Entre palavras e coisas

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ENTRE PALAVRAS E COISAS... INFINITOS CONTROLES Cristianne Maria Famer Rocha RESUMO -Entre palvras e coisas ••. Infinitos controles. Neste artigo procuro sin- tetizar algumas das categorias abalhadas por Foucault e por Deleuze ao analisarem as sociedades "de soberania", as "disciplinares" e as "de controle". Apropriando-me das análises feitas por estes autores em relação a estas sociedades, procuro descrever al- guns dos conflitos pelos quais estamos passando para tentarmos sobreviver nesta soci- edade contemporânea, caracterizada por uma hegemônica globalização sócio-econô- mico-cultural, de nenhuma liberdade e infinitos controles. - Pavs-chave: pode violência, disciplina, vigilância, controle. ABSTRACT -Belween wos à things... Infine fos of controlo This article is an attempt to synthesize some of the categories worked out by Foucault and Deleuze, in examining the "sovereignty", "disciplinary" and "control" societies. Taking the authors' analysis regarding those societies, I try to describe some of the conflicts we are going through in trying to survive in contemporary society, characterized by an hegemonic social, economic and cultural globalization, where there is no freedom but plenty of infinite controls. Key-words: powe violence, discipline, vigilance, controlo

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  • ENTRE PALAVRAS E COISAS ... INFINITOS

    CONTROLES Cristianne Maria Famer Rocha

    RESUMO - Entre palllvras e coisas . Infinitos controles. Neste artigo procuro sintetizar algumas das categorias trabalhadas por Foucault e por Deleuze ao analisarem as sociedades "de soberania", as "disciplinares" e as "de controle". Apropriando-me das anlises feitas por estes autores em relao a estas sociedades, procuro descrever alguns dos conflitos pelos quais estamos passando para tentarmos sobreviver nesta sociedade contempornea, caracterizada por uma hegemnica globalizao scio-econ-mico-cultural, de nenhuma liberdade e infinitos controles.

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    PalIlvras-chave: poder, violncia, disciplina, vigilncia, controle.

    ABSTRA CT - Belween words nd things ... Infinite forms of controlo This article is an attempt to synthesize some of the categories worked out by Foucault and Deleuze, in examining the "sovereignty", "disciplinary" and "control" societies. Taking the authors' analysis regarding those societies, I try to describe some of the conflicts we are going through in trying to survive in contemporary society, characterized by an hegemonic social, economic and cultural globalization, where there is no freedom but plenty of infinite controls. Key-words: power, violence, discipline, vigilance, controlo

  • Quando instauramos uma classificao refletida, quando dizemos que o gato e o co se parecem menos que dois galos, mesmo se ambos esto adestrados ou embalsamados, mesmo se os dois correm como loucos e mesmo se acabam de quebrar a bilha, que , pois, o solo a partir do qual podemos estabeleclo com inteira certeza? Em que "tbua", segundo qual espao de identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos o hbito de distribuir tantas coisas diferentes e parecidas? Que coerncia essa ( . . . ) {que aproxima e isola, analisa, ajusta e encaixa contedos concretos}; nada mais tateante, nada mais emprico (ao menos na aparncia) que a instaurao de uma ordem entre as coisas; nada que exija um olhar mais atento, uma linguagem mais fiel e melhor modulada; nada que requeira com maior insistncia que se deixe conduzir pela proliferao das qualidades e das fonnas (R:uaJlt, 1 P. 9

    o ajustei

    Mais ou menos nos ltimos duzentos anos, a sociedade (ou parte dela) -convencionalmente conhecida como - ocidental tem procurado ordenar, categorizar, distribuir, distinguir, nomear, classificar (entre outras possveis aes distintivas) coisas (vivas ou no) com o propsito de conhecer e/ou melhor entender o espao que ocupamos, as emoes que sentimos, as necessidades que temos, nossos limites e nossa capacidade de sobrevivncia e permanncia na terra.

    Se por um lado tantas minuciosas categorizaes - ou exploraes cientficas que permitem definir, a partir da diferenciao, os possveis no mundo -tentaram aproximar os at ento desconhecidos; por outro lado, esta rede de informaes se transformou num emaranhado de ns que freqentemente no contempla o indescrito, o invisvel, o indizvel, o no conhecido, o no distribudo e o no nomeado.

    Fizeram-nos acreditar (e muitos continuam acreditando) que por sermos animais racionais (distintos, portanto, dos outros animais "no pensantes") deveramos entender a organizao "natural" do mundo e a partir dela - e graas s nossas "naturais" capacidades intelectuais - transformar para construir, aos poucos e ininterruptamente, um mundo melhor, mais desenvolvido e, se possvel, mais justo, mais humano, mais igualitrio, mais feliz.

    Inmeras tecnologias foram sendo utilizadas a fim de possibilitar este tipo de organizao scio-econmico-cultural que vem repercutindo no modo como ocidentalmente tentamos organizar nossa cultura, nossa economia, nossa poltica, nossas vidas coletivas e individuais. Tecnologias distributivo-organizativas que nos fazem crer em algumas meta-narrativas que explicam o mundo a partir do progresso, do desenvolvimento, das "ditas" melhorias, da qualidade de vida, das verdades "indiscutveis", da emancipao do cidado, da sua conscientizao e participao democrtica, da justia, da fraternidade, etc.,

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  • etc., etc.2 A lista enorme e nunca acaba, pois sempre possvel nela inserirmos uma outra desejvel e "alcanvel" utopia, um novo projeto que reconcilie o passado, o presente e o futuro, numa grande dialtica de superao constante.

    ( . . . ) a modernidade pode caracterizar-se, de fato, por ser dominada pela idia da histria do pensamento como uma "iluminao" progressiva, que se desenvolve com base na apropriao e na reapropriao cada vez mais plena dos ''fundamentos'', que freqentemente so pensados tambm como as "origens", de modo que as revolues tericas e prticas da histria ocidental se apresentam e se legitimam na maioria das vezes como "recuperaes", renascimentos, retornos. A noo da "superao", que tanta importncia tem em toda a filosofia moderna, concebe o curso do pensamento como um desenvolvimento progressivo, em que o novo se identifica com o valor atravs da mediao da recuperao e da apropriao do fundamentoorigem (Vattimo, 1996, p. V I).

