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ESCOLA SUPERIOR VERBO JURÍDICO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PROCESSO CIVIL Leila Simon Tarnowski dos Santos REFLEXÕES SOBRE A USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA DO NCPC Com destaques à ata notarial e à presunção de discordância no silêncio dos notificados Porto Alegre 2016

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ESCOLA SUPERIOR VERBO JURÍDICO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PROCESSO CIVIL

Leila Simon Tarnowski dos Santos

REFLEXÕES SOBRE A USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA DO NCPC

Com destaques à ata notarial e à presunção de discordância no silêncio dos notificados

Porto Alegre 2016

Leila Simon Tarnowski dos Santos

REFLEXÕES SOBRE A USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA DO NCPC

Com destaques à ata notarial e à presunção de concordância no silêncio dos notificados

Artigo Científico apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso ao Verbo Jurídico para fins de obtenção do título de Especialista em Direito Processual Civil.

Porto Alegre 2016

RESUMO

A presente pesquisa analisará algumas particularidades do procedimento da usucapião

imobiliária administrativa contemplada no art. 1.071 do novo CPC, que introduziu o art. 216-

A da Lei nº 6.015/73, viabilizando a usucapião imobiliária de forma extrajudicial

(procedimento direto no Registro de Imóveis), o qual se inicia com uma ata notarial atestando

o tempo de posse do usucapiente. Em razão dessa ata, a doutrina diverge se é ela o

instrumento mais adequado para tanto ou se tal atestação deve se dar por escritura pública

declaratória. E, da análise dos demais documentos a instruir o requerimento da usucapião,

consta-se lamentáveis equívocos do legislador que se constituem em grandes entraves ao

pleno sucesso dessa nova sistemática, como, v.g., a presunção de discordância à usucapião em

razão do silêncio dos notificados (§ 2º do citado art. 216-A). Para a presente pesquisa foi

utilizada doutrina de consagrados notários e registradores de imóveis, dentre outros juristas

conhecedores da matéria.

Palavras-chave: Usucapião. Administrativa. Posse. Ata notarial. Escritura declaratória. Procedimento. Entraves. Registro. Resumen: Esta investigación examinará algunos detalles del procedimiento de usurpación de

propiedad administrativa contemplada en el art. 1.071 del nuevo CPC, que introdujo la

técnica. 216-A de la Ley Nº 6.015 / 73, que permite la usurpación de la propiedad corte

(Procedimiento directa en el Registro de la Propiedad), que comienza con un acta notarial que

acredite usucapiente el tiempo de posesión. Con estos antecedentes, la doctrina diverge si ella

es el instrumento más adecuado para este fin o si tal declaración debe ser por escritura pública

declaratoria. Y el análisis de otros documentos para instruir a la aplicación de la posesión

adversa, parece desafortunados malentendidos de la legislatura que constituyen los principales

obstáculos para el pleno éxito de este nuevo sistema, como, por ejemplo, la presunción de

desacuerdo a la posesión adversa debido al silencio de la notificada (§ 2 del citado art. 216-

A). Para esta investigación se utilizó notarios doctrina establecida y registradores de la

propiedad, entre otros asuntos legales informado.

Palabras clave: Usucapión. Administrativa. Posse. Acta notarial. Declarativo Escritura. Procedimiento. Barreras. Grabar.

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1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa objetiva tratar, em linhas gerais, da usucapião imobiliária

administrativa ou extrajudicial, contemplada no art. 1.071 do novo Código de Processo Civil

(NCPC; Lei nº 13.015, de 13 de março de 2015), a qual veio a integrar o ordenamento jurídico

pátrio, não só com a finalidade de desafogar o Judiciário, mas, também, para propiciar às

partes celeridade e economia à obtenção da declaração de domínio sobre o bem sobre o qual

detém posse ad usucapionem, contando, para isso, com o auxílio de capacitados operadores

do Direito, quais sejam: o notário, o registrador de imóveis e o advogado.

O mencionado art. 1.071 acrescentou o art. 216-A da Lei 6.015/73 (Lei dos Registros

Públicos - LRP), regrando o procedimento da usucapião administrativa que, como se verá

ligeiramente no decorrer deste trabalho, será conduzido soberanamente pelo Oficial do

Registro de Imóveis com competência para registro do bem usucapiendo.

O motivo principal que nos levou à elaboração desta pesquisa deu-se ao fato de que,

na qualidade de substituta de tabelião de notas, o qual tem, dentre as suas atribuições legais, a

lavratura de atas notariais. E a ata notarial está contemplada no art. 216-A da LRP. Logo, para

o bom exercício do nosso trabalho, impõe-se o presente estudo.

Assim sendo, à ata notarial “atestando o tempo de posse do requerente e seus

antecessores”, conforme previsto no referido inciso I do art. 216-A da LRP, será destinada

especial atenção neste trabalho.

E quanto à natureza jurídica do procedimento do art. 216-A, ver-se-á no segundo

capítulo que é administrativa, e não jurisdicional, e quais são os efeitos de tal enquadramento.

No terceiro capítulo, em linhas gerais, meramente com finalidade propedêutica, far-

se-á em relação à usucapião a análise de alguns de seus pontos fundamentais, a fim de

facilitar aos operadores do direito, sobretudo, aos notários e registradores de imóveis, um

conhecimento mais profundo desse instituto, levando em conta que, até então, o envolvimento

desses agentes delegados nas questões envolvendo a usucapião era mais superficial,

principalmente quanto aos tabeliães de notas, que, quando, muito, limitavam-se a lavrar

escrituras de cessão de direitos possessórios (isso quando solicitados para tanto, pois a lei não

exige para essa alienação o instrumento público (art. 108 do Código Civil).

E quanto ao registrador imobiliário, a sua atuação limitava-se a registrar o mandado

judicial de registro de usucapião, verificando apenas alguns requisitos formais desse

documento; se o mesmo obedecia aos princípios registrais da especialidade objetiva,

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consagrado nos arts. 176 e 225 da LRP, e da especialidade subjetiva. Praticamente nada além.

Por esse motivo, então, neste capítulo serão comentados, dentre outros aspectos do

instituto da usucapião, as suas modalidades e respectivos prazos.

