Escobar, Antonius 2003

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Reflexões filosofia marxista.

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  • ANTONIUS IRAEO ESCOBAR

    REFLEXES SOBRE MATERIALISMO E

    EMPIRIOCRITICISMO DE LENIN

    Tese apresentada ao Departamento de Filosofia

    da FFLCH-USP como exigncia parcial para

    a obteno do grau de Doutor em Filosofia.

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    2003

  • 2

    ORIENTADOR:

    PROF. DR. JOS CARLOS ESTEVO

    BANCA EXAMINADORA:

    Prof.Dr. Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes

    Prof. Dr. Antonio Carlos Mazzeo

    Prof.Dra Maria das Graas de Souza

    Prof. Dr. Milton Lahuerta

  • 3

    Revoluo,

    aos comunistas histricos,

    em particular a Jos Mariano de Souza e Ludovico Hagen Luedemann,

    Aglae, minha paixo,

    Raissa, minha esperana.

  • 4

    RESUMO

    Nosso trabalho tem como ncleo central a anlise da primeira parte de

    Materialismo e Empiriocriticismo, que constitui o prembulo filosfico

    necessrio anlise da revoluo da fsica empreendida por Lenin no capitulo

    V da mesma obra.

    A tese central que possibilitou-nos detectar a estrutura de Materialismo

    e Empiriocriticismo foi-nos sugerida por uma passagem de Lenin que nos pe

    em guarda contra a subordinao, operada pelo idealismo, da questo

    ontolgica fundamental (a da relao entre o ser e o pensamento) questo

    gnosiolgica (relativa objetividade de nossos conhecimentos).

    A estrutura de nossa tese segue a estrutura de Materialismo e

    Empiriocriticismo. Assim o justo dispositivo filosfico requer primeiro a anlise

    da questo ontolgica fundamental (captulo III de nossa tese), somente depois

    e sob o comando dessa primeira questo cabe tratar da questo gnosiolgica,

    da teoria do reflexo (captulo IV de nossa tese). Finalmente no capitulo V de

    nossa tese (correspondente ao captulo III da obra leninista) detemo-nos nas

    concepes ontolgicas do ser social e natural.

    Tal anlise da obra precedida de um captulo (captulo I) onde

    expomos os nossos pressupostos metodolgicos e da anlise da abertura, na

    qual Lenin desmistifica a pretensa novidade do Empiriocriticismo (capitulo II).

  • 5

    ABSTRACT

    The main part of this thesis is the analisys of the first part of

    Materializm i Empiriokrititsizm which constitutes the necessary philosophical

    introduction to Lenins study of the revolution in Physycs.

    The central idea which made it possible for us to detect the structure of

    Materializm i Empiriokrititsizm was suggested by a passage by Lenin himself.

    In this passage, he warns us against the subordination performed by idealism of

    the fundamental ontological question (about the relation between Being and

    Thought) to the epistemogical question (about the objectivity of our knowledge).

    The structure of our thesis is the same found in Materializm i

    Empiriokrititsizm. Therefore the right philosophical approach demands we first

    to examine the fundamental ontological question (chapter III in our text) and

    only then, and always having this issue in mind, to look into the epistemological

    question (reflex theory) (chapter IV in our text).

    Finally, in chapter V (chapter III in Lenins work) we study the

    ontological conceptions of the social and the natural beings. This analysis of the

    text is preceded by a chapter (chapter I) in which we explain our methodological

    assumptions, and by the study of the introduction in which Lenin demystifies the

    alleged novelty of the Empiriocriticism.

  • 6

    SUMRIO

    Agradecimentos ............................................................................................. 7

    Introduo ...................................................................................................... 8

    Captulo I: Questes metodolgicas ............................................................. 13

    Captulo II: A iluso de novidade .................................................................. 29

    Captulo III: O problema ontolgico fundamental: o ser e a conscincia ...... 37

    1. As sensaes e os complexos de sensaes .................................................... 37

    2. A descoberta dos elementos do mundo ........................................................... 47

    3. A coordenao de princpio e o realismo ingnuo ........................................... 53

    3. A natureza existiu antes do homem ................................................................... 55

    4. O homem pensa com o crebro? ....................................................................... 65

    5. Sobre o solipsismo de Mach e de Avenarius...................................................... 68

    Captulo IV: A questo gnosiolgica: sobre a teoria do reflexo .................... 71

    Captulo V: Ontologia geral (do ser natural e social) .................................. 109

    1. Sobre a matria ........................................................................................ 109

    2. Da noo de experincia ........................................................................... 119

    3. Tendncias subjetivistas sobre a noo de causalidade ............................... 125

    4. Princpio da economia de pensamento e realidade espao-temporal ............. 128

    5. Necessidade e liberdade............................................................................ 129

    Anexo I: Breves reflexes sobre o humanismo terico e suas conseqncias

    polticas ...................................................................................................... 132

    Anexo II: Sobre o Materialismo Histrico e a posio epistemolgica de

    H. Lacey ..................................................................................................... 143

    Referncias Bibliogrficas .......................................................................... 153

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    A meu orientador professor Jos Carlos Estvo, que alia ao fato de

    ser uma figura humana impar uma slida formao terica e uma honestidade

    intelectual inigualveis. Sem a sua orientao, esta tese no teria sido possvel.

    Aos professores Joo Quartin e Maria das Graas de Souza, que

    participaram da qualificao deste trabalho, em especial pelas criticas que

    fizeram. Ao professor Hugh Lacey, pelos cursos crticos em relao as

    inovaes cientficas recentes.

    A meu irmo Escobar, iconoclasta e heterodoxo, que contribuiu para

    tornar menos ortodoxa nossa tese. E pela grande ajuda na vida.

    Ao meu mdico e amigo fraternal, profundo conhecedor da natureza

    humana, Carlos Alberto Saad.

    A Dina Lida Kinoshita e Khalil Dib, amigos que me propiciaram o

    acesso obra de Lenin no original. Assim como aos professores No e Helena,

    meus professores de russo. E tambm ao amigo Celso Luiz Alcantara, que me

    auxiliou em rduas questes referentes lngua russa.

    A minhas irms, Maria Helena e Tnia Maria, pelo incentivo e pela

    ajuda.

    Ao amigo Incio Venncio, pelas ricas discusses. Aos amigos Paulo

    Srgio Marchelli e Maria Suley de Oliveira pelo incentivo e pelas sugestes.

    Natlia Soriani de Andrade, pelo muito que tem me ajudado.

    CAPES, pela bolsa.

  • 8

    INTRODUO

    A tese central que possibilitou-nos detectar a estrutura de Materialismo

    e Empirocriticismo nos foi sugerida por uma passagem de Lenin para a qual

    Dominique Lecourt chama a ateno. Nela Lenin nos pe em guarda contra a

    subordinao, operada pelo idealismo, da questo ontolgica fundamental (a

    da relao entre o ser e o pensamento) questo gnosiolgica (relativa

    objetividade de nosso conhecimento). No Captulo III nos determos neste ponto

    e buscaremos mostrar que podemos encontrar j em Feuerbach uma denncia

    desta subordinao. Cabe lembrar aqui que Kant, com sua revoluo

    copernicana, ao invs de estabelecer a primazia do real sobre o conhecimento

    (Tese Materialista), postula que os objetos devem se regular pelo nosso

    conhecimento1, leva ao extremo subordinao em questo. No nosso III

    Captulo enfocaremos o tratamento de Lenin da questo da ontologia

    fundamental, sua anlise de como efetivamente Mach e Avenarius a resolvem,

    e ao mesmo tempo mostraremos como Lenin demarca criativamente a posio

    materialista dialtica sobre tal questo.

    A estrutura de nossa tese segue pari passu a estrutura de Materialismo

    e Empirocriticismo. Assim, o justo dispositivo filosfico estabelecido por Lenin

    1 Cf. o comentrio de Lukcs ao Prlogo da Segunda Edio da Crtica da Razo

    Pura de Kant. LUKCS, G., Historia y Conscincia de Classe. Mxico, Grijalbo, 1969, pg. 155.

  • 9

    requer primeiro a anlise da questo ontolgica fundamental (captulo I de

    Materialismo e Empirocriticismo e captulo III de nossa tese), somente depois

    cabe tratar da questo gnosiolgica, da Teoria do Reflexo (captulo II de

    Materialismo e Empirocriticismo e captulo IV de nossa tese). Finalmente, no

    captulo V (referente ao captulo III de Materialismo e Empirocriticismo) detemo-

    nos nas concepes leninistas de ontologia do ser natural e social, bem como

    nas polmicas de Lenin com seus interlocutores.

    Tal anlise de Materialismo e Empirocriticismo precedida de um

    breve captulo sobre questes metodolgicas (captulo I) e da anlise da

    Abertura (captulo II). A anlise desenvolvida no nosso captulo II ganha

    importncia quando consideramos que os discpulos russos de Mach so

    vtimas de duas iluses solidrias:

    a primeira acreditar na reconciliao possvel entre materialismo e empirocriticismo, a segunda, acreditar na novidade do

    empirocriticismo2.

    Mais ainda, destas duas iluses, consoante Lecour, a segunda que

    estabelece a primeira: porque os discpulos crem, ingenuamente, que o

    empirocriticismo uma filosofia sem precedentes que eles aceitam o ideal de

    uma conciliao com o materialismo dialtico.

    Fazendo jus ao subttulo de Materialismo e Empirocriticismo: Notas

    Crticas sobre uma Filosofia Reacionria, e ao esprito leninista, acrescentamos

    um Anexo sobre as conseqncia polticas do Humanismo Terico. Alm disso,

    acrescentamos tambm um Anexo mais prximo do Materialismo Histrico do

    que do Materialismo Dialtico, elaborado para dialogar com tendncias atuais

    2 LECOURT, D., Une crise et son enjeu. Essai sur la position de Lenine em

    philosophie. Paris, Maspero, 1973, pg. 19.

  • 10

    referentes ao nosso tema, abordando algumas questes levantadas por Hugh

    Lacey3.

    Vejamos mais de perto a estrutura da obra de Lenin. A primeira parte

    de Materialismo e Empirocriticismo (at o captulo IV) constitui um prembulo

    filosfico necessrio para a anlise da revoluo na Fsica (discutida no

    captulo subseqente) e a anlise das relaes entre o Materialismo Histrico e

    o Empirocriticismo (captulo VI). Tal desenvolvimento levanta algumas

    questes concernentes relao entre a filosofia e as cincias. Liminarmente,

    para indicar brevemente tais problemas, recorramos a uma clebre passagem

    de Engels:

    ... O materialismo percorre uma srie de fases em seu desenvolvimento. Cada descoberta transcendental que se opera, inclusive no campo das cincias naturais, obriga-o a mudar de

    forma4.

    Althusser talvez tenha se inspirado nesta passagem e em outras do

    livro de Engels em questo como, por exemplo, a seguinte:

    Durante este longo perodo, de Descartes a Hegel e de Hobbes a Feuerbach, os filsofos no avanaram impelidos apenas, como julgavam, pela fora do pensamento puro. Ao contrrio. O que na realidade os impelia para frente eram, principalmente, os formidveis e cada vez mais rpidos progressos das cincias naturais e da

    indstria5.

