Ernesto Sabato - A Resistência

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Transcript of Ernesto Sabato - A Resistência

  • Para Elvira Gonzlez Fraga,que colaborou comigo neste

    livro, e ao longo de tantos anos,com profundssimo afeto

  • Sumrio primeira cartaO pequeno e o grande

    segunda cartaOs antigos valores

    terceira cartaEntre o bem e o mal

    quarta cartaOs valores comunitrios

    quinta cartaA resistncia

    eplogoA deciso e a morte

  • primeira carta

    O pequeno e o grande

  • O belo consolo de encontrar em uma alma o meu mundo, de abraar em umaimagem amiga toda a minha espcie.

    F. Hlderlin

  • H certos dias em que acordo com uma esperana demencial, momentos em quesinto que as possibilidades de uma vida mais humana esto ao alcance de nossasmos. Hoje um desses dias.

    E ento me ponho a escrever quase s apalpadelas na madrugada, com urgncia,como algum que sasse para a rua pedindo ajuda diante de uma ameaa de incndio,ou como um navio que, a ponto de afundar, mandasse um ltimo e fervoroso sinalpara um porto que sabe prximo mas ensurdecido pelo barulho da cidade e pelainfinidade de letreiros que confundem o olhar.

    Peo a vocs que paremos para pensar na grandeza que ainda podemos pretenderse ousarmos avaliar a vida de outra maneira. Peo a ns essa coragem que nos situana verdadeira dimenso do homem. Todos, repetidas vezes, fraquejamos. Mas huma coisa que no falha, e a convico de que unicamente os valores doesprito podem nos resgatar deste terremoto que ameaa a condio humana.

    Enquanto escrevo a vocs, paro para acariciar um rstico entalhe que ganhei dosndios tobas, e ento, como um raio, volta minha memria uma exposio virtualque ontem me mostraram num computador e, confesso, me pareceu coisa do cujo.Porque, medida que nos relacionamos de forma mais abstrata, vamos nos afastandodo corao das coisas, e uma indiferena metafsica se apossa de ns, enquantoentidades sem sangue nem nome tomam o poder. Tragicamente, o homem estperdendo o dilogo com os demais e o reconhecimento do mundo que o rodeia,quando nele que se d o encontro, a possibilidade do amor, os gestos supremos davida. As palavras mesa, inclusive as discusses ou brigas, parecem substitudas pelaviso hipntica. A televiso nos tantaliza, como que nos enfeitia. Esse efeito entremgico e malco resulta, penso, do excesso de luz que nos toma com suaintensidade. Inevitvel lembrar que ela produz o mesmo efeito nos insetos, e at nosgrandes animais. Ento no apenas difcil afastar-se dela, como tambm perdemos acapacidade de olhar e ver o cotidiano. Uma rua com rvores enormes, os olhoscndidos no rosto de uma mulher velha, as nuvens de um entardecer. A orao daaccia em pleno inverno no chama a ateno de quem no chega sequer a apreciaros jacarands de Buenos Aires. Muitas vezes me espantei ao perceber comoenxergamos melhor as paisagens no cinema do que na realidade.

    urgente reconhecermos os espaos de encontro que podem nos salvar de ser umamultido massicada assistindo isoladamente televiso. O paradoxal que essa tela

  • nos d a sensao de estarmos ligados ao mundo inteiro, quando na verdade ela nosrouba a possibilidade de convivermos de forma humana e, o que igualmente grave,nos predispe abulia. Tenho dito em muitas entrevistas, em tom de ironia, que ateleviso o pio do povo, alterando a famosa frase de Marx. Mas de fato acho queestamos cando entorpecidos diante da tela, e mesmo quando no encontramos nadado que procuramos, continuamos l, incapazes de nos levantar e ir fazer algo de bom.Ela nos tira a vontade de trabalhar em algum artesanato, de ler um livro, de fazer umconserto na casa enquanto se escuta msica ou se toma um mate. Ou de ir ao bar comum amigo, bater papo com algum da famlia. um tdio, um fastio a que nosacostumamos por falta de coisa melhor. Ficar monotonamente sentado diante dateleviso anestesia a sensibilidade, torna a mente lerda, prejudica a alma.

    Os sentidos do ser humano esto se embotando, exigindo cada vez maisintensidade, como acontece com os surdos. No vemos o que no tem a luz da tela,nem ouvimos o que no vem carregado de decibis, nem sentimos perfumes. J nemas flores os tm.

    Uma coisa que me perturba terrivelmente o barulho. s vezes caminhamos vriosquarteires antes de achar um lugar onde tomar um caf em paz. No que por machemos um bar silencioso, apenas nos conformamos em pedir que, por favor,desliguem o televisor, coisa que fazem com a maior boa vontade por se tratar de mim,mas eu me pergunto como as pessoas que vivem nesta cidade de treze milhes dehabitantes fazem para achar um lugar onde conversar com um amigo. Isso acontececom todos ns e muito especialmente com os verdadeiros amantes da msica, oupensam que preferimos escut-la enquanto todos falam de outros assuntos e aosgritos? Todo caf tem um televisor ou um aparelho de som no ltimo volume. Se todomundo reclamasse como eu, energicamente, as coisas comeariam a mudar. Eu mepergunto se as pessoas percebem o mal que o barulho lhes faz; ou ser que asconvenceram de que o moderno conversar aos gritos? Em muitos apartamentos dpara escutar o televisor do vizinho. Como possvel ter to pouco respeito pelo outro?Como o ser humano faz para suportar o aumento de decibis em que vive?Experincias com animais provam que o volume elevado prejudica primeiro amemria, depois enlouquece e nalmente mata. Eu devo ser como eles, porque faztempo que ando pela rua com tampes nos ouvidos.

    O homem est se acostumando a aceitar passivamente uma constante invaso

  • sensorial. E essa atitude passiva acaba sendo uma servido mental, uma verdadeiraescravido.

    Mas h um jeito de contribuir para a proteo da humanidade, e no seconformar. No assistir com indiferena ao desaparecimento da innita riqueza queforma o universo que nos rodeia, com suas cores, sons e perfumes. Os mercados dehoje no so mais aqueles aonde iam as mulheres, com suas bancas de frutas, deverduras, de carnes, uma verdadeira festa de cores e cheiros, festa da natureza emplena cidade, atendidas por homens que vociferavam entre si, enquanto noscontagiavam com a gratido por seus frutos. Pensar que eu acompanhava mame granja para comprar ovos que eram retirados de baixo das galinhas poedeiras na hora!Hoje tudo vem embalado, e as compras j comeam a ser feitas pelo computador, pormeio dessa tela que logo ser a janela por onde os homens sentiro a vida. Indiferentee intocvel a mais no poder.

    No h outro modo de atingir a eternidade a no ser aprofundando-se no instante,nem outra forma de chegar universalidade que no atravs da prpria circunstncia:o aqui e agora. Mas como? Revalorizando o pequeno lugar e o breve tempo em quevivemos, que nada tm a ver com as maravilhosas paisagens que podemos ver nateleviso, mas que esto sagradamente impregnados da humanidade das pessoas queneles vivem. Dizemos cadeira, janela ou relgio, palavras que designam merosobjetos, e, no entanto, de repente transmitimos algo misterioso e indenvel, algo que como uma chave, como uma mensagem inefvel de uma regio profunda do nossoser. Dizemos cadeira, mas no queremos dizer cadeira, e nos entendem. Ou pelomenos nos entendem aqueles aos quais a mensagem secretamente se destina. Assim,aquele par de tamancos, aquela vela, essa cadeira, no querem dizer nem essestamancos, nem essa vela macilenta, nem aquela cadeira de palha, e sim Van Gogh,Vincent: sua ansiedade, sua angstia, sua solido; so antes seu auto-retrato, adescrio de suas aies mais profundas e dolorosas. Valendo-se de objetos destemundo aparentemente rido que est fora de ns, que talvez estivesse antes de ns eque muito provavelmente nos sobreviver. Como se esses objetos fossem trmulas etransitrias pontes para transpor o abismo sempre aberto entre ns e o universo,smbolos daquilo profundo e recndito que reetem; indiferentes e apagados paraquem no capaz de entender a chave, mas clidos, tensos e cheios de intenosecreta para quem a conhece. Porque o homem faz com os objetos o mesmo que aalma realiza com o corpo, impregnando-o de seus desejos e sentimentos,

  • manifestando-se atravs das rugas carnais, do brilho dos olhos, dos sorrisos e dacomissura dos lbios.

    Se nos tornarmos incapazes de criar um clima de beleza no pequeno mundo aonosso redor e s atentarmos s razes do trabalho, muitas vezes desumanizado ecompetitivo, como poderemos resistir?

    A presena do homem se manifesta numa mesa arrumada, numa pilha de discos,num livro, num brinquedo. O contato com qualquer obra humana evoca em ns avida do outro, deixa rastros que nos inclinam a reconhec-lo e a encontr-lo. Vivendocomo autmatos, seremos cegos aos rastros que os homens vo deixando, como aspedrinhas que Joo e Maria jogavam no caminho na esperana de serem encontrados.

    O homem se expressa para chegar aos outros, para sair do cativeiro de sua solido.Sua natureza de peregrino tal que nada preenche seu desejo de expresso. Trata-sede um gesto inerente vida, que nada tem a ver com a utilidade, que transcendequalquer possibilidade funcional. Os homens, sua passagem, vo deixando seuvestgio; do mesmo modo, ao voltar para casa depois de um dia de trabalho esgotante,uma mesinha qualquer, um par de sapatos gastos, uma simples luz so comoventessmbolos de uma costa que ansiamos alcanar, como nufragos exaustos queconseguissem tocar a terra depois de um longo embate contra a tempestade.

    So muito poucas as horas livres que o trabalho nos deixa. Apenas um rpido caf-da-manh que costumamos tomar j pensando nos problemas do escritrio, porquevivemos de tal maneira como produtores que estamos perdendo a capacidade deparar por alguns minutos diante de uma xcara de caf pela manh, ou de um matecompartilhado. E a volta para casa, a hora de nos reunirmos com os amigos ou com afamlia, ou de carmos em silncio como a natureza nessa misteriosa hora doentardecer que lembra os quadros de Millet, quantas vezes perdemos esses instantesprostrados diante da televiso! Concentrados em algum canal ou fazendo zapping,parece que obtemos um prazer ou uma beleza que j no descobrimos partilhandoum ensopado, ou um copo de vinho, ou um caldo fumegante que nos vincule a umamigo numa noite qualquer.

    Quando somos sensveis, quando nossos poros no esto tapados pelas implacveiscamadas, a proximidade da presena humana nos sacode, nos anima, entendemosque o outro que sempre nos salva. E se chegamos idade que temos porque

  • outros foram salvando nossa vida, incessantemente. Com a idade que tenho hoje,posso dizer, dolorosamente, que toda vez que perdemos um encontro humano umacoisa se atroou em ns, ou se quebrou. Muitas vezes somos incapazes de umencontro genuno porque s reconhecemos os outros na medida em que denemnosso ser e nosso modo de sentir, ou que so convenientes aos nossos projetos. Nopodemos deter a marcha para desfrutar de um encontro porque estamos cheios detrabalho, de problemas para resolver, de ambies. E porque a magnitude da cidadenos ultrapassa. Ento o outro ser humano no chega a ns, no o vemos. Est mais aonosso alcance um desconhecido com quem batemos papo pelo computador. Na rua,nas lojas, nas innitas las e guichs, sabemos abstratamente que estamoslidando com seres humanos, mas na realidade tratamos os demais como outros tantosservidores informticos ou funcionais. No vivemos essa relao de modo afetivo; como se estivssemos cobertos por uma camada de proteo contra os fatos humanosdesviantes da ateno. Os outros nos atrapalham, nos fazem perder tempo. O quedeixa o homem terrivelmente sozinho, como se em meio a tanta gente, ou por issomesmo, se espalhasse o autismo.