    Neste "modelo" terico, o Inundo cientificamente conhecido, datado e localizado parece ser o nico possvel. Baseado neste modelo, muitas vm sendo as formulaes tericas constantemente postuladas que discutem os "problemas" tentando responder "como poderia ser melhor" (e, para isto, procuram apontar sempre outras possveis solues desejadas) ou "por que no estava sendo to bom quanto se imaginava que poderia ser" (e tambm aqui importante analisar "criticamente" sem jamais esquecer de apontar o que dever ser mudado para produzir melhores e maiores resultados prticos, tcnicos, cientficos).

    Poucos tm ousado entender ou ver o mundo para alm ou apesar deste modo moderno de compreenso. Pois, para abalar estas superfcies que (parece) se sedimentaram ao longo dos ltimos sculos de saberes, descobertas, lgicas, verificaes, proclamaes e legitimaes - tidas como - cientficas, preciso, creio, re-visar o modo como nos vemos no mundo e o modo como nos disseram que estamos no mundo.

    Talvez fosse necessrio usar outras tecnologias ou mecanismos de compreenso do mundo e das relaes (de sujeio, de poder, de diviso, de discriminao, de injustia, de moral, de tica, etc.) que nele se do. Talvez fosse necessrio relativizar as verdades e as mentiras, desconstruir3 os discursos (quem fala, de onde fala, para quem fala, por que fala, como fala), repensar as fontes e os (indiscutveis) autores, reequacionar os avanos e progressos, redimensionar as descobertas, reavaliar valores, crenas, cincias, dogmas.

    Se possvel pensarmos o mundo a partir de uma construda (porque inventada, fabricada) "evoluo" que publiciza continuamente seus desejados progressos - e alguns (inevitveis) retrocessos - e que nos induzem a ver como normais e naturais a atual organizao social, o "reconhecido" desenvolvi-

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  • mento econmico e a unilateral produo acadmico-cultural-cientfica ocidental; tambm possvel pensarmos o mundo fora deste eixo de reflexo. Se assim o fizermos, poderemos perceber, com outras lentes, um mundo docilizado, controlado, domesticado, anestesiado, de poucas lutas, abafadas revoltas e inglrias guerras, apesar da nada igual distribuio de renda mundial (e conseqente pauperizao de mais da metade da populao mundiaI4), da escassez de alimentos, da crescente depredao/poluio ambiental, da contnua explorao capitalstica5, do crescente aumento do nmero de indivduos sobre a terra6 e da inversamente proporcional (em progresso geomtrica) capacidade de absoro desta populao na produo (e "desejvel" conseqente consumo) de meios de sobrevivncia que garantam efetivamente qualidade e quantidade de vida a todos aqueles que aqui nascem.

    Neste mundo - e com outras lentes - poder-se-ia ver um modus vivendioperandus que continuamente produz sujeitos dceis, disciplinados, de atitudes controladas, desejos presumveis, dificuldades calculadas, programadas liberdades. Um mundo onde modos de ser, pensar e viver objetivam manter tudo numa "perfeita" ordem, sem abalos nem rachaduras. Uma ordem "perfeita" (branca, pacfica, limpa, organizada, compreensvel, moderna, bem equipada, bem estruturada, etc.) num mundo preferencialmente habitado por indivduos machos, brancos, loiros, de olhos azuis, limpos, bem cheirosos e ricos.

    Porm, estar dentro ou fora destes limites (evolucionistas ou disciplinarizantes) de reflexo do mundo no so (nem pretendo que eles sejam) as nicas variveis possveis. Talvez outras reflexes pudessem entender ou descrever o mundo em que vivemos e suas diversas formas organizativas, alm das acima citadas. Optar por um modelo analtico-explicativo no significa absolutamente, porm, substituir o mesmo por um outro, pretendendo que um seja melhor do que o outro. So apenas formas, maneiras diferentes de pensar o mundo. Calcadas em algumas "verdades", produzem determinados sujeitos, legitimam alguns conceitos, estabelecem outros limites. No neg-los ou invalid-los e reconheclos como possveis um exerccio de extremo rigor, creio. Mesmo porque estamos habituados a pensar que seja na diferenciao, na diversidade, que encontramos as possveis universalidades, os outros, porque neles nos reconhecemos pelo que no somos, a eles denominamos e atravs deles nos significamos e nos demarcamos.

    A opo

    Segundo Veiga-Neto ( 1996), a "Nova Cincia" de Descartes, Newton, Comte, Bacon e Galileu, apoiada no papel desvelador do conhecimento, da razo, da conscincia, da autonomia e da verdade absoluta, fez-nos aceitar tacitamente a existncia de

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  • ( .. .) um sujeito transcendental, cuja racionalidade algo como um reflexo de uma Razo tambm transcendental e totalizante. Alm disso, o progresso visto como o resultado necessrio de um desenvolvimento mais ou menos teleolgico da Histria. A conscincia entendida como um estado a que se pode chegar pelo uso correto da razo. E a linguagem entendida como um instrumento capaz de descrever o mundo e, de certa forma, represent-lo (Idem ibidem, p. 23).

    As cincias da linguagem, as biolgicas e as econmicas, baseadas nos princpios da descoberta, do desvelamento, da representao e da legitimao, produziram uma srie de categorizaes, regularidades discursivas, classificaes, ordenaes e nomeaes que tomaram possvel a organizao de um emaranhado sem fim de conhecimentos e teorias (Foucault, 1995a). Novos conhecimentos e novas cincias que contam uma histria do progresso e da perfeio crescente, ocultando as similitudes e os rompimentos histricos que produziram um ou outro discurso terico. Certezas que se produziram num espao e num tempo bem determinados, onde se distriburam - e se distribuem - "coisas diferentes e parecidas" (Foucault, 1995a, p. 9). (In)Coerncias que aproximam, isolam, analisam, ajustam e encaixam tudo e todos nesta "tbua" que sistematizar e ordenar tantos cientificismos.

