Entrevista com Fernando Lugo

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de 17 a 23 de maio de 2012 14 américa latina 15 Nilton Viana e Marcelo Netto Rodrigues de Assunção (Paraguai) EM UMA DAS propagandas da recém- lançada TV Pública Paraguay – Jajoto- pa, um lutador de Jiu-Jitsu, uma “pa- tricinha” com piercings e um indígena reforçam o orgulho de se falar guarani. No comercial seguinte, uma mulher pe- de que os políticos liberem mais recur- sos para que os desaparecimentos do seu esposo e de outras 500 militantes durante a ditadura militar (1954-1989) sejam esclarecidos. Por m, surge uma outra vinheta sobre um programa cha- mado “35”, que abordará os anos em que Stroessner cou no poder. Só isso já seria suciente para perce- ber que desde 2008 – quando o até en- tão bispo católico Fernando Lugo assu- miu a presidência após derrotar o Par- tido Colorado, no poder havia 61 anos – o vizinho com quem talvez tenhamos mais dívidas históricas vive um mo- mento novo. Nesta entrevista exclusiva ao Bra- sil de Fato, Lugo – hoje já dispensado completamente de suas funções ecle- siais, mas nem por isso distante dos princípios da Teologia da Libertação – explica, entre outras coisas, por que não seguiu os passos de Chávez, Cor- rea e Evo e alterou a Constituição para que pudesse se reeleger, comenta os li- mites institucionais aos quais está atre- lado e fala sobre o câncer que acaba de enfrentar. Apesar de Lugo não citar nominal- mente os seis candidatos de esquer- da que pleiteiam ser seu candidato nas eleições em 2013, vale ressaltar que du- as mulheres encontram-se na disputa. Brasil de Fato – Presidente, agradecemos a disposição de falar com o Brasil de Fato, que é, como o senhor sabe, atrelado às lutas do povo e dos movimentos sociais. Fernando Lugo – Com muito prazer. A alegria é minha também, de com par- tilhar ideais comuns. Vejo aqui na ca- pa de uma das edições do jornal que vo- cês me trouxeram de presente uma ma- téria sobre o Xingu. Isso me faz lembrar de alguns bispos do Brasil que traba- lharam muito pelas reivindicações dos mais desfavorecidos. O Xingu é um pa- radigma de luta. Muitos bispos como dom Pedro Casaldáliga e tantos outros da Teologia da Libertação... Por falar nisso presidente, quando da sua eleição no dia 20 de abril de 2008, o nosso jornal deu como manchete: “A Teologia da Libertação chega ao poder no Paraguai”. Após quase 4 anos de mandato, podemos dizer que os princípios dela continuam a inuenciar o governo Lugo? A Teologia da Libertação tem me aju- dado como pastor, sacerdote, bispo a ter uma visão diferente da sociedade. Uma visão com suas contradições, de- sequilíbrios, iniquidades. E, sobretu- do uma visão com o desao e o com- promisso de poder reverter essa situa- ção. Eu acredito que os princípios bási- cos desta Teologia, ao se partir da rea- lidade, nos têm levado, nesse governo, a elaborar 12 programas emblemáticos para, de alguma maneira, dar respos- ta à gente mais desfavorecida do país: as mulheres, crianças de rua, campone- ses, pessoas da terceira idade, desem- pregados, jovens, indígenas. Quer di- zer, eu creio que esses princípios, en- tre eles, o de não aceitar passivamente uma realidade que é escandalosa, estão muito presentes nesses programas. Es- se fosso que os bispos em Medellín [em 1968, na segunda Conferência Episco- pal da América Latina e do Caribe (Ce- lam)] diziam existir entre ricos e po- bres, entre pessoas que têm possibilida- de e acesso ao mercado, à tecnologia, ao estudo. Esse fosso digital que continua sendo ainda hoje escandaloso... De mo- do que eu creio que, sim, esses progra- mas são inspirados profundamente nos princípios da Teologia da Libertação. Como tem sido a posição da Igreja Católica em relação ao seu governo? A Igreja é muito institucional no Pa- raguai. Mas também há um conceito de Igreja enquanto “povo de Deus”. E es- ta Igreja é a que tem nos ajudado fun- damentalmente enquanto base popu- lar do eleitorado paraguaio que nos aju- dou a chegar à presidência em 2008. Além dela, dessa Igreja de Comunida- des de Base, existem agentes pastorais, líderes, inclusive alguns ministros, que sem se apartarem da fonte essencial dos seus sermões, nos têm ajudado na cons- cientização do povo. Inclusive até com alguns bispos, continuamos tendo con- versas bem uidas porque há uma coin- cidência muito grande. A Igreja sem- pre armou que não se pode identicar com nenhum projeto político temporal. O seu projeto é de longo prazo, mais de- nitivo. Mas em alguns aspectos coinci- de com projetos temporais, sociais so- bretudo. E nesse sentido, temos uma comunicação uida com pastores da Igreja Católica e não-católica também. Temos uma relação institucional im- portante. A Igreja continua desenvol- vendo no Paraguai uma atividade com- plementar em termos de educação, saú- de, que muitas vezes o Estado não tem a estrutura suciente para responder e- cientemente esses desaos. Falando de futuro, sabemos que a legislação paraguaia não permite a reeleição. O senhor já tem em mente o candidato que vai apoiar? O processo paraguaio tem etapas. Na primeira etapa não se pode fazer tudo. Eu creio que nessa etapa, de romper a partir de dentro, em um processo insti- tucional, eleitoral, já foi difícil ganhar de um partido como o Colorado. O pro- cesso eleitoral foi transparente, limpo, legal, com um respaldo popular mui- to forte. E o mais importante que apa- rece nas conversas com o povo, nas ba- ses populares, é a continuidade do pro- cesso. Um processo se iniciou em 2008. E agora temos que garanti-lo. Hoje, fa- lamos muito dos pers dos candidatos que podem garantir essa continuidade. Não de nomes especícos. Seguramente que com os meses, em outubro, novem- bro, dezembro, os cidadãos terão mais claro quem será essa pessoa. Por que o senhor não tentou reformar a Constituição para que a reeleição fosse possível, como zeram Chávez, Evo e Correa? Porque cremos que a constituição das leis tem um caráter universal. E a