No quarto capítulo trata-se de mais um dos temas de fundo desta pesquisa, qual seja:

análise dos requisitos e/ou documentos para o início, propriamente dito, do procedimento da

usucapião extrajudicial, com fortes críticas às certidões negativas (inc. III). Antes, ressalta-se

o direcionamento de tal procedimento para o registrador de imóveis, com plena autonomia na

sua condução. Em seguida aborda-se a ata notarial prevista no inc. I do art. 216-A da LRP,

questionando-se se esse ato notarial é mesmo, tecnicamente, o mais apropriado para a

testificação do tempo de posse do requerente, ou se não seria a escritura pública declaratória o

instrumento mais indicado para tanto.

Por fim, no quinto e último capítulo, comenta-se a questão que certamente mais tem

causado perplexidade por parte dos estudiosos desse novel processo de usucapião, ou seja: a

presunção no sentido de que, no caso de a planta referida no inc. II do art. 216-A não exibir a

firma de qualquer um dos detentores de direitos reais e de outros direitos registrados ou

averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na dos imóveis confrontantes, esse será

notificado pelo registrador, pela forma prevista em lei, “para manifestar o seu consentimento

expresso em 15 (quinze) dias, interpretando-se o seu silêncio como discordância”, conforme

dispõe a parte final do § 2º do citado art. 216-A (grifo nosso).

Ora, tal presunção fere violentamente o nosso ordenamento jurídico, em situações

desse jaez, contrariando, inclusive, o art. 111 do CC e, se mantida, poderá frustrar a eficácia

prática do novo processo de usucapião em apreço, como se verá nesta pesquisa.

Esclareça-se, desde já, que este trabalho não irá examinar por inteiro o procedimento

da usucapião extrajudicial objeto do art. 216-A da LRP, eis que deixa de fora – não por ser

questão de menor importância -, o trâmite do processo na serventia registral, pois, como se

verá durante a pesquisa, imagina-se que os maiores entraves ou obstáculos para que esse

novo instituto vingue, estão muito mais relacionados com os requisitos ou documentos

exigidos para o deferimento do reconhecimento da propriedade por parte do registrador, do

que, propriamente, com a atuação deste no procedimento.

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2 DA PREVISÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DA USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA. OS PRECEDENTES LEGISLATIVOS E A APL ICAÇÃO DESSA NOVA SISTEMÁTICA

A previsão constante no art. 1.071 do novo estatuto processual civil, o qual inseriu na

Lei nº 6.015/73, o art. 216-A, ao contrário do que muitos julgam, não se trata de uma

novidade em nosso ordenamento jurídico da usucapião administrativa, mas, sim, a

contemplação desse procedimento extrajudicial de prescrição aquisitiva também para toda e

qualquer espécie de usucapião, como defende o brilhante registrador de imóveis na Cidade de

Jundiaí-SP, Leonardo Brandelli, quando afirma: “Finalmente, em 2015, o mais vultuoso

passo: o procedimento de usucapião ordinário, que aplica-se à aquisição de qualquer direito

usucapível, por qualquer forma de usucapião” (2016, p. 13; grifo nosso), até mesmo para a

usucapião especial urbana coletiva, segundo esse mesmo autor (2016, p. 71).

Flávio Tartuce endossa o entendimento de Brandelli: “O art. 1.071 do Novo Estatuto

Processual Civil tratou da usucapião extrajudicial, por qualquer uma de suas modalidades”

(2016, p. 339, grifo nosso).

E a comprovar que o indigitado art. 1.071 não foi pioneiro em nosso direito, no

tangente à usucapião extrajudicial, Brandelli (2016, p. 13) lembra que já havia previsão de

procedimento administrativo para usucapir, em duas situações: no caso do § 5º do art. 214 da

LRP, inserido pela Lei nº 10.931/2004 e também no caso do parágrafo único do art. 1.242 do

Código Civil.

Como indica o título desta pesquisa o art. 216-A da Lei nº 6.015/73 não será objeto de

análise em todas as suas disposições e/ou particularidades. Contudo, para uma melhor

compreensão dessa nova sistemática de usucapião, impõe-se que ao menos se dê

conhecimento do seu inteiro teor, que é o seguinte:

Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias; II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;

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III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo de posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel; § 1º O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo de prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido. § 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretando-se o seu silêncio como discordância. § 3º O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo Correio com aviso de recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o pedido. § 4º O Oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias. § 5º para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis. § 6º Transcorrido o prazo de que trata o § 4º deste artigo, sem pendência de diligências na forma do § 5º deste artigo e achando-se em ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitidas a abertura de matrícula, se for o caso. § 7º Em qualquer caso, é licito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta lei. § 8º Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido. § 9º A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião. § 10 Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou pro algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. (grifo nosso).

Como já consignado, a eleição pelo legislador desse novo procedimento de usucapião,

decorreu do propósito de desafogar o Judiciário, levando em conta que outros órgãos ou

agentes públicos podem sobejamente resolver questões de direitos disponíveis, onde não há

litígios, com menos burocracia, mais agilidade e menos custos, sem pôr em risco a segurança

jurídica, ressalte-se, na inspiração de outras leis já editadas com tais finalidades.

São bons exemplos do que ora se afirma, a Lei nº 10.931/2004, que alterou a redação

do art. 213 da LRP, possibilitando as retificações administrativas de descrição de imóveis,

inclusive de áreas, culminando com a edição da Lei nº 11.441/2007, por viabilizar por parte

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do notário a lavratura de escrituras de separação e divórcio, bem como de inventário e

partilhas causa-mortis, nas situações por ela elencadas.

2.1 Natureza jurídica da usucapião administrativa

Pode-se afirmar que a sistemática da usucapião objeto do art. 216-A da LRP é de

natureza administrativa, e não jurisdicional, levando-se em conta que o entendimento

predominante sobre as atividades notariais e registrais, também o é, muito embora, segundo

ressalva Brandelli “não ser exclusividade do Poder Judiciário o exercício da jurisdição”,

afirmando isso na lembrança do instituo da arbitragem (2016, p. 23-24).