    Dissemos que Althusser talvez tenha se inspirado nessas concepes

    engelsianas, precisemos, para esposar a tese do atraso necessrio da filosofia

    em relao s cincias, tese tambm de Hegel, que nos diz que a filosofia (a

    coruja de Minerva) surge sempre ao cair da tarde, depois das cincias. Tal a

    3 LACEY, H., Valores e Atividade Cientfica. So Paulo, Discurso, 1998.

    4 ENGELS, F., Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clssica Alem in MARX &

    ENGELS, Obras Escolhidas. So Paulo, Alfa-Omega, vol. 3, pg. 182.

  • 11

    concepo defendida por Althusser em Lenin e a Filosofia6 e em A Filosofia

    como Arma da Revoluo7. Vejamos sua sucinta formulao em Lenin e a

    Filosofia:

    Para que a filosofia nasa ou renasa preciso que haja cincias. talvez por isso que a filosofia em sentido estrito no comeou seno com Plato, induzida a nascer pela existncia da matemtica grega; foi transformada por Descartes, induzida a sua evoluo moderna pela fsica de Galileu; foi refundada por Kant, sob o efeito do desenvolvimento newtoniano; foi remodelada por Husserl sob o

    estmulo dos primeiros axiomticos, etc.8.

    Se esta tese se sustenta, temos que, em conseqncia, que s

    aparentemente a primeira parte de Materialismo e Empirocriticismo uma

    propedutica filosfica para a anlise da revoluo na fsica. Ao contrrio,

    somos forados a concluir que foi a revoluo na fsica que provocou os

    desenvolvimentos filosficos leninistas. Deveramos, ento, proceder a um

    exame detalhado da revoluo na fsica para compreender a filosofia leninista,

    uma vez que so as cincias que comanda as filosofias. Entretanto, ocorre com

    a obra de Lnin o mesmo que com a fundao do Materialismo Histrico,

    comandada por uma revoluo filosfica. Esta a posio de Althusser que,

    abordando a tese acima referida, nos diz, na Resposta a John Lewis:

    A revoluo filosfica de Marx comandou o corte epistemolgico de Marx, como uma de suas condies de possibilidade ... preciso afirmar o contrrio [do que havia sido dito em Lnin e a Filosofia], e defender a idia de que na histria do pensamento de Marx a revoluo filosfica necessariamente comandou a descoberta

    cientfica e lhe deu a sua forma: a de uma cincia revolucionria9.

    5 ENGELS, op. cit., pg. 181.

    6 ALTHUSSER, L., Lenin y la filosofia. Buenos Aires, Carlos Prez, 1971.

    7 Id., La filosofia como arma de la revolucin, Cuadernos de Pasado y Presente,

    Buenos Aires, 1972, no. 4, pp. 9-2O.

    8 ALTHUSSER, L., Lenin y la filosofia, op. cit., pg. 33.

    9 Id., Resposta a John Lewis, op. cit., pg. 60.

  • 12

    Desta perspectiva, em que as revolues filosficas aparecem em

    primeiro plano, comandando as revolues cientficas, Materialismo e

    Empirocriticismo (1908), assim como os Caderno Filosficos (1914-1916) foram

    fundamentais para a elaborao da monumental obra do Materialismo Histrico

    Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (1916).

    A ttulo de concluso desta breve introduo, acrescentemos, para

    sublinhar a importncia do Materialismo Dialtico, da Filosofia, contrariamente

    a uma ideologia difusa, os seguintes dizeres de Lefebvre:

    Lenin foi tambm um filsofo. E na nossa opinio, seu pensamento filosfico que nos d o fio condutor que atravessa toda a obra e a

    torna compreensvel10

    .

    10 LEFEBVRE, H., O Pensamento de Lenine. So Paulo, Moraes, 1975, pg. 14.

  • 13

    CAPTULO I

    QUESTES METODOLGICAS

    No prembulo da anlise do item 4 do capitulo IV de Materialismo e

    Empirocriticismo, relativo ao sentido em que evoluiu o empiriocriticismo, Lenin

    enuncia trs proposies metodolgicas concernentes a analise do sistema

    filosficos. Arrolaremos, primeiramente, esta passagem na integra e em

    seguida objetivaremos explicit-las e mostrar como a pratica filosfica leninista

    efetivamente aplica as referidas regras metodolgicas:

    O empiriocriticismo , portanto, como qualquer outra tendncia ideolgica, uma coisa viva em vias de crescimento, em vias de evoluo, e o facto do seu crescimento nun dado sentido permitir, melhor que longos raciocinios elucidar a questo fundamental da verdadeira natureza desta filosofia. Julga-se um homem no por aquilo que diz ou pensa de si prprio, mas pelos seus actos. Os filsofos devem ser julgados no pelas etiquetas que arvoram (positivismo, filosofia da experincia pura, monismo ou empiriomonismo, filosofia das cincias da natureza, etc.), mas pela maneira como resolvem de facto as questes tericas fundamentais, pelas pessoas com que andam de mo dada, por aquilo que ensinam

    e ensinaram aos seus alunos e discpulos11

    .

    Desta passagem destacaremos trs regras: 1a regra: Julga-se um

    homem no por aquilo que diz ou pensa de si prprio, mas pelos seus atos.

    11 LENIN, Materialismo e Empiriocriticismo. Lisboa, Estampa, pg. 194. No empiriokrititsizm, kk vsikoie idenoie tetchinie, iest vichtch jivia, rastchtchaia, rasviviuchtchaiasia, i fakt rest ievo v tom li inm napravlnii ltchche, tchm dlnnye rassujdinia, pomjet rejit osnovni vopros o nastoichtchei sti toi filosofai. O tchelovikie sudiat nie po tom tchto on o sibi govort li dmaet a po delam ivo. O Filosofakh nado suditnie po tiem vvieskam, kotryie on smi na sebi navichivaiut (pozitivzm, filosfia Tchstovo pyta, monzm ali empiriokrititsizm, filosfia estistvoznaniai t. p), a po tomu, kak uni na diele rchaiut osnovnyie teorettcheskie voprocy, s kiem on idt ruk b ruku, tchem oni utchat i tcheru on nautchli svoikh utchenikov i posfdovatelei. LENIN, Materializm

  • 14

    Os filsofos devem ser julgados no pelas etiquetas que ostentam

    (positivismo, filosofia da experincia pura, monismo ou empirimonismo,

    filosofia das cincias da natureza, etc..), mas pela maneira como resolvem na

    prtica as questes tericas fundamentais. 2a regra: pelas pessoas com quem

    compartilham as mesmas idias. 3a regra: por aquilo que ensinam e lograram

    ensinar seus discpulos e adeptos.

    Destas regras cabem alguns breves comentrios a cerca da traduo

    da segunda. A edio espanhola de Obras Escogidas efetua a seguinte

    traduo: ... pelas pessoas com quem fazem causa comum12. A edio

    portuguesa de Materialismo Empiriocriticismo, efetua a seguinte traduo:

    pelas pessoas com quem andam de mo dada13. Consultando o dicionrio

    de C. I. Ojegov14, encontramos as seguintes variantes da passagem em

    questo, isto , ... s kiem on idt ruk b ruku:

    1a) Com quem eles cerram fileiras.

    2a) Com os que seguem os mesmos ideais.

    3a) Com os que abraam as mesmas idias.

    Parece-nos que a opo pela traduo mais adequada no pode ser

    feita de modo metafisico, mas sim pela contextualizao da passagem em

    pauta, da segunda regra, no ao p da letra, mas atendo-se ao esprito da

    obra. Nessa perspectiva parece-nos mais pertinente interpret-Ia como

    significando o compartilhar idias filosficas em comum, e no uma afinidade

    i Empiriokrititsizm. Vol. XVIII, pg. 228.

    12 LENIN, Obras Escogidas em Doce Tomos. Moscou, Progresso, 1976; vol. IV, pg.

    213.

    13 LENIN, Materialismo e Empiriocriticismo. Lisboa, Estampa, 1975, pg. 194.

    14 Moscou, Ed. Lngua Russa, 1984.

  • 15

    de matiz poltico. Objetivando alicerar esta interpretao consideremos, num

    primeiro momento, Materialismo e Empiriocriticismo em seu conjunto. Nos

    captulos anteriores ao IV Lenin no somente considera a maneira como os

    filsofos resolvem na pratica as questes tericas fundamentais (1 regra),

    mas tambm alem de desenvolver criativamente o Materialismo Dialtico,

    demonstra a identidade de Mach e Berkeley na soluo da questo ontolgica

    fundamental (a relao entre o ser e o pensamento), a adeso de Mach na

    questo da causalidade a Hume, etc.... Enfim estabelece relaes de

    proximidade, para no dizer de identidade, entre a filosofia de Mach e outros

    sistemas filosficos (como os de Berkeley e Hume).

    Desse modo, como assinalamos, a segunda regra refere-se no a

    defesa de uma causa poltica comum, a um cerrar fileiras no sentido poltico,

    se bem que como mostraremos mais adiante as teses filosficas tem efeitos

    polticos, mas sim que uns dos elementos para compreender um filsofo

    considerar os demais filsofos que abraam as mesmas idias filosficas.

    Esta segunda regra, evidentemente, comandada pela primeira, pois

    no se pode estabelecer afinidades e/ou identidades tericas entre os filsofos

    sem antes analisar os seus efetivos fazeres tericos (1a regra). Vejamos

    agora, em segundo lugar mais uma considerao que refora nossa

    interpretao da segunda regra. Assim como na realidade brasileira atual

    observvel a coexistncia, dentro de uma mesma organizao poltica, de

    Lucksianos, Althusserianos e at de elementos catlicos ligados a teologia da

    libertao, na realidade russa, aps a derrota da revoluo de 1905-1907,

    conviviam na ala Bolchevique elementos que, filosoficamente inspiravam-se

    em Mach (Bogdanov, Bazarov, Lunatcharski e outros), sendo que Lunatcharski

  • 16

    tentou mesmo fazer do Marxismo uma nova espcie de religio

    (Bogostroitelstvo, isto , a construo de Deus), com quadros materialistas

    dialticos.

    No plano poltico os bolcheviques, que tentavam conciliar Mach e o

    marxismo no plano filosfico, incidiam num desvio de esquerda: retirada dos

    representantes da Duma, recusa as formas legais de ao, etc.... Lenin

    mantinha com eles no s divergncias tticas, mas tambm filosficas. O que

    importa aqui acentuar que em Materialismo e Empiriocriticismo Lenin trata

    suas divergncias filosficas com este grupo bolchevique (Otzovistas),

    deixando em segundo plano as mencionadas divergncias tticas. Portanto a

    segunda regra metodolgica, enunciada na passagem acima arrolada, refere-

    se s relaes de parentesco e/ou identidade entre sistemas filosficos, por

    exemplo, a relao Mach-Bogdanov.

