Entrevista Herminio Martins

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Hermínio Martins (Foto de Margaret Martins)

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Entrevista com o sociólogo português.

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  • Hermnio Martins(Foto de Margaret Martins)

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    Anlise Social, vol. XLVI (200), 2011, 460-483

    Entrevista a Hermnio Martinspor Helena Mateus Jernimo

    Hermnio Martins uma das figuras acadmicas que mais se destacamno processo de formao do universo sociolgico portugus e autor dealgumas incurses histrico-sociolgicas inaugurais sobre essa terraincognita que foi (ou ainda ?) Portugal para o mundo acadmico interna-cional.

    Nascido em Loureno Marques e forado a enveredar pelo exlio emInglaterra na dcada de 1950, foi nesse pas que desenvolveu a sua carreiraacadmica, nas Universidades de Leeds, Essex (onde foi um dos co-funda-dores do departamento de sociologia) e sobretudo Oxford, onde leccionoutrinta anos. Foi tambm professor nos EUA, nas Universidades de Pensilvniae Harvard. Apesar de viver fora de Portugal, a situao do pas constituiusempre um foco dos seus estudos e interesses. Organizou, com DavidGoldey, e por mais de duas dcadas, o Workshop on Portuguese Politics,Society & History na Universidade de Oxford, e orientou as teses demestrado e de doutoramento de algumas figuras-chave das cincias sociaisem Portugal e no mundo. Publicou vrios ensaios nos anos 70, como otexto, hoje sem dvida de referncia, Classe, status e poder em Portugal.Outro ensaio com o mesmo estatuto, Tempo e teoria em sociologia, revelaoutra faceta das suas abordagens: a filosofia do conhecimento cientfico eteoria social. Acaba de publicar Experimentum Humanum: CivilizaoTecnolgica e Condio Humana que, pelos caminhos da teoria social, dasociologia da cincia e da filosofia da tecnologia, procede a uma reflexoprofunda sobre os lados sombrios das consequncias da tecnocinciamercadolgica para a sociedade contempornea e para a questo ambiental.

    Hermnio Martins mostra-se avesso especializao superlativa e ao no-dilogo entre disciplinas; gosta de cultivar a perspectiva histrica e procurarasgar horizontes fora do mainstream; rejeita o frenesi do articulismo, eno complacente com o esprito de partido na academia; clama por umacomunidade portuguesa de cincias sociais aberta, plural, respeitosa da di-versidade terica e de investigao, que entenda a internacionalizao numsentido no provinciano e acrtico, que valorize o trabalho dos cientistassociais portugueses, incluindo o labor terico, a publicao na lngua portu-guesa e as revistas cientficas nacionais de cincias sociais.

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    Helena Mateus Jernimo sociloga, PhD pela Universidade deCambridge, docente no Instituto Superior de Economia e Gesto da Univer-sidade Tcnica de Lisboa (ISEG-UTL) e investigadora no Centro de Inves-tigao em Sociologia Econmica e das Organizaes (SOCIUS). As suasinvestigaes em sociologia da cincia, da tecnologia e do ambiente condu-ziram-na aos escritos de Hermnio Martins. Participou em vrias iniciativasconjuntas e, com Manuel Villaverde Cabral e Jos Lus Garcia, co-organizouRazo, Tempo e Tecnologia: Estudos em Homenagem a Hermnio Martins(Imprensa de Cincias Sociais, 2006).

    Helena Mateus Jernimo (HMJ) O Hermnio foi durante muitotempo um intelectual exilado, mas nunca deixou de acompanhar com aten-o o pensamento e a vida poltica do pas. O que que pensa sobre aconsolidao das cincias sociais em Portugal?

    Hermnio Martins (HM) No s acompanhei do exlio a situao dopas, com ateno, amargura e ansiedade, especialmente durante a guerracolonial, como, de facto, no fim da dcada de 60 e princpio dos anos 70,escrevi vrios textos acadmicos sobre o Portugal contemporneo, algunsdos quais foram publicados em colectneas e revistas cientficas britnicas.

    Em parte devido s circunstncias em que me encontrava, como profes-sor universitrio de sociologia no Reino Unido, na altura porventura o nicoportugus a ser professor titular em qualquer ramo das cincias sociais nessepas (como diferente a situao hoje!), os ensaios foram muito bem rece-bidos (tive sorte e a sorte, como sempre insistiu Popper, tem muito maisa ver com as carreiras acadmicas do que os acadmicos gostariam depensar). Foram considerados pioneiros, tanto pela comunidade cientficabritnica, como por vrios intelectuais portugueses no exlio na altura (umbom nmero a fazer doutoramentos em universidades francesas, belgas ousuas, pouqussimos na Inglaterra), como vim a saber anos depois.

    O ensaio sobre o Estado Novo e as suas origens foi caracterizado porManuel de Lucena num artigo publicado na Anlise Social, se bem melembro, como o pontap de sada dos estudos cientficos sobre o regimeautoritrio (Miriam Halpern Pereira e Jos Medeiros Ferreira disseram-memais ou menos o mesmo, independentemente, anos depois). O estudo sobrea estratificao social, que o antroplogo Jos Cutileiro classificou na alturacomo um verdadeiro pequeno livro pela sua densidade, ainda hoje referido,mas a sua abordagem neo-weberiana, a primeira feita por um socilogoportugus sobre qualquer assunto, salvo erro, no parece ter sido seguidamuito de perto em Portugal neste domnio, onde prevalecem as aproxima-es, perfeitamente legtimas, neo-marxistas de variadssimas estirpes, oubourdieusianas. O artigo sobre a oposio tambm continua a ser citado e

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    procurado. Estes trs ensaios foram finalmente reeditados em Portugal uns vinte e cinco anos depois! no livro Classe, Status e Poder: e OutrosEnsaios sobre o Portugal Contemporneo, com outro estudo, indito, escritoem 1970, quando foi apresentado num colquio internacional, organizado porJuan Linz e Al Stepan, sobre o colapso da I Repblica. A publicao destelivro deve-se em grande parte aos esforos de Antnio Costa Pinto; umasegunda edio foi publicada h poucos anos.

    De qualquer modo, foram, e continuaram a ser por bastante tempo,nicos na literatura acadmica anglfona sobre Portugal. A sua longevidadeem termos de citaes e de leituras no pode deixar de ser gratificante paramim: no so assim tantos os artigos nas cincias sociais que perduram portrs ou quatro dcadas, dentro e fora do pas. A investigao que tive defazer, difcil pela escassez de fontes na altura, e pelas limitaes bvias domeu acesso s que existiam, sem falar da preocupao em assegurar omximo de objectividade sobre questes to emotivas, considerei-a como umdever cvico (embora o meu passaporte portugus tivesse sido confiscado).Muito mais isso do que contributos para um currculo profissional.

    A respeito do primeiro ensaio que referi, o Manuel de Lucena disse quesentia nele o dio visceral ditadura: uma inferncia extra-textual, ao queme parece. Foi depois da publicao desse primeiro ensaio que estudiososamericanos como o historiador Douglas Wheeler e o politlogo PhilippeSchmitter, cujos contributos para os estudos portugueses so hoje bemconhecidos, me contactaram e conversaram comigo por ocasio das suasvisitas ao Reino Unido. Note-se que os estudiosos americanos, historiadores,politlogos, antroplogos, etc., que se voltaram para o estudo do Portugalcontemporneo em finais dos anos 60, em geral comearam por estudar africa e a Amrica Latina (sobretudo, mas no exclusivamente, o Brasil)antes de se dedicarem ao estudo de Portugal nos ltimos anos da ditadura.Portugal era na altura uma espcie de terra incognita na academia interna-cional, situao que ningum hoje pode provavelmente imaginar.

    Quanto consolidao das cincias sociais em Portugal nos ltimos trintaanos, todos podem constatar o facto, alis comprovado por um grande lequede indicadores bibliomtricos e profissionais. Era o que se esperava com oadvento da democracia, da integrao europeia, de uma certa prosperidade,e o crescimento do ingresso nas universidades, sem falar dos incentivosestatais que, desde 1987, tanto tm estimulado a investigao cientfica emPortugal, e das iniciativas felizes e da persistncia nessas iniciativas demuitos acadmicos portugueses.