    Vi em alguns lmes que a alienao e a solido tm chegado a tal ponto que aspessoas tentam se amar por meio de um monitor. Isso sem falar nessas mascotesarticiais inventadas pelos japoneses, nem sei como se chamam, que a pessoa cuidacomo se tivessem vida, porque manifestam sentimentos e preciso falar com elas.Quanto lixo! E como trgico pensar que essa a maneira que muitas pessoas tm deexpressar seu afeto! Uma brincadeira sinistra, quando h tantas crianas jogadas pelomundo e tanto nobre animal a caminho da extino.

    Ainda tempo de reverter esse abandono e esse massacre. Essa convico deve nospossuir at o compromisso.

    A vida aberta por natureza, at a daqueles que ergueram em torno de si umabarreira mais escura que uma masmorra. Sua pulsao exige um interstcio, o mnimoespao de que a vida necessita para continuar pulsando, e atravs dele pode penetrara plenitude de um encontro, como as grandes mars podem inltrar-se at nas maisforticadas barragens. A abertura pode ser uma doena, ou a manifestao de ummilagre qualquer da vida: uma pessoa que nos ama apesar do nosso obstinadoisolamento, como um pingo que batesse incessantemente contra os altos muros. Eento a pessoa que vivia mais sozinha e isolada pode revelar-se a mais apta a amar,

  • por ter suportado essa grave carncia durante longo tempo. Por isso muitas vezes soas pessoas que sofreram mais orfandade as que mais se entregam e se dedicam pessoa amada. o amor que nunca se recebe como um fato dado, que semprepertence dimenso do milagre. Essa constatao que tantas vezes zemos na vida,por mais que isso contrarie alguns psiclogos, o que nos anima a pensar que nossasociedade, to doentia e desumanizada, pode dar origem a uma cultura religiosa,como profetizou Berdiaev no incio do sculo xx.

    A medicina uma das reas em que se pode perceber uma onda de reuxochocando-se contra essa trgica crena na abstrao. Se em 1900 um curandeirocurava por sugesto, isso no merecia mais do que risos dos mdicos, porque naqueletempo eles s acreditavam em coisas materiais, como msculos ou ossos; hoje osmdicos praticam aquilo mesmo que consideravam superstio, agora sob o nome demedicina psicossomtica. Mas durante muito tempo persistiu neles o fetichismo damquina, da razo e da matria, todos muito orgulhosos das grandes conquistas desua cincia, pelo simples fato de terem substitudo o auge da varola pelo do cncer.

    A falha central da medicina resulta da falsa base losca dos trs sculospassados, da ingnua separao entre corpo e alma, do ingnuo materialismo quelevava a buscar a causa de toda doena no somtico. O homem no um simplesobjeto fsico, desprovido de alma; nem sequer um simples animal: um animal queno tem apenas alma, mas tambm esprito, e o primeiro animal a alterar seu prpriomeio por obra da cultura. Assim, sua vida um equilbrio instvel entre seuprprio soma e seu meio fsico e cultural. Uma doena talvez a ruptura desseequilbrio, que pode ser causada por um impulso somtico, mas igualmente por umimpulso anmico, espiritual ou social. No absurdo pensar que doenas modernascomo o cncer se devam essencialmente ao desequilbrio que a tecnologia e asociedade moderna produziram entre o homem e seu meio. O cncer por acaso no um tipo de crescimento descontrolado e vertiginoso?

    Alteraes ecolgicas causaram o desaparecimento de espcies inteiras, e assimcomo os grandes rpteis no puderam sobreviver s transformaes ocorridas no naldo perodo mesozico, pode ser que a espcie humana seja incapaz de suportar ascatastrcas mudanas do mundo contemporneo. Porque essas mudanas so totremendas, to profundas e, sobretudo, to vertiginosas, que perto delas as queprovocaram o desaparecimento dos dinossauros so insignicantes. O homem noteve tempo para se adaptar s bruscas e poderosas transformaes que sua tcnica e

  • sua sociedade provocaram ao seu redor; e no arriscado armar que as doenasmodernas sejam o meio de que o cosmos se vale para sacudir esta orgulhosa espciehumana.

    Nosso tempo conta com telefones para suicidas. De fato, possvel dizer algumacoisa a um homem para o qual a vida deixou de ser o bem supremo. Eu mesmomuitas vezes atendi pessoas beira do abismo. Mas muito signicativo que se tenhade procurar um gesto amigo por telefone ou por computador, e no se encontre nadaparecido em casa, no trabalho ou na rua, como se vivssemos connados numaclnica-priso que nos separa das pessoas ao nosso lado. E ento, privados do contatode um abrao ou de uma mesa partilhada, restam-nos os meios de comunicao.

    Do mesmo modo, quanto melhor morrer na prpria cama, rodeado de afeto,acompanhado pelas vozes, os rostos e os objetos familiares, do que nessasambulncias que cortam as ruas enlouquecidas para internar o moribundo numa salaesterilizada, em vez de deix-lo em paz.

    Recordo com admirao o nome de alguns velhos mdicos que curavam o doentecom sua simples chegada. Quantos sorrisos irnicos essa ofuscante verdade mereceu!

    noite de vero, a lua ilumina de quando em quando. Caminho para minha casapor entre as magnlias e as palmeiras, por entre os jasmins e as imensas araucrias, eparo para observar a trama que as trepadeiras teceram sobre a fachada desta casa quej uma runa amada, com persianas carcomidas ou desencaixadas; e, apesar davelhice, ou justamente por causa dela, que tanto se parece com a minha, sinto queno a trocaria por nenhuma manso do mundo.

    * * *

    Existe na vida um valor que permanece muitas vezes invisvel para os outros, masque o homem escuta no fundo da alma: a delidade ou traio ao que sentimoscomo destino ou vocao a cumprir.

    O destino, como tudo que humano, no se manifesta em abstrato, mas encarnanuma circunstncia, num pequeno lugar, num rosto amado ou num nascimentomuito pobre nos confins de um imprio.

    Nem o amor, nem os encontros verdadeiros, nem mesmo os profundosdesencontros so obra do acaso, e sim algo que nos est misteriosamente reservado.Quantas vezes na vida me surpreendeu a maneira como, entre multides de pessoas

  • que existem no mundo, acabamos encontrando aquelas que de algum modopossuam as tbuas do nosso destino, como se pertencssemos a uma mesmaorganizao secreta, ou aos captulos de um mesmo livro! Nunca pude saber sereconhecemos essas pessoas porque j as procurvamos, ou as procuramos porque elasj rondavam nosso destino.

    O destino se mostra em sinais e indcios que parecem insignicantes, mas quedepois reconhecemos como decisivos. Assim, no raro pensamos andar perdidos pelavida, quando na realidade sempre caminhamos com um rumo xo, s vezesdeterminado por nossa vontade mais visvel, mas em outras ocasies, talvez maisdecisivas para nossa existncia, por uma vontade desconhecida at de ns mesmos,mas poderosa e incontrolvel, que vai nos conduzindo para os lugares onde devemosnos encontrar com seres ou coisas que, de um jeito ou de outro, so, foram ou seroprimordiais para nosso destino, favorecendo ou atrapalhando nossos desejosaparentes, facilitando ou colocando obstculos a nossas ansiedades, e s vezes, o que mais espantoso, provando estar mais despertos que nossa vontade consciente.

    Agora a vida parece uma srie de cenas soltas, uma ao lado da outra, como tnues,incertas e levssimas folhas arrastadas pelo furioso e sem sentido vento do tempo.Minha memria composta de fragmentos de existncia, estticos e eternos: o tempono passa entre eles, e coisas que aconteceram em pocas muito distantes entre siesto juntas, ligadas ou reunidas por estranhas antipatias e simpatias. Ou talvezaorem superfcie da conscincia unidas por vnculos absurdos mas poderosos,como uma cano, uma brincadeira ou um dio comum. Como agora, quando, paramim, o o que as une e vai puxando da memria, uma aps outra, certa ferocidadena busca de algo absoluto, certa perplexidade que liga palavras como filho, amor,Deus, pecado, pureza, mar, morte.

    Mas no acredito no destino como fatalidade, como na tradio grega, ou em nossotango: Contra el destino, nadie la talla.*

    Pois, se fosse assim, que sentido haveria em escrever para vocs? Acredito que aliberdade nos foi destinada para cumprirmos uma misso na vida; e sem liberdadenada vale a pena. E mais: acredito que a liberdade a nosso alcance maior do queaquela que ousamos viver. Basta lermos a histria, essa grande mestra, para vermosquantos caminhos o homem pde abrir com seus braos, at que ponto o ser humanofoi capaz de mudar o rumo dos acontecimentos. Com esforo, com amor, com

  • fanatismo.Mas, se no nos deixarmos tocar por aquilo que nos rodeia, no poderemos ser

    solidrios com nada nem com ningum, caremos reduzidos a essa arrepianteexpresso com que se designa o ser humano dos tempos atuais, tomo cpsula, esseindivduo que cria a seu redor outras tantas cpsulas em que se fecha: seuapartamento funcional, a estrita tarefa que compete a seu cargo, os horrios de suaagenda. No podemos nos esquecer de que antigamente a semeadura, a pesca, acoleta dos frutos, o artesanato, assim como o trabalho nas ferrarias, nos atelis decostura ou nos estabelecimentos do campo, reuniam as pessoas e as incorporavam noconjunto de sua personalidade. Foi a percepo do incio dessa ruptura que levou osoperrios do sculo xviii a se rebelar contra as mquinas, a querer incendi-las. Hojeos homens procuram a coeso em massa para se adequar crescente e absolutafuncionalidade que o sistema exige, hora aps hora. Mas a vida nas grandes cidades,que os ultrapassa como um furaco s areias de um deserto, somada ao hbito deassistir televiso, de aceitar passivamente os acontecimentos, sejam eles quais forem,sem se sentir responsvel por nada, est ameaando a liberdade. algo to gravequanto o objeto do alerta lanado por Jnger: Se os lobos contagiarem a massa, nummau dia o rebanho se transformar em horda.

    Se a mentalidade do homem mudar, o perigo que vivemos ser paradoxalmenteuma esperana. Poderemos recuperar esta casa que nos foi miticamente entregue. Ahistria sempre oferece novidades. Por isso, apesar das desiluses e frustraesacumuladas, no h motivo para desacreditar do valor das proezas cotidianas. Emborasimples e modestas, so elas que esto gerando uma nova narrativa da histria,abrindo um novo curso para a torrente da vida.

    A comunho do homem com tudo o que simples e familiar se acentua ainda maisna velhice, quando vamos nos despedindo de projetos e nos aproximamos mais daterra da nossa infncia, no da terra em geral, mas daquele pedao, daquele nmopedao de terra em que transcorreu nossa infncia, onde vivemos nossas brincadeirase nossa magia, a irrecupervel magia da irrecupervel infncia. E ento recordamosuma rvore, o rosto de um amigo, um cachorro, uma estrada poeirenta nas tardes devero, com seu zumbido de cigarras, um riacho. Coisas assim. No grandes coisas, esim pequenas e modestssimas coisas, mas que no ser humano adquirem uma incrvelmagnitude, sobretudo quando o homem que vai morrer s pode se defender com a

  • lembrana, to angustiosamente incompleta, to tnue e pouco carnal, daquela rvoreou daquele riacho da infncia; que esto separados de ns no s pelos abismos dotempo mas tambm por vastos territrios.

