MARCONDES, Danielo - Eros e Philia

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ESTUDOS E PESQUISAS Nº 232 Amor e Amizade Eros e Philia Danilo Marcondes * XX Fórum Nacional BRASIL - “Um Novo Mundo nos Trópicos” 200 Anos de Independência Econômica e 20 Anos de Fórum Nacional (sob o signo da incerteza) 26 a 30 de maio de 2008 * Departamento de Filosofia – PUC-Rio. Versão Preliminar – Texto sujeito à revisões pelo(s) autor(es). Copyright © 2008 - INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos. Todos os direitos reservados. Permitida a cópia desde que citada a fonte. All rights reserved. Copy permitted since source cited. INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos - Rua Sete de Setembro, 71 - 8º andar - Rio de Janeiro - 20050-005 - Tel.: (21) 2507-7212 - Fax: (21) 2232-1667 - E-mail: [email protected] - web: http://forumnacional.org.br

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ESTUDOS E PESQUISAS Nº 232

Amor e Amizade Eros e Philia

Danilo Marcondes *

XX Fórum Nacional BRASIL - “Um Novo Mundo nos Trópicos”

200 Anos de Independência Econômica e 20 Anos de Fórum Nacional (sob o signo da incerteza) 26 a 30 de maio de 2008

* Departamento de Filosofia – PUC-Rio. Versão Preliminar – Texto sujeito à revisões pelo(s) autor(es). Copyright © 2008 - INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos. Todos os direitos reservados. Permitida a cópia desde que citada a fonte. All rights reserved. Copy permitted since source cited. INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos - Rua Sete de Setembro, 71 - 8º andar - Rio de Janeiro - 20050-005 - Tel.: (21) 2507-7212 - Fax: (21) 2232-1667 - E-mail: [email protected] - web: http://forumnacional.org.br

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Os verdadeiros primeiros princípio são o Amor (Philia) e a Luta (Neikos) Empédocles, frag.426 em Simplício, Physica, 21.

I. Introdução: os sentidos de Amor

Ao final do Lysis, um de seus primeiros e mais importantes diálogos, cujo tema é a amizade (philia), Platão afirma, “não conseguimos descobrir ainda o que faz de alguém um amigo” (223b7)1. Teremos nós conseguido vinte e cinco séculos após Platão chegar mais perto de entender o que são a amizade e o amor? Ou será que sobre a amizade e o amor devemos simplesmente constatar nossa incapacidade filosófica de analisá-los e de entendê-los, deixando-os para os amantes e os poetas?

Há um paradoxo em todo discurso sobre o amor e a amizade porque o discurso é algo de conceitual, racional, lógico, pretendendo dar conta de forma precária, quase que impossível, de algo que é da natureza do sentimento, como a amizade, ou até mesmo da paixão, como o amor. O discurso sobre o amor é traiçoeiro em sua tentativa de capturar algo que talvez não seja da ordem do discurso, do logos. Será possível um logos do eros?

Contudo, os filósofos, desde os primórdios, sempre atribuíram um lugar central ao amor não só na natureza humana, mas no próprio Cosmos. São apenas alguns dos múltiplos e por vezes mesmo ambivalentes e contraditórios sentidos do amor que procurarei explorar aqui brevemente em suas diferentes formulações desde as origens gregas até a formação da cultura ocidental.

Uma primeira leitura, ainda muito inicial, nos revela de imediato que o amor jamais foi interpretado como tendo uma natureza única e mesmo quando tentativamente fazemos uma distinção preliminar entre amor e amizade descobrimos que essas duas palavras traduzem, na verdade bastante imperfeitamente, pelo menos três conceitos intimamente relacionados segundo o pensamento grego, eros, philia e ágape, obscurecendo a sutil diferença entre eles. Esses termos têm, por sua vez, em latim como correspondentes aproximadamente amor, dilectio e charitas.

