

social desde mais cedo na vida e com um

desvio comportamental desde mais cedo.

Em X não há problemas porque nas

estatísticas do insucesso escolar – somos

o país com maior taxa de insucesso da

Europa – X não tem insucesso. Mas X é

um mundo à parte. E não tem, porque se

calhar também não são apanhados, porque

algumas zonas para baixo de X todos

sabemos que têm. E eu vejo alguns miúdos

no Hospital que vêm de lá. Mas, quero

dizer, em termos estatísticos não é

representativo.

Mas um indicador grande de adaptação ou

de integração social é o sucesso escolar,

de facto X tem taxas de insucesso

mínimas. Por exemplo, Odivelas, tem cerca

de 40%, enquanto há concelhos – não sei a

de X – mas há concelhos que têm taxas de

abandono e reprovação até ao 9.º ano, de

fracasso escolar de 4% apenas.

Naturalmente, que há aqui uma dimensão

também sociológica e geográfica

importante.

Resumindo, isto era para dizer, porque há

pouco ouvi coisas que me desagradaram

francamente, esta ideia do direito dos

jovens adultos é sempre o mesmo. Isto é

sempre o mesmo, é um indivíduo. E,

portanto, nós falhámos na altura em que

deveríamos ter intervencionado, em

criança, quando lhe era mais fácil

conseguir alguma coisa. Ora, o que temos

em termos de medidas de promoção e

protecção é vergonhoso. E como vocês

sabem, muitas instituições, quando o

magistrado quer pôr lá um miúdo, recusam-

no. Muitas vezes, o miúdo já saltou de

família em família ou de mãe em mãe, ou

de pai em pai, e os mais graves, os que

apresentam comportamento mais violento

são sempre estes. E depois, saltam de

instituição em instituição. Porque as

instituições de acolhimento não têm nem

técnicos, nem capacidade, nem know-how,

nem sabem e nem são obrigadas

legalmente a saber e dependem da

desorganização e do caos que é a

Segurança Social. E depois não querem

estes miúdos que só lhes dão chatices e

não sabem como lidar com eles. “Chutam”

para outro lado. Quantas vezes não

acontece serem os magistrados a ver onde

é que colocam o miúdo, e não têm onde.

Ou seja, é mesmo uma coisa complicada.

São estes miúdos que depois temos

obviamente num Centro Educativo e outros

nem sequer chegamos a ter. Quanto à

questão de como é que se faz a transição

do Centro Educativo para a vida cá fora,

não se faz. Como também a da prisão, que

na teoria pode fazer-se, mas não se faz.

Mas, ainda digo outra coisa. Muitas vezes o

que se consegue em termos de Centro

Educativo é o mesmo que se consegue na

prisão, que é o controlo do comportamento

do recluso, mas não quer dizer que haja

mudança ou uma nova percepção que ele

tem da vida em sociedade. Portanto, nós

estamos, de facto, a gastar rios de dinheiro

para conseguirmos alguma protecção das

pessoas cá fora enquanto estes indivíduos

estão detidos, mas, depois, nem

assumimos que eles vêm de lá igual ou pior

do que quando entraram. Nós estamos a

gastar dinheiro para eles ainda virem fazer

coisas mais graves. Penso que aqui

devemos pensar também em termos desta

responsabilidade.

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Anexo

385

No caso dos menores, estou perfeitamente

de acordo. Têm todo o direito a interiorizar

regras, normas de conduta, mas, o centro

tem que ser educativo nesse sentido. E eu

não sei se está a ser. Isto para não falar

nas outras medidas, de que vamos falar a

seguir.

A minha questão é que eu acho que nós,

de facto, não temos nenhuns números e,

portanto, tudo o que se diga é porque

parece na TVI ou na SIC e isto influencia o

pensamento dos decisores.

P4

Mas fará o favor de se lembrar que eu

comecei por referir que utilizava os dados

relativamente ao sistema de internamento

porque eram a fase terminal, ou seja, é

onde chega aquilo em que tudo falhou

antes.

P9

Mas há muitos que estão igualmente, e que

cometeram actos e não chegam.

P4

E por isso mesmo é que é um microcosmo

particularmente sintomático de um iter em

que tudo falhou antes, e daí a importância

destes dados. Com certeza que não vai

pensar que eu estou satisfeito com a

realidade do país quando, eu próprio, a

primeira coisa que salientei foi que, de

facto, não há estudos credíveis nesta

matéria, aliás, não há estudos pura e

simplesmente, não há investigação nesta

área e, pior ainda, mudámos os critérios

estatísticos a meio de um percurso. E,

portanto, até 2006, nós podemos ter uma

série estudada. Se quiser continuar

estudos e investigação da década de 90

sobre a delinquência juvenil, não posso,

porque a série foi interrompida. E, portanto,

eu não tenho critério estatístico fiável neste

momento, para poder fazer uma análise

comparativa.

P9

Mas reconhece que há muitos indivíduos

menores que têm actos que dariam direito

a uma medida tutelar que não chegam

nunca ao sistema. É que o número que nós

temos em Centro Educativo é muito inferior

à realidade porque nós temos muitos

miúdos que estão em instituições de

acolhimento.

P4

Nós estávamos aqui a discutir delinquência

juvenil e delinquência juvenil não é prática

de actos anti-sociais. Não estamos na

Escócia nem na Irlanda do Norte, em que o

sistema de justiça juvenil intervém,

relativamente, a delitos de status. Nós aqui

estávamos só a falar de uma coisa que

ficou clara a partir de 2001, que é haver

intervenção tutelar educativa desde o

momento que seja praticado um facto

qualificado pela lei como crime.

P9

Mas acha que o nosso sistema apanha

todos os factos qualificados pela lei como

crime? É o que eu estou a dizer.

P4

Não. Mas também lhe posso responder a

uma coisa que é sintomática e há pouco

não referi. Se for ler o estudo do OPJ, de

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386 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

2004, “Os Caminhos Difíceis da „Nova‟

Justiça Tutelar Educativa”, vai lá encontrar

um dado extraordinariamente sintomático:

dois anos depois de a lei começar a ter

sido aplicada, no MP, é enorme a

percentagem de casos que morrem e não

seguem para diante. E isso, para além de

2002, não sei o que é, mas, pelos dados de

que vou tendo conhecimento através dos

contactos com o MP fui tendo a mesma

percepção, ou seja, apesar de existir a

grande cifra negra que nem sequer chega

ao conhecimento do MP, mesmo dos que

chegam, uma enorme percentagem não

segue para audiência, o processo não

segue.

Mas eu até estou satisfeitíssimo com isto

porque, justamente, o que nós temos é

uma criminalidade bagatelar. E apesar da

Lei Tutelar Educativa, o legislador, que foi

acusado de fazer uma lei medieval em

1999, uma lei bárbara, veja, 9 anos depois,

como é que estamos! Aparentemente

fizemos uma lei branda que não serve para

a delinquência juvenil que temos. Isto é

ridículo.

OPJ

A questão que nós estávamos aqui de

alguma maneira a debater é que

claramente, em 2001, nós separámos, e,

alguns países não o fizeram, os

comportamentos anti-sociais, etc.. A

questão é que à nossa Lei Tutelar

Educativa é necessária a prática de um

acto conhecido do sistema judicial e que

seja qualificado como crime para que haja

a intervenção tutelar educativa, o que não

significa que não haja muitos outros actos

que não são conhecidos do sistema – em

que não há queixa, etc..

P1

É uma coisa muito simples, e que reforça

aquilo que P9 disse. Eu quando vi as duas

leis ao nascerem, achei muito bem que as

coisas se tivessem separado, mas achei

muito mal que não fossem buscar os

ensinamentos de todos os estudos de

desenvolvimento sobre a delinquência, que

provam que os factores de risco estão

presentes para os que cometem crimes e

para aqueles que depois deixam de

cometer. Estamos a falar dos early starters

e dos que fazem umas coisas na

adolescência com uma pseudo-maturidade

e depois deixam. São, na realidade,

praticamente os mesmos, à excepção de

uma ou outra coisa mais grave que

representa, por exemplo, estes cinquenta e

tal que, provavelmente, têm problemas

neurológicos porque são indivíduos que

poderão vir a ser psicopatas.

Eu tenho duas teses de mestrado e uma

delas foi feita na DGRS e a outra foi feita

no EMAT. A colega que recolheu os dados

na EMAT, o que fez foi ver quais os

indicadores que tínhamos e que estavam

sinalizados na EMAT e, portanto, em

processos não tutelares, e os factores de

risco eram aqueles que a literatura

classifica como preditores da delinquência.

Portanto, eu diria que não me incomoda o

decidir em função do facto, do que

cometido. Agora, a medida a aplicar devia

ser em função dos factores de risco que o

individuo comporta e se esses factores de

risco, independentemente de até serem ou

não bagatelas, forem de facto de risco. E

aí, provavelmente, dir-se-ia que esse

indivíduo está num processo, está entregue

à Segurança Social, mas vai levar com um

tratamento como se estivesse no outro

lado, independentemente do facto.

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Anexo

387

P4

Só que aí, está a violar flagrantemente a

Convenção dos Direitos da Criança e o

princípio da proporcionalidade.

P1

A questão é essa, o que é que se vai, de

facto, fazer. Eu não vou punir este

indivíduo, não me vou preocupar tanto com

a punição, mas vou-me preocupar com a

educação. Agora, eu tenho que ter um

mecanismo de educação quer num lado,

quer no outro.

P4

Mas não lhe dá uma solução de justiça.

P1

Repare, a ideia é da intervenção. Dois

casos de questão sexual como exemplo

para mostrar esta disparidade: num caso

ele foi internado, noutro foi mandado para a

família para estar em casa. Eu não percebo

como é que foi feita esta avaliação quando

a gravidade do facto é quase a mesma e a

decisão foi tão díspar. Mas o meu princípio

é sempre: se eu me situo só no facto,

enfim, o facto é relevante, mas eu devo-me

situar no processo, e se avalio um conjunto

de factores de risco que são preocupantes,

independentemente desse indivíduo até ao

momento ter parecido um “tipo bonzinho”,

então, se calhar, a intervenção tem de ser

de cima para baixo, independentemente de

ser feita na Segurança Social ou na justiça.

P5

Parece-me que há aqui uma evidência,

depois desta conversa, que é o facto de

que a todos falta o conhecimento que só

um trabalho de fundo, de caracterização

minuciosa, etc.. nos poderia permitir a

todos estarmos no mesmo “clube”, não no

mesmo sítio, é óbvio, mas num sítio

equivalente.

P9

Portugal não é diferente. As mesmas

coisas de que estamos a falar são iguais

em todos os países.

P5

Não, desculpe, mas não me parece. Aquilo

de que eu estou a falar, não é exactamente

a mesma coisa. Os dados de que nós

estamos a falar, muitas vezes, são dados

omissos, são dados entrecortados, são

dados quebrados – estou a falar dos dados

do sistema de justiça.

P9

Das prevalências, mas o que sabemos do

desvio são iguais nos vários estudos dos

vários países que estão disponíveis.

P5

Muito bem. Mas, estamos a falar aí das

trajectórias delinquentes, em termos do

psicológico, ou em termos

desenvolvimentais. Eu estou a falar de

outra coisa, estou a falar dos dados

estatísticos da justiça juvenil, que são

coisas diferentes. Há-de concordar. Uma

coisa é observarmos a prevalência numa

população, outra é certificarmos como é

que isso se concretiza. Portanto, parece-

me que isso falta.

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388 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

OPJ

Sim, mas temos o conhecimento suficiente

para sabermos que há uma comunicação,

do ponto de vista dos caminhos, isto é, dos

jovens que estão no sistema prisional, dos

que estiveram no sistema tutelar educativo,

dos que estiveram no sistema de promoção

e protecção. Em relação a isto, há dados

que nos permitem estabelecer estes

percursos. Por outro lado, já percebemos

também, há dados que nos mostram

realidades sociológicas do país muito

diferenciadas.

P5

Mas continuo a achar que falta essa base.

Temos perspectivas diferentes, mas acho

que também há distorções. É que nós

estamos sempre a discutir o problema de

baixar o nível da idade ou endurecer o

regime porque todo o nosso raciocínio é

orientado pela lógica de que Portugal é

Lisboa, Porto e Setúbal e o resto é

província. Porque, se pensássemos ao

contrário, a nossa concepção do que seria

a justiça juvenil, se pensássemos em todos

os outros distritos, se pensássemos a partir

desse ponto, a nossa concepção do que

era ou deveria ser a justiça juvenil seria,

com certeza, diferente. Chamo só a

atenção para esta distorção em que nós

frequentemente incorremos.

Depois, um outro aspecto que tinha a ver

com o alarme social. Falou-se a certa altura

nas questões das etnias. Claro que não

são dados representativos, mas eu

recordo-me que, a dada altura, havia uma

fortíssima sobrerepresentação por relação

à população nacional, tanto de elementos

de etnia cigana como de sujeitos de raça

negra.

Depois, ainda a questão, eu lembro-me de

uma aula do professor Jean Trépanier,

criminólogo canadiano que tinha feito, julgo

que numa cidade dos Estados Unidos, o

seguinte exercício. Primeiro, pegou em 100

indivíduos brancos e em 100 indivíduos

negros, tendo todos sido apanhados em

flagrante a cometer o mesmo acto

criminoso. Segunda etapa, vão à esquadra

95 negros e 80 brancos. Terceira etapa,

iniciam mesmo um processo, 90 negros e

70 brancos. Quarta etapa, chegam a

tribunal, imaginemos, 80 negros e 40

brancos. Quinta etapa, no fim são

condenados 70 negros e 20 brancos.

Isto tem a ver com aquela questão de há

pouco, de como é que vemos as coisas, se

de trás para a frente ou da frente para trás.

Muitas vezes olhamos para o número e não

temos bem a percepção ou o conhecimento

de como é que se chegou àquele número.

Isto parece-me um dado também muito

importante que precisa de um outro tipo de

estudo que não seja simplesmente o

estudo da recolha dos dados, mas o estudo

sobre a própria recolha dos dados, de

alguma forma, para se perceberem todas

aquelas coisas que nos Relatórios de

Segurança Interna são típicas. Uma pessoa

olha para aquilo e é preciso descodificar

todos os anos porque nunca se sabe bem o

que é que lá está dentro.

Depois, por fim, a questão da educação

para o direito. Há a questão da prática do

facto criminoso e, depois, a necessidade de

educação para o direito.

Eu percebo o olhar e a justificação do

interesse de se prestar atenção à educação

para o direito dos psicólogos, mas vejo aí

também um terreno fértil para a criação de

desigualdades do ponto de vista dos

sociólogos.

Já nos anos 60, o Aaron Cicourel, no The

Social Organization of Juvenile Justice,

apresentava casos interessantíssimos de

miúdos que tinham sido apanhados a fazer

exactamente a mesma coisa e enquanto

para uns, que eram filhos do médico, a

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Anexo

389

sentença era, vá lá, aparar o relvado à

frente de casa dos pais aos fins-de-semana

durante 3 meses, outros iam para um

centro de acolhimento, os que não

pertenciam a uma classe tão favorecida. E

portanto, como é que nós entramos numa

ponderação de educação para o direito?

Estávamos a falar das barreiras

sociológicas. Não é fácil, e aí percebo que,

de facto, possamos entrar em choque com

alguns dos direitos fundamentais, quer

dizer, só porque a minha família não me

pode assegurar a mesma coisa, vou ter de

ser judicialmente sujeito a um tratamento

diferente?

P1

A ideia dos ingleses de começarem cada

vez mais a responsabilizar os pais pelos

comportamentos desviantes dos filhos, a

mim parece-me altamente terapêutica.

OPJ

Bom, isso é uma questão que eu gostava

de introduzir a seguir. Mas isso já nos dá

dados que nos permitem avançar para o

momento seguinte, que é saber se esta

nossa lei e este nosso enquadramento,

apesar de nós acharmos que não vamos

mexer no paradigma, o que é que

precisamos realmente de mudar em termos

de ajustamentos. Mesmo a nível dos

conceitos, acho que tudo está em cima da

mesa. Por exemplo, saber se esse conceito

da própria lei “educação para o direito”,

essa formulação, se ela própria não é

confusa, ou seja, questionar se os próprios

conceitos estão correctos e outros

enquadramentos que realmente

precisamos.

