Ernesto Sabato O túnel

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  • 7/22/2019 Ernesto Sabato O tnel

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    O TNEL

    [...] em todo caso, havia um s tnel, escuro e solitrio: omeu.

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    Bastara dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou MaraIribarne; suponho que o processo est na lembrana de todos e que nosero necessrias maiores explicaes sobre minha pessoa.

    Se bem que nem o diabo sabe o que que as pessoas lembram, nem por qu.Na realidade, sempre pensei que no existe memria coletiva, o que talvezseja uma forma de defesa da espcie humana. A frase "todo tempo passadofoi melhor" no indica que antes acontecessem menos coisas ruins, mas que

    felizmente as pessoas as lanam no esquecimento. Evidentemente,semelhante frase no tem validade universal; eu, por exemplo,caracterizo-me por lembrar perfeitamente os fatos ruins e, assim, quasepoderia dizer que "todo tempo passado foi pior", se no fosse o presenteparecer-me to horrvel quanto o passado; lembro-me de tantascalamidades, de tantos rostos cnicos e cruis, de tantas ms aes, quea memria para mim como a tormentosa luz que ilumina um srdido museuda vergonha. Quantas vezes passei horas prostrado num canto escuro doateli, depois de ler uma notcia nas pginas policiais! Mas a verdade

    que nem sempre o que h de mais vergonhoso na raa humana aparece ali;at certo ponto, os criminosos so pessoas mais limpas, mais inofensivas;no fao essa afirmao por ter eu mesmo matado um ser humano: trata-sede uma convico honesta e profunda. Um indivduo pernicioso? Poisento liquida-se o elemento e pronto. Isso o que eu chamo uma boa ao.Pensem em como pior para a sociedade que esse indivduo continuedestilando seu veneno e que, em vez de elimin-lo, pretenda-se fazerfrente a sua ao recorrendo a annimos, maledicncias e outras baixezasdo gnero. No que me diz respeito, devo confessar que agora lamento noter aproveitado melhor o tempo de minha liberdade, liquidando seis ousete sujeitos que conheo.

    Que o mundo horrvel uma verdade que no requer demonstrao. Em todocaso, bastaria um fato para prov-lo: num campo de concentrao, um ex-pianista queixou-se de fome e foi obrigado a comer uma ratazana, s queviva.

    Mas no disso que quero falar agora; mais adiante, se houveroportunidade, voltarei ao assunto da ratazana.

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    Como eu ia dizendo, meu nome Juan Pablo Castel. Vocs poderoperguntar-se o que me leva a escrever a histria do meu crime (no sei sej disse que vou relatar meu crime) e, sobretudo, a procurar um editor.

    Conheo bem a alma humana para prever que pensaro em vaidade. Pensem oque quiserem: no ligo a mnima; faz tempo que no ligo a mnima para a

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    opinio e a justia dos homens. Suponham, ento, que estou publicandoesta histria por vaidade. Afinal, sou feito de carne, ossos, cabelo eunhas como qualquer outro homem e acharia muito injusto que exigissem demim, logo de mim, qualidades especiais; s vezes nos julgamos super-homens, at percebermos que tambm somos mesquinhos, sujos e prfidos. Davaidade no digo nada: creio que ningum est desprovido desse notvel

    motor do Progresso Humano. Fazem-me rir esses senhores que falam damodstia de Einstein ou de gente da laia; resposta: fcil ser modestoquando se clebre; quer dizer,parecer modesto. Mesmo quando se imaginaque ela no existe em absoluto, surge de repente em sua forma mais sutil:a vaidade da modstia. Quantas vezes esbarramos com esse tipo deindivduo! At um homem, real ou simblico, como Cristo, pronuncioupalavras sugeridas pela vaidade ou no mnimo pela soberba. Que dizer deLen Bloy, que se defendia da acusao de soberba argumentando quepassara a vida servindo a indivduos que no lhe chegavam aos ps? Avaidade se encontra nos lugares mais inesperados: ao lado da bondade, daabnegao, da generosidade. Quando eu era pequeno e me desesperava emface da idia de que minha me haveria de morrer um dia (com o passar dosanos, vem-se a saber que a morte no s suportvel, como atreconfortante), no imaginava que ela pudesse ter defeitos. Agora que elano existe, devo dizer que foi to boa quanto um ser humano pode chegar as-lo. Mas recordo, de seus ltimos anos, quando eu j era um homem, comode incio era doloroso para mim descobrir sob suas melhores aes umsutilssimo ingrediente de vaidade ou de orgulho. Algo muito maisilustrativo aconteceu comigo mesmo quando ela foi operada de um cncer.Para chegar a tempo tive de viajar dois dias inteiros sem dormir. Quandocheguei ao lado de sua cama, seu rosto de cadver conseguiu sorrir-melevemente, com ternura, e murmurou umas palavras de compadecimento (elase compadecia de meu cansao!). E eu senti dentro de mim, obscuramente, ovaidoso orgulho de ter acudido to rpido. Confesso esse segredo para quevejam at que ponto no me julgo melhor do que os outros.

    No entanto, no conto essa histria por vaidade. Talvez estivessedisposto a aceitar que h uma dose de orgulho ou de soberba. Mas por queessa mania de querer encontrar explicao para todos os atos da vida?Quando comecei este relato, estava firmemente decidido a no darexplicaes de nenhuma espcie. Tinha vontade de contar a histria de meucrime e ponto: quem no gostasse, que no lesse. Mas duvido, pois essaspessoas que esto sempre atrs de explicaes so justamente as maiscuriosas, e acho que nenhuma delas perderia a oportunidade de ler ahistria de um crime at o final.

    Eu poderia calar os motivos que me levaram a escrever estas pginas deconfisso; mas, como no estou interessado em passar por excntrico,direi a verdade, que de resto bastante simples: pensei que elaspoderiam ser lidas por muita gente, j que agora sou famoso; e, emborano tenha iluses acerca da humanidade em geral, nem dos leitores destaspginas em particular, anima-me a tnue esperana de que alguma pessoachegue a me entender. MESMO QUE SEJA UMA NICA PESSOA.

    "Por qu", poder perguntar-se algum, "apenas uma tnue esperana, se omanuscrito h de ser lido por tantas pessoas?" Esse o gnero deperguntas que considero inteis. E, no obstante, temos de prev-las,porque as pessoas vivem fazendo perguntas inteis, perguntas que o examemais superficial revela desnecessrias. Posso falar at o cansao e aosgritos para uma assemblia de cem mil russos: ningum me entenderia.

    Percebem o que quero dizer?

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    Existiu uma pessoa que poderia me entender.Mas foi, justamente, a pessoaque matei.

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    Todos sabem que matei Mara Iribarne Hunter. Mas ningum sabe como a

    conheci, que relaes houve exatamente entre ns e como fui meacostumando idia de mat-la. Tentarei relatar tudo imparcialmenteporque, embora tenha sofrido muito por culpa dela, no tenho a nsciapretenso de ser perfeito.

    No Salo de Primavera de 1946 expus um quadro chamadoMaternidade. Seguiaa linha de muitos outros anteriores: como dizem os crticos em seuinsuportvel dialeto, era slido, estava bem estruturado. Tinha, enfim,os atributos que esses charlates encontram em minhas telas, incluindo"certa coisa profundamente intelectual". Mas no alto, esquerda, atravsde uma janelinha, via-se uma cena pequena e remota: uma praia solitria euma mulher fitando o mar. Era uma mulher que olhava como se esperassealguma coisa, talvez algum chamado fraco e longnquo. A cena sugeria, naminha opinio, uma solido ansiosa e absoluta.

    Ningum reparou na cena: todos passavam os olhos por ela como se fossesecundria, provavelmente decorativa. Com exceo de uma nica pessoa,ningum pareceu entender que aquela cena era essencial. Foi no dia dainaugurao. Uma moa desconhecida ficou muito tempo diante de meu quadrosem dar importncia, aparentemente, para a grande mulher em primeiroplano, a mulher que olhava o menino brincar. Em compensao, olhoufixamente a cena da janela, e enquanto o fazia tive certeza de que elaestava isolada do mundo inteiro: no viu nem ouviu as pessoas quepassavam ou se detinham diante de minha tela.

    Observei-a o tempo todo com ansiedade. Depois ela desapareceu namultido, enquanto eu vacilava entre um medo invencvel e um desejoangustiante de cham-la. Medo de qu? Talvez fosse um pouco como o medode apostar todo o dinheiro de que se dispe na vida em um nico nmero.Entretanto, quando ela desapareceu, senti-me irritado, infeliz, pensandoque poderia no v-la mais, perdida entre os milhes de habitantesannimos de Buenos Aires.

    Essa noite voltei para casa nervoso, descontente, triste.

    At o encerramento do salo, fui todos os dias, posicionando-mesuficientemente perto para reconhecer as pessoas que paravam diante demeu quadro. Mas ela no apareceu mais.

    Durante os meses que se seguiram, s pensei nela, na possibilidade derev-la. E, de certo modo, s pintei para ela. Foi como se a pequena cenada janela tivesse comeado a crescer e a invadir toda a tela e toda aminha obra.

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    Uma tarde, por fim, vi-a na rua. Caminhava pela outra calada, de maneiraresoluta, como quem quer chegar a um lugar definido a uma hora definida.

    Reconheci-a imediatamente; poderia t-la reconhecido no meio de uma

    multido. Senti uma indescritvel emoo. Pensei tanto nela, durante

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    aqueles meses, imaginei tantas coisas que, ao v-la, no soube o quefazer.

    A verdade que muitas vezes tinha pensado e planejado minuciosamenteminha atitude caso a encontrasse. Creio j ter dito que sou muito tmido;por isso tinha pensado e repensado um provvel encontro e a forma de

    aproveit-lo. A dificuldade maior com que eu sempre esbarrava nessesencontros imaginrios era a forma de iniciar a conversa. Conheo muitoshomens que no tm dificuldade para entabular conversa com uma mulherdesconhecida. Confesso que houve um tempo em que senti muita invejadeles, pois, embora nunca tenha sido mulherengo, ou justamente por nos-lo, em duas ou trs ocasies lamentei no poder comunicar-me com umamulher, nesses raros casos em que parece impossvel resignar-se idiade que ela ser para sempre alheia nossa vida. Infelizmente, estivecondenado a permanecer alheio vida de qualquer mulher.

    Nesses encontros imaginrios eu analisara diversas possibilidades.Conheo minha natureza e sei que as situaes imprevistas e repentinas mefazem perder todo o tino, fora de atabalhoamento e timidez. Tinhapreparado, portanto, algumas variantes que eram lgicas ou pelo menospossveis. (No lgico que um amigo ntimo nos mande um bilhete annimoinsultuoso, mas todos sabemos que possvel.)

    A moa, pelo visto, costumava ir a sales de pintura. Caso a encontrasseem algum, eu me colocaria a seu lado e no seria muito complicado iniciaruma conversa a respeito de alguns dos quadros expostos.

    Depois de examinar detalhadamente essa possibilidade, descartei-a. Eununca ia a sales de pintura. Tal atitude pode parecer muito estranha emum pintor, mas na realidade tem sua explicao, e tenho certeza de que seeu resolvesse exp-la todo mundo me daria razo. Bom, talvez exagere ao

    dizer "todo mundo". No, certamente exagero, Minha experincia temdemonstrado que aquilo que a mim parece claro e evidente quase nunca o para o resto de meus semelhantes. Estou to escaldado que agora vacilomil vezes antes de pr-me a justificar uma atitude minha e, quase sempre,acabo trancando-me em mim mesmo e no abrindo a boca. Foi justamente essaa causa de eu at hoje no ter decidido fazer o relato de meu crime.Tampouco sei, neste momento, se valer a pena que explique em detalheessa minha caracterstica referente aos sales, mas temo que, se no aexplicar, pensem tratar-se de mera mania, quando na verdade obedece arazes muito profundas.