princípio, estávamos em desacordo em transformar a lei para favorecer uma pessoa. Mas se isso for um desejo popu- lar, uma resposta também institucional ao o que ocorre no país, eu acredito que hoje há um grande consenso que o pró- ximo presidente que assuma em 15 de agosto de 2013 em dois ou três meses de governo, sem nenhuma dúvida, terá que convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Porque a nossa Constitui- ção é de 1992. E em 20 anos muitas coi- sas mudam. Apesar de ser uma Cons- tituição que, tendo sido escrita após a ditadura no Paraguai, também alte- rou certos aspectos e possui um conte- údo mais democrático. Da mesma for- ma, em 20 anos, o país mudou em mui- tas coisas. O senhor soma-se aos já citados atuais presidentes progressistas da América Latina. Chávez, por sua vez, enfrentará as urnas novamente no nal do ano. De que forma o senhor pretende apoiar a candidatura dele na Venezuela? A América Latina, começando por al- guns países também da América Cen- tral e também Venezuela, Brasil, Bo- lívia, Equador, em um momento Chi- le, Uruguai, Argentina e Paraguai, esta- mos como que embarcados em um pri- meiro momento num grande projeto de integração. Em um segundo momen- to de poder dinamitar certas condições de nossos países que não têm um cresci- mento equitativo. A eleição que Chávez enfrentará em outubro será o povo ve- nezuelano que decidirá o futuro do seu país. Nós temos muito respeito com os processos nacionais. Mas, acredito que temos uma garantia, sem nenhuma dú- vida. Que todos esses governos progres- sistas da América Latina, mesmo que com uma diferença abismal, são me- lhores do que aqueles governos dita- toriais que impuseram a pobreza a vá- rias populações pelos países da Améri- ca Latina. Acreditamos que esses gover- nos progressistas, se não dão uma so- lução mágica porque não existe solu- ção mágica em termos da política, em termos sociais, dão respostas ecientes de transparência, com a participação ci- dadã, que é a maior garantia de fortale- cer e consolidar nossas democracias no continente. Como outros governantes progressistas, o senhor apresentou um diagnóstico de câncer. Como está a sua saúde? Como o senhor vê tamanha coincidência de um quadro clínico semelhante ao seu acontecendo com Chávez, Lula, Dilma, Cristina (…). Alencar [José Alencar]. Ele foi o pri- meiro que me visitou no Sírio Libanês. Um homem cheio de esperança. Eu o recordo com respeito e gratidão por su- as visitas de solidariedade no hospital. O mesmo com Lula. Um grande com- panheiro, um grande irmão. Eu acredi- to que o poder de ter superado o cân- cer nos leva a muitas reexões pesso- ais. Em primeiro lugar, como é possí- vel que esses presidentes progressistas sejam acometidos desse mal. Há mui- tos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados. Outros aniquilados com quimio e radioterapia. Cânceres da so- ciedade como o egoísmo de tanta gen- te. De uma sociedade preparada so- mente para favorecer a grupos muito pequenos de privilegiados. Os cânceres da pobreza, do analfabetismo. Os cân- ceres dos fossos digital e educacional. Quanto a minha saúde, ela vai muito bem. E ela é prova de que o câncer po- de ser vencido. Que existem possibili- dades reais de se vencer esses cânceres da sociedade. E que também atacaram pessoas individuais como Lula, Dilma, agora em Chávez, Alencar. É possível extirpar pela raiz esse mal que afeta a sociedade. Como o senhor vê a proposta da Alba, que ultrapassa os acordos entre governos, mas também envolve iniciativas de integração popular, entre as organizações populares de todo continente? Houve muitas tentativas de integra- ção da América Latina. Desde a Alian- ça para o Progresso, na década de 1950 e 1960, que nos enviaram de fora e do Norte, e o que se quis fazer com a Alca. Mas existem outras experiências muito mais genuínas, mais populares, que dão mais garantias de integração cidadã. É nessa linha que eu vejo a Alba. A Alba não foi elaborada num grande labora- tório, nasceu da experiência, da reali- dade, da necessidade de integração de cidadãos, artistas, trabalhadores, po- líticos, intelectuais, pequenos comer- ciantes. Tem o seu germe numa gran- de discussão regional e de pessoas e países que vivem em situações simila- res que necessitam da solidariedade in- ternacional. A proposta do Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos) seria uma forma eciente de se contrapor à OEA? Como disse, são muitas as tentativas. O Grupo do Rio, agora a Celac. Unasul, Mercosul. Celac é a experiência da in- clusão na integração. Na OEA, não es- tá Cuba. Na Celac, está. Para os chefes de Estado latino-americanos, a grande injustiça que se cometeu na OEA contra Cuba é como a pedra no sapato de mui- ta gente. Onde há posturas quase irra- cionais e muito rígidas. Por isso, Celac é uma experiência de integração inclu- siva especialmente pensando na repú- blica irmã de Cuba, que por mais de 50 anos segue suportando o seu bloqueio econômico irracional. De modo que a Celac pode ser um caminho. Não sei se suplantará totalmente o que é ou o que foi a OEA, que nasce em outro contexto, num outro tempo, e que cumpriu uma grande missão. Mas, hoje, por exemplo, até mesmo a Unasul, com uma estrutu- ra muito mais exível, também terá as suas comissões de scalização de elei- ções, que me parecem muito interes- santes dentro do contexto do que é in- tegração, de transparência nos proces- sos democráticos. Retomando a questão mais interna do Paraguai, quais foram as principais diculdades que o senhor encontrou para implementar as mudanças no governo após 60 anos de governo colorado? Diculdades pessoais em primeiro lugar. Chegamos ao governo, ao Palá- cio de López, como diziam muitos, sem ter a experiência de ser gerentes de um Estado como o Paraguai. Isso tem o seu pró e o seu contra. Chegamos sem pre- conceitos. Mas encontramos muitas di- culdades de caráter institucional. Ins- tituições importantes, como o ministé- rio da Educação e da