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Gestão escolar e desafios.

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  • EDUCAO E DIVERSIDADE:estudos e pesquisas

    Volume 2

  • Realizao:Coordenao de Educao a Distncia/Universidade Federal de PernambucoSecretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade/MECApoio:Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao ANPEd(Gesto 2005-2009)

    Coordenao de Educao a Distncia CEAD/UFPESnia Schechtman SetteMaria de Ftima D. Angeiras

  • EDUCAO E DIVERSIDADE:estudos e pesquisas

    Volume 2

    ORGANIZADORES

    Coordenadora GeralMarcia Angela da S. Aguiar

    Coordenadores de reaAhyas Siss - Iolanda de OliveiraJanete Maria Lins de AzevedoMrcia Soares de Alvarenga

    Petronilha Beatriz Gonalves e SilvaRachel de Oliveira

    AUTORES

    Claudilene SilvaDayse Cabral de Moura

    Eugnia Portela de SiqueiraIgnez Pinto Navarro / Ana Paula Romo de Souza Ferreira

    Joana Clia dos PassosMarcus Vincius Fonseca

    Maria de Ftima Almeida Martins /Ana Maria Simes CoelhoMaria Gorete Amorim / Marinaide Lima de Q. Freitas / Tnia Maria de Melo Moura

    Marluce de Lima MacdoNatalino Neves da Silva

    Piedade Lino VideiraRegina Marques Parente

    Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus Swamy de Paula Lima Soares

    Recife PE

    UFPE MEC/SECAD 2009

  • Copyright 2009 J.LuizVasconcelosRua da Conceio, 48 Boa Vista Recife Pernambuco

    proibida a reproduo total ou parcial desta publicao,por quaisquer meios, sem autorizao prvia, por escrito, da editora.

    Os textos contidos neste livro so de inteira responsabilidade de seus autores.

    RevisoMaria de Fatima Duarte Angeiras

    CapaCarlos Alexandre Lapa de Aguiar

    DiagramaoKaliana Virginia Pinheiro Lima

    Impresso e AcabamentoGrfca J. Luiz Vasconcelos

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Aguiar, MarciaAngela da S. (org.) [ ]

    Educao e diversidade: estudos e pesquisas. MarciaAngela da Silva Aguiar,Ahyas Siss, Iolandade Oliveira, Janete Maria L. de Azevedo, Mrcia Soares deAlvarenga, Petronilha Beatriz G. eSilva, Rachel de Oliveira. (orgs.) [ ]. Recife: Grfica J. LuizVasconcelos Ed., 2009

    Vrios autores dois volumes

    1. EducaoBrasil. 2. Educao de jovens e adultosBrasil. 3. Educao do campo - Brasil. 4.Educao e diversidade tnico-racial - Brasil. 5. Educao indgena - Brasil. 6. Educao especial -Brasil. 7. Polticas pblicas. I.Aguiar. II. Oliveira. III.Azevedo. IV.Alvarenga.V. Silva. VI.Oliveira.

    et all

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  • SUMRIO

    VOLUME 2

    Apresentao

    O Processo de Implementao da Lei N 10.639/03 na Rede Municipal de Ensino do RecifeClaudilene Silva 09

    Prticas Discursivas na Educao de Jovens e Adultos: reflexes sobre a construo de

    identidades tnico-raciaisDayse Cabral de Moura 39

    O Processo de Implantao da Lei 10.639/2003 nas Escolas Pblicas de Campo Grande MS: as contribuies das prticas antirracistas na formao do cidado negro e no negroEugnia Portela de Siqueira 65

    Formao de Professores na Perspectiva da Emacipao Humana: subsdios para a educao de jovens e adultosIgnez Pinto Navarro

    Ana Paula Romo de Souza Ferreira 67

    A Educao de Jovens e Adultos e a Promoo da Igualdade Social no BrasilJoana Clia dos Passos 101

    Civilizao e Branqueamento como Dispositivos das Escolas de Minas Gerais no Sculo XIXMarcus Vincius Fonseca 125

    A Educao de Jovens e Adultos em Alagoas: uma releitura das polticas e aes em mbito governamental nas dcadas de 1990 A 2000Maria Gorete Amorim - Marinaide Lima de Queiroz Freitas

    Tania Maria de Melo Moura 145

  • Saberes e Sazeres do/no Campo: desafios e possibilidades da educao bsica do campo

    para a rea de Cincias Sociais e HumanidadesMaria de Ftima Almeida Martins - Ana Maria Simes Coelho 171

    Tradio Oral Afro-brasileira e Escola: dilogos possveis para a implantao da Lei 10.639/2003Marluce de Lima Macdo 185

    Educao de Jovens e Adultos: um campo de direito diversidade e de responsabilidade das polticas pblicas educacionaisNatalino Neves da Silva 211

    Marabaixo e Batuque: prticas pedaggicas com saberes quilombolas no cotidiano escolar em MacapPiedade Lino Videira 227

    As Contribuies do Parecer CNE/CP 3/2004 para a Educao das Relaes tnico-raciaisRegina Marques Parente 249

    Experincias de Formao de Professores para Escolas do Campo e a Contriuio da UniversidadeSonia Meire Santos Azevedo de Jesus 271

    Educao, Desenvolvimento Sustentvel e Escola do CampoSwamy de Paula Lima Soares 299

  • APRESENTAO

    A superao das histricas desigualdades socioeducacionais no pas requer um esforo gigantesco dos governos e da sociedade no desenvolvimento de aes concretas que ampliem as conquistas de cidadania. O reconhecimento poltico da educao como instncia que contribui para a afirmao da cidadania constitui um impulso relevante para reforar e ampliar as aes desenvolvidas pelos setores comprometidos com a transformao da sociedade e com a incluso social.

    Em um pas cujo modelo de desenvolvimento excluiu parcela significativa da populao de ter acesso escola ou nela permanecer, a agenda de incluso educacional enfrenta grandes desafios no que se refere universalizao do acesso e permanncia bem sucedida no sistema escolar. A garantia de educao para todos exige a promoo de polticas pblicas consistentes e de largo alcance.

    Com a inteno de contribuir para a efetividade de polticas que buscam a afirmao de atores sociais tradicionalmente pouco considerados, a Universidade Federal de Pernambuco UFPE consolidou, em dezembro de 2007, uma parceria com a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao - SECAD/MEC visando a realizao de atividades acadmico-cientficas para apoiar as polticas pblicas voltadas educao de jovens e adultos, educao e diversidade tnico-racial, educao do campo, educao indgena, educao especial, dentre outras.

    Esta parceria contou com o apoio da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (ANPEd), cuja experincia em projeto similar muito contribuiu para o desenvolvimento das aes programadas pela Coordenao de Educao a Distncia da UFPE, setor ao qual esteve vinculado o Projeto Educao e Diversidade: estudos e aes em campos de desigualdades scio educacionais. O apoio da ANPEd foi de fundamental importncia para ampliar a participao da comunidade acadmica nos esforos para a promoo da incluso educacional, mediante as aes de formao continuada.

    No mbito do Projeto, foram incentivados os estudos que contemplam, no campo educacional, as discusses sobre questes tnico-raciais, educao de jovens e adultos e educao do campo com o propsito de alargar o conhecimento nessas reas.

    Os resultados deste esforo esto consubstanciados nos artigos que compem

  • a presente coletnea - Educao e Diversidade: estudos e pesquisas - que vem a pblico como uma inestimvel colaborao de instituies e de pesquisadores comprometidos com a democratizao da sociedade brasileira e com a oferta de uma educao de qualidade para todos.

    Universidade Federal de Pernambuco/Coordenao de Educao a DistnciaCoordenadora: Sonia Schechtman Sette

    Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade/MEC

    Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao Presidente: Mrcia Angela da Silva Aguiar Gesto 2005-2009

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    O PROCESSO DE IMPLEMENTAO DA LEI N 10.639/03 NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO RECIFE

    Claudilene Silva1

    Introduo

    Em 2006, a percepo da resistncia incluso da discusso sobre relaes tnico-raciais e histria e cultura afro-brasileira no interior das escolas da Rede Municipal de Ensino do Recife instigaram-nos a buscar respostas sobre os elementos motivadores do silenciamento da escola sobre as relaes tnico-raciais na contemporaneidade2 . Por esse caminho nos deparamos com as possibilidades e limites do processo de discusso e implementao da Lei n 10.639/03 na Secretaria de Educao, Esporte e Lazer do Recife. Tais estudos tomaram amplitude durante a investigao realizada para a construo da nossa dissertao de mestrado que versa sobre o processo de construo da identidade de professoras negras e seu efeito na emergncia de prticas curriculares de enfrentamento do racismo no espao escolar3 , cujos sujeitos foram professoras da referida Rede de Ensino.