    Se ordenamos e nomeamos o mundo (substituindo coisas por palavras), segundo um conjunto de regras historicamente superpostas, "o que dizemos sobre as coisas nem so as prprias coisas ( ... ), nem so uma representao das coisas ( ... ); ao falarmos sobre as coisas, ns as constitumos" (Veiga-Neto, 1996, p. 27). Pois, "a representao [] como o produto de uma exterioridade em que cada um se coloca e a partir do qual cada um traz, a si e aos outros, o que ele entende por mundo real" (idem, p. 28).

    Sendo assim, ao abandonarmos o moderno conceito de representao, temos diante de ns um mundo construdo e entendido a partir das cotidianas (individuais e/ou coletivas) prticas discursivas7 Um mundo nem mais real, nem mais verdadeiro, nem melhor, nem mais evoludo, nem mais complexo. Um mundo diferente daquele que, baseados em alguns princpios tericos e metodolgicos, deveramos definir como o nico possvel. Um mundo de construes possveis, de sensaes, imagens, interpretaes, visibilidades, um mundo que no comea nem acaba nas doutrinas "reconhecidas", um mundo que se faz e que fazemos a partir de nossos exerccios cotidianos de (sobre )vivncia.

    o conflito

    Por estar neste mundo (mesmo que por demais moderno), no posso abdicar dele e de suas formas j estabelecidas de me relacionar nele e com ele. Ainda que minha opo tenha sido feita, que me manifeste favoravelmente s

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  • leituras propostas e at diga concordar com muitas das lgicas estabelecidas por um determinado discurso, inevitvel no perceber que o exerccio de sobrevivncia neste mundo, a partir desta perspectiva de anlise, com tantas incertezas postuladas, provoca inmeros conflitos.

    Mesmo porque, o exerccio de ver de outro modo no conduz - como se poderia esperar - ao exerccio de viver de outro modo, repelindo as j to contumazes e constitudas formas de ver, representar, interpretar, ideologizar o mundo e as coisas que nele esto. Muitas amarras foram feitas atravs de ns e por ns a fim de que se perpetuassem algumas certezas e que se mantivessem alguns princpios. Ver de outro modo poderia significar, no mximo, talvez, perceber algumas armadilhas que ns mesmos nos armamos, quantificar o grau de disciplinamento que nos impomos, evitar algumas violncias, minar alguns controles, ensaiar outros arranjos.

    Nada de imposies, uma possibilidade entre outras; certamente que no mais verdadeira que as outras, mas talvez mais pertinente, mais eficaz, mais produtiva ... E isso que importa: no produzir algo de verdadeiro, no sentido de definitivo, absoluto, peremptrio, mas dar 'peas' ou 'bocados', verdades modestas, novos relances, estranhos, que no implicam em silncio de estupefao ou em burburinho de comentrios, mas que sejam utilizveis por outros como as chaves de uma caixa de ferramentas (Ewald apud VeigaNeto, 1996, p. 31).

    Por isto, talvez seja preciso abandonar as muitas esperanas que acreditvamos serem realizveis, ou nos permitirmos, no limite, perceber os infinitos controles.

    O(s) controle(s)

    Ao sistematizarmos as coisas - qualificando-as, descrevendo-as, nomeando-as, ordenado-as - limitamos as possibilidades de construo de outras diferentes (ou "novas" porque at ento desconhecidas) identidades. Regrar significa tambm regular: permitir (ou no) determinados procedimentos.

    Talvez a atitude moderna mais convecionalmente aceita e utilizada justamente aquela de "descobrir", "conhecer", "revelar" o novo, dando a este "novo" (porque ainda no conhecido) todos os atributos e as qualificaes necessrias a uma sua futura categorizao/regulao. No esquecendo, porm, que ao diferenciarmos o "novo", o esquadrinhamos, o colocamos naquele nico lugar a ser ocupado e a partir do qual o conhecemos e, portanto, estabelecemos com ele algumas relaes.

    Os modos de conhecermos e de nos relacionarmos com o "objeto" do nosso conhecimento no so nicos e nem sempre foram os mesmos. Foucault ( l995a) demonstra como no plano das linguagens, da economia e da vida as

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  • analogias e similitudes caracterizavam o(s) outro(s) na poca - por ele chamada de - clssica. Na poca moderna, ao contrrio, a diferenciao passa a ser a nica capaz de reunir tantos diversos e "novos" num mesmo cenrio explicativo.

    Tambm as relaes interpessoais se diferenciam ao longo dos sculos. Se entre reis e sditos atos de obedincia, castigo e violncias eram os mais comuns, com o crescimento da populao mundial, novas tecnologias de controle e medio populacional9 tiveram que ser adotados para manterem docilizados e governados (sob controle) tantos corpos e mentes.

    Se o poder-fora fsica (ou violncia) tomou-se menos exemplar - ou menos produtivo, porque sempre mais se rebelavam e se insurgiam contra ele -, deveria ser menos utilizado. Outras formas de exerccio de poder - "com procedimentos especficos, instrumentos totalmente novos e aparelhos bastante diferentes" (Foucault, 1989, p. 187), absolutamente incompatveis com as relaes de soberania - foram sendo colocados em prtica a fim de manter sob controle as indesejveis e crescentes massas indisciplinadas 10.

    Diferentemente da concepo de poder exercido por algum ou algo contra outro(s), numa relao de fora (violenta) em que o mais "forte" vence o mais "fraco", Foucault (1989) prope uma outra forma de perceber este poder que deixa de ser simples violncia, para ser um jogo de relaes, baseado no saber (conhecimento sistematizado, difuso, adquirido) e que funciona como uma "maquinaria, (00') uma mquina social que no est situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. No um objeto, uma coisa, mas uma relao" (Machado, 1989, p. XIV).