Na realidade devemos ir além dessas distinções iniciais, mostrando que os gregos possuíam cinco conceitos fundamentais correspondentes às nossas noções contemporâneas de amor e amizade, cada um deles captando uma dimensão central dessas noções (Lewis, 1960). Temos eros e philia, já mencionados; storgé, ou stergé, significando o amor recíproco, p.ex. os laços de afeição entre membros de uma família; xenía, o amor ao estrangeiro, ou mesmo ao estranho, ao desconhecido e que se traduz pela hospitalidade; ágape, o amor altruísta, o amor doação, entrega, por vezes mesmo o amor incondicional, transcendente (Birchal, 1990). Foi, sobretudo, ágape que o neoplatonismo cristão interpretou como amor divino, embora inicialmente na Patrística dos primeiros séculos do Cristianismo ainda se encontre o emprego de eros, devido principalmente a seu sentido de força cósmica, o eros do Deus Criador.

Mas se a tradição ocidental perdeu em grande parte essas cinco dimensões é preciso recuperá-las, ampliando nosso entendimento do o amor como algo de essencialmente múltiplo e diverso, possibilitando uma variedade de experiências.

II. O Eros Cósmico

Eros é o mais poderoso dos deuses e mesmo Zeus sente a sua força quando se apaixona por Hera sua irmã e futura esposa. É também Eros que faz Zeus descer à Terra sob forma de cisne para seduzir Leda e sob forma de touro para transportar a ninfa Europa através do Mediterrâneo, no mito

1 Para uma interpretação do Lyisis ver Penner e Rowe, 2006.

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das raízes gregas do mundo europeu. A força do Eros é irresistível até mesmo para os deuses, despindo Zeus nesses casos de sua própria divindade e fazendo-o assumir nem sequer a forma humana, mas animal.

Seu poder se explica talvez porque mais originariamente, nos primeiros mitos que encontram sua formulação mais tardia posteriormente na mitologia grega, Eros seja, sobretudo, uma força cósmica, na origem mesmo do universo, de tudo. Eros é nesse sentido atração, aquilo que agrega, aglutina e desta forma organiza o Cosmos, em oposição ao Caos, a desordem, a desagregação. É do Caos que no mito originário surge Eros, que representa assim a própria criação. Eros se opõe também à luta, ou ao conflito (Neikos), como a força que afasta, repele, opõe. E são essas duas forças, Eros e Neikos, que num movimento dialético, geram o Cosmos e explicam o caráter dinâmico da própria Natureza (Physis).

Hesíodo na Teogonia (116) define Eros como o mais belo dos deuses, o impulso ou força vital, aquele que os une entre si e une também os deuses e os homens. Mas, em uma versão posterior do mito (p.e.x no Banquete de Platão), Eros é também o deus menino que transforma a todos em criança, fazendo-os perder a racionalidade e o controle de si. É também a ruptura com os limites da individualidade, sua elevação, sua superação em direção ao outro. O verbo grego eraō significa precisamente desejar.

Nem sempre, contudo, na concepção cosmológica se distingue precisamente Eros de Philia. Empédocles, p.ex. afirma que os verdadeiros primeiros princípios, os archai, são o Amor (Philia) e a Luta, ou Conflito (Neikos)2. Philia compartilha com Eros a noção de busca de algo ou tendência para algo dando conta assim da unidade essencial do real.

III. Eros e Philia

Embora no início dessa tradição cosmológica Eros e Philia nem sempre se distingam claramente, em seu desenvolvimento posterior a Philia representará, sobretudo, a busca de algo com que se tem afinidade. Mesmo em uma declaração de amor, no sentido mesmo de eros, era comum em grego se usar o verbo philein, “Philo se”, equivalendo a nosso “Eu te amo” (Reeve, 2006).

É, por exemplo, a philia e não o eros que une os guerreiros hoplitas das falanges gregas, de que os 300 de Esparta são o grande símbolo, em laços de amizade e que os faz lutar juntos em defesa da cidade. É o companheirismo e a camaradagem que explicam a união daqueles que se identificam com os mesmos ideais, possuem uma origem comum, compartilham os mesmos objetivos, vivem sob a mesma lei3.