Uma das questões que gostava de ver aqui

discutida é, por exemplo, sabendo que

grande parte destes fenómenos que

chegam ao sistema têm a ver com famílias

desfavorecidas e estratos sociais

complexos, como é que se vai exigir que

sejam eles próprios a fazer um plano de

conduta se fôssemos aplicar a lei tal como

ela está prevista?

Outra questão, sobre a responsabilização

da família, é saber até onde é que

devemos ir na recomendação de haver

aqui uma responsabilização e qual deve

ser essa responsabilização, entre outros

aspectos que gostaria de discutir.

P8

Só um apontamento relativamente a estas

últimas intervenções. É que este problema

de ser necessário a prática do facto

qualificado como crime mais a necessidade

de educação para o direito, parece-me que

o que está mal não é a lei mas é, talvez, a

articulação. Porque, de facto, como foi dito

aqui, também é preciso haver alguns

limites objectivos para as medidas mais

graves, nomeadamente para as medidas

de internamento. Objectivos aqui, no

sentido do indivíduo ter cometido um facto

grave. Apesar disso, reconheço que devem

ter toda a razão quando dizem que pode

haver situações complicadíssimas, crianças

a precisar de apoio, educação para o

direito, mesmo que apenas tenham vindo

ao conhecimento do sistema factos menos

graves. Mas aí, eu julgo que a articulação,

o problema está na prática, na falta de

articulação entre a Lei de Protecção e a Lei

Tutelar Educativa, que está prevista, até no

próprio regime da Lei de Promoção e

Protecção, mas que, provavelmente não

acontece.

Eu acho que podem acontecer

variadíssimas situações. Pode acontecer

que estejamos perante um facto bagatelar,

mas em que se note que aquele indivíduo

precisa de uma intervenção. Mas, se

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390 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

calhar, aí devíamos ir para a Lei de

Protecção e essa funcionar devidamente.

OPJ

Era isso que gostaríamos de discutir

melhor na prática. A aplicação em concreto

desta lei, as articulações, também porque a

aplicação depende dos aplicadores, como

é óbvio. Se nós já detectámos fenómenos

de alguma dificuldade de aplicação, será

que a própria lei não deve ser mais

orientadora? E esse, como outros

aspectos, nomeadamente, o da excessiva

judicialização. Por exemplo, há

recomendações que chamam a atenção

para as polícias, o MP, uma maior

intervenção da própria DGRS. A tendência

é logo dizer que não há meios, mas nós

não estamos a falar num quadro do que

deve ser, se não há meios, vamos

reivindicá-los. Portanto, no quadro de uma

intervenção mais articulada, no sentido de

saber, de facto, se as propostas devem

seguir este caminho ou se não devemos

investir noutro tipo de respostas.

INTERVALO

OPJ

Uma das coisas sobre a qual gostava de

vos ouvir é se, do ponto de vista do quadro

normativo, é suficiente a intervenção que

está prevista. Em outras palavras, se o MP

não devia ter aqui um outro tipo de

responsabilidade e um outro tipo de acção

no sentido de procurar encontrar outras

soluções. Eu sei que muitas das medidas

são de protecção, mas mesmo assim, hoje

continua a chegar à fase jurisdicional muita

coisa que talvez pudéssemos resolver de

outra forma. Nós precisamos aqui de outras

articulações e de outras intervenções? A

DGRS, que funciona como uma instituição

que produz relatórios e que depois é ouvida

como testemunha no processo, não deveria

ter outras obrigações e outro tipo de

intervenção de forma que pudéssemos ter,

de facto, identificada a prática de

determinados actos e até atendendo a que

grande parte deles são bagatelares? Se

não deveria haver aqui uma maior relação

com a comunidade, outro tipo de

intervenção não jurisdicional. Que

articulações nós precisávamos para isso?

O MP, por exemplo, também tem limitações

do ponto de vista da própria lei no que

respeita à suspensão do processo, porque

a partir de determinado facto,

abstractamente punível com determinada

pena, já não o pode fazer. Assim, a

questão é se deve haver estes limites ou

não, atendendo a que, para além do acto

criminoso em si, há também a

personalidade e a conduta, tudo isso está

em causa.

P3

Há aqui uma questão prévia a essa sobre a

posição do MP. Aliás, são duas questões

que numa fase se interligam e noutra não.

Há uma questão que coloco, e tem a ver

com aquilo que é muitas vezes levantado e

que não chega ao tribunal. Não chegam à

intervenção tutelar educativa todos os

factos que poderiam chegar. Uma coisa

que também é muito referenciada é o facto

de, por vezes, os jovens cometerem uma

sucessão de factos menos graves, que

dependem de queixa e que ninguém

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Anexo

391

sinaliza por diversas razões já aqui

referidas, e, de repente, são apanhados a

cometer um facto ilícito já muito grave.

Assim, grande parte das vezes, eles

começaram muito mais cedo, mesmo na

prática de factos. Aqui estamos perante a

questão de saber se, nesta intervenção,

devia ou não haver referência ao sistema

penal, equiparar quanto ao direito de

queixa e à denúncia. Ou seja, se a

intervenção tutelar educativa devia estar

dependente da queixa do ofendido que é

uma questão que vai levantar-se, pese

embora haja algumas interpretações

díspares, mas são interpretações e há

acórdãos para todos os gostos, como é

normal. Ou seja, independentemente do

tipo de crime todos os factos de que

houvesse conhecimento, deveriam ser

comunicados.

O que eu defendo é que todos os factos,

independentemente do crime, deveriam

chegar e que não é preciso queixa do

ofendido para a intervenção tutelar

educativa. Há quem defenda o contrário.

Vamos lá ver: o que está, actualmente na

lei é que depende de queixa do ofendido e

que pode haver desistência. Há pessoas

que acham que não é preciso uma queixa

formal, bastando a denúncia e que, por

isso, a desistência não é relevante. Mas, a

jurisprudência mais ou menos

generalizada, vai no sentido de que a

desistência é relevante. Portanto, há esta

questão jurídica. Agora, o que eu acho é

que aí a lei devia ser alterada. Claro que

isto tem algumas consequências que é

preciso ter em atenção. E devia ser

alterada, até porque a própria legitimidade

da intervenção tutelar educativa, na minha

perspectiva, devia ser alterada.

OPJ

Mas, próxima do que está no Direito Penal?

P3

Não. Pelo contrário, afastada do que está

no Direito Penal. Porque a intervenção

tutelar educativa não devia estar

dependente de queixa do ofendido. Pelo

que, todos os factos de que houvesse

conhecimento deveriam gerar processo.

Todos os factos podiam dar origem a

intervenção tutelar educativa. Isto porque,

se há aqui uma necessidade de educação

do menor para o direito, se o Estado, se

permite ter legitimidade de intervenção…

OPJ

Mas, quando diz “todos os factos” a que se

refere?

P3

Ora, por exemplo, imaginando que há um

furto de um telemóvel. É um crime que

depende de queixa. A polícia, agora, só

remete para o MP, se a pessoa indicar que

quer procedimento tutelar educativo.

OPJ

Mas, se a pessoa nada disser e a polícia

souber que foi furtado um telemóvel, então,

na sua opinião, devia ir.

P3

Não pode, neste momento. Mas, devia ir

tudo. Qualquer notícia que houvesse.

P7

Tem de se modificar a lei.

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392 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

P3

Eu estou a sugerir a alteração neste ponto

concreto porque acho que esse é um dos

pontos que poderia ser alterado.

OPJ

Mas isso é contra, digamos assim, uma

ideia que também está a ser muito

defendida. Porque no seu caso, no fundo, o

que está a defender é a hiper-judicialização

de todos os factos.

P3

Se me deixar acabar, percebe já isso. Bem,

é a hiper-intervenção do Estado que já,

aliás, está fixada. Porque, já em relação à

Lei de Promoção e Protecção está

concebida.

Relativamente aos menores, nós temos

uma concepção, seja ela no âmbito da

legitimidade da intervenção para a

protecção, seja ela na legitimidade da

intervenção no tutelar educativo, que

conflitua com os direitos dos pais em nome

supostamente do poder do Estado para

educar as crianças ou em nome da

segurança, no tutelar educativo. Bom, eu

acho que já temos, em termos conceptuais

gerais, um sistema que já é totalitário

nesse sentido, de intervenção activa do

Estado relativamente às crianças e jovens.

Agora, eu estou a pôr esta possibilidade

porque isso poderia fazer com que fosse

detectado mais cedo esse tal início de

delinquência ou não.

Alterando isto, obviamente que vai

aumentar muito mais as participações,

acontece que isto não era participado ao

tribunal, mas sim ao MP. E o MP teria aí

um princípio de oportunidade de, perante

cada caso concreto, e até de acordo com o

percurso, a personalidade, o facto de o

miúdo já ter cometido muitos factos em que

não houve queixa do ofendido, podia ter

um papel em que instaurava ou não o

inquérito tutelar educativo. Ou então,

encaminhava a situação tomando as

necessárias providências no âmbito da

promoção e protecção.

OPJ

Porque é que não defende a intervenção

aqui, por exemplo, de um sistema de

mediação? Ou de outros sistemas de

desjudicialização que não, propriamente, o

MP?

P3

Esta intervenção do MP, na sua decisão,

claro, estou aqui a pensar e voz alta, mas

não me repugna nada que, nesta decisão

de abrir ou não o inquérito tutelar

educativo, poderia socorrer-se de um

sistema de mediação.

Nós estamos a falar numa intervenção que

é uma intervenção oficiosa do Estado e tem

de haver sempre alguma justificação para o

MP instaurar ou não instaurar. E há aqui,

também, um conjunto de garantias. Eu não

ia mandar imediatamente para mediação

se entendesse que não era preciso

qualquer tipo de intervenção.

Agora, não me repugna que haja aqui

mediação, assim como defendo que,

mesmo no âmbito de um inquérito tutelar

educativo, deve haver uma maior

intervenção da mediação.

O modo como está formulada a mediação

na actual Lei Tutelar Educativa é

extraordinariamente diminuta. Portanto, eu

acentuaria essa intervenção e a

possibilidade de recurso à mediação.

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Anexo

393

Tanto quanto sei, em Espanha, nos casos

que são sinalizados ao MP, o primeiro acto

do MP é remeter para a mediação. Ora,

nós também podemos melhorar toda a

intervenção no sentido de acentuar uma

intervenção não jurisdicionalizada.

Portanto, o primeiro passo era o MP ter a

possibilidade, muito mais alargada do que

tem agora, de arquivar ou encaminhar para

a promoção e protecção, ou abrir um

inquérito tutelar educativo. Mas, mesmo

depois de abrir um inquérito tutelar

educativo, acho que as possibilidades de

suspensão provisória do processo e do

recurso à mediação deviam ser

acentuados. Isso, depois, era uma questão

de se ver melhor, sem entrar em grandes

pormenores, quanto até ao limite da pena.

E quanto à suspensão provisória do

processo, aquilo que há pouco referiu de

ser um plano a apresentar pelo próprio,

obviamente que isso funciona hoje, porque

há uma proactividade do MP a apresentar o

plano. Eu alargaria, também, a

possibilidade de aplicação da suspensão

provisória do processo. E retirava da parte

do fundamento para arquivamento do

processo, o que hoje se encontra num

artigo que diz que quando se esteja

perante crimes com limite superior a três

anos, se o MP, embora se tenham

verificado os factos, considerar que não há

necessidade de educação para o direito, o

seu despacho tem de ir ao juiz. Eu sempre

fui contra isso. Considero que era suficiente

ficar por ali. Dava, por isso, uma maior

amplitude a estes mecanismos.

OPJ

De facto, o que nós temos aqui é o

seguinte: no seu enquadramento,

conhecida a prática de um facto qualificado

pela lei como crime por um jovem entre os

12 e os 16 anos, este facto deve ser

comunicado ao MP e depois, o MP, perante

ele e perante o jovem, tendo em conta a

personalidade e o enquadramento familiar

decide, então, o que fazer.

Bom, o que gostava de colocar aqui aos

nossos colegas de painel é o seguinte: o

que nós temos na nossa ideia é a prática

de um facto qualificado pela lei como crime,

e a seguir um processo, a abertura de um

processo judicial, que depois pode até não

ser jurisdicional, mas é judicial. Portanto, é

a intervenção do sistema judicial. Pode não

ser jurisdicionalizado, mas pelo menos

judicial é porque o MP está nos tribunais.

No fundo, o que eu pergunto é se faz

sentido que assim seja. Se não é possível

encontrarmos aqui soluções, equiparadas

ou com proximidades, ao que acontece no

tutelar educativo, no âmbito das comissões

de protecção. Isto é, sabendo que a

realidade mostra que, na grande parte das

vezes, o que está em causa são problemas

sociais e um conjunto de outros aspectos, e

que a criminalidade não é assim tão grave,

no fundo, mais do que a educação para o

direito, o que nós queremos é que as

pessoas vivam na sociedade sem grandes

comportamentos anti-sociais, sendo que

alguns são qualificados como crime.

Ora, não acham que poderíamos ter,

perante determinadas situações – e eu

percebo que possa haver aqui um

intervenção do MP, porque é o MP que

sabe dizer do crime e do interesse mas não

consegue avaliar sozinho – uma

intervenção, digamos, mais sedimentada

ou alargada, em que quase

obrigatoriamente isto tinha que entrar num

sistema parajudicial, e não

necessariamente judicial? Uma intervenção

mais alargada em que nos deixássemos do

papel e do processo.

P3

Mas essa intervenção alargada era como?

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394 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

OPJ

Com um sistema, podemos chamar-lhe de

mediação, mas em que estava o MP, ou de

uma instituição.

Os serviços de mediação, por exemplo, no

sistema inglês, têm a intervenção de

técnicos. Não é no âmbito do tutelar

educativo, não sei se funciona, mas em

geral, pode ser uma intervenção alargada

em que tínhamos um serviço parajudicial

em que então se discutia se naquele caso

concreto deveríamos avançar ou não.

Porque é evidente que isto é um paradigma

de funcionamento completamente

diferente, mas o que me faz impressão é

esta questão logo do processo. Porque na

prática, o que está a acontecer é: abre-se o

processo e é o MP que assume, aliás, a

DGRS praticamente não intervém aqui

nesta fase, só mesmo pré-sentencial ou

pela suspensão.

P3

Na intervenção para a suspensão, a DGRS

queixa-se que lhe pedem os relatórios a

meio.

OPJ

Mas, o que acontece é que é o magistrado

do MP que decide, ele próprio, sózinho, na

sua avaliação.

P1

Mas ele decide assessorado por uma

equipa. Se quiser assim, muito bem. Se

preferir sózinho, pois, isso é sempre o

velho problema das convicções.

OPJ

O problema é que é sempre assessorado

por uma equipa quando quer fazer a

suspensão, quando acha que deve fazer a

suspensão.

P1

Se calhar o que se devia fazer aqui era

começar este processo, naturalmente,

sendo o vértice de uma pirâmide, que é

uma equipa que o assessorava. Se ele

fazia só isto sozinho, pois claro que aí

aumenta a probabilidade de erro.

OPJ

Mas, o problema é esse que estou a dizer.

É sempre associado a um processo. O que

nós temos aqui é o MP a decidir que um

caso deve ir para suspensão e pede o

relatório.

Mas a questão que estou a tentar colocar é

se nós não devíamos ter aqui uma equipa

com alguma especialização em vez de

andar com relatórios para trás e para a

frente, perante o caso concreto, discutir o

que está.

P1

É obrigatório fazer uma avaliação. O MP

pode estar com a ideia que é para

suspender e pede o relatório, mas

independentemente disso, o princípio deve

ser sempre a avaliação transversal do

caso. Por uma equipa e, depois, o MP fala

de per si.