    A Secretaria de Educao, Esporte e Lazer do Recife, instituio composta por oito diretorias gerenciais, dispondo na atualidade de 214 escolas, 58 creches, 19 escolas profissionalizantes, 119 escolas conveniadas e 25 creches conveniadas e atendendo a mais de 144 mil estudantes4 , costuma homenagear anualmente uma personalidade pernambucana. No ano letivo de 2004, homenageou Dona Santa. Reconhecida yalorix recifense, falecida em 1962 que foi rainha do maracatu de baque virado mais antigo do Estado, o Maracatu Elefante, fundado h mais de cem anos. O calendrio escolar e o caderno de textos produzidos para orientar professoras e professores sobre o processo de avaliao na organizao da aprendizagem em ciclos5 traziam naquele ano uma imagem da Yalorix. Entretanto, no traz referncia sobre a abordagem da histria e cultura afro-brasileira, nem tambm

    1 Ativista Negra e Mestre em Educao pela Universidade Federal de Pernambuco [email protected] Estudos financiados pela Fundao Ford, por meio do 4 Concurso Negro e Educao, coordenado pela Ao Educativa e a Associao Nacional de Ps-Graduao em Educao (ANPED), desenvolvido sob a orientao da Prof Dr Maria Eliete Santiago PPGE/UFPE.3 Estudos realizados tambm sob a orientao da Prof Dr Maria Eliete Santiago PPGE/UFPE.4 Conforme informaes disponveis no site da Prefeitura do Recife: www.recife.pe.gov.br em 01/07/2009.

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    sobre a histria dessa mulher, de maneira que, embora a escolha dessa personagem da histria do povo negro do Recife para ser homenageada no ano de 2004 aponte para uma tmida insero da discusso sobre o referido tema em sala de aula, aponta tambm para o modo como a questo estava sendo tratada pela Rede Municipal de Ensino do Recife: ainda de forma incipiente.

    A situao se torna relevante para a afirmao de que existe uma resistncia ou uma dificuldade oficial da Rede Municipal de Ensino do Recife em tornar essa preocupao um debate permanente no espao escolar (SILVA, 2006). Embora encontremos indcios de esforos para responder a demanda de valorizao da dimenso tnico-racial na sala de aula, e at algumas iniciativas nesse campo, como o caso da criao do Grupo de Trabalho da Educao das Relaes tnico-Raciais (GTER) em 2006, tambm encontramos vestgios da superficialidade e precariedade com que a questo vem sendo tratada, mesmo considerando a presena marcante da populao negra na cidade.

    Dados disponveis do Censo de 20006 revelam que Recife possui 1.422.903 habitantes, que corresponde a 18% da populao do estado de Pernambuco. Entre os habitantes do Recife, 46,50% so homens e 53,50% so mulheres. Somando homens e mulheres, 54% se declaram negros e negras (5,4% pretos e 47,9% pardos). Entre os homens, os brancos correspondem a 44% da populao e os negros a 55%, entre as mulheres, as brancas representam 47% e as negras 52%.

    Tambm no Brasil a populao negra constitui-se maioria7. Contudo, a despeito dessa populao constituir a maioria da populao brasileira, o desejo de branqueamento do Brasil invisibiliza essa populao em diversos campos da sociedade, inclusive na rea da educao. Alguns estudos tm mostrado que o rendimento e a permanncia escolar da criana negra acabam sendo condicionados por processos intra-escolares, uma vez que mesmo quando o nvel scio-econmico das famlias equivalente, ainda assim em muitos casos os negros apresentam uma trajetria diferenciada que denota o fracasso escolar. Entre esses estudos esto: Flvia Rosenberg (1995), Hasenbalg e Silva (1999), Pinto (2003). Os processos

    5 Ciclos de Aprendizagem Olhares sobre as prticas nas escolas municipais Leituras Complementares (2004).6 Dados disponveis no Diagnstico da Desigualdade Racial na Cidade do Recife (2008) Prefeitura do Recife; PNUD; DSID.7 O Brasil o segundo pas no mundo em populao negra, ficando atrs apenas da Nigria, na frica. Dados do IBGE para o ano 2007 apontam que a populao brasileira composta por 49,30% de brancos e 49,87% de negros (pretos e pardos), no chegando a 1% a populao pertencente outra raa ou etnia.

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 11

    intra-escolares aos quais se referem os estudos so mecanismos de discriminao tnico-racial no espao escolar que, de modo geral, se expressam pela negao e invisibilizao da populao negra na escola.

    O racismo anti-negro, enquanto elemento estruturador das relaes sociais que foram estabelecidas no Brasil, fundamenta-se na idia de inferioridade do negro e superioridade do branco, o que justifica e consolida a escravido a que os povos africanos foram submetidos. Para Gislene Santos (2002), os europeus trataram diferentemente os ndios da Amrica e os negros da frica, porque embora considerassem os primeiros como primitivos, entendiam que eles eram dotados de uma pureza que no se estendia aos negros. A cor que os distinguia dos brancos era estranha e pedia explicao. (...) Essa explicao tornava-se quase sempre justificativa de sua inferioridade natural (p. 54-55). As investigaes e as especulaes sobre o ser do negro como um fenmeno diferente conduziram os europeus a ver a frica como uma terra de pecado e imoralidade, que gerava homens corrompidos. Dessa forma, fundamentaram as teorias racistas do sculo XIX.

    Afirma a autora (p. 55):

    A Europa civilizada, branca, era tomada como paradigma

    para a compreenso da cultura do novo mundo, como se fosse

    possvel fazer um transplante de valores. A biologia ser a chave

    mestra para esta compreenso e, como j foi dito, fornecer

    os elementos pelos quais a ideia de raa se transformar em

    racismo cientfico.

    A sociedade brasileira e suas instituies, inclusive a escola, vo se constituir em sintonia com esse projeto colonial que institui o racismo e as prticas racistas em suas instituies. Dessa forma, a sociedade em geral e a educao em particular assimilam e reproduzem o imaginrio brasileiro a respeito da populao negra, como uma populao inferior. Durante anos a elite brasileira uniu esforos em busca de mecanismos que negassem nossa condio de pas negro. Uma negao que tenta se perpetuar, mesmo na atualidade, quando o Brasil possui o maior contingente da populao negra fora do continente africano. Ao longo da historiografia brasileira, o racismo tem se reatualizado e atuado continuamente na produo de desigualdades e subordinao.

    No Recife, 44,7% das pessoas que ocupam postos de trabalho mais

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    vulnerveis so negras; 46,8% das que esto desempregadas tambm pertencem a essa populao. O menor ndice de desenvolvimento humano est localizado na zona norte lugar que concentra o maior nmero da populao negra da cidade. Os brancos possuem 85% de chances de frequentar uma escola. Os negros apenas 65% 8.

    Na atualidade, o preconceito e a discriminao baseada em critrios tnico-raciais esto entre os principais motivadores da evaso escolar das pessoas negras. A escola como uma instituio que reproduz as estruturas da sociedade tambm reproduz o racismo, como ideologia e como prtica de relaes sociais que invisibiliza e imobiliza as pessoas, inferiorizando-as e desqualificando-as em funo da sua raa ou cor.

    Buscando contribuir com a desconstruo desse processo, em 2003 promulgada a Lei Federal n 10.639 que institui a obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana. O presente artigo tem como objetivo analisar o processo institudo e implementado pela Rede Municipal de Ensino do Recife com vistas a incluso do ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana em seu currculo escolar. Neste sentido, propusemos a 1) mapear e caracterizar as iniciativas realizadas pela Rede Municipal de Ensino do Recife para a incluso da temtica da histria e cultura afro-brasileira em seu territrio institucional; 2) levantar prticas exitosas desenvolvidas pelas professoras, na discusso da temtica em sala de aula; e 3) identificar limites e possibilidades do processo de implementao da Lei 10. 639/03 na Rede Municipal de Ensino do Recife, visando o fortalecimento desse processo.

    Considerando o que afirma Ceclia Minayo (2004, p. 21): o objeto das cincias sociais essencialmente qualitativo, para o desenvolvimento do estudo nos apoiamos na abordagem qualitativa da pesquisa em educao. Observando a dinmica scio/histrico e cultural do objeto de estudo da pesquisa: o processo de implementao da Lei n 10.639/03, o foco da investigao centrou-se no seu processo e no apenas nos resultados finais. A abordagem metodolgica nos proporcionou a apreenso de concepes, prticas, hbitos, valores, sentidos e significados que nos auxiliou a retratar a viso dos sujeitos participantes da pesquisa, sem contudo negligenciar o contexto scio-histrico e cultural no qual esta viso se inscreve.

    Embora o estudo no tenha sido sobre o cotidiano escolar propriamente

    8 DIEESE Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos - 2003.

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    dito, para anlise dos dados utilizamos as dimenses apontadas por Marli Andr (2003), entendendo que tais dimenses no podem ser consideradas isoladamente: a subjetiva dos sujeitos participantes da pesquisa, no caso os gestores, tcnicos, professoras e professores; a institucional na qual tais sujeitos esto inseridos, o sistema educacional; a instrucional do referido sistema, os contedos curriculares adotados; e a sociopoltica, o contexto sociopoltico e cultural mais amplo.

    O campo emprico do estudo foi a Rede Municipal de Ensino do Recife, que ao criar em 2006, um grupo de trabalho especfico para tratar a educao das relaes tnico-raciais, vem tornando-se referncia para as secretarias de educao locais, no que se refere a implementao da Lei 10.639/03. Utilizamos como fontes documentos oficiais que se mostraram importantes para o entendimento e caracterizao do processo de implementao da Lei 10.639/03 nesta Rede de Ensino, a exemplo da portaria de criao do Grupo de Trabalho em Educao das Relaes tnico-Raciais (GTERE) e de relatrios do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI); tambm ouvimos alguns sujeitos, constitudos por gestores, tcnicos e docentes da educao municipal, de acordo com as necessidades apresentadas no decorrer da pesquisa emprica.