Philia é também o termo que se encontra na própria definição de filosofia (etimologicamente a philia da sophia, a amizade ou busca da sabedoria, o desejo de sabedoria). Segundo Diógenes Laércio em sua Vida e doutrina dos filósofos ilustres, Pitágoras (séc. VI a.C.) teria introduzido o termo. Tendo já adquirido grande fama, foi convocado certa vez ao palácio por Léon, tirano da ilha de Samos, que o interpelou, “Afinal, quem é você?”. Pitágoras teria respondido, “Eu sou um filósofo”, empregando esse termo pela primeira vez. O termo “filósofo” precederia assim a própria “filosofia”. Há, contudo, nessa resposta uma ambigüidade. Por um lado se trata de uma posição humilde, Pitágoras afirma não ter atingido ainda a sabedoria (sophia), mas apenas desejá-la, estar em busca dela. Por outro lado, sua atitude é crítica em relação àqueles que pretendem ter a

2 frag.426 in Simplício, Physica, 21 ( Kirk e Raven, 1977). 3 Segundo os versos do poeta Simônides no túmulo dos guerreiros espartanos nas Termópilas: “Viajante que por aqui passa, diga aos espartanos que, obedientes à lei, aqui jazemos”.

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sabedoria, os sóphoi, os sábios da tradição arcaica, pois devemos desconfiar daqueles que se declaram sábios. Em relação à sabedoria a atitude mais sóbria e mais legítima é, portanto, a philia.

Mas o locus classicus da discussão platônica sobre a philia é o diálogo Lysis, que tem como subtítulo precisamente, “sobre a amizade” (philia). O Lysis é um diálogo aporético, ou seja, inconclusivo, que não chega portanto a uma definição final de amizade, como vimos acima (p.1), mas mostra a relevância da reflexão filosófica sobre a amizade do ponto de vista da constituição da experiência e de nosso entendimento sobre a natureza humana, sobretudo acerca de sua dimensão ética.

Platão começa por se perguntar o que entendemos usualmente por philia e através do desenvolvimento dialético do texto passa a explorar os diferentes aspectos deste conceito. A amizade deve ser sempre um sentimento recíproco? Ou é possível sentir amizade por alguém que não corresponde a esse sentimento? Examina em seguida um aspecto aparentemente paradoxal do sentimento de amizade e de seu valor moral. Só desejamos a amizade de alguém porque consideramos que vamos nos beneficiar disso, o indivíduo verdadeiramente feliz, satisfeito consigo mesmo, não precisaria de amigos, nesse sentido a amizade seria um sentimento egoísta, suporia um interesse daquele que busca amigos. Platão examina em seguida a reciprocidade do sentimento de amizade, supondo uma identificação entre os amigos. Mas, nesse caso, só sentiríamos amizade por aqueles com quem nos identificamos? Não podemos ser amigos daqueles que são diferentes de nós? E se só somos amigos daqueles que são como nós, se já são como nós, porque precisaríamos deles? Na conclusão, Platão admite não ter avançado na definição, mas faz Sócrates se despedir de Lysis e Menexeno reiterando sua amizade por eles, mesmo que não saibam ainda defini-la (223b5-7). É como se a amizade dependesse mais da sinceridade e, portanto, da autenticidade deste sentimento do que da possibilidade de efetivamente defini-lo conceitualmente com clareza e precisão.

No diálogo Protágoras, no discurso de Protágoras sobre Prometeu e a criação do homem (322d), Platão apresenta o grande sofista dizendo que vendo que os homens não conseguiam viver em sociedade devido ao conflito, Zeus encarregou Hermes de dar-lhes o senso de justiça e os laços de amizade (philia) que são os fundamentos da cidade. A philia é assim um princípio central da vida social e Platão mostra como para Protágoras a philia é sobretudo um conceito político, um pressuposto da própria possibilidade da vida em comum.