Eu vou dizer o que penso sobre isto, em

função daquilo que P3 disse. Eu considero

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Anexo

395

que uma das coisas que nos ajuda a dizer

que a justiça em Portugal está no

descrédito que está, é que o cidadão, de

uma forma geral, não tem ideia nenhuma

de que se possa fazer alguma coisa em

relação aos problemas que ocorrem com

ele e por isso, não faz queixa de nada

porque acha que nem pode fazer.

Neste caso o que está a dizer é que isto

cria no cidadão a ideia de que vai ser feita

alguma coisa, isto é, se souber que o MP

vai tomar conta da situação aumenta,

digamos, a credibilidade.

OPJ

Mas a pergunta que eu tenho para lhes

fazer é se acham que, perante bagatelas, a

intervenção deve ser sempre do sistema

judicial?

P3

Repare uma coisa. Mas isso era ir contra

tudo o que se está para aqui a dizer.

OPJ

Mas aqui está tudo em cima da mesa.

P3

Mas isto aqui já é um salto. A alternativa

era, perante a pequena criminalidade (que

tinha de ser definida qual era),

independentemente da personalidade do

jovem, e de ter 4 ou 5 furtos anteriores,

isso ia ser remetido para uma comissão de

mediação, que ia fazer o quê?

P5

Seria uma comissão de avaliação pelo que

percebi, não de mediação.

OPJ

A minha pergunta que está em cima da

mesa é esta: se consideram que perante a

existência de um facto criminoso, se toda e

qualquer prática de um crime por um jovem

entre os 12 e os 16 anos deve merecer a

intervenção do sistema judicial.

P3

Só se o MP considerar que merece uma

intervenção mais formalizada. Porque se o

MP considerar que não merece manda

arquivar ou manda para a mediação.

OPJ

Mas o MP é sistema judicial.

P7

Está a sugerir que as comissões de

protecção podem também ter funções

tutelares educativas?

OPJ

Estou a perguntar se, entre os 12 e os 16

anos, sempre que há a prática de um acto

criminoso deve haver intervenção do

sistema.

P9

Mas, assim, fica registado, não é?

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396 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

P1

E aumenta as garantias que se possam

tomar decisões, eventualmente, mais

avisadas.

P3

Mas, desculpe lá. A alternativa da não

intervenção do sistema era perante esses

factos ser um sistema não judiciário mas

oficial.

OPJ

Sim, claro. Estou a falar de sistema judicial.

P3

A intervenção ia ficar nas mãos. Em termos

teóricos não me repugnava muito. O que

eu acho é que nós não temos qualidade

para isso, já não temos qualidade para

aplicar o que temos agora.

Porque o que ia acontecer era que, ou

remetíamos esses factos para as

comissões de protecção e era a

possibilidade de alargamento da

intervenção da comissão de protecção

também nos casos em que se cometesse

crime, mas, aqui, tinha de haver sempre

uma apreciação de uma entidade que tem

de ser o MP. Porque aquilo, apesar de ser

crime, não merece intervenção do tutelar

educativo mas sim da comissão de

protecção. E tínhamos aí essa solução. Ou

então, teria que ser a criação de um novo

sistema com uma nova comissão, como

por exemplo, a DGRS, mas eu isso digo

francamente que não. Até porque uma

entidade ou era uma entidade

completamente nova, tipo os julgados de

paz em que criámos um sistema, uma

estrutura nova com uma intervenção

diferente, ou era pôr essas funções a cargo

de uma entidade que tem já outras funções

no sistema “punitivo” dos jovens, o que

seria um erro. Não tem garantias e é até

um conflito de interesses.

Portanto, a minha perspectiva é essa. Essa

ideia, teoricamente, não me repugna,

implicava alterações e meios se fosse uma

perspectiva de intervenção das comissões

de protecção, mas tinha sempre que aí

haver um juízo. E esse juízo, não vejo outra

entidade que não seja o MP a tê-lo, que era

o seguinte: se apesar de ter cometido um

ilícito, e atendendo a todos os dados,

definir que este vai para este sistema,

aquele vai para aquele sistema. Porque

para qualquer previsão de que vão para

esse sistema, nós tínhamos que ter

primeiro um critério que definisse que

situações é que vão para esse sistema.

P4

Eu tenho uma posição diferente de P3. Eu

acho que uma das grandes deficiências da

Lei Tutelar Educativa é não ter aberto

espaço à mediação. É um defeito desde o

princípio. Fiz essa crítica logo quando foi

apresentado no CEJ o primeiro relatório da

Comissão. Acho que o legislador nesse

propósito foi extremamente tímido. Eu acho

que nós aí podemos aprender imenso com

aquilo que os outros países fazem à nossa

volta e que não é nada complicado. Porque

pode haver entidades administrativas a

fazê-lo. Aliás, nós já temos no Ministério da

Justiça o Gabinete para a Resolução

Alternativa de Litígios, que pode alargar a

sua competência a, por exemplo, casos de

criminalidade bagatelar juvenil.

Eu antes de mais nada queria dizer que a

grande vantagem da Lei Tutelar Educativa

é ser um sistema sancionatório de tipo não

penal. E eu não tenho vergonha nenhuma

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Anexo

397

de usar esta expressão “um sistema

sancionatório”. Porque nós não podemos

nem devemos deixar de assumir que a

nossa diferença em relação às leis

europeias está em termos um sistema de

justiça juvenil que é sancionatório mas não

é penal. E é isso que faz a nossa diferença

relativamente, por exemplo, à Polónia.

Porque todos os países da Europa, neste

momento, têm o sistema de justiça uma

vez que praticam todos a ideia da

imputabilidade diminuída ou relativa,

diminuída em função da idade. E é por isso

que há sistemas de justiça juvenil erguidos

sobre uma ideia de imputabilidade

diminuída em função da idade. Os países

que não a têm, são os que têm o tal

sistema de protecção, que são hoje, na UE

e não na Europa, a Bélgica e a Polónia.

Mesmo assim, a Bélgica tem uma

derivação, porque quando se trata de

crimes rodoviários ou crimes

particularmente graves, admite uma ideia

de imputabilidade diminuída, porque desse

modo permite que jovens com menos de 16

anos sejam julgados nos tribunais criminais

comuns, em vez de nos tribunais de la

Jeunesse.

Ora bem, estas são as únicas extensões

que existem na UE. Nós somos diferentes

de todos porque temos um sistema

sancionatório, ele procura dentro do

sancionatório um fim, um escopo

educativo, mas não deixa de ser

sancionatório porque basta não ter

privação da liberdade para ser um sistema

sancionatório. Não devemos ter rebuço em

assumir estas noções.

A vantagem que tem é que não é

estigmatizante porque não é penal. Não

põe o carimbo do registo criminal no jovem

e por isso não contém essa carga penal.

Bom, eu concordo com isto e acho que

esta é a única grande diferença que o

sistema de justiça juvenil português tem,

neste momento, na UE. E isso não é só

reconhecido por mim. Posso citar, pelo

menos, dois autores que dizem,

assumidamente nas suas obras de direito

comparado, que a grande descoberta dos

portugueses foi, de facto, terem instituído

um sistema que é sancionatório,

responsabilizante das crianças e jovens

que praticam factos qualificados como

crime, mas que não tem consequências

penais. Ou seja, não tem os feitos

estigmatizantes e negativos normalmente

associados às reacções penais.

Dito isto, que é para tornar claro em cima

do que construo a ideia que procuro, eu

acho que sempre que um jovem pratica um

facto qualificado como crime há um conflito

com a vítima. Porque tirando os raros

crimes sem vítima, e que na realidade não

são aqueles que os jovens praticam, e

mesmo nesses é a própria sociedade que

se torna vítima, os jovens praticam sempre

crimes com vítimas. Ora, também pode

haver, digamos, equilíbrios de interesses e

resoluções de conflitos que não passem,

forçosamente nem por uma judicialização

nem por uma judiciarização. E eu faço a

distinção porque estou aqui a empregar o

conceito de judicialização relativamente a

um julgamento, ou seja, à intervenção de

um juiz, e estou a empregar a palavra

judiciarização para me referir à intervenção

de um qualquer magistrado, ou seja, do

próprio MP.

Eu acho que a montante disto, pode e deve

haver intervenção estadual que pode ser

por via administrativa, e pode e deve incluir

instâncias de mediação. Porque até crimes

particularmente graves – e eu aí escolho os

crimes a que seja aplicável pena abstracta

igual ou superior a 5 anos – até esta

moldura penal eu considero que é possível

existir, e deve existir, uma composição de

interesses entre o menor e a vítima, porque

isso é responsabilizador e educativo. E ao

fazer-se, ao ser assim, cumpre os

objectivos da lei. À lei o que interessa é

que este menor demonstre, em qualquer

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398 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

altura do campeonato, que assumiu os

valores tutelados pelo direito penal. E isso

pode acontecer a qualquer momento. Por

isso é que se valoriza tanto na Lei Tutelar

Educativa, e bem, o princípio da

actualidade, porque senão a lei seria

retributiva que é, aliás, o grande defeito de

todas as legislações europeias, são leis

retributivas. E aí, os senhores psicólogos

têm que compreender que, de facto, o

legislador português agiu muito bem,

porque quando o menor prática um facto

qualificado como crime, não está a pensar

no momento em que ele praticou o crime,

está a pensar no momento em que o julga,

e no momento em que o julga as

necessidades de educação têm de estar

presentes. Se assim não fosse, a lei estava

a retribuir um facto praticado.

O raciocínio que eu queria expender é o

seguinte: eu acho que é perfeitamente

possível até, e deve existir, antes do

processo e mesmo em qualquer altura do

processo, se ele vier a existir. Mesmo

depois na execução das medidas – e aí

não estou a inventar nada, isto passa-se

em Espanha – é possível a existência de

mediação e o fim do processo. E funciona,

aliás, está provado que funciona. Nós

devíamos avançar para tal solução e fazer

evoluir o nosso sistema nesse sentido.

Porque,– e aquilo que há bocado foi dito

aqui como um pouco de crítica porque

podemos ver nisso que a justiça não

funciona, mas apesar disso, eu acho até

que é a diversão a funcionar – muitas

vezes quando o caso chega ao

conhecimento da polícia esta faz diversão,

sempre o fez, não é uma diversão formal,

entre nós, porque não é assumida pela lei,

mas na prática, isso passa-se. E portanto,

muitas vezes, as coisas vão por esse

caminho porque não têm dignidade penal

ou então já se compuseram entretanto.

Eu, realmente, defendo que esta foi uma

grande falha da Lei Tutelar Educativa, e

compreendo-a (quem foi acusado de fazer

uma lei medieval tinha muito medo de dar

passos maiores do que a perna). E,

portanto, na altura, de facto, colocar numa

cultura que era fundamentalmente

judiciária, dar um passo no sentido de uma

desjudiciarização era algo extremamente

atrevido. Agora, acho que todo o balanço

que temos destas experiências a nível

europeu nos pode ensinar imenso. Aliás,

nós já temos, repito, dentro do MJ, uma

estrutura que pode pôr a funcionar

soluções de mediação que evitem que o

processo venha a nascer.

O que me pode ser oposto é a opinião de

que, assim, deixa nas mãos da vítima a

questão da educação ou não educação do

menor para o direito. Mas, eu considero

que não. Eu não posso levar este princípio

da educação do menor para o direito

rigidamente até às últimas consequências.

O que me interessa é a composição de

interesses e a composição de interesses

pode ser um sintoma muito positivo de

responsabilização e de assunção do menor

relativamente aos valores tutelares pela lei

penal. E se isso acontecer, então para que

é que eu quero intervir mais? Que sentido

tem?

P3

Primeiro queria rectificar uma coisa. Eu sou

a favor da mediação. Portanto, eu sou a

favor da mediação em qualquer fase. O

que está aqui em causa é esta fase anterior

que eu acho que pode ir para a mediação,

mas devia ser o MP a determinar se sim ou

não.

Agora, só queria perguntar a P4 – e aí

estamos em desacordo – se o caminho é:

entra uma queixa na polícia, a vítima vai lá

e indica se quer procedimento ou não, e se

fosse um crime até àquela moldura penal,

independentemente de haver muitas ou

poucas queixas, ia para a mediação. E

ficava por ali. É isso?

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Anexo

399

P4

Sim, se entretanto, evidentemente, como

acontece em relação a outros processos de

mediação, não chegar a existir

composição, então, o processo terá que

seguir.

P3

Mas a determinação se vai para a

mediação é um processo automático,

porque, no penal, actualmente, quem

determina se vai para a mediação é o MP.

Portanto, a sua ideia é: entra na polícia, vai

para a mediação e esta resulta ou não, e

depois dependerá.

P4

Ou então a vítima não quer mediação

nenhuma e quer o processo.

P2

Por um lado, P4 referiu, por exemplo, que a

mediação seria possível porque grande

parte dos crimes que os menores praticam

têm vítima. Não sei se será bem assim. Há

muitos crimes que eles praticam, como a

desobediência, a condução sem carta,

embriaguez, que até são muito frequentes,

e em que não há vítima. A mediação, aqui,

não seria possível porque sai totalmente

fora do espírito da mediação.

Por outro lado, a maior parte das questões

que se colocam, designadamente a

desistência de queixa e outra, que também

acho muito importante e que foi decidida

num acórdão de fixação de jurisprudência

sobre o desconto dos dias de internamento,

têm a ver com o principal problema, na

minha opinião, deste sistema que é tentar

conciliar duas coisas que são quase

inconciliáveis. E arranjam, então, um

terceiro género, e nisso somos únicos.

Assim, por um lado, é a necessidade que a

sociedade tem de uma lei que diga que

está a defender-se, que está a defender a

sociedade. Por outro lado, a defesa do

menor. E às vezes isso na prática torna as

coisas muito difíceis de conciliar.

Por um lado, foi-se aplicar o processo

penal à Lei Tutelar Educativa porque se

entende que o menor tem direitos e,

designadamente, pode ter advogado, etc..

Mas, por outro lado, muitas vezes quando

nos perguntamos o que fazer nestes casos,

estamos a pensar o que fazer para o

proteger. E isto na prática, às vezes, é

muito difícil.

O conceito de educação do menor para o

direito é onde assenta a Lei Tutelar

Educativa. O direito penal assenta no

conceito da culpa e a imputabilidade

também.

Eu, em rigor, acho que os menores entre

os 12 e os 16 têm culpa, são susceptíveis

de culpa, podem ser passíveis de censura

porque sabem o que fazem e o que não

fazem.

P3

É verdade que sabem o que fazem, mas

isso é diferente da culpa.

P2

Sim, mas podem ser susceptíveis de

censura. Podem ser responsabilizados

penalmente. Eu acho que não pode ser por

aí que não se deva utilizar o direito penal. A

maior parte dos sistemas europeus, pelo

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400 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

que sei, têm direitos penais mas são

direitos penais especiais.

A mim, o que me repugna é o abaixamento

do limiar da imputabilidade, ou seja, aplicar

o direito penal comum aos menores é que

considero ser absolutamente repugnante.

Agora, um direito penal especial, onde haja

tribunais próprios, juízes, funcionários,

magistrados e regras específicas já não me

repugna tanto.

A vantagem que isto tem é, até por vezes

na definição e clareza dos conceitos,

porque a necessidade de educação do

menor para o direito substitui, no fundo, a

culpa, dado que aparece como pressuposto

da aplicação da pena.

OPJ

Mas, a questão é saber se é o magistrado

do MP, individualmente, e ainda que peça

uns relatórios, que está em melhores

condições de aferir perante um facto

qualquer e um menor, porque quando

arquiva também faz um juízo e diz que não

tem especial necessidade da educação

para o direito e isso podia-nos levar a saber

que, se calhar, até tinha essa necessidade.

P2

Isto tem a ver com o papel que o MP e com

os tais interesses que são, por vezes,

difíceis de conciliar. Se o papel do MP aí

for o de ver o que é melhor para o menor e

se for, também, a defesa da sociedade, são

dois papéis muito difíceis de conciliar, na

minha opinião, de acordo com esse

sistema.