Em razão de tal natureza jurídica, importa evidenciar, então, que, quanto aos efeitos

do processo de usucapião administrativa registral, ele não enseja litispendência nem faz coisa

julgada, nem formal, nem material, significando, portanto, que, em caso de impugnação do

registrador e/ou de eventual dúvida suscitada e julgada procedente (art. 198 e ss da LRP),

pode novamente ser intentado ou revisto na via judicial e, inclusive, na própria via

extrajudicial, pode ser reapresentado, não cabendo ao registrador imobiliário a negativa de

protocolar o requerimento de reconhecimento de usucapião “sob a alegação de que teria de

repetir os mesmos termos da dúvida julgada, por serem perfeitamente iguais aos anteriores”, o

que implicaria “o exercício da atribuição do julgador”, segundo leciona uma das maiores

autoridades contemporâneas no assunto, Walter Ceneviva, ao tratar do processo de suscitação

de dúvida, previsto na LRP (2010, p. 526-527).

3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O INSTITUTO DA USUCAPIÃO 3.1 Conceito

Tratar da usucapião de imóvel é tratar de uma das formas mais conhecidas de

aquisição originária dessa espécie de bem, prevista no Código Civil (arts. 1.238 e ss).

Pode-se conceituar como sendo o “Meio de adquirir o domínio da coisa pela sua posse

continuada durante certo lapso de tempo, com o concurso dos requisitos que a lei estabelece

para este fim”, segundo Pedro Nunes apud Arnaldo Rizzardo (2003, p. 248).

Do transcrito conceito, extrai-se que “O conteúdo essencial da figura usucapião é a

posse” e “O elemento principal é o tempo que extingue e cria direitos”, na constatação do

registrador imobiliário em Araçatuba-SP, Marcelo Augusto Santana de Melo (2016, p. 2).

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3.2 Bens imóveis e direitos reais imobiliários que podem ser usucapidos

É praticamente unânime a doutrina de que somente os bens imóveis particulares

poderão ser objeto de usucapião. Quanto aos públicos, pouco importando a sua espécie, se de

uso comum, especial ou dominical, ou a que ente federativo pertença, não se reconhece tal

possibilidade. O art. 102 do vigente Código Civil é categórico nesse sentido: “Os bens

públicos não estão sujeitos a usucapião”. Na mesma direção o § 3º do art. 183, assim como o

parágrafo único do art. 191, ambos da CF/88.

Todavia, há quem defenda, relativamente aos bens dominicais, a possibilidade de

usucapião, em que pese as referidas previsões contrárias na lei. É a opinião de Flávio Tartuce

(2016, p. 327).

E como muito bem chama atenção Brandelli “não apenas a propriedade pode ser

adquirida pela usucapião, mas qualquer direito real suscetível de exercício continuado de

posse ad usucapionem” (2016, p. 24, grifo nosso). “Para se saber qual o direito real que foi

usucapido, haverá que perquirir a respeito do animus do possuidor, a respeito da imagem do

direito que a posse reflete”, conclui esse mesmo autor (2016, p. 24).

Por fim cumpre consignar ainda que, mesmo imóveis com áreas inferiores à fração

mínima de parcelamento ou ao módulo rural, podem ser usucapidos, conforme vem

entendendo a Justiça, desde que o imóvel tenha tamanho suficiente para cumprir a função

social da propriedade.

3.3 Espécies de usucapião

3.3.1 Usucapião ordinária tradicional

Está espécie está prevista no caput do 1.238 do Código Civil. Os seus requisitos são:

a) posse por 15 (quinze) anos, no mínimo; b) posse sem oposição; e, c) posse justa. Como

visto, os requisitos de justo título e boa-fé ficam dispensados para esta modalidade de

usucapião.

3.3.2 Usucapião extraordinária com prazo reduzido

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Modalidade prevista no parágrafo único do art. 1238 do CC. Seus requisitos próprios

são: a) posse por 10 (dez) anos, no mínimo; e, b) estabelecimento de moradia no imóvel por

parte do possuidor ou realização de obras ou serviços de caráter produtivo.

No mais, os mesmos requisitos da usucapião extraordinária de 15 anos.

3.3.3 Usucapião ordinária tradicional

Está prevista no caput do art. 1.242 do CC, sendo os seguintes os seus requisitos: a)

posse mansa, pacífica e ininterrupta, com ânimo de titular do direito real de aquisição; b)

posse por 10 (dez) anos, no mínimo; c) justo título; e, d) boa-fé.

3.3.4 Usucapião ordinária com prazo reduzido

Prevista no parágrafo único do art. 1.242 do CC. Seus requisitos próprios são: a)

prazo de posse por no mínimo 5 (cinco) anos; e, b) aquisição do imóvel de forma onerosa,

com base em registro cancelado; e, c) moradia estabelecida no imóvel pelo possuidor ou

promoção por ele de investimentos de interesse social e econômico.

Quanto aos demais requisitos, são os mesmos da usucapião ordinária tradicional.

3.3.5 Usucapião especial urbana

Esta modalidade está prevista no art. 183/CF-88, na Lei 10.257/2001 e no art. 1.240 do

CC. Exige os seguintes requisitos: a) imóvel urbano com até 250,00m²; b) moradia do

posseiro; c) o possuidor não poderá ser proprietário de outro imóvel, rural ou urbano; e, d)

prazo de posse por no mínimo 5 (cinco) anos.

Importante destacar que o imóvel urbano pode consistir tanto em terreno não

edificado, como com construção, inclusive em unidade autônoma de condomínio edilício.

3.3.6 Usucapião especial urbana coletiva

Essa modalidade está prevista no art. 10 da Lei nº 10.257/2001 e tem por objetivo a

regularização fundiária, de ordenação urbana, objetivando a aquisição de propriedade

coletiva, em regime de condomínio comum; é dirigida, portanto, a uma coletividade de

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possuidores, de modo que cada um receberá apenas uma fração ideal da gleba, fração essa

que não poderá ser superior a 250,00m² e, sendo possível identificar a posse localizada de

cada um o caso, então, será de usucapião constitucional individual.

O prazo da posse comum é de 5 (cinco) anos e esta espécie de usucapião destina-se a

pessoas de baixa renda

Questiona-se se poderá essa espécie de usucapião ser objeto do procedimento

administrativo previsto no art. 216-A da LRP. Para Brandelli, parece não haver nenhum óbice

(2016, p. 72).

