Eros Canibal _ Eliane Robert Moraes

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    Eros canibal

    Correspondncias entre mitos indgenas brasileiros e a fico ertica europia

    Eliane Robert Moraes

    Os mitos erticos reunidos na antologia Moqueca de Maridos --

    assinada por Betty Mindlin e narradores indgenas -- propem uma

    experincia de leitura das mais desconcertantes. Primeiro, por

    apresentar um repertrio que, longe de evocar uma viso idlica das

    prticas amorosas nas sociedades tribais, impe a marca da diferena

    pela crueldade inslita de suas imagens. Segundo porque, no sentido

    inverso, esse mesmo imaginrio aciona motivos bastante familiares a

    quem conhece a moderna literatura ertica. Um tal paradoxo, que

    desconcerta ainda por lanar o leitor no fundo obscuro onde se

    encontram o diferente e o semelhante, pede explicao.

    A ambigidade entre o distante e o prximo tem sua primeira

    expresso j no propsito do livro : apresentar a mitologia de

    sociedades que, apesar da localizadas em territrio brasileiro, nos so

    completamente desconhecidas. Os mitos provm de seis povos

    indgenas da Rondnia : os Macurap, os Tupari, os Aru, os Arukapu,

    os Ajuro e os Jaguti, que falam lnguas diversas e tm distintas

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    tradies. Contatadas h cerca de 50 anos, essas populaes passaram

    por toda sorte de mazelas decorrentes do convvio com os

    colonizadores : contudo, suas histrias orais esto intocadas por

    influncias urbanas e correspondem a um perodo arcaico de vida nas

    aldeias da floresta amaznica.

    O livro d continuidade ao criterioso trabalho de pesquisa que a

    antroploga Betty Mindlin vem realizando nas reas indgenas de Rio

    Branco e Guapor. Suas publicaes anteriores so marcadas pelo

    mesmo empenho de traduzir, nos diversos sentidos do termo, a riqueza

    simblica das mitologias das pequenas sociedades da mata brasileira.

    Assim como ocorre em Vozes da Origem, seu livro anterior, so os

    laos de parentesco que fornecem o solo comum onde se desenrolam

    as histrias erticas. Mas o universo fixo das relaes entre os dois

    sexos que esses mitos privilegiam, longe de impor restries

    fantasmtica do desejo, representa apenas o ncleo bsico sobre o qual

    se abrem as possibilidades ilimitadas da imaginao.

    A conseqncia uma violncia ertica que tambm desconhece

    limites, potencializada pelo princpio soberano do excesso.

    Assassinatos, massacres, torturas, estupros e toda sorte de mutilaes

    corporais compes o repertrio de Moqueca de Maridos, superando e

    at subvertendo o tom feminista do ttulo da obra. Entre os requintes

    de crueldade que os mitos indgenas encenam, destacam-se em

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    particular as vrias modalidades de antropofagia, um motivo central

    tanto por sua recorrncia quanto pela singularidade de seu imaginrio.

    no ponto onde convergem essas tpicas -- a violncia, o excesso

    e a antropofagia -- que devemos interrogar a imagem da cabea

    voraz , comum a diversos mitos. A verso Macurap conta a histria

    de uma mulher casada cuja cabea separa-se do corpo todas as noites,

    procura de carne e alimento, enquanto o que resta dela permanece na

    rede abraado ao marido. Na verso Aru, a cabea da esposa, tendo

    se destacado do corpo em busca de gua, passa a ter vida autnoma,

    acompanhando o marido durante o dia e mordendo sua carne noite.

    O tema se desdobra nas histrias sobre a cabea voadora , que

    recordam o mito Kaxinau explorado por Mrio de Andrade em

    Macunana.

    Figura da insaciabilidade, a cabea viva que se separa do corpo

    para dar curso livre sua voracidade nada tem em comum com a

    cabea decapitada -- e morta -- que as Judiths e Saloms da mitologia

    crist exibem como trofus. Ao contrrio, no imaginrio indgena o

    motivo capital surge para realar a vitalidade fsica de um rgo que

    se torna autnomo para melhor satisfazer sua nsia de devorao.