Agricultura, des- truídas, nas quais as práticas de geren- ciamento do Estado estavam baseados no clientelismo, como se o saque fosse para ser repartido dentro de um grupo político determinado entre pessoas que compartilhavam os mesmos interes- ses. Romper com essa prática política é o mais difícil e paradigmático da gran- de tentativa que estamos fazendo den- tro do governo. A outra coisa que te- mos que reconhecer é que não se veem técnicos excelentes em todos os postos e lugares porque chegamos ao gover- no como “Aliança Patriótica para a Mu- dança”, que é uma gama de movimen- tos e partidos, com uma variedade in- teressantíssima que é uma riqueza, mas possui também muitas debilidades. Nos custa muito construir o consenso. Mui- tas vezes para um cargo determina- do, passamos horas inteiras discutin- do quem é a pessoa exata para esse pos- to exato e que pode ter uma linha deter- minada na tarefa do gerenciamento do Estado. Sem dúvida, ter um Parlamen- to adverso não tem sido fácil para a go- vernabilidade nesses três anos e meio. Se se revisa as atas do Parlamento sem- pre houve ameaças de processos políti- cos com o intuito de desestabilizar o go- verno. Se há um mérito nesse governo é o de haver sido aberto e inclusivo, de não perseguir ninguém. Recentemente, no Brasil, foram anunciados os membros da Comissão da Verdade. Vimos que na TV Pública Paraguay há uma propaganda pedindo mais recursos para se esclarecer os 500 casos de desaparecidos durante a ditadura do Stroessner. Como se dá esse processo aqui? Aqui também se constituiu uma Co- missão de Verdade e Justiça. A ditadura paraguaia caiu em 1989 e foi só no nos- so governo que encontramos as primei- ras tumbas de desaparecidos políticos. Passaram-se 19 anos. E temos que re- conhecer que é mérito de nossa vonta- de política. Aqui no Paraguai, ninguém se esquece que houve um plano Condor, de acordos entre os ditadores da época, de ter livre acesso e ação. Transforma- mos em museu um campo de concen- tração em Missones. Aqui mesmo há o Museu da Memória. Temos participado da busca de desaparecidos. Mas nem tu- do depende do poder público. Há mui- tos processos que dependem da Justiça paraguaia. E oxalá que sejam agilizados para que se encontrem os culpados para que sejam submetidos à justiça. A sua família também passou por perseguições... Sim, meu pai foi preso 20 anos du- rante a ditadura. Todos os meus irmãos e minha mãe passaram por cárceres do ditador Stroessner. Eu tenho um irmão que faleceu no exílio. Há muitas pesso- as que querem colocar um pano de es- quecimento, mas não podemos pensar em um futuro sem escavar a memória do passado. Não com ares de vingança, mas de justiça. A justiça deve ser a ba- se, um dos pilares da construção de um novo país. Como se dá a sua relação com os militares? Os militares no Paraguai talvez te- nham sido os que mais se adaptaram à democracia. E temos tentado que as Forças Armadas tenham um novo tipo de relacionamento com a sociedade ci- vil. Há pouco, tivemos uma experiência de emergência nacional e os militares se colocaram à disposição para o res- gate de pessoas. E tem um orçamento, depois de 20 anos, mais razoável para construir estradas, levar água potável, acolher desabrigados. E o Paraguai par- ticipa nas Nações Unidas de um progra- ma do Exército voltado para a paz. As- sim, hoje, temos essa tendência: de pre- parar militares não para a guerra, mas para a paz em um Estado democrático. Como as questões de gênero e indígena têm sido tratadas no seu governo? Temos uma excelente ministra da mulher, que como já disse, não coincide comigo em muitos aspectos, mas tem as mãos livres para fazer o que a loso- a de gênero hoje exige no mundo mo- derno. Com os indígenas, existem 519 comunidades indígenas no Paraguai. Sem dúvida que não podemos solucio- nar o problema de décadas da noite pa- ra o dia. Temos denúncias internacio- nais para que povos possam recuperar suas terras ancestrais. É certo que po- demos ver nas ruas de Assunção indí- genas, mas a solução também passa por uma mudança cultural. Como fazer com que povos que eram caçadores possam ser agricultores ou tenham outras ativi- dades dentro de suas comunidades. Como o senhor lidou durante o mandato com as ameaças de morte? As ameaças já haviam surgido quan- do eu ainda era bispo em San Pedro. Diziam que a experiência de dom Os- car Romero ia se repetir no Paraguai. Durante a campanha e quando inicia- mos o governo também apareceram as ameaças. São os profetas do Apocalip- se que somente anunciam destruição, sangue e morte. Que não faltam. Sem- pre estão aí presentes. A insegurança é um grande tema para todo o continen- te. Queremos melhores dias para o Pa- raguai. Algumas dessas ameaças não são sérias. Já outras, tem que se levar em conta, pois, acredito que o sistema de segurança das autoridades legitima- mente constituídas dependem do Exér- cito paraguaio. Eu, pelo menos, tenho a certeza da segurança oferecida porque são prossionais. Não é possível dizer que isso nunca vai ocorrer ou que po- de ocorrer. Estamos, de alguma manei- ra, nas mãos de uma instituição impor- tante para a vida nacional que é o Exér- cito paraguaio. Qual tem sido a posição do governo dos Estados Unidos? Assim que Obama foi eleito, gerou-se muita expectativa, ilusão. Ele mesmo anunciava que os Estados Unidos mu- daria a sua política em relação à Amé- rica Latina, o que é necessário. Nes- se sentido, os Estados Unidos têm ti- do uma política exterior em referência ao Paraguai mais respeitável do que as anteriores. É um governo que nas suas relações internacionais tanto faz falar com a Argentina, com o Brasil ou com outro país do continente. Penso que os Estados Unidos entenderam que no Pa- raguai há um governo que se faz res- peitar e que também respeita profun- damente as políticas exteriores dos ou- tros países e os seus processos históri- co-sociais. E as suas relações com o governo brasileiro? Quais diculdades e avanços? Facilitou muito