    Quanto aos instrumentos e procedimentos, utilizamos a anlise de documentos e realizamos a entrevista semi-estruturada para ouvir pessoas que consideramos relevantes para o desenvolvimento do trabalho. Para o tratamento, produo e anlise dos dados adotamos a anlise de contedo na perspectiva de Laurence Bardin, utilizando a tcnica de anlise temtica.

    Neste artigo, num primeiro momento realizamos uma discusso terica sobre o contexto histrico que impulsiona a emergncia da Lei n 10.639/03, aqui entendida como resultado dos esforos empreendidos pelo Movimento Social Negro Brasileiro em prol da educao. Em seguida, tecemos algumas consideraes sobre o processo de implementao da referida Lei no Brasil e, por fim, apresentamos os resultados da investigao sobre o processo de implementao da Lei na Rede Municipal de Ensino do Recife, a partir de trs perspectivas: a reconstituio das iniciativas para a implementao; a problematizao do trabalho pedaggico que est sendo vivenciado em sala de aula e a reflexo sobre os limites e avanos institucionais do processo de implementao. Nas consideraes finais, apresentamos algumas sugestes e recomendaes que podem auxiliar os gestores municipais no fortalecimento da implementao da Lei n 10.639/03.

  • 14 EDUCAO E DIVERSIDADE

    Enfrentamentos a Silenciamentos: a Lei n 10.639/03 como fruto da luta do Movimento Social Negro Brasileiro

    A educao tem se constitudo um dos eixos bsicos na reflexo sobre o combate s desigualdades na sociedade brasileira. As anlises que vm sendo desenvolvidas nas ltimas dcadas tm tentado direcion-la para uma ao poltica, libertadora e democrtica. Todavia, grande parte da discusso acerca da educao girou em torno da desigualdade social, da diferena de classes e da luta contra a opresso social e pela liberdade do aluno (SILVA, 2006). De forma que, mesmo entre as diversas pedagogias progressistas, as propostas de igualdade social para negros sempre estiveram atreladas s sadas universalistas, e as perspectivas de ascenso social para esse grupo so vistas como processos individuais.

    Segundo Petronilha Silva e Lcia Barbosa (1997, p. 12), a populao de origem africana, no Brasil, desde sempre expressou suas concepes, convices, orientaes tendo em vista a educao de suas crianas e adolescentes. Entretanto, as preocupaes com as relaes que se desenvolvem entre a educao e a questo tnico-racial fora do mbito do movimento social negro so muito recentes. Motivo pelo qual compreendemos o processo de instituio da obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira como parte do embate histrico empreendido por este movimento em busca de caminhos possveis para a construo e o fortalecimento de uma identidade tnico-racial positiva para a populao negra brasileira. Afirma Marilia Cruz (2005), que embora encontrem-se evidncias do acesso da populao negra a escolas pblicas somente a partir da segunda metade do sculo XIX, esse segmento criou suas prprias escolas e empreendeu esforos diversos desde o perodo do Imprio, que lhes garantissem a apropriao dos saberes formais exigidos socialmente.

    Embora a constituio da sociedade brasileira seja caracterizada pela pluralidade tnico-racial, a ideia de inferioridade do negro tem estruturado as relaes sociais que aqui foram estabelecidas. De forma que a diferena foi transformada em desigualdade e o desejo de que o pas se tornasse um pas branco fez com que a populao negra fosse negada e invisibilizada de formas diversas ao longo dos sculos. A sociedade brasileira e suas instituies, inclusive a escola, vo se constituir em sintonia com esse projeto colonial que institui o racismo anti-negro e as prticas racistas em suas instituies. Dessa forma, a sociedade em geral e a educao em particular assimilam e reproduzem o imaginrio brasileiro a respeito da populao negra, como uma populao inferior. Na instituio escolar essa situao

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 15

    ganha materialidade tendo o currculo e as prticas curriculares como mediadores da invisibilidade da populao negra e de sua cultura. A viso institucional de uma escola pblica homogeneizada tem posto margem, por processos diversos, os grupos ou segmentos sociais considerados subalternos no Brasil, como o caso da populao negra, foco desse trabalho.

    A escola pblica foi pensada e organizada para todos os homens, brancos, detentores de posses, jovens e heterossexuais (SILVA, 2009). Para Arroyo (1995, p. 19), ns, educadores: pertencemos a uma tradio pedaggica que sabe tratar com igualdades e no com diferenas e quando nos deparamos com estas, pensamos que o pedaggico super-las exigindo de todos a mesma trajetria educativa. Ao no tratar a questo da diversidade cultural entre os atores que compem a comunidade escolar, a escola termina por desenvolver prticas curriculares que atuam na manuteno do racismo e da discriminao racial no cotidiano escolar. A criana negra no encontra na escola modelos de esttica que a ajudem a afirmar a cor de sua pele de forma positiva e o debate sobre relaes tnico-raciais ainda aparece de forma incipiente no espao escolar.

    Como afirma Gonalves (1985, p. 315), ao ser incorporada pela escola, uma ao por mais ingnua e despretensiosa que possa parecer, tem fora pedaggica. Em muitos casos, o silncio como um ritual pedaggico a favor da discriminao racial (idem 1985) ainda se faz presente na manuteno de uma pedagogia do silenciamento sobre a temtica das relaes tnico-raciais no espao escolar. Ao analisarmos a homogeneidade da escola que torna invisvel a populao negra e sua cultura, o currculo apresenta-se como campo privilegiado para o entendimento de sua institucionalidade, uma vez que a ao pedaggica materializa-se pela intencionalidade expressa nas prticas curriculares.

    O currculo , como afirma Eliete Santiago (2006), ao mesmo tempo o texto e a prtica que materializa um projeto de educao e de sujeitos, uma vez que ganha significado e traa identidades atravs dos processos de ensino e de aprendizagem (SANTIAGO, 2006, p. 78). Nesta perspectiva, a compreenso das disputas sociais, das tenses e relaes de poder que se vivenciam na construo do texto e na execuo das prticas curriculares, apresenta-se como necessidade central para compreendermos de que forma se d a incluso e a presena da populao negra no espao escolar.

    A escola, como espao de disseminao do conhecimento, foi considerada um instrumento capaz de fazer as pessoas ascenderem socialmente. Para a populao negra, desprovida de bens materiais, este espao apresentou-se quase como a nica

  • 16 EDUCAO E DIVERSIDADE

    oportunidade de conquistar algum prestgio social. Para Marilia Cruz (2005, p. 21), o fato dos negros darem corpo a intervenes sociais no campo intelectual logo nos primeiros anos da Republica, atravs das organizaes negras, da criao de escolas e da imprensa negra, sinaliza para a existncia de processos de escolarizao vivenciados pelos negros desde o perodo da escravido. Segundo a autora,

    a necessidade de ser liberto ou de usufruir a cidadania quando

    livre, tanto durante os perodos do Imprio, quanto nos

    primeiros anos da Repblica, aproximou as camadas negras

    da apropriao do saber escolar, nos moldes das exigncias

    oficiais (2005, p. 27).

    A despeito das afirmaes sobre a incapacidade intelectual dos negros, Marilia Cruz afirma que a ascenso de uma intelectualidade negra desde o perodo republicano ocorreu via domnio da escrita e possibilitou que esse grupo atingisse espaos sociais dos quais os brancos pareciam detentores absolutos (idem, p. 29), a exemplo, da escola. Todavia, para a autora, o espao escolar cumpre uma dupla funo em relao ao negro, veculo de ascenso social e instrumento de discriminao. Segundo a autora, expostos desvalorizao social em funo de seus marcadores tnico-raciais, os negros e negras se apiam na educao escolarizada como possibilidade de aprovao e reconhecimento social. Contudo, o espao escolar marcadamente discriminatrio para esta populao, resultando num aproveitamento desigual e exigindo-lhes maior grau de empenho para que consigam atingir o sucesso escolar (PAIXO, 2008).

    Ao perceber que o tipo de poltica educacional adotado no Brasil desconsidera a populao negra, a atuao do movimento negro brasileiro no se resumiu s reivindicaes pela incluso dessa populao ao sistema educacional. Em meio s comemoraes do centenrio da abolio (1988), o Movimento Negro Unificado elegeu O Negro e a Educao como tema do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste, que aconteceu no Recife em julho de 1988. De acordo com o relatrio da atividade, o encontro teve como preocupao central questionar a negao da importncia do negro na formao social brasileira, atravs dos meios oficiais de educao do pas. As proposies que resultaram dos debates realizados no encontro apontam para a necessidade de introduzir o estudo da Histria da frica nos currculos escolares; discutir o papel da professora e do professor na descolonizao do ensino; e considerar a aprendizagem pela prtica cultural, como

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 17

    elementos importantes para o sucesso do processo de ensino/aprendizagem da populao negra.

    A partir das reivindicaes da incluso da histria e cultura afro-brasileira nos currculos escolares, o Movimento Negro brasileiro problematizou a existncia de valores e prticas discriminatrias na escola, principalmente quando essa instituio nega a existncia da diferena em seus domnios.