3.3.7 Usucapião familiar

A Lei 12.424/2011 acrescentou no Código Civil o art. 1.240-A, criando uma nova

espécie de usucapião especial urbana, qual seja: a usucapião familiar, também designada de

usucapião especial urbana por abandono do lar, pois destina-se a proteger o cônjuge ou o(a)

companheiro(a) abandonado(a) e que permaneceu, por no mínimo 2 (dois) anos, morando em

imóvel com até 250,00m², acompanhado ou não de familiares, arcando exclusivamente com

as despesas de sua manutenção e sem oposição do outro cônjuge ou companheiro(a), do

imóvel cuja propriedade dividia com o(a) abandonador(a) e que, portanto, já era

proprietário(a) da sua metade ideal. Ao menos, assim dá a entender o art. 1.242-A, ao utilizar

a expressão “cuja propriedade dividia”.

3.3.8 Usucapião especial rural

Está previsto no art. 191 da CF/88 e no art. 1.239 do CC. É também chamado de pro

labore ou constitucional rural. Os seus requisitos são: a) imóvel rural não superior a 50

hectares; b) posse por no mínimo 5 (cinco) anos; c) finalidade de moradia e promoção de

atividades de agropecuária do possuidor ou de sua família, tornando o bem produtivo; d) o

possuidor não poderá possuir outro imóvel rural ou urbano.

3.3.9 Usucapião especial indígena

Está prevista no art. 33 da Lei nº 6.001/73: “O índio, integrado ou não, que ocupe

como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares,

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adquirir-lhe-á a propriedade plena.” O parágrafo único desse preceito ressalva que: “O

disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais,

às áreas reservadas de que trata esta lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo

social.”

4 – DOS DOCUMENTOS QUE DEVEM INSTRUIR O REQUERIMENT O DA USUCAPIÃO PREVISTOS NO ARTIGO 216-A DA LRP

Para que melhor se possa compreender o início do procedimento da usucapião

administrativa registral, mister que se reveja o caput e os incisos do art. 216-A da LRP, como

segue:

Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias; II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes; III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo de posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel;

Do caput do transcrito preceito fica claro que a via extrajudicial é apenas uma

alternativa para o interessado a essa nova sistemática de usucapião e, em sendo tal eleita,

impõe-se então o procedimento previsto no art. 216-A da LRP, com o processamento

“diretamente perante o cartório de registro de imóveis [...].” E caso a opção seja pela esfera

jurisdicional, o pedido deverá ser processado pelo procedimento comum previsto nos arts. 318

e ss do NCPC, posto que esse novel estatuto processual civil, ao contrário do anterior, não

previu procedimento especial para a usucapião, como observam Leonardo Brandelli (2016, p.

70) e o ilustre defensor público no estado de São Paulo, Felipe Pires Pereira (2016, p. 3).

Importante consignar que a atuação do registrador imobiliário será de plena

autonomia, posto que sequer vá depender no processo por ele conduzido de qualquer

intervenção judicial ou do Ministério Público, como destaca Brandelli:

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[...] por se tratar de processo administrativo, não há regras procedimentais estanques, insuperáveis, da mesma forma que há no procedimento jurisdicional, de modo que pode o Oficial de Registro aceitar alguma alteração procedimental justificável juridicamente, de acordo com sua prudente análise. Nos termos do art. 15 do NCPN, na constatação de alguma lacuna normativa na condução do processo administrativo de usucapião, as disposições do NCPC deverão ser aplicadas supletiva e subsidiariamente.

Relativamente ao registrador competente para protocolar o requerimento, é aquele que

tem competência conforme a sua circunscrição, determinada por legislação do respectivo

estado. Assim, na leitura do caput, o termo “comarca” deve ser substituído pelo termo

“circunscrição”, pois nem sempre a competência territorial desse agente delegado

necessariamente coincide com a comarca onde se situa o imóvel.

Importante destacar que o caput prevê que o requerimento da usucapião extrajudicial

deve, obrigatoriamente, ser firmado por advogado.

Nessa petição o usucapiente deverá expor em detalhes a sua posse sobre o imóvel

usucapiendo, relatando quando e como a houve, a forma de utilização ou exploração do

imóvel, ou seja, fornecer um histórico da posse, descrever o bem segundo o princípio

registral imobiliário da especialidade objetiva (arts. 176 e 225 da LRP), dando a sua exata

localização, área, medidas lineares, se é urbano ou rural, se tem ou não acessões etc.

Também será importante declinar a espécie de usucapião que entende o requerente

preencher os seus requisitos materiais, embora a lei silencie a respeito e, por essa razão, surge

a dúvida: caso o requerente deixe expresso a espécie de usucapião invocada, mas constate o

registrador que não é a acertada, embora preencha os requisitos de outra modalidade, deverá

por isso rejeitar o pedido? O bom senso diz que a resposta deve ser negativa.

O inciso I trata da ata notarial “atestando o tempo de posse do requerente” (destaque

nosso), documento esse que é o pré-requisito ou o marco inicial do procedimento

administrativo de usucapião extrajudicial do NCPC e que inicia com um ato do tabelião de

notas, previsão essa que vem gerando uma grande celeuma entre os operadores do Direito,

principalmente entre os notários, quanto a saber se a tal testificação do tempo de posse -

tecnicamente falando -, deve mesmo ser instrumentalizada através de ata notarial ou por

escritura pública declaratória.

E essa dúvida, ao menos em termos acadêmicos é bem procedente em razão do que a

lei e a doutrina falam sobre o que é ou para que serve a ata notarial. O notário gaúcho, Luiz

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Carlos Weizenmann, diz que “é o instrumento público feito pelo tabelião, atendendo

solicitação de parte interessada, pelo qual capta e descreve uma situação que percebe através

de seus sentidos. É a narração objetiva de uma ocorrência ou fato, presenciado ou constatado

pelo tabelião” (grifo nosso).

Quase no mesmo sentido, o art. 364 do CPC/73: “O documento público faz prova não

só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o tabelião, ou o funcionário

declarar que ocorrerão em sua presença.” Por, sua vez, o novo CPC, no seu art. 384, assim se

refere à ata notarial: “A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou

documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada pelo tabelião.”

A ata notarial também está prevista na Lei nº 8.935/94, mais precisamente nos artigos

6º, inciso III e 7º, inciso III.