    Na realidade, neste caso h mais de uma razo. Direi, antes de mais nada,que detesto os grupos, as seitas, as confrarias, os crculos e em geralesses conjuntos de bichos esquisitos que se renem por razes deprofisso, gosto ou mania semelhante. Esses conglomerados tm uma sriede atributos grotescos: a repetio do tipo, o jargo, a vaidade de sejulgarem superiores ao resto.

    Observo que o problema comea a complicar-se, mas no vejo comosimplific-lo. Por outro lado, a quem quiser deixar de ler esta narraoneste ponto, basta faz-lo; fique sabendo de uma vez por todas que contacom minha mais absoluta permisso.

    Que quero dizer com isso de "repetio do tipo"? Vocs devem terobservado como desagradvel encontrar algum que a todo momento pisca

    um olho ou torce a boca. Mas imaginam todos esses indivduos reunidos emum clube? No h necessidade, porm, de chegar a tais extremos: basta

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    observar as famlias numerosas, em que se repetem certos traos, certosgestos, certas inflexes da voz. Aconteceu-me estar apaixonado por umamulher (anonimamente, claro) e fugir espavorido ante a possibilidade deconhecer as irms. J me acontecera uma coisa horrenda em outra ocasio:encontrei traos muito interessantes em uma mulher, mas ao conhecer suairm fiquei deprimido e envergonhado por muito tempo: os mesmos traos

    que naquela pareceram-me admirveis apareciam acentuados e deformados nairm, um pouco caricaturados. E essa espcie de viso deformada daprimeira mulher em sua irm produziu em mim, alm dessa sensao, umsentimento de vergonha, como se eu fosse em parte culpado pela luzlevemente ridcula que a irm lanava sobre a mulher que eu tantoadmirara.

    Talvez essas coisas me aconteam por ser pintor, pois tenho notado que aspessoas no do importncia a essas deformaes de famlia. Devoacrescentar que uma coisa parecida me acontece em relao aos pintoresque imitam um grande mestre, como, por exemplo, aqueles malfadadosinfelizes que pintam maneira de Picasso.

    Alm disso, h o problema do jargo, outra das caractersticas que menossuporto. Basta examinar qualquer um destes exemplos: a psicanlise, ocomunismo, o fascismo, o jornalismo. No tenho preferncias; todos me sorepugnantes. Tomo o exemplo que me ocorre neste momento: a psicanlise. Odr. Prato tem muito talento e eu o julgava um verdadeiro amigo, tanto quesofri uma terrvel decepo quando todos comearam a me perseguir e elese uniu a essa corja; mas deixemos isso para l. Um dia, assim quecheguei a seu consultrio, Prato disse que tinha de sair e me convidoupara ir com ele:

    Aonde?perguntei.

    A um coquetel na Sociedaderespondeu.

    Que Sociedade?perguntei com oculta ironia, pois se h uma coisa queme tira do srio esse modo de empregar o artigo definido que comum atodos eles: aSociedade, em vez de a Sociedade Psicanaltica; oPartido,em vez de o Partido Comunista; aStima, em vez de a Stima Sinfonia deBeethoven. Olhou-me com estranheza, mas eu o encarei com ingenuidade.

    A Sociedade Psicanaltica, homem respondeu, olhando-me com aquelesolhos penetrantes que os freudianos crem obrigatrios em sua profisso,e como se tambm se perguntasse: "Que outra maluquice ser que vai darnesse sujeito?". Lembrei-me de ter lido alguma coisa sobre uma reunio oucongregao presidida por um certo dr. Bernard, ou Bertrand. Certo de queno podia ser isso, perguntei se era isso. Ele me olhou com um sorriso dedesprezo.

    So uns charlates comentou. A nica sociedade psicanalticareconhecida internacionalmente a nossa. Voltou para sua sala, procurouem uma gaveta e por fim me mostrou uma carta em ingls. Olhei-a porcortesia.

    No sei inglsexpliquei.

    uma carta de Chicago. Nos reconhece como a nica sociedade depsicanlise da Argentina.

    Fiz cara de admirao e profundo respeito.

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    Em seguida samos e fomos de automvel at o local. Havia gente que noacabara mais. Alguns eu conhecia de nome, como o dr. Goldenberg, queultimamente ganhara muito renome: por ter tentado curar uma mulher, osdois tinham sido mandados para o manicmio. Acabava de sair. Olhei-oatentamente, mas no me pareceu pior do que os outros, at me pareceu

    mais calmo, talvez como resultado da clausura. Elogiou meus quadros detal maneira que percebi que os detestava.

    Tudo era to elegante que senti vergonha de meu terno velho e de minhasjoelheiras. E, no entanto, a sensao de grotesco que eu experimentavano vinha exatamente daquilo, mas de alguma coisa que eu no conseguiadefinir. Culminou quando uma moa muito fina, enquanto me oferecia unssanduches, comentava com um senhor no sei que problema de masoquismoanal. provvel, portanto, que aquela sensao resultasse da diferenade potencial entre os mveis modernos, limpssimos, funcionais, e damas ecavalheiros to asseados proferindo palavras geniturinrias.

    Tentei buscar refgio em algum canto, mas foi impossvel. O apartamentoestava abarrotado de gente idntica que dizia permanentemente a mesmacoisa. Ento fugi para a rua. Ao encontrar pessoas habituais (umjornaleiro, um garoto, um motorista), de repente pareceu-me fantsticoque em um apartamento houvesse aquele amontoamento.

    Contudo, de todos os conglomerados detesto particularmente o dospintores. Em parte, naturalmente, porque o que conheo melhor, e j sesabe que se pode detestar com mais razo aquilo que se conhece a fundo.Mas tenho outra razo: OS CRTICOS. Essa uma praga que no consigoentender. Se eu fosse um grande cirurgio, e um senhor que nunca pegounum bisturi, nem mdico, nem imobilizou a pata de um gato, viesse meexplicar os erros de minha operao, o que se pensaria? O mesmo acontece

    com a pintura. O estranho que as pessoas no percebam que a mesmacoisa e que, embora riam das pretenses de um crtico de cirurgia,escutem esses charlates com incrvel respeito. Seria possvel escutarcom algum respeito os juzos de um crtico que alguma vez tivessepintado, ainda que no fosse mais do que um par de telas medocres. Masmesmo nesse caso seria absurdo, pois como se pode achar razovel que umpintor medocre d conselhos a um bom?

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    Afastei-me de meu caminho. Mas por causa de minha maldita mania dequerer justificar cada um dos meus atos. Para que diabos explicar a razode eu no ir a sales de pintura? Acho que cada um tem o direito decomparecer ou no, se lhe der na veneta, sem necessidade de apresentar umextenso arrazoado justificativo. Aonde se chegaria, do contrrio, comsemelhante mania? Mas, enfim, j est feito, e eu ainda teria muito maisa dizer sobre esse assunto das exposies: as murmuraes dos colegas, acegueira do pblico, a imbecilidade dos encarregados de preparar o saloe distribuir os quadros. Felizmente (ou infelizmente) nada disso meinteressa mais; do contrrio, talvez escrevesse um longo ensaiointitulado De como o pintor deve defender-se dos amigos da pintura.

    Tinha de descartar, portanto, a possibilidade de encontr-la em umaexposio.

    Mas podia ser que ela tivesse um amigo que por sua vez fosse meu amigo.Nesse caso, bastaria uma simples apresentao. Ofuscado pela desagradvel

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    luz da timidez, atirei-me gostosamente nos braos dessa possibilidade.Uma simples apresentao! Tudo ficava to fcil, to amvel! Oofuscamento impediu-me de ver imediatamente o absurdo de semelhanteidia. Naquele momento no pensei que encontrar um amigo dela era todifcil quanto encontrar um amigo sem saber quem ela era. Mas se soubessequem era ela, para que recorrera um terceiro? Restava, verdade, a

    pequena vantagem da apresentao, que eu no menosprezava. Mas,evidentemente, o problema bsico era encontr-la e depois, em todo caso,procurar um amigo comum para que nos apresentasse.

    Restava o caminho inverso: ver se um de meus amigos era, por acaso, amigodela. Isso, sim, podia ser feito sem encontr-la previamente, poisbastaria interrogar cada um dos meus conhecidos acerca de uma moa de talestatura e de cabelo assim e assim. Tudo isso, porm, pareceu-me umaespcie de frivolidade e o descartei: senti vergonha s de imaginar-mefazendo perguntas dessa natureza a pessoas como Mapelli ou Lartigue.

    Julgo conveniente deixar claro que no descartei essa variante pordescabelada: s o fiz pelas razes que expus acima. De fato, algumpoderia julgar descabelado imaginar a remota possibilidade de que umconhecido meu fosse por sua vez conhecido dela. Poder parec-lo a umesprito superficial, mas no a quem est acostumado a refletir sobre osproblemas humanos. Existem na sociedade estratos horizontais, formadospelas pessoas de gostos semelhantes, e nesses estratos no so raros osencontros casuais (?), sobretudo quando a causa da estratificao algumtrao de minorias. Aconteceu-me encontrar uma pessoa em um bairro deBerlim, depois em um lugarejo quase desconhecido da Itlia e, por fim, emuma livraria de Buenos Aires. razovel atribuir ao acaso essesencontros repetidos? Mas estou dizendo uma trivialidade: qualquer pessoaaficionada da msica, do esperanto, do espiritismo sabe disso.

    Teria de cair, portanto, na alternativa mais temida: o encontro na rua.Como diabos fazem certos homens para deter uma mulher, para entabularconversa e at iniciar uma aventura? Descartei sumariamente todo arranjoque comeasse com uma iniciativa de minha parte: minha ignorncia dessatcnica de rua e meu rosto me levaram a tomar essa deciso melanclica edefinitiva.

    No me restava seno esperar uma feliz circunstncia, dessas que costumamapresentar-se uma vez num milho: que ela falasse primeiro. De modo queminha felicidade estava entregue a uma remotssima loteria, em que erapreciso ganhar uma vez para ter direito a jogar de novo e s receber oprmio no caso de ganhar nessa segunda rodada. Efetivamente, tinha dedar-se a possibilidade de eu me encontrar com ela e depois apossibilidade, mais remota ainda, de que ela me dirigisse a palavra.Senti uma espcie de vertigem, de tristeza e de desesperana. Mas, noobstante, continuei preparando minha posio.