    No entanto, devo confessar que tive uma nica viso utpica sobre esteassunto com que me permiti sonhar por algum tempo depois do 25 de Abril.Foi a de que se pudesse superar em Portugal algumas das limitaes dadiviso do trabalho cientfico nos estudos sociais e culturais que conhecia

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    em primeira mo no Reino Unido e na Amrica do Norte. Refiro-me hiper--especializao, no-comunicao entre disciplinas ou mesmo entre sub--disciplinas, e ao provincianismo lingustico, cultural e histrico que marcavao universo intelectual das cincias sociais (a falta de cultura histrica geralentre os socilogos pareceu-me ainda mais flagrante no Reino Unido do quenos EUA, pelo menos no que diz respeito s mais prestigiadas universidadesamericanas). A minha esperana utpica falhou: os defeitos que marcaram adiviso do trabalho intelectual nas cincias sociais da anglofonia foram repro-duzidos no s mimeticamente, mas tambm com verdadeiro e at exacerbadoentusiasmo. Como se revelaram to zelosos os acadmicos portugueses comrespeito ao policiamento de fronteiras cognitivas, disciplinares, doutrinais, ideo-lgicas, institucionais, corporativas! Felizmente, ainda contamos comacadmicos que so multidisciplinares, poliglotas, e de uma cultura geral nascincias sociais, inclusive uma cultura histrica excepcional, mas muitos delesj atingiram a idade da reforma ou vo-se jubilar nos prximos anos (emboracontinuem certamente activos e a dar um bom exemplo s geraes futuras).Ter esta gerao sucessores sua altura, com o mesmo -vontade emassumir e interrelacionar variadas perspectivas disciplinares?

    HMJ Dado o seu conhecimento profundo de outras realidades, nome-adamente da do Reino Unido, como que v, em termos comparativos, asinstituies de cincias sociais em Portugal? Que impresso tem sobre oposicionamento do ICS nesse terreno?

    HM As poucas que conheo razoavelmente parecem-me equiparveiss que se encontram noutros pases. O ICS, como sabido, dedica-seexclusivamente investigao e goza de um prestgio bem merecido em todaa parte, dentro e fora de Portugal. escala do pas, talvez no se possaaumentar significativamente o nmero dessas instituies, embora fosse porcerto desejvel que as instituies existentes demonstrassem uma maiorabertura a pessoas e ideias. Mas, quem sabe, talvez surjam inesperadamentepropostas inovadoras; se assim for, espero que sejam bem acolhidas. Umdos verdadeiros testes da capacidade de inovao do sistema cientfico nascincias sociais hoje em Portugal ser precisamente a sua aptido para res-ponder positivamente s propostas e projectos que iro aparecer, que pode-ro transcender projectos disciplinares e divergir de marcas estrangeiras pr--seleccionadas.

    Nota-se uma obsesso com modelos de trabalho estrangeiros (especial-mente certos supostos modelos norte-americanos) por parte dos gestoresuniversitrios e de outros poderes estabelecidos, obsesso que afecta osapoios indispensveis ao trabalho cientfico hoje, como se esses modelos ou melhor, o subconjunto muito limitado desses modelos que eles conside-ram no top gozassem de uma normatividade exclusiva e indiscutvel.Entendem a internacionalizao num sentido muito provinciano, acrtico,

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    assimtrico, burocrtico no pior sentido. A insistncia em pertencer aoranking das revistas acadmicas mundiais, segundo critrios obscuros, imi-tado de forma servil e mecnica das cincias duras, assim como outrospadres e regras que tm pouco sentido na maioria das cincias sociais ehumanas, uma das piores coisas que tem acontecido nos ltimos anos. Porexemplo, o sistema Harvard de referenciao bibliogrfica, desenhado spara as cincias duras, tornou-se praticamente obrigatrio nas cincias so-ciais, sem qualquer justificao intelectual para essa transferncia, mas comefeitos cognitivos indesejveis. A nocividade to flagrante, a defensibilidadeto fraca, o absurdo to patente, que se torna incompreensvel a continuaodestas prticas: ser que a mera inrcia pode explicar esta continuidade? Outalvez o gozo do poder administrativo seja a sua prpria justificao...

    O dever primacial dos gestores deixar-nos trabalhar em paz, com plenaliberdade intelectual, e no procurar ditar o que se deve fazer, onde se devepublicar, a extenso dos textos cientficos, os requisitos autorais, a lnguaem que se publicam os textos, ou a grafia da lngua em que se escreve. Oque poderamos chamar a oficializao do cientificismo e o dirigismo emrelao produo do conhecimento na academia tem sido um dosfenmenos mais surpreendentes nas ltimas dcadas nos Estados que aindase denominam democracias liberais, incluindo Portugal, claro.

    Qualquer dia, na continuao desta trajectria de poltica acadmica, voinsistir que os artigos de cincias sociais consistam s numas poucas pgi-nas, como ocorre nas cincias duras, e que, como tambm nas cinciasduras, nunca sejam assinados por um autor s, mas por muitos autores,quantos mais melhor, como os artigos assinados por 160 autores ou mais,ou outro nmero desta ordem de grandeza, como acontece em certos ramosda fsica! Ningum se preocupa com a imputabilidade da responsabilidadeepistmica nesses casos, outrora um critrio crucial. Vivemos numa era emque se proclama a soberania do indivduo absoluto, em que se afirma asupremacia do individualismo econmico, poltico, moral e religioso, e oindividualismo metodolgico e ontolgico tende a predominar entre cientistassociais. No entanto, ao mesmo tempo, colectiviza-se e mesmo massifica-seformalmente o trabalho cientfico como nunca, sujeito a protocolos de es-crita rgidos, a exigncias de uniformizao sem precedentes, com o mono-plio de uma nica lngua na comunicao cientfica internacional, valoriza-se acima de tudo o trabalho de equipa, e o autor cientfico como sujeitoepistmico imputvel cede lugar funo-autor.

    HMJ Na sua opinio, quais so as linhas de fora tericas e empricasque emergiram nas cincias sociais portuguesas nos ltimos 20 anos?

    HM Para responder adequadamente a esta pergunta, teria de passar umano e tal completamente dedicado a ler a produo abundante das cinciassociais em Portugal nos ltimos 20 anos que refere. O que no vai aconte-

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    cer, e duvido que algum o possa fazer. Alis, um dos problemas que secolocam para responder cabalmente a perguntas deste tipo, mesmo s comrespeito a uma nica das grandes cincias sociais, como por exemplo asociologia, ou domnios mais especficos, como a sociologia urbana ou asociologia da religio, por exemplo, a falta de survey articles regulares efrequentes que apresentem e discutam o movimento das publicaes e ideiasem, digamos, quinqunios sucessivos. Idealmente, estes textos deveriam seracompanhados por breves comentrios dos autores referidos, quando eles oconsiderassem necessrio, ou dos autores que se considerem injustamenteomitidos. Assim, as suas verses iniciais deveriam ser previamente distribu-das pela comunidade cientfica visada para uma ampla discusso, dado quea parcialidade, a selectividade injustificada, e a simples ignorncia podemviciar estes estudos. Um estrangeiro que leia portugus e queira ficar rapi-damente a par do que se tem escrito nos ltimos anos em Portugal numadada rea das cincias sociais, no pode desfrutar de muita ajuda de fontesescritas que faam um levantamento da rea, porque esta modalidade detrabalho muito insuficiente. Trata-se de um sintoma de anomia no sistemacientfico portugus, no sentido de Durkheim, quando analisou a diviso dotrabalho social patolgica, com a falta de comunicao, intercmbio e derecuperao de trabalhos coevos ou recentes.

    Na correria de produo incessante de artigos, cada vez mais curtos,especficos e limitados a que poderamos chamar de frenesi doarticulismo , exacerbada pelas condies existenciais do trabalho cient-fico hoje, aquele tipo de trabalho no se torna muito apelativo. Rouba muitotempo, exige muita dedicao, e representa, quando feito sem esprito departido e sem ser um instrumento de luta na poltica acadmica, para ar-rumar os inimigos (o que acontece), representa uma espcie de altrusmocientfico quase completamente desvalorizado e qui mesmo prejudicial parao autor. H, sem dvida, excepes de mrito, com as quais nos devemosregozijar, mas so precisamente excepes.