essa espécie de fee- ling com o Lula. A sensibilidade com os mais humildes facilitou muito nossa re- lação com o Brasil. Mais que isso, nos- sas justas reivindicações que já levavam anos, décadas, em referência à sobera- nia energética, em relação ao preço da energia de Itaipu, o companheiro presi- dente Lula nos ajudou muitíssimo por- que entendeu que as razões que apre- sentavam os paraguaios eram razões de peso, que não se podia debater. E os seis grandes eixos que apresentamos foram aceitos pelo Brasil. Mais que is- so, na região, como aliado estratégico, o Brasil é um país que tem uma liderança mundial, que é como se fosse capaz de sentir que, tanto para o Brasil quanto para Lula, a ninguém convinha ter um vizinho pobre. Essa experiência pessoal trasladada à uma política de Estado foi entendida pelos dois países. Temos ouvido do movimento camponês paraguaio que a reforma agrária não avançou. Quais foram as diculdades para isso? A estrutura econômica do Paraguai é baseada na posse da terra, que é histó- rica. Um dos aspectos para iniciar a re- forma agrária seria possuir um padrão de posse da terra, que não existe. Is- so bloqueou bastante o processo de re- forma agrária. Avançamos na discussão de que reforma agrária não é só repar- tir terras como tem sido feito historica- mente, que tem outros componentes, como o sistema produtivo. As peque- nas propriedades se inseriram no sis- tema produtivo paraguaio. Esse cresci- mento de 15,3% no ano de 2010 se deu em grande parte devido à multiplicação da produtividade dos pequenos agricul- tores do país. Soubemos que o narcotracante brasileiro, Fernandinho Beira- Mar tinha uma fazenda em nome de “laranjas” fruto dos crimes no Paraguai, e que o governo brasileiro e o Poder Judiciário disponibilizaram essa área para o governo do Paraguai. Qual foi o destino que foi dado à essa área? O narcotráco é um problema global. Conversei com a presidenta Dilma, em Caracas. Se não tivermos uma estraté- gia regional ou continental será muito difícil que países isoladamente possam superar esse grande agelo. É preci- so que esse assunto entre na agenda de discussão. Dentro desse marco, temos trabalhado muito bem com o Brasil, em referência à cooperação na luta contra o narcotráco, o que fez com que pes- soas como Fernandinho Beira-mar es- tejam presos. Mas falta uma questão: o que fazer dos seus bens? Em outros paí- ses a legislação favorece a conscação dos seus bens, como Colômbia. Aqui, já foram conscados veículos, aviões, que não se podem utilizar porque estão a cargo da Justiça. Falta uma lei para ga- rantir que esses bens possam ser utili- zados. Eu creio que o que foi adquiri- do ilegalmente, o Estado paraguaio ou qualquer Estado tem que ter a capaci- dade e o sustento legal para poder recu- perar esses bens e colocar a serviço da comunidade. O presidente Lugo deixará o governo com o sentimento de dever cumprido? Muitos pensam de maneira quase pendular. Muitos dizem que Lugo já fez o seu papel e é suciente. E outros di- zem que Lugo não fez nada. Eu sempre digo que a virtude está no meio. Muito foi feito, mas muito ainda resta para se fazer. De alguma maneira, temos toma- do parte de um processo de transforma- ção do Estado paraguaio. Isso ninguém pode nos negar. Que 2008 é um capí- tulo especial na página da história polí- tica do país da qual somos partícipes e sujeitos. Por outro lado, há muita tarefa para se fazer, o ideal, a utopia, a lógica da equidade ainda está longe. Fernan- do Lugo, no dia 15 de agosto de 2013, seguramente que deixará a tarefa de governar o país para um grupo de pa- triotas, de diferentes partidos, que se- ja includente, aberto, democrático e se- guirá participando, na medida que pu- der, ajudando o processo paraguaio de transformação. Um processo que tem que ser dinâmico, ter um movimento constante. Por isso, a grande preocu- pação é que esse processo não termi- ne. Que se possa garantir o seu segui- mento. E de alguma maneira, segura- mente, que Fernando Lugo estará tran- quilo, porque, pelos menos, temos sido partícipes, testemunhas e sujeitos de um processo de transformação que oxa- lá continue. “Há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados” ENTREVISTA Para o presidente Fernando Lugo, muito foi feito, mas muito ainda resta para se fazer. Segundo ele, sua saúde vai muito bem. Mas acredita que há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados “Eu acredito que os princípios básicos desta Teologia, ao se partir da realidade, nos têm levado, nesse governo, a elaborar 12 programas emblemáticos para, de alguma maneira, dar resposta à gente mais desfavorecida do país” “O processo eleitoral foi transparente, limpo, legal, com um respaldo popular muito forte. E o mais importante que aparece nas conversas com o povo, nas bases populares, é a continuidade do processo” “A Alba não foi elaborada num grande laboratório, nasceu da experiência, da realidade, da necessidade de integração de cidadãos, artistas, trabalhadores, políticos, intelectuais, pequenos comerciantes” “Nos custa muito construir o consenso. Muitas vezes para um cargo determinado, passamos horas inteiras discutindo quem é a pessoa exata para esse posto exato e que pode ter uma linha determinada na tarefa do gerenciamento do Estado” “Aqui no Paraguai, ninguém se esquece que houve um plano Condor, de acordos entre os ditadores da época, de ter livre acesso e ação” “Nossas justas reivindicações que já levavam anos, décadas, em referência à soberania energética, em relação ao preço da energia de Itaipu, o companheiro presidente Lula nos ajudou muitíssimo” “Assim, hoje, temos essa tendência: de preparar militares não para a guerra, mas para a paz em um Estado democrático” Governo do Paraguai Lugo saúda criança em evento cívico: programas de governo inspirados nos princípios da Teologia da Libertação Para Lugo, mais do que uma reeleição, a preocupação é a de que o processo de transformação continue URZ/Presidência do Paraguai

