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Entrevista a Ardiley Queirós

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hambreoutubro 2014

Entrevista a Ardiley QueirósUm diálogo a partir de “Branco sai, Preto fica”.por Josafá Veloso

Filme contundente, de raro rigor. Branco sai,Preto fica navega entre o documentário e a ficçãocientífica, entre a fábula e o filme militante.Ardiley Queiros não se considera um “autor” nosentido proposto por André Bazin. (BAZIN,2014). Talvez se considere mais uma espécie de“ferreiro­artesão”, que com fogo em altatemperatura deu a “liga” necessária para queBranco sai, Preto fica se tornasse a viga vigorosaque é. Ardiley também não é um intelectual e nemquer ser: “Frequentar a faculdade para mim eramais para poder ir às festinhas. Não sou mesmomuito fã da lógica, não. Eu não conseguiriaexpressar o que eu penso no discurso daacademia. Teria imensa dificuldade. Deve ser porisso que eu faço cinema. Eu trabalho commetáforas. Para mim elas são muito maispoderosas!”.

Na conversa a seguir, pode­se ainda arriscarreconhecer outra força motriz para a realização deBranco sai, Preto fica. A mesma que levouEduardo Coutinho a finalizar Cabra Marcado paraMorrer, que nas palavras de Jean­Claude Bernadetseria “um projeto histórico (grifo meu)preocupado em lançar uma ponte entre o agora eo antes, para que o antes não fique sem futuro e oagora não fique sem passado”. (BERNADET,2003, p. 227)

Branco sai, Preto fica busca também ser “ponte”entre um trauma e a reconstrução de umaidentidade individual, coletiva. De toda umacomunidade real e ao mesmo tempo “comunidadecinematográfica”. Propus a Ardiley uma conversapara desvendar minimamente as potênciashumanas que se somaram para que o filme

alcançasse tal força incomum.

Enquanto via seu filme, algo nele me remeteu aocinema de Ozualdo Candeias. A combinação decrueza e poesia latente nos filmes dele. Notavaem Branco sai, Preto fica, assim como nos filmesde Candeias, uma ausência, digamos, de certo“verniz intelectual” entre a câmera e ospersonagens. Um corpo a corpo com os atoresmuito honesto. Você de alguma forma seidentifica com o cinema dele?

Totalmente. Meu nome é Tonho é talvez o filmeque eu gostaria de ter feito. Eu o conheci certavez, o Candeias. Foi inesquecível. Seu cinema éde uma força que me toca fundo. Os filmes delesão quase como literatura na relação dele com ospersonagens. Ele conseguia construir umaatmosfera única nos filmes, quase fabular mesmo.Fico até meio comovido por você ter associado oBranco sai, Preto fica com o Candeias.

Quais outros diretores te impulsionam?

Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach,praticamente todo o cinema marginal de SãoPaulo. O Andrea Tonacci para mim é o melhorcineasta do mundo. Bang Bang é genial. Serras daDesordem, por exemplo, tem uma coragem de irfilmando sem saber onde vai dar que é parecidocom os processos de todos os filmes que fiz atéaqui, desde os curtas. É uma aventura arriscadaporque pode não dar certo. Ah, lembraria doEdgar Navarro também, não posso me esquecerdele.

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Imaginei que você citaria o Glauber. Algumarazão especifica para não lembrar dele?

Não, gosto muito dele. Não lembrei dele porquetoda a minha geração amava o Glauber. Acho queé só vontade de não chover no molhado. Aliás,acho que o Dragão da Maldade contra o SantoGuerreiro é um filme fundamental para mim. Paraminha vida mesmo. Glauber rompeu fronteirasali. Ir para o sertão, reunir aquela comunidade defamintos e vê­los cantar seus cantos sagradosdesde as quatro da manhã e depois ligar a câmeraàs seis, sete horas do dia. É uma peça de teatromágica mesmo. Uma atmosfera muito instiganteentre o real e o imaginário. Isso que eu acho omais importante: conseguir criar uma atmosferaúnica. Olha, eu aprendi a fazer cinema com 35anos. Não ligo muito para roteiro no sentidoclássico, grandes sets de filmagem, aquela coisatoda. Estou em outra busca, de outra linguagemque vá além daquela visão costumeira que certaesquerda tem sobre os, digamos, explorados domundo. Essa coisa de tratar os mais pobres quenem coitadinho, oprimido. Essa coisa toda euodeio! Mas voltando ao Dragão do Glauber. Essefilme consegue essa atmosfera sensacional, emque a fábula atravessa e alimenta o real, e essereal é ressignificado. Acho que nós tentamosalcançar isso em Branco sai, Preto fica.