    Aps estas breves consideraes, que afiguram-se-nos um tanto

    redundantes e bvias, explicitaremos mais detidamente as trs regras

    metodolgicas em pauta. A primeira delas parece-nos inspirada na seguinte

    passagem celebre do Prefcio a Contribuio para a Crtica da Economia

    Poltica:

    Assim como no se julga um indivduo pela idia que ele faz de si

    prprio, no se poder julgar uma tal poca de transformao pela sua conscincia de si: preciso, pelo contrrio, explicar esta conscincia pelas contradies da vida material, pelo conflito que existe entre as foras produtivas sociais e as relaes de

    produo15

    .

    Bem entendido, Lenin no condicionar mecanicamente, como fazem

    15 MARX, Contribuio para a Crtica da Economia Poltica. Lisboa, Estampa, 1971,

  • 17

    os economicistas, o sistemas filosficos s contradies da vida material,

    mas retm da proposio de Marx a idia de que um sistema filosfico, a

    conscincia de si, no pode ser julgada pr ela mesma, do mesmo modo que

    que no se julga um indivduo pela idia que ele faz de si prprio. bvio

    que Lenin no desconsidera a importncia das contradies da vida material

    na determinao da conscincia filosfica, to bem ilustrada pr Marx, no

    incio da Introduo Crtica da Economia Poltica, aonde ele relaciona as

    robinsonadas e o contrato social de Rousseau, o surgimento de sistemas

    filosficos e da economia da poltica clssica, que partiam do indivduo

    isolado, s condies econmicos sociais da sociedade burguesa que no

    sculo XVIII caminhava as passos de gigante para sua maturidade16.

    Objetivaremos efetuar uma leitura no economicista da primeira

    regra metodolgica enunciada por Lenin. Vejamos inicialmente o mutatis

    mutandi que Lenin parece-nos opera na proposio de Marx do Prefcio a

    Contribuio para a Crtica da Economia Poltica, transcrita acima. O

    significado real desta regra da prtica filosfica Leninista est em que na

    anlise do sistema filosficos o essencial no , valendo-nos de uma

    distino, efetuada por Ruy Fausto, o visar (meinen), mas sim o pr (setzen).

    Em outros termos, freqentemente ocorre que o dizer (visar, meinem)

    contraria o fazer terico (pr, setzen); que algum no discurso diz o contrrio

    do que faz teoricamente17. Nesta perspectiva Lenin nos diz que o fundamental

    considerar no as etiquetas, mas a maneira pela qual os filsofos

    pg. 29.

    16 Id., op. cit., pp. 211-212.

    17 FAUSTO, R., Marx, Lgica & Poltica. So Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 69 e ss.

  • 18

    resolvem na prtica as questes tericas fundamentais18. Esta regra Leninista

    no aplicada somente na anlise do sentido em que evoluiu o

    empiriocriticismo, objeto do item 4 do captulo IV, mas tem um alcance geral,

    permeando toda obra, na medida em que os trs primeiros captulos abordam,

    respectivamente, como os empiriocriticistas resolvem efetivamente a questo

    ontolgica fundamental (captulo 1), como resolvem realmente a questo

    gnosiolgica (captulo 2), e como abordam teoricamente a questo da

    ontologia da natureza (captulo 3). Acrescente-se ainda que essa mesma

    considerao do efetivo fazer terico dos filsofos ocorre nos demais

    captulos.

    claro que a obra Leninista no se limita a uma anlise crtica

    puramente imanente do fazer terico dos empiriocriticistas, sendo

    simultaneamente positiva, isto , desenvolvendo criativamente o materialismo

    dialtico. Neste ponto crucial considerar que Lenin no relaciona

    mecanicamente (de modo economicista) os sistemas filosficos, como supem

    alguns que Marx preceituaria na citao do Prefcio Contribuio feita

    acima, s contradies da vida material, ou seja, no explica em Materialismo

    e Empiriocriticismo, de modo mecnico, a conscincia filosfica pelo conflito

    entre as foras produtivas e as relaes, o que fazem os economicistas

    ancorados, na maioria das vezes, em uma postura anti-dialtica de

    descontextualizao da tese de Marx em questo. Visando captar o sentido

    preciso da regra metodolgica Leninista em considerao, efetuaremos duas

    ordens de razes.

    18 LENIN, op. cit, edio portuguesa, pp.194.

  • 19

    Em primeiro lugar observemos que o marxismo-leninismo no um

    economicismo (ser ainda mister precisar isto!), que o nvel econmico

    determinante em ltima instncia, sendo que o nvel terico possui uma

    autonomia relativa. Althusser demonstrou isto a exausto em sua obra,

    lembremos de passagem sua crtica contundente ao economicismo em Pour

    Marx19 no captulo Contradiction et surdetermination. Entretanto, de

    Althusser, reteremos aqui, a fim de fundamentar a autonomia do nvel

    terico, somente uma passagem significativa da Sustentao de Tese em

    Amiens20, aonde na seco A ltima Instncia ele efetua, valendo-se da

    noo deste tipo de determinao em ltima instncia, a seguinte leitura

    da tpica marxista do Prefcio Contribuio.

    Na determinao da tpica, a ltima instncia exatamente a ltima instncia. Se ela a ltima, como na imagem jurdica que a sustenta, porque h outras que se figuram na superestrutura jurdico-poltica e ideolgica. A meno da ltima instncia na determinao tem, por conseguinte uma dupla funo: ela demarca radicalmente Marx de todo mecanicismo, e inaugura na determinao o papel das diferentes instncias, o lugar de uma diferena real onde se inscreve a dialtica. A tpica significa ento que a determinao em ltima

    instncia pela base econmica s pode ser pensadas em um todo diferenciado, logo complexo e articulado (a Gliedefung), onde a determinao em ltima instncia fixa a diferena real das outras instncias, sua autonomia relativa e seu prprio modo de eficcia

    sobre a base21

    .

    Correndo o risco de ser redundante, o que no entanto parecenos

    pertinentes na medida em que mostramos em nossa tese de mestrado

    muito corrente confundir o marxismo-leninismo com certos determinismos

    sociolgicos burgueses, arrolaremos mais duas passagens: a primeira de

    19 ALTHUSSER, L., Pour Marx. Paris, Maspero, 1967.

    20 Id., Sustentao de tese em Amiens in Posies, Graal, 1978.

    21 Id., op. cit., pg. 141.

  • 20

    Engels, em uma carta a Joseph Bloch, datada de 21 de setembro de 1890,

    aonde ele nos adverte contra o economicismo recorrendo a categoria de

    ao recproca, e a segunda de Gramsci onde ele enfatiza a autonomia do

    nvel terico, considerando que o marxismo no exclu a histria tico -

    poltica:

    Cabe a Marx e a mim mesmo, parcialmente, a responsabilidade pelo fato de que os jovens, muitas vezes, dem mais peso do que o devido ao lado econmico. Diante de nossos adversrios, que o negavam, era-nos necessrio sublinhar o princpio essencial negado por eles, e ento ns no encontrvamos sempre o tempo, o lugar nem a ocasio para dar seu lugar aos outros fatores que participam na ao recproca. Mas, a partir do momento em que se tratava de apresentar um perodo da Histria, isto , de passar aplicao prtica, a coisa mudava e no havia erro possvel. O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte, de Marx, fornece uma ilustrao exemplar de anlise histrica apresentada em toda a sua

    complexidade dialtica22

    .

    Portanto, como os textos acima citados evidenciam, se bem que uma

    leitura mecanicista do marxismo seja possvel a partir de certas passagens da

    Ideologia Alem, existe uma autonomia relativa do nvel terico, o que

    possibilita o tratamento relativamente autnomo das obras tericas. Este

    tratamento relativamente autnomo dos fatos culturais foi claramente

    assinalado por Gramsci na seguinte passagem:

    ... a filosofia da prxis exclui ou no a histria tico-poltica, isto , reconhece ou no a realidade de um momento de hegemonia, d ou no importncia direo cultural e moral, julga ou no os fatos da superestrutura como aparncias? Pode-se dizer que no s a filosofia da prxis no exclui a histria tico-poltica, mas, ao contrrio, sua mais recente fase de desenvolvimento consiste precisamente na reivindicao do momento de hegemonia como essencial sua concepo estatal e valorizao do fato cultural, da atividade cultural, de uma frente cultural como necessria, ao lado

    das frentes meramente econmicas e polticas23

    .

    22 ENGELS, Carta a Joseph Bloch in MARX & ENGELS, Antologia Filosfica. Lisboa, Estampa, 1971, pp. 198 ss.

    23 GRAMSCI apud WERNECK SODR, Fundamentos do Materialismo Histrico. Rio

  • 21

    Em segundo lugar, embora Materialismo e Empiriocriticismo realize

    uma anlise aparentemente imanente do empiriocriticismo no dizer de Lenin,

    tomado em separado (vziatyi v otdielnosti), nos trs primeiros captulos

    iniciais, veremos ao considerar a segunda regra metodolgica que a prtica

    filosfica Leninista no se limita somente este aspecto. A partir do captulo

    IV Lenin, retomando uma tradio filosfica que remonta Engels que distinguia

    a ala esquerda e ala direita dos hegelianos24, formula de modo mais

    explcitos as relaes da filosofia com a poltica, distinguindo posies

    filosficas de esquerda e de direita em relao Kant. Dissemos de modo

    mais explicito, pois a relao da filosofia com a poltica permeia toda a

    obra. Como veremos mais adiante Lenin coloca a filosofia como uma luta

    poltica entre dois campos fundamentais (materialismo e idealismo).

    Este conceito de filosofia desenvolvido por Lenin foi formulado por

    Althusser, que, superando sua fase teoricista que reduzia a filosofia a uma

    epistemologia (Teoria da prtica terica), define, em junho de 1972, a

    filosofia como sendo em ltima instncia, luta de classe na teoria25.

    Faamos um rodeio necessrio a fim de explicitar mais

    detalhadamente esta tese, digamos, Leninista-Althusseriana, e,

    simultaneamente compreender mais precisamente o significado real da

    regra metodolgica leninista que privilegia o fazer terico (Setzen), na

    anlise dos sistemas filosficos que, como procuraremos mostrar no

    de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1968, pp. 21-22.

    24 Cf. ENGELS, Ludwig Feurhach e o Fim da Filosofia Clssica Alem in MARX &

    ENGELS, Obras Escolhidas, So Paulo, Alfa-Omega, vol. III, pp. 176-177.

    25 ALTHUSSER L., Resposta a John Lewis. Lisboa, Estampa, 1973, pg. 17.

  • 22

    pode ser confundida com uma anlise imanente de tipo estruturalista.

    somente aps haver demonstrado na abordagem da questo ontolgica

    fundamental (cap. I), na anlise da questo gnoseologica (cap. II), na

    considerao da ontologia da natureza (cap. III), no enfoque das relaes

    do empiriocriticismo com outras correntes filosficas e no seu

    desenvolvimento histrico (cap. IV), enfim nas questes filosf icas postas

    pela nova fsica (cap. V), em suma somente aps demonstrar que em

    todos esses passos existe uma batalha entre dois campos fundamentais -

    idealismo e materialismo - que Lenin pode concluir no item 4 do cap. VI,

    captulo este dedicado s relaes de oposio entre empiriocriticismo e

    materialismo histrico, a importncia fundamental do espirito de partido

    em filosofia.