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"Há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados"

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Page 1: Entrevista com Fernando Lugo

de 17 a 23 de maio de 201214 américa latina 15

Nilton Viana eMarcelo Netto Rodrigues

de Assunção (Paraguai)

EM UMA DAS propagandas da recém-lançada TV Pública Paraguay – Jajoto-pa, um lutador de Jiu-Jitsu, uma “pa-tricinha” com piercings e um indígena reforçam o orgulho de se falar guarani. No comercial seguinte, uma mulher pe-de que os políticos liberem mais recur-sos para que os desaparecimentos do seu esposo e de outras 500 militantes durante a ditadura militar (1954-1989) sejam esclarecidos. Por fi m, surge uma outra vinheta sobre um programa cha-mado “35”, que abordará os anos em que Stroessner fi cou no poder.

Só isso já seria sufi ciente para perce-ber que desde 2008 – quando o até en-tão bispo católico Fernando Lugo assu-miu a presidência após derrotar o Par-tido Colorado, no poder havia 61 anos – o vizinho com quem talvez tenhamos mais dívidas históricas vive um mo-mento novo.

Nesta entrevista exclusiva ao Bra-sil de Fato, Lugo – hoje já dispensado completamente de suas funções ecle-siais, mas nem por isso distante dos princípios da Teologia da Libertação – explica, entre outras coisas, por que não seguiu os passos de Chávez, Cor-rea e Evo e alterou a Constituição para que pudesse se reeleger, comenta os li-mites institucionais aos quais está atre-lado e fala sobre o câncer que acaba de enfrentar.

Apesar de Lugo não citar nominal-mente os seis candidatos de esquer-da que pleiteiam ser seu candidato nas eleições em 2013, vale ressaltar que du-as mulheres encontram-se na disputa.

Brasil de Fato – Presidente, agradecemos a disposição de falar com o Brasil de Fato, que é, como o senhor sabe, atrelado às lutas do povo e dos movimentos sociais. Fernando Lugo – Com muito prazer. A alegria é minha também, de com par-tilhar ideais comuns. Vejo aqui na ca-pa de uma das edições do jornal que vo-cês me trouxeram de presente uma ma-téria sobre o Xingu. Isso me faz lembrar de alguns bispos do Brasil que traba-lharam muito pelas reivindicações dos mais desfavorecidos. O Xingu é um pa-radigma de luta.

Muitos bispos como dom Pedro Casaldáliga e tantos outros da Teologia da Libertação... Por falar nisso presidente, quando da sua eleição no dia 20 de abril de 2008, o nosso jornal deu como manchete: “A Teologia da Libertação chega ao poder no Paraguai”. Após quase 4 anos de mandato, podemos dizer que os princípios dela continuam a infl uenciar o governo Lugo?

A Teologia da Libertação tem me aju-dado como pastor, sacerdote, bispo a ter uma visão diferente da sociedade. Uma visão com suas contradições, de-sequilíbrios, iniquidades. E, sobretu-do uma visão com o desafi o e o com-promisso de poder reverter essa situa-ção. Eu acredito que os princípios bási-cos desta Teologia, ao se partir da rea-lidade, nos têm levado, nesse governo, a elaborar 12 programas emblemáticos para, de alguma maneira, dar respos-ta à gente mais desfavorecida do país: as mulheres, crianças de rua, campone-ses, pessoas da terceira idade, desem-

pregados, jovens, indígenas. Quer di-zer, eu creio que esses princípios, en-tre eles, o de não aceitar passivamente uma realidade que é escandalosa, estão muito presentes nesses programas. Es-se fosso que os bispos em Medellín [em 1968, na segunda Conferência Episco-pal da América Latina e do Caribe (Ce-lam)] diziam existir entre ricos e po-bres, entre pessoas que têm possibilida-de e acesso ao mercado, à tecnologia, ao estudo. Esse fosso digital que continua sendo ainda hoje escandaloso... De mo-do que eu creio que, sim, esses progra-mas são inspirados profundamente nos princípios da Teologia da Libertação.

Como tem sido a posição da Igreja Católica em relação ao seu governo?

A Igreja é muito institucional no Pa-raguai. Mas também há um conceito de Igreja enquanto “povo de Deus”. E es-ta Igreja é a que tem nos ajudado fun-damentalmente enquanto base popu-lar do eleitorado paraguaio que nos aju-dou a chegar à presidência em 2008. Além dela, dessa Igreja de Comunida-des de Base, existem agentes pastorais, líderes, inclusive alguns ministros, que sem se apartarem da fonte essencial dos seus sermões, nos têm ajudado na cons-cientização do povo. Inclusive até com alguns bispos, continuamos tendo con-versas bem fl uidas porque há uma coin-cidência muito grande. A Igreja sem-pre afi rmou que não se pode identifi car com nenhum projeto político temporal. O seu projeto é de longo prazo, mais de-fi nitivo. Mas em alguns aspectos coinci-de com projetos temporais, sociais so-bretudo. E nesse sentido, temos uma comunicação fl uida com pastores da Igreja Católica e não-católica também. Temos uma relação institucional im-portante. A Igreja continua desenvol-vendo no Paraguai uma atividade com-plementar em termos de educação, saú-de, que muitas vezes o Estado não tem a estrutura sufi ciente para responder efi -cientemente esses desafi os.

Falando de futuro, sabemos que a legislação paraguaia não permite a reeleição. O senhor já tem em mente o candidato que vai apoiar?

O processo paraguaio tem etapas. Na primeira etapa não se pode fazer tudo. Eu creio que nessa etapa, de romper a partir de dentro, em um processo insti-tucional, eleitoral, já foi difícil ganhar de um partido como o Colorado. O pro-cesso eleitoral foi transparente, limpo, legal, com um respaldo popular mui-to forte. E o mais importante que apa-rece nas conversas com o povo, nas ba-

ses populares, é a continuidade do pro-cesso. Um processo se iniciou em 2008. E agora temos que garanti-lo. Hoje, fa-lamos muito dos perfi s dos candidatos que podem garantir essa continuidade. Não de nomes específi cos. Seguramente que com os meses, em outubro, novem-bro, dezembro, os cidadãos terão mais claro quem será essa pessoa.