    Por isso podemos ver tantos velhos que quase no falam e o tempo todo parecemolhar ao longe, quando na verdade esto olhando para dentro, para o mais profundode sua memria. Porque a memria o que resiste ao tempo e a seus poderes dedestruio, e como se fosse a forma que a eternidade pode assumir nesse trnsitoincessante. E embora ns (nossa conscincia, nossos sentimentos, nossa duraexperincia) mudemos com o passar dos anos, e tambm nossa pele e nossas rugas setornem prova e testemunho desse trnsito, h algo no ser humano, bem l no fundo,em regies muito escuras, aferrado com unhas e dentes infncia e ao passado, raae terra, tradio e aos sonhos, que parece resistir a esse trgico processopreservando a eternidade da alma na humildade de uma prece.

    Foi necessria uma crise geral da sociedade para essas verdades simples pormhumanas ressurgirem com todo o seu vigor. Estaremos perdidos se no revertermos,com energia, com amor, essa tendncia que nos reduz a adoradores da televiso, queidiotiza as crianas, que j no brincam nos parques. Se Deus existe, que no opermita.

    Voltam minha memria imagens de homens e mulheres lutando na adversidade,como aquela indiazinha grvida, quase uma menina, que me arrancou lgrimas deemoo no Chaco, pois em meio misria e s privaes sua alma agradecia a vidaque ela carregava no ventre.

    Apesar de tudo, como admirvel o ser humano, essa coisa to pequena etransitria, to seguidamente esmagada por terremotos e guerras, to cruelmenteposta prova em incndios, naufrgios, pestes e mortes de filhos e pais.

    Sim, tenho uma esperana demencial, ligada, paradoxalmente, nossa atualpobreza existencial e ao desejo, que descubro em muitos olhares, de que algo grandenos consagre a cuidar com empenho da terra em que vivemos.

    Contudo, enquanto digo isso, algo como uma viso tremenda me faz sentir que ogrande pesadelo j passou, que j percebemos que toda considerao abstrata, mesmoquando se refere a problemas humanos, no serve para consolar homem algum, paraaplacar nenhuma das tristezas e angstias que pode sofrer um ser concreto de carne e

  • osso, um pobre ser com olhos que tam ansiosamente (o qu ou quem?), umacriatura que s sobrevive graas esperana.

    J muito cansado, nesta noite de novembro, a araucria me traz memria o amorque meu amigo Tortorelli tinha por suas rvores. Era comovente, ele chegava aabraar algumas que o faziam lembrar do tempo em que fora guarda-orestal.Tivemos a emoo de percorrer com ele, pela Patagnia, lugares impressionantescomo os bosques petricados de arrayanes e aqueles outros onde se erguem rvoresmilenares. Ele nos dizia, acariciando o tronco dessas formidveis araucrias e coihuesainda vivos: Pensem por um momento que quando o Imprio Romano surgiu equando ruiu, quando os gregos e os troianos lutavam por Helena, esta rvore j estavaaqui, e continuava aqui quando Rmulo e Remo fundaram Roma, e quando JesusCristo nasceu. E enquanto Roma ia dominando o mundo, e quando caiu. E assimpassaram imprios, guerras interminveis, as Cruzadas, o Renascimento, e toda ahistria do Ocidente at hoje. E aqui est ela. Tambm nos disse que os ventosmidos do Pacco precipitam quase toda a sua gua do lado chileno, o que faz queum incndio deste lado seja fatal, porque as rvores morrem, e o deserto avanainexoravelmente. Ento nos levou at o limite da estepe patagnica e nos mostrou osciprestes quase retorcidos pelo sofrimento que, como ele disse, cobriam aretaguarda. Firmes e esticos, como uma legio suicida, davam o ltimo combate adversidade.

    Acredito nos cafs, no dilogo, acredito na dignidade da pessoa, na liberdade.Sinto saudade, quase ansiedade de um infinito, mas humano, na nossa medida.

    * "Contra o destino, ningum pode"; verso do tango "Adis muchachos", de Julio Csar Sanders e Csar Vedani,celebrizado na interpretao de Carlos Gardel. (N. T.)

  • segunda carta

    Os antigos valores

  • Eu estava diante da vasta e rica terra, mas tinha olhos apenas para o maishumilde e o mais diminuto Onde estaramos ns, pobres homens, se noexistisse a terra fiel? Que teramos se no contssemos com essa beleza e essabondade?

    R. Walser

  • Depois de percorrermos durante horas a imponente Quebrada de Humahuaca,voltamos antiga cidade de Salta, em outros tempos to linda, hoje quaseirreconhecvel, infestada de letreiros e prdios modernos que destruram a beleza desuas ruas coloniais. J muito pouco o que resta da aristocrata cidade de Salta, comose ningum a olhasse, como se tambm a ela tivesse chegado esse desencantomoderno que no pe empenho em nada, que constri as casas para seremderrubadas no dia seguinte, j sem fachadistas nem velhos ferreiros.

    De tarde fui histrica catedral, o santurio onde amanh milhares de iscelebraro a Festa do Milagre. Muitos deles vm peregrinando h dias para oferecersuas cndidas promessas, to simples como uma or do campo, e seus pedidos toprementes como comida, sade ou trabalho.

    Sentado na praa, voltaram minhas obsesses de sempre. As sociedadesdesenvolvidas se ergueram sobre o desprezo dos valores transcendentes ecomunitrios e daqueles que no so avaliveis em dinheiro, mas em beleza. Volto aconstatar o quanto enfearam as cidades de nosso pas, tanto Buenos Aires como asantigas cidades do interior. Como foram malcuidadas! D pena ver fotos de anosatrs, quando elas ainda conservavam sua personalidade, suas rvores, a fachada deseus edifcios. Imerso em minhas ruminaes, paro para olhar um menino de trs ouquatro anos que brinca sob os cuidados da me, como se por baixo de um mundoressecado pela competio e o individualismo, onde quase no h lugar para ossentimentos nem para o dilogo entre os homens, subsistissem, como antigas runas,os restos de um tempo mais humano. Nas brincadeiras das crianas s vezes perceboos vestgios de rituais e valores que parecem perdidos para sempre, mas que tantasvezes reencontro em cidadezinhas remotas e inspitas: a dignidade, o desinteresse, agrandeza diante da adversidade, as alegrias simples, a coragem fsica e a integridademoral.

    O menino continua brincando no coreto da praa, onde amanh decerto tocar aorquestra ou haver um concerto de violes, como nos feriados da minha antigaRojas.

    Em outra poca lamento usar expresses com certo ar arqueolgico, mas quandose tem quase a idade do sculo que que estou dizendo? a idade do sculopassado! , quando eu era criana, em Rojas, ainda se preservavam valores quefaziam do nascimento, do amor, da adolescncia, da morte uma cerimnia bela e

  • profunda. O tempo da vida no era o da pressa dos relgios, mas ainda conservavaespao para os momentos sagrados e para os grandes rituais, que misturavam antigascrenas destas terras com as epopias dos santos cristos. Um ritmo pausado em quefestas e acontecimentos assinalavam os marcos fundamentais da existncia,aguardados por aqueles que, como eu, tinham seis ou sete anos, mas tambm pelosadultos e pelos velhos. Como a chegada do Carnaval, um aniversrio, a celebrao doNatal, o misterioso encanto da manh de Reis ou a grande festividade do santopadroeiro, com procisso, empanadas e bailes. At a mudana das estaes e aalternncia dos dias e das noites pareciam abrigar um enigma que fazia parte daqueleritual, perpetuado ao longo de geraes como numa histria sagrada. Todosparticipavam dessas festas, dos mais pobres at os mais ricos. Recordo a admiraocom que eu assistia s provas de montaria e como gostava de ir ao circo.

    Havia pocas boas e pocas calamitosas, mas dependiam da natureza, das colheitas;o homem no sentia que devia agir sempre e a todo momento para controlar odesenrolar de tudo, como pensa hoje em dia.

    Agora a humanidade carece de cio, em grande parte porque nos habituamos amedir o tempo de modo utilitrio, em termos de produo. Antigamente os homenstrabalhavam num ritmo mais humano, muitas vezes em ofcios e artesanatos, eenquanto realizavam suas tarefas conversavam uns com os outros. Eram mais livresque o homem de hoje, que incapaz de resistir televiso. Eles podiam descansar nahora da sesta, ou jogar tava com os amigos. Daquela poca guardo esta frase entocorriqueira: Venha c, amigo, vamos jogar baralho para matar o tempo, umaproposta inconcebvel para ns. Momentos em que as pessoas se reuniam para tomarmate, enquanto contemplavam o entardecer sentadas nos bancos que costumavamcar na frente das casas, no alpendre. E quando o sol sumia no horizonte, enquantoos pssaros acabavam de se recolher em seus ninhos, a terra fazia um longo silncio, eos homens, ensimesmados, pareciam se perguntar sobre o sentido da vida e da morte.

    A vida dos homens centrava-se em valores espirituais hoje quase em desuso, comoa dignidade, o desinteresse, o estoicismo do ser humano perante a adversidade. Essesgrandes valores, como a honestidade, a honra, o apreo pelas coisas bem-feitas, orespeito pelo outro, nada disso era excepcional, mas coisas que se encontravam namaioria das pessoas. De onde vinha sua fora, sua coragem perante a vida?

    Outra frase daquele tempo, na qual eu nunca havia reparado tanto quanto agora,era Deus prover. O modo de ser das pessoas de ento, seu desinteresse, a

  • serenidade de suas maneiras sem dvida repousavam na profunda conana que elastinham na vida. Fosse na ventura ou na desgraa, o importante no dependia delas.Tambm os valores emanavam de textos sagrados, eram mandatos divinos.

    Os homens, desde que se viram em p sobre a terra, acreditaram num ser superior.No existe cultura que no tenha tido seus deuses. O atesmo uma novidade dostempos modernos; antes dele, o ves llorar la Biblia junto a un calefn1 jamaispoderia ter sido dito. Quem duvida, que releia Homero ou os mitos da Amrica. Oshomens acreditavam ser lhos de Deus, e o homem que sente semelhante liaopode at ser escravo, servo, mas nunca uma engrenagem. Quaisquer que sejam ascircunstncias da vida, ningum pode despoj-lo desse pertencimento a uma histriasagrada: sua vida sempre estar includa no olhar dos deuses.

    Ser possvel vivermos sem que a vida tenha um sentido perdurvel? Camus,percebendo a magnitude do que se perdeu, diz que o grande dilema do homem saber se possvel ou no ser santo sem Deus. Mas, como Kirilov j haviagenialmente proclamado, se Deus no existe, tudo permitido. Sartre deduz dessafamosa frase a total responsabilidade do homem, ainda que, como ele prprio disse, avida seja um absurdo. Esse pice do comportamento humano tem sua mximaexpresso na solidariedade, mas quando a vida sentida como um caos, quando jno h um Pai que nos faa sentir irmos, o sacrifcio despojado do fogo que oalimenta.

    Se tudo relativo, de onde o homem pode tirar foras para o sacrifcio? E acaso possvel viver sem sacrifcio? Os lhos so um sacrifcio para os pais, cuidar dos maisvelhos ou dos doentes tambm. Assim como a renncia ao individual em nome dobem comum, assim como o amor. Sacricam-se os que envelhecem trabalhando pelosoutros, os que morrem para salvar o prximo. E pode existir sacrifcio quando a vidaperdeu o sentido para o homem ou quando ele s o encontra no conforto individual,no sucesso pessoal?