    Em outros termos a tese da filosofia como sendo uma luta entre

    dois partidos fundamentais uma concluso que decorre das

    demonstraes efetuadas em desenvolvimentos anteriores da obra, vindo,

    portanto, no justo lugar na ordem expositiva. Podemos dizer que Lenin realiza

    uma verdadeira prtica terica, pois como diz Althusser falando da verdadeira

    cincia: ... podemos empregar a admirvel frmula de Espinosa, quando dizia

    que a cincia das meras concluses no cincia; que a verdadeira cincia

    das premissas (princpios) e das concluses, no movimento integral da

    demonstrao de sua necessidade26. Observemos, de passagem, que

    demonstraes destes gneros abundam nas obras cientficas de Marx, por

    exemplo, no Capital, aonde a compreenso da forma dinheiro do valor

    26 ALTHUSSER L., Prctica terica y Lucha Ideolgica, Cuademos de Pasado y Presente, n 4, pg. 69.

  • 23

    pressupe a teoria do valor trabalho, teoria esta que possibilita em seguida a

    compreenso das diferentes formas de valor, a saber, a fortuita ou simples, a

    extensiva ou total, a geral, para finalmente desembocar nas searas do

    fetichismo da mercadoria e do dinheiro.

    O papel fundamental na diviso da filosofia em dois partidos ou

    campos desempenhado principalmente, mas no somente, pela soluo

    dada ao problema ontolgico fundamental, que por isso mesmo, mas tambm

    por razes referentes justa disposio filosfica das questes, objeto do

    primeiro captulo, problema este que comporta duas solues:

    Deve-se conceder a primazia natureza, matria, ao fsico, ao universo exterior e considerar como elemento secundrio conscincia, o espirito, a sensao (a experincia segundo a terminologia divulgada dos nossos dias), o psquico, etc.., tal a questo capital que continua na realidade a dividir os filsofos em

    dois grandes campos27

    .

    O que est em jogo na filosofia , portanto, a luta entre as tendncias

    fundamentais (materialismo e idealismo) que se manifestam numa dupla

    dimenso: com as cincias e com a poltica. Trata-se, em ltima instncia de

    uma luta de classes na teoria relacionada com esses dois domnios.

    Explicitemos essas relaes.

    Primeiramente vejamos a luta entre materialismo e idealismo no que

    concerne ao conhecimento cientfico. Esta luta como procuraremos mostrar

    em nossa tese, percorre todo Materialismo e Empiriticismo, principalmente o

    capitulo V dedicado anlise filosfica da revoluo da fsica. Por ora

    consideremos, a titulo de ilustrao, a anlise de leninistas dessas posies

    27 LENIN, Materialismo e Empiriocriticismo, op. cit., pg. 302.

  • 24

    conflitantes relativamente a um problema ainda no resolvido pelas cincias.

    O materialismo coloca claramente este problema incitando, por isso mesmo,

    sua soluo e a novas investigaes experimentais28. A doutrina de Mach

    obscure esse problema, desservindo s cincias.

    Vejamos mais de perto este problema. Ele consiste na questo de

    saber at que ponto esto espalhadas as sensaes no mundo orgnico e

    inorgnico. Em outros termos trata-se da questo da origem das sensaes.

    Mach, aferrado s sensaes como dado primeiro confunde esta questo. Ele

    nos diz:

    ... a sensao deve aparecer imprevistamente a partir de um certo grau de complicao da matria ou deve existir, por assim dizer, nas prprias bases do edifcio. Esta questo, a nosso ver, errnea quanto ao fundo. Para ns, a matria no o dado primeiro. Este dado primeiro de preferncia representado pelos elementos (a que

    se chama sensaes num certo sentido bem determinado)29

    .

    Como vemos, a concepo de Mach relativamente ao dado primeiro

    que o impede de formular claramente a questo em causa. A concepo

    Leninista, ao contrrio, serve as cincias.

    ... de pleno acordo com as cincias da natureza considera a matria como o dado primeiro, e a conscincia, o pensamento, a sensao

    como o dado secundrio, porque a sensao s est ligada, na sua forma mais ntida, a formas superiores de matria (a matria orgnica), e apenas se pode supor nos fundamentos do prprio edifcio da matria a existncia de uma propriedade anloga sensao

    30.

    Atravs da anlise desse problema, Lenin nos mostra como o

    materialismo dialtico relaciona-se com as cincias, incentivando as

    28 LENIN, op. cit., pg. 37.

    29 Mach apud LENIN, op. cit, pg. 36.

    30 Id., ib..

  • 25

    investigaes experimentais no sentido de solucionar os problemas ainda

    pendentes. Em sentido contrrio trabalha o idealismo, obscurecendo os

    problemas e desviando as cincias das investigaes pertinentes.

    Althusser tratando da relao da filosofia com as cincias considera,

    em A Filosofia como arma da revoluo, esta relao como o aspecto

    principal da luta filosfica. Com efeito, ele nos diz:

    O que, em ltima instncia, est em jogo na luta filosfica a luta pela hegemonia entre as duas grandes tendncias das concepes do mundo (materialista, idealista). O principal campo de batalha desta luta o conhecimento cientfico: a favor ou contra ele. Assim, pois, a batalha filosfica n 1 se d na fronteira entre o cientfico e o

    ideolgico. As filosofias idealistas que exploram as cincias lutam aqui contra as filosofias materialistas que servem as cincias

    31.

    Parece-nos, ao contrrio, como o prprio subttulo de Materialismo e

    Empiriocriticismo indica (notas crticas sobre uma filosofia reacionria), que se

    o aspecto poltico no o principal pelo menos equivalente em importncia

    relao filosofia - cincias. Concebendo o aspecto poltico como principal

    compreende-se, em grande parte porque Lenin mostra exaustivamente, na

    obra em questo, principalmente no captulo IV, a relao de parentesco

    terico seno de identidade dos empiriocriticistas com os imanentes, que so

    reacionrios explicitamente assumidos. A esse respeito Lenin observa:

    ... os imanentes so os reacionrios mais calejados, pregadores comprovados do fidesmo, conseqentes no seu obscurantismo. No

    se encontra nem um entre eles, que no tenha abertamente consagrados os seus trabalhos tericos, mais completos sobre a gnoseologia defesa da religio e justificao desta ou daquela

    sobrevivncia da Idade Mdia32

    .

    31 ALTHUSSER, L., La Filosofia: Arma de Ia Revolucion in Para leer El capital. Buenos Aires, Siglo Veintiuno, pg. 9, grifo de Althusser.

    32 LENIN, op. cit., pp. 189-190.

  • 26

    Alm das relaes com os imanentes, Lenin trata das relaes de

    proximidade e/ou identidade entre os empiriocriticistas e a filosofia de

    Berkeley, Hume, Kant, etc.. Este procedimento metodolgico constitui o

    segundo preceito da prtica filosfica leninista, ou seja, julga-se os filsofos

    tambm pelas pessoas com quem compartilham as mesmas idias. Em outros

    termos esta regra estipula a necessidade de considerar, na anlise filosfica

    as relaes de parentesco, identidade, ou filiaes tericas entre os diferentes

    filsofos. baseado neste preceito que Lenin demonstra no captulo 1 a

    repetio textual de Berkeley efetuada por Mach, a repetio do esse est

    percipi, ou seja, a reduo do ser as sensaes, sendo a matria considerada

    como um puro smbolo abstrato33.

    Voltemos agora questo do vnculo entre filosofa e poltica,

    ponto essencial para uma adequada compreenso da primeira regra

    metodolgica. A este respeito remetemos o leitor a brilhante

    demonstrao dos efeitos cientficos, e, principalmente dos efeitos

    polticos das teses filosficas que Althusser desenvolve em Resposta a

    John Lewis34.

    Nosso objetivo abordar em nossa tese, alm das relaes da

    filosofia com as cincias, o campo de batalha especificamente poltico da

    filosofia. De momento, objetivando alicerar o predomnio da luta poltica,

    que est contido na definio da filosofia como sendo, em ltima

    instncia, a luta de classes na teoria vejamos, a ttulo de ilustrao, mas

    33 LENIN, op. cit., pg. 34.

    34 ALTHUSSER, L., Resposta a John Lews, op. cit., pp. 47 ss.

  • 27

    no de modo to breve, pois afigura-se-nos foroso evidenciar na relao

    filosofia - poltica os efeitos polticos das teses filosficas. Nesse sentido

    esboaremos em anexo alguns traos que nos parecem fundamentais do

    humanismo terico e subseqentemente consideraremos alguns dos seus

    efeitos polticos.

    At aqui enfocamos as duas primeiras regras metodolgicas

    Leninistas de anlise de sistemas filosficos. Detivemo-nos mais na

    primeira a fim de evitar possveis desvios, que poderiam advir de sua

    descontextualizao, quer seja, considerando-a como prescrevendo uma

    anlise puramente imanente de tipo estruturalista, isto , interpretando-a

    como certa ideologia estruturalista que durante muito tempo foi dominante

    do Departamento de Filosofia da USP, quer seja, os desvios derivados de

    leituras economicistas e/ou mecanicistas do marxismo.

    Esclarecido esse ponto, acrescentemos que simultaneamente

    a formulao das duas primeiras regras, traamos alguns parmetros que

    devero orientar nossa tese, na medida em que baseando-se no

    instrumental terico Leninista-Althusseriano privilegiaremos a relao da

    filosofia com a poltica e com as cincias, na nossa anlise de

    Materialismo e Empiriocriticismo.

    Finalmente, a terceira regra metodolgica refere-se ao

    desenvolvimento dos sistemas filosficos uma vez que o

    empiriocriticismo ,... como qualquer outra tendncia ideolgica, uma

    coisa viva em dias de crescimento, em vias de evoluo, e o fato do

    seu crescimento num dado sentido permitir, melhor que longos

  • 28

    raciocnios, elucidar a questo fundamental da verdadeira natureza

    desta filosofia35. Mas precisamente deve-se julgar os filsofos por

    aquilo que ensinam e ensinaram seus alunos e discpulos, ou seja,

    considerar seu desenvolvimento como corrente filosfica.

    E este o ltimo preceito que Lenin enuncia e aplica no item

    4 do captulo IV. Nesta perspectiva antes de encetar a anlise do

    sentido que evoluiu o empiriocriticismo, Lenin efetua a seguinte

    especificao:

    Mach e Avenarius disseram tudo que era essencial h mais de vinte anos. Este lapso de tempo permitiu que nos apercebssemos da maneira como estes chefes foram compreendidos por aqueles que os quiseram compreender e que eles prprios consideram (Mach pelo menos, que sobreviveu ao seu confrade) como continuadores da sua obra. No indicaremos para sermos exatos, seno aqueles

    que se dizem os alunos (os discpulos) de Mach e de Avenarius, e aos quais Mach reconhece esta qualidade. Teremos assim uma

    corrente filosfica, e no uma coleo de casos literrios36

    .