    A este respeito, note-se que muitas revistas acadmicas em Portugal seintitulam Anlise: a revista de filosofia s com este ttulo (que no publi-cava s artigos de filosofia analtica, estritamente falando), a Anlise Social,a Anlise Psicolgica, e outras. Salvo erro, nenhuma revista acadmicaportuguesa se intitula revista de sntese. Tambm nenhuma hoje se intitularevista transdisciplinar ou interdisciplinar (a revista Episteme foi uma revistamultidisciplinar quando dirigida por Adelino Torres, mas infelizmente j nose publica), embora, de facto, bons estudos interdisciplinares se publiquemem variadas revistas de cincias sociais e humanas. Ora, como diziaSchumpeter no seu grande livro sobre a histria da anlise econmica, noh anlise, por mais sofisticada, exacta e precisa que seja, sem uma viso,possivelmente eclctica e confusa, do mundo social, incorporando uma certa

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    imagem do Homem, ou uma certa concepo global da Histria, ou umaconcepo geral do conhecimento, das suas fontes, critrios e limites,subjacente s anlises, mesmo matemticas (a matematizao crescente daeconomia era um dos temas do livro). Uma viso que pode ser mais oumenos articulada conscientemente pelo autor, mas que deve ser reconstrudapelos historiadores e crticos. Podemos chamar analiticismo o equacionaro trabalho cientfico com a produo do que se consideram anlises, deforma quase exclusiva, e por certo privilegiando este tipo de estudo. O quedecorre deste analiticismo especioso dominante que as vises subjacentess anlises e h sempre vises subjacentes s anlises nunca chegama ser articuladas, elaboradas, confrontadas e discutidas adequadamente. Poroutras palavras, no sofrem crtica racional. A melhor maneira de esclarecer,confrontar, corrigir e aperfeioar as vises informais subjacentes aos imen-sos esforos analticos que se publicam atravs da explicitao de teorias.S pela formulao consequente de teorias que podemos defender oudesacreditar vises globais que informam o trabalho cientfico explicitado emartigos de anlise. Ora cabe aqui precisamente constatar um dfice deteoria nas cincias sociais em Portugal: no tanto que no haja interessestericos, ou conhecimentos vastos das teorias ou sistemas tericos formu-lados l fora, ou que os desenvolvimentos tericos elaborados no estrangeirono sejam acompanhados aqui, porque so, e com muita rapidez em algunscasos, e mesmo defendidos entusiasticamente como le dernier cri. E, defacto, existem estudos notveis de teorias ou tericos pertinentes para ascincias sociais por autores portugueses: Althusser, Saussure e G. H. Mead,por exemplo, foram objecto de excelentes livros por socilogos portugueses,a Escola de Frankfurt objecto de bons estudos nas cincias da comunicao.Mesmo assim, muitas referncias tericas funcionam mais como ornamen-tos, ou sinalizaes de pertena a escolas (sucedneos de uniformes), tes-temunhos de afinidades intelectuais, ou simplesmente indicaes de leituras,do que como instrumentos de trabalho, sugestes de pistas de investigao,ou matrizes de hipteses a serem testadas ou revistas (excepto no caso deteorias de restrito alcance em domnios especficos). No se discutemexplicitamente teorias, exigindo-se de forma quase exclusiva artigos de an-lise, e, assim, o resultado global uma espcie de cripto-dogmatismodifuso, ubquo e eclctico nas cincias sociais em Portugal, em que muitospreconceitos tericos, muitos conceitos amplamente usados, ficam fora dadiscusso. Seja como for, um pas onde a vulgata marxista-leninista, e assuas heresias, teve tanto peso, no um pas necessariamente anti-terico,pelo menos quando a teoria se apresenta como uma concepo total domundo e como uma ortodoxia ou ortopraxia...

    Mas, mais do que um dfice de teoria, devemos falar de um dfice deteorizao. Poucos se atrevem a publicar formulaes tericas que no sejam

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    decalques de teorias formuladas por autores estrangeiros reconhecidos. Piordo que isso, os poucos (no sero assim to poucos, mas esto isolados)que se atrevem a fazer trabalho terico independente so ignorados, ou noso reconhecidos como tericos, condenados invisibilidade, pelo menoscomo tericos. Parece-me que devemos constatar que h muitas hesitaesem os citar, e mesmo os que conhecem bem os seus trabalhos podemter sido mesmo seus alunos ou orientandos preferem citar autores estran-geiros quase exclusivamente, quer trabalhem dentro ou fora de Portugal. Ostericos que temos so muito mais citados e comentados no Brasil do queem Portugal. o meu caso, e poderia tambm referir os nomes de vrioscolegas na mesma situao, na sociologia, na antropologia e nas cincias dacomunicao, bem mais conhecidos no Brasil do que aqui, e cujo trabalhoterico inexplicavelmente subestimado pela academia portuguesa, pelomenos a julgar pelo nmero escasso de citaes, referncias, ou comentriospublicados, dentro e fora das respectivas disciplinas. Muitos estudos tericosfeitos por esses colegas no ficam registados na memria colectiva da aca-demia e simplesmente no so citados, ou muito pouco.

    Em ltima anlise, seria mais apropriado falar de um dfice de reconhe-cimento do trabalho terico. Com isto quero enfatizar sobretudo um dficedo reconhecimento do trabalho terico feito por cientistas sociais portugue-ses, seja os que trabalham em Portugal ou os que trabalham no estrangeiro,mesmo aqueles que tambm fazem muito trabalho emprico, etnogrfico ououtro. Este clima intelectual, acadmico e profissional de no-reconhecimen-to do trabalho terico independente, e at da suspeita de interesses tericosexcessivos, promove a timidez que se nota em jovens talentosos quepoderiam prosseguir este tipo de trabalho, mas no se atrevem (as sanesnegativas so demasiado evidentes). Citar, comentar, adoptar (pelo menos,grosso modo), referenciar as teorias produzidas no estrangeiro, quase exclu-sivamente as produzidas em quatro pases (Reino Unido, EUA, Alemanha,Frana), porque as produzidas nos outros praticamente no contam, tudo bem at se pode instalar uma theory-franchise de uma ou outra dessas teoriasem Portugal, sem problema. Os estudos sobre Luhmann ou Habermas, assimcomo os de Schutz ou Max Weber, tm sido feitos predominantemente,embora no de forma exclusiva, por no-socilogos em Portugal. Mas procu-rar ir mais longe, fazer o nosso prprio trabalho terico independente, nosubsumvel nalguma corrente de pensamento pr-estabelecida, motivo parasuspeitas e pode mesmo acarretar o bloqueamento das carreiras acadmicasdos que se aventuram a faz-lo. O mais fcil, no entanto sempre ignor--lo e conserv-lo o mais invisvel possvel, nunca o citando, por exemplo,ou citando-o com muito pouca frequncia, e de uma maneira que no des-perte a curiosidade. s vezes, sinto que na academia portuguesa no pesatanto o medo de existir, que j foi evocado a propsito de tantos alegados

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    males portugueses, mas qualquer coisa como o medo da teoria, se mepermite esta expresso que, sem dvida, vai parecer exagerada, mas noteque me refiro especialmente ao medo da produo de teoria pelos indgenas.

    Quanto ao papel da filosofia nas cincias sociais, ou reciprocamentequanto ao papel das cincias sociais na filosofia, no se quer falar disso:assuntos censurados e auto-censurados.

    Nos casos da sociologia, da antropologia, da cincia poltica, e provavel-mente noutras reas, as grandes correntes internacionais de pensamento soconhecidas em Portugal, seno necessariamente seguidas, e professadascomo programas de investigao. Um bom exemplo seria a Nova HistriaEconmica, cujos contributos continuam a ser publicados por estudiososportugueses, enquanto a economia comportamental (behavioural economics)ainda no parece ter seguidores. Mas h excepes curiosas, que merecemser notadas brevemente: so excepes no porque essas escolas no sejamconhecidas e admiravelmente apresentadas aos alunos, pelo menos por al-guns professores, mas porque no parecem ter praticantes dedicados esistemticos, e nenhuma dessas correntes provocou os choques que ocor-reram aquando do seu primeiro impacto noutras sociologias nacionais. Voucitar apenas quatro instncias:

    (1) A etnometodologia no parece ter chegado a Portugal, embora se devareconhecer que a mesma no-recepo ocorreu noutros pases euro--latinos ou latino-americanos, um fenmeno surpreendente, tendo emconta a californizao cultural ou contra-cultural que os tem afectadoh dcadas por vrias vias, entre os quais as ideologias associadas snovas TIC (Ernest Gellner considerou a etnometodologia como umfenmeno californiano, mas exagerou neste ponto, na minha opinio).No entanto, sem professar adeso a esta escola (nem a qualquer dasoutras que vou citar), devemos reconhecer que foi uma corrente impor-tante de pensamento, cuja investigao das estruturas profundas dosenso comum um contributo fundamental nas cincias sociais: nomnimo, um grande e irrecusvel desafio. A sua crtica da sociologianormal, especialmente a que feita com inquritos atrs de inquritos(inquritos no sentido de survey research), por facilitismo, talvez maisdo que por bem fundamentada convico metodolgica, merece refle-xo, mesmo que no seja aceitvel na ntegra.