    Uma relao de violncia age sobre um corpo, sobre as coisas. Ela fora, ela submete, ela quebra, ela destri; ela fecha todas as possibilidades; no tem, portanto, junto de si, outro plo seno aquele da passividade; e, se encontra uma resistncia, a nica escolha tentar reduzi-la. Uma relao de poder, ao contrrio, se articula sobre dois elementos que lhe so indispensveis por ser exatamente uma relao de poder: que o "outro" (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido at o fim como o sujeito da ao; e que se abra, diante da relao de poder, todo um campo de respostas, reaes, efeitos, invenes possveis (Foucault, 1995b, p. 243).

    Segundo Foucault (1989), em uma sociedade como a nossa o exerccio do poder capaz de produzir discursos de verdade com efeitos muito produtivos:

    (00') existem relaes de poder mltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relaes de poder no podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produo, uma acumulao, uma circulao e um funcionamento do discurso. No h possibilidade de exerccio do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla exigncia. Somos submetidos pelo poder produo da verdade e s podemos exerc-lo atravs da produo da verdade (pp. 179-180).

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  • Ao produzirmos saberesll organizamos um sem nmero de prticas que nos condicionam (disciplinam) a nos relacionarmos com ns mesmos e com os outros a partir destes conhecimentos produzidos e reconhecidos como verdadeiros. Atravs deles exercemos poder (relacional), sujeitamos o outro, impomos as nossas vontades/verdades 12. "Tudo isto significa que o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, obrigado a formar, organizar e pr em circulao um saber, ou melhor, aparelhos de saber que no so construes ideolgicas". (Idem, p. 186)

    A produtividade deste poder, por sua vez, est relacionada capacidade do mesmo em inter-relacionar posies diferentes, economizando os "custos" de uma imposio violenta que explicitamente domina, viola, obriga. Ele produz diferentes arranjos (subjetivaes) na medida em que exercido, na medida em que se reage a ele, se resiste, tenta-se fazer valer um outro saber, uma outra verdade, criam-se novas foras, que impem e sujeitam em funo de outras argumentaes. A produo destas "reaes" - aes sobre aes, tais como "incitar, induzir, desviar, facilitar ou dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provveL" (Deleuze, 1998, p. 120) - que qualifica o poder como produtivo, uma produtividade econmica13 que faz inventar outras estratgias, que o potencializam, ao engendrar "saberes que o justificam e encobrem" (Veiga-Neto, 1999, p. 13).

    o que faz que o poder se mantenha, seja aceito, essencialmente que no percebido somente como potncia que diz no, mas sim que ( ... ) produz coisas, induz prazer, forma saber, produz discursos; tem-se que consider-lo como uma rede produtiva que passa atravs de todo o corpo social ao invs de uma instncia negativa que tem por funo reprimir (Foucault, 1995c, p. 137, trad. minha).

    A verticalidade do poder "soberano" vai, aos poucos, cedendo lugar horizontalidade do poder "disciplinar": um poder ligado aos saberes cada vez mais difusos no mundo, que produzir corpos dceis que reagiro ou resistiro ao poder sempre em relao a um outro exerccio de poder, onde a fora fsica no se far mais to necessria, por no ser a nica forma de imposio do desejo de algum ou de sujeio do outro. Pois, necessrio "( ... ) encontrar um mecanismo de poder tal que ao mesmo tempo [controle] as coisas e as pessoas at os seus mnimos detalhes, no [seja] to custoso nem essencialmente predatrio, que se [exera] no mesmo sentido do processo econmico" (Foucault, s/d, p. 58, trad. minha).

    Ao dispensar essa relao custosa e violenta at ento empreendida no exerccio do poder (soberano), a disciplina obtm efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes.

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  • o momento histrico das disciplinas o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa no unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeio, mas a formao de uma relao que no mesmo mecanismo o toma tanto mais obediente quanto mais til, e inversamente. Forma-se, ento, uma poltica das coeres que so um trabalho sobre o corpo, uma manipulao calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompe (Foucault, 1997c, p. 127). Estas novas tcnicas so por sua vez muito mais eficazes e muito menos custosas (menos custosas economicamente, menos aleatrias em seus resultados, menos suscetveis de escapatria ou de resistncia) que as tcnicas utilizadas at ento e que se apoiavam em uma mescla de tolerncias, mais ou menos foradas (desde o privilgio reconhecido at a criminalidade endmica) e de ostentao custosa (intervenes estrepitosas e descontnuas do poder cuja forma mais violenta era o castigo "exemplar" j que excepcional) (Foucault, 1995c, p. 137).

    A disciplina distribui os indivduos no espao, quadricula-os ("cada indivduo no seu lugar, e em cada lugar um indivduo", idem, p. 131); localiza-os funcionalmente (os espaos devem ser teis para permitirem maior rapidez, habilidade, vigor e constncia); e posiciona-os na srie, na linha, na coluna ou na fila. Para conseguir ter um resultado satisfatrio, utiliza recursos para o "bom adestramento", tais como a vigilncia hierrquica, a sano normalizadora (ou seja, a penalidade) e o exame.

    Disciplina , no fundo, o mecanismo de poder pelo qual conseguimos controlar no corpo social at os elementos mais tnues pelos quais chegamos a tocar os prprios tomos sociais, isto , os indivduos. Tcnicas de individualizao do poder. Como vigiar algum, como controlar sua conduta, seu comportamento, suas atitudes, como intensificar seu rendimento, como multiplicar suas capacidades, como coloc-lo no lugar onde ser mais til ( ... ) (Foucault, s/d, pp. 58-59, trad. minha).

    Portanto, a disciplina um mecanismo, um dispositivo funcional, uma tcnica que produz indivduos teis, no uma instituio nem um aparelho, ela substitui "o velho princpio 'retirada-violncia' que regia a economia do poder pelo princpio 'suavidade-produo-Iucro'" (Foucault, 1997c, p. 192). A disciplina fixa, imobiliza, regulamenta, "neutraliza os efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistncia ao poder que quer domin-la: agitaes, revoltas, organizaes espontneas, conluios ( ... )" (idem, p. 193). "As disciplinas so o conjunto das minsculas invenes tcnicas que permitiram fazer crescer a extenso til das multiplicidades fazendo diminuir os inconvenientes do poder que, justamente para tom-las teis, deve reg-las." (Idem ibidem)

    A disciplina produz uma forma diferente de exercer o controle (ou assujeitar o outro), pois atravs dela possvel "observar, comparar e controlar os rendi-

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  • mentos, as presenas e as ausncias dos monocromticos sujeitos-pontos: modelo panptico14 de ver o todo permanentemente. Aqui se individualiza globalizando e se globaliza individualizando" (De Marinis, 1998, p. 32, trad. minha). O olhar disciplinador est sempre atento, olhando para cima e para baixo, intervindo continuamente, perseverante, conseqente, quotidiano e sistemtico. , acima de tudo, vigilante.