    Concluiremos aqui nossa reflexo deixando para outra ocasio

    a anlise que Lenin desenvolve de Hans Cornlius, Hans Kleinpeter,

    Tziehen e P. Carus, todos eles, discpulos reconhecidos de Mach e

    Avenrius, todos eles idealistas, alguns beirando as raias do

    obscurantismo religioso como, por exemplo, P. Carus. Enfim a

    considerao do desenvolvimento de uma corrente filosfica essencial

    para elucidar a questo fundamental da verdadeira natureza desta

    filosofia.

    35 LENIN op. cit., pg. 194.

    36 LENIN, op. cit., pp. 194-195, grifo de Lenin.

  • 29

    CAPTULO II

    A ILUSO DE NOVIDADE: COMO CERTOS MARXISTAS REFUTAVAM O

    MATERIALISMO EM 1908 E CERTOS IDEALISTAS O FAZIAM EM 1710

    Lenin desfaz, na abertura de Materialismo e Empiriocriticismo37, a

    iluso de novidade dos discpulos russos de Mach em relao ao

    empiriocriticismo recorrendo Histria da Filosofia. Este recurso Histria da

    Filosofia, principalmente a Berkeley, no casual, mas necessrio na

    introduo da obra, pois como assinala Lenin:

    Teremos por mais de uma vez, no desenvolvimento da nossa exposio, de nos referir a Berkeley e a corrente que este fez nascer na Filosofia, porque os discpulos de Mach apresentam erradamente tanto a atitude de Mach em relao a Berkeley como a essncia da

    filosofia deste ltimo38

    .

    Podemos dizer que a introduo da obra tem uma dupla funo:

    desfazer a iluso de novidade dos discpulos de Mach no que tange ao

    empiriocriticismo e delinear, num esforo preambular necessrio, alguns temas

    fundamentais da obra. Esta dupla funo realizada atravs da demonstrao

    da seguinte tese, que Lenin enuncia na concluso dessa abertura:

    os discpulos modernos de Mach no apresentaram contra os materialistas nenhum, mas literalmente nenhum, argumento que no

    se tivesse podido encontrar j no Bispo Berkeley39

    .

    Lenin inicia a demonstrao dessa tese abordando o problema

    37 LENIN, Materialismo e Empirocriticismo. Lisboa, Estampa, 1975.

    38 Id., op. cit., pg. 16.

  • 30

    ontolgico fundamental, isto , a questo da relao entre o ser e o

    pensamento, entre a matria e a conscincia. O primeiro passo dessa

    demonstrao consiste em formular o argumento dos discpulos de Mach

    contra o materialismo. Vejamos esta compacta enunciao:

    Os materialistas, dizem-nos, reconhecem o impensvel e o incognoscvel, a coisa em si, a matria colocada para alm da experincia, para alm do nosso conhecimento. Caem num verdadeiro misticismo admitindo qualquer coisa para alm, que est situada fora dos limites da experincia e do conhecimento. Quando declararam que a matria agindo sobre os rgos dos nossos sentidos suscita sensaes, os materialistas baseiam-se no desconhecido, no nada, pois que eles mesmos, dizem, reconhecem os nossos sentidos como a nica fonte do conhecimento. Os

    materialista caem no kantismo...40

    .

    Aparentemente essa argumentao visa to somente Plekanov, que

    admite a existncia da coisa em si. Na realidade dirigi-se contra o materialismo

    em geral, pois, todos materialistas admitem a existncia da coisa em si,

    somente que esta conceituada no no sentido Kantiano, mas Leninista, e,

    mister recorrer a Berkeley para desfazer a pretensa novidade desses

    enunciados. A anlise leninista do Tratado sobre os Princpios do

    Conhecimento Humano considera a soluo de Berkeley ao problema

    ontolgico fundamental e sua polemica com os materialistas. Reproduziremos

    este recurso leninista a Berkeley.

    No pargrafo 1 do Tratado est o ponto de partida de Berkeley, que

    consiste nas

    idias (1) atualmente impressas nos sentidos, ou (2) percebidas considerando as paixes e operaes do esprito, ou finalmente (3) formadas com auxlio da memria e da imaginao, compondo, dividindo ou simplesmente representando as originariamente apreendidas pelo modo acima referido.

    39 Id., op. cit., pg. 30.

    40 Id., op. cit., pg. 16.

  • 31

    Desse modo as coisas consistem em colees de idias.

    Por exemplo, um certo sabor, cheiro, cor forma e consistncia observados juntamente so tidos como uma coisa, significada pelo nome ma. Outras colees de idias constituem uma pedra, uma rvore, um livro etc., e, como so agradveis ou desagradveis, excitam as paixes de amor, alegria, repugnncia, tristeza e assim

    por diante41

    .

    No pargrafo 2, Berkeley introduz a noo de Eu, de alma. Alm das

    idias ou objetos do conhecimento existe aquilo que as percebe; o eu ou alma.

    No pargrafo 3, aparece a clebre mxima, Esse est percipi, tese

    fundamental do idealismo subjetivo. A partir da, j no pargrafo 4, Berkeley

    investe contra os materialistas e contra a opinio do senso comum da maioria

    da humanidade, que admitem a existncia das coisas independentemente das

    sensaes. Lenin cita na ntegra este pargrafo, convindo, pois, arrol-lo:

    Entre os homens prevalece a opinio singular de que as casas, montanhas, rios, todos os objetos sensveis tm uma existncia natural ou real, distinta da sua perceptibilidade pelo esprito. Mas, por mais segura aquiescncia que este princpio tenha tido no mundo, quem tiver coragem de discuti-lo compreender, se no me engano, que envolve manifesta contradio. Pois que so os objetos mencionados seno coisas percebidas pelos sentidos? E que percebemos ns alm das nossas idias ou sensaes? E no repugna admitir que alguma ou um conjunto delas possa existir

    impercebido?42

    .

    Desse modo, para Berkeley, absurdo ir alm das sensaes e idias,

    absurdo admitir a existncia das coisas exteriores a ns, por detrs dos

    dados dos sentidos no h, como julgam os materialistas, a matria. Berkeley

    ironiza a posio materialista dizendo:

    Podem, se assim o quiserem, usar a palavra matria onde outros

    41 BERKELEY, Tratado sobre os Princpios do Conhecimento Humano. So Paulo, Abril, 1973, 1.

    42 BERKELEY, op. cit., 4.

  • 32

    empregam a palavra nada43

    .

    Depreende-se dessa compulso dos textos de Berkeley, nos diz Lenin,

    que

    os argumentos de Bazarov contra Plekanov sobre a existncia possvel das coisas exteriores a ns, sem ao sobre os nossos sentidos, no diferem em nada, como o leitor v, dos argumentos de

    Berkeley contra os materialistas...44

    .

    Lenin refora ainda que a noo de coisa em si no uma noo

    exclusivamente kantiana, tem sido j elaborada por Berkeley, como podemos

    verificar recorrendo ao pargrafo 24 do Tratado onde o autor sublinha que a

    opinio que ele refuta (a dos materialistas) reconhece a existncia absoluta

    das coisas sensveis em si (objects in themselves) ou exteriores ao esprito45.

    As longas citaes de Berkeley, arroladas por Lenin, visam no

    somente desfazer a iluso de novidade do empiriocriticismo, partilhada pelos

    discpulos russos de Mach, mas tambm, como dissemos anteriormente,

    delinear temas essenciais a compreenso da obra. Desse modo, ao tratar da

    soluo que Mach d ao problema ontolgico fundamental relao entre o ser

    e o pensamento , no captulo primeiro, Lenin nos remete a Berkeley

    constatando um ponto de partida comum a Mach: ambos partem das

    sensaes como dado fundamental e no, com faz o materialismo, do universo

    exterior para as sensaes.

    Lenin prossegue mostrando que a eliminao das idias de substncia

    e matria, no tem nada de novo, j tendo sido efetuada por Berkeley. Assim

    no pargrafo 37, Berkeley sentencia:

    43 BERKELEY apud LENIN, op. cit., pg.19.

    44 LENIN, op. cit., pg.18.

    45 BERKELEY, op. cit. 24.

  • 33

    Se se entende a palavra substncia no sentido vulgar combinao de qualidades sensveis como extenso, solidez, peso e outras no podem acusar-me de neg-la. Mas, tomada no sentido filosfico suporte de acidentes ou qualidades fora do esprito , ento concordo que a rejeitei, se pode falar-se em rejeitar o que nunca teve

    existncia nem na imaginao46

    .

    Uma outra pretensa novidade dos discpulos de Mach investir contra

    a duplicao do mundo efetuada pelos materialistas. Lenin desfaz essa iluso

    de novidade compulsando a seguinte passagem de Berkeley:

    O nosso conhecimento foi obscurecido, perturbado, desviado at ao excesso na via dos erros mais perigosos pela hiptese da dupla existncia das coisas sensveis, particularmente da existncia inteligvel ou da existncia na inteligncia, por um lado, e por outro

    lado, da existncia real, exterior inteligncia47

    .

    O princpio da Economia do Pensamento e a Filosofia como concepo

    do mundo fundamentada no princpio do menor esforo, enunciados,

    respectivamente por Mach e Avenarius, j se encontram na obra de Berkeley,

    como depreende-se do pargrafo 96 do Tratado:

    Expulsa da natureza a matria, varrem-se muitas noes mpias e cticas e um nmero incrvel de disputas e enigmas, que foram espinhos no lado de telogos e filsofos, e deram humanidade tanta obra intil que se os nossos argumentos em contrrio no forem demonstrativos (como a mim me parecem), estou certo de que os amigos do conhecimento, paz e religio tm razo para desejar

    que o fossem48

    .

    Encontramos ainda uma analogia, para no dizer identidade, entre a

    manobra dos positivistas modernos, que tentam apresentar sua filosofia como

    aceitvel pelo senso comum e pelas cincias e a manobra berkeleyana

    efetuada no pargrafo 34, onde respondendo a acusao de solipsismo o

    Bispo Berkeley no diz que sua filosofia No nos priva de coisa alguma na

    46 BERKELEY, op. cit. 37.

    47 Berkeley apud LENIN, op. cit., pg. 20.

    48 BERKELEY, op. cit., 96.

  • 34

    natureza. Mais ainda, em outro passo, Berkeley afirma:

    No contexto de maneira nenhuma a existncia de uma coisa, qualquer que seja, que possamos conhecer por meio dos nossos sentidos ou do nosso entendimento. Que as coisas que vejo com os meus olhos e toco com as minhas mos existem, que existem na realidade, no tenho disso menor dvida, A nica coisa que negamos a existncia a que os Filosfos chamam matria ou substncia

    material49

    .

    Outra teoria que remonta a Berkeley o emprio-simbolismo do

    positivista moderno P. Iuchkevitch. Anotemos que as concepes referentes a

    causalidade, bem como o princpio da economia do pensamento sero tratados

    no terceiro captulo de Materialismo e Empiriocriticismo, aonde Lenin ope a

    ontologia da natureza marxista s concepes idealistas. A concepo de

    causalidade de Berkeley, que ser retomada pelos emprio-simbolistas,

    aparece claramente exposta no pargrafo 66 do Tratado, onde se l:

    ... as coisas quando abrangidas na noo de causa cooperadora ou concorrente na produo dos efeitos so inexplicveis e conduzem a absurdos grandes; e, quando vistas apenas como marcas ou sinais para informao nossa, se explicam simplesmente e tm uso prprio e bvio; procurar eses sinais institudos pelo Autor da Natureza, tal deve ser o esforo do filsofo natural; e no o pretender explicar

    coisas por causas corpreas...50

    .