Sobre as últimas imagens de Dragão da Maldadecontra o Santo Guerreiro, quando o míticoAntônio das Mortes caminha de costas para

câmera pela estrada, escreveu Ismail Xavier:

Antônio segue de costas à beira da estrada, ao lado do postoShell, enquanto a energia própria dos movimentos doscarros e caminhões definem outro ritmo e ligação com ummundo maior. Terminar o filme com os sinais de integraçãodesse pequeno mundo (palco do teatro do oprimido) na redede relações que evoca até a ordem internacional. (…) essasimagens do mundo técnico atestam a incorporação de umasituação de fato que o filme deseja reconhecer e incluir emseu jogo. (XAVIER, 2012, p. 309)

Você disse: ”nós tentamos fazer isso“. Tenhocerteza que sim, de que você é o diretor do filme,aquele que pensa o Todo. Mas seu filme éessencialmente colaborativo, coletivo. Você nãose considera um “autor“ no sentido tradicionaldo termo?

Eu sou assim. Todos os filmes foram assim, desdeos curtas. Eu não escrevo um roteiro e chamo aspessoas para fazerem aquilo que eu quero fazer.Eu primeiro pergunto para os meus amigos quefilmes eles querem fazer. Aí a coisa toda começa.Foram muitos anos para esse filme ficar pronto,muito tempo de maturação. Era um traumafortíssimo na vida desses meus dois amigos:Marquinhos e Joao Vitor, que sofreramamputações no próprio corpo. Um trauma de todauma cidade, uma comunidade que é a Ceilândia.Cidade formada de imigrantes nordestinos quevieram construir Brasília. Cidade periféricamesmo. Sem autoestima. Mas que nos anosoitenta viu sua identidade ganhar força com omovimento negro, os bailes de black music, queforam em seguida fortemente reprimidos. Brancosai, Preto fica é sobre isso: dois amigos deinfância que tiveram seus corpos… amputadosrealmente. NÓS fizemos este filme, foi umaconjunção de muitos desejos. Mas agora, comofalar desse trauma sem cair na nostalgia, nomelodramático, no oprimido coitadinho. Nãoqueríamos fazer um documentário tradicional,queríamos todos fazer uma ficção científica! Umaficção científica muito estilizada. Uma vez

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decidido ir por esse caminho, tivemos muitocuidado na construção dos ambientes, sua luz, acomposição dos enquadramentos.

Muito elaborado, realmente. Creio que toda a suamise­en­scène vem a partir do trabalho dacenografia. Um trabalho muito interessante.Quem colaborou com você? Acho importanteregistrar aqui.

Denise Vieira foi quem fez a arte. Uma arquiteta,na verdade.

Dito isso sobre essa camada futurista do filme, ébom lembrarmo­nos do terceiro personagemcentral do filme. Justamente um viajante dotempo vindo do futuro para coletar dados quecomprovem que houve uma repressão brutal aosbailes nos anos oitenta e que é necessária umaindenização do Estado.