    O aparelho disciplinar perfeito, segundo Foucault (1997c), aquele que capaz de ver todos e tudo com um nico olhar. Ao olhar, vigia e "a vigilncia toma-se um operador econmico decisivo, na medida em que ao mesmo tempo uma pea interna no aparelho de produo e uma engrenagem especfica do poder disciplinar" (Foucault, 1997c, p. 157). "O exerccio da disciplina supe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as tcnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder e, onde, em troca, os meios de coero tomem claramente visveis aqueles sobre quem se aplicam" (Idem, p. 153).

    A vigilncia um mecanismo de coero "leve", permanente e que, ao se internalizar, nos impem a disciplinadamente agirmos segundo aquilo que cremos (ou que nos fazem crer) estar dentro da norma. No precisamos mais do "olhar do rei" e de sua fora-fsica para que violentamente leis e obrigaes nos sejam impostos, basta sabermos que nos vigiamos recproca e continuamente para impedirmos a manifestao indesejada de atos obscenos, anormais, indisciplinados, ilegais, etc ..

    A vigilncia hierarquizada, contnua e funcional no , sem dvida, uma das grandes "invenes" tcnicas do sculo XVIII, mas sua insidiosa extenso deve sua importncia s novas mecnicas de poder que traz consigo. O poder disciplinar, graas a ela, torna-se um sistema "integrado", ligado do interior economia e aos fins do dispositivo onde exercido. Organiza-se assim como um poder mltiplo, automtico e annimo; pois, se verdade que a vigilncia repousa sobre indivduos, seu funcionamento de uma rede de relaes de alto a baixo, mas tambm at um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede "sustenta" o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilncia hierarquizada das disciplinas no se detm como uma coisa, no se transfere como uma propriedade; funciona como uma mquina (Foucault. 1997c, p. 158).

    Esta mquina estabelece relaes diferentes de cada um para consigo mesmo: a contnua vigilncia produz uma disciplina-mecanismo que "um dispositivo funcional que deve melhorar o exerccio do poder tomando-o mais rpido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coeres sutis para uma sociedade que est por vir" (idem, p. 184).

    No poder disciplinar, o exerccio de governo - talvez o grande problema deste "novo" mundo, cuja populao cresce rapidamente15, os limites territoriais

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  • precisam ser continuamente bem demarcados e reconhecidos, os recursos econmicos comeam a se fazer sempre mais escassos e os dispositivos de segurana precisam se "modernizar" (ou "humanizar") para poderem fazer frente s constantes reaes aos atos violentos - se desloca do indivduo nico, soberano e detentor de todos os privilgios - inclusive e, sobretudo, aquele de comandar os outros segundo sua prpria vontade e desejos - para se alargar (responsabilizando mais pessoas) e "conseguir o mximo resultado a partir de uma aplicao mnima de poder" (Goldstein apud Veiga-Neto, sld, p. 2).

    Em suma, a passagem de uma arte de governo para uma cincia poltica, de um regime dominado pela estrutura de soberania para um regime dominado pelas tcnicas de governo, ocorre no sculo XVIII em tomo da populao e, por conseguinte, em tomo do nascimento da economia poltica (Foucault, 1989, p. 290).

    Este outro jeito de se exercer o poder - circular, relacional - ou "esta forma bastante especfica e complexa de poder, que tem por alvo a populao, por forma principal de saber a economia poltica e por instrumentos tcnicos essenciais os dispositivos de segurana" (Foucault, 1989, pp. 291-292) - entre outras duas acepes referidas por Foucault neste mesmo textol6- foi por este autor chamada de "governamentalidade":

    A govemamentalidade ( ... ) se tomou o terreno comum de todas as nossas formas modernas de racionalidade poltica, na medida em que elas constrem as tarefas dos governantes em termos de superviso e maximizao calculadas das foras da sociedade. A governamentalidade o 'conjunto formado pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, os clculos e as tticas, que permitem o exerccio dessa forma muito especifica, embora complexa, de poder e que tem como seu alvo a populao' (Rose, 1998, pp. 35-36).

    Ao descrever, analisar, calcular, relatar ou organizar dados relativos a ns mesmos, estamos nos governando, impondo a ns mesmos nossos limites e possibilidades dentro desta circunscrita teia, nos localizando nos seus emaranhados, nos disciplinando, determinando a ns mesmos nossas posies e nossas pseudo-liberdades17

    Esta contnua docilidade se sustenta em alguns dispositivos ou tecnologias de exerccio de poder, tais como a constante disciplina, o exame, o controle dos tempos, a organizao, a ordem, a hierarquia:

    A obedincia incondicional, o exame ininterrupto e a confisso exaustiva foram, portanto, um conjunto onde cada elemento implica os dois outros; a manifestao verbal da verdade que se esconde no fundo de si mesma aparece como uma pea indispensvel ao governo dos homens uns pelos outros ( ... ) (Foucault, 1997b, p. 105).

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  • A submisso do corpo pelo controle das idias, com o poder-saber regulando, regulamentando e disciplinando sujeitos sempre mais assujeitados comeou a entrar em discusso e causar incmodos com o vigor da crescente descrena nas verdades absolutas, sejam elas cientificizadas ou no. Se por um lado a globalizao massificou hbitos, culturas, povos e lnguas, por outro lado fez perceber que somos muitos e, sobretudo, diferentes. A tentada universalizao de nossas sociedades, culturas, economias e compreenses de mundo acabaram produzindo mais conflitos do que se poderia esperar.