    Trata-se, portanto, de uma cabea completamente erotizada, que s

    obedece aos impulsos da sensualidade.

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    Sendo a devorao uma metfora ertica de intensa significao,

    no de estranhar que a mitologia indgena associe com freqncia o

    ato de comer ao ato de copular. Enquanto namorava ia comendo a

    mocinha - diz com assustadora simplicidade um mito Tupari,

    reiterando as afinidades entre o apetite sexual e a gula alimentar que

    nos propem outras tantas verses. Numa derivao do tema, uma

    mito Jabuti amplia o campo do erotismo oral ao relatar a histria

    coprofgica dos homens que se escondiam para comer as prprias

    fezes misturadas com pamonha. Ora, so essas mesmas relaes entre

    o alto e o baixo corporal que a imagem da cabea voraz parece

    sintetizar, evocando um tema recorrente na moderna fico ertica.

    Como tpica literria, a associao entre a parte mais elevada do

    corpo e o baixo ventre tem longa histria. Pelo menos desde Rabelais,

    com a exaltao do corpo grotesco, h toda uma vertente da literatura

    europia que insiste em afirmar uma correspondncia essencial entre

    os rgos faciais e os genitais, buscando aproximar os ideais

    espirituais expressos pela cabea dos imperativos carnais que o sexo

    representa. Nessa linhagem, o marqus de Sade ocupa um lugar

    central, no s por retomar o motivo rebelaisiano do banquete mas

    sobretudo por transform-lo num fundamento de sua ertica. Nas ceias

    e nas orgias de seus personagens, indistintas umas das outras,

    confundem-se os diversos rgos do corpo sem qualquer hierarquia :

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    assim como acontece no universo mtico dos ndios, no mundo

    libertino tambm prevalece o princpio de equivalncia entre a boca e

    o sexo.

    Para ficarmos apenas com Rabelais e Sade -- alis, as principais

    fontes do erotismo literrio europeu --, vale lembrar ainda a

    persistncia desses autores em representar a avidez de seus

    personagens atravs dos imaginrios da devorao. Tanto num caso

    como no outro, a metfora sexual do canibalismo sempre ampliada

    pelo ato metonmico da coprofagia: do consumo violento do corpo do

    outro, o homem passa a consumir as matrias que seu corpo produz,

    como se houvesse limites para a satisfao de suas pulses bulmicas.

    Ou, se quisermos, como se a continuidade lgica da insaciabilidade

    fosse o consumo do prprio corpo.

    Herdeiro dessa tradio, Georges Bataille dedicou boa parte de sua

    obra ao tema da reciprocidade entre os dois rostos do homem . As

    sucessivas substituies que, na sua Histria do Olho, se operam entre

    as partes do corpo -- olhos/testculos, anus/boca, cabea/sexo --

    tambm atentam par a dissoluo orgnica que estaria no horizonte de

    toda atividade ertica. Conferindo a esse imaginrio um estatuto

    filosfico, Bataille o prope como interrogao da identidade humana:

    quando a cabea reverte-se em sexo, o homem perde a singularidade

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    espiritual que o rosto lhe confere para obedecer unicamente ao regime

    intensivo da matria.

    No deixe de surpreender que um tema de tal gravidade possa ser

    dramatizado com tanta semelhana em fontes to distantes entre si

    como a fico ertica europia e a mitologia indgena brasileira.

    Contudo, talvez valha a pena lembrar que uma das linhas de fora da

    literatura moderna -- e em particular da que se ocupa de temas

    proibidos -- consiste no esforo de dar palavra ao interdito, ao que

    foi expulso da memria individual ou coletiva. Nesse sentido, o

    escritor moderno pode muito bem compartilhar com os narradores

    indgenas o desgnio comum de explorar os fantasmas das interdies,

    para dizer precisamente aquilo que no pode ser expresso.