Para auxiliar na solução da dúvida de como deve, enfim, ser atestado o “tempo de

posse do requerente” a que alude o art. 216-A da LRP, impõe-se agora mostrar as diferenças

entre ata notarial e escritura pública declaratória. Para tanto, inicia-se com a doutrina de

Martha El Debs:

Diferentes são os propósitos e conteúdos da ata notarial e da escritura pública. Na ata notarial não há manifestação de vontade, apresentando o caráter eminentemente passivo, pois apenas relata o testemunho de fatos presenciados pelo notário, ou seja, o tabelião narra um fato. Na escritura pública, a manifestação de vontade faz-se necessária. Trata-se de uma ação ativa. O tabelião recebe a manifestação de vontade das partes, voltada para a concreção do suporte fático de um ato jurídico lato sensu, e a qualifica, assessorando-as juridicamente. O ato jurídico na escritura pública pode ser unilateral ou bilateral. Na ata notarial, o ato é sempre unilateral porque é o notário que deve narrar um fato presenciado por ele, ou seja, ele é o único comparecente do ato. O objeto da ata notarial não pode ser o da escritura pública, equivale dizer, se for o caso de escritura não poderá ser lavrada a ata notarial. (2016, p. 90-91, grifo nosso).

Prosseguindo nas distinções entre ata notarial e escritura pública declaratória,

Brandelli, ensina que “a diferença básica entre ambas é a existência, ou não, de declaração de

vontade, que está presente na escritura e ausente na ata [...]” (2016, p. 75).

O Desembargador Ricardo Dip, do TJSP, em entrevista concedida à Academia

Notarial Brasileira (ANB), reproduzida em artigo de Franklin Maia (O caráter indiciário da

Ata Notarial para reconhecimento da Usucapião Extrajudicial), não entrou no debate, porém,

opinou que “A ata notarial valerá como indício a considerar para a confirmação posterior, é

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um excelente instrumento como meio prova, porém põe em debate a segurança inerente da fé

pública notarial” (2016, p. 2).

Seguindo na entrevista, mais adiante DIP esclarece com mais detalhes:

É bem verdade que a ata notarial lavrada pelo tabelião atestará o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias. Assim sendo, o tabelião como receptor da vontade dos usuários e responsável pela autenticação e veracidade dos fatos, deverá ter os cuidados com a análise de toda a documentação apresentada, para dar início ao procedimento de usucapião extrajudicial. Cumpre observar que, em se tratando de ata notarial na qual o fato constatado pelo notário é uma declaração (testemunho), a fé pública recai sobre a existência da declaração, a identidade do declarante e a data em que ocorreu, mas não exatamente sobre o seu conteúdo. A presunção de veracidade recai sobre o fato da declaração e não sobre o seu teor. Verifica-se que a ‘atestação’, pela atuação do notário, seja pela audiência de testemunhas, seja pela vista de documentos terá caráter de prova indiciária, uma vez que pressupõe um fato, demonstrado através de inúmeras outras provas diretas ou indiretas. (2016, p. 3-4, grifo nosso).

Por tudo o que se analisou sobre a ata notarial e dos esclarecimento de DIP, pode-se

dizer que Weizenmann tem razão quando indaga e responde: Como atestar tempo de posse?

A posse exercida pelo requerente é um fato passado e somente seria possível a constatação

deste fato através de testemunhos” (2016, p. 185, grifo nosso). E ainda: como comprovar se a

posse foi mansa e pacífica, sem oposição etc?

Mas, certamente são por essas divergências doutrinárias e de enfoques, é que Mario

Pazutti Mezzari, registrador de imóveis em Pelotas-RS, prevê que, ora será o caso de ata

notarial, ora de escritura declaratória, esclarecendo:

A ata notarial tem por finalidade serem atestados fatos; fatos somente podem ser atestados se colhidos no local; portanto, parece-me indispensável que o Notário compareça ao local e constate equivalência mínima entre memorial e planta em cotejo com o imóvel físico. Afinal, como poderá ser atestado o tempo de posse se não houver contato direito com o imóvel e seus lindeiros? Veja que a lei diz que o Notário deverá atestar o tempo de posse, e não apenas colher depoimentos. A coleta de declarações, é que deverá ser feita em Escritura Pública Declaratória, que poderão se constituir em várias, dependendo das circunstâncias de cada caso. (2016, p. 9)

Portanto, conforme exemplifica Mezzari, tudo vai depender do conteúdo ou da

finalidade do instrumento público. Mas, controvérsias à parte, importante assinalar que,

independentemente do instrumento notarial utilizado na questão da prova da posse do

requerente, o que interessa mesmo, ao fim e ao cabo, é que o registrador de imóveis, no

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conjunto de provas que lhe é apresentado, convença-se da posse do requerente no tangente aos

requisitos matérias da modalidade de usucapião invocada.

Em remate a esse tema, não se pode deixar de consignar quanto à competência para a

lavratura da ata notarial, ou seja, qual notário poderá lavrá-la. A solução é simples: se a ata

comtemplar inspeção ou vistoria do imóvel, ou, a tomada de testemunhos fora da serventia,

somente poderá ser o tabelião da localização do imóvel ou do local onde as testemunhas ou

confrontantes prestaram depoimentos (art. 9º da Lei nº 8.935/94). No mais, a ata notarial ou a

escritura de declaração poderá ser lavrada em qualquer ofício de notas do País (art. 8º da Lei

nº 8.935/94).

No inciso II , são exigidos para igualmente acompanhar o requerimento de usucapião a

ser apresentado na serventia imobiliária, a planta e o memorial descritivo do imóvel,

documentos esses que devem ser assinados por profissionais legalmente registrados no CREA

ou no CAU; e acompanhados da anotação de responsabilidade técnica, quitada e, se for o

caso, a descrição georreferenciada certificada pelo INCRA (art. 225 da LRP).

Até aqui tudo bem. Todavia, prevê, ainda, o inciso em preço, que referidos

documentos deverão ser assinados também “pelos titulares de direitos reais e de outros

direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos

imóveis confinantes” (grifo nosso).

Essa exigência, cotejada com a presunção de discordância contemplada na parte final

do § 2º deste artigo (“interpretando o seu silêncio como discordância”), tem merecido por

parte da doutrina, severas e merecidas críticas, como adiante serão colacionadas.