    Imaginava, ento, que ela falava comigo, por exemplo para perguntar-me umendereo ou sobre um nibus; e a partir dessa frase inicial constru,durante meses de reflexo, de melancolia, de raiva, de abandono e deesperana, uma srie interminvel de variantes. Em algumas eu era loquaz,espirituoso (nunca o fui, na realidade); em outras era sbrio; em outrasimaginava-me risonho. s vezes, o que extremamente singular, respondiabruscamente pergunta dela e at com raiva contida; aconteceu (em umdesses encontros imaginrios) de a entrevista malograr-se por irritao

    absurda de minha parte, por recriminar-lhe quase grosseiramente umaconsulta que julgava intil ou irrefletida. Esses encontros fracassados

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    me enchiam de amargura, e durante vrios dias eu me recriminava pelainabilidade com que perdera uma oportunidade to remota de entabularrelao com ela; felizmente, acabava percebendo que tudo aquilo eraimaginrio e que ao menos continuava existindo a possibilidade real.Ento voltava a me preparar com mais entusiasmo e a imaginar novos e maisfrutferos dilogos de rua. Em geral, a maior dificuldade residia em

    vincular a pergunta dela a algo to genrico e distante das preocupaesdirias como a essncia geral da arte ou, pelo menos, a impresso que lhecausara minha janelinha. Claro, quando se tem tempo e calma, sempre possvel estabelecer logicamente, sem choque, esse tipo de vnculo; emuma reunio social h tempo de sobra e de certo modo todos esto ali paraestabelecer esse tipo de vnculo entre assuntos totalmente estranhos; masna agitao de uma rua de Buenos Aires, entre pessoas que perseguemnibus e que nos atropelam, claro que se devia quase descartar umaconversa desse tipo. Mas por outro lado no podia descart-la sem cair emuma situao irremedivel para meu destino. Voltava, portanto, a imaginardilogos, os mais eficazes e rpidos possveis, partindo da frase "Ondefica o Correio Central?" e chegando discusso de certos problemas doexpressionismo ou do surrealismo. No era nada fcil.

    Numa noite de insnia cheguei concluso de que era intil e artificiosotentar uma conversa dessas e que era prefervel atacar bruscamente oponto central, com uma pergunta valente, apostando tudo em um niconmero. Por exemplo, perguntando: "Por que olhou apenas a janelinha?". comum que nas noites de insnia eu seja teoricamente mais resoluto quedurante o dia, diante dos fatos. No dia seguinte, ao analisar friamenteessa possibilidade, conclu que nunca teria coragem suficiente para fazeraquela pergunta queima-roupa. Como sempre, o desalento me fez cair nooutro extremo: imaginei ento uma pergunta to indireta que para chegarao ponto que me interessava (a janela) quase se requeria uma longaamizade: uma pergunta do gnero "Voc se interessa por arte?".

    No me lembro agora de todas as variantes que pensei. S lembro que haviaalgumas to complicadas que eram praticamente imprestveis. Seria umacaso demasiado prodigioso que a realidade depois coincidisse com umachave to complicada, preparada de antemo na ignorncia da forma dafechadura. Mas acontecia que, aps o exame de tantas variantesarrevesadas, eu esquecia a ordem das perguntas e respostas ou asembaralhava, como acontece no xadrez quando imaginamos jogadas dememria. E muitas vezes tambm me acontecia substituir frases de umavariante por frases de outra, com resultados ridculos ou desanimadores.Por exemplo, abord-la para indicar-lhe um endereo e em seguidaperguntar: "Voc se interessa muito por arte?". Era grotesco.

    Quando chegava a essa situao, descansava por vrios dias de avaliarcombinaes.

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    Ao v-la caminhar pela calada em frente, todas as variantes seamontoaram e reviraram em minha cabea. Confusamente, senti que surgiamem minha conscincia frases inteiras elaboradas e decoradas naquela longaginstica preparatria: 'Voc se interessa muito por arte?", "Por queolhou somente a janelinha?" etc. Mais insistente do que qualquer outra,surgia uma frase que eu havia descartado por grosseira e que naquelemomento me enchia de vergonha e me fazia sentir ainda mais ridculo:

    "Gosta de Castel?".

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    As frases, soltas e embaralhadas, formavam um tumultuoso quebra-cabea emmovimento, at que compreendi que era intil preocupar-me desse modo:recordei que era ela quem devia tomar a iniciativa de qualquer conversa.E a partir desse instante me senti tolamente sossegado, e acho que atcheguei a pensar, tambm tolamente: "Vamos ver como ela vai se arranjar".

    Enquanto isso, e apesar desse raciocnio, eu me sentia to nervoso eemocionado que no atinava com outra coisa a no ser acompanhar suamarcha pela calada em frente, sem pensar que se queria pelo menos dar-lhe a hipottica oportunidade de pedir uma informao, tinha deatravessar a rua e me aproximar dela. Nada mais grotesco, de fato, do queimagin-la pedindo aos gritos, do outro lado, uma informao.

    O que faria? At quando duraria aquela situao? Senti-me infinitamentedesgraado. Caminhamos vrios quarteires. Ela continuou caminhando comdeciso.

    Eu estava muito triste, mas tinha de ir at o fim: no era possvel quedepois de esperar aquele instante durante meses deixasse escapar aoportunidade. E o fato de andar rapidamente enquanto meu espritovacilava tanto produzia em mim uma sensao singular: meu pensamento eracomo um verme cego e lerdo dentro de um automvel em alta velocidade.

    Virou na esquina da rua San Martn, caminhou alguns passos e entrou noprdio da Companhia T. Percebi que tinha de tomar uma deciso rpida eentrei atrs dela, mesmo sentindo que naquele momento estava fazendo umacoisa descabida e monstruosa.

    Estava esperando o elevador. No havia mais ningum. Algum mais ousadoque eu pronunciou de meu interior esta pergunta incrivelmente estpida:

    Este o prdio da Companhia T.?

    Um cartaz de vrios metros de comprimento, que ocupava a fachada de largoa largo, proclamava que, de fato, aquele era o prdio da Companhia T.

    No obstante, ela se virou com singeleza e me respondeu afirmativamente.(Mais tarde, refletindo sobre minha pergunta e sobre a singeleza etranqilidade com que ela me respondeu, cheguei concluso de que,afinal de contas, muitas vezes acontece de no vermos cartazes grandesdemais; e que, portanto, a pergunta no era to irremediavelmente idiotacomo eu havia pensado num primeiro momento.)

    Mas logo em seguida, ao me olhar, ela corou to intensamente que percebique me reconhecera. Uma variante que eu jamais tinha pensado e, noentanto, muito lgica, pois minha fotografia aparecera muitssimas vezesem revistas e jornais.

    Emocionei-me tanto que s atinei com outra pergunta infeliz. Disse-lhebruscamente:

    Por que corou?

    Ela corou ainda mais e ia talvez responder alguma coisa quando, jcompletamente perdido o controle, acrescentei atabalhoadamente:

    A senhora corou porque me reconheceu. E a senhora pensa que isto umacoincidncia, mas no coincidncia, no existem coincidncias. Tenho

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    pensado na senhora durante vrios meses. Hoje a encontrei na rua e asegui. Tenho uma pergunta importante para lhe fazer, uma pergunta sobre ajanelinha, entende?

    Ela estava assustada:

    A janelinha?balbuciou.Que janelinha?

    Senti as pernas afrouxarem. Seria possvel que no se lembrasse dajanelinha? Ento no lhe dera a menor importncia, tinha olhado para elapor simples curiosidade. Senti-me grotesco e pensei vertiginosamente quetudo o que havia pensado e feito durante meses (incluindo aquela cena)era o cmulo do descabido e do ridculo, uma daquelas minhas tpicasconstrues imaginrias, to pretensiosas quanto as reconstrues dedinossauros realizadas a partir de uma vrtebra partida.

    A moa estava beira do pranto. Pensei que o mundo desabava, sem atinarcom nada tranqilo ou eficaz. Vi-me dizendo uma coisa que agora tenhovergonha de escrever:

    Vejo que me enganei. Boa tarde.

    Sa apressadamente e me pus a caminhar quase correndo numa direoqualquer. Devia ter caminhado um quarteiro quando ouvi atrs de mim umavoz que me dizia:

    Senhor, senhor!

    Era ela, que me seguira sem se animar a me deter. Ali estava e no sabiacomo justificar o ocorrido. Em voz baixa disse:

    Desculpe, senhor... Desculpe minha estupidez... fiquei to assustada.

    O mundo tinha sido, instantes atrs, um caos de objetos e seres inteis.Senti que ele voltava a refazer-se e a obedecer a uma ordem. Escutei-amudo.

    No me dei conta de que o senhor estava perguntando pela cena do quadrodisse trmula.

    Sem perceber, agarrei-a pelo brao.

    Ento se recorda dela?

    Ficou um momento sem falar, fitando o cho. Depois disse com lentido.

    Eu me recordo dela constantemente.

    Em seguida aconteceu uma coisa curiosa: pareceu arrepender-se do queacabara de dizer, pois girou bruscamente e saiu quase correndo. Depois deum instante de surpresa, corri atrs dela, at que percebi o ridculo dacena; olhei ento para todos os lados e continuei caminhando a passorpido porm normal. Tal deciso foi motivada por duas reflexes:primeiro, que era grotesco um homem conhecido correr pela rua atrs deuma moa; segundo, que no era necessrio. Isso era o essencial: poderiav-la a qualquer momento, na entrada ou na sada do escritrio. Para que

    correr como louco? O importante, o verdadeiramente importante, era queela se recordava da cena da janelinha: "Ela se recordava constantemente".

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    Estava contente, achava-me capaz de grandes coisas e s me recriminavapor ter perdido o controle ao p do elevador e agora, outra vez, porcorrer como um louco atrs dela, quando era evidente que poderia v-la aqualquer momento no escritrio.

    7

    "No escritrio?", perguntei-me de repente em voz alta, quase aos gritos,sentindo as pernas afrouxarem de novo. E quem tinha dito que elatrabalhava l? A idia de perd-la por vrios meses mais, ou quem sabepara sempre, deu-me vertigem, e j sem pensar em convenincias corri comoum desesperado; logo me encontrei na porta da Companhia T. e no a via emparte alguma. Teria tomado o elevador? Pensei em interrogar oascensorista, mas como perguntar-lhe? Podiam j ter subido muitasmulheres e eu teria ento que especificar detalhes: que pensaria oascensorista? Andei algum tempo pela calada, indeciso. Depois atravesseipara a outra calada e examinei a fachada do prdio, no sei por qu.Talvez com a vaga esperana de ver a moa a uma das janelas? Entretanto,era absurdo pensar que ela pudesse sair janela para me fazer sinais oualgo parecido. S vi o gigantesco cartaz que dizia:

    COMPANHIA T.

    Calculei a olho que devia ter uns vinte metros de largura; esse clculoaumentou meu mal-estar. Mas agora no tinha tempo para me entregar a essesentimento: trataria de me torturar mais tarde, com calma. Por ora, novi outra soluo seno entrar. Energicamente, adentrei o prdio e espereio elevador descer; mas medida que ele ia descendo notei que minhadeterminao diminua, ao mesmo tempo que minha habitual timidez cresciatumultuosamente. De modo que quando a porta do elevador se abriu jestava perfeitamente decidido o que eu devia fazer: no diria uma nica

    palavra. Claro que, nesse caso, para que tomar o elevador? No entanto,chamaria a ateno no faz-lo, depois de ter esperado visivelmente nacompanhia de vrias pessoas. Como interpretariam semelhante fato? Noencontrei outra soluo seno tomar o elevador, mantendo, claro, minhaposio de no pronunciar uma nica palavra; coisa perfeitamente factvele at mais normal que o contrrio: o usual que ningum se sinta naobrigao de falar no interior de um elevador, a menos que se seja amigodo ascensorista, e nesse caso ser natural perguntar-lhe pelo tempo oupelo filho doente. Mas como eu no tinha nenhuma relao e na verdadenunca at aquele momento vira aquele homem, minha deciso de no abrir aboca no podia causar a mais mnima complicao. O fato de haver vriaspessoas facilitava minha tarefa, fazendo com que eu passassedespercebido.