    De manh, a caminho do monumento a Gemes,2 esse heri romntico eaguerrido, parei para olhar um carrossel com sortija,3 como os de minha cidadezinhanatal. E sinto um n na garganta ao pensar na beleza do povoado em que me criei,nessas simples alegrias to raras entre as crianas de hoje.

  • * * *

    Outro valor perdido a vergonha. Vocs perceberam que as pessoas no tm maisvergonha, e que podemos encontrar qualquer sujeito acusado das piores corrupesmisturado com gente de bem, com um largo sorriso no rosto, como se nada tivesseacontecido? Em outros tempos, sua famlia teria se enclausurado, mas agora tudo dna mesma, e alguns programas de televiso at convidam o criminoso e o tratamcomo a um distinto senhor.

    Do ponto de vista do homem moderno, as pessoas de antigamente tinham menosliberdade. As possibilidades de escolha eram menores, mas, sem dvida, suaresponsabilidade era muito maior. Nem lhes passava pela cabea a possibilidade denegligenciar os deveres de seu cargo, a delidade ao lugar que a vida parecia ter lhesreservado.

    Uma coisa notvel o valor que aquela gente dava s palavras. De modo algumeram uma arma justicativa. Hoje todas as interpretaes so vlidas, e as palavrasservem mais para nos desonerar da responsabilidade sobre nossos atos do que pararesponder por eles.

    No quero importunar vocs com velhos casos que guardo na memria. Almdisso, provvel que os mais jovens no entendam o alcance dos mitos, que so aexperincia de uma remota vida intemporal, carregada de signicados que iluminamo presente. Como bem disse Eliade, cada concepo de mundo precisa ser vivida dedentro para ser compreendida, e seu compartilhamento fortalece o senso decomunidade e o elo entre os homens.

    Antigamente as pessoas se conheciam e no precisavam se exibir, a trajetria devida de cada um estava vista de todos. algo que eu posso armar porque, paramim, ser reconhecido pelas pessoas no apenas me anima imensamente comotambm cria uma responsabilidade. Por outro lado, quando multides de sereshumanos pululam nas ruas das grandes cidades sem que ningum os chame pelonome, sem saber de que histria fazem parte nem para onde se dirigem, o homemperde o vnculo com o cho sobre o qual transcorre sua existncia. J no vivedefronte s pessoas de seu lugar, a seus vizinhos, a seu Deus, e sim angustiosamenteperdido entre multides cujos valores desconhece ou cuja histria mal compartilha.

    Quando a multiplicidade de culturas relativiza os valores e a globalizao esmaga

  • com seu poder, impondo uma arrogante uniformidade, o ser humano, em seudesconcerto, perde o senso dos valores e de si mesmo e j no sabe em quem ou emque acreditar. Como disse Gandhi:

    No quero minha casa murada por todos os lados nem com as janelas emparedadas. Quero que o sopro detodas as culturas entre to livremente quanto possvel. Mas no admito que nenhuma delas irrompa e mearraste. Queria ver nossos jovens amantes da literatura estudando a fundo o ingls e todas as lnguas quequisessem. Mas detestaria ver um nico indiano descuidar, esquecer-se ou envergonhar-se de sua lnguamaterna, ou achar que ela imprpria para expressar seu pensamento e suas melhores reflexes. Minha religiono das que fazem da casa uma priso.

    Em nosso pas so muitos os homens e as mulheres que se envergonham, na cidadegrande, dos costumes de sua terra de origem. Tragicamente, o mundo est perdendoa originalidade de seus povos, a riqueza de suas diferenas, em seu desejo infernal declonar o ser humano para melhor domin-lo. Quem no ama sua provncia, seupaese, a aldeia, o pequeno lugar, sua prpria casa, por mais pobre que seja, mal poderespeitar os outros. Mas, quando tudo dessacralizado, a existncia assombrada porum amargo sentimento de absurdo. Vem da um dos motivos pelos quais hoje se temtanto horror da morte, convertida em tabu. J quase no h velrios, e chorar numenterro um gesto imprprio e infreqente. Quando nos dermos conta, teremosdeixado de compartilhar esse misterioso momento em que a alma se retira do corpo,em que este ca to morto como uma casa quando se retiram para sempre os seresque a habitavam e, acima de tudo, que sofreram e amaram nela. Pois no so asparedes, nem o teto, nem o cho o que individualiza uma casa, e sim as pessoas quemoram nela e lhe do vida, com suas conversas, suas risadas, com seus amores edios; seres que impregnam a casa de algo imaterial mas profundo, como o sorrisonum rosto.

    Negar a morte, no visitar os cemitrios, no vestir luto, tudo isso parecia umaarmao da vida, e de fato o foi em certa medida. Mas, paradoxalmente, acabou setransformando numa armadilha, mais uma das muitas que a sociedade modernafabricou para que o homem no sinta as situaes limite, aquelas em que nossomundo desaba, as nicas capazes de nos despertar desta inrcia que nos move. DiziaDonne que ningum dorme no carro que o leva da masmorra ao patbulo, mas quetodos dormimos no percurso do bero sepultura; ou no estamos inteiramenteacordados.

    Nada saberamos da vida sem a dolorosa conscincia daquele mistrio nal. Assim

  • o entenderam as culturas que identicavam a deusa da fertilidade com a divindadeda morte. A Me Terra cuidava tanto das sementes como dos mortos, pois estes,como os gros enterrados, voltariam vida recobertos de uma nova forma. Na China,com sua tradio milenar, as mulheres eram sepultadas com seus vestidos de noiva.

    Essa crena na fecundidade da vida alm da morte universal e se manifesta nossmbolos que, mesmo sem sabermos, esto presentes em nossos ritos fnebres, comoas velas que ardem pelo ltimo aniversrio do falecido e as coroas que se lhe oferecemsimbolizando seu triunfo, a chegada meta, assim como se coroam os atletasvitoriosos. Em nossas provncias h belas celebraes, como a da Defunta Correa, essajovem que parte com seu beb em busca do marido preso. Ela desfalece e morre natravessia do deserto, mas quando a encontram, as pessoas do lugar armam que acriana continuava mamando de seu peito. Algo inconcebvel para ns, porm prenhede poesia e de simbolismo para os homens daquelas terras que peregrinam ao desertoda provncia de San Juan para lhe pedir ajuda. Com quanta emoo participamos, emSantiago del Estero, desse jantar oferecido depois da morte de uma criana! chamada a refeio do anjinho e tem uma ressonncia sagrada muito profunda,pela dor de quem perdeu a criana e come entre lgrimas, como numa prece,simbolizando a magnitude de sua esperana. No por acaso Dostoivski termina osKaramazov com uma cena semelhante.

    O calor insuportvel e pesado, a lua, quase cheia, est rodeada de um haloamarelado. Nem uma folha balana: tudo anuncia o temporal. As montanhasparecem iluminadas numa cenograa noturna de teatro; contudo, os jardins aindaesto impregnados de um intenso perfume de jasmins e magnlias.

    A religio perdeu sua inuncia sobre os homens, e algumas dcadas atrs os mitose as religies pareciam denitivamente superados, com a generalizao do atesmoentre os espritos avanados. Nos ltimos anos, porm, o homem em seu desesperovoltou os olhos para as religies em busca de Algum que possa apoi-lo.

    Tudo isso, diro, no passa de lenda, coisas em que se acreditava antigamente. Masquando o pensamento e a poesia constituam uma nica manifestao do esprito queimpregnava desde a magia das palavras rituais at a representao dos destinoshumanos, desde as invocaes aos deuses at suas preces, o homem podia indagar ocosmos sem romper a harmonia com os deuses. Hoje no temos uma narrao, umrelato que nos una como povo, como humanidade, e nos permita traar o rastro da

  • histria de que somos responsveis. O processo de secularizao pulverizou os ritosmilenares, os relatos cosmognicos, crenas outrora profundamente arraigadas nahumanidade, como o reencontro com os mortos, os poderes curativos do batismo oudo perdo dos pecados.

    Mas como podem ser uma falsidade as grandes verdades que revelam o corao dohomem por meio de um mito ou de uma obra de arte? Se as desventuras e faanhasdaquele cavaleiro maltrapilho de La Mancha ainda continuam a nos comover, porque uma coisa to risvel como sua luta contra os moinhos de vento revela umadesesperada verdade da condio humana. A mesma coisa acontece com os sonhos:deles se pode dizer qualquer coisa, menos que sejam mentira. Mas ao supervalorizar oracional, desprezou-se tudo aquilo que a lgica no conseguia explicar. E acaso soexplicveis os grandes valores inerentes condio humana, como a beleza, averdade, a solidariedade ou a coragem? O mito, assim como a arte, exprime um tipode realidade da nica forma como ela pode ser expressa. essencialmente avesso aqualquer tentativa de racionalizao, e sua verdade paradoxal desaa todas ascategorias da lgica aristotlica ou dialtica. Mediante essas profundas manifestaesdo esprito, o homem toca os fundamentos ltimos de sua condio e consegue que omundo em que vive adquira o sentido do qual carece. Por isso mesmo, todos oslsofos e artistas, sempre que quiseram atingir o absoluto, tiveram de recorrer aalguma modalidade do mito ou da poesia. Jaspers sustentou que os grandesdramaturgos da Antigidade vertiam em suas obras um saber trgico, que no apenasemocionava os espectadores como tambm os transformava, e por isso os dramaturgosse tornavam profetas do ethos de seu povo. E o prprio Sartre, no esforo de revelar odrama dos franceses sob o domnio nazista, escreve As moscas, que, em essncia, no seno uma adaptao do antigo drama de squilo, Orestes, aquele heri trgico queluta corajosamente pela liberdade.

    O momento de maior empobrecimento de uma cultura esse em que o mitocomea a ser popularmente denido como uma falsidade. Foi o que aconteceu naGrcia clssica. Depois da derrocada dos antigos relatos, Lucrcio conta ter vistocoraes aitos em todos os lares; acossada por incessantes remorsos, a mente noencontrava alvio e era forada a se descarregar em recalcitrantes lamentaes. Assimcomo uma casa cujos alicerces se desmancham, as sociedades comeam a desmoronarquando seus mitos perdem a riqueza e o valor.

  • Esse empobrecimento atroa capacidades profundas da alma, to caras vidahumana como os afetos, a imaginao, o instinto, a intuio, para desenvolver aoextremo a inteligncia operacional e as capacidades prticas e utilitrias.

    Defronte a questes inefveis, infrutfero tentar aproximar-se por meio dedenies. A incapacidade dos discursos loscos, teolgicos ou matemticos pararesponder a essas grandes interrogaes revela que a condio ltima do homem transcendente e, por isso, misteriosa, inapreensvel.

    Quando, em 1945, em Homens e engrenagens, eu manifestei esse mesmo pontode vista, os intelectuais atacaram meu livro com ferocidade e ironia. Mas agora, ante avulnerabilidade, ou o fracasso, da razo, da poltica e da cincia, o ser humano oscilano vazio sem achar onde ncar razes, nem no cu, nem na terra, enquanto entupido por uma avalanche de informao que no consegue digerir e que no lheproporciona alimento algum.