    A populao mundial continuou a crescer, a escassez de alimentos e as "consagradas" formas de manuteno do capital - com o constante aumento da pobreza, da excluso, do desemprego, da queda do consumo, da falncia da produo primria, da violncia18- esto sempre mais em descrdito, os ndices de qualidade de vida so desiguais nas vrias regies da Terra e a acumulao/produo de bens e servios de "ltima gerao" no esto mais produzindo as to sonhadas igualdades, justias e fraternidades universais19 Alm disto, a perda progressiva do poder aquisitivo que reduz sempre mais o consumo coloca em questo a prpria manuteno do capitalismo neo-liberal globalizado: quanto mais a populao empobrece, mais intil o investimento em pesquisa e produo de produtos de "ltima gerao". E, se o capitalismo no consegue "seduzir" as massas vendendo seus "belos" e "caros" produtos20, perde aquela sua eficiente e eficaz funo at ento exercida: o controle atravs do consumo indiscriminado. Pois, margem deste consumo, esto todos aqueles milhes de habitantes no capturados por este hegemnico sistema econmico vigente.

    Deleuze (1998), apropriando-se do conceito de "controle" desenvolvido por Burroughs, escreve-nos que as "sociedades disciplinares" - pelo acima exposto, mas tambm pelo tipo de desenvolvimento tecnolgico e industrial que tem caracterizado nossa sociedade de consumo - esto sendo substitudas pelas "sociedades de controle". Mais econmicas, permitem que o controle seja contnuo e que se faa abertamente21, e que a comunicao seja instantnea. O controle exercido por "modulao[:] uma moldagem auto-deformante que muda continuamente a cada instante, ou ( ... ) uma peneira cujas malhas mudam de um ponto a outro" (idem, p. 221). Na sociedade de controle nunca se termina nada: a formao permanente, a avaliao permanente, a visibilidade permanente, o horrio de trabalho permanente, a progressividade da escala de cargos e salrios permanente22 Tudo gil o suficiente para, to logo quanto possvel, ser superado.

    Foucault (1997), ao escrever sobre as disciplinas, j referia que o controle se d: pelo horrio (atravs de trs grandes processos: estabelecer as cesuras, obrigar as ocupaes determinadas, regulamentar os ciclos de repetio); pela elaborao temporal do ato ("o ato decomposto em seus elementos; definida a posio do corpo, dos membros, das articulaes, para cada movimento,

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  • uma detenninada direo, uma amplitude, uma durao; prescrita sua ordem de sucesso. O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder", p. 138); pela correlao do corpo com os gestos ("imposio da melhor relao entre um gesto e a atitude global do corpo, que sua condio de eficcia e de rapidez ( ... ) [pois] um corpo disciplinado a base de um gesto eficiente", pp. 138-139); e pela articulao corpo-objeto ("a disciplina define cada uma das relaes que o corpo deve manter com o objeto que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro", p. 139).

    importante salientar que esta rede de observao permanente sempre existiu - seja na "sociedade de soberania" (onde o poder se exercia pela ao violenta, normalmente em praa pblica, e o suplcio era o melhor dos exemplos), seja na "sociedade disciplinar" (onde o poder-saber se exerce pela vigilncia que seleciona, divide, segmenta, classifica, ordena, categoriza, hierarquiza, normaliza e centraliza) -, mas na "sociedade de controle" que ela se toma mais eficiente e mais eficaz, com um maior nmero de dispositivos ou instrumentos que permitem controlar, por um tempo infinito e ilimitado, o maior nmero de indivduos. Mudou a lgica de exerccio dos poderes: a violncia ainda existe, embora menos freqente e mais reprovvel; o podersaber continua disciplinando; o controle se instrumentalizou com outros dispositivos tecnolgicos. Da fora fsica cmera invisvel, continuamos permanentemente violentados-disciplinados-controlados.

    Controlados, descrentes, anestesiados23 talvez, dispomos de poucos mecanismos para nos rebelarmos contra estas contnuas formas de opresso, verdades sempre mais autnticas que pretendem nos dizer o que somos, para onde vamos, o que devemos querer, quantos somos, como somos. Objetivaes que nos sujeitam. Conflitos que nos limitam.

    Fao minha a preocupao de Rose (1998) quando diz que se preocupa "com os novos regimes de verdade instalados pelo conhecimento da subjetividade, as novas formas de dizer coisas plausveis sobre outros seres humanos e sobre ns mesmos, o novo licenciamento daqueles que podem falar a verdade e daqueles que esto sujeitos a ela, as novas formas de pensar o que pode ser feito a eles e a ns" (p. 34).

    Talvez no limite da descrena, da intranqilidade, da abundante produo de significados, no exerccio dos delrios possveis e daqueles impossveis, reste-nos apenas "uma 'ontologia fraca' como nica possibilidade de sair da metafsica - pelo caminho de uma aceitao-convalescncia-distoro que no tem mais nada do ultrapassamento crtico caracterstico da modernidade. Pode ser que nisso resida, para o pensamento ps-moderno, a chance de um novo, francamente novo, comeo" (Vattimo, 1996, p. 190).

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    Notas

    1. Embora faa referncias ao Foucault "arqueolgico" (1995) de As palavras e as coisas, o uso que aqui fao da Arqueologia quase ilustrativo. Espero que no decorrer do texto se entenda o propsito deste ttulo em querer mostrar, primeiro, a passagem de uma anlise arqueolgica dos discursos (de Foucault) anlise das sociedades de controle proposta por Deleuze (1998); segundo, a falta de lugar (nem entre palavras, nem entre coisas, nem entre ambas) para o exerccio do controle, tal como o entende Deleuze (idem), mas tambm alargando seu sentido, pensando o controle para alm das inovaes tecnolgicas, dos discursos, das sociabilizaes, das economias, das polticas, das prticas culturais e miditicas, entre outras possibilidades que sequer me dou conta agora.