    O incio do sculo XXI marcado pela transformao, ainda que lenta, das antigas reivindicaes das entidades negras em polticas pblicas. No mbito da educao, a promulgao da Lei n 10.639 em 9 de janeiro de 2003 uma conquista histrica do Movimento Negro Brasileiro. Altera a Lei n 9.394/1996 de Diretrizes e Bases da Educao Nacional em seus artigos 26 e 79 e torna obrigatria a incluso da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira no currculo oficial de ensino.

    Para Nilma Gomes (2009), um conjunto de acontecimentos contextualiza a referida lei, possibilitando seu sancionamento no ano de 2003. Entre eles, ganham destaque: a realizao da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que aconteceu em Braslia em 1995 sob a coordenao do Movimento Social Negro, reunindo cerca de 30 mil participantes. Naquele ato poltico, os manifestantes entregaram ao ento presidente da Repblica Fernando Henrique Cardoso, o Programa para Superao do Racismo e da Desigualdade Racial; no ano seguinte (1996) foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorizao da Populao Negra e tambm foram elaborados pelo Ministrio da Educao os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que inclua a Pluralidade Cultural como um de seus temas transversais, ainda em uma perspectiva universalista de educao; o processo de preparao e mobilizao para a 3 Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerncia que foi organizada pelas Naes Unidas (ONU) e aconteceu em Durban, na frica do Sul em 2001. Da Conferncia de Durban resultam dois movimentos importantes: a construo do consenso entre as entidades do Movimento Social Negro sobre a necessidade de se implantar aes afirmativas no Brasil e os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro de implementar polticas dessa natureza visando o combate ao racismo e as desigualdades tnico-raciais.

    Segundo a referida autora,

    A mobilizao para a Conferncia de Durban pode ser entendida

    como um dos momentos mais expressivos da participao

  • 18 EDUCAO E DIVERSIDADE

    dos movimentos sociais e de setores no interior do Estado

    para inserir a diversidade tnico-racial na agenda poltica

    nacional e ampliar as condies para que aes e programas

    voltados para a superao das desigualdades raciais fossem

    implementados no pas (idem, p. 48-49).

    Como signatrio da Declarao e Programa de Ao de Durban, o Brasil assume a importncia da educao no processo de desconstruo do racismo e no combate a xenofobia e formas correlatas de discriminao. Entendidas como medidas de reparao e promoo da igualdade tnico-racial, as aes afirmativas ocupam lugar de relevo no Plano da Conferncia e impulsionam a efervescncia do debate sobre sua implementao em territrio brasileiro no perodo ps-Durban (GOMES, 2009).

    Do ponto de vista propriamente legislativo, a Lei de autoria da Deputada Esther Grossi e do Deputado Ben-Hur Ferreira, ambos do Partido dos Trabalhadores e foi apresentada na Cmara dos Deputados como Projeto de Lei n 259, em 11 de maro de 1999. Tal projeto aprovado e remetido ao Senado no dia 05 de abril de 2002, sendo seu sancionamento uma das primeiras iniciativas do governo do presidente Luiz Incio Lula da Silva, em 09 de janeiro de 20039.

    De acordo com Maria de Ftima Batista (2009), o Movimento Social Negro de Pernambuco teve uma participao importante nesse processo de construo da Lei n 10.639. Discusses realizadas por vrios ativistas e educadores do Estado resultaram numa primeira verso do projeto de lei que, por meio da articulao da escritora a ativista negra Inaldete Pinheiro, foi apresentado e discutido com o ento Deputado Estadual de Pernambuco Humberto Costa, tambm do Partido dos Trabalhadores. Em 1993 o projeto foi apresentado na Assemblia Legislativa, no obtendo a aprovao. Eleito Deputado Federal 1994, Humberto Costa leva a proposio para a Comisso de Educao da Cmara dos Deputados onde consegue sua aprovao. Entretanto, no consegue se reeleger no pleito de 1998 afastando-se do legislativo antes que pudesse apresentar o projeto de lei na Cmara dos

    9 Notoriamente, com o governo do presidente Luiz Incio Lula da Silva a partir de 2003, os compromissos assumidos pelo Brasil em Durban vo transformando-se em polticas afirmativas mais concretas. A criao ainda em 2003 da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (SEPPIR), que possui status de ministrio e da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) em 2004, vinculada ao Ministrio da Educao, so exemplos do processo de constituio dessa poltica.

    UFTRealce

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 19

    Deputados. Ao ser consultado, encaminha tal projeto a seus companheiros de partido.

    A leitura de seu pargrafo primeiro nos permite comprovar como o texto da Lei reflete de forma explcita algumas das proposies do movimento negro sobre os contedos que deveriam ser abordados na escola sobre a temtica em questo:

    1 O contedo programtico a que se refere o caput deste artigo

    incluir os estudos da Histria da frica e dos Africanos, a luta

    dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na

    formao da sociedade nacional, resgatando a contribuio do

    povo negro nas reas social, econmica e poltica pertinentes

    Histria do Brasil.

    A Lei estabelece ainda a incluso do dia 20 de novembro Dia nacional da Conscincia Negra nos calendrios escolares. Para Lucimar Dias (2005), que analisou a questo de raa nas leis educacionais entre os anos de 1961 a 2003, do discurso de escola sem distino, chegamos escola que comea a distinguir para compensar processos desiguais entre a populao brasileira (p. 60). Entretanto, seis anos depois de sua promulgao, a implementao da Lei n 10.639/03 ainda no tomou materialidade e constitui-se num desafio para a comunidade escolar e para o movimento negro organizado. Significa dizer que apesar da conquista de marcos legais, que tentam garantir a singularidade e a pluralidade do espao escolar, a escolarizao da populao negra brasileira tem se pautado por uma ideologia que ainda fundamentada no desejo de branqueamento do Brasil e no mito da democracia racial. A escola que a populao negra conhece ainda uma escola que tem negado a sua existncia. Orientada pelo esquecimento e pela invisibilidade dessa populao, a escola ainda constitui-se como um no lugar para os negros (ROMO, 2005 p. 17). Como passo importante para a instituio da poltica de reconhecimento das desigualdades e discriminaes raciais contra os negros no Brasil, a alterao da LDB n 9.394/96 objetiva enfrentar a injustia nos sistemas educacionais do pas. Razo pela qual sua implementao um desafio que est sendo enfrentado em meio a disputas e contradies.

  • 20 EDUCAO E DIVERSIDADE

    Avanos e Desafios do Processo de Implementao da Lei n 10.639/03 no Brasil

    A emergncia da lei 10.639/03 exige que se repensem as bases das relaes tnico-raciais, sociais e pedaggicas sobre as quais se assentam a poltica educacional brasileira. Embora os marcos legais de obrigatoriedade sejam elementos essenciais para a incluso das temticas da Educao das Relaes tnico-Raciais e da Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos estabelecimentos de ensino, no so o suficiente para sua efetiva implementao.

    Para Santos (2005), a forma genrica do prprio texto da Lei demonstra certa despreocupao com uma implementao adequada, uma vez que no estabelece metas, no se refere qualificao das professoras e professores e nem necessidade das universidades reformularem os seus programas de ensino ou cursos de graduao para se adaptar s novas necessidades. Entretanto, nos documentos de regulamentao da referida lei, o Parecer n 03/2004 e a Resoluo n 01/2004, ambos emitidos pelo Conselho Nacional de Educao (CNE) encontramos orientaes referenciais para a sua implementao e consolidao.

    O Parecer CNE/CP 03/2004 foi elaborado sob a responsabilidade da Prof. Dr. Petronilha Beatriz Gonalves e Silva10 a partir de ampla consulta (via questionrio) a diversas pessoas e grupos do Movimento Social Negro, Conselhos Estaduais e Municipais de Educao, professores que desenvolvem trabalhos sobre a temtica das relaes tnico-raciais (SILVA, 2006 apud GOMES, 2009). Por meio de suas normativas, tal parecer oferece caminhos possveis para que os sistemas de ensino tenham parmetros e condies de efetivar os preceitos da Lei n 10.639/03. Determina quais devem ser os princpios orientadores da poltica educacional e faz aluso, entre outras coisas, ao necessrio oferecimento de formao de professoras e professores, a forma e aos contedos que devem ser abordados, a necessidade de investimentos em pesquisas, bem como de produo e aquisio de materiais de didticos.

    Por sua vez, a Resoluo CNE/CP 01/2004 institui o referido parecer como Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais

    10 Petronilha Beatriz Gonalves e Silva reconhecida ativista e intelectual da causa negra. Pesquisadora de renome no estudo das relaes tnico-raciais e africanidades brasileiras, professora titular de Ensino-aprendizagem das Relaes tnico-Raciais da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) e integra o Ncleo de Estudos Afro-brasileiros/UFSCar.

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 21

    e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que devem ser adotadas pelas diversas instituies de ensino, inclusive aquelas que atuam em programas de formao inicial e continuada de professoras e professores. Destaca que o cumprimento das referidas diretrizes ser considerado na avaliao das condies de funcionamento das instituies de ensino. Apresenta os objetivos de cada um das temticas em questo, aponta as atribuies de cada ator dos sistemas de ensino e indica possveis parceiros para subsidiar e trocar experincias com os sistemas e estabelecimentos de ensino na implementao da poltica, tais como: os grupos do Movimento Social Negro (inclusive grupos culturais), as instituies formadoras de professoras e professores e os ncleos afro-brasileiros de estudos e pesquisas.