    Entrei tranqilamente no elevador, portanto, e as coisas ocorreram comoprevisto, sem nenhuma dificuldade; algum comentou com o ascensorista ocalor mido e esse comentrio aumentou meu bem-estar, pois confirmavaminhas dedues. Experimentei um leve nervosismo ao dizer "oitavo", masele s poderia ter sido notado por algum que estivesse a par dos finsque eu perseguia naquele momento.

    Ao chegar ao oitavo andar, vi que outra pessoa saa comigo, o quecomplicava um pouco a situao; caminhando lentamente esperei o outroentrar em uma das salas enquanto eu continuava caminhando pelo corredor.Ento respirei aliviado; dei umas voltas pelo corredor, fui at o

    extremo, olhei o panorama de Buenos Aires por uma janela, voltei e porfim chamei o elevador. Pouco depois estava na porta do prdio sem que

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    tivesse acontecido nenhuma das cenas desagradveis que eu temera(perguntas estranhas do ascensorista etc). Acendi um cigarro e no tinhaacabado de acend-lo quando percebi que minha tranqilidade era um tantoabsurda: era verdade que no tinha acontecido nada desagradvel, mastambm era verdade que no tinha acontecido nada em absoluto. Em outraspalavras mais cruas: a moa estava perdida, a menos que trabalhasse

    regularmente naqueles escritrios; pois se tivesse entrado apenas pararesolver algum assunto j poderia ter subido e descido, desencontrando-sede mim. "Claro que"pensei"se ela entrou para resolver algum assuntotambm possvel que no tenha concludo em to pouco tempo." Essareflexo animou-me novamente e resolvi esperar ao p do edifcio.

    Fiquei uma hora espera, sem resultado. Analisei as diversaspossibilidades que se apresentavam:

    1. O assunto era demorado; nesse caso, eu tinha de continuaresperando.

    2. Depois do ocorrido, talvez ela estivesse muito agitada e tivesseido dar uma volta antes de resolver o assunto; tambm cabiaesperar.

    3. Ela trabalhava ali; nesse caso, teria de esperar at a hora dasada.

    "De modo que esperando at essa hora" raciocinei "cubro as trspossibilidades."

    Essa lgica me pareceu de ferro e me tranqilizou o bastante para que eu

    decidisse esperar com serenidade no caf da esquina, de cuja caladapodia vigiar a sada das pessoas. Pedi uma cerveja e olhei o relgio:eram trs e quinze.

    Conforme o tempo ia passando fui me agarrando ltima hiptese: elatrabalhava ali. s seis me levantei, pois parecia melhor esperar na portado edifcio: sem dvida sairia muita gente de uma vez e eu poderia nov-la do caf.

    s seis e alguns minutos comeou a sair o pessoal.

    s seis e meia tinham sado quase todos, como se inferia do fato deralearem cada vez mais. s quinze para as sete no saa quase ningum:s, de vez em quando, algum alto executivo; a menos que ela fosse umaalta executiva ("absurdo", pensei) ou secretria de um alto executivo("isso sim", pensei com uma leve esperana).

    s sete estava tudo acabado.

    8

    Enquanto voltava para casa profundamente deprimido, tentava pensar comclareza. Meu crebro um fervedouro, mas quando fico nervoso as idiasse sucedem nele como em um vertiginoso bale; apesar disso, ou talvez porisso mesmo, fui me acostumando a govern-las e a orden-las

    rigorosamente; se assim no fosse, acho que no tardaria a enlouquecer.

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    Como disse, voltei para casa em um estado de profunda depresso, mas nempor isso deixei de ordenar e classificar as idias, pois senti que eranecessrio pensar com clareza se no quisesse perder para sempre a nicapessoa que evidentemente havia compreendido minha pintura.

    Ou ela entrou no prdio para resolver algum assunto, ou trabalhava ali;

    no havia outra possibilidade. Evidentemente, a segunda hiptese era amais favorvel. Nesse caso, ao separar-se de mim, ela teria se sentidotranstornada e decidido voltar para casa: era necessrio esper-la,portanto, no dia seguinte, diante da entrada.

    Essas eram as duas hipteses favorveis. A outra era terrvel: o assuntotinha sido resolvido enquanto eu me dirigia ao prdio e durante minhaaventura de ida e volta no elevador. Ou seja, tnhamos cruzado nossoscaminhos sem nos ver. O tempo de todo esse processo era muito breve e eramuito improvvel que as coisas tivessem acontecido desse modo, mas erapossvel: o famoso assunto bem podia limitar-se entrega de uma carta,por exemplo. Em tais condies pareceu-me intil voltar no dia seguintepara esperar.

    Havia, no entanto, duas possibilidades favorveis, e aferrei-me a elascom desespero.

    Cheguei em minha casa com uma mescla de sentimentos: por um lado, todavez que pensava na frase que ela dissera ("Eu me recordo delaconstantemente"), meu corao batia com violncia, e senti que minhafrente se abria uma obscura mas vasta e poderosa perspectiva; intu queuma grande fora, at aquele momento adormecida, se desencadearia em mim.Por outro lado imaginei que poderia se passar muito tempo antes quetornasse a encontr-la. Era necessrio encontr-la. Peguei-me dizendo emvoz alta, vrias vezes: " necessrio, necessrio!".

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    No dia seguinte, de manh cedo, l estava eu postado em frente a portados escritrios da T. Entraram todos os empregados, mas ela no apareceu:era claro que no trabalhava ali, embora restasse a tnue hiptese de quetivesse adoecido e no fosse ao escritrio por vrios dias.

    Restava, ainda, a possibilidade do assunto a resolver, de modo que decidiesperar toda a manh no caf da esquina.

    J havia perdido toda esperana (seriam por volta de onze e meia) quandoa vi sair da boca do metr. Terrivelmente agitado, levantei-me de umsalto e fui a seu encontro. Quando ela me viu, estacou como se de repentese tivesse transformado em pedra: era evidente que no contava comsemelhante apario. Curioso, mas a sensao de que minha mentetrabalhara com rigor frreo me dava uma energia inusitada: sentia-meforte, estava possudo por uma deciso viril e disposto a tudo. Tanto quea tomei por um brao quase com brutalidade e, sem dizer uma palavra,arrastei-a pela rua San Martn em direo praa. Parecia desprovida devontade; no disse uma palavra.

    Quando j havamos caminhado uns dois quarteires, perguntou-me:

    Para onde est me levando?

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    Para a praa San Martn. Tenho muito o que falar com a senhora respondi, enquanto continuava caminhando com deciso, sempre arrastando-apelo brao.

    Ela murmurou alguma coisa relativa aos escritrios da T., mas eucontinuava a arrast-la e no ouvi nada do que me dizia.

    Acrescentei:

    Tenho muitas coisas para falar com a senhora. Ela no ofereciaresistncia: eu me sentia como um rio caudaloso arrastando uma ramagem.Chegamos praa e procurei um banco isolado.

    Por que fugiu?foi a primeira coisa que lhe perguntei.

    Olhou-me com aquela expresso que eu tinha notado no dia anterior, quandome disse "eu me recordo dela constantemente": era um olhar estranho,fixo, penetrante, parecia vir de trs; aquele olhar me lembrava algumacoisa, uns olhos parecidos, mas no conseguia recordar onde os vira.

    No seirespondeu por fim.Tambm gostaria de fugir agora.

    Apertei seu brao.

    Prometa que no ir embora nunca mais. Preciso da senhora, precisomuitodisse-lhe.

    Voltou a me olhar como se me escrutasse, mas no fez nenhum comentrio.Depois fixou os olhos numa rvore distante.

    De perfil no me lembrava nada. Seu rosto era lindo mas tinha algo duro.

    O cabelo era longo e castanho. Fisicamente, no aparentava muito mais doque vinte e seis anos, mas havia algo nela que sugeria idade, algo tpicode uma pessoa que viveu muito; no cabelo branco nem nenhum dessesindcios puramente materiais, e sim algo indefinido e certamente de ordemespiritual; talvez o olhar, mas at que ponto se pode dizer que o olharde um ser humano algo fsico? Talvez a maneira de apertar a boca, pois,embora a boca e os lbios sejam elementos fsicos, a maneira de apert-los e certas rugas so tambm elementos espirituais. No pude definirnaquele momento, nem tampouco poderia definir agora, o que era, afinal,que transmitia aquela impresso de idade. Penso que tambm poderia serseu modo de falar.

    Preciso muito da senhorarepeti.

    No respondeu: continuava fitando a rvore.

    Por que no fala?perguntei.

    Sem deixar de fitar a rvore, respondeu:

    Eu no sou ningum. O senhor um grande artista. No vejo para quepode precisar de mim.

    Gritei com brutalidade:

    Estou dizendo que preciso da senhora! No entende?

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    Sempre fitando a rvore, sussurrou:

    Para qu?

    No respondi imediatamente. Soltei seu brao e fiquei pensativo. De fato,para qu? At aquele momento no me fizera a pergunta com clareza e tinha

    mais ou menos obedecido a uma espcie de instinto. Com ura gravetocomecei a traar desenhos geomtricos na terra.

    No seimurmurei depois de um bom tempo.Ainda no sei.

    Refletia intensamente e com o graveto ia complicando os desenhos cada vezmais.

    Minha cabea um labirinto escuro. s vezes h como relmpagos queiluminam alguns corredores. Nunca sei bem por que fao certas coisas.No, no isso...

    Sentia-me bastante tolo: de modo algum era aquela minha maneira de ser.Fiz um grande esforo mental: por acaso eu no raciocinava? Ao contrrio,meu crebro estava constantemente raciocinando como uma mquina decalcular; por exemplo, naquela mesma histria, no passara mesesraciocinando e levantando hipteses e classificando-as? E, de certo modo,no tinha por fim encontrado Mara graas a minha capacidade lgica?

    Senti que estava perto da verdade, muito perto, e tive medo de perd-la:fiz um enorme esforo.

    Gritei:

    No que eu no saiba raciocinar! Ao contrrio, raciocino sempre. Mas

    imagine um capito que a cada instante determina matematicamente suaposio e segue sua rota rumo ao objetivo com um rigor implacvel. Masque no sabe por que vai em direo a esse objetivo. Entende?

    Olhou-me um instante com perplexidade; depois voltou novamente a fitar arvore.

    Sinto que a senhora ser essencial para o que tenho de fazer, emboraainda no saiba a razo.

    Voltei a desenhar com o graveto e continuei fazendo um grande esforomental. Passado algum tempo, acrescentei:

    Por enquanto sei que alguma coisa ligada cena da janela: a senhorafoi a nica pessoa que lhe deu importncia.

    No sou crtico de artemurmurou.

    Enfureci-me e gritei:

    No me fale desses cretinos!

    Virou-se surpresa. Ento baixei a voz e lhe expliquei por que noacreditava nos crticos de arte: enfim, a teoria do bisturi e tudo omais. Ela me escutou, sempre sem me olhar, e quando terminei comentou:

    O senhor se queixa, mas os crticos sempre o elogiaram.

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    Indignei-me.

    Tanto pior para mim! No entende? uma das coisas que tm meamargurado e me feito pensar que estou no mau caminho. Veja por exemplo oque aconteceu nesse salo: nenhum desses charlates se deu conta da

    importncia dessa cena. Uma nica pessoa lhe deu importncia: a senhora.E a senhora no um crtico. No, na realidade h outra pessoa que lhedeu importncia, mas negativa: recriminou-me por causa dela, causa-lheapreenso, quase nojo. A senhora, em compensao...

    Sempre olhando para a frente, disse, com lentido:

    E eu no poderia ser da mesma opinio?

    Que opinio?

    A dessa pessoa.