    Ser possvel que, apesar de tantas invenes e avanos, apesar da cultura, dareligio e do conhecimento do universo, tenhamos cado na superfcie da vida?Tristemente, com a nostalgia dos projetos irrealizados, s nos resta responderarmativamente pergunta de Rilke, porque a sabedoria delidade condiohumana. O que o homem ps no lugar de Deus? No se libertou de cultos nem dealtares. O altar continua, no mais como lugar de sacrifcio e abnegao, mas do bem-estar, do culto de si mesmo, da reverncia aos grandes deuses da tela.

    O forte sentimento de orfandade que assola nosso tempo se deve derrocada dosvalores compartilhados e sagrados. Se os valores so relativos e aderimos a eles comoao regulamento de um clube esportivo, como eles podero nos salvar em face dadesgraa ou do infortnio? por esse motivo que h tantas pessoas desesperadas ou beira do suicdio. Por isso a solido se torna to terrvel e opressiva. Em cidadesmonstruosas como Buenos Aires h milhes de seres angustiados. As praas estocheias de homens solitrios e, o que ainda mais triste, de jovens abatidos que muitasvezes se renem para beber ou para se drogar, achando que a vida no tem sentido,at se convencerem, horrorizados, de que no existe nada absoluto. Recordo a solidodo campo, to diferente! Era essa solido da plancie innita que dava ao homemuma tendncia natural para a religiosidade e para a metafsica. No por acaso as trsgrandes religies do Ocidente nasceram na solido do deserto, nessa espcie demetfora do nada em que o innito se conjuga com a nitude do homem. Nossosmodernos modos de pensar cultivam a crena de que aqueles eram povos atrasados,

  • sendo que para eles a verdade era uma descoberta, diante da qual cabia o assombro.Na modernidade, o homem foi buscar a resposta s grandes incgnitas em seusconstrutos lgicos, pensando com isso situar-se acima daqueles que a esperavam naProvidncia. Mas hoje o intelecto humano j recebeu tantos golpes que estamos emcondies de abrir os olhos para crenas impensveis alguns anos atrs.

    A busca religiosa do homem atual inconteste. E como diz Jnger: O mtico vir,sem sombra de dvida, ele j est a caminho. Ou melhor, sempre esteve a e, chegadaa hora, aflorar como um tesouro.

    Os jovens j comearam a se aproximar das religies de um jeito novo. Mas nonos enganemos: muitas vezes trata-se de uma coisa supercial, adaptvel a qualquermodo de vida, como um cmodo abrigo que nada exige, sem o abismo da f que averdadeira religiosidade comporta.

    No digo isso saudoso de um tempo lendrio do qual aqueles que o vivemospudssemos nos vangloriar. Deve-se reconhecer que muitos desses valores s eramrespeitados porque no se vislumbrava outra possibilidade. O conhecimento de outrasculturas oferece a perspectiva necessria para olhar o mundo de outro ngulo, paraincorporar vida outras dimenses e outras sadas. A humanidade est caindo numaglobalizao que no tende a aproximar as culturas, mas a impor a elas um padronico para melhor se enquadrar no sistema mundial. Apesar disso, a f que me possuise baseia na esperana de que o homem, na iminncia de um grande salto, volte aencarnar os valores transcendentes, agora escolhendo-os com a liberdade que estetempo lhe d, providencialmente.

    Sob o sol da Quebrada da Humahuaca,testemunha silenciosa de lutas e matanas,o rio Grande serpenteia como mercrio brilhante.Exrcitos do Inca,caravanas de cativos,colunas de conquistadores,cavalarias patriotas.Para cima, para baixo...E depois noites de silncio mineral,em que se volta a sentirno mais que o murmrio do rio Grande,impondo-se lenta mas seguramente sobre os sangrentos mas to transitrios!

  • combates entre os homens.

    Entramos na praa de Salta e nos misturamos com as pessoas que caminharamlguas em seus misachicos.4 V-se que esto cansadas, em sua pobreza, em seu rostoencarquilhado, mas continuam a cantar, conantes, com seus instrumentos rsticos.Ao lado delas renova-se a candura. Elas que so o milagre. O milagre os homensno renunciarem a seus valores quando o salrio no basta para alimentar a famlia;milagre o amor permanecer e os rios ainda correrem depois de derrubarmos asflorestas da terra.1 "Voc v a Bblia chorar junto a um aquecedor"; verso do tango "Cambalache", de Enrique Santos Discpolo. (N.T.)2 Martn Miguel de Gemes (1785-1821): prcer militar saltenho que se notabilizou nas guerras da independnciaargentina. (N. T.)3 Anel terminado em pino que encaixado num pomo de madeira e manipulado por um adulto beira do carrosselem movimento, enquanto as crianas a bordo do brinquedo so desaadas a apanh-lo ao passar, tendo comoprmio uma volta de graa. (N. T.)4 Misachico: romaria familiar tpica do noroeste argentino. (N. T.)

  • terceira carta

    Entre o bem e o mal

  • O humano do homem dar a vida por outro homem.E. Levinas

  • Hoje pela manh eu dava como certo que teramos sudestada,1 mas me enganei. Otemporal permaneceu em suspenso, esttico. O cinza foi se atenuando, e detardezinha j no se via mais nenhum trao plmbeo no cu. Esse erro simples einofensivo me levou, imperceptivelmente, a pensar nos grandes equvocos quecometemos na vida. E da, atravs de um vasto territrio de sonhos e lembranas,minha alma chegou at a imagem de minha me naquela tarde, quando fui visit-laem La Plata e a encontrei de costas, sentada grande mesa vazia da sala de jantar,tando o nada, isto , suas prprias memrias, no escuro das persianas fechadas, nanica companhia do tique-taque do velho relgio de parede. Certamenterememorando aquele tempo feliz em que todos estvamos em volta da enorme mesaChippendale e dos grandes aparadores e trinchantes de outros tempos, com o painuma cabeceira e ela na outra; quando meu irmo Pepe repetia suas histrias, asinocentes mentiras daquele folclore familiar.

    Os olhos de minha me se encheram de lgrimas ao me ver, e algo em mim repetiuaquela sentena de que a vida um sonho. Eu a observara em silncio. Que que eupodia fazer, quando ela estaria vendo em retrospecto noventa anos defantasmagorias? Depois, como a pequenos goles, ela se ps a contar histrias de Rojase de sua famlia albanesa, at que chegou a hora de minha partida. Era necessriopartir? Os olhos de minha me voltaram a se enevoar. Mas ela era estica, vinha deuma famlia de guerreiros, embora no gostasse disso, embora o negasse.

    Ainda a recordo parada na porta, acenando levemente com a mo direita, no commuita veemncia, no fosse me preocupar, essas coisas. Na rua 3, as rvorescomeavam a impor seu mudo enigma do entardecer. Ela ainda virou a cabea maisuma vez. Com a mo, timidamente, repetiu o gesto. Depois ficou s.

    To desesperadas eram as minhas buscas que ento no pude perceber que essa eraa ltima vez que eu veria minha me com sade, de p, e que essa dor duraria parasempre, como agora, nesta noite em que a recordo entre lgrimas.

    Entre o que desejamos viver e a pa agitao em que transcorre a maior parte davida, abre-se uma cunha na alma que separa o homem da felicidade como o exiladode sua terra. Porque naquele instante, enquanto minha me cava l parada, imvel,no podendo reter seu lho e no querendo faz-lo, eu, surdo a seu mnimo apelo, jcorria atrs de minhas febris utopias, pensando assim cumprir com minha vocaomais profunda. E, embora nem a cincia, nem o surrealismo, nem meu compromisso

  • com o movimento revolucionrio tenham satisfeito minha sfrega sede de absoluto,orgulho-me de ter vivido entregue quilo que me apaixonou. Nesse trnsito, impuro econtraditrio como todo atributo do movimento humano, fui salvo por um sensointuitivo da vida e por uma deciso desenfreada diante do que eu consideravaverdadeiro. A existncia me parecia, assim como ao personagem de A nusea, uminsensato, gigantesco e gelatinoso labirinto; e, assim como ele, senti o anseio de umaordem pura, de uma estrutura de ao polido, ntido e forte. Quanto mais eu eraacossado pelas sombras do mundo noturno, mais me aferrava ao universo platnico,pois quanto maior o tumulto interior, mais inclinados nos sentimos a nos refugiarem alguma ordem. Assim, nossas buscas, nossos projetos ou trabalhos nos privam dever os rostos que mais tarde se revelaro os verdadeiros mensageiros daquilo queprocurvamos, e, ao mesmo tempo, as pessoas que devamos ter acompanhado ouprotegido.

    to pouco o tempo que dedicamos aos velhos! Agora que eu tambm sou umdeles, quantas vezes, na solido das horas que inevitavelmente acompanham avelhice, lembro compungido aquele seu ltimo aceno e observo com tristeza odesamparo que os anos trazem, o abandono a que os homens de nosso temporelegam os idosos, os pais, os avs, essas pessoas s quais devemos a vida. Nossaavanada sociedade deixa de lado quem no produz. Meu Deus, abandonados asua solido e a suas ruminaes! Quanto de respeito e gratido perdemos! Queimensa devastao os tempos causaram vida, que tremendos abismos se abriramcom os anos, quantas iluses foram assoladas pelo frio e pelas tormentas, pelodesengano e pela morte de tantos projetos e seres que amvamos!

    Toda vez que a dor me atingia, eu buscava uma ascenso, um refgio na altamontanha, porque essa montanha era invulnervel; toda vez que a podrido chegavaao nvel do insuportvel, porque essa montanha era limpa; toda vez que a fugacidadedo tempo me atormentava, porque naquelas alturas reinava a eternidade. Mas porm o rumor humano sempre me alcanava, inltrava-se pelos interstcios e subia pordentro de mim. Porque o mundo no est apenas fora de ns, mas tambm no maisrecndito de nosso corao. E cedo ou tarde aquela alta montanha incorruptvelacaba por nos parecer um triste simulacro, uma fuga, porque o mundo de que somosresponsveis este aqui: o nico que nos fere com a dor e o infortnio, mas tambmo nico que nos d a plenitude da existncia, este sangue, este fogo, este amor, esta

  • espera da morte. O nico que nos oferece um jardim no crepsculo, o contato da moque amamos.

    Enquanto escrevo a vocs, volta a imagem de minha me que deixei to sozinhaem seus ltimos anos. Tempos atrs escrevi que a vida feita em rascunho, o que semdvida lhe d transcendncia, mas nos impede, dolorosamente, reparar nossos erros eabandonos. Nada do que foi volta a ser, e as coisas, os homens e as crianas no so oque foram um dia. Que horror e que tristeza, o olhar da criana que perdemos!

    Olha! As palavras inocentes por fim me remoarame como em outro tempo as lgrimas brotam de meus olhos.E recordo os dias h muito passadose a terra nativa volta a alegrar minha alma solitriae a casa em que um dia cresci com tuas bnos,onde, alimentado com amor, logo o menino cresceu.Ah, quantas vezes pensei que eu te reconfortariaQuando via a mim mesmo pelejando ao longe sobre o vasto mundo.Muito tentei e sonhei, e chaguei meu peito fora de lutar, mas me fareis sarar,queridos meus! E aprenderei a viver como tu, Me, por muito tempo; piedosa e tranqila a velhice.Irei a ti: abenoa teu neto agora, mais uma vez,Que, assim, o homem mantenha o que prometeu em criana.