    A alterao a LDB n 9.394/96 pela Lei n 10.639/03 e suas formas de regulamentao prope transformar a incluso da educao das relaes tnico-raciais e da Histria e Cultura Afro-Brasileira nos currculos escolares em poltica pblica de educao. Para Nilma Gomes (2009), a alterao vincula-se garantia do direito a educao e requalifica esse direito, ao acrescer-lhe o direito diferena. Nesta perspectiva, a Lei n 10.639/03 compreendida como a primeira mudana no sistema educacional brasileiro, dos ltimos 20 anos. Ela prope-se a modificar a escola, mexe com a estrutura da instituio, uma vez que exige a mudana de atitude dos atores da comunidade escolar, em seus mais diversos nveis de atuao.

    Ainda segundo Nilma Gomes (2009, p. 40),

    Com avanos e limites a Lei 10.639/03 e suas diretrizes

    curriculares possibilitaram uma inflexo na educao

    brasileira. Elas fazem parte de uma modalidade de poltica

    at ento pouco adotada pelo Estado brasileiro e pelo prprio

    MEC. So polticas de ao afirmativa voltadas para a

    valorizao da identidade, da memria e da cultura negras.

    Ao considerarmos que o racismo anti-negro constitui-se como elemento estruturador das relaes sociais e institucionais que foram estabelecidas no Brasil, podemos concluir que por consequncia, a Lei n 10.639/03 prope modificaes para a estrutura da prpria sociedade brasileira. Partindo desse princpio no ser difcil compreender o nascedouro das dificuldades vivenciadas e enfrentadas no exerccio de sua implementao. Tais dificuldades so reflexos da ideia enraizada de inferioridade do negro e superioridade do branco, que ainda na atualidade justifica

  • 22 EDUCAO E DIVERSIDADE

    o racismo e as desigualdades tnico-raciais no pas, gerando reaes contrarias adoo de polticas de ao afirmativa para a populao negra brasileira.

    Segundo informaes do Ministrio da Educao (MEC) vrias so as razes elencadas pelos atores dos sistemas de ensino para a no implementao da poltica. Entre elas ganham destaque: o desconhecimento da Lei n 10.639/03; a falta de formao especifica para as professoras e professores; a inexistncia de livros e matrias didticos que correspondam ao contedo proposto e a falta de recursos para investimento. Cabe ressaltar, que boa parte destas dificuldades podem ser sanadas a partir de uma leitura atenta dos documentos de regulao da Lei (o Parecer n 03/2004 e a Resoluo n 01/2004), que oferecem ampla e clara orientao as instituies educacionais.

    Responsvel pela poltica educacional em nvel nacional, o MEC, por meio da Secretaria de Alfabetizao, Formao Continuada e Diversidade (SECAD) tem empreendido diversos esforos para fomentar a implementao da Lei n 10.639/03. A criao e acompanhamento de Fruns Estaduais de Educao e Diversidade tnico-Racial e o processo de elaborao do Plano Nacional de Implementao das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino da Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em conjunto com a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial so exemplos desses esforos.

    Lanado em 13 de maio de 2009, o referido Plano foi construdo com a participao da sociedade civil e do movimento social negro, ao longo de seis encontros que foram denominados Dilogos Regionais sobre a Implementao da Lei n 10.639/2003 e aconteceram durante o ano de 2008. Tambm contou com a participao de instituies como a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), o Conselho Nacional de Secretrios de Educao (CONSED) e a Unio Nacional dos Dirigentes Municipais de Educao (UNDIME).

    De acordo com a apresentao do documento, seu objetivo fortalecer e institucionalizar as orientaes disponibilizadas na Lei n 10.639/2003, no Parecer CNE/CP 003/2004 e na Resoluo CNE/PC 01/2004, as instituies educacionais sobre suas atribuies na implementao dessa poltica. O Plano delimita e explica minuciosamente quais so as atribuies e aes que devem ser adotadas pelas mais diversas instituies educacionais, fundamentando-se em seis eixos temtico: 1) Fortalecimento do Marco Legal; 2) Poltica de Formao Inicial e Continuada; 3) Poltica de Materias Didticos e Paradidticos; 4) Gesto Democrtica e

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 23

    Mecanismos de Participao Social; 5) Avaliao e Monitoramento e 6) Condies Institucionais.

    Ao que parece, embora de fato existam empecilhos concretos para sua efetivao, a exemplo de trabalhos educativos realizados de forma equivocada, por falta de formao de alguns profissionais e da quantidade de livros e materias didticos de baixa qualidade que tem se apresentado como subsdios para a implementao da Lei n 10.639/03, as orientaes esto disponveis, as condies esto dadas e os parceiros dispostos a contribuir. Todavia, no podemos desconsiderar que as polticas afirmativas para a populao negra ainda so vistas com muita reserva pelo iderio republicano brasileiro, que resiste em equacionar a diversidade (GOMES, 2009 p.41).

    Assim, a construo e enraizamento de prticas educacionais anti-racistas constitui-se em um processo longo, que apresenta limites e lida com contradies. No entanto, em meio a vigilncia e mobilizao do Movimento Social Negro e a presso internacional para o cumprimento dos compromissos assumidos em Durban os avanos ainda que tmidos, acontecem. A ampliao do debate sobre relaes raciais que vivenciamos no Brasil exemplo desses avanos. O desafio que est posto compreender a legislao e suas diretrizes dentro do campo das relaes tnico-raciais brasileiras, como poltica educacional de promoo da igualdade racial, inserindo a questo tnico-racial nas metas educacionais do pas.

    Educao das Relaes tnico-Raciais e Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Rede Municipal de Ensino do Recife

    A ampliao do debate pblico sobre a questo racial, fruto da significativa participao da sociedade civil e do governo brasileiro em Durban em 2001, tambm se fez presente no Recife.

    Na efervescncia da discusso, a presso do Movimento Negro do Recife e a presena de militantes desse movimento dentro do governo municipal provocaram a agenda pblica da cidade para o avano das polticas de promoo da igualdade racial, que no Recife comearam a ser construdas em 200111. A partir de 2004, o apoio de organismos internacionais, por meio do desenvolvimento do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI)12, impulsiona e dar visibilidade a construo dessas polticas. Assim, ainda em 2004 aconteceu a I Plenria de Negros e Negras do Oramento Participativo e em abril de 2005 a I Conferncia Municipal

  • 24 EDUCAO E DIVERSIDADE

    de Promoo da Igualdade Racial. A criao de um grupo de referncia para tratar a educao das relaes tnico-raciais foi proposio de ambas atividades13. Cabe ressaltar ainda que o Ministrio Pblico de Pernambuco, entidade que tambm integrou o Programa de Combate ao Racismo Institucional, criando o GT Racismo em sua instituio, moveu processos em vrios municpios do estado para que as autoridades administrativas viabilizem a implementao da Lei 10639/2003.

    nesse contexto de presso, disputa e negociao que as iniciativas da Secretaria de Educao Esporte e Lazer do Recife para a implementao da alterao da LDB n 9.394/96 comeam a ser realizadas.

    Embates e Negociaes: o processo de implementao

    A preocupao com a discusso tnico-racial no espao escolar dentro da referida Secretaria iniciou-se com a participao de algumas tcnicas da instituio nas atividades do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI). De acordo com relatos do ento coordenador do Programa foram realizadas algumas atividades sobre racismo institucional, buscando visibilizar a importncia do tratamento pedaggico da questo e a necessidade de formar os profissionais da educao acerca dessa temtica.

    Tais atividades foram realizadas em meio a conflitos e disputas, considerando que no havia consenso entre os tcnicos da instituio quanto a importncia de tratar a temtica tnico-racial no espao escolar. Alguns defendiam que em funo da pluralidade da escola pblica e seu suposto acolhimento a todas e todos, este debate no se fazia necessrio (SILVA, 2009).

    Segundo o coordenador do PCRI,

    11 A criao do Ncleo da Cultura Afro-Brasileira, setor vinculado Secretaria de Cultura, a primeira iniciativa implementada por uma gesto municipal com vistas a cuidar das especificidades da populao negra recifense.12 O PCRI foi uma iniciativa realizada em parceria pelo Ministrio Britnico para o Desenvolvimento Internacional e Reduo da Pobreza (DFID) e o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) entre os anos de 2001 e 2006. Teve como objetivo fortalecer a capacidade do setor pblico na identificao e preveno do racismo institucional e a participao das organizaes da sociedade civil no debate sobre polticas pblicas racialmente equitativas. Foi implementado no Ministrio da Sade (como um estudo de caso) e nas cidades de Recife/PE e Salvador/BA. Em Recife, sua atuao ganhou maior proporo entre os anos de 2004 e 2006.13 Conforme informaes disponibilizadas no site da Prefeitura do Recife. http://www.recife.pe.gov.br/ Acesso em 04.09.2009.

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 25

    a primeira tentativa do Programa para incluir a dimenso

    tnico-racial na esfera da educao foi entrar no processo de

    formao regular da Secretaria.

    Contudo, o setor que trabalhava com formao continuada

    destinou apenas uma hora, no horrio do almoo, para que a

    questo fosse trabalhada. O Programa utilizou esta uma hora,

    para que depois pudesse avaliar. Avaliou junto secretria

    e a convenceu politicamente de que esta formao no era

    suficiente. E em funo da resistncia discusso era preciso

    que se criasse um setor que cuidasse especificamente desta

    temtica14.