    Lenin, repitamos, considerar no terceiro captulo a questo da

    causalidade. Por hora, ele somente demonstra-nos que de novidade a

    concepo emprio-simbolista deste problema no tem nada, tratando-se de

    mera adaptao da concepo de Berkeley.

    Concluindo esse retorno a Berkeley, Lenin considera mais dois

    aspectos de suas concepes. Primeiramente a questo da distino entre

    realidade e fico, e, em segundo lugar, a definio das tendncias

    49 Berkeley apud LENIN, op. cit., pg. 21.

    50 BERKELEY, op. cit., 66

  • 35

    fundamentais da Filosofia.

    No que se refere ao primeiro aspecto, Berkeley, recusando-se a

    reconhecer a existncia das coisas fora da conscincia, relaciona o conceito de

    real percepo de sensaes idnticas por vrias pessoas simultaneamente.

    Assim o modo de ajuizar da realidade da transformao da gua em vinho

    se todos os que estavam mesa tivessem visto o vinho, se lhe tivessem sentido o cheiro, se tivessem bebido e lhe tivessem sentido o gosto, se tivessem experimentado o seu efeito, a realidade desse

    vinho estaria para mim fora de dvida51

    .

    No que concerne a definio das tendncias fundamentais da filosofia,

    Berkeley formula, em Trs Dilogos entre Hilas e Filonous52, da seguinte forma

    a diferena entre sua concepo e a dos materialistas:

    Afirmo como vs (os materialistas) que se alguma coisa atua de forma sobre ns, temos de admitir foras existindo exteriormente (a ns), foras pertencentes a um ser diferente de ns. O que nos separa aqui o problema de saber de que ordem esse ser poderoso. Afirmo que o esprito; vs, que a matria ou no sei que (posso acrescentar que tambm no o sabeis) terceira

    natureza53

    .

    Esta definio de Berkeley pertinente quando se trata de idealismo

    objetivo, que reconhece uma realidade alm da conscincia e das sensaes,

    mas de carter espiritual. A definio de Engels, consoante a leitura de Lenin

    de Ludwig Feuerbach, mais ampla, aplicando-se tanto ao idealismo objetivo

    como ao subjetivo. Engels divide, neste livro, a filosofia em dois grandes

    campos: os materialistas que consideram a matria, a natureza como

    primordial, sendo a conscincia derivada, e, os idealistas que consideram o

    inverso. Lenin termina, dessa forma, o recurso a Berkeley nessa abertura, que

    51 Berkeley apud LENIN, op. cit., pg. 24.

    52 Cf. BERKELEY, Trs dilogos entre Hilas e Filonous em oposio aos cticos e ateus, So Paulo, Abril, 1973, pp. 51-125.

  • 36

    objetivou, como dissemos anteriormente, desfazer a iluso de novidade

    compartilhada por Mach e seus discpulos, bem como delinear alguns temas

    fundamentais da obra. Os demais momentos desta introduo consistiro em

    considerar Hume e depois Diderot como ilustraes das tendncias

    fundamentais da filosofia, que sero tratadas constantemente em toda obra54.

    A ttulo de concluso, e correndo o risco de ser redundante, frisemos

    que a tarefa de desfazer a iluso de novidade dos discpulos russos em relao

    ao empiriocriticismo seguiu uma marcha necessria. Foi mister recorrer a

    longas citaes da obra de Berkeley para comprovar textualmente como,

    parafraseando o ttulo da introduo, certos idealistas refutavam o materialismo

    em 1710, e, certos marxistas o fazem em 1908.

    53 Berkeley apud LENIN, op. cit., pp. 24-25.

    54 LENIN, op. cit., pp. 25-26.

  • 37

    CAPTULO III

    O PROBLEMA ONTOLGICO FUNDAMENTAL: O SER E A CONSCINCIA

    1 As sensaes e os complexos de sensaes

    O problema central, atacado por Lenin, no captulo primeiro a

    questo ontolgica fundamental, a relao entre o ser e o pensamento. O

    captulo inicia-se (item I) por uma anlise das concepes de Mach em 1872 e

    de Avenarius em 1876 acerca desse problema. No item 2, desse primeiro

    captulo, tratar-se- das posteriores modificaes que esses autores efetuaram

    em suas concepes, em particular da introduo do termo elementos por

    Mach.

    Se Lenin recorre, neste primeiro item, Mecnica55, que data de 1883,

    e a Conhecimento e Erro56, trabalho recapitulativo e final de Mach, somente

    na medida em que servem para esclarecer as posies filosficas iniciais de

    Mach (1872).

    Lenin considera, primeiramente, que os dados fundamentais para Mach

    no so as coisas ou os corpos mas as cores, os sons, as presses, os

    espaos, as duraes...57, numa palavra, as sensaes. Em seguida observa-

    se uma pequena digresso de Lenin acerca da Teoria do Reflexo, cuja

    abordagem, entretanto, remetida para a devida ocasio e lugar58, ou seja,

    55 March apud LENIN, op. cit., pg. 24.

    56 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 30.

    57 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 31.

    58 LENIN, op. cit., pg. 33.

  • 38

    para o segundo captulo. No momento trata-se das duas vias fundamentais de

    filosofia no que concerne ao problema ontolgico fundamental, isto , ser

    preciso partir das coisas para a sensao e o pensamento? Ou ser melhor ir

    do pensamento e da sensao para as coisas?59. A primeira perspectiva

    constitui o materialismo, enquanto que a segunda, escolhida por Mach, a via

    idealista.

    considerando essa problemtica que se impe um retorno as fontes

    de Mach. Ambos, Berkeley e Mach, consideram que, sendo as sensaes os

    dados fundamentais, os corpos so complexos de sensaes, ou, como dizia

    Berkeley combinao de sensaes. Segue-se dessas premissas o esse est

    percipi, e, conseqentemente no se pode admitir a existncia das coisas e de

    outros homens, mas somente de si prprio, puro solipsismo.

    Lenin considera o idealismo subjetivo, o solipsismo, como uma

    decorrncia lgica de considerar-se as sensaes e no as coisas como o

    ponto de partida. Lenin assinala, vrias vezes, esses pontos de partida

    diametralmente opostos, essas duas vias fundamentais da filosofia. A ttulo de

    exemplo ilustrativo arrolaremos a seguinte passagem:

    ... preciso substituir a tendncia da vossa filosofia (que consiste em partir das sensaes para o universo exterior) pela tendncia materialista (que consiste em partir do universo exterior para as

    sensaes) ...60

    .

    As longas citaes de Berkeley efetuadas na abertura justificam-se

    plenamente, elas evidenciam que no s os discpulos russos de Mach, mas

    tambm ele prprio, so vtimas da iluso de novidade. O esse est percipi de

    Berkeley consiste em reduzir o ser percepo, ou, como faz Mach, em

    59 Id., ib..

  • 39

    declarar sensao tudo que , os verdadeiros elementos do mundo. Nesse

    sentido a doutrina de Mach ... apenas idealismo subjetivo, cpia da teoria de

    Berkeley61.

    Dissemos nesse sentido, pois Lenin no ignora as diferenas,

    absolutamente secundrias, de Mach em relao a Berkeley. A ttulo de

    exemplo, no pargrafo 2 do Tratado Berkeley considera que alm dos objetos

    do conhecimento existe aquilo que os percebe: a inteligncia, o esprito, a

    alma ou o Eu, enquanto que Mach, seguindo Hume, considera o Eu, o sujeito,

    um feixe de sensaes.

    Lenin insiste em evidenciar este elemento fundamental da filosofia de

    Mach, o idealismo subjetivo, recorrendo a seguinte passagem da anlise das

    sensaes:

    Temos diante de ns um corpo pontiagudo S. Quando tocamos a ponta, pondo-a em contato com o nosso corpo, sentimos uma picada. Podemos ver a ponta sem experimentar a picada. Mas quando experimentamos a picada, encontramos a ponta. Assim, a ponta visvel o elemento constante, e a picada um elemento acidental que pode, segundo as circunstncias, estar ou no estar ligado ao elemento constante. A freqncia de fenmenos anlogos habitua, finalmente, a considerar todas as propriedades dos corpos como aes emanado desses elementos constantes e atingindo o nosso Eu por intermdio do nosso corpo, aes a que chamamos

    sensaes62

    .

    Aps esta caracterizao dos elementos constantes (coisas) e das

    sensaes, Mach empreende a eliminao dos primeiros:

    Mas, por isso mesmo, os elementos constantes perdem todo o seu contedo sensvel e tornam-se puros smbolos de pensamento

    63.

    A argumentao de Lenin relativamente a essas passagens de Mach

    60 LENIN, op. cit., pg. 46.

    61 LENIN, op. cit., pg. 33.

    62 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 33.

  • 40

    desenvolve-se em trs planos. O primeiro ponto que Lenin, contrariamente a

    Mach, se apia nas cincias da natureza e no materialismo espontneo da

    humanidade:

    os homens habituam-se a colocar-se no ponto de vista do materialismo, a ver nas sensaes os resultados da ao dos corpos, das coisas, da natureza, sobre os nossos rgos dos sentidos. Este hbito nefasto para as filosofias idealistas (adotado por toda a humanidade e por todas as cincias da natureza!) desagrada muito a

    Mach64

    .

    O segundo plano consiste em mostrar a iluso de novidade da filosofia

    de Mach comparando-a com Berkeley. Lenin nos diz, a respeito da

    considerao de Mach acerca dos elementos constantes como puros smbolos

    do pensamento: repetio textual dos ditos de Berkeley, segundo o qual a

    matria um puro smbolo abstrato65.

    Finalmente, o terceiro plano o argumento de Mach em si mesmo e de

    sua cada no idealismo subjetivo.

    [Mach] no reconhece que a realidade objetiva existindo independentemente de ns muito simplesmente o nosso contedo sensvel, s lhe resta o Eu puramente abstrato, o Eu com uma maiscula, e em itlico, o cravo em delrio imaginando-se nico no mundo. Se o contedo sensvel das nossas sensaes no o mundo exterior, pois porque no existe nada fora desse Eu

    completamente nu...66

    .

    Desse modo, como Lenin procurou evidenciar, analisando a passagem,

    acima arrolada, da Anlise das sensaes, o solipsismo de Mach uma

    repetio do de Berkeley. O mundo s feito de nossas sensaes, tornando-

    se intil a hiptese de elementos constantes, isto , das coisas, da matria.

    Lenin considera inapropriado dizer nossas sensaes, antes preciso dizer

    63 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 34.

    64 LENIN, op. cit., pg. 33.

    65 LENIN, op. cit., pg. 34.

  • 41

    que para Mach o mundo feito s das minhas sensaes. E isto porque

    se a hiptese do mundo exterior intil, a da agulha existindo independentemente de mim e de uma interao entre o meu corpo e a ponta da agulha, se toda essa hiptese verdadeiramente intil e suprflua, , em primeiro lugar, intil e suprfluo por a hiptese da existncia dos outros homens. Apenas Eu existo, enquanto que os outros homens assim como todo o mundo exterior caem na categoria

    dos elementos constantes inteis67

    .