Deverão esses documentos igualmente cumprirem o princípio registral imobiliário da

especialidade objetiva, já comentado, mencionando, inclusive, o número da matrícula ou da

transcrição do imóvel, pois o que deixa claro este inciso é que apenas e tão somente imóveis

com registro no Cartório de Registro de Imóveis poderão ser objeto dessa nova modalidade de

usucapião.

E o pior: os imóveis confinantes também deverão ter registro, o que irá com frequência

criar dificuldades à aplicação prática desse novel procedimento de usucapião, pois, muitas

vezes, o imóvel usucapiendo, assim como o de algum lindeiro, é originário de registro muito

vetusto, promovido, inclusive, em serventia imobiliária que hoje não é mais a competente

para o seu registro. Some-se a essa fato, que a descrição dos imóveis era ou é muito precária,

mormente, quanto aos imóveis rurais, o que dificulta saber a sua procedência registral.

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Nestas circunstâncias e outras semelhantes, fica difícil, então, a constatação da

origem registral do imóvel usucapiendo, como lembra Mezzari, ao comentar a dificuldade de

o oficial imobiliário fornecer para instruir ações de usucapião, certidão comprovando se o

imóvel usucapiendo está registrado ou não, testemunhando ele, com a sua longa experiência

profissional, que “Imóveis sob usucapião geralmente não tem registro, e quando o tem, é parte

integrante de um registro maior ou somatório de registros menores” (2006, p. 13).

E ainda no que diz respeito à crítica feita pela exigência legal de tanto o imóvel

usucapiente, como o dos seus confrontantes terem registro – e pela dificuldade de muitas

vezes isso poder ser comprovado -, vale a pena apresentar mais essa oportuna manifestação

de Mezzari:

Portanto, é quase impossível que uma certidão para fins de usucapião de imóvel rural seja expedida sem ressalvas, do tipo (i) não há registro para a área específica descrita; (ii) não há como saber se o imóvel usucapiendo é formado de partes de outros imóveis; (iii) igualmente não há como saber se o imóvel usucapiendo é parte de área maior. (2016, p. 12)

Oportuno esclarecer ainda neste momento que, o fato de algum imóvel não ter

registro, não significa que deva, necessariamente, ser considerado como terras devolutas, pois

a “inexistência de matrícula do bem imóvel e de registro acerca da sua propriedade, no

Registro de Imóveis com atribuição para tal, não gera presunção em favor do Estado de tratar-

se de imóvel público (terras devolutas)”, segundo observação de Brandelli, aduzindo em

seguida que esse bem pode ser objeto, sim, de usucapião, “salvo se o Estado provar ser

propriedade pública” (2016, p. 32).

Quanto às certidões referidas no inciso III (“certidões negativas dos distribuidores da

comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente”), a previsão desses documentos

também é duramente contestada na doutrina, por dois motivos: primeiramente porque como é

cediço, a usucapião significa aquisição originária da propriedade, ou seja, o usucapiente não

adquire de ninguém o bem; não há qualquer transmissão em seu favor, por isso que, na

opinião de Weizenmann:

Tais certidões são questionáveis, porque estamos tratando de forma originária de aquisição da propriedade, que uma vez implementado o tempo de posse, o titular do direito já dispõe do direito de regularizar a propriedade, independentemente das certidões, mesmo que sejam positivas.” (2016, p. 188, destaque nosso).

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Mário Mezzarri, a seu turno, se manifesta ainda com mais perplexidade:

Estas certidões envolvem a esfera cível, penal, administrativa, trabalhista, tributária etc. Portanto, as certidões deverão ser buscadas na Justiça Estadual, na Justiça Federal e na Justiça Trabalhista. Qual a razão destas certidões? O que acontece se as certidões forem positivas? Pretender-se que tais certidões destinem-se a provar que o imóvel não estão sendo objeto de ação judicial revela desconhecimento do sistema de buscas na esfera judicial: o Poder Judiciário dispõe Livro Indicador Real. E também de pouco adiantará serem extraídas certidões dos usucapientes e dos proprietários tabulares, eis que a usucapião ou qualquer ação possessória pode estar sendo movida por terceira pessoa desconhecida, mormente em se tratando de usucapião em que não se constate a existência de proprietários formal. Há excelentes doutrinadores, como o Dr. Júlio César Weschenfelder, que entende que a necessidade de tais certidões em nome do(a) requerente(s) seja para evitar a tramitação de usucapião administrativa, já havendo ação de usucapião em curso no judiciário. Se já há ação tramitando, não é viável a tramitação paralela da usucapião administrativa, eis que presente a litispendência decorrente da ação em curso na via judicial. No entanto, como o legislador não limitou esta certidão à esfera cível nem à Justiça Estadual, aguardemos a solução que a doutrina e a jurisprudência trarão. (2016, p. 10).

Em segundo lugar, a previsão de tais certidões também pode ser questionada à luz do

que prevê o parágrafo único do art. 54 da Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015, verbis:

Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes na matrícula no registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

Verdade é que, com relação à incidência ou não do parágrafo do art. 54 da Lei nº

13.097/15, no concernente à usucapião extrajudicial, pode-se argumentar, como fez Brandelli

que, “a lei posterior e especial as exige, de modo que deverá o Registrador exigi-las” (2016, p.

81[referindo-se às certidões do inc. III do art. 216-A da LRP]). Mas, em que pese esse

abalizado entendimento, será que não seria possível também para a questão em apreço a

incidência do § 2º do art. 2º LIDB, verbis: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou

especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior” (grifo nosso).

Mas, essa questão de eventual antinomia jurídica, por não ser especificamente objeto

deste estudo, fica para os especialistas no tema ou à jurisprudência resolvê-la, inclusive, se for

o caso, valendo-se de interpretação teleológica.

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Por fim, com relação aos documentos que devem instruir o requerimento da usucapião

administrativa, merece destaque o justo título, referido no inc. IV , o qual somente será mesmo

indispensável quando a usucapião pleiteada for das espécies que o exijam: usucapião

ordinária tradicional e usucapião ordinária com prazo reduzido (retro, 3.3.1 e 3.3.2).