OPJ

Mas, o problema é que neste sistema é ao

MP que exigimos essa definição. Na sua

opinião devíamos mudar este procedimento

ou é assim que está bem? Ou seja, perante

o conhecimento da prática de um acto

criminoso, há lugar à abertura de um

processo judicial, que corre no MP

primeiro. Depois, a partir daí, depende do

magistrado do MP a decisão de suspender,

pedir relatórios. E é certo que, com limites,

(já veremos se deveria ser mais alargado),

mas, dentro dos limites, a questão que

estávamos a discutir é se antes da abertura

do processo no tribunal, todo e qualquer

facto qualificado pela lei como crime deve

seguir esta via ou não.

P2

Mesmo sem atender a estas questões

meramente pragmáticas, se o MP, agora,

investigasse todos os crimes semipúblicos

como públicos, que no fundo é o que está a

fazer, o sistema rebentava em termos

penais.

OPJ

Por exemplo, uma das questões que estão

aqui a ser discutidas é saber o seguinte:

estou a ler recomendações de estudos,

etc.. “(…) Até que ponto, de preferência,

sempre que possível pela solução de

conflitos, por vias como a mediação ou

outras de carácter restaurativo, retardando

a actuação dos sistemas de controlo formal

e sobretudo as respostas de carácter

sancionatório ou punitivo”. Obviamente, há

aqui uma gradação. Reparem quando se

diz “retardando as respostas dos sistemas

de controlo formal”, isto é, quando o MP

actua no âmbito de um sistema judicial, há

aqui o controlo formal. É disso que estamos

a falar.

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Anexo

401

Portanto, há recomendações claras no

sentido de que, mesmo perante a situação

da prática de um facto qualificado pela lei

como crime se deve retardar a resposta do

controlo formal que obedece a regras,

procedimentos, obedece a um conjunto de

princípios que, obviamente, os sistemas

não formais não têm. Se virmos, por

exemplo, a tramitação dos processos nos

tribunais é diferente da dos julgados de

paz.

Há de facto recomendações e, obviamente,

dentro do controlo formal ainda há aqui

outro tipo de gradação que será evitar

sempre que possível medidas de cariz

sancionatório ou punitivo e depois as de

internamento e por aí fora.

P2

Os problemas dos menores têm que ser

resolvidos. Não sei se a melhor forma seria

o MP nesses casos. Estou convencido que

talvez não fosse.

P3

O sistema de mediação que está a ser

utilizado relativamente às outras

mediações, seja a penal, seja a familiar, no

âmbito do Gabinete de Resolução

Alternativa de Litígios, também não.

OPJ

Não usemos a palavra mediação. Porque

senão vamos logo falar em mediação do

sistema de resolução alternativa de

conflitos. Vamos falar em outras soluções.

P8

A questão da queixa é pertinente porque,

provavelmente, haverá muitos casos que

não chegam a ser conhecidos porque a

vítima não apresenta queixa e pode haver

variadíssimas razões para não apresentar

queixa: os tais receios, achar que não vale

a pena, e mesmo as discriminações

sociais, porque, por exemplo, o filho de pai

rico paga e acabou, e nem chega a entrar

no sistema, e a criança que não tem pais

que possam pagar, essa é que entra no

sistema.

Eu simpatizo com essa ideia de não ser

preciso queixa porque pode haver

necessidades de educação para o direito e

não haver queixa. Haver crime, não haver

queixa e haver necessidade de educação

para o direito, até por causa dessa

discriminação, dessa disparidade, etc..

Agora, a questão da mediação. À partida,

também simpatizo com a mediação, só que

eu acho que as coisas podem colidir, de

facto. É certo que isto também depende do

que é que entendemos por mediação e

como é que isto seria posto em prática,

penso eu. Isto, porque pode haver

necessidades de educação para o direito e

pode dar-se o caso – como a mediação

tem aquele sentido muito reparador – de o

menor pagar e reparar, sendo uma forma

de a situação ficar resolvida, mas a

necessidade de educação para o direito

mantém-se.

OPJ

Vamos usar uma solução que não seja

uma solução logo direccionada para as

instâncias de controlo.

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402 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

P8

Mas a questão que eu coloco, que tem a

ver com a ideia de reparação, da vítima se

sentir compensada.

OPJ

Deixe-me só introduzir aqui um dado.

Imaginemos que podíamos passar para

uma solução, com uma articulação com a

promoção e protecção em que nós, apesar

da existência de um facto qualificado pela

lei como crime, a própria vítima estaria de

acordo numa solução independentemente

da existência de reparação, se entendesse

que aquele caso precisava de uma medida

de promoção e protecção. Porque, por

exemplo, não sei se é educação para o

direito, mas pelo menos para as regras em

sociedade, precisava de uma medida de

acompanhamento.

P8

A questão – por isso é que coloquei aqui o

meu dilema, digamos assim – é o que

vamos fazer com a mediação. Que

medidas concretas vão ser propostas. Ou

melhor, formas de não entrar no sistema

formal e de controlo.

Por exemplo, estou a pensar nas escolas.

Falou-se, há pouco, muito sobre as

escolas, pequenos crimes praticados por

menores, etc.. Será que é realmente

necessário entrar no sistema? Não deveria

haver um gabinete preparado para lidar

com as situações das escolas, onde

estivesse um psicólogo, um jurista, entre

outros. Agora, nunca só na perspectiva –

embora as palavras às vezes, gerem

equívocos – de reparar a vítima. Eu acho

que não pode ser só a vítima directa do

crime a ficar satisfeita com a solução. Tem

que ser algo diferente. Tem que ser a

sociedade, enquanto vítima mais ou menos

directa ou indirecta daquele facto, e tem

que ser ajudar o menor. E eu até considero

que a expressão “educação do menor para

o direito” é educação para os valores

fundamentais da comunidade, para se

comportar sem ferir esses valores. E,

nesse aspecto, até me satisfaz a expressão

“educação para o direito”.

Eu estou-me a lembrar, por exemplo, na

Holanda, em que há uns gabinetes

(sistema HALT) e que julgo que funcionam

bem, porque intervêm muito precocemente,

com pequenos crimes.

P4

É uma solução administrativa.

OPJ

É disso que estamos a falar. Por exemplo,

uma das recomendações é “generalização

das vias de diversão em todos os níveis de

intervenção, em particular se combinadas

com a aplicação de mecanismos ou

sistemas de reparação ou conciliação com

a vítima ou com a comunidade”.

P4

Para os casos dos crimes sem vítima.

OPJ

Repare, estamos a falar da pequena

criminalidade em ambiente escolar, o

vandalismo.

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Anexo

403

P8

Muitas vezes, não tem nada a ver com a

reparação económica. Mas sim, o ir pintar

as paredes que estão danificadas, reparar

os bancos de jardim, etc.. Aí, eu acho bem.

OPJ

Mas o que está em cima da mesa e

esqueçamos a palavra mediação porque

senão voltamos logo aos quadros da

mediação. Falamos, então, de sistema de

controlo, ou não, sistema imediato.

Portanto, saber se devemos logo fazer

intervir os sistemas de controlo – o MP, o

tribunal e por aí fora – ou se devemos

encontrar aqui outras vias, outras soluções

que não levem logo a intervir o processo

como hoje aqui temos.

P4

Ou seja, do ponto de vista doutrinário,

aquilo que se denomina de introdução de

medidas de diversão.

OPJ

Não sei se querem questionar mais alguma

coisa só sobre este ponto.

P8

Não. Sobre este ponto, realmente a minha

dúvida era sobre o tipo de reparação da

comunidade e da vítima. Porque senão

estávamos a tentar resolver um problema e

ele entrava por outro lado.

OPJ

Sobre esta questão eu gostava realmente

de continuar a rodar a mesa.

P5

Esta questão, numa certa dimensão,

parece-me mais facilmente respondível por

pessoas da área do direito. Confesso que,

em parte, tenho alguma dificuldade em

responder a isto. Parece-me que esta

introdução de medidas de diversão tem

potencial e pode recorrer facilmente, como

aliás já faz muitas vezes, não na diversão

inicial mas depois no reencaminhamento

dos casos, por exemplo miúdos que têm

determinadas medidas de trabalho

comunitário, etc., recorrer a esses mesmos

serviços, sem necessidade de

sobrecarregar o sistema com a criação de

muitos serviços novos, embora às vezes

fosse preciso, por exemplo nas escolas há

muito espaço para isto.

A mim, parece-me uma boa ideia, mas

volto a frisar, estou a referi-lo do ponto de

vista da intervenção social.

P7

Ora bem, eu não tenho nada contra as

medidas de diversão, mas se o MP

estivesse assessorado com serviços de

mediação, e se houvesse um alargamento

das competências do MP em matéria de

arquivamento do inquérito, de suspensão

do processo etc., a mediação no âmbito do

MP também poderia contribuir para que,

realmente, o MP fizesse a triagem e muitos

casos não entrassem na fase jurisdicional.

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404 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

OPJ

Ora bem, não estamos na fase judicial,

estamos no MP, há as polícias que darão o

conhecimento ao MP das queixas que lhe

forem apresentadas, ou se há um facto

conhecido, etc., e se o MP tivesse uma

assessoria, mesmo que não precisasse do

relatório, se fosse assessorado por mais

pessoas, e pudéssemos ajuizar disto no

âmbito do MP, daria para resolver a

questão por aí.

O que eu pergunto é se, uma vez o caso no

sistema de controlo, no tribunal, no sistema

judicial, se havia essa abertura suficiente

para, de alguma maneira, termos logo aqui

uma cultura de processo excessiva, isto é,

no momento, do ponto de vista cultural e da

formação do próprio MP, se temos

condições para implementarmos um

sistema desses em que o magistrado do

MP tivesse em conta as posições dos

psicólogos, dos sociólogos, no fundo, a

tomarem-se medidas não com esta cultura

de processo que temos hoje, mas antes de

discussão de equipa.

P7

Na minha opinião, acho que sim. Agora,

voltamos à questão dos meios. Eu sei que

os meios podem ser atribuídos, mas quero

dizer, aí o MP teria que estar assessorado.

OPJ

Mas acha viável avançar para uma solução

destas, neste momento?

P3

Eu acho viável, tanto quanto acho viável a

anterior, que é a existência de serviços que

correspondam. Porque nós podemos ter

aqui, e era o que eu estava a defender – e

sei que em Espanha é assim – serviços

mas não dentro dos tribunais. Aliás sou

contra serviços dentro dos tribunais.

Mas tudo depende como é que a lei vai

ficar escrita. Porque se a lei disser: 1ª

hipótese: recebida uma participação, não

abro inquérito tutelar educativo, abro um

procedimento próprio que teria de ser

desenvolvido, remete para os serviços x.

Mas eu defendo uma coisa ligeiramente

diferente e, se estiver assim na lei, até

estou a ver os meus colegas todos

contentes. Porque é sempre a primeira

coisa que faz, pedir o relatório, e não devia

fazer, porque a lei não diz isso. Um

inquérito tutelar educativo, é uma grande

diferença relativamente ao penal, a

primeira coisa a fazer é ouvir o menor. Mas

vai ver que na grande parte dos casos, a

primeira coisa que o MP faz é pedir o

relatório à DGRS, seja o que for. Isto para

dizer que essa cultura, obviamente que não

seria por bons motivos, era porque a lei o

impunha, mas pode e deve criar-se.

Eu sentia uma coisa diferente mas isso

podia burocratizar e tem a ver com a tal

concepção que eu tenho do papel do MP

em toda esta jurisdição. Não é só o seu

papel no âmbito do tutelar educativo, é o

seu papel na família e menores, na

promoção e protecção, de quais são os

interesses. Então eu aí punha esta

comunicação, quer dizer, não era

obrigatório remeter imediatamente para os

tais serviços, remeteria aqueles casos que

considerasse adequado face aos

interesses tanto de promoção e protecção,

como os interesses do tutelar educativo.

Eu tinha esta nuance, mas claro que isso

tem de se decidir. A questão é se

queremos remeter o MP para um

paradigma de uma intervenção meramente

rígida.

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Anexo

405

P7

O MP faz muitas vezes mediação.

P3

Não faz mediação, tem atitudes

mediadoras.

Repare uma coisa, eu acho que haverá

casos em que nem sequer é preciso ir para

os tais serviços, em que se ouvirmos ali o

menor, o processo acaba, morre por ali.

P4

É o que se passa na polícia em certos

países.

P7

Se o auto vier bem elaborado pelas polícias

traz também já um relatório sobre o

enquadramento familiar, etc..

P3

Há casos em que é ouvir apenas. Nem

sequer exigiam a intervenção de um

sistema mais formal.

Agora, de qualquer maneira, e mais uma

vez manifesto essa preocupação, que é a

de que quaisquer serviços desse género

têm que ser bem pensados do ponto de

vista técnico, dar resposta atempada e têm

que ter alguns limites de intervenção por

questões de direitos fundamentais que

estão em causa e da gravidade dos factos.

O modo como foram estruturados os

serviços de mediação, no âmbito das

respostas à mediação familiar e penal, na

minha opinião pessoal obviamente

discutível, não funcionam e a qualidade da

própria mediação é altamente posta em

causa porque há uma lista de mediadores

que intervêm caso a caso.

P9

Sou sensível à proposta de P3 mas vejam

porque aqui pode haver algum

desconhecimento da minha parte. Pelo

conhecimento que tenho das Comissões de

Protecção de Crianças e Jovens, falha

imenso num serviço desse tipo. Portanto,

se a proposta é criar-se um outro serviço

como alternativa aos factos chegarem ao

MP, eu temo que vamos fazer mais uma

coisa que vai causar entropia no sistema,

porque não vai responder em tempo útil,

não vai ter meios nem recursos para dar

respostas adequadas. Também podia

entrar a DGRS, mas o MP ainda pode ser

assessorado por técnicos mais qualificados

e que possam fazer informações

tecnicamente mais fundamentadas de

necessidade ou não necessidade.

Depois, pergunto uma coisa, mesmo por

ignorância: na sua proposta de não

depender a participação do MP da queixa

da vítima, começaríamos a ficar – sem lhe

chamar cadastro – mas ficaríamos, de

facto, com o registo. Portanto, se nos

aparecer um miúdo com uma quarta ou

uma quinta queixa, pode-se decidir da

abertura ou não de um processo a partir

das queixas acumuladas, ou não?

P3

Não. O que pode, com certeza, é dar-nos

uma ideia do processo actual que estamos

a ver, do seu historial e da sua

necessidade de educação para o direito.

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406 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

P9

Informa melhor a posteriori de haver outros

factos, mesmo que sejam menos

relevantes.

P3

E podem-se juntar todos, se tiverem tempo,

se não estiverem prescritos, etc..

P9

Na minha opinião isto é um benefício. Já

estamos à espera de um facto com uma

determinada gravidade, e precisamos disso

para abrir um processo, mas se tivermos

esta outra informação, eu acho que era

preferível.

P3

A minha proposta inicial tem várias

vertentes. Uma delas é uma questão de

concepção de sistema, que é uma

intervenção em que se considera que a

participação do ofendido ou não, em si

mesmo, é que delimita a intervenção do

Estado. É a assunção pela comunidade

sobre se aquele menor deve ou não ser

sujeito a sistemas mais formais. Portanto, é

uma questão de sistema que, também tem

alguma importância. E aquilo que eu

defendi, por um lado, é uma visão

discutível, sobre o ponto de vista da

concepção, de uma intervenção mais

estatizante, chamemos-lhe assim,

relativamente a questões de menores. E,

por outro lado, tem uma consequência

prática que é o boom de processos, ou seja

a capacidade de o MP responder de uma

maneira eficaz a este tipo.

Portanto, tem uma questão conceptual e

uma questão pragmática.

P1

Toda a gente sabe que um dos aspectos

mais eficazes para a modificação de um

comportamento é a contingência em

relação ao comportamento que se quer

modificar. E eu vejo essa proposta,

independentemente do lado para onde se

possa tomar, mas a ideia que o sistema

português, em termos gerais, ande sempre

a fazer pouco das vítimas e a proteger os

presumíveis agressores.

Eu tenho sempre defendido que, em

determinadas situações, e sobretudo no

caso dos menores, é preferível actuar por

excesso do que por defeito, porque quando

se actua por defeito, depois quando se

quer actuar verdadeiramente, já não se

consegue, de facto, fazer nada.