Por que o senhor não tentou reformar a Constituição para que a reeleição fosse possível, como fi zeram Chávez, Evo e Correa?

Porque cremos que a constituição das leis tem um caráter universal. E a princípio, estávamos em desacordo em transformar a lei para favorecer uma pessoa. Mas se isso for um desejo popu-lar, uma resposta também institucional ao o que ocorre no país, eu acredito que hoje há um grande consenso que o pró-ximo presidente que assuma em 15 de agosto de 2013 em dois ou três meses de governo, sem nenhuma dúvida, terá que convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Porque a nossa Constitui-ção é de 1992. E em 20 anos muitas coi-sas mudam. Apesar de ser uma Cons-tituição que, tendo sido escrita após a ditadura no Paraguai, também alte-rou certos aspectos e possui um conte-údo mais democrático. Da mesma for-ma, em 20 anos, o país mudou em mui-tas coisas.

O senhor soma-se aos já citados atuais presidentes progressistas da América Latina. Chávez, por sua vez, enfrentará as urnas novamente no fi nal do ano. De que forma o senhor pretende apoiar a candidatura dele na Venezuela?

A América Latina, começando por al-guns países também da América Cen-tral e também Venezuela, Brasil, Bo-lívia, Equador, em um momento Chi-le, Uruguai, Argentina e Paraguai, esta-mos como que embarcados em um pri-

meiro momento num grande projeto de integração. Em um segundo momen-to de poder dinamitar certas condições de nossos países que não têm um cresci-mento equitativo. A eleição que Chávez enfrentará em outubro será o povo ve-nezuelano que decidirá o futuro do seu país. Nós temos muito respeito com os processos nacionais. Mas, acredito que temos uma garantia, sem nenhuma dú-vida. Que todos esses governos progres-sistas da América Latina, mesmo que com uma diferença abismal, são me-lhores do que aqueles governos dita-toriais que impuseram a pobreza a vá-rias populações pelos países da Améri-ca Latina. Acreditamos que esses gover-nos progressistas, se não dão uma so-lução mágica porque não existe solu-ção mágica em termos da política, em termos sociais, dão respostas efi cientes de transparência, com a participação ci-dadã, que é a maior garantia de fortale-cer e consolidar nossas democracias no continente.

Como outros governantes progressistas, o senhor apresentou um diagnóstico de câncer. Como está a sua saúde? Como o senhor vê tamanha coincidência de um quadro clínico semelhante ao seu acontecendo com Chávez, Lula, Dilma, Cristina (…).

Alencar [José Alencar]. Ele foi o pri-meiro que me visitou no Sírio Libanês. Um homem cheio de esperança. Eu o recordo com respeito e gratidão por su-as visitas de solidariedade no hospital. O mesmo com Lula. Um grande com-panheiro, um grande irmão. Eu acredi-to que o poder de ter superado o cân-cer nos leva a muitas refl exões pesso-ais. Em primeiro lugar, como é possí-vel que esses presidentes progressistas sejam acometidos desse mal. Há mui-tos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados. Outros aniquilados com quimio e radioterapia. Cânceres da so-ciedade como o egoísmo de tanta gen-te. De uma sociedade preparada so-mente para favorecer a grupos muito pequenos de privilegiados. Os cânceres da pobreza, do analfabetismo. Os cân-ceres dos fossos digital e educacional. Quanto a minha saúde, ela vai muito bem. E ela é prova de que o câncer po-de ser vencido. Que existem possibili-dades reais de se vencer esses cânceres da sociedade. E que também atacaram pessoas individuais como Lula, Dilma, agora em Chávez, Alencar. É possível extirpar pela raiz esse mal que afeta a sociedade.

Como o senhor vê a proposta da Alba, que ultrapassa os acordos entre governos, mas também envolve iniciativas de integração popular, entre as organizações populares de todo continente?

Houve muitas tentativas de integra-ção da América Latina. Desde a Alian-ça para o Progresso, na década de 1950 e 1960, que nos enviaram de fora e do Norte, e o que se quis fazer com a Alca. Mas existem outras experiências muito mais genuínas, mais populares, que dão mais garantias de integração cidadã. É nessa linha que eu vejo a Alba. A Alba não foi elaborada num grande labora-tório, nasceu da experiência, da reali-dade, da necessidade de integração de cidadãos, artistas, trabalhadores, po-líticos, intelectuais, pequenos comer-ciantes. Tem o seu germe numa gran-de discussão regional e de pessoas e países que vivem em situações simila-res que necessitam da solidariedade in-ternacional.

A proposta do Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos) seria uma forma efi ciente de se contrapor à OEA?

Como disse, são muitas as tentativas. O Grupo do Rio, agora a Celac. Unasul, Mercosul. Celac é a experiência da in-clusão na integração. Na OEA, não es-tá Cuba. Na Celac, está. Para os chefes de Estado latino-americanos, a grande injustiça que se cometeu na OEA contra Cuba é como a pedra no sapato de mui-ta gente. Onde há posturas quase irra-cionais e muito rígidas. Por isso, Celac é uma experiência de integração inclu-siva especialmente pensando na repú-blica irmã de Cuba, que por mais de 50 anos segue suportando o seu bloqueio

econômico irracional. De modo que a Celac pode ser um caminho. Não sei se suplantará totalmente o que é ou o que foi a OEA, que nasce em outro contexto, num outro tempo, e que cumpriu uma grande missão. Mas, hoje, por exemplo, até mesmo a Unasul, com uma estrutu-ra muito mais fl exível, também terá as suas comissões de fi scalização de elei-ções, que me parecem muito interes-santes dentro do contexto do que é in-tegração, de transparência nos proces-sos democráticos.

Retomando a questão mais interna do Paraguai, quais foram as principais difi culdades que o senhor encontrou para implementar as mudanças no governo após 60 anos de governo colorado?