Sim, pois é. Nós todos adoramos o Blade Runner.Fizemos entre nós sessões em tela grande dofilme. Queríamos fazer algo por aí. Criar umaatmosfera fabular, de ficção cientifica distópica.Fazendo de Marquinhos e João Vitor personagensde si mesmos numa Ceilândia do futurototalitária, solitária. Um fascismo controla acidade, no futuro, e consequentemente na reflexãosobre o aqui agora da cidade que queremos proporcom o filme. Entre essas duas figuras tem oviajante do tempo que é feito pelo Dilmar Durães,que é um poeta, quase uma figura mítica de

Ceilândia. Ele está em todos os filmes que eu fiz.Ele queria trabalhar no filme de qualquer jeito, equeria fazer um personagem totalmente diferentedaqueles que ele já tinha feito. Aos poucoschegamos a esse viajante do tempo que navegapelo espaço­tempo em um contêiner com luzes dediscoteca que eu mesmo operava. Aí um bando debrutamontes balançava o contêiner enquanto agente filmava. Ele é um cara, o Dilmar, que criametáforas vinte quatro horas por dia. Ele é naverdade a chave para a narrativa do filme!Paralelo às dores de Marquinhos e Joao Vitor, esteviajante do tempo costura uma camada fabular,irônica e performática que amarra o filme.

É uma imagem muito curiosa, original, essamáquina do tempo em um contêiner. Estepersonagem entra também como um contrapontocômico em todo filme.

Ele improvisava a maioria das falas. Porqueaquilo que ele já tinha na memória de seu corpo,na sua história pessoal, de sua luta, entrou nofilme. Tudo aquilo ele passou para o personagem.É um jogo, memória, ficção e tudo junto! Essecontêiner também nos faz lembrar dos naviosnegreiros, dos caminhões que levavam osnordestinos de Ceilândia para irem trabalhar naconstrução de Brasília. Marquinhos e Joao Vitorsão também personagens de um filme de ficçãocientifica, mas que trazem com seus corposmutilados uma história documental de dor,lembranças. E de nostalgia também, claro. Não dápara apagar isso. Eles eram garotos adolescentesque sabiam todos os “passinhos” de black musicpara poder conquistar todas as menininhas dobaile, aí entra a polícia atirando e faz um ficarpreso a uma cadeira de rodas e outro obrigado ausar uma perna mecânica. A indenização pelo quefoi feito ainda é uma luta nossa, como vocêlembrou. Essa luta pela indenização do Estado aosmoradores de Ceilândia é real, e é justamente poresta luta estar envolta em fábula, ficção cientifica,

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é que eu acho que essa reivindicação fica aindamais poderosa! No filme você pode ver o sonhodaqueles caras. A parte da vida e do corpo delesque lhes foram arrancadas.

Creio que para eles foi um rito de passagem afeitura do filme. Quero dizer: reviver seu passadopara reinventar um futuro. Com ou semindenização, mas fundamentalmente reinventar asi mesmos.

Sim, foi fortíssimo para eles. Fizemos uma sessãodo filme para eles. Muitas das imagens quedesenhávamos no processo tinham a ver comfogo, destruição. Queríamos de alguma formaincendiar aquele passado.

Sim, uma das cenas mais fortes do filme:Marquinhos queimando um sofá onde guardavaseus discos antigos. De uma época que ele adorae sente falta, mas que tem que superar.Praticamente um rito. Areia, vento e fogo, muitofogo. E ao lado um homem confinado a umacadeira de rodas, simbolicamente destruindo suas“muletas” que talvez o impedissem de seguir emfrente.

Eu acho também. Você matou a charada. Foi issomesmo. Queríamos acabar com esse passado,acabar com esse recalque. Sabe, eles todosqueriam voar nessa ficção. “Voa, Marquinhos!”,esse é o filme, na verdade.

De alguma forma, Ceilândia é o Brasil. Brasil é aCeilândia?

É. Brasília especificamente nasceu de umaproposta urbana e arquitetônica moderna. Umprojeto carregado com símbolos de progresso emsua arquitetura e que sustenta o discurso de umnovo momento político e econômico. Um projetoque pretendia pensar um novo Brasil, um novomodelo de convivência com a cidade. “Cidadãos

iguais” para uma capital promissora. O prefixo“CEI­” de Cei­lândia se refere à sigla daCampanha de Erradicação das Invasões, imagina.Nossa cidade já nasceu como campanha para sererradicada. Ela não poderia existir. Mas existe,existimos!