    Lenin evidencia, dessa forma, a conexo lgica entre as premissas

    berkeleyanas de Mach e o solipsismo. Entretanto Mach vacila na manuteno

    do idealismo subjetivo, como Lenin ilustra recorrendo a seguinte passagem da

    Anlise das Sensaes:

    Se eu pudesse ou se algum pudesse, com a ajuda dos diversos processos fsicos e qumicos, observar o meu crebro na altura em que experimento uma sensao, seria possvel determinar a que processos que se efetuam no organismo esto ligadas estas ou

    aquelas sensaes...68

    .

    A hiptese de que as nossas sensaes esto ligadas determinados

    processos que se do no organismo humano em particular no crebro

    formulada do ponto de vista das cincias da natureza. Lenin no descarta, mas

    aponta a contradio entre as premissas Berkeleyanas de Mach e tal hiptese:

    Comea-se por decretar que as sensaes so os verdadeiros elementos do mundo, e constri-se nesta base um berkeleysmo original; depois introduzem-se dissimuladamente idias opostas, segundo as quais as sensaes esto ligadas a determinados

    processos que se efetuam no organismo69

    .

    Lenin, antes de concluir essa primeira anlise de Mach, relativamente

    ao problema ontolgico fundamental, aborda um problema ainda no resolvido

    pelas cincias. O materialismo coloca claramente este problema incitando, por

    66 Id., ib..

    67 Id., ib..

    68 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 35.

    69 LENIN, op. cit., pg. 35.

  • 42

    isso mesmo, sua soluo e a novas investigaes experimentais70. No

    repetiremos aqui, a explicitao desse problema e da atitude de materialismo

    dialtico em relao ele.

    Lenin conclui, finalmente, esta primeira anlise de Mach enfocando a

    seguinte passagem de Conhecimento e Erro:

    Enquanto no existe nenhuma dificuldade em construir (aufzubauen) qualquer elemento fsico com sensaes, quer dizer, com elementos psquicos, absolutamente impossvel imaginar-se (Ist Keine Moglichkeit Abzusehen) a possibilidade de se representar (Darstellen) um estado psquico com a ajuda dos elementos, quer dizer, com a ajuda de massas e de movimentos, em uso na fsica

    moderna...71

    .

    O que Lenin ressalta nesta passagem o evidente idealismo de Mach,

    apesar de j utilizar uma terminologia nova (a palavra elementos, cujo

    significado ser esmiuado no item II deste captulo). Esse idealismo est em

    admitir que se pode construir elementos fsicos com sensaes, com

    elementos psquicos. Tais construes, observa Lenin, so

    certamente fceis, porque so puramente verbais, porque so apenas escolstica oca servindo para introduzir fraudulentamente o

    fidesmo72

    .

    Aps esta anlise das concepes iniciais de Mach, Lenin enfoca a

    primeira obra de Avenarius, publicada em 1876, a saber, A Filosofia,

    Concepo do Mundo Segundo o Princpio do Menor Esforo. Prolegmenos

    Crtica da Experincia Pura73. O idealismo dessa obra reconhecido pelo

    prprio Avenarius, que em a Concepo Humana do Mundo74 escreve:

    70 LENIN, op. cit., pg. 37.

    71 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 37.

    72 LENIN, op. cit., pg. 38.

    73 Apud LENIN, op. cit., pg. 31.

    74 Apud LENIN, op. cit., pg. 32.

  • 43

    o leitor do meu primeiro trabalho sistemtico, A filosofia, etc, pensar imediatamente que vou tentar tratar os problemas que comporta a crtica da experincia pura partindo antes de mais nada do ponto de vista idealista, mas a esterilidade do idealismo filosfico fez-me duvidar de que meu primeiro caminho fosse o bom

    caminho75

    .

    Lenin observa, antes de adentrar nos meandros da primeira obra de

    Avenarius, que o idealismo desta geralmente admitido na literatura filosfica.

    Lenin ilustra esta observao recorrendo a Cawelaert, autor francs que

    qualificava o ponto de vista de Avenarius, tal como aparece nos Prolegmenos,

    de idealismo monista . Entre os autores alemes Lenin apela para o

    testemunho de Rudolf Willy, discpulo de Avenarius, que considera que

    na sua juventude e sobretudo na sua primeira obra de 1876, Avenarius estava inteiramente subjugado (ganz im banne) por aquilo

    a que se chama o idealismo gnosiolgico76

    .

    Com efeito, prossegue Lenin, o idealismo dos Prolegmenos,

    evidencia-se quando consideramos suas formulaes explcitas. Nele

    Avenarius sentencia que s a sensao pode ser concebida como existente77.

    No pargrafo 116 da obra em questo, Avenarius reduz o ser a sensao:

    Reconhecemos que o ser (das selende) uma substncia dotada de sensibilidade; retirada a substncia... Resta a sensao: o ser ser, ento, concebido como uma sensao desprovida de qualquer

    substrato estranho sensao (nichts empfindungsloses)78

    .

    Aps comprovar compulsando o prprio texto do autor, a concepo

    idealista do primeiro Avenarius, Lenin cita uma longa passagem da obra em

    questo, onde o autor investe contra a concepo materialista de sensao

    como ligao da conscincia com o mundo exterior, como transformao da

    75 Avenarius apud LENIN, op. cit., pp. 38-39.

    76 Willy apud LENIN, op. cit., pg. 39.

    77 Avenarius apud LENIN, op. cit., pg. 39.

    78 Avenarius apud LENIN, op. cit., pg. 39.

  • 44

    excitao num fato de conscincia, considerando-a, ao invs disso, como o

    nico dado existente, o que lembra, de imediato, Berkeley. Esta longa citao,

    nos diz Lenin, proposital para que o leitor possa ver verdadeiramente de que

    pobres sofismas se serve a filosofia empiriocriticista moderna79. Antes de

    desmacarar o sofisma de Avenarius, Lenin ope a ele a concepo de

    Bogdanov, quando este era materialista, e escrevia a respeito das sensaes:

    Desde a antigidade at os nossos dias, o costume, em psicologia descritiva, consiste em dividir os fatos de conscincia em trs grupos: as sensaes e as representaes, os sentimentos, os impulsos... O primeiro grupo comporta as imagens dos fenmenos do mundo exterior ou interior, tomadas em si mesmas pela conscincia... Semelhante imagem chamada sensao quando diretamente suscitada, por meio dos rgos dos sentidos, por um fenmeno exterior correspondente. Um pouco mais adiante Bogdanov precisa: a sensao... surge na conscincia a seguir a um impulso do meio exterior, transmitido pelos rgos dos sentidos. Ou ainda em cada momento do processo da sensao, a energia da excitao exterior

    transforma-se num fato da conscincia80

    .

    baseado nesta concepo materialista da sensao como

    transformao da energia da excitao exterior num fato de conscincia,

    transformao esta observada milhares de vezes por cada pessoa e

    efetivamente observada a cada instante, que se pode desmascarar o sofisma

    Avenarius, na longa passagem citada por Lenin, que consiste em considerar

    a sensao no como um lao entre a conscincia e o mundo exterior, mas como um tabique, como uma parede separando a conscincia do mundo exterior; no como a imagem de um fenmeno exterior correspondente sensao, mas como o nico

    dado existente81

    .

    Mais ainda, o sofisma de Avenarius baseia-se tambm no fato da

    cincias psicolgicas de ento possurem um conhecimento insuficiente das

    79 LENIN, op. cit., pg. 40.

    80 Bogdanov apud LENIN, op. cit., pg. 41.

    81 LENIN, op. cit., pp. 41-42.

  • 45

    condies das ligaes observadas entre a sensao e a matria organizada,

    fato este que leva Avenarius a admitir somente a existncia da sensao.

    Antes de passarmos a concluso deste primeiro item, observemos que

    a questo gnosiolgica, a questo da considerao da sensao como reflexo,

    no constitui para Lenin, consoante a leitura que Dominique Lecourt faz de

    Materialismo e Empiriocriticismo82, uma questo propriamente filosfica, mas

    sim da alada das cincias psicofisiolgicas e da cincia da histria

    (Materialismo Histrico), pertencendo regio da histria que tem por objeto o

    processo de produo de conhecimentos. Lecourt fundamenta esta tese

    arrolando a seguinte passagem de Lenin:

    Uma coisa saber como que, com a ajuda dos diferentes rgos dos sentidos, o homem percebe o espao e como que durante um longo desenvolvimento histrico, se forma a partir das percepes, a idia abstrata de espao; outra coisa saber se uma realidade objetiva, independente da humanidade, corresponde a essas percepes e a essas idias humanas. Esta ltima questo, se bem que seja a nica questo filosfica propriamente dita, no foi notada nela por Bogdanov sob uma confuso de investigaes de detalhe respeitante a primeira questo; em conseqncia, este no pode opor nitidamente o materialismo de Engels doutrina confusa de

    Mach83

    .

    Este texto , para Lecourt, decisivo: ele evidencia que a questo da

    aquisio de idias abstratas no propriamente filosfica, levando a

    concluso que um problema que cabe as ciencias psicofisiolgicas, e, em

    especial, ao materialismo histrico. Diferentemente dessa perspectiva,

    Althusser considera, em Pour Marx84, a questo do processo de produo de

    conhecimentos como sendo a prpria filosofia. O materialismo dialtico , para

    ele, a teoria do processo de produo de conhecimentos, a teoria da prtica

    82 LECOURT, D., Une crise et son enjeu, op. cit.

    83 LENIN, op. cit., pg. 166.

    84 ALTHUSSER, Pour Marx, op. cit., pp. 163 ss.

  • 46

    terica. Limitemo-nos por ora, a constatar estas duas posies aparentemente

    conflitantes, deixando para uma anlise posterior, quando abordarmos o

    segundo captulo, que versa sobre a questo gnosiolgica (teoria do reflexo),

    seu exame mais detalhado.

    Mas, antes de voltarmos a nossa anlise, convm notar, de modo

    breve, que a concepo de Lecour no impede de formular teses filosficas

    acerca da teoria do reflexo, de procurar demonstrar que o reflexo leninista um

    reflexo sem espelho85. Algum poderia ler nisto uma contradio pois,

    segundo Lecourt, a questo gnosiolgica, pertence ao domnio das cincias. A

    contradio desaparece na medida em que concebermos como imprescindveis

    s cincias uma propedutica filosfica.

    Finalmente, para terminar esta digresso, observemos que Lenin

    estabelece a justa ordem das questes, tanto na ordem expositiva como na

    lgica, colocando em primeiro lugar a questo ontolgica, objeto do primeiro

    captulo, e situando a questo gnosiolgica em seu papel subordinado

    relativamente a primeira questo. (A teoria do reflexo ser tratada no segundo

    captulo). Veremos, mais adiante, que o dispositivo filosfico idealista

    caracteriza-se por operar uma inverso da justa ordem leninista, subordinando

    a questo ontologica questo gnosiolgica.