Aristóteles, na Ética à Nicômaco (VIII-IX), define a amizade como um sentimento recíproco, que une os membros de uma comunidade, considerando-os hetairos, ou seja, “aquele que pertence ao grupo”. É o laço de afeição que une os irmãos e os companheiros, em um sentido estendido de “irmão”. Em uma sociedade, ou em uma união qualquer, mesmo familiar, a quebra desses laços gera a tirania, a relação baseada no exercício da força em que um indivíduo subjuga o outro, o rei os seus súditos, o marido a sua esposa, o pai os seus filhos, um irmão o outro. A ruptura mais forte desses laços corresponde à própria definição aristotélica de tragédia, “violência entre membros de uma família ou clã”, como nos casos de Édipo, Orestes ou Ifigênia. A philia é, portanto um sentimento recíproco, mesmo entre desiguais, p.ex. entre pai e filho, soberano e súditos, e em sua proposta de uma ética eudaimônica, ou seja, que busca a felicidade, Aristóteles, ao final do cap. IX, conclui que a philia é necessária para a vida feliz. Assim, para Aristóteles é a philia e não propriamente o eros que é um pressuposto fundamental da ética, há uma sabedoria na amizade e é significativo que o filósofo dê à amizade um lugar central em sua principal obra sobre ética, o texto que propriamente introduz este termo em nossa tradição.

A amizade é assim, segundo essa tradição, um sentimento de afeição, resultando de uma identificação entre os indivíduos unidos por esse laço. No Renascimento temos o que é provavelmente um dos melhores exemplos disso na relação entre dois grandes pensadores, Michel de Montaigne e Étienne de la Boétie. Após a morte prematura de La Boétie em 1563, Montaigne

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dedicou a ele algumas reflexões de grande sensibilidade (Essais, I,28, “De l’amitié”), dizendo que quando se interpelava porque havia entre eles este sentimento de amizade, a única resposta possível seria “Parce que c’était lui, parce que c’était moi” e nenhuma razão mais é necessária, ou mesmo possível, dada a identificação quase completa entre ambos.

IV. O Eros no Banquete de Platão: a scala amoris

O grande texto fundacional de nossa tradição sobre o Eros é sem dúvida, pela sua influência marcante, o Banquete (Symposion) de Platão, um de seus mais profundos e poéticos diálogos, cujo tema é precisamente o amor, enquanto Eros4 e cuja influência foi imensa. E o núcleo desse diálogo é o discurso de Diotima, sacerdotisa de Mantinéia, um dos textos mais célebres de Platão (Banquete, 201d - 211e).

É nesse texto que temos a formulação da concepção tradicional, socrática, que em última análise prevaleceu no platonismo, da passagem do amor físico, do amor sentimento, do amor carnal, para o amor espiritual, o amor da alma, em um processo de ascese, elevação espiritual, que deve passar por vários degraus ou etapas, a scala amoris, até atingir o grau mais elevado, o amor contemplativo, a contemplação da própria idéia, ou forma, do Belo (kallos).

A busca do verdadeiro Amor significa assim o abandono de seu objeto, as coisas belas que nos dão prazer, os belos corpos, a figura do amado, o objeto do desejo, em busca de algo mais fundamental, de natureza em última análise mais elevada, abstrata, espiritual.

Se o eros platônico, tal como apresentado no discurso de Diotima, representa um movimento individual, a metastrophé, de superação do desejo do belo e do prazer em direção à contemplação pela alma da idéia do Belo em si mesma; a philia, por sua vez significa o sentimento de afeição e de afinidade pelo outro, o estabelecimento de laços de amizade, de um vínculo social, portanto, rompendo assim com o individualismo e possibilitando a fundamentação de uma ética da sociabilidade.

A diferença essencial, portanto, entre eros e philia em Platão, reiterada posteriormente por Aristóteles, consiste na diferença entre o caráter individual do eros, mesmo na passagem do prazer que nos causa um belo corpo para a experiência contemplativa da Beleza, para o caráter essencialmente interativo da philia que depende do reconhecimento e da reciprocidade. A philia parece supor assim uma situação de equilíbrio entre aqueles a quem une.

V. Storgé e Xenía

Devemos interpretar os conceitos de storgé e xenía como dimensões do eros e da philia e não propriamente como diferentes deles. Storgé é o laço de afeição que une os membros de uma família, primitivamente até mesmo de um clã, que lhes dá uma identidade comum e explica a lealdade e a solidariedade entre eles, um dos sentidos fundamentais da philia, segundo Aristóteles como vimos anteriormente. É também o cuidado com que lidamos com aqueles por quem temos amor e amizade, é portanto a manifestação desse amor em uma atitude de dar atenção, de cuidar, zelar por alguém.