Difi culdades pessoais em primeiro lugar. Chegamos ao governo, ao Palá-cio de López, como diziam muitos, sem ter a experiência de ser gerentes de um Estado como o Paraguai. Isso tem o seu pró e o seu contra. Chegamos sem pre-conceitos. Mas encontramos muitas di-fi culdades de caráter institucional. Ins-tituições importantes, como o ministé-rio da Educação e da Agricultura, des-truídas, nas quais as práticas de geren-ciamento do Estado estavam baseados no clientelismo, como se o saque fosse para ser repartido dentro de um grupo político determinado entre pessoas que compartilhavam os mesmos interes-ses. Romper com essa prática política é o mais difícil e paradigmático da gran-de tentativa que estamos fazendo den-tro do governo. A outra coisa que te-mos que reconhecer é que não se veem técnicos excelentes em todos os postos e lugares porque chegamos ao gover-no como “Aliança Patriótica para a Mu-dança”, que é uma gama de movimen-tos e partidos, com uma variedade in-teressantíssima que é uma riqueza, mas possui também muitas debilidades. Nos custa muito construir o consenso. Mui-tas vezes para um cargo determina-do, passamos horas inteiras discutin-do quem é a pessoa exata para esse pos-to exato e que pode ter uma linha deter-minada na tarefa do gerenciamento do Estado. Sem dúvida, ter um Parlamen-to adverso não tem sido fácil para a go-vernabilidade nesses três anos e meio. Se se revisa as atas do Parlamento sem-pre houve ameaças de processos políti-cos com o intuito de desestabilizar o go-verno. Se há um mérito nesse governo é o de haver sido aberto e inclusivo, de não perseguir ninguém.

Recentemente, no Brasil, foram anunciados os membros da Comissão da Verdade. Vimos que na TV Pública Paraguay há uma propaganda pedindo mais recursos para se esclarecer os 500 casos de desaparecidos durante a ditadura do Stroessner. Como se dá esse processo aqui?

Aqui também se constituiu uma Co-missão de Verdade e Justiça. A ditadura paraguaia caiu em 1989 e foi só no nos-so governo que encontramos as primei-ras tumbas de desaparecidos políticos. Passaram-se 19 anos. E temos que re-conhecer que é mérito de nossa vonta-de política. Aqui no Paraguai, ninguém se esquece que houve um plano Condor, de acordos entre os ditadores da época, de ter livre acesso e ação. Transforma-mos em museu um campo de concen-tração em Missones. Aqui mesmo há o Museu da Memória. Temos participado da busca de desaparecidos. Mas nem tu-do depende do poder público. Há mui-tos processos que dependem da Justiça paraguaia. E oxalá que sejam agilizados para que se encontrem os culpados para que sejam submetidos à justiça.

A sua família também passou por perseguições...

Sim, meu pai foi preso 20 anos du-rante a ditadura. Todos os meus irmãos e minha mãe passaram por cárceres do ditador Stroessner. Eu tenho um irmão que faleceu no exílio. Há muitas pesso-as que querem colocar um pano de es-quecimento, mas não podemos pensar em um futuro sem escavar a memória do passado. Não com ares de vingança, mas de justiça. A justiça deve ser a ba-se, um dos pilares da construção de um novo país.

Como se dá a sua relação com os militares?

Os militares no Paraguai talvez te-nham sido os que mais se adaptaram à democracia. E temos tentado que as Forças Armadas tenham um novo tipo de relacionamento com a sociedade ci-vil. Há pouco, tivemos uma experiência de emergência nacional e os militares se colocaram à disposição para o res-gate de pessoas. E tem um orçamento, depois de 20 anos, mais razoável para construir estradas, levar água potável, acolher desabrigados. E o Paraguai par-ticipa nas Nações Unidas de um progra-ma do Exército voltado para a paz. As-sim, hoje, temos essa tendência: de pre-parar militares não para a guerra, mas para a paz em um Estado democrático.

Como as questões de gênero e indígena têm sido tratadas no seu governo?

Temos uma excelente ministra da mulher, que como já disse, não coincide comigo em muitos aspectos, mas tem as mãos livres para fazer o que a fi loso-fi a de gênero hoje exige no mundo mo-derno. Com os indígenas, existem 519

comunidades indígenas no Paraguai. Sem dúvida que não podemos solucio-nar o problema de décadas da noite pa-ra o dia. Temos denúncias internacio-nais para que povos possam recuperar suas terras ancestrais. É certo que po-demos ver nas ruas de Assunção indí-genas, mas a solução também passa por uma mudança cultural. Como fazer com que povos que eram caçadores possam ser agricultores ou tenham outras ativi-dades dentro de suas comunidades.

Como o senhor lidou durante o mandato com as ameaças de morte?

As ameaças já haviam surgido quan-do eu ainda era bispo em San Pedro. Diziam que a experiência de dom Os-car Romero ia se repetir no Paraguai. Durante a campanha e quando inicia-mos o governo também apareceram as ameaças. São os profetas do Apocalip-se que somente anunciam destruição, sangue e morte. Que não faltam. Sem-pre estão aí presentes. A insegurança é um grande tema para todo o continen-te. Queremos melhores dias para o Pa-raguai. Algumas dessas ameaças não são sérias. Já outras, tem que se levar em conta, pois, acredito que o sistema de segurança das autoridades legitima-mente constituídas dependem do Exér-cito paraguaio. Eu, pelo menos, tenho a certeza da segurança oferecida porque são profi ssionais. Não é possível dizer que isso nunca vai ocorrer ou que po-de ocorrer. Estamos, de alguma manei-ra, nas mãos de uma instituição impor-tante para a vida nacional que é o Exér-cito paraguaio.

Qual tem sido a posição do governo dos Estados Unidos?

Assim que Obama foi eleito, gerou-se muita expectativa, ilusão. Ele mesmo anunciava que os Estados Unidos mu-daria a sua política em relação à Amé-rica Latina, o que é necessário. Nes-se sentido, os Estados Unidos têm ti-do uma política exterior em referência ao Paraguai mais respeitável do que as anteriores. É um governo que nas suas relações internacionais tanto faz falar com a Argentina, com o Brasil ou com outro país do continente. Penso que os Estados Unidos entenderam que no Pa-raguai há um governo que se faz res-peitar e que também respeita profun-damente as políticas exteriores dos ou-tros países e os seus processos históri-co-sociais.