    2. Ver "O ps-moderno" de Lyotard (1988).

    3. Uso aqui o termo "desconstruo" tal como o usei na minha Proposta de Dissertao de Mestrado, defendida junto ao PPGEDU/UFRGS: "Desconstruir (que no significa destruir), embora no esteja formalmente dicionarizado em lngua portuguesa, o ato de des-construir, onde des (derivado do prefixo latino 'de') indica, entre outras coisas, separao, distanciamento, transformao ( ... ). Assim, para realizar as desconstrues ( ... ) que proponho, ( ... ) preciso transformar o que est construdo , separando suas partes e analisando-as aos pedaos para, de um outro modo, produzir, fabricar, fazer, edificar" (Rocha, 1999, p. 4).

    4. Dados da Organizao das Naes Unidas (ONU), em boletim oficial divulgado amplamente pela imprensa nestes dias, mostram que mais da metade da populao mundial hoje vive com menos de US$ 2,00 (dois dlares) ao dia. E, destes, metade vive com apenas US$ 1,00 (um dlar) ao dia.

    5. Kroef (1999, p. 1) justifica que "Guatarri acrescenta o sufixo 'stico' a 'capitalista' por lhe parecer necessrio criar um termo que possa designar no apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas tambm setores do 'terceiro mundo' ou do capitalismo 'perifrico', assim como as economias ditas socialistas dos pases do leste, que vivem numa espcie de dependncia e contradependncia do capitalismo. Tais sociedades, segundo Guatarri, em nada se diferenciam do ponto de vista do modo de produo de subjetividade."

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  • 6. "Comemoramos" (intranqilos), nestes dias, a chegada do nosso 6.000.000.000 cidado mundial em meio aos escombros da reconstruda ex-Ioguslvia, nos simblicos braos do Secretrio Geral da ONU (Organizaes das Naes Unidas), apesar de todas as suspeitas que temos do que isto possa infelizmente representar, em funo do contnuo crescimento da populao mundial e as implcitas dificuldades disto decorrentes.

    7. Prticas discursivas segundo Foucault (1997a) so atos de linguagem que se repetem em tempos e espaos determinados, carregados de "verdades" (ou que respondem a vontades de verdade), ditos/escritos/manifestados por um sujeito (algum que ocupa uma posio vazia, que fala de algum lugar, revestido de alguma funo social) e que a partir deles se exercer uma produtividade (exerccio de poder sobre outros que se assujeitam ao sujeito do enunciado).

    8. Violncia, do latim "violentia", significa "constrangimento fsico ou moral; uso da fora, coao" (Ferreira, s/d, p. 1463), ou ainda: "coao fsica ou moral exercida por um sujeito sobre um outro a fim de induzi-lo a fazer aes que talvez no teria feito" (Zingarelli, 1996, p. 1968, trad. minha). A violncia, enfim, uma punio corporal: marcante para a vtima, ostentoso aos outros, constatado por todos, um triunfo. O excesso das violncias produz o triunfo, a glria: quanto mais visvel, melhor, pois a economia do poder (soberano) se d pelo excesso da violncia.

    9. Como por exemplo, os estudos estatsticos.

    10. Foucault (1999; 1988) faz referncia ao deslocamento do poder exercido pelo soberano (que tem o direito sobre a vida e a morte do sdito, que deixa viver ou faz morrer) para o poder exercido na sociedade disciplinar (um direito sobre a vida, que administra os corpos e gere a vida). A este poder para a vida (ao contrrio daquele "potncia da morte"), Foucault denomina de "biopoder", um poder que, atravs de uma tecnologia disciplinar do corpo, aumenta a sua fora til atravs do exerccio, do treinamento, tomando o "corpo-mquina" individual dotado de capacidades, de docilidades e de utilidades. Mas, tambm um poder que se exerce atravs de uma outra tecnologia que se sobrepem a esta primeira, que a tecnologia regulamentadora da vida, centrada na vida, que agrupa os efeitos de massa prprios de uma populao, que procura controlar a srie, que visa o equilbrio global, a segurana do conjunto. Esta segunda tecnologia de exerccio do biopoder regulamenta o corpo social, os processos biosociolgicos e se apoia no "corpo-espcie" ("no corpo transpassado pela mecnica do ser vivo e como suporte dos processos biolgicos: a proliferao, os nascimentos e a mortalidade, o nvel de sade, a durao da vida, a longevidade, com todas as condies que podem faz-los variar; tais processos so assumidos mediante toda uma srie de intervenes e controles reguladores: uma bio-poltica da populao", 1988, p. 131, grifo do autor).

    11. Saber, para Foucault (1997a), um "conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prtica discursiva e indispensveis constituio de uma cincia, apesar de no se destinarem necessariamente a lhe dar lugar ( ... ). Um saber aquilo de que podemos falar em uma prtica discursiva que se encontra assim especificada: o domnio constitudo pelos diferentes objetos que iro adquirir ou no um status cientfico ( ... ); um saber , tambm, o espao em que o sujeito pode tomar posio para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso ( ... ); um

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  • saber tambm o campo de coordenao e subordinao dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam, se transformam ( ... ); finalmente, um saber se define por possibilidades de utilizao e de apropriao oferecidas pelo discurso ( ... )" (pp. 206-207).

    12. importante observar, tal como salienta Machado (1989, p. XIV) que: "( ... ) esse carter relacional do poder implica que as prprias lutas contra o seu exerccio no possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada est isento de poder. Qualquer luta sempre resistncia dentro da prpria rede do poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ningum pode escapar: ele est sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relaes de foras. E como onde h poder h resistncia, no existe propriamente o lugar de resistncia, mas pontos mveis e transitrios que tambm se distribuem por toda a estrutura social."

    13. Entendo "economia" como a utilizao mxima das fontes que se dispem.

    14. Sobre o panptico, ver Bentham (1989), Foucault (1997c) e Rocha (1999).

    15. Para se ter uma idia deste rpido crescimento demogrfico, segundo dados da Organizao das Naes Unidas (ONU), a populao mundial em 1650 era de 500 milhes de habitantes, em 1950 passamos a 2,5 bilhes, em 1970 chegamos a 4 bilhes e em 1999 somos 6 bilhes. Calcula-se tambm que se continuarmos crescendo com os mesmos ndices dos ltimos anos, j em 2015 seremos 10 bilhes de habitantes no mundo.