Impende agora apurar o significado de justo título. Brandelli reproduz em sua obra o

entendimento do STJ, exarado no Resp 652449/SP, rel. Min. Massani Uyeda, 3ª Turma, que é

o seguinte:

Por justo título, para efeito da usucapião ordinária, deve-se compreender o ato ou o fato jurídico que, em tese, possa transmitir a propriedade, mas que, por lhe faltar algum requisito formal ou intrínseco (como a compra e venda a ‘non domino’), não produz tal efeito jurídico. Tal ato ou fato jurídico, por ser juridicamente aceito pelo ordenamento jurídico, confere ao possuidor, em seu consciente, a legitimidade de direito à posse, como se dono do bem transmitido fosse (cum anino domini). (2016, p. 41.

Quanto aos outros documentos que poderão ser juntados para comprovar a posse do

requerente, também citados no inc. IV, podem ser qualquer um que sirva para esse fim, tais

como: carnês de IPTU, Cadastros do INCRA, comprovantes de pagamento do ITR, contratos

de arrendamento ou de parceria.

Relevante esclarecer que, nas situações que a lei exige o justo título, tal é necessário e

não somente uma opção ou faculdade do usucapiente, esclarecimento que ora é feito em razão

de a lei usar o termo “ou” no inciso em comento, o que pode sugerir, de uma interpretação

meramente literal da norma, que tanto pode ser “justo título ou quaisquer outros documentos

[...].”

5 A PRESUNÇÃO DE DISCORDÂNCIA PREVISTA NO § 2º DO ART. 216-A DA LRP. USUCAPIÃO SUI GENERIS OU DESCARACTERIZADO

Se, como apurado antes, quando se analisou o inciso II do art. 216-A da Lei nº

6.015/73, entraves existirão ao pleno sucesso da nova modalidade de usucapião, o que dizer,

então, da presunção constante na parte final do § 2º desse mesmo preceito, ao consignar que,

no caso de a planta não ser firmada por todos os titulares de direitos reais ou de outros direitos

registrados ou averbados na matrícula, tanto do imóvel usucapiendo, como dos seus

confrontantes, deverá o oficial imobiliário notificar-lhes para, em quinze dias, se

manifestarem, “interpretando-se o seu silêncio como discordância” (grifo nosso).

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De se lamentar tal presunção, pois que em total dissonância com a teoria geral do

Direito Civil, já que o silêncio não significa manifestação de vontade, tampouco discordância,

podendo (ou devendo) ser aplicado em matéria de usucapião o disposto no art. 111 do CC: “O

silêncio importa anuência quando as circunstâncias ou os usos e costumes o autorizam, e não

for necessária a declaração de vontade expressa.”.

Assim é que, por exemplo, no caso da retificação administrativa prevista no art. 213 da

LRP, o seu § 4º reza que “Presumir-se-á a anuência do confrontante que deixar de apresentar

impugnação no prazo da notificação” (sem destaque no original).

O legislador, ao contemplar a presunção de discordância ignorou que a usucapião é

forma de aquisição originária da propriedade, e por originária, se entende, então, que o

usucapiente adquire o domínio simplesmente quando implementa os requisitos materiais para

tanto, sem qualquer transmissão, ou seja, não adquire a propriedade de ninguém.

Sendo assim, não há razão alguma para a lei condicionar a aquisição da propriedade,

via usucapião, dependendo da concordância de quem quer que seja, posto que a propriedade,

repita-se, já foi adquirida pelo usucapiente ao preencher os requisitos para tanto.

A exigência da anuência das pessoas referidas no parágrafo em questão vulnera,

inclusive, o próprio instituto da usucapião, ao ponto de descaracterizá-lo como tal. Tanto isso

é verdade que Melo, escreveu um provocativo artigo intitulado “O procedimento do art. 216-

A da Lei nº 6.015/73 não configura uma usucapião”.

Vale a pena a transcrição de alguns excertos desse artigo:

O conteúdo essencial da figura da usucapião é a posse. [...] O elemento principal é o tempo que extingue e cria direitos. [...] [...] chegamos à conclusão de que não é necessária uma relação direta com o direito de propriedade, ou seja, a posse, não tem vínculo direto com o direto registrado na respectiva matrícula do Registro de Imóveis. A relação entre posse e direito de propriedade, é assim, de independência ou autonomia. (2016, p. 2) [...] O argumento de que existem no procedimento etapas do procedimento ordinário de usucapião não é suficiente para que o novo instituto seja considerado usucapião. Não se nega que a ata notarial de justificação de posse e ciência dos entes políticos sejam típicos de um processo de usucapião, no entanto, a vinculação com o direito de propriedade é fator de muito maior relevância e, em essência, desnatura totalmente a usucapião (p. 3, grifo nosso).

Felipe Pires Pereira, a seu turno, igualmente com veemência se manifesta:

21

[...] a atual redação do art. 1.071 do novo CPC (213-A[sic]), LRP) transforma a usucapião extrajudicial em um ‘procedimento consensual para declaração da aquisição da propriedade’, anunciando, desde já, a falência do instituto na imensa maioria dos casos, que naturalmente envolvem algum conflito de interesses entre as partes ou confinantes, ainda que tal conflito de restrinja à indiferença dos proprietários ou titulares no registro e também dos confinantes em apresentar expressa concordância ao pedido extrajudicial de usucapião (2016, p.1, grifo nosso).

Diante deste quadro de equívocos feitos pelo legislador, não só relativamente a

problemática ora em apreço, mas de outros empecilhos que já foram mostrados no decorrer

desta pesquisa, sem que se aguardem as alterações legislativas que se fazem necessárias - e

que via de regra são demoradas -, para que não seja frustrado o desejo do próprio legislador

de desafogar o Judiciário, de celeridade, desburocratização, eficiência e economia na

regularização pela usucapião da propriedade imobiliária, quando previu no NCPC a usucapião

extrajudicial, a pergunta que calha é: o que pode ser feito de imediato para remediar esses

entraves?

Antes de ser dada a resposta a essa questão, pertinente se torna nesse momento

lembrar que o projeto do NCPC é originário do Senado (PLS 166/2010), o qual não previa o

procedimento para reconhecimento da usucapião extrajudicial. Foi na Câmara dos Deputados,

através de substitutivo, que foi inserida essa nova sistemática, inclusive, com dispositivo em

sentido contrário à parte final do § 2º do art. 216-A, ficando expresso que o silêncio dos

notificados importaria concordância com o pedido da usucapião.