    Hlderlin

    No desespero de ver o mundo, eu j quis at parar o tempo da infncia. Sim, ao v-las aglomeradas numa esquina, nessas conversas hermticas que para os adultos notm nenhuma importncia, senti a necessidade de deter o curso do tempo. Deixaressas crianas para sempre l, naquela calada, naquele universo encantado. Nopermitir que as sujeiras do mundo adulto as machuquem, as derrubem. A idia terrvel, seria como matar a vida, mas muitas vezes me perguntei o quanto a educaocontribui para adulterar a alma das crianas. verdade que a natureza humana vaitransformando os traos, as emoes, a personalidade. Mas a cultura que d forma viso que elas vo tendo do mundo.

    urgente encararmos uma educao diferente, ensinarmos que vivemos numaterra da qual devemos cuidar, que dependemos da gua, do ar, das rvores, dospssaros e de todos os seres vivos, e que qualquer dano que causemos a este universo

  • grandioso prejudicar a vida futura e pode at destru-la. Que coisa tima poderia sero ensino, se, em vez de despejar uma imensido de informaes que ningum nuncaconseguiu reter, fosse vinculado luta das espcies, necessidade urgente depreservar os mares e oceanos!

    preciso advertir as crianas do risco planetrio e das atrocidades que as guerrassempre perpetraram nos povos. importante que elas se sintam parte de uma histriaao longo da qual os seres humanos zeram grandes esforos e tambm cometeramtremendos enganos. A busca de uma vida mais humana deve comear pela educao.Por isso to grave as crianas passarem horas idiotizadas em frente televiso,assimilando todo tipo de violncia, ou se dedicando a esses jogos que premiam adestruio. A criana pode aprender a valorizar o que bom, e no cair no que induzido pelo ambiente e pelos meios de comunicao. No podemos continuarlendo para as crianas historinhas de galinhas e pintinhos quando essas aves sosubmetidas aos piores suplcios. No podemos engan-las ocultando a irracionalidadedo consumo, a injustia social, a misria evitvel e a violncia existente nas cidades eentre as diferentes culturas. Com uma mnima explicao, as crianas poderoentender que o mundo est ameaado por um grave pecado de dilapidao.

    Gandhi conclama formao espiritual, educao do corao, ao despertar daalma. Nesse sentido, crucial entendermos que a primeira marca que a escola e ateleviso imprimem na alma da criana a competio, a superao dos colegas e omais veemente individualismo, ser o primeiro, o vencedor. Acredito que a educaoque damos aos lhos multiplica o mal porque o ensina como bem: a pedra angular denossa educao assenta-se sobre o individualismo e a competio. Para as crianas, uma fonte de grande confuso receberem ensinamentos de cristianismo e decompetio, de individualismo e de bem comum, ouvirem longos sermes sobresolidariedade que so contrariados pela desenfreada busca do sucesso pessoal para aqual so adestradas. Necessitamos de escolas que favoream o equilbrio entre ainiciativa individual e o trabalho em equipe, que condenem o feroz individualismoque parece ser a preparao para o sombrio Leviat de Hobbes, quando diz que ohomem lobo do homem.

    Temos de reaprender o que satisfao. Estamos to desorientados, que achamosque satisfazer-se ir s compras. Um luxo verdadeiro um encontro humano, ummomento de silncio diante da criao, fruir de uma obra de arte ou de um trabalhobem-feito. Satisfaes verdadeiras so aquelas que embargam a alma de gratido e

  • nos predispem ao amor. A sabedoria que meus muitos anos de vida me trouxeram ea proximidade da morte me ensinaram a reconhecer a maior das alegrias quepodemos ter na vida, embora ela no seja possvel quando a humanidade passa fomee tem de suportar os mais atrozes sofrimentos.

    A educao no est desligada do poder e, portanto, dirige sua tarefa formaode pessoas adequadas s demandas do sistema. Em certo sentido, isso inevitvel,pois do contrrio ela formaria magncos desempregados, magncos homens emulheres excludos do mundo do trabalho. Mas, se isso no for contrabalanadocom uma educao que mostre o que est acontecendo e, ao mesmo tempo, promovao desenvolvimento das faculdades em deteriorao, ento o que se perder ser oprprio ser humano. E s alguns privilegiados podero comer, ter uma casa e ummnimo de possibilidades econmicas e, ao mesmo tempo, serem pessoasespiritualmente cultivadas e valiosas. Ser difcil achar um modo de os homens teremacesso a bons trabalhos e a uma vida em que caiba a possibilidade de criar ou realizaratividades prprias do esprito.

    A histria sempre traz novidades. O homem, ofuscado pelo presente, quase nuncaconsegue prever o que est para acontecer. Quando atina a enxergar um futurodiferente, como agravamento da situao atual ou como surgimento de seucontrrio, sendo que as mudanas costumam se apresentar em fatos irreconhecveisem seu momento, ou, pelo menos, no avaliados em sua real dimenso. Hoje, com aproximidade do momento supremo, intuo que a humanidade est a um passo de umnovo tempo espiritualmente muito rico, se entendermos que cada um de ns possuimais poder do que pensa sobre o mal no mundo. E tomarmos uma deciso.

    Lentamente ia nascendo um novo dia na cidade de Buenos Aires, um dia como outro qualquer entre osinumerveis que nasceram desde que o mundo mundo. Da janela, Martn viu um menino correndo com osjornais da manh, talvez para se aquecer, talvez porque esse trabalho exige movimento. Um co vadio, nomuito diferente de Bonito, revirava uma lata de lixo. Uma moa como Hortensia ia para o trabalho.

    Como era mesmo que o Bruno tinha dito? A guerra pode ser absurda ouerrada, mas o peloto a que a gente pertence um fato absoluto.

    A estava DArcngelo, por exemplo. A estava a prpria Hortensia.Um cachorro basta.

    O homem, a alma do homem, est suspensa entre o anseio do bem, essa eterna

  • saudade do amor que carregamos, e a inclinao para o mal, que nos seduz e nospossui, muitas vezes sem que ns mesmos percebamos o sofrimento que nossos atospodem causar aos outros. O poder do mal no mundo me levou, durante anos, asustentar um tipo de maniquesmo: se Deus existe e imensamente bondoso eonipotente, ele est de mos atadas, porque no se percebe sua presena; o mal, aocontrrio, de uma evidncia que dispensa demonstrao. Bastam alguns exemplos:Hitler, as torturas cometidas na Amrica Latina. Diante de fatos como esses, eupenso, repetidas vezes, no quanto os animais so melhores do que ns! Por outrolado, como grandiosa e comovente a presena da bondade em meio ferocidade e violncia.

    A bondade e a maldade so para ns inapreensveis, porque ocorrem em nossoprprio corao. So, sem dvida, o grande mistrio. Essa trgica dualidade se reeteno rosto do homem, onde, lenta mas inexoravelmente, vo deixando seu rastro ossentimentos e as paixes, os afetos e os rancores, a f, a iluso e os desencantos, asmortes que vivemos ou pressentimos, os outonos que nos entristeceram oudesalentaram, os amores que nos enfeitiaram, os fantasmas que, em sonhos ouces, nos visitam ou perseguem. Nos olhos que choram de dor ou que se fecham desono, mas tambm por pudor ou astcia, nos lbios que se apertam por obstinaomas tambm por crueldade, nas sobrancelhas que se contraem por inquietao ouestranhamento ou que se arqueiam na interrogao e na dvida, nas veias que saltamde raiva ou sensualidade, enm, vai-se delineando a mvel geograa que a almaacaba construindo sobre a sutil e malevel pele do rosto. Revelando-se assim,conforme a fatalidade que lhe prpria, por meio dessa matria que ao mesmotempo sua priso e sua grande possibilidade de existncia.

    A arte foi o porto denitivo onde preenchi meus anseios de navio sedento e deriva. Cheguei a ela quando a tristeza e o pessimismo j haviam rodo meu espritode tal maneira que, como um estigma, caram para sempre entrelaados trama daminha existncia. Mas devo reconhecer que foi justamente o desencontro, aambigidade, esta melancolia ante o efmero e o precrio, a origem da literatura emminha vida.

    Nos tratados, o escritor deve ser coerente e unvoco, e por isso o ser humanoescapa de suas mos. No romance, o personagem ambguo como na vida real, e arealidade que aparece numa grande obra de co realmente representativa. Qual

  • a verdadeira Rssia? A do piedoso, sofredor e compreensivo Aliosha Karamazov ou ado canalha do Svidrigailov? Nem uma, nem outra. Ou, melhor dizendo, uma e outra.O romancista todos e cada um dos seus personagens, com a totalidade dascontradies que essa multido comporta. ao mesmo tempo, ou em diferentesmomentos de sua existncia, piedoso e cruel, generoso e mesquinho, austero elibidinoso. E quanto mais complexo um indivduo, mais contraditrio ele . Amesma coisa ocorre com os povos.

    No por acaso o desenvolvimento do romance coincide com o desenvolvimentodos tempos modernos. Onde as Frias poderiam buscar refgio? Quando umacultura as reprime, elas explodem, e o estrago muito maior. Fala-se muito noHomem Novo, com maisculas. Mas no poderemos criar esse homem se no oreintegrarmos. Ele est desintegrado por esta civilizao racionalista e mecnica deplsticos e computadores. As grandes culturas, assim como a arte, sabem atentar paraas foras escuras, por mais vergonha ou nojo que se tenha delas.

    Persona quer dizer mscara, e cada pessoa tem muitas. Existe realmente uma quepossa verdadeiramente expressar a complexa, ambgua e contraditria condiohumana? Lembro-me de uma reexo de Bruno: sempre terrvel ver um homemque se julga segura e absolutamente s, pois nele existe algo de trgico, talvez at desagrado, e ao mesmo tempo de horrendo e vergonhoso. Sempre usamos umamscara, dizia Bruno, que nunca a mesma, mas trocada para cada um dos papisque nos cabem na vida: a do professor, a do amante, a do intelectual, a do heri, a doirmo carinhoso. Mas que mscara colocamos, ou que mscara nos resta, quandoestamos na solido, quando achamos que ningum, ningum mesmo, nos observa,controla, escuta, exige, suplica, intima ou ataca? Quem sabe o carter sagrado desseinstante se deva a que o homem est, ento, defronte divindade, ou pelo menosdefronte a sua prpria e implacvel conscincia.

    Quantas lgrimas h por trs das mscaras! Quanto mais perto o homem estaria doencontro com outro homem se nos aproximssemos uns dos outros nos assumindocomo necessitados que somos, em vez de nos ngirmos de fortes! Se parssemos denos mostrar auto-sucientes e nos atrevssemos a reconhecer a grande necessidadeque temos do outro para continuar vivendo, como mortos de sede que somos naverdade, quanto mal poderia ser evitado!

    Vem minha memria aquele relato de Saint Exupry de quando fez um pouso

  • forado no deserto, e ele e seu mecnico passaram trs dias sem gua para beber. Ato orvalho sobre a fuselagem do avio eles lambiam ao amanhecer. Quando o delrioj comeava a possu-los, um beduno sobre um camelo, de uma duna distante, xouo olhar sobre eles. O nmade avanou sobre a areia, conta Exupry, como um deussobre o mar.

    O rabe simplesmente olhou para ns. Ele ps as mos em nossos ombros, e obedecemos. Deitamos. Aqui noh raas, nem lnguas, nem diferenas. H esse nmade pobre que pousou mos de arcanjo sobre nossosombros.

    Depois de fazer uma inesquecvel descrio da gua, ele diz:

    Quanto a voc que nos salva, beduno da Lbia, sumir para sempre da minha memria. Jamais recordarei seurosto. Voc o Homem e surgir a meus olhos com o rosto de todos os homens a um s tempo. Voc nuncanos examinou, mas logo nos reconheceu. Voc o irmo bem-amado. Eu, por meu turno, reconhecerei voc emtodos os homens.