    16. Foucault (1989, pp. 291-292) escreveu: "com essa palavra quero dizer trs coisas": (alm do acima citado) "a tendncia que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, preeminncia deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros - soberania, disciplina, etc. - e levou ao desenvolvimento de uma srie de aparelhos especficos de governo e de um conjunto de saberes; o resultado de processo atravs do qual o Estado de justia da Idade Mdia, que se tomou nos sculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governarnentalizado".

    17. Uso o adjetivo "pseudo" no em contraposio a uma possvel "verdadeira" liberdade. Justamente por no acreditar que existam liberdades verdadeiras, no lIcredito tambm nas falsas. Uso, ento, este adjetivo somente para enfatizar que nossas to proclamadas liberdades e autonomias esto bem circunscritas, limitadas nas tantas informaes circulantes e em tantos saberes que definem e distinguem certos e errados, justos e injustos, normais e anormais, entre tantas outras composies binrias, tpicas da nossa lgica cartesiana moderna.

    18. interessante observar como a imprensa, em geral, enfatiza o contnuo crescimento da violncia e a necessidade de aes mais duras (para no dizer mais violentas) para coibir os outros tantos atos "violentos". Ao nos mostrar continuamente o processo de "vitimizao" a que somos submetidos todos os dias - por aqueles que no respeitam a propriedade privada, o livre direito (daqueles poucos que o tm) de ir e vir ou de poder comprar e desfrutar de bens e servios sempre mais caros e impossveis de serem consumidos por mais da metade da populao mundial -, nos incita a nos rebelarmos contra aqueles que no conseguem viver "disciplinadamente" neste modelo scio-econmico-cultural. Conseqncias disto so as manifestaes

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  • extremadas e "a-histricas" de linchamento em praa pblica, defesa da pena de morte, defesa daqueles que executam (para se "defenderem") "a sangue frio" ladres e bandidos, enfim, atrocidades (ou suplcios) tpicos de um tempo em que a violncia indiscriminada era o exerccio de poder mais comum e mais usado.

    19. Bons exemplos deste desequilbrio e constante sofrimento mundiais so as contnuas guerras e guerrilhas regionais, ora buscando a diviso ou a libertao territorial em relao a uma outra nao/rea, ora so as questes tnicas que atuam de contra-ponto, ora so as questes econmicas, ora so motivos sociais "preocupantes", tais como o narcotrfico, o trfico de bebs, as correntes imigratrias do chamado "terceiro" mundo para o primeiro, o destino do lixo nuclear, entre tantos outros. Interessante artigo foi recentemente publicado por Ottone (1999), questionando "o falso progresso" e as inevitveis conseqncias do capitalismo avanado que produz muita comida para os povos que j esto no limite do seu excesso de peso, com doenas cardiovasculares graves e contnuo desperdiar de alimentos (em comparao aos que nada tm para comer e morrem de fome); que produz tantos bens de consumo durveis (tais como automveis, eletrodomsticos, telefones celulares) que sequer tem-se espao fsico para conviver com a enorme variedade deles sem que causem tantos transtornos; que produz servios, turismo e viagens sempre menos desejados, pois cada vez mais se procuram lugares paradisacos, isolados e distantes para serem consumidos; que produz desenvolvimento que deveria produzir emprego, apesar do constante aumento do desemprego mundial.

    20. Vide, por exemplo, a to publicizada viagem Rio de Janeiro-Paris em apenas quatro horas a bordo do mais rpido e moderno avio do mundo (o supersnico "Concorde"). O programa no decolou, por serem poucos os passageiros "habilitados" a pagarem a luxuosa cifra ofertada. Este apenas um exemplo que, apesar de termos produzido avies supersnicos, somente uma pequena parcela de passageiros (ultra)milionrios pode atualmente desfrutar deste conforto (refiro-me queles que podem usufruir da rota Nova York-Paris, nica ainda hoje em operao).

    21. Continuamente se publicizam e se informam as pessoas sobre os "novos" modos de manter sob controle os espaos pblicos e privados: cmeras que filmam dia e noite; raios "x" que fazem ver sob as vestes todos os objetos desejveis; cartes magnticos cujas senhas podem permitir ou no o livre acesso; binas que informam, antes mesmo de se atender o telefone, quem est chamando; os telefones celulares que permitem encontrar qualquer um em qualquer lugar; as redes de acesso TV por assinatura (que controlam quem v o que, quando e porqu); os telefones com cmeras que permitem tambm "ver" ao invs de s escutar e falar; a internet e suas infinitas possibilidades de controle: microcmeras, redes de acesso, senhas de acesso, contadores de acesso s homepages, etc.; entre inmeras outras tecnologias continuamente criadas para permitirem o "livre" acesso s informaes pessoais de cada um de ns.

    22. Deleuze (1998) traa paralelos entre a sociedade disciplinar - expressa no modo de produo das fbricas (manufateureiras) com horrios de trabalho delimitados, funes delimitadas, salrios e condies de trabalho visveis - e a sociedade de controle - onde "a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpivel como s emoluo, excelente motivao que contrape os indivduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo" (p. 221).

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  • 23. Em detenninada ocasio, Foucault (1982) foi questionado pelo "efeito anestesiante" que suas teses provocavam naqueles que percebiam nada poder fazer diante de tantas dificuldades em sair da "lgica implacvel" proposta pelo mesmo. A isto o autor respondeu, entre outras coisas: "A crtica no tem porque ser a premissa de um raciocnio que terminaria dizendo: isto o que voc no deve fazer. Deve ser um instrumento para aqueles que lutam, resistem, e j no suportam o que existe. Deve ser utilizada nos processos de conflitos, enfrentamentos, ( ... ). No tem porque impor-se lei. No uma etapa de uma programao. um desafio em relao ao que existe" (p. 76, trad. minha).

    Cristianne Maria Famer Rocha mestranda do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Endereo para correspondncia:

    Rua Irmo Jos Oto, 170/904 90035-060 - Porto Alegre - RS E-mail: [email protected]

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