Portanto, eu diria que o facto de se tomar

logo em atenção uma queixa, esse jovem

ser chamado, ser logo confrontado com

isso, eventualmente pode até ser na polícia

e o processo seguir, muito próximo do

momento em que o facto ocorreu, tem de

certeza um impacto significativo na

modificação do comportamento. Outra

coisa é decidir que vai para ali para ser

ouvido, mas aí vem a questão de quando

será ouvido, e daí por um mês já não tem

impacto nenhum.

Portanto, digamos que agrada-me essa

perspectiva e que seja sentida pelo menor,

independentemente do contexto onde é

ouvido, como consequência daquilo que

fez. E há outro princípio também muito

importante, que é the first cut is the

deepest. Isto é, a primeira pancada pode

ser a mais eficaz e a que causa mais

impacto e, muitas das vezes, nós fazemos

isto.

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Anexo

407

OPJ

Mas assim é o sistema que nós já temos.

Como é que se explica que o sistema falhe

tanto? Porque, aparentemente, para quem

por lá passa não tem tido resultado.

P9

Porque não é só o princípio da

contingência. É que também há outros

princípios como é o da frequência, se quer

punir um comportamento, não pode deixar

que só à centésima ocorrência é que ele

seja punido e porque teve 99 vezes em que

não aconteceu nada…

OPJ

Sim, mas então o que defendem é que

perante um facto criminoso a acção seja

tão imediata quanto possível. Mas que

acção é essa?

P1

Eu disse no início que me parecia com

probabilidade a dar frutos maiores se isto

for controlado pelo MP, porque este tem o

poder de modificar mais as coisas, a não

ser que este poder seja dado às tais

entidades de diversão. Mas era preciso ver

como é que funcionaria. Não é uma coisa

que me repugne à partida.

Agora, essas entidades de diversão não

podem representar uma coisa em que o

menor chega lá e cede, porque aí não tem

eficácia nenhuma. E aí, é evidente que ser

ouvido por um magistrado, pelo MP, a

coisa muda, de facto, de figura. É mais

nesse sentido de eficácia que estou a

defender. Agora, é evidente que aqui temos

um problema, são os mesmos, depois, a

fazer mais coisas. A questão é se há meios

ou não há.

P9

Mas isso permitia uma série de coisas, que

é, provavelmente, o mesmo magistrado

ouvir várias vezes o mesmo menor. Há

aqui também um efeito. Mesmo que não

seja uma punição, nem é uma decisão nem

é um processo, só o facto de ele saber que

vai ser ouvido por causa de um

comportamento que teve, já tem efeito.

Muitas vezes o que acontece é que há uma

sensação grande de impunidade, mesmo

ao nível dos centros educativos. Aqui é que

eu acho que é educar, não para o direito,

mas é educar para dizer que há uma

consequência para as coisas. A melhor

maneira é mesmo mostrar que há uma

consequência.

P1

A falha destes indivíduos é falta de

pensamento num sentido alternativo, ou

seja, ver outras soluções. Porque, por

exemplo, o problema típico de um

delinquente é resolver os problemas

através da agressão.

Assim, o que deve ser feito é ensinar-lhes

pensamento alternativo, outras soluções, e

depois pensamento consequente. Eles não

têm pensamento consequente, na maior

parte dos casos. Eles fazem uma coisa e

dizem “a consequência vai ser o quê?

Nada!”. O pensamento é: “Vou-me safar”.

Mas também, se forem apanhados já se

lembram como é que foi da outra vez, ou

do outro colega e saem “na maior”.

Portanto, essa ideia de não se projectar no

futuro, no sentido de uma eficácia da

sanção, é evidente que ajuda à

impunidade.

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408 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

P4

Mas isso também funciona para a entidade.

Eu, por exemplo, que conheço bem o

programa HALT, acho que o mesmo é

exemplar a esse respeito e funciona muito

bem. O jovem é sempre chamado com a

família e quando entra na entidade, na

autoridade administrativa, muito claramente

são-lhe apontados os objectivos e não lhe

é perguntado como quer. O sistema está

montado daquela maneira e ele vai fazer

isto e aquilo. Tem o seu fato-macaco, as

suas ferramentas, etc.. Está tudo

preparado para dar resposta a determinado

tipo de delinquência.

Isso era outra coisa que eu gostaria que

viéssemos a ter oportunidade de falar, e

que é outro insucesso da Lei Tutelar

Educativa, porque ela não foi cumprida

nem foi aplicada num sentido da

especialização da intervenção em função

do tipo de delinquência. Nós praticamos,

ainda hoje, na aplicação da Lei Tutelar

Educativa, utilizando a expressão dos

jovens “tudo ao molho e fé em Deus”.

Portanto, trata-se da mesma maneira o

agressor sexual e o indivíduo que rouba

carteiras.

OPJ

Depois faríamos um última ronda,

sobretudo, sobre a forma como está

aplicada nas medidas, essa intervenção da

DGRS, onde é que devíamos ter outro tipo

de intervenção, onde e como é que

podemos articular melhor, ou se é que

devemos, esta intervenção da DGRS e de

outras instituições. No fundo, como fazer

aqui funcionar redes.

P6

Eu penso que, daquilo que ouvi, nós temos

de atender a quais são os interesses dos

jovens, quais são as suas necessidades e

qual é a possibilidade de nós actuarmos da

forma mais cedo possível.

A educação para o direito é evidente, não

sei se não deveria ser explicitada, que é a

ofensa, aqueles valores que a sociedade

democrática escolhe para uma vida justa e

progressiva e, portanto, é a ofensa a

valores fundamentais. Numa sociedade

democrática a penalização é a ultima ratio.

Portanto, a educação é para estes valores.

Nem são valores de civilidade. A civilidade

é outra coisa. São valores tão importantes

cuja ofensa constitui crime, que é a última

reacção que a sociedade tem.

Logo, parece-me que é de toda a vantagem

para os jovens que seja assinalado isso, ou

seja, que quando ele os ofende haja uma

possibilidade pedagógica, não

estigmatizante, para ele saber que fez mal.

E ele sabe que fez mal, o que me parece é

que não tem culpa penal. Tem, por isso,

vantagem que lhe seja sinalizado o facto. E

depois que seja avaliado se, realmente, foi

um acto de procedimento, se foi um acto

ocasional, para ver qual o significado, no

fundo.

P6

Mas como ele tem que viver uma vida em

sociedade deve ser-lhe assinalado esse

facto e depois ser avaliado desde logo.

Mas de facto, no tribunal de menores tive

algumas situações em que iam lá menores,

porque furtavam fruta e aquilo para eles

não era nada.

Portanto, deve ser-lhes assinalado esse

facto e depois, ser avaliado, porque uma

das coisas que se disse aqui é

extremamente importante: isto tem de ser

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Anexo

409

com a maior rapidez possível. É que por

vezes, passado determinado lapso de

tempo, dependendo, também, da idade

dele, já nem se identifica com o acto, o acto

já não tem qualquer relevância, porque

entretanto cresceu mas, enfim, cada caso é

um caso.

Há, pois, necessidade daquelas

sinalizações de forma educativa e não

estigmatizante.

Eu não sou nada contra a diversão. Sou

partidário da diversão. Mas não sei se aqui,

na nossa cultura e no nosso sistema será,

neste momento a coisa mais adequada, se

estaremos preparados para a

tempestividade da intervenção.

OPJ

E uma maior abertura dentro do MP?

P6

Isso parece-me que sim, portanto, neste

momento, eu acho que sim que a diversão

é uma solução boa, até porque numa

sociedade complexa há necessidade de

procurarmos soluções diversas, sobretudo

com a heterogeneidade que quem está

junto do terreno, em princípio, terá mais

facilidade de compreender isso. Mas é

preciso que seja bem e sejam garantidos

os direitos. Portanto, tem que ser algo

pensado, devidamente, com obrigação

determinada na lei. Se for possível isso,

não vejo nenhum inconveniente, mas não

sei se será possível neste momento da

nossa evolução.

Por outro lado, tem de haver sempre uma

fiscalização, digamos, do MP. Agora,

quanto a mim, teoricamente, isso agrada-

me mais.

Quanto à questão da vítima, é evidente que

a vítima tem de ser considerada. Agora,

não se pode condicionar o interesse da

criança ao interesse da vítima. O problema

é este. Porque o interesse da criança é

superior ao interesse da vítima, neste

momento, com todo o respeito pela vítima,

claro. Neste caso, ele não é um adulto, é

alguém que está em formação. E, portanto,

o próprio interesse da vítima pode ser

prejudicado se for necessário ao interesse

superior da criança. Portanto, essa

reparação, essa construção com a vítima

tem de ser feita com muita autenticidade e

sem, digamos, a ditadura da vítima.

Neste momento actual, parece-me que não

deveria depender de queixa, todos os

casos deveriam ser considerados de uma

forma ou de outra, numa fase de diversão

ou pelo MP. Mas, para isto correr bem tem

de haver uma cultura diferente, de todos

nós, uma formação diferente e além disso,

meios diferentes. Portanto, não faz sentido

que os tribunais de família e menores

tenham milhares de processos com meia

dúzia de magistrados. Uma das coisas

importantes é a criança ter direito a um

magistrado. Se formos para a solução da

não diversão, tem direito ao magistrado, ao

juiz, ao MP. Portanto, não faz sentido que

vá alguém apreciar a sua conduta e nem

fale com ele. Eu considero que tem de o

ouvir. A não ser que seja uma coisa

completamente anódina.

O magistrado do MP, bem preparado, ao

ouvir o menor, e uma vez que vem ele e os

pais, pode ali avaliar, desde logo, não vai

pedir logo relatório, vai ouvir e vai perceber.

OPJ

E precisamos do relatório? Será que

podemos evoluir para um sistema onde o

que fica escrito é o mínimo e em que há

uma avaliação, uma conversa de outro

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410 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

tipo? Ou precisamos, de facto, desse

relatório.

P1

Eu acho que é muito pouco seguro

estarmos só baseados naquilo que se diz.

Eu baseio-me na experiência das prisões

em que, se não estiver tudo por escrito,

não funciona.

OPJ

É que, de facto, é o problema da escrita, do

peso do relatório.

P1

Sim, mas repare, há relatórios e relatórios.

O que acontece é que há pessoas que

escrevem 10 páginas e só se aproveita um

parágrafo. O que provavelmente seria

preciso, era uma cultura de como redigir

bem os relatórios. Mas isso é uma outra

questão. Já agora, gostava de deixar aqui

uma outra dica, em função do que P6

disse. Não se justifica que cada vez mais

não haja só magistrados especializados. E

isto para evitar que um magistrado esteja,

por exemplo, 3 anos no tribunal de família,

onde até era um bom magistrado, e ao fim

desse tempo seja corrido para outro. Isso,

por exemplo, aumenta extraordinariamente,

julgo eu, a eficácia dos processos.

Lá está o exemplo dos espanhóis que,

neste âmbito, criaram os julgados para as

questões da violência doméstica. Pode até

aquilo ter alguns defeitos, mas eu acredito

que em termos de eficácia do processo, as

coisas funcionam muito melhor. Está ali

tudo concentrado, e as pessoas não andam

a divergir, nem os próprios magistrados.

P4

Mas ainda em relação ao que P6 disse, só

para lembrar, esta questão de introdução

de métodos de diversão não foi só

pensada, historicamente, em defesa dos

interesses do menor, está, também, muito

ligada a uma ideia de economia judiciária.

Ou seja, reservar os tribunais para os

casos realmente dignos da intervenção dos

tribunais. Aqueles em que a sociedade não

foi capaz de resolver os seus conflitos.

P6

Eu acho isso óptimo. Mas agora, neste

momento, parece-me que e, sem prejuízo

de se estudar isso, esta ideia do MP com

essa possibilidade de que falámos não é

viável, porque isto exige tempo e recursos.

P4

Poderíamos começar por pequenos

passos, ou seja, tal como se fez em relação

à reforma de organização judiciária, criar

experiências-piloto, “não dar passos

maiores do que a perna”.

OPJ

A questão é que nós, de facto, no sistema

para adultos, e eu chamo, por exemplo a

atenção para o caso da violência

doméstica, estamos a tentar criar

experiências e a considerar que só a

resposta penal, do sistema punitivo, não é

suficiente e não funciona se não tiver

associada outro tipo de resposta.

Enfim, também gostava de os ouvir em

relação, por um lado, se nós não devíamos

introduzir aqui mecanismos de

responsabilização mais forte das famílias.

Porque este enfoque apenas na criança de

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Anexo

411

12 anos e até antes, será que não estamos

a ser demasiado brandos com as famílias?

P6

Neste aspecto, temos cada vez mais, que

utilizar o sistema todo.

OPJ

E das respostas das medidas que temos

como é que vamos integrar mais, como é

que vamos flexibilizar e integrar a

protecção, a comunidade, a escola? Por

exemplo, como é que podemos dar

resposta à violência em meio escolar sem

integramos activamente a escola? Senão,

andamos a gastar dinheiro para nada, sem

consequências, sem responsabilizar a

família, ou seja, sem que a família sinta, ela

própria, que também ganha ou perde com

isto.

P7

Neste caso, aliás, muito mediático do

jovem que leva uma pistola para a escola

e, ocasionalmente, faz um disparo e atinge

um colega, eu pergunto: “como é que a

família, noutro processo, não é

responsabilizada?” Como é que o jovem

tem acesso a uma pistola, sabemos que a

retirou ao pai, mas a questão é onde é que

o pai a tinha deixado para que o jovem a

conseguisse retirar tão facilmente? Isto tem

de ser apurado. E já não falo em

responsabilidade civil, porque a culpa in

vigilando não é nada, falo de

responsabilidade criminal.

Há um tempo atrás aconteceu isso e já tem

acontecido, mais vezes do que seria

desejável, casos de jovens que têm acesso

a armas de fogo, que disparam e atingem

pessoas e depois, fica por ali, nem se fala

disso. Se fosse de outro modo falava-se. O

pai foi responsabilizado e chamado a

julgamento.

OPJ

Mas acham que é preciso alterar a lei, ou

se é um problema de prática? O que é que

nos falha? As normas que temos agora

permitem-nos essa responsabilização?

P7

Neste caso sim.

OPJ

No caso das armas. E se não for armas? E

se for, por exemplo, uma medida de

acompanhamento educativo, em que os

pais têm de zelar no sentido de que a

criança tem de, obrigatoriamente, ir à

escola? Tem aqui um conjunto de

injunções mas em que eles próprios se

demitem dessa responsabilidade, de o

levar, de o obrigar a frequentar, ou seja,

fazer um esforço nesse sentido.

P1

Aquilo que a investigação demonstra é que

a intervenção com menores que melhor

funciona é uma intervenção multi-sistémica,

com todos os subsistemas que lhe dizem

respeito. Um subsistema é o menor, outro é

a família, outro é a escola, outro é o grupo

de pares mas, é evidente, que isto é uma

intervenção cara.

Já agora, só “puxando a brasa à minha

sardinha”, tenho alguns casos que me são

enviados pelo tribunal para intervir com

menores. E o tribunal pede até que eu

estabeleça um plano de intervenção. Nessa

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412 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

intervenção, eu nunca prescindo, no caso

de menores não institucionalizados – no

caso de menores institucionalizados pode

ser um pouco diferente – de intervir com os

pais, pelo menos com os pais, a educação

parental.

Pelo que, eu acho que, aqui, quando o

tribunal ordena uma intervenção, cabe, de

facto, à equipa técnica dizer e definir o tipo

de intervenção que vai ser feita, os

aspectos e as pessoas envolvidas. É

evidente que se os pais não aparecerem lá,

eu escrevo ao tribunal um fax informando

que a intervenção está completamente

posta em causa porque os pais não

colaboram e, portanto, há que actuar.

Agora, só para vos indicar uma brincadeira:

conheço uma pessoa que está a trabalhar

numa escola terrível, com miúdos terríveis.