    Voltemos a nossa anlise. Lenin conclui este item inicial, que consistiu

    em dois momentos, a anlise das concepes de Mach em 1872 e as de

    Avenarius em 1876, com breves consideraes sobre representantes ingleses

    e franceses de tendncias afins ao empiriocriticismo.

    Do lado ingls, destaca-se Karl Pearson, do qual Mach declara

    85 LECOURT, op. cit., pp. 42 e 55.

  • 47

    explicitamente aprovar em todos os pontos essenciais as suas concepes

    gnosiolgicas86. Pearson considera as impresses dos sentidos como a

    nica realidade, no reconhecendo para alm delas coisa alguma. A

    genealogia de Pearson provm, como observa Lenin, de Berkeley e Hume.

    Mais adiante ver-se- que a filosofia de Pearson distingue-se da de Mach por

    uma coerncia muito maior e mais profunda87.

    Do lado dos franceses, cabe mencionar Pierre Duhen e Henri Poincar,

    com os quais Mach se solidariza. Estes dois autores sero analisados no

    captulo V, consagrado Nova Fsica. No momento basta mencionar que para

    Poincar as coisas so srie de sensaes e que Duhen emite opinio

    anloga.

    2 A descoberta dos elementos do mundo

    Neste item Lenin analisa, inicialmente, a pretenso de Mach de superar

    a contradio materialismo-idealismo atravs da introduo do termo

    Elementos. Lenin enfoca as consideraes de Mach sobre os Elementos na

    Mecnica:

    As cincias da natureza s podem representar os complexos de elementos a que chamamos vulgarmente sensaes. Trata-se das ligaes existentes entre esses elementos. A ligao entre A (calor) e B (chama) do domnio da Fsica; a ligao entre A e N (nervos)

    do domnio da Fisiologia88

    .

    Desse modo, se consideramos a cor

    do ponto de vista da sua dependncia da retina [...] estamos em presena de um objeto psicolgico, de uma sensao, mas essa mesma cor ser um objeto fsico, por exemplo, quando a estudamos

    86 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 42.

    87 LENIN, op. cit., pg. 42.

    88 Mach, Mecnica, apud LENIN, op. cit., pg. 43.

  • 48

    do ponto de vista da sua dependncia da fonte luminosa89

    .

    Essa longas citaes eram necessrias para mostrar como Mach, com

    a palavra elementos, a exemplo dos anarquistas, no dizer de Engels,

    pretende modificar as coisas modificando-lhe os nomes. Pretende, como nos

    diz Lenin, com palavras afastar

    a contradio entre o fsico e o psquico, entre o materialismo (para o qual a matria, a natureza o dado primeiro) e o idealismo (para o qual o esprito, a conscincia, a sensao que o dado

    primeiro)90

    .

    Lenin no desconhece que a terceira via de Mach baseia-se na

    considerao de uma suposta neutralidade de elementos da experincia em

    relao as definies do fsico e do psquico, que dependeriam apenas das

    ligaes da experincia. O que Lenin questiona justamente a utilizao da

    palavra elementos, que designa na realidade as sensaes, enquanto que

    Mach pretende superar o exclusivismo do idealismo reservando o termo

    sensaes penas para o aspecto psquico. A terceira via de Mach peca, como

    dissemos, por tentar modificar as coisas modificando-lhe o nome. Lenin insiste

    neste ponto:

    seria pueril acredita que se possam ladear graas inveno de um novo vocbulo as principais corrente da filosofia

    91.

    A soluo do problema ontolgico fundamental da filosofia comporta

    duas vias: primado do ser sobre a conscincia (materialismo) , ou primado da

    conscincia sobre o ser (idealismo). Uma pretensa terceira via que postula,

    no dizer de Bogdanov que a verdade no se encontra entre as correntes que

    89 LENIN, op. cit., pg. 44.

    90 Id., ib..

    91 LENIN, op. cit., pg. 45.

  • 49

    se entrechocavam, mas fora delas, leva inevitavelmente ao ecletismo92.

    Lenin demonstra o ecletismo de Mach e Avenarius apoiando-se na

    literatura filosfica da poca e numa anlise percuciente das semiconcesses

    de Mach e Avenarius ao materialismo.

    A concepo de Avenarius sobre as sries dependente e independente

    da experincia introduz sub-repticiamente o materialismo em sua filosofia.

    Bogdanov explicita esta concepo de Avenarius nas seguintes termos:

    Os dados da experincia criam na medida em que dependem do estado de um dado sistema nervoso, o mundo psquico de uma dada personalidade, e na medida em que tomamos os dados da experincia fora dessa dependncia, estamos perante o mundo fsico. Por isso, Avenarius designa estes dois domnios da experincia como a srie dependente e a srie independente da

    experincia93

    .

    Ora, no diz Lenin:

    esta doutrina da srie independente (das sensaes humanas) introduz sub-repticiamente o materialismo na praa, de maneira ilegtima, arbitrria e ecltica do ponto de vista da filosofia para a qual os corpos so complexos de sensaes, sendo as prprias sensaes idnticas aos elementos do fsico. Com efeito, desde o momento em que se reconhece a existncia das fontes luminosas e das ondas luminosas independentemente do homem e da conscincia humana, sendo a cor condicionada deste modo pela ao destas ondas na retina, adota-se de fato a concepo materialista e destroem-se at aos alicerces todos os fatos indubitveis do idealismo, com todos os complexos de sensaes, de elementos descobertos pelo positivismo moderno e outros

    absurdos do mesmo gnero94

    .

    Quanto ao ecletismo de Mach, Lenin enfoca passagens de

    Conhecimento e Erro, ltima obra deste autor. Lenin aponta, em primeiro lugar,

    a inconsistncia entre as seguintes proposies de Mach:

    No h nenhuma dificuldade em construir qualquer elemento fsico

    92 LENIN, op. cit., pg. 51.

    93 Bogdanov apud LENIN, op. cit., pg. 49.

    94 LENIN, op. cit., pg. 49.

  • 50

    a partir de sensaes, quer dizer dos elementos psquicos.

    As relaes independentes do U (Umgrenzung, quer dizer os limites espaciais do nosso corpo) constituem a fsica no sentido mais lato da palavra.

    Para definir estas relaes no estado puro necessrio excluir tanto quanto possvel a influncia do observador, quer dizer, dos

    elementos situados no interior do U95

    .

    A inconsistncia est entre a afirmao inicial de construo dos

    elementos fsicos com os elementos psquicos e a proposio de que os

    elementos fsicos se encontram fora dos limites dos elementos psquicos

    situados dentro do nosso corpo96.

    A inconsistncia apontada acima est relacionada ao problema

    ontolgico fundamental, objeto deste captulo, entretanto a seguir Lenin analisa

    uma passagem de Mach referente a questo gnosiolgica, que ser objeto do

    segundo captulo. Esta sbita mudana de plano justifica-se na medida em que

    no momento trata-se de demonstrar o ecletismo de Mach, suas

    semiconcesses ao materialismo. A seguinte passagem de Mach, referente a

    questo gnosiolgica, uma ilustrao de sua vacilao em relao ao

    idealismo:

    No existe um gs perfeito (ideal), um lquido perfeito, um corpo perfeitamente elstico; o fsico sabe que as suas fices s correspondem aproximadamente aos fatos, que os simplificam arbitrariamente; conhece este afastamento que no pode ser

    evitado97

    .

    Nesta passagem Lenin enxerga uma semiconcesso a teoria do reflexo

    pois Mach

    ao tratar das questes de fsica esquece a sua prpria teoria, raciocina com simplicidade, sem sutilezas idealistas, quer dizer como

    95 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 53.

    96 LENIN, op. cit., pg. 53.

    97 Mach apud LENIN, op. cit., pg. 53.

  • 51

    materialista: ento todos os complexos de sensaes e todas estas sutilezas Berkeley desaparecem. A teoria dos fsicos torna-se um reflexo dos corpos, dos lquidos e dos gases existindo exteriormente a ns, e este reflexo tem, claro, um valor aproximado, sem que se possa, no entanto, qualificar como arbitrria esta aproximao ou

    esta simplificao98

    .

    A dmarche Leninista mostra o ecletismo de Mach e Avenarius

    valendo-se, como dissemos anteriormente, de um duplo recurso: a anlise

    direta das concepes desses autores e considerao da literatura filosfica da

    poca. Vimos o primeiro aspecto desta demonstrao, vejamos agora o

    segundo.

    Antes de nos determos nos filsofos considerados por Lenin, convm

    observar que o contedo dos dois primeiros itens desse primeiro captulo, que

    primeiramente enfoca as concepes idealistas iniciais de Mach e Avenarius

    (item I), para somente depois analisar suas concepes maduras no item II

    (que so eclticas e fazem semiconcesses ao materialismo), encontra apoio

    na literatura filosfica da poca. Como nos diz Lenin

    Assim como o idealismo primitivo de Mach e Avenarius universalmente reconhecido na literatura filosfica, assim se reconhece que o empiriocriticismo se esforou em seguida por se

    orientar no sentido do materilaismo99

    .

    Vejamos agora os filsofos a quem Lenin recorre.

    Lenin arrola, primeiramente, o autor francs Cauwelaert que constata

    o fato inegvel de nos Prolegmenos (1876) de Avenarius a sensao ser considerada como a nica realidade, a substncia eliminada [...] e, na Crtica da Experincia Pura, o fsico ser considerado como a srie independente, o psquico e, por

    conseqncia as sensaes, como a srie dependente100

    .

    Em seguida Lenin recorre a Rudolf Willy, aluno de Avenarius,

    98 LENIN, op. cit., pg. 54.

    99 LENIN, op. cit., pg. 50.

    100 Cauwelaert, sintetizado por LENIN, op. cit., pg. 50.

  • 52

    que admite tambm que este ltimo completamente idealista em 1876, trabalhou mais tarde na conciliao desta doutrina com o realismo ingnuo, quer dizer com o ponto de vista materialista, instintivo e inconsciente, da humanidade que admite a existncia do

    mundo exterior independentemente da nossa conscincia101

    .

    Na seqncia, aparece Oscar Ewald, autor de um livro sobre

    Avenarius, Fundador do Empiriocriticismo, que considera que o

    empiriocriticismo alia os elementos contraditrios do idealismo e do

    realismo102.

    Finalmente, em apoio de sua tese, Lenin considera W. Wundt. A

    opinio desse autor apresenta um interesse maior, pois foi o que analisou,

    talvez, o empiriocriticismo com maior ateno103. Lenin descreve a estrutura

    da obra desse autor e nos aponta sua concluso que

    o empiriocriticismo no seu conjunto uma mistura variada (Bunte Mischung) em que as diferentes partes constituintes no tm nenhum

    lao entre si (Ansich Einander Vollig Hetergensid)104

    .

    Trata-se, portanto, de um ecletismo, de uma mistura de idealismo e

    materialismo. Cabe perguntar qual o sentido dessa corrente, desse ecletismo,

    dessa terceira via. Lenin conclui esse segundo item com uma resposta a esta

    questo:

    ... As correes feitas por Mach e Avenarius ao seu idealismo prim