    Voc me aparecer banhado de nobreza e de benevolncia, grande Senhor que tem o poder de dar de beber.Todos os meus amigos, todos os meus inimigos em voc avanam em minha direo, e j no tenho um nicoinimigo no mundo.

    Os tempos modernos foram sculos marcados pelo menosprezo dos essenciaisatributos e valores do inconsciente. Os lsofos da Ilustrao expulsaram ainconscincia. Mas ela entrou de volta pela janela. Dos gregos ao menos se sabe quesuas deusas da noite no podiam ser desprezadas, muito menos banidas, porque elasse desforravam com fatdicas vinganas.

    Os seres humanos oscilam entre a santidade e o pecado, entre a carne e o esprito,entre o bem e o mal. E o grave, o estpido que desde Scrates se quis proscrever seulado escuro. Essas potncias so invencveis. E quando se quis destru-las, elas seesconderam e por fim se rebelaram com maior violncia e perversidade.

    preciso reconhec-las, mas tambm lutar incansavelmente pelo bem. As grandesreligies no apenas preconizam o bem, tambm ordenam pratic-lo, o que prova aconstante presena do mal. A vida um tremendo equilbrio entre o anjo e a besta.No podemos nem devemos falar do homem como se fosse um anjo. Tampoucocomo se fosse uma besta, porque o homem capaz das piores atrocidades, mastambm dos maiores e mais puros herosmos.

    Inclino-me com reverncia diante daqueles que se deixaram matar sem revidar ogolpe. Eu quis mostrar essa bondade suprema do homem em personagens simples

  • como Hortensia Paz ou o sargento Sosa. Como j disse, o ser humano no poderiasobreviver sem heris, santos e mrtires, porque o amor, assim como o verdadeiro atode criao, sempre a vitria sobre o mal.

    1 Forte vento invernal que sopra do sudeste contra as costas do rio da Prata, geralmente acompanhado de chuvaspersistentes. (N. T.)

  • quarta carta

    Os valores comunitrios

  • Cada um de ns culpado perante todos, por todos e por tudo.F. Dostoivski

  • Quero lhes falar de Buenos Aires. Embora no more nela, coisa que alis seriainsuportvel, eu a reconheo como minha cidade, e por isso mesmo que sofro porela. De certo modo, ela representa o que a vida desses conglomerados onde vivem,ou sobrevivem, milhes de habitantes. Mas antes insistirei sobre o atual estado decoisas, que do conhecimento de todos, na esperana de que pela repetio, como agota de gua ou o martelo contra a porta fechada, um dia vejamos a situao sereverter. Na verdade, isso talvez j esteja acontecendo: a luz j se inltra entre asfrestas da velha civilizao.

    Estamos assistindo a uma total falncia da cultura ocidental. O mundo range eameaa desabar, este mundo que, para maior ironia, resultado da vontade dohomem, do seu prometico esforo de dominao. Guerras que conjugam atradicional ferocidade mais desumana mecanizao, ditaduras totalitrias, alienao,destruio catastrca da natureza, neurose coletiva e histeria generalizada, tudo issoenm abriu nossos olhos para revelar o monstro que orgulhosamente engendramos ealimentamos. Aquela cincia que prometia a soluo de todos os problemas fsicos emetafsicos do homem contribuiu para facilitar a concentrao de Estados gigantescos,para multiplicar a destruio e a morte com seus cogumelos atmicos e suas nuvensapocalpticas.

    A cada hora o poder do mundo se concentra e se globaliza. Vinte ou trintaempresas, como um selvagem animal totalitrio, hoje o tm em suas garras.Continentes mergulhados na misria junto a altos nveis tecnolgicos, assombrosaspossibilidades de vida a par de milhes de homens sem emprego, sem casa, semassistncia mdica, sem educao. A massicao causou grandes estragos, j difcilencontrar originalidade nas pessoas, e um processo idntico se realiza nos povos, pelachamada globalizao. Que horror! No percebemos que a perda dos traosdiferenciais vai nos tornando aptos para a clonagem? As pessoas evitam tomardecises no sentido de humanizar a prpria vida por medo de perderem o emprego,de serem excludas e virem a engrossar essas multides que correm aitas atrs de umtrabalho que as impea de cair na misria, que as salve. A absoluta assimetria noacesso aos bens produzidos socialmente est acabando com a classe mdia, e osofrimento de milhes de seres humanos que vivem na misria salta aos olhos detodos ns, por mais que nos empenhemos em fech-los. No demora, ser impossvelestudar ou assistir a um concerto com algum prazer, pois sero mais prementes os

  • questionamentos que a vida nos impor em relao aos nossos valores supremos. Pelaresponsabilidade de sermos homens.

    Esta crise no a crise do sistema capitalista, como muitos imaginam: a crise detoda uma concepo do mundo e da vida baseada na idolatria da tcnica e naexplorao do homem. Para acumular dinheiro, todos os meios foram vlidos. Essabusca da riqueza no foi levada adiante em benefcio de todos, como pas, comocomunidade; no se trabalhou com um sentimento histrico e de delidade terra.No, infelizmente isto mais parece o atropelo que se segue a um terremoto, quando,em meio ao caos, cada um tenta saquear tudo o que pode. inegvel que estasociedade cresceu tendo como meta a conquista, em que ter poder signica apropriar-se do alheio, e a explorao se estendeu a todas as regies do mundo.

    A economia reinante assegura que a superpopulao mundial no pode serassimilada pela sociedade atual. Essa frase me d calafrios: basta para os poderesmalcos justicarem a guerra. As guerras sempre contaram com o apoio de grandessetores da populao que, de um jeito ou de outro, se beneciaram dela. Comosentinela, todo homem deve permanecer alerta. Isso nunca pode acontecer. O salve-se quem puder no apenas imoral, mas insuficiente.

    As crenas e o pensamento, os recursos e as invenes foram postos a servio daconquista. Colonialismos e imprios de todos os tipos, por meio de lutas sangrentas,pulverizaram tradies inteiras e profanaram valores milenares, primeiro coisicandoa natureza, depois os prprios desejos dos seres humanos.

    Contudo, misteriosamente, no desejo que se est gerando uma mudana. algoque sinto nos homens que me abordam na rua e espero das juventudes do mundo.Mas na mulher que se encontra o desejo de proteger a vida, absolutamente.

    A degradao dos tribunais e a descrena na justia provocam a sensao de que ademocracia um sistema incapaz de investigar e condenar os culpados, como se fosseum caldo de cultivo favorvel corrupo, quando, na realidade, em nenhum outrosistema possvel denunci-la. No que nos outros no exista; ao contrrio, ela atmais profunda e degradante, a crermos no famoso aforismo de lorde Acton: O podercorrompe, mas o poder absoluto corrompe absolutamente.

    Devemos exigir que os governos dirijam todas suas energias para que o poderadquira a forma da solidariedade, para que promova e estimule os atos livres, pondo-se a servio do bem comum, nunca entendido como uma soma de egosmos

  • individuais, mas como o supremo bem de uma comunidade. Devemos fazer surgir,at com veemncia, um modo de conviver e de pensar que respeite at as maisprofundas diferenas. Como to belamente deniu Mara Zambrano, a democracia a sociedade em que no apenas possvel, mas imprescindvel, sermos pessoas.Embora frgil e falvel, at hoje nenhum outro sistema provou dar ao homem maisjustia social e liberdade do que a precria democracia em que vivemos. Ademocracia, mais do que permitir a diversidade, deveria estimul-la e exigi-la. Elanecessita da presena ativa dos cidados para existir, pois do contrrio massicadorae gera indiferena e conformismo. Vem da a esclerose de que muitas democraciaspadecem.

    No se pode identicar, sem mais, democracia com liberdade. Nela muitos noapenas deixam de buscar a liberdade como chegam a tem-la. Se compararmos aliberdade de hoje com a que havia poucas dcadas atrs, comprovamosdolorosamente que a liberdade est em retrocesso. Milhes de homens no mundo, etambm em nosso riqussimo pas, esto condenados a trabalhar durante dez ou dozehoras e viver miseravelmente amontoados. Os servos da gleba no diferem muitodeles. Isso aumenta a responsabilidade daqueles que podemos viver em liberdade,pois, como disse Camus, a liberdade no feita de privilgios, mas sobretudo dedeveres.

    Como homens livres num campo de prisioneiros, nossa misso trabalhar embenefcio deles, de todas as formas a nosso alcance. A verdadeira liberdade noresultar da tomada do poder por alguns, e sim do poder que um dia todos tero dese opor aos abusos da autoridade. A liberdade pessoal inculcar nas multides aconvico de que elas podem controlar o exerccio da autoridade e fazer-se respeitar,armou Gandhi, esse homem que lutou at a morte pela liberdade de seu pasmilenar. Gandhi era um convicto de que o homem no poder conquistar a liberdadeexterior enquanto no souber desenvolver a liberdade interior.

    Essa uma grande tarefa para quem trabalha no rdio, na televiso ou escreve nosjornais; uma verdadeira proeza, possvel de realizar quando autntica a dor quesentimos pelo sofrimento alheio.

    Tenho constatado com muita freqncia que tudo passvel de opinio, e algumque entrou em cena anteontem pode falar tanto quanto outro com uma longatrajetria comprovada na vida do pas. E a opinio emitida por aquele dada comoclassicatria, sem necessidade de demonstrao. A chamada opinio pblica a

  • soma do que se passa pela cabea daqueles que, nesses minutos, casualmente cruzamuma esquina escolhida, conformando o mnimo universo de uma pesquisa que, noentanto, ser alardeada nas manchetes dos jornais e nos programas de televiso. Asperguntas que se costumam fazer so de uma estupidez que causaria a fria deScrates, que lhes atribuiu o papel do que ajuda a dar luz. Tudo passa e todas asperspectivas so vlidas. D na mesma dom Chicho1 que Napoleo, Cristo que o Reide Paus. No se pensa no futuro, tudo conjuntural.

    Outra conseqncia desse estado de coisas a supervalorizao da diverso. Osprogramas divertidos tm mais audincia e a audincia o juiz supremo , noimporta custa de que valores nem quem os nancia. So esses programas em quedivertir-se degradar, onde tudo se banaliza. Como se, tendo perdido a capacidadepara a grandeza, nos contentssemos com uma comdia rasteira. Esse desespero peladiverso cheira a decadncia.

    Quem age desse modo revela uma postura verdadeiramente ctica, em que nocabe a indignao, pois se descr de toda conquista que possa melhorar a vida. Seexiste algo de apocalptico, esse viver como se o mundo no fosse existir amanh es nos restasse disfarar a tragdia.

    Nossa civilizao adotou um tipo de bem-estar como o dever ser da vida, fora doqual no h salvao. Esse objetivo alcanado graas ao medo e incapacidade quehoje os homens tm de viver os momentos duros, as situaes limite, os obstculos.Tem-se particular horror ao fracasso. Oculta-se qualquer arranho no bem-estar,temendo-se car excludo, eliminado da existncia como um time de futebol de umcampeonato. Tamanha a diculdade que o homem atual tem de superar astormentas da vida, de recriar a existncia depois das quedas.

    Saam do metr s centenas, tropeavam, desciam dos nibus lotados, entravam no inferno da estao Retiro,onde voltavam para subir nos trens. Ano novo, milnio novo, pensava o rapaz com piedosa ironia, vendoaqueles desesperados em busca de uma esperana propiciada com panetone e sidra, com sirenes e gritos.