    Olhei para ela com ansiedade; mas seu rosto, de perfil, era inescrutvel,com as mandbulas cerradas. Respondi com firmeza:

    A senhora pensa como eu.

    E o que que o senhor pensa?

    No sei, tambm no poderia responder a essa pergunta. Melhor seriadizer que a senhora sente como eu. A senhora olhava aquela cena como eumesmo poderia ter olhado em seu lugar. No sei o que pensa e tampouco seio que penso, mas sei que pensa como eu.

    Mas ento o senhor no pensa seus quadros?

    Antes eu os pensava muito, construa cada um deles como se constri umacasa. Mas essa cena no: sentia que devia pint-la assim, sem saber bempor qu. E continuo sem saber. Na realidade, no tem nada a ver com oresto do quadro e acho at que um desses idiotas o assinalou. Estoucaminhando s escuras, e preciso de sua ajuda porque sei que a senhorasente como eu.

    No sei exatamente o que o senhor pensa.

    Comeava a perder a pacincia. Respondi secamente.

    No estou dizendo que no sei o que penso? Se eu pudesse dizer compalavras claras o que sinto, seria quase como pensar claro. No verdade?

    Sim, verdade.

    Calei-me um momento e pensei, procurando ver claramente. Depoisacrescentei:

    Poderia dizer que toda a minha obra anterior mais superficial.

    Que obra anterior?

    A anterior janela.

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    Concentrei-me novamente e em seguida lhe disse:

    No, no isso exatamente, no isso. No que fosse mais superficial.O que era, na verdade? Nunca, at aquele momento, eu parara para pensarno problema; agora percebia at que ponto havia pintado a cena da janela

    como um sonmbulo.

    No, no que fosse mais superficialacrescentei, como se falasse demim mesmo.No sei, tudo isso tem algo a ver com a humanidade em geral,entende? Lembro que dias antes de pint-la eu tinha lido que num campo deconcentrao algum pediu comida e obrigaram essa pessoa a comer umaratazana viva. s vezes acho que nada tem sentido. Em um planetaminsculo, que h milhes de anos corre em direo ao nada, nascemos emmeio a dores, crescemos, lutamos, adoecemos, sofremos, fazemos sofrer,gritamos, morremos, morrem e outros esto nascendo para voltar a comeara comdia intil.

    Seria isso, realmente? Fiquei refletindo sobre essa idia da falta desentido. Toda a nossa vida seria uma srie de gritos annimos em umdeserto de astros indiferentes?

    Ela continuava em silncio.

    Essa cena da praia me d medoacrescentei, depois de um longo tempo, mas sei que mais profundo. No, quero dizer que representa maisprofundamente amim... isso. No uma mensagem clara, ainda no, masrepresenta profundamente amim.

    Ouvi-a dizer:

    Uma mensagem de desesperana, talvez?

    Olhei para ela com ansiedade:

    Isso mesmo respondi , acho que uma mensagem de desesperana. Viucomo a senhora sente como eu?

    Depois de um momento, perguntou:

    E o senhor acha elogivel uma mensagem de desesperana?

    Observei-a com surpresa.

    Nodevolvi, acho que no. E a senhora o que pensa?

    Ficou um tempo bastante longo sem responder; por fim voltou o rosto eseus olhos se cravaram em mim.

    A palavra elogivel no tem nada a fazer aqui disse, como serespondesse a sua prpria pergunta.O que importa a verdade.

    E a senhora acha que essa cena verdadeira?perguntei.

    Quase com dureza, afirmou:

    Claro que verdadeira.

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    Fitei ansiosamente seu rosto duro, seu olhar duro. "Por que essadureza?", eu me perguntava, "por qu?" Talvez ela tenha sentido minhaansiedade, minha necessidade de comunho, porque por um instante seuolhar se abrandou e pareceu estender uma ponte; mas senti que era umaponte transitria e frgil suspensa sobre o abismo. Com uma voz tambmdiferente, acrescentou:

    Mas no sei o que ganhar com ver-me. Fao mal a todos os que seaproximam de mim.

    10

    Ficamos de nos ver logo. Tive vergonha de dizer-lhe que desejava v-la nodia seguinte ou que desejava continuar vendo-a ali mesmo e que ela nodeveria nunca mais se afastar de mim. Embora minha memria sejaespantosa, tenho, de repente, lapsos inexplicveis. No sei agora o quelhe disse naquele momento, mas lembro que ela respondeu que tinha de irembora.

    Na mesma noite telefonei para ela. Atendeu uma mulher; quando eu disseque queria falar com a senhorita Mara Iribarne ela pareceu hesitar umsegundo, mas logo em seguida disse que ia ver se ela estava. Quaseinstantaneamente ouvi a voz de Mara, mas num tom quase burocrtico, queme desconcertou.

    Preciso v-la, Mara disse-lhe. Desde que nos separamos tenhopensado constantemente na senhora a cada segundo.

    Calei-me tremendo. Ela no respondia.

    Por que no responde?disse-lhe com crescente nervosismo.

    Espere um momentodisse ela.

    Ouvi que deixava o fone. Instantes depois ouvi de novo sua voz, mas destavez sua voz verdadeira; agora tambm ela parecia estar tremendo.

    No podia falarexplicou.

    Por qu?

    Aqui entra e sai muita gente.

    E agora, como pode falar?

    Porque fechei a porta. Quando fecho a porta, sabem que no devem meincomodar.

    Preciso v-la, Mararepeti com violncia.Desde o meio-dia, notenho feito mais que pensar na senhora.

    Ela no respondeu.

    Por que no responde?

    Castel...comeou com indeciso.

    No me chame de Castel!gritei indignado.

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    Juan Pablo...disse ento, com timidez.

    Senti que uma interminvel felicidade comeava com essas duas palavras.

    Mas Mara calara-se novamente.

    O que houve?perguntei.Porque no fala?

    Eu tambmmurmurou.

    Eu tambm o qu?perguntei com ansiedade.

    Eu tambm no tenho feito mais que pensar.

    Mas pensarem qu?continuei perguntando, insacivel.

    Em tudo.

    Como, em tudo? Em qu?

    Em como tudo isso estranho... a histria de seu quadro... o encontrode ontem... o de hoje... no sei...

    A impreciso sempre me irritou.

    Bom, mas eu lhe disse que no deixei de pensar na senhorarespondi.A senhora no disse ter pensado em mim.

    Passou-se um instante. Depois respondeu:

    J lhe disse que tenho pensado em tudo.

    Mas no deu detalhes.

    E que tudo to estranho, foi to estranho... estou to confusa ...Claro que pensei no senhor...

    Meu corao disparou. Precisava de detalhes: emocionam-me os detalhes,no as generalidades.

    Mas como, como?... perguntei com crescente ansiedade. Eu tenhopensado em cada um de seus traos, em seu perfil, quando fitava a rvore,em seu cabelo castanho, em seus olhos duros e em como de repente seabrandam, no seu jeito de andar...

    Preciso desligarinterrompeu-me de sbito.Vem vindo gente.

    Vou ligar amanh cedocheguei a dizer, com desespero.

    Certorespondeu rapidamente.

    11

    Passei uma noite agitada. No conseguia desenhar nem pintar, apesar dasmuitas tentativas de comear alguma coisa. Sa para caminhar e de repente

    me encontrei na rua Corrientes. Uma coisa muito estranha estavaacontecendo comigo: eu olhava todo mundo com simpatia. Creio j ter dito

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    que me propus a fazer este relato de forma totalmente imparcial, e agoradarei minha primeira prova disso confessando um de meus piores defeitos:sempre olhei as pessoas com antipatia e at com nojo, principalmente aspessoas amontoadas; nunca suportei as praias no vero. Alguns homens,algumas mulheres isoladas me foram muito queridos, por outros sentiadmirao (no sou invejoso), por outros tive verdadeira simpatia; pelas

    crianas sempre tive ternura e compaixo (sobretudo quando, mediante umesforo mental, procurava esquecer que no fim seriam homens como osoutros); mas, em geral, a humanidade sempre me pareceu detestvel. Novejo inconveniente em dizer que, algumas vezes, o fato de ter observadouma fisionomia me impedia de comer pelo resto do dia ou me impedia depintar durante uma semana; incrvel at que ponto a cobia, a inveja, afatuidade, a grosseria, a avidez e, em geral, todo esse conjunto deatributos que formam a condio humana podem ser vistos num rosto, nummodo de andar, num olhar. Parece-me natural que depois de um encontroassim no se tenha vontade de comer, de pintar, nem mesmo de viver. Queroregistrar, porm, que no me orgulho dessa caracterstica: sei que umademonstrao de soberba e sei, tambm, que minha alma abrigou muitasvezes a cobia, a fatuidade, a avidez e a grosseria. Mas j disse que meproponho a narrar esta histria com total imparcialidade, e assim ofarei.

    Naquela noite, portanto, meu desprezo pela humanidade parecia abolido ou,pelo menos, transitoriamente ausente. Entrei no caf Marzotto. Suponhoque vocs saibam que as pessoas vo l para escutar tango, mas escutartango como um crente em Deus escutaA paixo segundo so Mateus.

    12

    Na manh seguinte, por volta das dez, telefonei. Atendeu a mesma mulherdo dia anterior. Quando perguntei pela senhorita Mara Iribarne, disse

    que naquela mesma manh ela fora para o campo. Gelei.

    Para o campo?perguntei.

    Sim, senhor. Quem fala, o senhor Castel?

    Sim, fala Castel.

    Ela deixou uma carta para o senhor, aqui. Pediu que a desculpasse, masno tinha seu endereo.

    Eu me apegara tanto idia de v-la naquele mesmo dia e esperava coisasto importantes daquele encontro, que a notcia me deixou arrasado.Ocorreu-me uma srie de perguntas: por que ela resolvera ir para o campo?Evidentemente, a deciso fora tomada depois de nossa conversa telefnica,pois, do contrrio, ela teria comentado alguma coisa a respeito da viageme, sobretudo, no teria aceitado minha sugesto de ligar no dia seguinte.Pois bem, se sua deciso era posterior a conversa telefnica, seriatambm conseqncia dessa conversa? E, se fosse conseqncia, por qu?Queria fugir de mim outra vez? Temia o inevitvel encontro do outro dia?

    Essa inesperada viagem ao campo despertou a primeira dvida. Como sempre,comecei a encontrar detalhes anteriores suspeitos a que no deraimportncia antes. Por que aquelas mudanas de voz ao telefone no diaanterior? Quem eram aquelas pessoas que "entravam e saam" e que a

    impediam de falar com naturalidade? E mais, isso provava que ela eracapaz de fingir. E por que aquela mulher hesitara quando perguntei pela

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    senhorita Iribarne? Mas uma frase acima de tudo se gravara em mim comocido: "Quando fecho a porta, sabem que no devem me incomodar". Penseique em torno de Mara existiam muitas sombras.

    Fiz essas reflexes enquanto corria para a casa dela. Era curioso que elano tivesse procurado descobrir meu endereo; eu, ao contrrio, j sabia

    seu endereo e seu telefone. Morava na rua Posadas, quase esquina com aSeaver.

    Quando cheguei ao quinto andar e toquei a campainha, senti uma grandeemoo.

    Abriu a porta um empregado que devia ser polons ou coisa que o valha e,quando dei meu nome, fez-me entrar em uma saleta cheia de livros: asparedes estavam cobertas de estantes at o teto, mas tambm havia montesde livros sobre duas mesinhas e at em duas poltronas. Chamou-me aateno o tamanho excessivo de muitos volumes.