Todavia, esse modelo de Brasília, ordenado ehermético, logo cai por terra. Afinal, onde vaimorar a massa de operários que trabalha naconstrução civil e os migrantes que não param dechegar? Esses habitantes indesejáveis pelasautoridades logo são taxados de invasores, termopejorativo que, aqui, foi assimilado emsubstituição ao igualmente pejorativo “favelado”.Desta forma, graças à ideologia de sua gênese emotivada pela vontade das autoridades, a novaCapital Federal sustenta a representação dessemodelo asséptico de urbanização e afasta parabem longe de seus limites os “invasores”. Brasíliacomeça sua história tornando invisíveis aquelesque a construíram.

Essa lógica do progresso que acua toda a nossacultura. Destrói, especula e não põe nada nolugar, essa é a tragédia, não é?

Pois é, como no Rio de Janeiro. Um aborto decivilização. Pagar mil, dois mil reais de aluguelpara viver. O meu ambiente seguro é a Ceilândia.Eu sempre vivi lá e vivo lá até hoje. Eu caminhomuito pela cidade. E ela começa a ter umacontradição agora, porque ela começa a severticalizar, então ela vai virar uma grande favela,com grandes prédios, com essa coisa daespeculação imobiliária. Então vai criar na cidadeum novo apartheid. Aquelas pessoas queconstruíram a cidade, que lutaram para que acidade ficasse aquilo que é, elas não conseguemmais segurar a especulação. Porque chegaalguém, por exemplo, com quinhentos mil reais ecompra a tua casa. Daí você vai para outra favela,que é Águas Lindas. Então, o processo continua.

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Mas quero com o filme repensar nossa identidade,nossa história. Ressiginificar esse passado parapoder ir em frente. Porque aqui não tem nenhumcoitadinho, não: luta!

Mas isso fundamentalmente no sentido dalinguagem. Luta cinematográfica! Buscar umamontagem, um ritmo que favorecesse encontraruma atmosfera própria, fora da narrativa clássica.Para ser sincero, acho o cinema contemporâneomuito “coxinha”. Como se ainda só existisse umamaneira de narrar. Amo a poesia do cinema,entende? Acho que há muita poesia no cinema doEduardo Coutinho também, por exemplo. Quepena que ele nos deixou…

Quando estreia seu filme?

Nada certo ainda. Claro, há os festivais, dá paraele viajar. Mas o que eu gostaria mesmo é que ofilme fosse vendido nas barraquinhas de camelôde Ceilândia. A garotada toda poder ver e tal. Poroutro lado, conseguir emplacar o filme noscinemas seria fundamental pela luta que ele traz.Não posso negar que uma publicidadesignificativa seria boa para todos os envolvidosdo filme.

Boa sorte para você. Boto fé. Faltam filmes comoo seu.

Obrigado a você. Outros jornalistas ou pessoasque trabalham com cinema vêm me perguntar seeu quero ir a Cannes, Veneza… Olha, eu possoaté ir para a França, mas Cannes não conhece oTonacci, entende? Poxa, o melhor diretor domundo eles não conhecem! O que eles pensam éque documentário é a pior coisa do mundo. O quehá de mais forte hoje no cinema brasileirocontemporâneo está no documentário, comcerteza. Posso até ir a Cannes, mas não sou umdeslumbrado, não. Estou em outra!

Obrigado, Ardiley.

Que o anônimo seja não só capaz de tornar­se arte, mastambém depositário de uma beleza especifica, é algo quecaracteriza propriamente o regime estético das artes.(RANCIÈRE, 2009, p. 47)

Referências

BAZIN, André. O que é o cinema?. São Paulo: Cosac Naify,2014.

BERNADET, Jean­ Claude. Cineastas em Imagens do Povo.São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética epolítica. São Paulo: Editora 34, 2009.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinemanovo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: CosacNaify, 2012.