Um dos miúdos não ia às aulas e o que

esta senhora fez, foi chamar a assistente

social que trabalha junto da escola e que

teve uma acção altamente eficaz. Foi a

casa do menor e disse ao pai: “senhor, se o

seu filho não vier mais à escola, corto-lhe o

rendimento social de inserção”. O homem

disse duas ou três coisas e no dia seguinte

o miúdo estava na escola. Isto é actuar no

subsistema familiar!

A ideia é, se esta intervenção não for assim

concertada e só interviermos com o menor,

é uma perca de tempo porque, depois, o

resto não se generaliza. Porque isso era

assumir, mais uma vez, que aquele

indivíduo era o portador de todos os

defeitos do problema quando, em geral,

efectivamente, sabemos que não.

P4

Bem, daquilo que eu sei relativamente à

responsabilização parental, nos países que

a têm praticado, nomeadamente o Reino

Unido e, ultimamente, a França, esta com

soluções mais do tipo punitivo,

nomeadamente com o corte de regalias

económicas, ao que parece, a avaliação

que tem sido feita em termos de boas

práticas é que funciona a imposição de

programas de educação parental. Agora,

as sanções de tipo punitivo e não

responsabilizadoras, não têm tido êxito,

nomeadamente na França há sectores

muito críticos dizendo que elas têm

contribuído para agravar a precariedade da

situação das famílias. Ora, isso em

Portugal seria muito provável. Mas eu

realmente acho, daquilo que tenho ouvido

de colegas de outros países, que a

imposição de programas de educação

parental tem dado frutos até porque, muitas

vezes, os pais têm problemas de não o

saberem ser e eles próprios querem saber

e afirmar-se como pais. Por isso, têm

funcionado.

P3

A responsabilização dos pais tem que ser

encarada um pouco neste sentido, porque

aquela ideia de criminalizar a

responsabilização dos pais, que é, muitas

vezes, o que está subjacente quando

pedem mais responsabilização, não

servirá. Eu considero que essa ideia é de

afastar totalmente.

P4

Aliás, se vir as últimas recomendações do

Comité do Conselho de Ministros de

Novembro de 2008 relativas às crianças e

jovens às quais são aplicadas medidas na

comunidade e em instituição, que é, de

facto, um apanhado de todas as últimas

grandes recomendações internacionais dos

últimos anos, enfim, indo um pouco mais

além delas, vê-se que a linha é,

claramente, a de uma responsabilização

positiva dos pais e não uma criminalização

dos pais.

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Anexo

413

OPJ

O problema é que, entre nós, de facto, não

trabalhamos, na prática, essa

responsabilização.

P4

Eu penso que no sistema de protecção,

com a regulamentação das medidas, se

deram passos nesse sentido.

P6

Sobretudo na formação parental têm-se

feito progressos. Há cinco universidades a

fazer a avaliação de várias aqui de X…

P3

No plano de execução da medida,

chamemos-lhe assim, o plano de

intervenção educativa é, salvo erro, dado

na parte de execução das medidas e pode-

se fazer uma previsão de que se deve fazer

a tal análise sistémica e que poderá haver,

quando os pais não aderirem a actos

necessários para a concretização daquele

plano, o poder de ser imposta a obrigação

de frequentar. Nesses termos, acho que

sim. Na criminalização tipo crime de

desobediência, multa e retirada de

subsídios, funciona como conversa. Porque

na prática, em algumas regiões, isso tem

acontecido e tem havido ali alguma

tentativa de que não seja assim. Um

grande número de famílias recebem o

rendimento social de inserção, têm

menores a cargo, se eles violam algum

daqueles princípios retiram-lhe o

rendimento social de inserção. Se eles já

têm dificuldade em termos de sustento dos

menores, ao ser-lhes retirado, estes ficam

em perigo. E, depois, temos de os retirar

para o acolhimento. Ora, não faz sentido.

OPJ

Há aqui uma intervenção forte da DGRS na

Lei Tutelar Educativa em todo o processo,

mas aparece sempre com uma função de

assessoria e, por vezes, ouvida no tribunal

no seu lugar de testemunha. Questiona-se

se a DGRS deveria ter aqui outro papel, do

ponto de vista da lei, por um lado.

Por outro lado, gostava de saber se vos

parece bem que a partir de uma

determinada medida e, sobretudo, de

acompanhamento em Centro Educativo,

em regime aberto ou semi-aberto, se essas

medidas devem não terminar mas ser

sempre seguidas por uma outra medida de

acompanhamento educativo, ainda que o

jovem já tenha ultrapassado os 16 anos.

Isto é, se uma medida, sobretudo, em

regime de detenção, deve terminar assim,

findo o seu período.

P9

De facto, acho que passamos a vida a dizer

que isto não é penal mas depois todo o

raciocínio que desenvolvemos assenta no

penal, até mesmo nos prazos que são

concedidos para decidir a duração da

medida. É que claramente não se coaduna

com o que é exigido, depois, em termos de

resultado, porque em três meses para

qualquer destas medidas não se consegue

fazer nada, nem sequer em termos

burocráticos. Esta é uma questão que

deveria ser mais discutida e aprofundada,

porque isto permite a alguns magistrados

decidir por uma duração mínima, sendo

que, depois, todos os técnicos se queixam

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414 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

nos serviços que tal não resulta em nada.

Isto em termos de duração das medidas.

Quando toda a investigação e todas as

boas práticas, bem como alguns bons

critérios de outros países acerca dos

programas elegíveis para serem usados

nesta área da reabilitação dos menores,

implicam durações superiores ou um maior

número de semanas de trabalho. Portanto,

acho que algumas coisas deviam ser

revistas a este nível.

OPJ

E as medidas devem ser mais

combinadas? Isto é, imaginando que

podemos ter medidas mais curtas de

detenção, depois seguidas de uma medida

de acompanhamento.

P9

Isso acho que sim. O que não faz muito

sentido é que haja um acompanhamento

educativo, que é cumprido num tempo, que

acaba porque acaba a medida que foi

imposta, mesmo se no fim do período de

acompanhamento persistir a necessidade

de educação. Porque sabe, esta não é uma

medida de reabilitação, é uma medida no

que está entre as medidas. Ou seja,

cumprida a pena, acabou, não se pode

prolongar uma pena. E o que me preocupa

é que nós estamos aqui com menores.

Mas, no limite, este raciocínio podia ser

feito com adultos porque, de facto, se não

houve a modificação de comportamento

que se espera que houvesse, porque é que

vai acabar a medida se é uma medida de

reabilitação?

P1

Por exemplo, na avaliação dos processos

de intervenção descobrimos que tínhamos

de facto, previsto inicialmente, por

hipótese, doze sessões e depois, na

avaliação do processo, vemos que são

necessários mais seis. Mas, indicámos que

era doze e a medida acabou.

OPJ

Como é que responde a isto? É uma

questão de direito dos cidadãos? Não. Este

cidadão tem direito a uma maior

intervenção do Estado. É também um

direito deste cidadão que precisa desta

intervenção.

P3

Primeiro, acho que, realmente, há que

flexibilizar o final das medidas,

designadamente com um período de

acompanhamento após a saída. Estamos a

falar do internamento. Eventualmente, há

aqui um acompanhamento educativo que

não é internamento. Depois temos que

tentar definir que tipo de intervenção seria

essa, se seria ainda no âmbito de uma

medida, digamos, reportando um pouco à

liberdade condicional, o que eu não

gostaria muito, confesso. Porque eu acho

que tem de ser um acompanhamento para

a inserção, que pode não ser para uma

transição de um regime para outro. Ou

seja, se isto funcionasse muito bem, podia

ser feito no âmbito da protecção, mas,

como nós sabemos, a articulação é difícil e

nesse aspecto será complicado porque o

sistema de Segurança Social não se

articula com o restante.

Assim, para mim há várias hipóteses.

Primeiro, é no âmbito da própria medida

haver uma previsão, que aliás já hoje é de

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Anexo

415

certa forma feito, de numa fase final a

medida ser alterada no sentido de uma

inserção na comunidade. Ou seja, a

medida deixa de ser de internamento, é

revista e passa a ser um acompanhamento

educativo ou aquilo que fosse preciso para

a reinserção. Ainda estamos na fase do

cumprimento da medida.

Há outra possibilidade que é a medida em

si terminar e terminar mesmo enquanto

medida, e mesmo assim verificar-se que há

necessidade de acompanhamento daquele

jovem para ele ser inserido,

designadamente com medidas de apoio de

inserção, por exemplo, autonomia de vida

como existe na promoção e protecção.

Assim, apesar de terminada a medida, se o

menor precisa de algum apoio para ter

casa, para formação profissional, etc.,

haver esta possibilidade e esta

possibilidade ser assegurada porque está

prevista na lei, bem como os serviços que o

fazem.

Por fim, há uma terceira possibilidade, a

que eu não digo que não mas que, a ser

tem de funcionar com algumas garantias,

que é a seguinte: o menor está a cumprir

medida de internamento, durante a qual

cumpre um programa de formação

profissional ou terapêutico, seja o que for, e

que se prevê não vir a estar terminado

antes de terminada a medida de

internamento. A mim não me repugna que,

justificadamente, com base na necessidade

de cumprimento e dizendo por quanto

tempo mais, o tribunal prolongue a medida.

Porque há aqui, também, a questão de

saber em que regime é que vai funcionar.

Isto é, se for uma mera formação

profissional, eventualmente poderá ser

cumprida não estando internado, estando

cá fora, se houver condições, desde que

ele se comprometa e continue a frequentar

a formação profissional. Mas, se for uma

intervenção de um programa terapêutico,

por exemplo, ou outra situação que

pressuponha que ele continue na mesma

situação de internamento em que está

sujeito, nesses casos, justificadamente, e

com limites no tempo, desde que seja com

ordem judicial, a mim não me repugna o

prolongamento.

Repugna-me um prolongamento

desproporcional e sem justificação de

objectivos a atingir. Ou seja, uma coisa é

eu estar a ser sujeito a um internamento, a

um cumprimento de medida, estar a ter

êxito e ser essencial que o mesmo continue

para poder ser realmente eficaz. Outra

coisa é considerar-se que o menor ainda

não está preparado, que a formação não foi

suficiente, apesar de todo o tempo que lá

esteve. Aí é um insucesso da intervenção,

mas isso são consequências possíveis.

Porque aí estariam a violar-se os direitos

fundamentais do menor, como a liberdade,

porque não podemos manter a pessoa

privada da liberdade indefinidamente.

OPJ

Mas, neste caso, a intervenção não é de

pena, é de pré-educação.

P3

Mas é que a intervenção do Estado para a

educação do menor para o direito tem

limites. A própria intervenção no âmbito da

protecção no interesse do menor tem

limites e limites constitucionais. E, aqui,

estamos com limites, que são os direitos

dos cidadãos principalmente quando está

em causa uma medida que implica a

privação da liberdade.

A legitimidade do Estado para intervir na

educação do cidadão tem limites. É por

isso que aqui estão reportados às duas

coisas. Não é só a mera necessidade de

intervenção de educação do menor para o

direito que pressupõe legitimidade do

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416 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Estado para a intervenção, porque então

estávamos num Estado reeducador.

P9

Acho que há aqui duas questões. Uma é a

questão das situações em que se

implementou a medida, o menor cumpriu

mas não temos resultados. Acaba-se ou

não se acaba?

A outra questão é, independentemente de

haver alguma coacção legal ou de se

prolongar o prazo da medida, mesmo

objectivos estabelecidos, era oferecermos

a possibilidade ao menor, e estou a pensar

naqueles que têm medida de internamento,

de terem livremente, se quiserem, por

exemplo, uma área de transição para a

vida activa ou algum tipo de apoio mas já

sob regime de voluntariado que hoje não

funciona nem existe. Quer dizer, existia em

x, mas foi fechado.

P4

O sistema está preparado para isso. São

as pontes com a Lei de Promoção e

Protecção que não estão a funcionar

OPJ

Na sua opinião essas pontes são

suficientes? Porque é que não são?

P6

Porque não há uma ligação suficiente entre

os dois sistemas.

OPJ

Mas não há porque a lei não permite, ou é

a prática?

P6

É a prática. O que me parece é que estas

medidas de transição devem ser

consideradas dentro da duração da

medida, uma transição. Sem prejuízo da

protecção depois. Estou a dizer enquanto a

medida durar. Não quer dizer que depois

não possa ir para a protecção.

P9

Mas tem de ser para além da medida.

Porque a questão é que se tem um miúdo

destes num Centro Educativo, conseguem-

se resultados, ele sai do Centro Educativo

e volta para o meio e para a família de

origem, alguns já nem estão muito

adaptados.

P4

Tem toda a razão. Mas são planos

diferentes e fins diferentes. E esta

possibilidade existe, está oferecida, não

está é cumprida.

Primeiro: a lei, no instituto da revisão, está

preparada para uma grande flexibilidade,

permite ao juiz flexibilidade, consoante as

necessidades do menor, de alterar a

medida, podendo até acabar com a medida

de um momento para o outro,

independentemente da duração mínima

que tiver estabelecido.

Isto porque está a falar nos 3 meses ou nos

6 meses, se for o regime fechado, por

exemplo, mas o juiz pode, aplicando o

instituto da revisão, pôr termo à medida

antes da duração mínima, em nome do

princípio da actualidade das necessidades

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Anexo

417

de educação para o direito. O que está aqui

a querer acautelar-se é o interesse superior

do menor.

Se não fosse assim caíamos numa falsa

ideia. Entre nós tem andado a cultivar-se a

ideia de pretender copiar do sistema

espanhol a chamada liberdade vigiada, que

é um internamento em Centro Educativo

complementado, obrigatoriamente, por um

período de liberdade vigiada. O que existe

também no sistema de internamento a

partir dos 10 anos, no Reino Unido, em que

os menores a quem são decretadas

medidas de internamento têm,

obrigatoriamente, um período de liberdade

vigiada. E isto acontece por uma razão

muito simples, não é em nome do interesse

do menor, é no interesse da segurança da

sociedade. É um interesse securitário

porque se subordina este período de

liberdade vigiada, e que se chama

exactamente assim, corresponde a um

período de liberdade condicional. Trata-se

de um período em que cabe ao menor

provar como é que se porta. Se não se

portar bem volta para dentro do centro.

Mas, como disse, isto não foi feito em

nome do interesse do menor.

Mas nós quando falamos aqui na Lei

Tutelar Educativa em período de liberdade

assistida – não lhe quero chamar vigiada –

estamos a falar no interesse do menor.

Ora, se falamos no interesse do menor e

de apoiar o menor, então há que agilizar,

nesse aspecto, os mecanismos da

promoção e protecção que sempre

estiveram contemplados na lei desde o 1.º

momento. Uma das vantagens desta lei foi

não ter querido ir para um modelo de

justiça e fechar a porta a um modelo de

protecção, daí ter-se deixado ficar a ponte

com o sistema de protecção. Porque, um

jovem que precisa de escola, de casa, de

formação profissional, está em risco, se

isso não funcionar, de não ter o seu

desenvolvimento adequado. Portanto, é a

promoção a funcionar.

O que é errado é continuar a ver-se que,

para ter escola, para dar formação

profissional é preciso privar de liberdade.

Então, tínhamos que ter muitas prisões

para jovens para ultrapassar o nosso

problema de iliteracia e de abandono

escolar.

A lei já tem este mecanismo. Agilize-se

este mecanismo. E não esquecer que os

países onde isto foi instituído, foi a

liberdade vigiada após o internamento

obrigatória, mas porque aí as medidas de

internamento são muito longas, em

Espanha, subiram para oito a dez anos.

P6

O que é necessário é que, efectivamente,

na execução da medida se veja quais são

as condições em que o jovem está ou que

estará quando se extinguir a medida e

voltar ao seu meio natural. Quando entra

no Centro Educativo, é necessário, desde

logo, começar a preparar o seu regresso,

pelo menos no trabalho possível com a

família. E depois, naturalmente, fazer

intervir o sistema de protecção se isso

significar, naturalmente, uma situação de

perigo. Ou, então, se não se verificar uma

situação de perigo mas significar uma

dificuldade social, são os serviços sociais

que devem responder a essa situação.