    (2) Quanto fenomenologia social, que alis teve um papel crucial naformao da etnometodologia, os nicos estudos sobre Schutz queconheo em Portugal foram feitos por no-socilogos: no se compre-ende por que razo no se publica uma antologia de alguns ensaios desteautor, to iluminantes e estimulantes como alguns so; de resto, arecepo deste autor tem sido muito lenta nos pases latinos. Tendo em

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    conta a grande influncia da fenomenologia husserliana, heideggerianaou merleau-pontyana na filosofia portuguesa, entre os bracarenses eno s (inclusive entre autores de muita fama), e na psiquiatria filosficaportuguesa, sem falar do impacto do existencialismo nas artes e letraslusitanas, parece-me muito curioso que este interesse no tenha ecoadona sociologia portuguesa, talvez mais um dos hiatos na vida intelectualportuguesa, espantosos num pas to pequeno.

    (3) O programa normalmente chamado de teoria da escolha racional, quese tornou praticamente o programa dominante na cincia poltica norte--americana, mas com grande impacto tambm na sociologia, inclusive,surpreendentemente, na sociologia da religio, na antropologia, mesmona antropologia econmica, e noutras disciplinas, nunca teve em Portu-gal a centralidade que teve at tempos muito recentes, pelo menos nospases anglfonos, nem tem sido alvo de muitas discusses. H ptimosestudos sobre estratgia econmica e poltica, por estudiosos portugue-ses, mas no generalizados em termos mais amplos como alternativas sexplicaes convencionais da aco social em geral.

    (4) O programa de pesquisa da sociobiologia, agora denominada psicologiaevolutiva, que se prope como programa verdadeiramente cientfico(cientfico no sentido das cincias duras, segundo eles), contra o queos seus expoentes chamam modelo padro das cincias sociais(standard social science model), desprivilegiando o princpio de explica-o do social pelo social que rege este modelo-padro, e insistindo nosfundamentos biogenticos e evolutivos da vida social humana como amatriz explicativa bsica nas cincias sociais, no tem representantesconfessos nas cincias sociais em Portugal, que eu saiba. Dado o queaconteceu aos poucos socilogos norte-americanos que se converterama este programa, condenados ao ostracismo acadmico pelos seuscolegas, simplesmente por isso, no me admira que a tentao de estudara fundo este programa alternativo s cincias sociais convencionaistenha sido resistida, talvez para o bem de todos.

    Permita-me uma reflexo final. A sociologia acadmica em Portugal,digamos nos ltimos vinte e cinco anos, o perodo de vida da sua associao,fundada bem depois do 25 de Abril, ao contrrio do que ocorreu em vriosoutros pases, nunca sofreu um grande choque, uma grande crise intelectual/disciplinar/profissional que atravessasse seriamente toda a disciplina. Estou apensar aqui nas mltiplas crises, sucessivas ou simultneas, de variados tipose fontes, de que sofreu a sociologia e alis tambm a antropologia social,embora essa disciplina gozasse de muito maior prestgio e influncia intelec-tual generalizada do que a sociologia, por muito tempo no Reino Unido, e nos, nos ltimos trinta ou quarenta anos. Crises que decorreram primeiro da

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    rejeio do funcionalismo, seguida por uma espcie de babelizao de ml-tiplas escolas de pensamento, inclusive as escolas marxistas, guerreando-seentre si, todas reclamando o direito hegemonia que supostamente antestinha gozado o funcionalismo, o que nunca veio a acontecer (vrios estudio-sos distinguiram umas boas dezenas de escolas ou tendncias na sociologiageral contempornea). Depois veio o choque da etnometodologia, que punhaem causa tantas prticas de pesquisa sacrossantas; vieram as crisesepistemolgicas provocadas pelo impacto de Popper, Kuhn, e pelo debate emredor destes e outros autores na filosofia da cincia, a manifesta incapaci-dade da sociologia convencional em compreender toda a srie de reviravoltasna poltica e economia do pas desde os anos 70, o choque do feminismono s como movimento social, mas como movimento terico plural, osataques a todas as formas de colectivismo (termo pejorativo para muitos),que pareciam subverter os princpios fundamentais da sociologia como daantropologia (at a economia keynesiana foi impugnada como colectivista),e a quase-decomposio iminente da disciplina, que s foi evitada num certomomento pela sntese terica e a manualizao da sociologia por AnthonyGiddens, etc. Cito o caso ingls porque o conheo melhor do que qualqueroutro, mas a disciplina passou por crises semelhantes noutros pases euro-peus e americanos: um socilogo americano, Irving Louis Horowitz, autorde uma excelente biografia de C. Wright Mills, chegou mesmo a publicar umlivro com o ttulo A Decomposio da Sociologia.

    Esta ausncia de crises intelectuais/profissionais do gnero das que so-freu repetidamente a sociologia britnica, assim como outras sociologiaseuropeias, talvez explique o que me atrevo a chamar de uma certa sonolnciaintelectual da disciplina em Portugal, globalmente falando. Esta condiodeve-se em parte, sem dvida, sua consolidao tardia, depois dos grandesdebates das dcadas anteriores. Por exemplo, quando a Associao Portu-guesa de Sociologia foi fundada, os debates inter-marxistas j tinham ocor-rido em Portugal, mas isso tinha ocorrido na poltica e no no planoacadmico, e os grandes marcos tericos de hoje j se tinham consolidado,pelo que se pode dizer que todos esses choques j tinham sido absorvidos.Esta sonolncia intelectual, em termos globais, , na minha opinio, umapropriedade emergente da disciplina institucionalizada como disciplina, noum atributo de qualquer dos indivduos que professam a disciplina, cujosintelectos esto to vivos, irrequietos e abertos como em qualquer outropas. perfeitamente compatvel com altos nveis de produo acadmica dequalidade indisputvel, facto que legitima um certo grau de auto-satisfao,colectiva e pessoal. Seja como for, certamente protegida ou reforada poralgumas das atitudes que j mencionei, tal como o no-reconhecimento dotrabalho terico e o afastamento, ou as tentativas de afastamento, ou segre-gao, dos autores, temas e abordagens incmodos, induzindo atitudes e

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    prticas conducentes a uma espcie de hiper-normalizao da disciplina emPortugal. A formao do habitus caracterstico de uma disciplina nacionaldepende de processos complexos e de momentos histricos crticos, mas,uma vez consolidado, poder constituir um factor de estagnao, com apersistncia de ngulos cegos: o habitus pode gerar um quietus.

    Acrescentaria finalmente que uma histria ou uma sociologia da sociolo-gia portuguesa, como de qualquer outra sociologia nacional, no deve negli-genciar o estudo dos mecanismos de excluso, de marginalizao, dos siln-cios, dos fracassos no prosseguimento de grandes tradies, dasno-recepes de autores e ideias. Nem o tpico da construo de impriosacadmicos nas cincias sociais. Tpico que poderia ser o assunto de umbelo estudo comparativo dos modos de afirmao do carisma, conhecimen-to, e poder na academia portuguesa, dentro do sistema poltico-culturalnacional. A no ser que se queira glosar a histria da sociologia portuguesacomo uma histria alegre da sociologia portuguesa. J a crise das univer-sidades, os ataques ao modelo clssico das universidades, a mercantilizaoprogressiva do trabalho cientfico, e a escassez de recursos, so factoresque afectam todas as disciplinas, no especificamente a sociologia.

    HMJ A evoluo das cincias sociais tem ocorrido em dois nveisdiferentes. Por um lado, ao nvel da sua interdisciplinaridade interna coma consolidao de sub-disciplinas, como a antropologia, sociologia, cinciapoltica, etc. Por outro lado, ao nvel da sua interdisciplinaridade externa,nomeadamente a relao com disciplinas fronteirias, como a medicina, afilosofia, a lingustica, etc. Que comentrios lhe suscita este duplo processo?