A xenía diz respeito a um dos aspectos mais fundamentais, e na verdade mais difíceis, do amor. O amor ao estranho, ao desconhecido. Se o amor foi definido como afeição, laço de amizade, identificação, companheirismo, nenhum desses traços se encontra na xenía. E, contudo, os gregos a

4 Jacques Lacan, p.ex. faz uma releitura do Banquete em seu Seminário VIII. O comentário clássico é o de L.Robin (1964). Ver também Franco (2006) para a importância da diferença entre os discursos filosófico e não-filosófico sobre o amor nesse diálogo. O Banquete teve uma importância muito grande na retomada do platonismo no Renascimento, sobretudo por Marsílio Ficino.

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valorizavam como o sentimento de boa vontade, a abertura para a amizade como atitude originária, o voto de confiança no desconhecido, aquilo que nos permite aproximar-nos do outro, do estrangeiro (xénos) e aceitá-lo como tal, ao mesmo tempo estranho e amigo. É na xenía que se baseia a hospitalidade como base da sociabilidade e da convivência entre os seres humanos.

Storgé e xenía são portanto extensões principalmente do conceito de philia, porque dizem respeito ao sentido social da experiência humana, do compartilhamento de sentimentos, adquirindo sob este aspecto uma importância fundamental do ponto de vista ético.

VI. Duas figuras do amor na civilização ocidental: amor cortês e amor romântico

Na tradição ocidental duas figuras centrais estabelecem os padrões básicos de representação do amor, tendo grande importância na literatura e nas artes plásticas e marcando profundamente nosso imaginário (De Rougemont, 1982; Bloom, 1993): o amor cortês e o amor romântico.

O amor cortês é o amor ritualizado que deve seguir determinadas convenções para ser reconhecido e aceito e que parece surgir como forma de expressão característica principalmente nos últimos séculos da Idade Média. “Fazer a corte” consiste precisamente em dar a conhecer pelo cavalheiro à amada seus sentimentos de forma comedida, adequada, respeitosa. Canções e poemas são as maneiras convencionalmente aceitas de expressão dos sentimentos. O amor cortês envolve a aprovação da sociedade, da corte no caso, e se passa entre amantes que são iguais, pertencendo geralmente à nobreza. O cavalheiro deve provar seu valor à dama sua amada, sacrificar-se por ela, correr riscos e realizar aventuras para merecer o seu amor. Essas aventuras que dão ao cavalheiro o mérito para receber o amor da amada, a dama perfeita, pura, bela e de alta linhagem, se traduzem nas canções que formam a tradição literária do amor cortês que tem como um de seus maiores representantes o poeta medieval francês Chrétien de Troyes (c.1135-1190). O amor cortês envolve, portanto, dar provas de amor, que vão além da expressão do sentimento, mas supõe uma conquista da amada, que o inspira e lhe dá força para essa conquista. Trata-se de um rito de passagem do jovem ao adulto, do efebo ao guerreiro, que dá provas da veracidade e da sinceridade do amor, sendo a dama a recompensa do cavalheiro valoroso.

O amor romântico, ao contrário, é o amor que rompe com as convenções, é o amor não-convencional, é o amor paixão, amor exaltação, um sentimento quase inexplicável que pode em seu limite chegar ao amor trágico, o amor irrealizável, impossível, levando à própria morte dos amantes como em Romeu e Julieta, como em um sacrifício. É característico do individualismo e do subjetivismo modernos, mas é também uma expressão do irracional, daquilo que foge ao controle, à medida, às regras.

O amor cortês está assim de certa forma mais próximo da philia na medida em que depende para a sua realização do reconhecimento do outro, do cavalheiro pela amada, supondo portanto uma reciprocidade que se concretiza pela recompensa que a amada oferece a seu amado. O amor romântico pode não ser recíproco, fazendo com que aquele que ama se desespere até a morte. O exemplo por excelência desse extremo é o Werther (1774) de Goethe, que termina com o suicídio do jovem cujo amor não é correspondido. Seria impossível sobreviver ao amor irrealizado.