P9

A minha ideia é que, dentro da DGRS,

deve ter alguns normativos no sentido de

estes miúdos, depois de saírem, terem

algum acompanhamento por parte deles,

mas que não funciona.

P4

Houve um despacho, ao nível do PETI –

Programa de Eliminação do Trabalho

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418 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

Infantil – que estendeu a sua acção, não só

ao trabalho infantil mas às piores formas de

trabalho infantil que consubstanciam

situações de perigo, e ao fazê-lo, acabou

por se vir a permitir, por despacho

governamental, que os menores no caso

da suspensão do processo, ou seja, no

quadro da diversão impura por parte do

MP, e também no caso da cessação das

medidas de internamento, viessem a

aproveitar, num esquema de promoção e

protecção, do que se tinha aberto no que

concerne às piores formas de trabalho

infantil. E, portanto, pudessem integrar a

chamada escolarização acompanhada de

diplomas de preparação profissional, o que

agora se chama Cursos EFA (Cursos de

Educação e Formação de Adultos).

P3

Teoricamente concordo com esta

“separação de águas”. Mas, vamos à

prática. E a prática o que nos mostra é que,

por vezes, não é feito cálculo correcto. Há

jovens que estão a cumprir a medida de

internamento e que, se depois do terminus

da medida lá estivessem ou continuassem

a cumpri-la cá fora mais 3 ou 4 meses,

terminavam aquele curso que estavam a

tirar. Enquanto que se acabar a medida,

termina por ali e já não podem terminar a

formação. Ora, isto acontece muitas vezes.

Se tudo funcionasse muito bem, tinham

começado o curso antes mas, por vezes,

até há questões que têm que ver com o

início do ano escolar e que têm de ser

acauteladas. E falamos em cursos, mas

podíamos falar numa intervenção

terapêutica e que até estava a dar

resultado e, de repente, é interrompida.

Mas, em relação a esta possibilidade que

eu pus, de haver, com todas as garantias

judiciais, um prolongamento da medida,

temos de atender à prática.

OPJ

Até porque, este prolongamento da medida

pode, de facto, não ser possível articular.

Porque, por exemplo, imaginando – ainda

mais agora, com esta alteração da

localização dos centros educativos – o

jovem pode ser de Lisboa e toda a

intervenção estar a ocorrer no Porto e,

depois de sair, ele vem para o seu meio,

para Lisboa e aí já não é possível voltar a

levá-lo ao Porto para acabar o curso.

P3

A outra questão é a questão da saída. O

que sabemos, na prática, e atendendo até

a como ficou a lei escrita, é que a ligação

entre as duas leis, sobretudo em relação a

esta saída, tem algumas dificuldades, não

só porque as estruturas da Segurança

Social, que deviam assegurar isso, não

respondem, mas até ao nível processual.

Isto porque, se o menor sai com 16 ou 17

anos e não tiver nenhum processo de

promoção e protecção antes, já não pode

ser instaurado. São estas as dificuldades

práticas. Portanto, ali já não se pode

instaurar porque já tem mais de 16 anos. E

se for instaurado, tem de se começar pelas

comissões de protecção. Não tem sentido.

O que eu considero é que se devia alterar

esta ligação em termos processuais. Eu

tinha aqui apontada uma alteração com a

qual, talvez, não concordem muito. Em

incidente processual suscitado por apenso

ao processo tutelar educativo, o juiz do

processo tutelar educativo aplicava a

medida de promoção e protecção.

P6

Já o pode fazer provisoriamente.

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Anexo

419

P3

Mas aqui haveria uma excepção ao regime

actual e o próprio juiz aplicava-lhe a

medida de promoção e protecção que seria

assegurada. Isto em termos jurídicos e

processuais podia resolver-se assim e acho

que com todas as garantias.

P6

O problema é que, em muitos casos, já tem

18 anos.

P3

Sim, exactamente, mas isso é outra

questão. Mas pode ter medida até aos 21.

P6

A saída para o sistema de protecção é uma

das soluções mas não é a única, porque

muitas vezes já não é possível.

OPJ

Nós já temos um regime especial até aos

21 anos. E no âmbito deste regime especial

não se poderia encontrar uma solução?

P6

Mas aí é no âmbito de uma pena. Eu acho

que neste caso só pode ser uma solução

social.

P3

Mas esta que eu estou a falar, não seria

uma pena. Era aplicado no próprio

processo por apenso, pelo juiz do

processo, a medida de protecção e seguia,

depois, as leis da promoção e protecção.

Ou seja, até aos 18 anos podia impor, a

partir daí e até aos 21, só se eles

quisessem, ou seja, com a aceitação.

Depois, há uma outra questão que é de

quem é que vai executar esta medida de

promoção e protecção, que têm que ser os

serviços da Segurança Social.

P6

Não tem que ser, se a lei estabelecer que

deve ser a mesma equipa da DGRS.

P3

Mas isso tem que ser a lei a estabelecer.

Quais são as possibilidades do juiz de fazer

executar a medida? Porque nós estivemos

aqui, e muito bem, a aflorar muitas

questões e foi referida a falta de

capacidade de resposta dos serviços de

execução das medidas, mas isso é

realmente uma corrida que temos que

acentuar. Porque muita da ineficácia ou,

pelo menos, da sensação de ineficácia, da

intervenção tutelar educativa, no que toca

designadamente aos pequenos delitos,

vem do facto de as medidas previstas na lei

não serem executadas. Não são

executadas ou são executadas de maneira

deficiente e não há aí um estudo sobre

isso. Como é o acompanhamento tutelar

educativo? Como é que está a funcionar?

Está a ser bem assegurado? Todas as

medidas anteriores, como a formação

profissional, como é que estão a funcionar?

Nunca foram regulamentadas. Não há

estruturas, nem referências. E isso é uma

falha imensa porque, na prática, isto não

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420 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

funciona porque nunca foram executadas,

são medidas que estão no papel, são

aplicadas pelo tribunal mas, grande parte

delas não funciona.

P7

Portanto, não é mudar a lei, é executar o

que está na lei e criar as estruturas

necessárias.

P1

Mas isso, repare, isso é a história antiga do

antigo IRS que, quando foi criado, até se

dizia que estavam proibidos de fazer

intervenção. Depois, quando descobriram

que tinham de fazer intervenção, já não

tinham técnicos para a fazer porque os

tinham deixado ir embora. Agora, estão

com esse problema de défice…

P5

Eu acho que é interessante toda esta

discussão em torno da possibilidade de

prolongamento da medida para lá do

internamento mas acho que, a montante,

ainda falta falar alguma coisa acerca do

internamento propriamente dito. Já

estamos a antecipar o depois. E antes, e

durante, o que é que se passa lá naquele

quotidiano? Por exemplo, no Centro

Educativo X, acho muito curioso que, dos

vários programas educativos e terapêuticos

que estão propostos no Regulamento Geral

dos Centros Educativos, o Centro

Educativo só não desenvolvia um deles. E

era, precisamente, aquele que se dirigia à

satisfação de necessidades específicas

associadas ao comportamento delinquente.

Eu acho isto absolutamente extraordinário.

E é este “olhar para dentro” que eu acho

que, obviamente não negligenciando todas

as questões processuais e de articulação

dos serviços a um nível mais macro, mas o

olhar mais micro também me parece

fundamental. Senão corremos o risco de

desenhar uma grande imagem, mas

quando aproximamos vemos que está

vazio lá dentro. Vêem-se os grandes traços

do edifício mas olhando lá para dentro

perguntamos onde é que estão as coisas,

afinal.

Por outro lado, também me parece, que

pelo menos desde o caso Casa Pia, muito

marcante na sociedade portuguesa, se tem

assistido cada vez mais, àquilo que eu

chamo a “demonização” do internamento.

Portanto, cada vez mais vemos o

internamento como a medida de último

recurso. Ora bem, se, por um lado, entendo

e percebo isto perfeitamente, por outro

lado, tem o reverso da medalha que o facto

de, por vezes, as medidas serem

demasiado curtas para inverter trajectórias

delinquentes. Assim como a intervenção é

feita, muitas vezes, demasiado tarde. E,

portanto, nós não podemos querer o

melhor de dois mundos, isto é, querer o

internamento, mas ao mesmo tempo

demonizá-lo, querer transformar as

crianças mas não dar tempo para a

transformação, ter um interesse superior

mas depois esse interesse superior passar

a ser o tentar sair o mais rapidamente

possível do mecanismo que nós criámos

para inverter o percurso.

Obviamente que eu reconheço que isto é

complicado e, seguramente, estão aqui

pessoas que já pensaram muito mais sobre

isto do que eu e, de forma nenhuma, quero

pôr isso em causa. Mas a partir da minha

perspectiva eu acho isto, de alguma forma,

extraordinário. Porque, com base na

experiência que conheço de Centro

Educativo, o que eu noto é que não é muito

claro para ninguém exactamente, qual é o

mandato do Centro Educativo. Não há um

modelo educativo.

Uma coisa me parece. Se nós queremos

tratar os menores como os adultos – eu

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Anexo

421

não estou a dizer que isto acontece assim

de uma forma evidente – mas se queremos

diferenciar o tratamento que damos a um

menor delinquente do tratamento que

damos a um adulto criminoso, acho que

temos de correr riscos e acho que parte da

educação passa por assumir correr alguns

riscos. Pode correr melhor ou pior. Mas, um

Centro Educativo talvez não possa estar,

quase exclusivamente, orientado para a

gestão e para supressão da imponderável

catástrofe, briga ou fuga. Isso aí é que me

parece altamente castrador e muito pouco

educativo no sentido em que não alarga,

antes pelo contrário, apresenta uma visão

completamente dicotómica e simplista do

mundo, ou é bem ou é mal, ou é preto ou é

branco.

P9

Nem há tempo para mais nada. Porque

está tão estigmatizado que é mil vezes pior

do que uma prisão.

P7

Mas não estão lá psicólogos?

P5

Não. Atenção! É que os psicólogos,

normalmente estão distantes, com funções

de gestão. Quem passa o tempo com os

educandos são os monitores que, para o

serem, basta terem o 12.º ano e não têm

cursos de formação especializada.

Portanto, os que têm formação técnica

especializada para lidar com a delinquência

estão em tarefas de gestão, para as quais

várias vezes nem sequer têm formação. Os

outros, que são mais “indiferenciados” e,

claro, há uns que têm mais ou menos

experiência ou jeito do que outros, é que

estão 8 horas por dia com os educandos.

Isto é que é o modelo, isto é que é o

queremos e o que temos. Por isso, aqui é

que me parece que deviam ser mudadas

as coisas e, obviamente, que o sistema

juvenil não se reduz ao internamento, mas

é, de alguma forma, como já se disse, o

último reduto onde se colocam grandes

questões.

Parece-me também notável que

coloquemos tanto dinheiro num sistema do

qual não avaliamos os efeitos. Nós não

temos dados de reincidência. Quando eu

há pouco, durante a primeira parte, falava

dos dados que nos faltam, refiro-me, por

exemplo, a que nós não temos dados

específicos sobre a reincidência, e não digo

apenas reincidência no sistema juvenil

mas, também, depois, no mundo adulto.

OPJ

De facto esse estudo não existe e ninguém

quer fazê-lo.

P5

E, se quisessem, não era assim tão difícil.

P1

Há uma pessoa que se tem dedicado um

pouco a isso, o Dr. X da Direcção-Geral

dos Serviços Prisionais. É por isso que é

tão fácil fazer uma tese de doutoramento

nos países escandinavos, porque as

estatísticas estão certinhas e têm aquilo

compilado desde os anos 40 e 50, mas

enfim, no nosso sistema é difícil. Estamos

aqui a falar de coisas que são muito

importantes para uma apreciação. Nós

vamos tentar estudar um indivíduo que sai

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422 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

da prisão, 3 meses depois passámos lá e o

processo dele está, provavelmente, num

canto qualquer.

OPJ

Os serviços prisionais têm agora um

sistema novo que regista, têm sempre o

mesmo número mecanográfico que permite

fazer o registo dessas entradas. Agora, é

preciso aprofundar o estudo do fenómeno

da reincidência, mas mais do que isso.

Conseguimos detectar quantas vezes as

pessoas entram no sistema, mas é preciso

avaliar porque é que elas entram, fazer

estudos de acompanhamento.

P4

Mas se quisesse fazê-lo na reinserção

social também podia fazê-lo. Porque

também têm um número único de

processo.

OPJ

Só não existe um número único da DGRS

com a DGSP.

P5

Há pouco falávamos na mediação mais na

fase inicial, de instrução dos processos,

etc.. Eu acho que a mediação seria uma

excelente estratégia para implementar no

quotidiano de um Centro Educativo. O que

não falta lá são conflitos. E em vez de se

colocar o conflito “a martelo” dentro de um

quadrado que não se pode fechar, poderia

usar-se todo o potencial pedagógico que

uma situação de conflito tem. E está mais

do que demonstrado e mais do que

trabalhado, existem, aliás, imensos

programas para isso. É uma questão de os

querer utilizar. Ou então, é deixar andar

neste regime, que eu não digo que seja

negro, porque não são maltratados, são

bem alimentados e têm, em muitos

aspectos, melhores condições que cá fora,

mas, digo que é um regime cinzento.

P3

Há um ano, P3 e eu estivemos em Nápoles

num seminário onde um técnico de

reinserção social apresentou dados de um

estudo, enfim, metodologicamente não

muito consistente, apontando para 60% de

reincidência relativamente a jovens que

tinham passado pelos centros educativos,

ou seja, fazendo um estudo dentro do

próprio sistema de internamento. Assim,

60% dos jovens internados tinham voltado

ao Centro Educativo.

P1

Resta saber se os outros 40% não fizeram

entrada no sistema penal. Porque se me

disser assim, que 60% reincidiram mas os

outros 40% não, apesar de tudo,

considerando os factores de risco, já não é

nada mau.

P4

Mas isto é um estudo incipientíssimo! Já dá

um indicador que, realmente, é

preocupante. O único estudo que se fez

sobre reincidência, a sério, em Portugal, foi

feito nos anos 60 pela Dra. Maria Rosa

Crucho de Almeida, nos serviços prisionais.

Tirando esse, nunca mais se fez nenhum.

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Anexo

423

OPJ

Não só nos prisionais como também, de

facto, neste âmbito que até é mais

fundamental para percebermos os

percursos. Nós temos noção de muitas

falhas, mas, se calhar, é necessário traçar

aqui grandes histórias de vida para que

percebamos, realmente, onde é que acaba.

P4

Eu não sei se há tempo para falar nisso

mas era uma das coisas importantes a

referir, além de ser urgente: diferenciar e

especializar a intervenção em Centro

Educativo. Eu acho que, neste âmbito, era

necessário instituir o internamento para

tratamento médico e médico-psicológico,

mesmo que não executado numa

instituição da justiça.

Aliás, como se faz em Espanha, e aí

podemos copiá-los à vontade que vamos

no bom caminho. Não temos respostas da

saúde, mas é preciso exigi-las, porque os

poucos números que temos vão,

exactamente, no sentido de grandes

carências a este respeito.

O CEJ aderiu a um projecto que é

subsidiado pela Comissão Europeia,

estando sediado em Bruxelas e tem,

justamente, na mira o estudo das carências

ao nível dos sistemas de justiça juvenil na

União Europeia relativamente ao

tratamento médico e médico-psicológico.

De facto, no fundo trata-se de um

diagnóstico comparativo das necessidades

em matéria de tratamento médico e

médico-psicológico e da saúde em geral

nos sistemas de justiça juvenil na Europa e

é um projecto muito interessante porque as

carências, pelo menos entre nós, são

gritantes.

P3

Este debate sobre os modelos ou

programas de intervenção nos centros

educativos, é um debate que era

importante ser feito, para além da

avaliação, por pessoas interiores, que

estão a trabalhar, e, depois, por pessoas

exteriores.

P7

Mas não há uma comissão de avaliação?

OPJ

De fiscalização. Como todas as comissões

de avaliação, funciona no âmbito da

Assembleia da República.