Todavia, voltando ao Senado o projeto substitutivo do NCPC, o Parecer nº 954/2014

da Comissão Temporária do Código de Processo Civil, inseriu emendas de redação ao

substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados, resultando uma delas nas atuais redações

dos §§ 2º e 6º do art. 216-A.

Resumidamente foi isso que aconteceu com o projeto da usucapião administrativa

extrajudicial, quanto ao trâmite nas duas casas legislativas. E, pela forma como foram votadas

no Senado as emendas ao substitutivo da Câmara dos Deputados, no entendimento de Pereira,

“[...] as alterações do Senado na redação dos parágrafos 2º e 6º do artigo 1.071 do novo CPC

[...] não podem ser compreendidas como emendas de redação ou de esclarecimentos, conclui-

se pela inconstitucionalidade formal dos referidos dispositivos[...]” (2016, p. 3, grifo nosso).

Sendo para Pereira, portanto, inconstitucionais os citados §§ 2º e 6º, em atenção à

questão antes formulada, acreditamos que as soluções apresentadas por esse dedicado jurista

podem ser uma ótima resposta, como se vê deste excerto:

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Por fim, considerando não caber ao oficial de registro de imóveis eventual análise sobre a inconstitucionalidade formal na redação dos parágrafos 2º e 6º do artigo 1.071 do novo CPC (artigo 213-A [sic]), tampouco a interpretação contra legem do silêncio do titular como aquiescência ao registro da usucapião, poderá o juiz corregedor da respectiva serventia apreciar a inconstitucionalidade formal dos referidos dispositivos no controle difuso de constitucionalidade, de forma incidental em processo de dúvida a ser suscitado pelo requerente, conforme parágrafo 7º do mesmo dispositivo, e de acordo com a Lei 6.015/73, ou mesmo o juiz natural que receber a ação de usucapião mencionada no parágrafo 9º, determinando, em ambos os casos, de acordo com interpretação do silêncio no aso [sic] concreto[...], o registro da usucapião extrajudicial nos termos do artigo 1.071, parágrafo 6º, do novo CPC (artigo 213-A [sic] da LRP) (2016, p. 3).

Quem sabe poderá administrativamente o Conselho Nacional de Justiça, no intuito de

evitar discussões da matéria no já assoberbado Judiciário e, possivelmente, antagônicas

decisões, regulamentar em âmbito nacional o procedimento da usucapião prevista no art. 216-

A da LRP, assim como o fizera em relação à Lei nº 11.441/2007 (retro, 2). Esta solução

parece-nos a mais indicada.

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6 CONCLUSÃO

A presente pesquisa serviu para duas importantes constatações: a primeira, é que o legislador

acertou em cheio na sua decisão em viabilizar a opção da aquisição originária da propriedade

sobre imóvel pela via administrativa, com a participação de notários e registradores de

imóveis, a exemplo do que já fizera com relação à Lei nº 11.441/07, posto que essa via, além

de aliviar o judiciário, é mais célere e menos onerosa em relação à judicial.

Por isso, então, nesse aspecto, a decisão do legislador é altamente louvável e bem-

vinda.

Já, a segunda constatação, é de que o legislador ao elencar os documentos ou

requisitos para o deferimento por parte do registrador de imóveis do registro de usucapião

cometeu equívocos que irão frustrar em número expressivo a eficácia desse novo

procedimento de usucapir, ao exigir documentos desnecessários ou questionáveis, como no

caso das certidões negativas, sobretudo quando já vigente o art. 54 da Lei nº 13.097/15.

Outrossim, mais obstáculo, ainda, significa a parte final do § 2º do art. 216-A, que,

como constatado, prestigia uma presunção que vai na contramão da teoria geral do Direito

Civil, ao consignar que o silêncio dos notificados importa discordância ao pedido de

usucapião, quando deveria ser o contrário. Ao exigir o legislador, para tanto, a expressa

concordância do antigo proprietário que perdeu sua propriedade em favor do usucapiente,

emprestou ele um caráter de consensualidade, a ponto de descaracterizar o instituto da

usucapião.

Assim, sendo para que esse novo procedimento não fique com a pecha de processo

natimorto, urge que providências imediatas sejam tomadas, por quem tem competência legal

para tanto. Embora o ilustre defensor público Felipe Pires Pereira tenha apresentado suas

sugestões para evitar o insucesso do pedido de usucapião na via registral (retro, 5), o fez de

forma mais particularizada, sendo que o ideal mesmo será uma regulamentação pelo CNJ

padronizando o procedimento para todos os casos e em âmbito nacional.

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REFERÊNCIAS

BRANDELLI, Leonardo. Usucapião Administrativa: De acordo com o novo Código de Processo Civil. São Paulo: Renovar, 2016. TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil: impactos, diálogos e interações. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. CENEVIVA, Walter. Lei dos Registro Públicos Comentada. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. MAIA, Franklin. O caráter indiciário da Ata Notarial para reconhecimento da usucapião Extrajudicial . Disponível em: <htt://www.notariado.org.br/indexphp?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NzM5Mw==>. Acesso em: 31 mai 2016. MEZZARI, Mario Pazutti. Usucapião Registral: Glosa aos dispositivos legais. Lei dos Registros Públicos. Redação dada pela Lei nº 13.105, de 2015. Informativo do Registrador Gaúcho (SINDIREGIS e Colégio Registral do Rio Grande do Sul), vol. 11, março e abril de 2016. PEREIRA, Felipe Pires. A interpretação do silêncio na usucapião extrajudicial do novo CPC. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-09/interpretação-silencio-usucapiao-extrajudicial-cpc?imprimir=1. Acesso em: 1 jun 2016. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas: De acordo com a Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2003. MELO, Marcelo Augusto Santana de. O procedimento do art. 216-A da Lei nº 6.015/73 não configura uma usucapião. Disponível em: https://marcelommmelo.com/2016/05/18/o-procedimento-do-art-216-a-da-lei-6-01573-nao-configura-uma-usucapiao/. Acesso em: 19 mai 2016. WEIZENMANN, Luiz Carlos. DIDIER Jr, Fredie (Coord.geral). Repecussões do Novo CPC: Direito Notarial e Registral, vol. 11. Salvador: Jus Podium, 2016. DEBS, Martha El. DIDIER Jr, Fredie (Coord.geral). Repecussões do Novo CPC: Direito Notarial e Registral, vol. 11. Salvador: Jus Podivm, 2016.