    Mas tambm aqui, onde vislumbramos a semelhana, que

    surpreendemos a maior diferena. Se o imaginrio da cabea voraz

    aciona temas to caros ao erotismo literrio, preciso sublinhar que

    alguns de seus desdobramentos permanecem para ns na obscuridade

    do desconhecido. o caso dos mitos nos quais a insaciedade da

    cabea lanada contra si mesma. Numa verso Aru, um homem que

    era viciado em comer moas , no tendo alimento, passa a comer

    pedaos de seu prprio corpo ; vai cortando e assando os braos, as

    pernas, a barriga, at se devorar por completo. Histria exemplar de

    autofagia, que se desdobra nos mitos em que a cabea humana

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    apresentada como iguaria requintada, disputada pelos habitantes da

    aldeia.

    Amplia-se, assim, a dimenso fsica do motivo capital: da cabea

    devoradora, marcada pela intensidade de uma fome que no termina

    jamais, passa-se para a cabea que boa de comer . Em outras

    palavras: nada, decididamente nada, escapa existncia superior e

    impessoal de um excesso violento que se torna exterior ao prprio

    indivduo, ameaando indistintamente toda matria viva. As imagens

    de autofagia dos mitos indgenas nos colocam diante de um impulso

    vital obscuro que parece presidir a existncia humana e que, por isso

    mesmo, s pode ser pensado como fora csmica.

    Talvez seja essa a razo da significativa ausncia de imagens

    autogrficas na literatura ertica. No repertrio profano de um

    Rabelais, de um Sade ou de um Bataille, para ficarmos apenas com os

    autores citados, a autofagia permanece invariavelmente como tabu, na

    condio de um fantasma inconcebvel. Por certo, essa diferena

    essencial tambm demarca as fronteira entre o mito e a literatura, esta

    esquivando-se dos temas que possivelmente s podem ser tratados

    numa dimenso sagrada.

    Nesse limite, os corpos imateriais e os espritos materiais

    que povoam as histrias de Moqueca de Maridos -- igualmente

    movidos pela avidez alimentar e sexual, mesmo sem o suporte da

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    matria -- s podem restar para ns como imagens de um paradoxo

    ininteligvel. Se nos desconcertam -- e sem dvida o fazem -- talvez

    seja menos por impedirem nosso reconhecimento no espelho que

    oferecem, mas por exporem, na simplicidade de seus relatos, os

    limites do nosso prprio conhecimento.

    Referncias bibliogrficas

    - BATAILLE, Georges, OEuvres Compltes, Paris, Gallimard, 1970-

    1988.

    - MINDLIN, Betty e narradores indgenas, Moqueca de Maridos -

    Mitos Erticos, Rio de Janeiro, Editora Rosa dos

    Tempos, 1997.

    - ___________, A cabea voraz in Estudos Avanados n. 27, So

    Paulo, Instituto de Estudos Avanados - USP, Maio-Agosto, 1996.

    - ___________, Vozes da Origem, So Paulo, tica, 1996.

    - PAES, Jos Paulo, Pinguelos em guerra no mato e na maloca in

    O lugar do outro, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999.

    - MORAES, Eliane Robert, Sade - A felicidade libertina, Rio de

    Janeiro, Imago, 1994.

    - SADE, marqus de, OEuvres Compltes, Paris, Jean-Jacques

    Pauvert, 1986-1991.

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    Eliane Robert Moraes, pesquisadora das relaes entre literatura e

    erotismo, professora de Esttica e Literatura na PUC-SP e no Centro

    Universitrio Senac-SP. Entre suas publicaes destacam-se diversos

    ensaios sobre o imaginrio ertico nas artes e na literatura, e a traduo

    da Histria do Olho de Georges Bataille (Cosac & Naify, 2003).

    Publicou, dentre outros, os livros: Sade - A felicidade libertina (Imago,

    1994), O Corpo impossvel A decomposio da figura humana, de

    Lautramont a Bataille (Iluminuras/Fapesp, 2002), alm de Lies de

    Sade Ensaios sobre a imaginao libertina (Iluminuras, 2006)