    Mesmo com a Lei n 10.639/2003, as Gerncias da Secretaria de Educao, Esporte e Lazer do Recife no assimilavam a importncia de incluir a dimenso tnico-racial em suas aes. Nessa perspectiva, a criao do Grupo de Trabalho em Educao das Relaes tnico-Raciais (GTER) surge das proposies da sociedade civil e do debate que o PCRI realizou com a secretria de educao, no sentido de convence-lhe politicamente, como disse o entrevistado, sobre a necessidade da existncia de um grupo especfico que tratasse da questo. Em consequncia, ainda segundo o coordenador do PCRI, a formao continuada do ano de 2006 aconteceu de forma mais aprofundada: houve mesas temticas, oficinas especficas e a temtica foi tratada como qualquer outra que merece ser discutida e trabalhada.

    A estratgia utilizada pelo PCRI para fomentar o avano na discusso sobre a temtica tnico-racial no espao escolar foi favorecer a adeso dos profissionais da educao ao debate em questo. Dessa forma, estiveram presentes nas oficinas realizadas pelo Programa aqueles profissionais que desejaram participar: diretores, professores, especialistas e outros funcionrios da escola. Os avanos na discusso s se concretizaram a partir da realizao do Curso Histria e Cultura Afro-Brasileira, que aconteceu paralelamente ao plano de formao das diversas Gerncias da Secretaria de Educao, Esporte e Lazer do Recife. Diante dos resultados do curso, as professoras questionaram a instituio para que realizasse outras atividades que ampliassem sua formao sobre a temtica tnico-racial. O GTER foi criado em maro de 2006, tendo como principal atribuio a implementao da Lei n

    14 Em entrevista concedida pesquisadora.

  • 26 EDUCAO E DIVERSIDADE

    10.639/2003 nos currculos escolares de todos os nveis e modalidades de ensino oferecidos pelo municpio. E nesse sentido buscou desenvolver algumas atividades.

    Em 2006, o Grupo retomou a realizao da Caminhada As Escolas Municipais Descobrindo-se Negras, que acontece anualmente no ms de novembro. Segundo a coordenadora do GTER, a primeira caminhada foi uma iniciativa em conjunto com o Movimento Social Negro de Pernambuco e aconteceu no ano de 1988, em aluso ao centenrio da abolio. Para ela, este um momento no qual as escolas se organizam para fazer essa discusso e levam o resultado para a caminhada. A partir do ano de 2007, o GTER passou a realizar dois seminrios temticos por ano, com o objetivo de fomentar o trabalho pedaggico sobre as relaes tnico-raciais, subsidiando as professoras e professores da Rede. O I seminrio acontece no ms de maro, fazendo referncia ao aniversrio de criao do GTER e ao Dia Internacional de Luta Contra a Xenofobia e Todas as Formas de Discriminao Racial (21 de maro). O segundo acontece no ms de outubro e constitui-se em uma preparao para as comemoraes do ms de novembro (Ms da Conscincia Negra).

    Em maro de 2007, houve o lanamento do Concurso de Prticas Pedaggicas As Escolas do Recife Descobrindo-se Negras. Concurso de prticas exitosas sobre relaes tnico-raciais em sala de aula, que segundo seu edital de lanamento teve como objetivo identificar e dar visibilidade as prticas educativas que valorizam a presena da cultura africana nas escolas permeadas pela resistncia ao racismo e pela promoo da igualdade. Neste concurso inscreveram-se 16 (dezesseis) profissionais. As 06 (seis) primeiras colocadas tiveram suas experincias publicadas em forma de artigo em livro de mesmo nome do concurso, lanado em dezembro de 2008. As 10 primeiras colocadas socializaram suas experincias em forma de pster, no segundo seminrio temtico do GTER do ano de 2007.

    Finalmente, em julho de 2008, o GTER realizou uma exposio em homenagem ao poeta afro-pernambucano Francisco Solano Trindade, por ocasio das comemoraes de seu centenrio de nascimento15 . Naquele ano, instituies do Brasil inteiro, governamentais e no governamentais, realizaram atividades para celebrar 100 anos de Solano Trindade. Poeta, ator, pintor, cineasta e animador

    15 Considerando a prtica da Secretaria de Educao Esporte e Lazer do Recife de homenagear anualmente uma personalidade pernambucana, em 2007 tanto o GTER, como o Conselho de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (CMPPIR) solicitaram que o ano de 2008 tivesse Solano Trindade como homenageado, em virtude das comemoraes de seu centenrio de nascimento. Mas, a solicitao no foi aceita, sendo o ano letivo de 2008 dedicado a todos os Poetas do Recife.

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    cultural, Solano Trindade usou a linguagem artstica como instrumento de resistncia da cultura afro-brasileira e expresso de sua conscincia negra. Por esse motivo, tais instituies, fazendo referncia ao seu centenrio de nascimento, colocou-o no centro do debate sobre cultura, relaes raciais, identidade nacional e tnica.

    Naquele ano, muitas professoras e professores tambm realizaram diversas atividades para discutir a vida e a obra de Solano Trindade. Embora consideremos que as aes isoladas dos profissionais da educao em suas escolas ou salas de aula no se configurem como iniciativas da Secretaria de Educao no cumprimento da Lei, entendemos que uma reflexo sobre o processo de implementao da educao das relaes tnico-raciais e do ensino da histria e cultura Afro-Brasileira no pode ser realizada sem levar em considerao a atuao dos docentes. Compreendemos que a existncia ou falta de esforos institucionais para viabilizar a discusso da temtica reverberam na ao pedaggica vivenciada por esses profissionais em suas salas de aula.

    O Trabalho Pedaggico: relaes tnico-raciais e histria e cultura afro-brasileira na sala de aula

    A anlise das entrevistas realizadas com professoras egressas de uma formao especfica sobre a temtica reafirma nossa convico de que a forma como as professoras desenvolvem o trabalho sobre relaes tnico-raciais no espao escolar est intimamente relacionada ao seu prprio processo de construo identitria. No caso das professoras que foram entrevistadas, esse trabalho vem sendo desenvolvido a partir de trs abordagens: de maneira informal; na evidncia de todo tipo de discriminao e preconceito; no surgimento de questes ou situaes de discriminao.

    O trabalho de maneira informal realizado sem muita sistematizao e vai tomando concretude a partir da orientao e do dilogo, como podemos perceber na fala de uma das professoras: Trabalho assim... dando essa orientao, tendo esse dilogo com o grupo, sobre a questo do homem, a questo de ser negro mesmo. Por meio do relato da professora, podemos observar que a abordagem realizada de forma genrica e sem muita consistncia, demonstrando sua superficialidade. Em alguns casos, o cuidado com o tratamento das tenses existentes nas relaes tnico-raciais leva algumas das professoras a no nomear o contedo do trabalho desenvolvido. Conforme seus relatos, elas no falam em palavras como: preconceito ou discriminao. Falam sobre o teor de tais palavras. A atitude de no nomear o

  • 28 EDUCAO E DIVERSIDADE

    contedo trabalhado pode ser compreendida como resultado do desconforto que ainda vivenciado em discutir relaes tnico-raciais no Brasil. O silenciamento sobre a questo assenta-se no constrangimento das pessoas negras estarem cotidianamente expostas a situaes de preconceito e discriminao tnico-racial.

    A abordagem a partir de todo tipo de discriminao e preconceito outra forma de desenvolvimento do trabalho sobre relaes tnico-raciais no espao escolar que apontada. A partir das falas das professoras podemos inferir que essa abordagem procura tratar as questes tnico-raciais sem lhes atribuir destaque especfico, como afirma uma outra professora: trabalho discriminao e racial tambm. em torno das diversas formas de discriminao existentes nas relaes sociais brasileiras que esta maneira de trabalhar est ancorada. Considerando que no Brasil as desigualdades tnico-raciais so vistas como sociais, podemos inferir que o contedo especfico sobre relaes tnico-raciais no explorado ou aprofundado.

    Quando surgem questes ou situaes de discriminao uma abordagem que aparece na fala da maioria das professoras. O fato de acontecer apenas quando surge uma questo ou situao de discriminao d margem a entend-la como uma abordagem feita de forma espontnea, na qual no h intencionalidade, no podendo, portanto, configurar o contedo em objeto de ensino e aprendizagem. Porm, ao considerarmos a incidncia do surgimento dessas questes e situaes no cotidiano escolar, podemos inferir que esta a abordagem que carrega o maior grau de continuidade ou permanncia. Os relatos das professoras revelam o espontanesmo do trabalho desenvolvido e o tratamento da temtica como algo parte dos contedos curriculares, como se preconceito, discriminao e relaes tnico-raciais no compusessem o repertrio dos conhecimentos que so transformados em contedos de ensino. Vejamos um depoimento:

    quando surgem essas questes eu paro tudo. Se eu estiver

    trabalhando, dando um contedo, explicando... Eu congelo o

    tempo e radicalizo mesmo. Radicalizo... quando eu digo, pra

    tudo, fecha o caderno, eu no quero nada na mesa... E comeo

    a discutir e discutir... o que eu chamo de cozinhar o juzo.

    A algum levanta a mo e trs uma colocao... Falo tudo

    mesmo. Eu acho que essas questes so mais importantes do

    que qualquer contedo. um trabalho de sensibilizao.