    Ontem recebi a carta de um rapaz, que nela me diz tenho medo do mundo.Dentro do mesmo envelope, mandou-se uma fotograa, e nela pude perceber algo,em seu jeito de olhar, em suas costas encurvadas, que revelava uma enormedesproporo entre seus recursos e a terrvel realidade que o perturba. Sempre houvericos e pobres, sales de dana e masmorras, mortos de fome e faustosos banquetes.Mas, neste sculo, o niilismo se difundiu de tal maneira que a transmisso de valores

  • s novas geraes vai se tornando impossvel.Ainda assim, talvez sejam as crianas que venham nos salvar. Pois como poderemos

    cri-las falando nos grandes valores que justicam a vida, quando diante delas hmilhares de homens e mulheres afundando na misria, sem remdios nem um tetoonde se refugiar? Ou quando elas vem populaes inteiras sendo arrasadas porenchentes que poderiam ser evitadas.

    Vocs acham que possvel continuarmos a assistir pela televiso ao horror quesofrem os pobres a par da frivolidade acintosa e corrupta, tudo misturado como nomais srdido bricabraque? E em meio a esse espetculo ter lhos que sejam homensde verdade? A falta de gestos humanos gera uma violncia que no podemoscombater com armas, que s mais fraternidade entre os homens poder sanar.

    Milhares de homens perdem a vida trabalhando quando podem ,acumulando amarguras e desiluses, mal conseguindo sustentar-se por mais um diana mais precria situao, ao passo que quase todo indivduo que chega a um cargode poder em poucos meses troca seu modesto apartamentinho por uma luxuosamanso com fabulosos automveis na garagem. Como que essa gente no temvergonha?

    Se cruzarmos os braos, seremos cmplices de um sistema que legitima a mortesilenciosa. Os homens precisam que nossa voz se some a seus reclamos. Detesto aresignao apregoada pelos conformistas, pois o sacrifcio no o deles, nem o de suafamlia. Tenho pensado com horror na possibilidade de que, como as virulentasdoenas dos sculos passados, a impunidade e a corrupo venham a se instalar nasociedade como parte de uma realidade qual devemos nos habituar. Como foi quechegamos a essa degradao dos valores na vida social? Quando crianas, aprendemoso comportamento observando homens que simplesmente cumpriam com seu dever uma expresso hoje em desuso esperando receber uma recompensa digna por seutrabalho, mas que nunca aceitariam um suborno. Eram pessoas com dignidade: noporiam no bolso nada que no lhes correspondesse nem aceitariam subornos oubaixezas semelhantes.

    Lembro que meu pai perdeu seu moinho de farinha por causa de uma dvida queele havia feito de palavra. Claro que para ele essa perda foi imensamente dolorosa.Mas teria sido indigno de um verdadeiro homem fugir a sua responsabilidade; essesentimento de honra lhe dava foras e paz para viver. E que dizer, ento, dossindicatos, do que eles foram no passado? Recordo quase com candura o caso daquele

  • homem que desmaiou na rua e, quando o reanimaram, aqueles que o socorreram lheperguntaram por que no tinha comprado alguma coisa para comer com o dinheiroque levava no bolso, ao que aquele ser humano maravilhoso respondeu que odinheiro pertencia ao sindicato. No que naquela poca no existisse corrupo, mashavia um senso de honra que as pessoas eram capazes de defender com sua prpriaconduta. E roubar os cofres da nao, que devem reverter no bem comum, era umadas piores baixezas. Como continua sendo.

    Quem ca com os salrios dos professores, rouba a previdncia ou embolsa odinheiro das licitaes no merece mais que o nosso desprezo. No devemos serauxiliares da corrupo. No se pode levar televiso sujeitos que contriburam para amisria de seus semelhantes e trat-los como senhores diante das crianas. Essa agrande obscenidade! Como poderemos educar os mais novos quando nessa confusono se sabe mais se a pessoa conhecida por ser heri ou criminoso? Algum dir queestou exagerando, mas por acaso no crime apossar-se do pouco que cabe a milhesde pessoas que vivem na pobreza? Quantos escndalos presenciamos, e tudo continuaigual, sem que ningum com dinheiro seja preso? Todos sabem que a mentira geral, mas ela parece to poderosa que nada capaz de det-la. Isso faz que as pessoasse sintam impotentes e acaba produzindo violncia. Onde vamos parar?

    Tambm no possvel vivermos em comunidade quando todos os vnculos sebaseiam na competio. inegvel que ela faz aumentar o rendimento de certaspessoas, que se sentem incentivadas pelo desejo de triunfar sobre as outras. Mas nopodemos nos enganar, a competio uma guerra no armada, e como toda guerra sebaseia num individualismo que nos separa dos demais, que se tornam os rivais acombater. Se tivssemos mais senso de comunidade, nossa histria seria bem outra, eassim tambm o sentido da vida que desfrutaramos.

    Quando critico a competio, no o fao apenas por um princpio tico, mastambm pela enorme satisfao de compartilhar o destino, o que nos salva decarmos esterilizados pela corrida para o xito individual a que se tem resumido avida do homem.

    Semanas depois, outra tarde, quando me sentei para responder carta daquelerapaz, lembrei-me de que, quando era moo, eu escrevia sempre que me sentiainfeliz, sozinho ou desajustado com o mundo em que me coube nascer. E penso seno ser sempre assim, se a arte no nascer invariavelmente de nosso desajuste, de

  • nossa ansiedade e nosso descontentamento. Uma espcie de gesto de reconciliaocom o universo tentado por esta raa de frgeis, inquietas e ansiosas criaturas quesomos os seres humanos. Os animais no necessitam de nada disso: basta-lhes viver.Porque sua existncia ui em harmonia com as necessidades atvicas. Para o pssarobastam algumas sementinhas ou minhocas, uma rvore onde construir seu ninho,grandes espaos para voar; e sua vida transcorre desde o nascimento at a morte numventuroso ritmo que nunca dilacerado pelo desespero metafsico nem pela loucura.Ao passo que o homem, ao se levantar sobre as patas traseiras e transformar emmachado a primeira pedra lascada, instituiu as bases de sua grandeza mas tambm asorigens de sua angstia; pois com suas mos e com os instrumentos feitos com suasmos ele viria a erigir essa construo to poderosa e estranha chamada cultura,iniciando assim seu grande drama: deixar de ser um simples animal, mas nuncachegar a ser o deus que seu esprito sugere. Ser esse ser dual e desgraado que semove e vive entre a terra dos animais e o cu de seus deuses, que ter perdido oparaso terrestre de sua inocncia sem ganhar o paraso de sua redeno.

    Quantas vezes aconselhei queles que, em sua angstia e seu desalento, meprocuram pedindo orientao que se dediquem arte e se deixem tomar pelas forasinvisveis que operam em ns. Toda criana um artista que canta, dana, pinta,conta histrias e constri castelos. Os grandes artistas so pessoas estranhas queconseguiram preservar no fundo da alma essa ingenuidade sagrada da infncia e doshomens que chamamos primitivos, e por isso provocam o riso dos imbecis. Emdiferentes graus, a capacidade criativa pertence a todos os homens, nonecessariamente como uma atividade superior ou exclusiva. Quanto temos a aprendercom os povos antigos, em que todos, para alm das desgraas ou dos infortnios, sereuniam para danar e cantar! A arte um dom que repara a alma dos fracassos edesgostos. Ela nos anima a cumprir a utopia a que somos destinados.

    A arte de cada poca resume uma viso de mundo, a viso de mundo dos homensdesse tempo, e especialmente seu conceito de realidade. Neste novo milnio entregueao grande supermercado da arte, surgem aqui e ali, como os brotos que germinamdepois de um longo inverno, os indcios de um outro modo de olhar. Sobretudo nocinema, em lmes de baixssimo oramento vindos de pases pequenos, nocontaminados pela globalizao, v-se expressar o desejo de um mundo humano quese perdeu, mas do qual no se desistiu. So lmes que nos proporcionam o alvio dever que a vida simples, humana, ainda est viva. O homem no feito s de morte,

  • mas tambm de vontade de viver; nem s de solido, mas tambm de comunho eamor.

    Fitava com olhos de pequeno deus impotente o conglomerado escuro e gigantesco, terno e brutal, detestvel equerido, que como um temvel leviat se recortava contra as pesadas nuvens do oeste.

    O sol se punha, e a cada segundo o colorido das nuvens mudava no poente. Grandes farrapos cinza-violceosse destacavam contra um fundo de nuvens mais distantes: cinza, lilases, negruscas. Pena esse rosado, pensou,como se estivesse numa exposio de pintura. Mas logo o rosado foi se espalhando mais e mais, abaratandotudo. At que comeou a se apagar e, passando pelo malva e pelo roxo, chegou ao cinza e por m ao negro queanuncia a morte, que sempre solene e sempre acaba conferindo dignidade.E o sol desapareceu.

    * * *

    Mais um dia terminou em Buenos Aires: algo irrecupervel para sempre, algo que inexoravelmente oaproximava mais um passo de sua prpria morte. E to rpido, enm, to rpido! Antes os anos passavammais lentos, e tudo parecia possvel, num tempo que se estendia frente dele como uma estrada aberta rumo aohorizonte. Mas agora os anos corriam com crescente rapidez rumo ao ocaso, e a cada instante ele se pegavadizendo: faz vinte anos, quando o vi pela ltima vez, ou alguma outra coisa to corriqueira e trgica comoessa, e pensando em seguida, como diante de um abismo, como era pouco, miseravelmente pouco o que restavadaquela caminhada em direo ao nada. E ento, para qu?

    E quando chegava a esse ponto e parecia que nada mais tinha sentido, topava por acaso com um dessescachorrinhos vira-latas, faminto e carente de carinho, com seu pequeno destino (to pequeno quanto seu corpoe seu pequeno corao que corajosamente resistir at o nal, defendendo aquela vida pequena e humilde comodentro de uma mnima fortaleza), e ento, recolhendo-o, levando-o at uma casinha improvisada onde pelomenos no passasse frio, dando-lhe alguma coisa de comer, convertendo-se em sentido da existncia daquelepobre bicho, algo mais enigmtico e mais poderoso que a losoa parecia voltar a dar sentido a sua prpriaexistncia. Como dois desamparados em meio solido que se deitam juntos para se aquecerem mutuamente.

    1 Alcunha de Juan Gali, chefe da ma argentina nos anos 1920-30, citado no tango "Cambalache" junto aNapoleo. (N. T.)

  • quinta carta

    A resistncia

  • So os expulsos, os proscritos, os ultrajados, os despojados de sua ptria e de seutorro, os empurrados com brutalidade aos mais profundos abismos. entre elesque se encontram os catecmenos de hoje.

    E. Jnger

  • O pior a velocidade vertiginosa.Nessa vertigem, nada frutica nem oresce. E o medo prprio dela: o homem

    adquire um comportamento de autmato, deixa de ser responsvel, deixa de ser livree de reconhecer os outros.

    Sinto um aperto no corao ao ver a humanidade nesse vertiginoso trem em queavanamos, ignorantes e temerosos, sem conhecermos a bandeira desta luta, sem t-laescolhido.

    O clima de Buenos Aires mudou. Nas ruas, homens e mulheres apressadosavanam sem se olhar, preocupados em cumprir horrios que ameaam suahumanidade. No h mais lugar para aquelas conversas de caf que foram um traodistintivo desta cidade, quando a ferocidade e a violncia ainda no a haviamtransformado numa megalpole ensandecida. Quando as mes ainda podiam levar oslhos s praas ou visitar seus velhos. A