P3

Mas essa comissão tem uma função

também útil, é um olhar exterior que, por

vezes, é óptimo.

OPJ

Mas é necessário saber os princípios e os

critérios, e é preciso enfim, uma avaliação

técnica.

P4

Deixe-me só meter aqui uma questão que

me tem preocupado muito. Tem havido

grandes ventos no sentido de introduzir no

sistema de justiça juvenil a vigilância

electrónica.

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424 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

OPJ

O Ministro já anunciou.

P4

Pois, mas eu espero que a vigilância

electrónica seja instituída apenas como

uma alternativa ao internamento e não

como um reforço de medidas executadas

na comunidade. Porque, é bom lembrar,

sobretudo para os que se têm preocupado

muito com a penalização do sistema de

justiça juvenil, que nos adultos a pulseira

electrónica é uma privação de liberdade.

Por isso, é bom respeitar a

proporcionalidade e, ao instituí-la no

sistema de justiça juvenil, a colocar a

funcionar só como alternativa à privação de

liberdade institucional.

P8

Desculpem, se nos centros não há

educação para o direito, com a pulseira

electrónica muito menos haverá!

P3

Mas acho que esta questão da pulseira é

uma questão importante. Por acaso é pena

não a termos aqui discutido. É importante

perceber qual é o objectivo, a finalidade e a

eficácia.

OPJ

Eu fiquei absolutamente perplexa, quando

vi no jornal, que tinha saído no Orçamento

de Estado.

P3

Mas qual é a eficácia das pulseiras? Qual é

a finalidade se o objectivo das medidas é

de educação do menor para o direito e de

reinserção social?

P4

Aí já estamos noutro sistema. Já não é a

pulseira electrónica do sistema passivo que

tínhamos como alternativa no quadro da

medida de permanência obrigatória na

habitação. O que está aqui em causa já

são as medidas de vigilância activa, ou seja

o GPRS. Eu aí até me calo, porque acho

que até pode ser bom, que o jovem possa

ir à escola e à formação profissional e se

garanta que, exactamente, naquelas horas,

ele lá está.

P3

Mas isso tem que ser avaliado na finalidade

da medida e num plano integrado. Porque

em termos de reinserção social, qual é o

efeito disto relativamente à mentalidade, ao

desenvolvimento e à inserção dos valores?

Eu acho que isto é uma coisa a discutir. E

agora, só para agilizar, em termos de

recomendações para funcionamento do

sistema, há aqui coisas que nunca se

falaram, para além da regulamentação das

medidas. Existe a necessidade urgente de

se estabelecer um sistema de registo, não

só das medidas, porque esse já existe, mas

sim a possibilidade de um sistema

informático em rede, através do qual

rapidamente se consiga saber quantos

processos tem o menor, para se poder

fazer até a aplicação de uma medida, como

manda a lei, ou seja, de uma maneira

integrada. Isso nunca funcionou. Ora,

pessoas que andam tão preocupadas com

a reacção à delinquência juvenil, não

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Anexo

425

percebo como é que querem reagir com um

sistema que não sabe que um menor tem

um processo em Faro e tem outro em

Bragança! Quem vem a saber é a DGRS,

que manda ofícios mas, entretanto, o

tribunal o que quer é julgar aquele caso,

que dá menos trabalho, e, depois, se há-de

julgar o outro, e por aí fora.

Há uma outra questão que, em termos

processuais, talvez valesse a pena reflectir

e que se liga um pouco com a questão de

quando um menor tem um processo, e

comete outros crimes, no fundo, o cúmulo

de medidas ou o cumprimento sucessivo.

Isto também é importante rever.

P7

Só uma ideia muito rápida, como forma de

contrapor também à ideia do abaixamento

da idade da imputabilidade, julgo que

poderia ser encarada a possibilidade de o

limite máximo do internamento passar de 3

para 5 anos. Porque seria até uma forma

de contrapor essa ideia e vem dar razão a

algumas situações, como por exemplo, se

o menor tem 15 anos e 11 meses, e

comete um crime de homicídio, o máximo

que pode acontecer é ser aplicada uma

medida de internamento que pode ir, no

máximo, até 3 anos. Já se tiver 16 anos, ou

seja, mais um mês, apanha uns bons anos.

P3

Mas isso é o problema de todos os limites

etários. É a mesma coisa que um menor de

11 anos e 10 meses estar no sistema de

protecção e já não é aplicada medida do

sistema tutelar educativo. Isto é aleatório e

é o tal risco que temos com algum tipo de

sistema e limites etários.

Eu acho um exagero 5 anos.

P4

Neste estudo em que eu participei, as

conclusões que, como digo, vão ser agora

publicadas, apontam no sentido de

considerar extraordinário que Portugal e a

Suíça sejam, de facto, os países que têm

um limite máximo tão baixo para o

internamento em regime fechado. Portanto,

considera-se que os nossos 3 anos, com a

Suíça, são um caso raro, no contexto da

União Europeia.

De qualquer modo, e na linha da

intervenção que P7 fez, eu acho que

estávamos na altura de fazer evoluir o

sistema para algo que não foi feito quando

a Lei Tutelar Educativa foi publicada, que

era diferenciar, em função da faixa etária,

os limites de duração das medidas. E,

portanto, não faz sentido, do meu ponto de

vista, que um jovem de 16 anos esteja

sujeito aos mesmos limites que um jovem

de 14 anos.

Eu penso que, nas faixas etárias de 12 a

14 e, depois, de 14 a 16 e até de 16 a 18,

porque, como se sabe, o tribunal pode

intervir depois dos 16 e até aos 18,

relativamente a factos anteriores praticados

até aos 16 anos, que de facto, a duração

das medidas pudesse ter limites maiores

porque isso está de acordo com o princípio

da necessidade e da actualidade da

necessidade de educação para o direito.

É evidente que, se aos 16 anos um jovem

ainda mostra necessidades educativas

relativamente a um facto que ele praticou

aos 14 anos e, se passaram 2 anos e

essas necessidades educativas, no

momento em que o tribunal julga, ainda

persistem, eu acho que os limites desta

medida devem ser consideravelmente

maiores.

Portanto, acho que essa diferenciação era

oportuna. E isso ia um pouco na linha de

poder, por essa via, aumentar o

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426 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

internamento relativamente a jovens mais

velhos. É evidente que, cumprindo o

princípio da proporcionalidade

relativamente aos adultos, nunca se

aplicaria uma privação de liberdade que

pudesse ser superior àquela que um adulto

teria se praticasse o mesmo tipo de facto.

P9

Acho que a questão de P5 foi muito

importante mas, depois, fomos para as

pulseiras electrónicas e perdemo-nos um

bocadinho. Mas de facto os juristas estão

muito preocupados com a questão

processual, da decisão e do tipo de

medida. E, depois, deixa-se, praticamente,

para a DGRS a aplicação das medidas e o

conteúdo do que se faz.

Agora já é um pouco tarde, mas, de facto,

não sei se não valia a pena reflectir acerca

disto. Porque, mesmo a maneira como as

medidas estão designadas na lei não é de

uma interpretação clara. Claro que, depois,

cada um dá a sua interpretação e a prática

das coisas também as constitui de uma

determinada maneira. Mas, sobretudo a

questão do internamento e é por isso que

eu choco um pouco com o nome e com a

necessidade de ser educado para o direito

e chamar-se Centro Educativo. De facto,

eles são educativos só se forem ver quer

ao regulamento dos centros, quer o que os

miúdos fazem (eles fazem actividades de

formação, actividades escolares e

desportivas bem como ocupação de

tempos livres), mas em termos de

reabilitação psicossocial, quer individual ou

em termos de programas grupais, é

praticamente inexistente.

Eu desde que tenho contacto com o então

IRS, e foi sempre a partir dos centros

educativos ou dos menores em risco, que

ouço que há sempre um projecto de

regulamentação interna, estão sempre a

fazer o regulamento interno, estão sempre

à procura dos programas, e os programas

já existem em muitos países há imenso

tempo. Há nove anos nós fechámos a

tradução do primeiro em português, para o

IRS. E, entretanto, com o tempo, fiz uma

pesquisa e encontrei mais dois ou três

programas, pagos pelo IRS para serem

implementados nos centros educativos, e

que eu saiba, nunca foram.

Agora, de há um ano para cá é que andam

numa correria a tentar ver quais são os

programas que vamos levar. Embora a

questão tenha sido sempre quais seriam os

programas, mas fazê-los nunca ninguém

quis.

É tudo muito bonito e interessante e,

finalmente, temos um programa, mas

quando se percebe que aquilo é uma tarde

de trabalho por semana para dois técnicos,

ou se querem dois grupos, já são duas

tardes de trabalho para dois técnicos, ao

longo de quarenta semanas, já não querem

assim tanto o programa…

P4

Quando, na realidade, era extremamente

simples porque não faltam programas por

essa Europa fora que poderiam ser

aplicados à população portuguesa.

P9

Em termos organizativos, eles

organizaram-se de uma maneira que têm

de cumprir um programa de formação e

alternância com a escolaridade que os

miúdos não têm tempo para fazer nenhum

programa, quanto mais o acompanhamento

individual.

Portanto, há aqui um problema, em que os

técnicos nem têm tempo para intervir. A

não ser que intervenhamos aos sábados de

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Anexo

427

manhã, porque não há uma hora e meia

durante a semana para fazer o programa.

P3

Mas o que é que eles fazem? É escola, é

formação?

P9

É formação e é escola. São aqueles

programas de formação profissionalizante,

com oficinas, ateliers, etc., e depois, a

escola.

OPJ

É a ideia de que a escolaridade e a

aprendizagem de uma formação resolve o

problema da reinserção social.

P9

Exactamente. Porque é um grande preditor.

De facto, a dificuldade é o insucesso

escolar. Mas podemos também dizer uma

coisa, que é um pouco irritante. Nos

centros educativos, se for Natal ou Páscoa

ou se vier alguma instituição de

solidariedade, todas as portas se abrem

para fazer rappel cá fora, a ceia, etc., para

isso já se param as aulas e pára-se tudo,

porque é festa! Mas, para o que seria de

rotina, que deveria fazer parte do pacote e

devia ser o ponto forte, eles não estão com

os miúdos uma vez por semana. Como é

que pode haver um acompanhamento?

Portanto, se não estão, como é que

esperam que haja uma intervenção eficaz?

P4

E o regime aberto foi completamente

pervertido, porque não existe tal como esta

desenhado na lei.

P9

Sim, de facto, não existe.

Só mais duas pequenas notas, se me

permitem. Um delas, que me choca

particularmente, a certa altura na lei vem

designado “perícia sobre a personalidade”.

Ora, tecnicamente, num indivíduo de 14

anos, não há personalidade, pelo que

deveria, antes de mais, mudar-se esta

formulação para uma “perícia psicológica”,

para “padrões de comportamento

desviante” ou algo do género, ou mesmo,

“avaliação psicológica”, mas não chamar

“perícia sobre a personalidade”.

P4

Isso foi uma colagem ao Processo Penal.

Já agora, uma vez que falámos de

programas educativos, uma outra

necessidade, ligada à regulamentação das

medidas não institucionais, era instituir

verdadeiros programas educativos

adaptados aos tipos de delinquência mais

frequentes para frequência na comunidade.

Não é fazer apenas programas de meras

competências pessoais e sociais como tem

sido feito. Aliás, esta medida, para mim de

forma extraordinária, tem sido muito

aplicada pelos tribunais e eu adorava saber

que tipos de programas é que foram

realmente executados.

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428 ENTRE A LEI E A PRÁTICA: SUBSÍDIOS PARA UMA REFORMA DA LEI TUTELAR EDUCATIVA

P9

Não queira saber! Podíamos fazer um

inquérito a todos os técnicos dos centros

educativos ou das equipas a perguntar o

que entendem por competências pessoais

e sociais. Bastava fazer isto. E depois

analisar os resultados…

P1

Eu sugeria que os programas dissessem à

frente “empírica e cientificamente

validados”. Porque, essa questão das

competências sociais pode ser uma

“chachada”. Há, de facto, programas que

estão empírica e cientificamente validados,

e aquilo resulta. Por isso, não temos de

inventar nada, temos apenas que adaptar.

É evidente que pode haver um ou outro

ajustamento, em termos culturais por

exemplo, mas a base, já lá está mais do

que documentada. Não é uma panaceia.

Tem literatura, efectivamente, que ajuda a

tornar as coisas credíveis.

P9

Há ainda a questão da duração das

medidas do acompanhamento educativo,

que depois não se coadunam com a

duração de alguns programas.

Andam, neste momento, a fazer uma coisa

híbrida que é seleccionar quais os

programas que implementam no Centro

Educativo e os que implementam em

regime externo em medidas não

institucionais. E, na minha opinião, estão a

escolher coisas que vão permitir que se

indique que o programa foi feito não sei

quantas vezes, mas em que o impacto vai

ser muito pouco ou nulo, porque estão a

reduzir e compactar demasiado esses

programas. Precisamente, porque também

não acreditam que sejam capazes de trazer

os menores no mesmo dia, na mesma hora

durante muito tempo.

Isto é muito complicado, porque, por

exemplo, no dos agressores domésticos,

abriu-se um sistema de rotação. Eles

podem entrar em várias fases. O programa

é contínuo, não pára. Ora, aqui é um pouco

complicado. Penso que é necessário algo

com princípio, meio e fim, sobretudo nestes

casos específicos. Por exemplo, nos

programas de educação rodoviária, etc.,

podem fazer-se esses programas

contínuos em que os miúdos vão entrando

e têm de cumprir um determinado número

de sessões. Agora, em casos específicos

de competências pessoais, como por

exemplo, nos agressores sexuais, não vejo

que isso se faça facilmente.

P4

Não, isso é mesmo um programa de

intervenção em Centro Educativo. Eu visitei

centros na Holanda especificamente

destinados a esta problemática. Não

recebem outro tipo de delinquência.

Relativamente às medidas de conteúdo

obrigacional não restaurativo, como a

medida de imposição de condutas e de

imposição de obrigações, era urgentíssimo,

de facto, rever a conceptualização destas

medidas que ficou muito mal resolvida na

lei. De facto, há, justificadamente, muitas

queixas a este respeito porque está mal

desenhado. Neste sentido, a nova lei belga

é, talvez, das leis europeias, a que melhor

resolve estas medidas de conteúdo

obrigacional não restaurativo. Porque

temos as medidas restaurativas de

reparação ao ofendido e de prestações à

comunidade, mas esta medida que é, aliás,

muito comum em todos os sistemas de

imposição de condutas ou de obrigações,

devia ser melhor desenhada. Há ali muitas

confusões. Aliás, a Dra. Eliana Gersão

publicou num livro do CEJ, um artigo onde

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Anexo

429

adianta muitas propostas interessantes a

este respeito.

P9

E em relação àquele internamento aos fins-

de-semana?

P4

Seria uma coisa pensável e sem

problemas, tal como existe noutros

sistemas, até como medida, que é

inspirado na legislação alemã, funcionaria

se os centros educativos estivessem

adequadamente preparados para o fazer.

Não estando, é evidente que se torna

difícil.

P1

Mas é bom para desenvolver programas

não é? Já saberíamos que naqueles dias lá

estão.

P9

Exactamente.

P4

A outra questão que se tem levantado é

fácil de resolver. É claramente indicar na lei

que o internamento de fim-de-semana, que

é uma consequência do não cumprimento

de uma medida não institucional, não faz

cessar essa medida não institucional. É um

complemento em termos de advertência.

Agora, a verdade é que tenho muitas

reservas relativamente a manter o

internamento de fim-de-semana se os

centros, de facto, não se prepararem para

o efeito. Agora, não posso condenar a

medida como em tese de princípio, porque

ela funciona noutros sistemas.

P3

E há outra questão em debate, que é saber

se quando se considera que o

acompanhamento educativo não foi eficaz

e não há adesão, se se pode alterar para

uma medida mais gravosa como o

internamento.

Já não é hora para discutir o problema dos

direitos fundamentais, mas é verdade que

isto levanta problemas de garantias.

OPJ

Quero reiterar o meu agradecimento por

esse vosso tempo.