VII. O amor narcísico

O amor narcísico é o amour propre, o amor de si, egoísta, auto-referente, uma manifestação do individualismo que nos condena ao isolamento. No mito, Narciso se apaixona por seu reflexo no espelho d’água e se torna a partir de então incapaz de amar qualquer outro que não a si mesmo. O narcisismo nesse sentido é frustrante, incapaz de se realizar, impedindo o verdadeiro amor, o desejo do outro, da superação do indivíduo. Segundo Freud, o narcisismo é uma reação neurótica daquele

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que incapaz de amar o outro, de dirigir-se a um objeto amoroso, volta-se para si mesmo, isolando-se em is mesmo5.

Por outro lado, o amor próprio pode ser visto não como narcisismo, mas como auto-estima, valorização de si mesmo, até certo ponto um pressuposto do amor ao outro. Aquele que não ama a si mesmo seria incapaz de amar a quem quer que seja. O amor próprio é essencial para a auto-preservação, pode ser visto como uma manifestação do instinto de sobrevivência. Amar a si mesmo, desde que não de forma narcísica no sentido do auto-isolamento, pode também ser condição para amar ao outro. Pode haver assim um sentido positivo do amor próprio que não se opõe necessariamente à philia, ou seja, à interação afetiva e ao estabelecimento dos laços de amizade.

VIII Amor, Amizade e Ética

Talvez David Hume, um filósofo empirista e cético seja uma referência inesperada quando se trata do amor, contudo suas reflexões no Tratado da Natureza Humana (Treatise of Human Nature, II, ii, “Of love and hatred”) são das mais originais e sutis a esse respeito. Hume é um dos principais representantes, na tradição moderna, do intuicionismo ou emotivismo ético, que vê não os fundamentos, mas a origem da ética em sentimentos como amor e ódio, ou compaixão e repulsa. A razão seria insuficiente para explicar nossa conduta ética se não tivermos os sentimentos de compaixão, que nos leva a solidarizarmos com outros seres humanos, ou de repulsa que nos leva, p.ex., a rejeitar a violência ou a corrupção. O formalismo ético característico do racionalismo não daria conta nem da motivação da ação, nem da origem de valores como certo ou errado, bom e mau.

Hume mostra que o amor (love) e mesmo o seu oposto, o ódio (hatred), não são fáceis de definir, na medida em que envolvem um complexo de outros sentimentos, mas constituem sobretudo uma experiência humana, mais do que conceitos abstratos, e que devem ser entendidos nesse sentido. Esses sentimentos estão na base do senso de comunidade que torna possível a vida social e tanto o amor, que une e identifica os indivíduos uns com os outros, quanto o ódio, que nos faz rejeitar certos tipos de atitude ou de conduta, são, em última análise, o que constitui o relacionamento humano e a partir do que então se constroem os hábitos, os costumes e finalmente as leis. Se estas não tiverem por base esses sentimentos, não forem expressão de experiências humanas, teremos um mero formalismo ético, ou mesmo, legal. Por isso, a justiça seria segundo Hume, uma “virtude artificial” (Rawls, 2000, págs. 51-68). Por outro lado, se os sentimentos não tiverem dado origem a uma elaboração sistemática, por exemplo, a um conjunto de normas éticas ou a um corpo de leis, não teremos superado ainda este estado inicial.

Este parece ser o principal desafio para pensarmos a ética e a política a partir do eros e, sobretudo, da philia. É preciso que na origem de um modelo ético de sociedade esteja o sentimento de sociabilidade que em última análise podemos considerar como tendo por base a amizade. Contudo, Platão (Lysis) e Aristóteles (Ética a Nicômaco) apontam para o pressuposto de um relacionamento pessoal, entre indivíduos que se identificam uns com os outros em alguma medida, para que haja amizade, philia. É por este motivo que os defensores de uma ética dos princípios, como, por exemplo, Kant, consideram que o fundamento da ética, e mesmo da lei, não podem ser sentimentos como esses, mas apenas a própria racionalidade dos princípios, enquanto derivados da racionalidade humana6.