E as suas relações com o governo brasileiro? Quais difi culdades e avanços?

Facilitou muito essa espécie de fee-ling com o Lula. A sensibilidade com os mais humildes facilitou muito nossa re-lação com o Brasil. Mais que isso, nos-sas justas reivindicações que já levavam anos, décadas, em referência à sobera-nia energética, em relação ao preço da energia de Itaipu, o companheiro presi-dente Lula nos ajudou muitíssimo por-

que entendeu que as razões que apre-sentavam os paraguaios eram razõesde peso, que não se podia debater. Eos seis grandes eixos que apresentamosforam aceitos pelo Brasil. Mais que is-so, na região, como aliado estratégico, oBrasil é um país que tem uma liderançamundial, que é como se fosse capaz desentir que, tanto para o Brasil quantopara Lula, a ninguém convinha ter umvizinho pobre. Essa experiência pessoaltrasladada à uma política de Estado foientendida pelos dois países.

Temos ouvido do movimento camponês paraguaio que a reforma agrária não avançou. Quais foram as difi culdades para isso?

A estrutura econômica do Paraguai ébaseada na posse da terra, que é histó-rica. Um dos aspectos para iniciar a re-forma agrária seria possuir um padrãode posse da terra, que não existe. Is-so bloqueou bastante o processo de re-forma agrária. Avançamos na discussãode que reforma agrária não é só repar-tir terras como tem sido feito historica-mente, que tem outros componentes,como o sistema produtivo. As peque-nas propriedades se inseriram no sis-tema produtivo paraguaio. Esse cresci-mento de 15,3% no ano de 2010 se deuem grande parte devido à multiplicaçãoda produtividade dos pequenos agricul-tores do país.

Soubemos que o narcotrafi cante brasileiro, Fernandinho Beira-Mar tinha uma fazenda em nome de “laranjas” fruto dos crimes no Paraguai, e que o governo brasileiro e o Poder Judiciário disponibilizaram essa área para o governo do Paraguai. Qual foi o destino que foi dado à essa área?

O narcotráfi co é um problema global.Conversei com a presidenta Dilma, emCaracas. Se não tivermos uma estraté-gia regional ou continental será muitodifícil que países isoladamente possamsuperar esse grande fl agelo. É preci-so que esse assunto entre na agenda dediscussão. Dentro desse marco, temostrabalhado muito bem com o Brasil, emreferência à cooperação na luta contrao narcotráfi co, o que fez com que pes-soas como Fernandinho Beira-mar es-tejam presos. Mas falta uma questão: oque fazer dos seus bens? Em outros paí-ses a legislação favorece a confi scaçãodos seus bens, como Colômbia. Aqui, jáforam confi scados veículos, aviões, quenão se podem utilizar porque estão acargo da Justiça. Falta uma lei para ga-rantir que esses bens possam ser utili-zados. Eu creio que o que foi adquiri-do ilegalmente, o Estado paraguaio ouqualquer Estado tem que ter a capaci-dade e o sustento legal para poder recu-perar esses bens e colocar a serviço dacomunidade.

O presidente Lugo deixará o governo com o sentimento de dever cumprido?

Muitos pensam de maneira quasependular. Muitos dizem que Lugo já fezo seu papel e é sufi ciente. E outros di-zem que Lugo não fez nada. Eu sempredigo que a virtude está no meio. Muitofoi feito, mas muito ainda resta para sefazer. De alguma maneira, temos toma-do parte de um processo de transforma-ção do Estado paraguaio. Isso ninguémpode nos negar. Que 2008 é um capí-tulo especial na página da história polí-tica do país da qual somos partícipes esujeitos. Por outro lado, há muita tarefapara se fazer, o ideal, a utopia, a lógicada equidade ainda está longe. Fernan-do Lugo, no dia 15 de agosto de 2013,seguramente que deixará a tarefa degovernar o país para um grupo de pa-triotas, de diferentes partidos, que se-ja includente, aberto, democrático e se-guirá participando, na medida que pu-der, ajudando o processo paraguaio detransformação. Um processo que temque ser dinâmico, ter um movimentoconstante. Por isso, a grande preocu-pação é que esse processo não termi-ne. Que se possa garantir o seu segui-mento. E de alguma maneira, segura-mente, que Fernando Lugo estará tran-quilo, porque, pelos menos, temos sidopartícipes, testemunhas e sujeitos deum processo de transformação que oxa-lá continue.

“Há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados”ENTREVISTA Para o presidente Fernando Lugo, muito foi feito, mas muito ainda resta para se fazer. Segundo ele, sua saúde vai muito bem. Mas acredita que há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados

“Eu acredito que os princípios básicos desta Teologia, ao se partir da realidade, nos têm levado, nesse governo, a elaborar 12 programas emblemáticos para, de alguma maneira, dar resposta à gente mais desfavorecida do país”

“O processo eleitoral foi transparente, limpo, legal, com um respaldo popular muito forte. E o mais importante que aparece nas conversas com o povo, nas bases populares, é a continuidade do processo”

“A Alba não foi elaborada num grande laboratório, nasceu da experiência,

da realidade, da necessidade de integração de cidadãos, artistas,

trabalhadores, políticos, intelectuais, pequenos comerciantes”

“Nos custa muito construir o consenso. Muitas vezes para um cargo determinado, passamos horas inteiras discutindo quem é a pessoa exata para esse posto exato e que pode ter uma linha determinada na tarefa do gerenciamento do Estado”

“Aqui no Paraguai, ninguém se esquece que houve um plano Condor, de acordos entre os ditadores da época, de ter livre acesso e ação”

“Nossas justas reivindicações que já levavam anos, décadas, em referência à soberania energética, em relação ao preço da energia de Itaipu, o companheiro presidente Lula nos ajudou muitíssimo”

“Assim, hoje, temos essa tendência: de preparar militares

não para a guerra, mas para a paz em um Estado democrático”

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URZ/Presidência do Paraguai