    Levantei-me para dar uma olhada na biblioteca. De repente tive a sensaode que algum s minhas costas me observava em silncio. Virei-me e vi umhomem no extremo oposto da saleta: era alto, magro, com uma bela cabea.Sorria olhando para onde eu estava, mas em geral, sem preciso. Emboraele estivesse de olhos abertos, percebi que era cego. Ento encontrei aexplicao para o tamanho anormal dos livros.

    O senhor Castel, no?disse com cordialidade, estendendo-me a mo.

    Sim, senhor Iribarnerespondi, entregando-lhe a mo com perplexidade,enquanto pensava que espcie de vnculo familiar podia haver entre Marae ele. Ao mesmo tempo que acenava para que eu tomasse assento, sorriu com

    uma ligeira expresso de ironia e acrescentou:

    No me chamo Iribarne, e no me chame de senhor. Sou Allende, marido deMara.

    Habituado a valorizar e talvez at a interpretar os silncios,acrescentou imediatamente:

    Mara sempre usa o sobrenome de solteira.

    Eu estava feito uma estatua.

    Mara me falou muito de sua pintura. Como fiquei cego h poucos anos,ainda consigo imaginar as coisas razoavelmente bem.

    Parecia querer desculpar-se por sua cegueira. Eu no sabia o que dizer.Como ansiava estar s, na rua, para pensar em tudo!

    Tirou uma carta do bolso e estendeu-a na minha direo.

    Aqui est a cartadisse simplesmente, como se no houvesse nada deextraordinrio nisso.

    Peguei a carta e ia guard-la quando o cego acrescentou, como se tivessevisto meu gesto:

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    Pode ler a vontade. Se bem que, vindo de Mara, no deve ser nadaurgente.

    Eu tremia. Abri o envelope enquanto ele acendia um cigarro, depois deoferecer-me um. Tirei a carta; dizia uma nica frase:

    Eu tambm penso no senhor.

    MARA

    Quando o cego ouviu dobrar o papel, perguntou:

    Nada urgente, suponho?

    Fiz um grande esforo e respondi:

    No, nada urgente.

    Senti-me uma espcie de monstro, vendo o cego sorrir e fitar-me com osolhos abertos.

    Mara assimdisse, como pensando para si.Muitos confundem seusimpulsos com urgncias. De fato, Mara faz com rapidez coisas que noalteram a situao. Como vou lhe explicar?

    Fitou o cho abstrado, como se procurasse uma explicao mais clara.Passado um tempo, disse:

    Como algum que estivesse imvel em um deserto e de repente mudasse delugar com grande rapidez. Entende? A velocidade no importa, sempre seest na mesma paisagem.

    Fumou e pensou mais um instante, como se eu no estivesse ali. Em seguidaacrescentou:

    Mas no sei se isso, exatamente. No tenho muita habilidade para asmetforas.

    Eu no via a hora de escapar daquela sala maldita. Mas o cego no pareciater pressa. "Que abominvel comdia essa?", pensei.

    Agora, por exemplocontinuou Allende, levantou cedo e disse que iapara a fazenda.

    Para a fazenda?perguntei inconscientemente.

    Sim, para nossa fazenda. Quer dizer, para a fazenda de meu av. Masagora est nas mos de meu primo. Hunter. Imagino que o conhece.

    A nova revelao encheu-me de aflio e ao mesmo tempo de despeito: o queMara podia ver naquele imbecil mulherengo e cnico? Procurei me acalmar,pensando que ela no devia ter ido para a fazenda por causa de Hunter,mas, simplesmente, porque podia gostar da solido do campo e porque afazenda era da famlia. Mas fiquei muito triste.

    J ouvi falar deledisse, com amargura.

    Antes que o cego pudesse falar, acrescentei, bruscamente:

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    Preciso ir.

    Puxa, quanto lamentocomentou Allende.Espero que voltemos a nosver.

    Claro, claro, naturalmentedisse.

    Acompanhou-me at a porta. Apertei-lhe a mo e sa correndo. No elevador,enquanto descia, repetia com raiva para mim mesmo: "Que abominvelcomdia essa?".

    13

    Precisava desanuviar-me e pensar com calma. Fui andando pela rua Posadasna direo da Recoleta.

    Minha cabea era um pandemnio: um amontoado de idias, sentimentos deamor e de dio, perguntas, ressentimentos e lembranas misturavam-se eapareciam sucessivamente.

    Que idia era aquela, por exemplo, de fazer-me ir at sua casa buscar umacarta e de fazer com que ela me fosse entregue pelo marido? E como no meavisara que era casada? E que diabos tinha a fazer na fazenda com aquelesem-vergonha do Hunter? E por que no tinha esperado meu telefonema? Eesse cego, que espcie de bicho esquisito era? Eu j disse que fao umaidia bastante desagradvel da humanidade; devo agora confessar que doscegos no gosto nem um pouco e que sinto perto deles uma impressosemelhante que me causam certos animais frios, midos e silenciosos,como as cobras. Somando-se o fato de eu ter lido diante dele uma carta desua mulher que dizia "Eu tambm penso no senhor", no ser difcil

    calcular a sensao de nojo que tive naqueles momentos.

    Tentei ordenar um pouco o caos das minhas idias e sentimentos e procedercom mtodo, como de meu hbito. Tinha de comear pelo incio, e oincio (pelo menos o imediato) era, evidentemente, a conversa telefnica.Nessa conversa havia vrios pontos obscuros.

    Em primeiro lugar, se naquela casa era to natural que ela tivesserelaes com homens, como provava a histria da carta entregue pelomarido, por que usar uma voz neutra e burocrtica at a porta serfechada? Segundo, o que significava aquele esclarecimento de que "quandoa porta est fechada sabem que no devem me incomodar"? Pelo visto, erafreqente ela trancar-se para falar ao telefone. Mas no era crvel quese trancasse para ter conversas triviais com pessoas amigas da casa:devia-se supor que era para ter conversas semelhantes nossa. Mas entohavia em sua vida outras pessoas como eu. Quantas eram? E quem eram?

    Primeiro pensei em Hunter, mas em seguida o exclu: para que falar comele pelo telefone se podia v-lo na fazenda quando quisesse? Quem eram osoutros, ento?

    Pensei se com isso liquidava o assunto telefnico. No, ele no estavaencerrado: persistia o problema de sua resposta a minha pergunta precisa.Observei com amargura que quando lhe perguntei se havia pensado em mim,depois de tantas imprecises ela respondeu apenas: "J no lhe disse que

    tenho pensado em tudo?". Isso de responder com uma pergunta no muitocomprometedor. Enfim, a prova de que sua resposta no havia sido clara

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    foi que ela mesma, no dia seguinte (ou na mesma noite), julgou necessrioresponder de forma bem precisa com uma carta.

    "Passemos carta", disse para mim mesmo. Tirei a carta do bolso e torneia l-la:

    Eu tambm penso no senhor.

    MARA

    A letra era nervosa, ou pelo menos era a letra de uma pessoa nervosa. No a mesma coisa, pois, se a primeira hiptese fosse verdadeira,manifestava uma emoo atual e, portanto, um indcio favorvel a meuproblema. Seja como for, emocionou-me muitssimo a assinatura: Mara.SimplesmenteMara. Essa simplicidade me dava uma vaga idia de que eu apossua, uma vaga idia de que a moa j estava em minha vida e que, decerto modo, me pertencia.

    Ai! Meus sentimentos de felicidade so to pouco duradouros... Aquelaimpresso, por exemplo, no resistia menor anlise: por acaso o maridotambm no a chamava Mara? E decerto Hunter tambm a chamava assim, deque outro modo poderia cham-la? E as outras pessoas com quem falava aportas fechadas? Imagino que ningum fale a portas fechadas com algum aquem respeitosamente chame "senhorita Iribarne".

    "Senhorita Iribarne!" Agora que eu entendia a hesitao da empregada emmeu primeiro telefonema. Que grotesco! Pensando bem, era mais uma provade que aquele tipo de ligao no era completa novidade: evidentemente,na primeira vez em que algum perguntou pela "senhorita Iribarne" aempregada, estranhando, forosamente deve ter corrigido, frisando osenhora. Mas, naturalmente, fora de repeties, a empregada por fim

    dera de ombros e pensara que era prefervel no se meter em retificaes.Hesitou, era natural; mas no me corrigiu.

    Voltando carta, refleti que havia motivo para uma srie de dedues.Comecei pelo fato mais extraordinrio: a forma de fazer a carta chegar aminhas mos. Relembrei o argumento que a empregada me transmitira: "Pediuque a desculpasse, mas no tinha seu endereo". Era verdade: nem ela mepedira o endereo nem eu o dera a ela; mas a primeira coisa que eu teriafeito em seu lugar seria procur-lo na lista telefnica. No sendopossvel atribuir sua atitude a uma inconcebvel preguia, a conclusoinevitvel era:Mara desejava que eu fosse a casa dela e encontrasse seumarido. Mas por qu? Nesse ponto chegava-se a uma situao extremamentecomplicada: podia ser que ela sentisse prazer em usar o marido comointermedirio; podia ser que fosse o marido quem sentia prazer; podiamser os dois. Excluindo essas possibilidades patolgicas, restava uma:Mara queria que eu soubesse que ela era casada para que eu visse ainconvenincia de seguir adiante.

    Tenho certeza de que muitos dos que agora esto lendo estas pginashavero de pronunciar-se pela ltima hiptese e julgaro que s um homemcomo eu pode escolher alguma das outras. No tempo em que eu tinha amigos,muitas vezes riram de minha mania de escolher sempre os caminhos maistortuosos: Pergunto-me porque a realidade h de ser simples. Aexperincia me ensinou que, ao contrrio, ela quase nunca simples, eque quando algo parece extraordinariamente claro, uma ao que

    aparentemente obedece a uma causa simples, quase sempre h por baixomotivos mais complexos. Um exemplo corriqueiro: as pessoas que do

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    esmolas. Em geral, considera-se que so mais generosas e melhores do queas pessoas que no do. Permito-me tratar com o maior desdm essa teoriasimplista. Todo mundo sabe que no se resolve o problema de um mendigo(de um mendigo autntico) com um peso ou um pedao de po: resolve-seapenas o problema psicolgico do sujeito que compra assim, por quasenada, sua tranqilidade espiritual e seu ttulo de generoso. Veja-se o

    quanto tais pessoas so mesquinhas, uma vez que no se decidem a gastarmais do que um peso por dia para garantir sua tranqilidade espiritual ea idia reconfortante e vaidosa de sua bondade. Muito mais pureza deesprito e muito mais valor se requer para suportar a existncia damisria humana sem essa hipcrita (e usurria) operao!

    Mas voltemos carta.

    Somente um esprito superficial poderia optar pela ltima hiptese, poisela rui menor anlise. "Mara queria que eu soubesse que ela era casadapara que eu visse a inconvenincia de seguir adiante/' Muito bonito. Maspor que, nesse caso, recorrer a um procedimento to trabalhoso e cruel?No poderia diz-lo pessoalmente e at por telefone? No poderiaescrever-me, caso no tivesse coragem de falar? Restava ainda umargumento fortssimo: por que, sendo assim, a carta no dizia que ela eracasada, como eu bem podia ver, nem pedia que eu encarasse nossas relaesnum sentido mais tranqilo? No, senhores. Pelo contrrio, a carta erauma carta destinada a consolidar nossas relaes, a estimul-las econduzi-las pelo caminho mais perigoso.

    Restavam, ao que parece, as hipteses patolgicas. Era possvel que Marasentisse prazer em usar Allende como intermedirio? Ou era ele quemprocurava essas oportunidades? Ou o destino se divertira juntando doisseres semelhantes?