5 O texto clássico de Freud a este respeito é Zur Einführung des Narzisismus de 1914 (ver Laplanche, 1969). 6 Ver a este respeito a discussão sobre a diferença dos fundamentos da ética na filosofia grega e nas filosofias moderna e contemporânea em J.Rawls, 2000: “A difference between classical and modern moral philosophy”, págs.1-3.

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Hume, porém, afirma que a simpatia, enquanto constitutiva da amizade, é o sentimento que pode representar a origem da moral enquanto estabelecendo um vínculo entre os indivíduos por estar fundado na natureza humana. Se, de certa forma, definimos a amizade como um sentimento de afeição entre indivíduos que em alguma medida se identificam, ainda assim essa definição envolve as dificuldades para que Platão aponta no Lysis e que levam à aporia que examinamos. Contudo, a possibilidade de basear a ética na philia e disso extrair uma condição constitutiva da sociabilidade, o que parece ser nosso interesse na discussão do tema proposto, pressupõe um conceito estendido do sentimento de simpatia e em decorrência disso, de amizade, que vá além do vínculo estritamente individual. Creio que os gregos nos dão uma importante indicação dessa possibilidade através dos conceitos de storgé e xenía, que examinamos brevemente acima. Storgé nos leva além do sentimento de simpatia para o cuidado com o outro que deve resultar disso. Mas, é sobretudo a xenía que pode realmente representar a extensão desejada do conceito de philia (amizade) em direção à sociabilidade, porque significa a simpatia em relação ao outro, mesmo enquanto desconhecido, ou estrangeiro, xenós, para os gregos; simplesmente enquanto ser humano a quem por este motivo temos o dever da hospitabilidade e do acolhimento.

É nesse sentido que a philia pode ir além da relação inicialmente estritamente pessoal e servir efetivamente de base para uma ética da sociabilidade que nos permita repensar as possibilidades das relações humanas mesmo sociedades complexas e multiculturais como no mundo contemporâneo.

Referências Bibliográficas

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De Rougemont, Denis, L’amour dans l’Ocident, Paris, Plon, 1982.

Diógenes Laércio, Vida e doutrina dos filósofos ilustres, Brasília, UnB, 1987.

Franco, Irley, O sopro do amor: um comentário ao discurso de Fedro no Banquete de Platão, Rio, Palimpsesto, 2006.

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Robin, Léon, La théorie platonicienne de l’amour, Paris, Presses Universitaires de France, 1964.

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Amor e AmizadeAmor e AmizadeEros e Eros e PhiliaPhilia

Prof.Danilo Marcondes(PUC-Rio)

Maio 2008

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Os mOs múúltiplos sentidos de amorltiplos sentidos de amor

• Eros: amor impulso, desejo, força cósmica.

• Philia: amizade.• Ágape: amor como doação, amor divino.• Storgé: afeição, amor familiar.• Xenía: o amor ao estrangeiro, ou

desconhecido, a hospitalidade.

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O conceito grego de philia

• Platão – Lysis.• Aristóteles - Ética a Nicômaco.• “A philia como laço recíproco de afeição

que une indivíduos que se identificam como tendo algo em comum”.

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(Pierre Paul Proud’hon (1758-1823) L’union d’eros et de l’amitié)

Eros e Philia

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Eros como força cósmica que une, aglutina

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PhiliaPhilia - AmizadeAmizade

• A philia como elo ou união de companheiros que cumprem uma missão.

• A philia como sociabilidade: a discussão entre iguais.

• A philia como solidariedade.

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Hoplitas gregos unidos pelos laços da philia: o companheirismo

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Mosáico: uma escola de filósofos - A philia e a sociabilidade

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Jacques Louis Davis, juramento dos irmãos Horácios.A philia como solidariedade e virtude cívica.

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Os fundamentos da ética

• Emotivismo ético: a importância de sentimentos como a empatia e a amizade– (Ex.David Hume, Tratado da Natureza

Humana, 1740)• Problema: pressuposto de relações

pessoais e de afinidade entre indivíduos.• Necessidade de ampliar o conceito de

empatia: storgé, xenía.

Page 20: MARCONDES, Danielo - Eros e Philia

Os filósofos e o “espaço público”, ao centro Voltaire. O idealiluminista de sociabilidade, a philia como elo social.