    HM Eu considero a sociologia, a antropologia e a cincia poltica comodisciplinas, e no sub-disciplinas. A sociologia da famlia ou a sociologiaurbana podero mais propriamente denominar-se sub-disciplinas da sociolo-gia. A antropologia social e a cincia poltica tambm se devem considerarcomo leques de sub-disciplinas. Nos ltimos anos, as relaes internacionaisconsolidaram-se finalmente como disciplina autnoma, fora da tutela da cin-cia poltica. Outros campos de estudo, como a geografia social, a psicologiasocial, ou a biologia social, em geral no se integram nas Faculdades deCincias Sociais, mas de certo modo pertencem ao sistema das cinciassociais.

    Quanto s relaes com as disciplinas fronteirias que menciona, diriaque me surpreende particularmente a incipiente institucionalizao da socio-logia da medicina em Portugal, pois o Reino Unido j dispunha de ptimosmanuais nos finais da dcada de 60, escritos em conjunto por antroplogose socilogos. Existem suficientes recursos humanos em Portugal e suficientecapital intelectual para a constituio da sociologia da medicina como umcampo de investigao a par de outras sub-disciplinas da sociologia j con-solidadas. S uma observao lateral aqui: por que razo ainda no se rea-

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    Entrevista a Hermnio Martins

    lizou um dilogo sociolgico com a obra do neurocientista Antnio Damsio?J h dcadas que se publicaram os primeiros estudos de neurosociologiae a neurocincia social um ramo de pesquisa bem estabelecido nos EUA.J temos, verdade, belos estudos sobre Egas Moniz como cirurgio psi-quitrico. Seja como for, uma maior presena da sociologia nas Faculdadesde Medicina, Engenharia e Direito parece-me absolutamente necessria, emparte porque continuam a ser extremamente importantes no tecido culturale poltico do pas, mas tambm porque a sociologia tem muito a dar e areceber dessas Faculdades.

    Quanto sociologia do direito, como em alguns outros domnios, osbrasileiros esto mais avanados: permita-me referir a obra do socilogoPedro Scuro Neto, cujo ttulo diz tudo, Manual de Sociologia Geral eJurdica, em que relaciona a teoria sociolgica com a filosofia e sociologiado direito. A primeira edio j data de 1996.

    Quanto filosofia, permita-me evocar uma experincia pessoal. Fui umdos fundadores de uma nova licenciatura em sociologia e filosofia na Uni-versidade de Leeds nos ltimos anos da dcada de 60. Foi nesse curso queconheci os alunos de licenciatura mais brilhantes que jamais tive em toda aminha carreira de docente universitrio. Alis, este curso foi elogiado por umfilsofo britnico eminente, Bernard Williams, ento da Universidade deLondres, quando foi o avaliador externo da licenciatura. As circunstnciasno me permitiram repetir esta experincia, mas se tivesse tido a oportuni-dade, certamente teria sido uma das minhas prioridades como docente uni-versitrio em Portugal, que nunca cheguei a ser. Gostaria de pensar que estalicenciatura se poderia vir ainda a constituir em Portugal, tal como licencia-turas em antropologia e filosofia, ou economia e filosofia. Cincia polticasem filosofia poltica ou histria do pensamento poltico no faz sentido paramim. Como antigo aluno de Michael Oakeshott e leitor atento de EricVoegelin, cuja obra monumental sobre a histria do pensamento poltico noOcidente supera todas as outras, no consigo compreender como se podetirar um curso de cincia poltica sem, pelo menos, uma introduo a estecampo de estudos. H uma tendncia forte em toda a parte para reduzir acincia poltica, como alis tambm a sociologia, ao estatuto de policysciences, assistentes de pesquisa para a formao de polticas pblicas.Como disse algum a respeito da LSE1 de hoje, a preocupao comevidence-based policies conduz rapidamente circunscrio de policy-basedevidence, a busca de dados basicamente para legitimar a poltica pblica jdecidida ou que se quer favorecer. a negao da racionalidade crtica!

    Quanto ausncia de conceitos e perspectivas sociolgicas na historiogra-fia portuguesa, excepto na medida em que j foram incorporados pelos seus

    1 The London School of Economics and Political Science.

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    mestres estrangeiros de fazer histria, parece-me simplesmente um absurdosingular. Qualquer coisa de muito estranho acontece s pessoas com umbackground em sociologia quando se dedicam histria, pelo menos emPortugal: nada passa da sociologia que estudaram para a histria que fazem,pelo menos nada de explicitado.

    HMJ Em que medida que o seu trabalho terico marcou a socio-logia portuguesa?

    HM O meu primeiro longo texto terico publicado em ingls foi sobreo famoso livro de Kuhn e a discusso em torno dele, especialmente nafilosofia da cincia. Tinha comentado e criticado esse livro e frisado a suaimportncia em aulas, seminrios e colquios praticamente desde a suapublicao em 1962, e fui o primeiro a apresentar a sua problemtica numcolquio da Associao Britnica de Sociologia, onde Ernest Gellner estavapresente (no tinha lido Kuhn na altura). Surgiu a oportunidade de publicarum trabalho sobre o assunto e escrevi um longo texto de quase 100 pginasque teve de ser consideravelmente abreviado. Foi o primeiro longo textosobre o assunto a ser publicado por um socilogo, pelo menos na lnguainglesa: numa longa bibliografia de estudos sobre este assunto publicada noAmerican Sociologist, o meu estudo aparece logo no princpio, enquanto agrande maioria dos artigos listados s foi publicada uma dcada depois. Foio primeiro texto, certamente o primeiro longo texto acadmico, sobre o autorde The Structure of Scientific Revolutions a ser publicado por um autorportugus (provavelmente tambm se podia dizer, de forma ainda maisabrangente, por um autor lusfono ou ibrico). Factos que me parecemdignos de registo numa histria da sociologia portuguesa, por exemplo, tantomais que Kuhn continua a ser um autor de referncia e as questes quetratou continuam em aberto.

    O meu ensaio procurou tomar em conta os contributos principais dogrande debate na filosofia da cincia a respeito da obra de Kuhn e as suasimplicaes, possivelmente o mais intenso e duradouro debate que jamais serealizou nesta disciplina os nomes mais salientes eram Michael Polanyi,Popper, N. R. Hanson, Imre Lakatos, Paul Feyerabend. Porque que umsocilogo fez uma interveno neste grande debate, especialmente to cedocomo o fiz? Por um lado, devido aos meus interesses na filosofia da cincia,que vm de longe. Por outro lado, a sociologia da cincia que existia napoca era a da escola de Merton, que me parecia muito limitada (no era onico a pensar assim, claro). A primeira frase do meu texto identificava adisjuno entre a sociologia do conhecimento, que analisava os contedos doconhecimento, e a sociologia da cincia convencional, que os ignorava,como algo que tinha de ser superado. O que sugeria era que precisvamosde uma sociologia do conhecimento cientfico, o que exigia uma discussodas relaes entre sociologia e epistemologia, tema que, como sabido, j

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    Entrevista a Hermnio Martins

    tinha sido discutido por Durkheim na sua maior obra (refiro-me, claro, aolivro Formas Elementares da Vida Religiosa, publicado em 1912). O meutexto abriu horizontes para um certo nmero de jovens socilogos britnicos,alguns dos quais, na sequela deste grande debate filosfico, vieram a cons-tituir uma escola, ou escolas, de sociologia do conhecimento cientfico (aminha influncia neste sentido foi constatada num livro de um socilogoespanhol, publicado h alguns anos, baseado em parte em entrevistas comos socilogos em questo). Como tende a ocorrer, eles radicalizaram e re-radicalizaram a sociologia do conhecimento cientfico, formulando uma ver-so do construtivismo social (como veio a ser chamado depois), e que euchamo, citando Parsons, de solipsismo sociolgico, variantes derelativismo epistemolgico que sempre rejeitei (mas quem estava interessadoem Kuhn na altura era sempre acusado disso, um libelo desagradvel). Di-vergindo dessas correntes de pensamento, a mertoniana e a relativista, fuium dos fundadores de uma srie de volumes baseados em colquios anuais,o Sociology of Sciences Yearbook, que ainda se publica, onde acolhamosvariados tipos de estudos sociolgicos divergindo tanto da sociologiamertoniana da cincia como do relativismo epistemolgico das escolas deEdimburgo ou de Bath. Tivemos tambm o privilgio de estarmos entre osprimeiros a dar relevo pblico internacional obra de Norbert Elias, na alturaainda pouco reconhecida no Reino Unido, publicando um longo texto dele.Foi o primeiro frum europeu dos estudos sociais sobre a cincia e tecnologia,pelo menos com interesse terico, facto tambm digno de registo.