    De repente me arrependi de ter chegado a tais extremos, com meu costumede analisar indefinidamente fatos e palavras. Recordei o olhar de Marafixo na rvore da praa, enquanto escutava minhas opinies: recordei suatimidez, sua primeira fuga. E uma transbordante ternura por ela comeou ainvadir-me. Achei que era uma frgil criana em meio a um mundo cruel,cheio de fealdade e misria. Senti o que muitas vezes sentira desdeaquele momento no salo: que era um ser semelhante a mim.

    Esqueci meus ridos raciocnios, minhas dedues ferozes. Dediquei-me aimaginar seu rosto, seu olharaquele olhar que me lembrava algo que euno conseguia precisar, sua forma profunda e silenciosa de raciocinar.Senti que o amor annimo que eu alimentara durante anos de solido seconcentrara em Mara. Como podia pensar coisas to absurdas?

    Tentei esquecer, portanto, todas as minhas estpidas dedues sobre otelefonema, a carta, a fazenda, Hunter.

    Mas no pude.

    14

    Os dias seguintes foram agitados. Em minha precipitao, no perguntaraquando Mara estaria de volta da fazenda; no mesmo dia de minha visitavoltei a telefonar para tentar descobrir isso; a empregada disse que nosabia de nada; ento pedi a ela o endereo da fazenda.

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    Nessa mesma noite escrevi uma carta desesperada, perguntando-lhe a datade seu regresso e pedindo que me telefonasse ou me escrevesse. Fui at oCorreio Central e postei-a registrada, para reduzir os riscos ao mnimo.

    Como j disse, passei uns dias muito agitados e mil vezes voltaram minha mente as idias obscuras que me atormentaram depois da visita rua

    Posadas. Tive o seguinte sonho: visitava de noite uma velha casasolitria. Era uma casa de certo modo conhecida e infinitamente desejadapor mim desde a infncia, de modo que ao entrar nela guiavam-me algumasrecordaes. Mas s vezes me encontrava perdido na escurido ou tinha aimpresso de inimigos escondidos que podiam assaltar-me por trs ou depessoas que cochichavam e zombavam de mim, de minha ingenuidade. Quemeram essas pessoas e o que queriam? No entanto, e apesar de tudo, sentiaque nessa casa renasciam "em mim os antigos amores da adolescncia, comos mesmos tremores e essa sensao de suave loucura, de temor e dealegria. Quando acordei, compreendi que a casa do sonho era Mara.

    15

    Nos dias que precederam a chegada de sua carta, meu pensamento parecia umexplorador perdido em uma paisagem brumosa: aqui e ali, com grandeesforo, eu conseguia vislumbrar vagas silhuetas de homens e coisas,indecisos perfis de perigos e abismos. A chegada da carta foi como oaparecimento do sol.

    Mas aquele sol era um sol negro, um sol noturno. No sei se possveldizer isso, mas, embora eu no seja escritor e no esteja certo de minhapreciso, no retiraria a palavra noturno; essa palavra era, talvez, amais apropriada para Mara, dentre todas as que formam nossa imperfeitalinguagem.

    Eis a carta que ela me enviou:

    Passei trs dias estranhos: o mar, a praia, os caminhos foram me trazendorecordaes de outros tempos. No apenas imagens: tambm vozes, gritos elongos silncios de outros dias. curioso, mas viver consiste emconstruir futuras lembranas; agora mesmo, em frente ao mar, sei queestou preparando lembranas minuciosas que algum dia havero de me trazermelancolia e desesperana.

    O mar esta ali, permanente e furioso. Meu pranto de ento, intil; tambminteis minhas esperas na praia solitria, fitando tenazmente o mar. Vocadivinhou e pintou essa minha lembrana, ou pintou a lembrana de muitosseres como voc e eu?

    Mas agora sua figura se interpe: voc esta entre o mar e mim. Meus olhosencontram seus olhos. Voc est quieto e um pouco desconsolado, olha paramim como que pedindo ajuda.

    MARA

    Como a compreendia, e que maravilhosos sentimentos cresceram em mim comaquela carta. At o fato de tratar-me por voc de repente me deu acerteza de que Mara era minha. E somente minha: "voc esta entre o mar emim"; ali no existia outro, estvamos s ns dois, como intu desde omomento em que ela fitou a cena da janela. A bem da verdade, como poderia

    ela no me tratar por voc se nos conhecamos desde sempre, desde milanos atrs? Pois se quando ela se deteve diante de meu quadro e fitou

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    aquela pequena cena sem ouvir nem ver a multido que nos rodeava j eracomo se nos tivssemos tratado por voc, e eu logo soube como e quem elaera, o quanto necessitava dela e o quanto, tambm, eu lhe era necessrio.

    Ah, e, no entanto, matei voc! E quem a matou fui eu, eu, que via como sefosse atravs de um muro de vidro, sem poder toc-lo, seu rosto mudo e

    ansioso! Eu, to burro, to cego, to egosta, to cruel!

    Basta de efuses. Eu disse que relataria esta histria de forma enxuta eassim o farei.

    16

    Eu amava Mara desesperadamente e no entanto a palavra amor no forapronunciada entre ns. Esperei com ansiedade seu retorno da fazenda paradiz-la.

    Mas ela no voltava. Com o passar dos dias, foi crescendo em mim umaespcie de loucura. Escrevi-lhe uma segunda carta que dizia simplesmente:Adoro voc, Mara, adoro, adoro!.

    Dois dias depois recebi, afinal, uma resposta que dizia estas nicaspalavras: Tenho medo de lhe fazer muito mal. Respondi no mesmoinstante: "No importa o que voc possa me fazer. Se eu no pudesse am-la, morreria. Cada segundo que passo sem v-la uma interminveltortura".

    Passaram-se dias atrozes, mas a resposta de Mara no chegava.Desesperado, escrevi: "Voc est pisoteando este amor".

    No dia seguinte, pelo telefone, ouvi sua voz, distante e trmula. Excetoa palavra Mara, pronunciada repetidas vezes, no atinei a dizer nada,nem tampouco teria podido: minha garganta estava de tal modo contradaque eu no podia falar distintamente. Ela me disse:

    Volto amanh para Buenos Aires. Ligo para voc assim que chegar.

    No dia seguinte, tarde, ela me telefonou de sua casa.

    Quero ver voc imediatamenteeu disse a ela.

    Sim, vamos nos ver hoje mesmorespondeu.

    Espero voc na praa San Martnfalei.

    Mara pareceu hesitar. Em seguida respondeu:

    Prefiro que seja na Recoleta. Estarei l s oito.

    Como esperei aquele momento, como caminhei sem rumo pelas ruas para que otempo passasse mais rpido! Quanta ternura sentia em minha alma, quobelos me pareciam o mundo, a tarde de vero, as crianas brincando nacalada! Agora penso em quanto o amor cega, no mgico poder detransformao que ele tem. A beleza do mundo! para morrer de rir!

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    Passavam poucos minutos das oito quando vi Mara aproximar-se, procurandopor mim na escurido. J era muito tarde para ver seu rosto, masreconheci sua maneira de andar.

    Sentamos. Apertei-lhe um brao e repeti seu nome insensatamente, muitasvezes; no conseguia dizer outra coisa, enquanto ela permanecia em

    silncio.

    Por que voc foi para a fazenda?perguntei por fim, com violncia.Por que me deixou sozinho? Por que me deixou aquela carta em sua casa?Por que no me contou que era casada?

    Ela no respondia. Espremi seu brao. Gemeu.

    Voc est me machucando, Juan Pablodisse suavemente.

    Por que voc no diz nada? Por que no responde?

    No dizia nada.

    Por qu? Por qu?

    Por fim respondeu:

    Por que tudo tem de ter resposta? No falemos de mim: falemos de voc,de seus trabalhos, de suas preocupaes. Tenho pensado constantemente emsua pintura, no que voc me disse na praa San Martn. Quero saber o quevoc est fazendo agora, no que anda pensando, se tem pintado ou no.

    Voltei a espremer seu brao com raiva.

    No respondi. No de mim que quero falar: quero falar de nsdois, preciso saber se voc gosta de mim. S isso: saber se voc gosta demim.

    No respondeu. Desesperado com o silncio e com a escurido que no mepermitia adivinhar seus pensamentos em seus olhos, acendi um fsforo. Elavirou rapidamente o rosto, escondendo-o. Tomei seu rosto com a outra moe obriguei-a a olhar para mim: estava chorando silenciosamente.

    Ah... ento voc no gosta de mimeu disse com amargura.

    Mas enquanto o fsforo se apagava, vi como me olhava com ternura. Depois,j na completa escurido, senti que sua mo acariciava minha cabea.Disse-me suavemente:

    Claro que gosto de voc... por que dizer certas coisas?

    Certorespondi, mas como voc gosta de mim? Existem muitas maneirasde gostar. Pode-se gostar de um cachorro, de uma criana. Eu quero dizeramor, verdadeiro amor, entende?

    Tive uma estranha intuio: acendi rapidamente outro fsforo. Tal comointura, o rosto de Mara sorria. Isto , j no sorria, mas tinha estadosorrindo um dcimo de segundo antes. Aconteceu-me algumas vezes de eu derepente voltar-me com a sensao de ser espiado, no encontrar ningum e,

    no entanto, sentir que a solido que me rodeava era recente e que algo

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    fugaz acabara de desaparecer, como se um leve tremor vibrasse noambiente. Era algo assim.

    Voc estava sorrindodisse-lhe com raiva.

    Sorrindo?perguntou espantada.

    , sorrindo: ningum me engana to facilmente. Reparo muito nosdetalhes.

    Em que detalhes voc reparou?perguntou.

    Restava alguma coisa em seu rosto. O rastro de um sorriso.

    E do que eu poderia estar sorrindo?tornou a dizer, com dureza.

    De minha ingenuidade, de minha pergunta sobre se voc gostava de mim deverdade ou como de uma criana, sei l... Mas voc sorriu. Disso notenho a menor dvida.

    Mara se levantou de repente.

    Que foi?perguntei espantado.

    Vou emboradevolveu secamente.

    Levantei-me como uma mola.

    Como assim, vai embora?

    , vou embora.

    Como assim, vai embora? Por qu?

    No respondeu. Quase a sacudi com os dois braos.

    Por que voc vai embora?

    Temo que voc tambm no me entenda.

    Fiquei com raiva.

    Como ? Eu lhe fao uma pergunta que para mim questo de vida oumorte e em vez de responder voc sorri e ainda por cima se zanga! Claroque no d para entender.

    Voc est imaginando que sorricomentou secamente.

    Tenho certeza.

    Pois est enganado. E me di infinitamente que voc tenha pensado quefiz isso.

    Eu no sabia o que pensar. A rigor, no tinha visto o sorriso, s umaespcie de rastro num rosto j srio.

    No sei, Mara, me desculpedisse, abatido.Mas eu estava certo deque voc tinha sorrido.

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    Fiquei em silncio; estava muito abatido. Pouco depois senti a mo delatomar meu brao com ternura. Ouvi em seguida sua voz, agora fraca edoda:

    Mas como voc pde pensar uma coisa dessas?

    No sei, no seirespondi, quase chorando.

    Ela me fez sentar novamente e acariciou minha cabea como fizera deincio.

    Eu avisei que lhe faria muito maldisse, depois de alguns instantesde silncio.Veja como eu tinha razo.

    A culpa foi minharespondi.

    No, talvez a culpa tenha sido minha comentou pensativa, como sefalasse consigo mesma.