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 29

    Para Souza (2009), os contedos pedaggicos subdividem-se em contedos educacionais, instrumentais e operativos. Os contedos educacionais so constitudos pela compreenso, interpretao e explicao do contexto histrico cultural em que vivemos. Os contedos instrumentais so aqueles que dizem respeito aprendizagem das linguagens verbais (escritas e orais), das matemticas e das linguagens artsticas. E os contedos operativos so compostos pelo desenvolvimento da capacidade de projetar intervenes sociais em diferentes mbitos. A temtica em questo compe os contedos educativos e, ao ser abordada de forma espontnea, margem dos contedos de ensino, desconsiderada como componente curricular.

    Embora o trabalho apresente uma intencionalidade e uma sistemtica de desenvolvimento, em seu conjunto, as formas de abordagem do tema no se pautar por nenhum planejamento pedaggico formal. No existe programa, projeto ou proposta de trabalho para essa rea.

    A ao pedaggica realizada pelas professoras no tratamento da temtica relaes tnico-raciais marcada pelo princpio da transversalidade. A diversificao de atividades que aparecem indica que esta uma questo que no trabalhada uniformemente. Para envolver os alunos necessita ser apresentada de diferentes formas e estar sempre presente no cotidiano da prtica docente. O contedo dessa ao enfoca prioritariamente a necessidade do respeito s diferenas, a elevao da auto-estima das pessoas negras e a visibilizao da histria do povo negro na histria do Brasil. Entre as vrias atividades que so realizadas aparecem com destaque as atividades ldicas (danas, histrias, filmes, msicas, lendas africanas); o dilogo ou exposio dialogada; e a leitura e produo de textos. Embora com menor incidncia, o trabalho com o livro didtico; as atividades de reconhecimento pessoal; e as atividades de visualizao de imagens e mapa da frica, tambm so citadas.

    Ao que nos parece, as prticas desenvolvidas pelas professoras so um passo importante e necessrio para o enfrentamento do racismo no espao escolar. Entretanto, muito ainda precisa ser feito no que se refere ao ensino da histria e da cultura afro-brasileira. A ao pedaggica desenvolvida pelas profissionais dialoga com os princpios orientadores que constam nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a saber: conscincia poltica e histrica da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; e aes educativas de combate ao racismo e discriminao. Entretanto, ainda contemplam pouco os contedos

  • 30 EDUCAO E DIVERSIDADE

    apresentados pelo documento sobre essas temticas para serem trabalhados em sala de aula.

    A falta de investimentos mais contundentes por parte da Secretaria Municipal de Educao, Esporte e Lazer do Recife, como a aquisio de livros e matrias didticos de boa qualidade sobre a temtica, certamente colabora com a forma espontnea e sem planejamento como o trabalho pedaggico vem sendo desenvolvido em sala de aula. Em que pese a Rede Municipal de Ensino do Recife aparecer como referncia na implementao da Lei n 10.639/03 a distribuio da verso em quadrinhos do livro Casa Grande e Senzala para seus estudantes exemplo das contradies vivenciadas neste processo de implementao. Contradizendo os princpios das Diretrizes Curriculares Nacionais, o livro nesta verso apresenta a histria do Brasil sob uma perspectiva fantasiosa, revisionista, racista e sexista. Razo pela qual a Secretaria Municipal foi convidada a dar explicaes ao Conselho Municipal de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (CMPPIR) sobre a aquisio e distribuio da publicao.

    O Recife como Referncia: limites e possibilidades do processo de implemen-tao

    Ao criar um grupo especfico para tratar a educao das relaes tnico-raciais, a Rede Municipal de Ensino do Recife vem tornando-se referncia para as secretarias de educao locais, no que se refere a incluso das temticas das relaes tnico-racial e da histria e cultura afro-brasileira e africana em seu territrio institucional. Entretanto, as evidncias permitem afirmar que o processo de discusso e implementao da Lei n 10.639/03 na referida Rede de Ensino constitui-se um processo ainda incipiente porque resultado de uma intensa disputa social (SILVA, 2009). Convidada a caracterizar esse processo, a coordenadora do GTER assim o define:

    Eu acho muito parecido com todo o processo de auto-afirmao

    do negro no Brasil. Voc v o processo de entraves. Tem gente

    que acha que no precisa essa discusso. Porque a escola

    muito plural e atende a todos. Ento eu caracterizo como um

    processo lento, em que se faz necessrio muita negociao,

    muito engajamento de quem est l na frente defendendo e [a

    necessidade] de formar o mximo de pessoas que esto ali frente

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 31

    a esse encaminhamento para elas comearem a compreender

    porque se faz necessrio essa poltica de igualdade racial na

    educao16.

    No se pode negar os esforos empreendidos pelo grupo de trabalho no sentido de propor e realizar atividades que discutam a temtica tnico-racial com as professoras e professores da Rede; tambm necessrio registrar que existem diversos profissionais que em suas salas de aula esto tentando transformar este debate em prtica educativa: as prticas exitosas apresentadas ao concurso As Escolas do Recife Descobrindo-se Negras so exemplos desse processo. Contudo, para Silva e Melo (2000), a configurao de uma poltica pblica traduz-se por meio de um programa ou projeto, que apresente metas, recursos e prazos de execuo. Sua implementao entendida como um jogo entre implementadores no qual prevalece a troca, a negociao e a barganha, o dissenso e a contradio quanto aos objetivos (p. 9). As aes empreendidas pelo GTER, embora deem conta da instigao discusso sobre relaes tnico-raciais na sala de aula, ainda so atividades pontuais, planejadas e realizadas para sensibilizar professoras e professores. Portanto, no constituem iniciativas estruturadoras de uma poltica de implementao do Ensino da Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, como demanda a Lei n 10.639/03 e suas formas de regulamentao.

    O Grupo de Trabalho tem por objetivo, segundo a portaria de sua criao,

    promover a institucionalizao da Educao das Relaes

    tnico-raciais na perspectiva de favorecer a formao de

    profissionais da educao e ampliar os temas dos currculos

    escolares para diversidade cultural, racial, social e econmica

    brasileira como poltica pblica no municpio do Recife.

    Todavia, a portaria no faz meno aos recursos que sero utilizados pelo grupo para cumprir suas atribuies e no define prazos para sua execuo. Considerando o carter temporrio de um grupo de trabalho, podemos aferir a fragilidade desse processo de institucionalizao.

    Outra atribuio do GTER que merece ser destacada a sua participao no processo de formao continuada. Segundo o documento, cabe ao grupo

    16 Em entrevista concedida pesquisadora

  • 32 EDUCAO E DIVERSIDADE

    participar do processo de constituio coletiva, acompanhamento e avaliao da Formao Continuada dos professores da Rede Municipal. Entretanto, o processo de formao continuada da Rede de responsabilidade setorial de cada modalidade de ensino, conforme afirma a coordenadora do Grupo de Trabalho:

    A formao realizada por modalidade de ensino: Educao

    Infantil, Ensino Fundamental, 1 e 2 ciclos, 3 e 4 ciclos e

    Educao de Jovens e Adultos. Quem pensa a formao a

    prpria modalidade de ensino. Por exemplo: a gerente de 1 e

    2 ciclos, ela com seus coordenadores pedaggicos, definem o

    tema da formao, convida os formadores, faz o planejamento.

    Segundo a coordenadora, a participao do GTER no processo de formao continuada da Rede Municipal de Ensino acontece mediante o convite de cada setorial e limitada indicao de temas e/ou formadores. Conforme Silva (2006), a Secretaria de Educao Esporte e Lazer do Recife ainda no conseguiu desenvolver mecanismos que possibilitassem o convencimento de seus tcnicos e especialistas sobre a necessidade de incluir a questo tnico-racial em seu planejamento de formao continuada, de forma especfica e permanente. Por esse motivo, as pessoas que defendem tal incluso, deparam-se com inmeros empecilhos institucionais para impedir que ela se concretize.

    A ausncia de um plano de formao continuada que d conta dessa formao especfica para todas as modalidades de ensino outro indicativo da vulnerabilidade com que vem se tratando esta questo. At a atualidade, no existe uma proposta curricular que oriente a incluso da temtica das relaes tnico-raciais e da histria e cultura afro-brasileira e africana nos currculos escolares. Tanto na formao continuada das professoras e professores, quanto nos contedos programticos destinados aos alunos da Rede, a incluso dessas temticas vem sendo desenvolvida ainda de forma aleatria, ou pontualmente nas datas comemorativas: 21 de maro (Dia Internacional de Luta contra a Xenofobia e Todas as Formas de Discriminao Racial) e 20 de novembro (Dia Nacional da Conscincia Negra).

    Tais fatos nos conduzem a reafirmar que existe uma resistncia ou uma dificuldade oficial em tornar essa preocupao debate permanente em seu territrio institucional. Uma dificuldade que pode ser traduzida como a resistncia oficial de assumir a Lei n 10.639/03 como uma alterao da LDB n 9.394/96. E nesta perspectiva constitui-se como resistncia a implementao de polticas educacionais

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 33

    de promoo da igualdade tnico-racial. Estudando o processo de construo dessas polticas em Recife, Elizama Messias (2009) as compreende como as iniciativas que tm adotado a questo tnico-racial como um eixo articulador de polticas pblicas educacionais. Para a autora, as polticas de promoo da igualdade racial destinadas a populao negra, so polticas afirmativas de carter redistributivo e valorativo voltadas para uma parcela da populao que no se pode chamar de minoria (p. 83). Esta definio nos leva ao questionamento da lgica que justifica o posicionamento contrrio de pessoas, grupos e autoridades institucionais a possibilidade de acesso da populao negra a um direito que lhe garantido legalmente, mas ainda no tem materialidade e concretude, o direito a educao como prtica da diferena.