    Numa segunda ocasio, tive a sorte de poder intervir (a linguagemalthusseriana irresistvel) num outro grande debate, na sociologia geral, comum texto escrito tambm em ingls e publicado numa colectnea organizadapor John Rex, o Tempo e a teoria na sociologia. Este texto teve um certoimpacto internacional (em Portugal, verdade, no teve pblico por muitosanos). A conjuntura internacional era muito interessante: a sada do funciona-lismo dominante e a luta pela sucesso do funcionalismo como forma domi-nante de pensar a teoria sociolgica e pela constituio do programa-mestre deinvestigao na sociologia para as prximas dcadas pelo menos, uma questoespecialmente importante devido expanso da sociologia britnica e europeiadepois de alguns anos de predominncia americana. Nem todas as crticasmais repetidas ao funcionalismo eram bem fundadas, como procurei mostrar(todos, mesmo os marxistas de diferentes escolas, se acusavam mutuamentede erros funcionalistas) e algumas das suas limitaes eram partilhadas pormuitas outras escolas. Neste contexto, discuti vrios conceitos com respeitos temporalidades sociais e histricas. Apresentei um certo nmero de concei-tos que foram discutidos por vrios comentadores, tal como o cognitivismoinflacionrio, o cesurismo, o pluritemporalismo e o nacionalismometodolgico, alm de uma discusso que me pareceu inovadora das relaes

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    entre narrativa e anlise no discurso historiogrfico, bem antes da explosodos estudos sobre narrativa, narratologia e narrativismo dos anos 80 e 90,e de uma tipologia analtica das relaes entre sociologia e histria, que meparece igualmente importante, que receberam menos ateno.

    Este ensaio foi muito bem recebido na altura e comentado na literaturasociolgica internacional. Foi muito elogiado pelo socilogo norte-americanoDennis Wrong e pelo antroplogo britnico Peter Worsley, entre outros,citado por autores europeus como Franco Ferrarotti e Niklas Luhmann (onico socilogo portugus a ser citado por este autor), e traduzido emespanhol numa colectnea de estudos, alguns de sociologia clssica, sobreTempo e Sociedade. Vrios socilogos britnicos consideram-no umclssico (o autor nunca pode dizer isto, mas pode citar a opinio deoutros!). Continua a ser citado, dcadas depois da sua publicao original,at na Coreia do Sul e no Japo, devido especialmente ao conceito denacionalismo metodolgico de que fui o autor, como hoje reconhecidoem toda a parte, em textos publicados dentro e fora da sociologia, porcientistas sociais de vrias disciplinas e nacionalidades. Um socilogo famo-sssimo, Ulrich Beck, costumava dizer que o conceito de nacionalismometodolgico era o conceito mais importante da sociologia do sculo XX.Mas como este conceito foi formulado originalmente por mim, e no por ele,embora ele o tenha aproveitado sua maneira, talvez eu possa desfrutar deum quinho da fama dele... O conceito de cesurismo foi menos aproveitado,mas posso regozijar-me das referncias simpticas a este conceito, especial-mente em vrios textos de Joo de Pina-Cabral, e do aproveitamento dotermo ter aparecido no ttulo e na substncia de um livro de Carlos Leone,um estudo crtico sobre os media.

    Permita-me fazer uma observao que tem a ver no com o contedo dosdois textos tericos, ou a sua recepo internacional, mas com a sua apre-ciao no nosso pas. Num estudo recente sobre a histria da sociologiaportuguesa, a nica meno especfica a um texto meu ao estudo sobreClasse, status e poder em Portugal, que trata em trs ou quatro linhas.Fiquei perplexo. Ento estas duas intervenes em grandes debates internacio-nais, debates que devem ser do conhecimento de todos os socilogos, em quefui, por sorte, o nico socilogo portugus a participar, merecendo um certoreconhecimento internacional, com textos que continuam a ser citados dcadasdepois, especialmente fora de Portugal, no merece registo, mesmo que breve,num estudo sobre a histria da sociologia portuguesa desde 1964? Esta omis-so, este silncio, ser devida ao menosprezo generalizado do trabalho tericoquando feito por portugueses, especialmente quando esto l fora, e no tme nunca tiveram (acrescentaria: nunca quiseram) poder institucional, e, portan-to, visibilidade, na academia portuguesa? Ignorncia no ser, tanto mais queesses dois estudos foram publicados em Portugal h quinze anos na colec-

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    Entrevista a Hermnio Martins

    tnea Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social. A pesquisa bibliogr-fica pode ser muito cansativa, mas qualquer estudioso seriamente interessadopoderia ter consultado o ensaio muito completo de Jos Lus Garcia sobreos meus trabalhos, publicado no meu livro de homenagem.

    Talvez quisesse excluir os meus textos sobre cincia e tecnologia comode mero interesse especializado e sectorial. No entanto, fcil perceber queos meus ensaios sobre o risco e a incerteza, ou sobre os processos deacelerao nas sociedades contemporneas, entre outros, tratam de questesfundamentais do ponto de vista da teoria social. O risco e a incerteza repre-sentam categorias fundamentais da existncia e da aco humana que nuncaforam integradas adequadamente nas teorias da aco social de Weber,Parsons ou Giddens (que parecem seguir Beck no seu conceito de riscosubsumindo a incerteza, que precisamente o que eu questionei no meuensaio sobre o assunto). Penso ter avanado um pouco neste processo deenriquecimento da teoria da aco social, fazendo jus a estas categorias,levando em conta o pensamento tiquista e falibilista de Peirce e Popper, aEscola Austraca e o indeterminismo de Viena, assim como de Keynes eKnight, para alm do conceito muito limitado do risco, tecnolgico ou no,geralmente aceite. Mostrei tambm a ntima relao dos estudos convencionaissobre o risco probabilstico com o utilitarismo tico, especialmente outilitarismo de preferncias, que acontece especialmente nos pasesanglfonos. A minha crtica do conceito de risco e das suas aplicaes ubquasfrisou este ponto crucial, chamando a ateno para este vis tico, cujoquestionamento to importante para o ambientalismo e para as alternativass polticas pblicas neo-liberais e ideologia legitimadora da tecnocincia demercadorias, como lhe chamei.

    Vrias questes com respeito s temporalidades sociais foram discutidasno meu estudo sobre a acelerao, no s por via tecnolgica ou cientfica.Assunto tambm dos meus textos Tristes dures e Tempo e explicaoque discutem conceitos importantes para a explicao na sociologia histricaou na dinmica social, como se dizia. E o meu ensaio sobre a sociologia dascalamidades que procurou recuperar o legado de um socilogo importante, P.A. Sorokin, obviamente tem alguma coisa a ver com alguns dos temas doTempo e Teoria e no pode ser simplesmente catalogado como outro estudosobre cincia e tecnologia. J as questes de epistemologia que foram discu-tidas no meu estudo sobre Kuhn esto tambm presentes no meu ensaio sobreas teorias da verdade e no meu longo estudo sobre o princpio de Vico (overum-factum), crucial para bem entender a tecnocincia, mas no s, comoa discusso da histria do princpio nesse estudo deve demonstrar.

    Os meus interesses tericos gerais continuaram bem vivos, mesmo quetenha escrito mais sobre questes relativas cincia, s tecnologias e suniversidades (integradas cada vez mais, fora quando preciso, no ca-

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    pitalismo do conhecimento, como mostrei num ensaio de 2004, muitoampliado em 2007, ambos infelizmente profticos do que est em curso), doque sobre questes ostensivamente de teoria social. Reconheo que se podefazer trabalho terico, de grande pertinncia para a teoria sociolgica, emqualquer domnio, seja a sociologia da famlia, ou da religio, a sociologia dotrabalho ou a sociologia urbana, etc., desde que a problemtica em questoseja vista por um prisma teorizante sofisticado. No entanto, na conjunturacontempornea, pareceu-me que o estudo da cincia e da tecnologia, tendoem conta os contributos dos estudos histricos e filosficos, assim como odos sociolgicos, embora muito exigente, e sabendo que no serviria para apublicao rpida de dezenas de artigos, poderia levar-me mais longe noaprofundamento das questes que sempre me interessaram. Refiro-me aquestes como as temporalidades sociais, as interrelaes entre aco econhecimento, o significado humano das cincias sociais (de certo modo, oestatuto das cincias sociais como cincias morais e a discusso doutilitarismo tico) e as suas implicaes ou pressupostos filosficos(metafsicos ou epistemolgicos).