    "Que estranho", pensei.

    O que estranho?perguntou Mara.

    Espantei-me e at pensei (muitos dias depois) que ela era capaz de ler ospensamentos. Ainda hoje no sei ao certo se falei aquelas palavras em vozalta, sem perceber.

    O que estranho?tornou a perguntar, porque eu, em meu espanto, norespondera.

    Que estranho sua idade.

    Minha idade?

    , sua idade. Quantos anos voc tem?

    Riu.

    Quantos anos voc acha que eu tenho?

    justamente isso que estranho respondi.Na primeira vez que avi, achei que voc tinha uns vinte e seis anos.

    E agora?

    No, no. J de incio eu estava perplexo, porque alguma coisa nofsica me levava a pensar...

    Levava a pensar o qu?

    Me levava a pensar em muita idade. s vezes me sinto uma criana a seulado.

    Quantos anos voc tem?

    Trinta e oito.

    muito jovem, realmente.

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    Fiquei perplexo. No porque achasse que minha idade fosse excessiva, masporque, apesar de tudo, eu devia ser bem mais velho do que ela; pois, detodo modo, no era possvel que ela tivesse mais que vinte e seis anos.

    Muito jovemrepetiu, talvez adivinhando meu espanto.

    E voc, quantos anos tem?

    Que importncia tem isso?respondeu, sria.

    E por que voc perguntou minha idade?falei, quase irritado.

    Esta conversa absurdareplicou.Tudo isto uma bobagem. Muito meespanta voc se preocupar com coisas assim.

    Eu, preocupando-me com coisas assim? Ns dois mantendo semelhanteconversa? A bem da verdade, como tudo aquilo podia estar acontecendo? Euestava to perplexo que esquecera a causa da pergunta inicial. S em minha casa, horas mais tarde, consegui apreender osignificado profundo daquela conversa aparentemente to trivial.

    17

    Durante mais de um ms nos vimos quase todos os dias. No quero rememorarem detalhe tudo o que ocorreu nesse perodo a um s tempo maravilhoso ehorrvel. Foram demasiadas coisas tristes para que eu deseje refaz-lasna memria.

    Mara comeou a ir ao ateli. A cena dos fsforos, com pequenasvariaes, se reproduzira duas ou trs vezes, e eu vivia obcecado com a

    idia de que seu amor era, na melhor das hipteses, um amor de me ou deirm. De modo que a unio fsica era para mim como uma garantia deverdadeiro amor.

    Direi desde j que essa idia foi uma das tantas ingenuidades minhas, umadessas ingenuidades que certamente fariam Mara sorrir s minhas costas.Longe de tranqilizar-me, o amor fsico perturbou-me mais, trouxe novas etorturantes dvidas, dolorosas cenas de incompreenso, cruisexperincias com Mara. As horas que passamos no ateli foram horas quenunca esquecerei. Meus sentimentos, durante todo aquele perodo,oscilaram entre o amor mais puro e o dio mais desenfreado, ante ascontradies e as inexplicveis atitudes de Mara; de repente me acometiaa suspeita de que fosse tudo fingimento. Em determinados momentos elaparecia uma adolescente pudica e de repente ocorria-me a suspeita de queera uma mulher qualquer, e ento um longo cortejo de dvidas desfilava emminha mente: onde? como? quem? quando?

    Em tais ocasies, no podia evitar a idia de que Mara representava amais sutil e atroz das farsas e de que eu era, em suas mos, como ummenino ingnuo a quem se engana com histrias fceis para que coma oudurma. s vezes me acometia um pudor frentico, ia correndo me vestir edepois me precipitava para a rua, para tomar ar e para ruminar minhasdvidas e apreenses. Em outros dias, ao contrrio, minha reao erapositiva e brutal: eu me atirava sobre ela, agarrava seus braos como comtenazes, retorcia-os e cravava meus olhos nos dela, forando-a a me dar

    garantias de amor, de verdadeiro amor.

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    Mas nada disso tudo exatamente o que quero dizer. Devo confessar que eumesmo no sei o que quero dizer com isso de "amor verdadeiro", e ocurioso que, embora empregue muitas vezes essa expresso nosinterrogatrios, at hoje nunca parei para analisar seu sentido a fundo.O que eu queria dizer? Um amor que inclusse a paixo fsica? Talvez eu abuscasse em meu desejo desesperado de comunicar-me mais firmemente com

    Mara. Tinha certeza de que, em certas ocasies, conseguamos comunicar-nos, mas de forma to sutil, to passageira, to tnue, que depois euficava mais desesperadamente s do que antes, com essa imprecisainsatisfao que experimentamos ao tentar reconstruir certos amores desonho. Sei que, de repente, conseguamos alguns momentos de comunho. E ofato de estarmos juntos atenuava a melancolia que sempre acompanha essassensaes, decerto causada pela essencial incomunicabilidade dessasfugazes belezas. Bastava que nos olhssemos para saber que estvamospensando, ou melhor, sentindo o mesmo.

    Claro que pagvamos cruelmente por aqueles instantes, porque tudo o queacontecia depois parecia grotesco ou torpe. Qualquer coisa que fizssemos(falar, tomar caf) era doloroso, pois mostrava o quanto eram fugazesaqueles instantes de comunidade. E, o que era muito pior, causavam novosdistanciamentos, porque eu a forava, no desespero de consolidar de algummodo essa fuso, a nos unirmos corporalmente; s conseguamos confirmar aimpossibilidade de prolong-la ou consolid-la mediante um ato material.Mas ela piorava as coisas porque, talvez em seu desejo de tirar-me aquelaidia fixa, aparentava sentir um verdadeiro e quase inacreditvel prazer;e ento vinham as cenas de eu me vestir rapidamente e fugir para a rua,ou de apertar brutalmente seus braos e querer arrancar-lhe confissessobre a veracidade de seus sentimentos e sensaes. E tudo era to atrozque, quando ela intua que nos aproximvamos do amor fsico, tentavaevit-lo. No final havia chegado a um completo ceticismo e tentava fazer-me entender que no era apenas intil para o nosso amor, mas at

    pernicioso.

    Com essa atitude s conseguia aumentar minhas dvidas acerca da naturezade seu amor, uma vez que eu me perguntava se ela no teria representado afarsa e no poderia argir que o vnculo fsico era pernicioso para assimevit-lo no futuro; quando na verdade o detestava desde o incio e,portanto, era fingido seu prazer. Naturalmente, seguiam-se outras brigas,e era intil que ela tentasse me convencer: s conseguia enlouquecer-mecom novas e mais sutis dvidas, e assim recomeavam novos e maiscomplicados interrogatrios.

    O que mais me indignava, em face do hipottico engano, era o fato de terme entregado a ela totalmente indefeso, como uma criana.

    Se algum dia eu desconfiar que voc me enganoudizia-lhe com raiva,mato voc como a um cachorro.

    Retorcia seus braos e olhava fixamente seus olhos, tentando descobriralgum indcio, algum brilho suspeito, algum fugaz reflexo de ironia. Masnessas ocasies ela me olhava assustada como uma criana, ou tristemente,com resignao, enquanto comeava a se vestir em silncio.

    Um dia a discusso foi mais violenta que de costume e cheguei a cham-lade puta, aos gritos. Mara ficou muda e paralisada. Em seguida,lentamente, em silncio, foi se vestir atrs do biombo das modelos; e

    quando eu, depois de me bater entre meu dio e meu arrependimento, corria lhe pedir perdo, vi que seu rosto estava banhado em lgrimas. No

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    soube o que fazer: beijei-a ternamente nos olhos, pedi-lhe perdo comhumildade, chorei diante dela, acusei-me de ser um monstro cruel, injustoe vingativo. E isso durou enquanto ela mostrou algum sinal de desconsolo,mas, nem bem se acalmou e ps-se a sorrir com felicidade, comecei a acharpouco natural que ela no continuasse triste: podia acalmar-se, mas eramuito suspeito que se entregasse alegria depois de eu ter gritado a ela

    semelhante palavra, e comecei a achar que qualquer mulher deve sentir-sehumilhada ao ser qualificada assim, at as prprias prostitutas, masnenhuma mulher poderia voltar to rpido alegria, a menos que houvessecerta verdade naquela qualificao.

    Cenas semelhantes repetiam-se quase todos os dias. s vezes terminavamnuma relativa calma, e saamos a caminhar pela praa Francia como doisadolescentes apaixonados. Mas esses momentos de ternura foram tornando-semais raros e curtos, como instveis momentos de sol em um cu cada vezmais tempestuoso e sombrio. Minhas dvidas e meus interrogatrios foramenvolvendo tudo, como um cip que fosse enredando e sufocando as rvoresde um parque em uma monstruosa trama.

    18

    Meus interrogatrios, cada dia mais freqentes e tortuosos, eram apropsito de seus silncios, seus olhares, suas palavras perdidas, algumaviagem fazenda, seus amores. Certa vez lhe perguntei por que seapresentava como "senhorita Iribarne", e no como "senhora Allende".Sorriu e disse:

    Como voc criana! Que importncia pode ter isso?

    Para mim tem muita importnciarespondi, examinando seus olhos.

    um hbito de famliarespondeu, desfazendo o sorriso.

    No entantoinsisti, na primeira vez em que telefonei para sua casae perguntei pela "senhorita Iribarne" a empregada hesitou um instanteantes de responder.

    Deve ter sido impresso sua.

    Pode ser. Mas por que ela no me corrigiu?

    Mara voltou a sorrir, dessa vez com mais intensidade.

    Acabei de explicar disse que um hbito nosso, portanto aempregada tambm sabe disso. Todos me chamam Mara Iribarne.

    Mara Iribarne me parece natural, o que me parece menos natural aempregada estranhar to pouco algum chamar voc de "senhorita".

    Ah... no me dei conta de que era isso o que surpreendia voc. Bom, no o normal, e talvez isso explique a hesitao da empregada.

    Ficou pensativa, como se pela primeira vez estivesse percebendo oproblema.

    E, no entanto, ela no me corrigiuinsisti.

    Quem?perguntou, como se recuperasse a conscincia.

  • 7/22/2019 Ernesto Sabato O tnel

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    A empregada. No me corrigiu aquele "senhorita".

    Mas, Juan Pablo, tudo isso no tem absolutamente nenhuma importncia, eno sei o que voc est querendo demonstrar.

    Quero demonstrar que possivelmente aquela no era a primeira vez quealgum chamava voc de senhorita. Se fosse a primeira vez, a empregadateria me corrigido.

    Mara desatou a rir.

    Voc absolutamente fantstico disse, quase com alegria,acariciando-me com ternura.

    Permaneci srio.

    Alm dissocontinuei, na primeira vez em que voc me atendeu suavoz era neutra, quase burocrtica, at o momento em que voc fechou aporta. A partir da voc comeou a falar com voz terna. Por que amudana?

    Mas, Juan Pablorespondeu, sria, como que eu ia falar assim nafrente da empregada?

    Certo, isso razovel. Mas voc disse: "quando fecho a porta, sabemque no devem me incomodar". Essa frase no podia referir-se a mim, jque era a primeira vez que eu telefonava. Tambm no podia referir-se aHunter, j que voc pode v-lo na fazenda quantas vezes quiser. Para mim evidente que deve haver outras pessoas que telefonam ou telefonavampara voc. No assim?

    Mara olhou-me com tristeza.

    Em vez de me olhar com tristeza voc podia responder comenteiirritado.

    Mas, Juan Pablo, tudo o que voc est dizendo uma infantilidade.Claro que outras pessoas