    Outros socilogos podero ter sentido o mesmo com respeito transversalidade e fertilidade de implicaes tericas de grande alcance emoutros domnios, alguns muito prximos das minhas preocupaes com atecnologia ou a tecnocincia, como a sociologia ambiental ou ecolgica, oucomo a sociologia da globalizao enquanto processo histrico-mundial, tal-vez com tanta ou mais razo do que eu, mas esta foi a minha aposta.

    HMJ Em muitos trabalhos sociolgicos h uma abundante invocaodos clssicos. Mas, na sua opinio, essa invocao tem igual correspondn-cia ao conhecimento da contribuio desses mesmos clssicos?

    HM Quanto sociologia clssica, a primeira coisa que se deve recordar que, em termos globais, no participmos na sua formao, nem da suapr-histria mais prxima, nem sequer na da sociologia internacional nosanos 40 e 50. Pior ainda, no participmos assim muito na recepo dasociologia clssica. Basta pensarmos em Durkheim, Tarde, Weber, Simmel,Pareto, entre as figuras mais proeminentes do cnone. Sim, Durkheim eTarde eram muito conhecidos e referidos, entre 1890 e 1920, mais oumenos, e a sua oposio em termos globais teve muito interesse para ospensadores portugueses, mas s em termos gerais, no especificamentesociolgicos, ou em termos pertinentes para as pesquisas sociolgicas emcurso, tericas ou empricas. Os outros que mencionei ou eram poucoconhecidos, eram estudados por outras razes que no o seu contributosociolgico, ou eram equiparados a autores medocres como Le Bon. Paretochegou a escrever o prefcio de um livro de um estudioso portugus, mastratava-se de um tratado, em francs, de teoria econmica. Reconheo queComte e Spencer, autores de grandes sistemas filosficos abrangendo a

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    Entrevista a Hermnio Martins

    sociologia como cincia-chave, tiveram grande influncia no pensamentosocial e poltico portugus. Muitas obras que se assumiram como sendo desociologia consistiram na aplicao e crtica das suas perspectivas para amelhor compreenso da sociedade portuguesa, num sentido muitopoliticizado. A escola de Le Play, a science sociale, era conhecida em Por-tugal. Como seria de esperar pelos seus vnculos com o catolicismo social,foi acolhida pelo ltimo rei e depois na poca de Salazar. Os anarquistasportugueses interessavam-se muito pelo que chamavam sociologia, o estudodas fontes da solidariedade social, e, pensando bem, Kropotkine, uma dassuas grandes figuras, devia ser includo no estudo da tradio sociolgica,bem mais do que tem sido (certamente num relato histrico sobre a socio-logia em Portugal). Mesmo assim, o que disse sobre a no-recepo dasociologia clssica em Portugal parece-me vlido grosso modo, especialmen-te em comparao com o Brasil dos anos 30, 40, 50. O fim da dcada de60 marca, em Portugal, o comeo do reconhecimento da sociologia coevae, atravs dela, a recuperao do patrimnio sociolgico clssico.

    Temos hoje, felizmente, profundos conhecedores da tradio sociolgicaocidental, que publicaram ou iro publicar excelentes estudos sobre Comte,Durkheim, Simmel, Sombart, Mauss, Michels, Mead, a Escola de Chicago,entre outros, e sem falar de autores mais recentes como Schutz, Luhmanne Habermas. No entanto, no caso de Max Weber, s muito recentementetivemos uma excelente obra de um estudioso que veio de fora da sociologia,Rafael Filipe, enquanto no Brasil h dcadas que j havia estudos notveis,em forma de livros e artigos, por socilogos. Enquanto em Portugal no tmaparecido outros estudos sobre Max Weber, que eu saiba, no Brasil conti-nuam a ser publicados livros e artigos sobre este autor de grande interesse.A recepo espanhola ou hispanfona de Weber, alis dos dois Webers, Maxe Alfred, tem sido tambm muito mais considervel que a nossa.

    Seja como for, espero que o livro que o Jos Lus Garcia e eu organi-zmos sobre sociologia clssica, com contributos exclusivamente de estudio-sos portugueses, incentive a discusso e o interesse pelos autores analisados,e outros tantos que se podem ler com proveito do patrimnio sociolgico.O ideal seria que fosse o primeiro de uma srie, porque vrios outros autoresdeveriam ser representados e existem estudiosos portugueses capazes defazer bons estudos sobre eles para um outro volume deste tipo. H obras naforja sobre alguns dos autores mencionados que deviam ser publicadas numfuturo prximo.

    HMJ Como v o futuro das cincias sociais em Portugal? Quais pensaser as suas principais potencialidades e os seus piores escolhos?

    HM Quanto ao futuro das cincias sociais em Portugal, as questesmais urgentes que se colocam so essencialmente as mesmas que noutrospases com uma comunidade importante, produtiva e sofisticada de cientistas

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    sociais, na mesma conjuntura econmica, e sujeitos tambm aos processosem curso de destruio das universidades tradicionais. Um dos perigos maisbvios o da instrumentalizao crescente da investigao a pedido dasinstncias pblicas. Os estudos sociais j passaram da fase cameralstica,mas s vezes temos a sensao de que estamos a regressar a essa fase:passmos da cameralstica clssica do Polizeistaat para a neo-cameralsticado policy State, cujas polticas pblicas exigem a instrumentalizao dascincias sociais. Com as tecnologias electrnicas digitais e uma capacidadenunca antes sonhada de acumulao de dados, at em tempo real, paraalguns estudiosos, o sonho de uma cincia social completamente guiadapelos dados (data-driven), dispensando as teorias (theory-free) e recorrendosimplesmente a modelos de tipo economtrico, ou a simulaes de compu-tador, est a concretizar-se. Tal pode tambm corresponder crescenteexigncia de dados quantitativos para tudo e mais alguma coisa, e a ascensodo padro aritmomrfico do conhecimento, na expresso de um grandeespecialista da economia matemtica e pioneiro da economia ecolgica, N.Georgescu-Roegen, ou simplesmente digital.

    Acompanhando todo este processo, os burocratas da cincia, ou melhor,os burocratas do cientificismo, exigem que as cincias sociais copiem ascincias duras, ou mais precisamente e ainda pior, a imagem que eles tmdas cincias duras (a sua ignorncia da filosofia, histria ou sociologia dacincia pode ser considervel). A tendncia ser tornar as cincias sociaisem policy sciences, marginalizando os trabalhos tericos e especulativos, ainvestigao livre que no cumpre exigncias administrativas ou acede asolicitaes do mercado. Nem sei, francamente, se se continuaro a chamarcincias sociais para qu? H economistas que no consideram a eco-nomia uma cincia social.

    Como j referi, a exigncia do trabalho colectivo, a preferncia por ar-tigos breves assinados por mltiplos autores pertencendo a laboratrios, ousimulacros de laboratrios, decorre do cientificismo tecno-burocrtico ins-talado nas instncias nacionais, internacionais ou pan-europeias de regulaodo trabalho cientfico acadmico. Com o processo crescente de descarac-terizao, mercantilizao e mesmo destruio das universidades pblicas, oque pode acontecer, e que de certo modo j aconteceu com os economistas, que o tipo intelectual de cientista social acadmico, com uma carreira deinvestigao e docncia nas universidades como existia at recentemente,venha a desaparecer.

    A famosa frase de Saint-Simon que apontava para a passagem do gover-no das pessoas para a administrao das coisas, um lema do sculo XIX,repetido inclusive por Engels, tem de ser revista. Se alguma vez verdadei-ramente nos comprometemos com a administrao das coisas, no hdvidas de que hoje estamos num terceiro estgio, do governo das coisas.

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    Entrevista a Hermnio Martins

    Hoje governamos as coisas, a Terra, a natureza, a biosfera, no as ad-ministramos em termos de pura racionalidade cientfica orientada para obem comum, mas por decises polticas, de Estados e empresas, associan-do-se cada vez mais as universidades s empresas, numa simbiose ou pro-miscuidade crescente. Por exemplo, j h universidades americanas proprie-trias de terras agrcolas em frica, parte da grande onda de compra ouarrendamento de terras em frica por parte de Estados e empresas asiticas,rabes e americanas.

    Todas as cincias sero incorporadas no Estado mercantil ou Estado--mercado (market-State) se continuarmos a seguir os caminhos de hoje.Naturalmente que se privilegia, na sigla inglesa, as disciplinas do STEM(science, technology, engineering, mathematics), com o complemento daTEDM (technology, engineering, design, marketing). Neste contexto, ascincias sociais podem certamente dar o seu contributo para o marketingdos produtos da tecnocincia de mercadorias e talvez ajudar a mitigar ouprevenir os desastres que podem decorrer dos sistemas tecnolgicos dese-nhados pelos critrios de engenharia constrangidos pelas exigncias de lucroe produtividade. Quanto crtica da sociedade tecnolgica, esta s respei-tada oficialmente quanto feita por cientistas ou engenheiros, como no casodo qumico Paul Crutzen que cunhou o termo antropoceno, mais oumenos equivalente ao que chamei o governo das coisas, em que a escalada aco antropognica sobre o planeta tal, pelo menos desde o fim dosculo XVIII, que determina uma nova era geolgica ou geognica.

    A prpria biologia cada vez mais abertamente definida por bilogos devanguarda, j no como uma cincia de descobertas, mas como um pro-jecto universal de engenharia e re-engenharia da vida. A tese heideggerianada cincia como comandada por um a priori tecnolgico, mesmo se durantesculos teve poucos resultados de grande interesse tcnico, como foi o casoda biologia, recebe aqui uma confirmao emprica, pois no s sujeita asformas de vida existentes a manipulaes de bioengenharia, como permite aprpria recriao da vida em laboratrio. Surpresa? Sim, mesmo este antigosonho mitolgico ou alqumico, do tipo ontrgico, como lhe chamei nalgunsescritos, est na ordem do dia para alguns geneticistas. Ouvi dizer uma emi-nente especialista portuguesa que a indstria gentica, orientada para a enge-nharia gentica convencional, se tornou to importante que, como os grandesbancos que tanto contriburam para nos arruinar, considerada como dema-siado grande para poder falhar (too big to fail). As alternativas desejveis, oupelo menos as que podiam e deviam ser exploradas para o bem da cincia ede ns todos, ficam fora do horizonte. Eis um exemplo flagrante do processodo governo da cincia, do monoplio praticamente irreversvel de certas orien-taes de pesquisa, que poder ser reproduzido, mutatis mutandis, nas cinciassociais. As perspectivas so sombrias. No entanto, no duvido que aqui e acol

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    jovens rebeldes continuaro a pensar por si prprios, e a fazer boa cinciasocial, contra tudo e contra todos. Foi o que aconteceu no passado, mesmonas conjunturas mais difceis da cincia e do saber.

    HMJ Hoje insiste-se muito na internacionalizao das cincias sociaisportuguesas e na publicao das nossas investigaes em revistas comreferenciao internacional. Que opinio tem sobre as revistas portuguesasde cincias sociais? Pensa que se devem manter em portugus? Como v asrelaes entre as cincias sociais portuguesas e as cincias sociais de lnguaportuguesa? E que contribuies que a comunidade de pases de lnguaoficial portuguesa deu ao mundo?

    HM Quanto s revistas acadmicas portuguesas nas cincias sociais,a minha impresso que so pouco lidas no universo acadmico portugus.No parece existir no pas uma cultura de leitura assdua das revistasacadmicas, entre estudantes ou professores, pelo menos em certas cinciassociais, em parte talvez por dificuldades de acesso. Deve ser triste para osautores, mas, de qualquer modo, a publicao de artigos parece ser maispara efeitos de currculo ou de arquivo, sem muita expectativa de feedback,do que para contribuir para dilogos em curso, ou para lidar com umaproblemtica saliente. Pode haver excepes em certos domnios, mas estasobservaes talvez sejam parcialmente vlidas no caso da sociologia.

    Quanto questo da lngua ou das lnguas. Mesmo nas cincias duras, opredomnio esmagador da lngua inglesa recente. Antes da Segunda GuerraMundial, as grandes lnguas das cincias naturais eram o ingls, o francs eo alemo. Depois de 1945, embora o francs e o alemo tivessem perdidoterreno, o russo tornou-se importante nas cincias fsicas. uma pena osestudantes portugueses, em geral, j no lerem francs, segundo me dizem. preguia, certamente, porque qualquer portugus culto pode aprender comrelativa facilidade a ler o francs e o italiano, sem falar do castelhano e docatalo. No Congresso de Matemtica de 1900 em Paris houve muita discus-so em redor da possibilidade do Esperanto como lngua de comunicaocientfica internacional. Os matemticos e lgicos estiveram sempre interessa-dos numa lngua artificial universal, transcultural. Teria sido talvez uma solu-o, pelo menos provisria, para a comunicao cientfica internacional, terescolhido uma lngua sem identificao nacional. Mas enfim, no aconteceu.

    Quanto questo da lngua inglesa ou da lngua portuguesa, podamospartir do princpio que devia ser da livre escolha dos autores, seguindo oesprito da poca da livre escolha em tudo. Se existem revistas que publicams em ingls, como o Portuguese Journal of Social Science, e outras quepublicam s em portugus, outras podero publicar em ingls ou francs ouespanhol. As presses da avaliao acadmica ou a necessidade da comuni-cao e intercmbio com pares estrangeiros em muitos pases obrigam cadavez mais os lusfonos a publicar em ingls. No entanto, as regras da ava-

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    Entrevista a Hermnio Martins

    liao acadmica no deviam desvalorizar as publicaes em portugus, re-lativamente a lnguas como o ingls, como j acontece no Brasil.Como pertencemos a uma comunidade lingustica vasta, por que razo te-mos que comunicar em ingls com os nossos pares brasileiros? S recen-temente que se tem prestado muita ateno em Portugal ao patrimnio dasociologia brasileira, muitssimo mais rico do que o nosso, em parte porquea sociologia acadmica portuguesa comeou muito mais tarde do que noBrasil. O intercmbio com o Brasil, mais reduzido na sociologia do que naantropologia, ao que me parece, devia ser ampliado. Ainda no existem me-canismos suficientes para este efeito, no obstante os colquios e congressosque se tm realizado. Naturalmente, a produo brasileira global nas cinciassociais ser sempre mais abundante que a nossa, mesmo se, em certos do-mnios especficos, podemos desfrutar de alguma vantagem de vez em quan-do. Como j disse, h vrios cientistas sociais portugueses contemporneoscujos estudos tm sido muito mais lidos e comentados no Brasil do que emPortugal: citados e comentados em revistas acadmicas, livros, comunicaesem colquios, teses de mestrado e de doutoramento, resenhas. Santos dacasa no fazem milagres, but thats no excuse, disse algum.

    Quanto ao Acordo Ortogrfico, estou a favor, especialmente neste ano docentenrio da Lei de Separao do Estado e das Igrejas, um marco impor-tante da histria contempornea portuguesa, da separao do Estado e dalngua (nem preciso uma lei especial para o efeito). Alis, os Estados, emgeral, pouco podem fazer sobre a fontica das lnguas naturais seriaabsolutamente ridculo, obviamente, pensar num Acordo Ortofontico ,salvo por aces violentas. Podem fazer alguma coisa com respeito aovocabulrio ou s formas de tratamento lexicais, mas mesmo assim a evo-luo social espontnea conta muito mais. Os Estados dispem de maismeios por via de coero legal com respeito grafia impressa. No vejonecessidade imperiosa de salvao nacional que justifique o Acordo Ortogr-fico da Lngua Portuguesa. Revog-lo no prejudicaria o intercmbio entrecientistas sociais brasileiros e portugueses, intercmbio cujo melhoramentodeve ser uma das nossas prioridades, mesmo se no conseguirmos constituiruma comunidade dialgica ideal, podemos aproximar-nos desse ideal.

    Quanto s contribuies que a comunidade de pases de lngua oficialportuguesa deu ao mundo, o primeiro dever das cincias sociais ser talvezcontribuir para o auto-conhecimento das sociedades onde se fazem, e nissoas cincias sociais em Portugal e no Brasil no falharam. Esse conhecimento,de qualquer modo, tambm um contributo para as cincias sociais enten-didas como um patrimnio geral, tanto mais que nessas sociedades se en-contram culturas muito diversas, contam com muitos laos com disporaspor todo o mundo (disporas externas e internas), e os cientistas sociais dePortugal e do Brasil se interessam naturalmente pelos outros pases.