    O contexto exposto anteriormente ratifica a ideia de uma necessria e permanente vigilncia na defesa dos direitos conquistados pela populao negra. Quando se trata da implementao de mecanismos que podem corrigir as desigualdades tnico-raciais, observamos uma tenso permanente e o desenvolvimento de mltiplas formas da expresso da ideologia racista para tentar impedir que tais direitos se consolidem. No mbito das polticas de promoo da igualdade racial a Lei n 10.639/03 busca desconstruir esteretipos a respeito do continente africano e dos afro-brasileiros. Exige o reconhecimento e a valorizao de culturas e identidades historicamente discriminadas e invisibilizadas pelo desejo de branqueamento do Brasil.

    Os conflitos e tenses do processo de implementao da referida Lei na Rede Municipal de Ensino do Recife apontam que a instituio carrega as marcas do racismo institucional. Todavia, os avanos constitudos, em meio a embates e contradies, a partir do marco regulatrio da alterao da LDB n 9.394/96 tem mostrado que denunciar e combater o racismo, para promover a igualdade tnico-racial uma possibilidade capaz de produzir mudanas. De forma que problematizar as aes desenvolvidas no Recife, bem como a referncia que a cidade possui para outras secretarias parece-nos ser um passo importante para o fortalecimento e a consolidao do processo de implementao da Lei 10.639/03 nessa cidade.

    Consideraes Finais

    Os entraves enfrentados na implementao da Lei n 10.639/03 no uma realidade apenas da Rede Municipal de Ensino do Recife. Configura-se um quadro que se repete pelas diversas regies do Brasil. Resultado de disputa e negociao, esse processo de implementao reflete as dificuldades da sociedade brasileira para

  • 34 EDUCAO E DIVERSIDADE

    lidar com a presena do racismo, do preconceito e da discriminao tnico-racial contra a populao negra.

    Considerando a referida Lei no mbito das polticas de promoo da igualdade tnico-racial, o desafio que est posto para os gestores pblicos municipais do Recife compreend-la como poltica pblica de educao e coloc-la no centro da discusso de sua poltica educacional. E neste sentido, o Plano Nacional de Implementao das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino da Histria e Cultura Afro -Brasileira e Africana um instrumento valioso. A fim de reduzir as desigualdades tnico-raciais no campo da educao, a Rede Municipal de Ensino do Recife necessita desenvolver mecanismos que garantam o debate sobre a educao das relaes tnico-raciais e sobre a histria e cultura afro-brasileira e africana em todos os seus espaos e territrios institucionais.

    A universalizao de uma formao temtica especfica, que oferea referncias positivas sobre a histria da populao negra para todos os seus profissionais apresenta-se como uma estratgia relevante no desencadeamento desse processo de enraizamento da Lei como poltica pblica. Disponibilizar subsdios e material didtico, oferecer cursos de formao especfica, realizar um acompanhamento sistemtico e transformar o debate sobre relaes tnico-raciais em rotina nos seus espaos de discusso parece-nos ser um caminho.

    Neste sentido, reunir parceiros e construir uma proposta curricular municipal que aproxime a temtica da realidade local e oriente a atuao das diversas modalidades de ensino revela-se como uma tarefa urgente do Grupo de Trabalho em Educao das Relaes tnico-Raciais (GTER) para que possa cumprir sua misso institucional propositiva. A histrica presso e atuao dos movimentos negros e da sociedade civil organizada so demonstraes da disponibilidade dos segmentos para colaborar com esse processo de construo. Em virtude da forma como est estruturada a formao continuada na Secretaria de Educao, que compartimenta cada modalidade de ensino, a inexistncia de um marco regulatrio sobre a institucionalizao da discusso das temticas postas, fragiliza ainda mais o processo de implementao da Lei n 10.639/03 na Rede de Ensino.

    Considerando a forma como o debate sobre relaes tnico-raciais vem sendo conduzida no Brasil e sua nocividade para a construo identitria da populao negra, investir em polticas educacionais de promoo da igualdade tnico-racial investir em educao de qualidade para todas e todos. Imprimir esforos que contribuam para que a escola tenha condies de acolher todos os seus alunos

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 35

    respeitando suas diferenas exerccio pessoal, coletivo e institucional.

    REFERNCIAS

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  • EDUCAO E DIVERSIDADE 37

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  • 38 EDUCAO E DIVERSIDADE

    NETO, Jos; SANTIAGO, Eliete. (Orgs.). Formao de Professores e Prtica Pedaggica. Recife: Ed. UFPE, 2009.

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 39

    O PROCESSO DE IMPLANTAO DA LEI 10.639/2003 PRTICAS DISCURSIVAS NA EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS: reflexes sobre a construo de identidades tnico-raciais

    Dayse Cabral de Moura1

    O discurso tambm desempenha um papel fundamental para essa

    dimenso cognitiva do racismo. As ideologias e os preconceitos

    tnicos no so inatos e no se desenvolvem espontaneamente

    na interao tnica. Eles so adquiridos e aprendidos, e isso

    normalmente ocorre atravs da comunicao, ou seja, atravs

    da escrita e da fala.Esse essencialmente o modo como o

    racismo aprendido na sociedade (VAN DIJK, 2008, p. 135).

    Introduo

    Esse artigo, decorrente de pesquisa sobre as prticas discursivas desenvolvidas nas aulas de lngua portuguesa e suas implicaes nos processo de construo identitria dos(as) alunos(as) da Educao de Jovens e Adultos(EJA), analisa alguns estudos que tiveram como foco a constituio de identidades sociais em salas de aula, atravs dos processos de ensino-aprendizagem da lngua portuguesa.

    Concebemos, assim como Moita Lopes (2002), que as identidades no so inatas e fixas, elas so construdas atravs dos discursos, e, nessa perspectiva, a leitura considerada como uma prtica social situada, na qual o discurso compreendido como uma ao por meio da qual o autor e o leitor podem interagir, relacionar-se e atuar no mundo social, construindo a si e aos outros. Os sujeitos tornam-se, dessa forma, conscientes de quem so e constroem suas identidades sociais ao agir no mundo por meio da linguagem.

    Nessa direo, defendemos que os processos de afirmao da identidade negra no Brasil, alm de ser um instrumento de reivindicao de direitos e de justia, contribuem para dar uma maior visibilidade populao negra, reescrever e afirmar o patrimnio histrico e cultural construdo por aquele grupo racial, possibilitando-lhe um espao scio-poltico na sociedade.

    16 Em entrevista concedida pesquisadora

  • 40 EDUCAO E DIVERSIDADE

    Apontamos que um dos caminhos para se obter tais finalidades parte da realizao de uma leitura crtica da sociedade, de como a discriminao e os preconceitos baseados nos critrios de raa/cor so determinantes e capazes de interferir nas trajetrias escolares e profissionais dos indivduos, definindo o lugar social dos sujeitos, negando as identidades diferenciadas, as diferentes prticas sociais, polticas e culturais.

    Nesse sentido, apontamos o papel social da escola nos processos de construo de identidades sociais. Estudos como o de Moita Lopes (2002) identificam a funo da escola no processo de construo de identidades sociais, concebendo-a como um dos espaos mais importantes para a constituio de quem somos, na medida em que se apresenta como um dos primeiros espaos sociais que a pessoa tem acesso, desde criana, possibilitando-lhe interagir com outros modos de ser humanos, relativamente diferentes do universo homogeneizado da famlia.

    A escola , assim, percebida como um espao de construo de conhecimento/aprendizagem. Essa representao confere um status ao conhecimento produzido na instituio escolar, em detrimento daqueles produzidos em outros contextos. As identidades sociais, dentre elas as identidades tnico-raciais construdas na escola, podem assumir um importante papel na vida dos sujeitos.

    Tais aspectos nos motivaram a problematizar as relaes existentes entre o processo de ensino-aprendizagem da lngua portuguesa e a construo da identidade tnico racial dos(as) alunos(as) da EJA. Buscamos refletir sobre como atravs das prticas discursivas os alunos(as) aprendem a se constituir como sujeitos. Considerando em que medida os discursos proferidos na sala de aula interferem na subjetividade, na afetividade, na auto-estima e na auto-imagem dos discentes.

    Para tanto, na primeira parte do texto, caracterizamos os(as) alunos(as) da Educao de Jovens e Adultos estabelecendo relaes com o seu pertencimento tnico-racial e o desempenho escolar; na segunda parte abordamos as prticas discursivas em sala de aula e suas implicaes no processo de construo da identidade social, especificando a identidade tnico-racial dos(as) alunos(as). Finalizamos buscando ressaltar a importncia da reflexo sobre as prticas discursivas desenvolvidas na escola, e seu papel no processo de empoderamento, afirmao ou negao das identidades tnico-raciais.

  • EDUCAO E DIVERSIDADE 41

    O pertencimento tnico-racial dos alunos(as) da Educao de Jovens e Adultos e suas implicaes no desenvolvimento escolar

    Atualmente, assistimos a um considervel aumento do debate em torno das relaes tnico-raciais. H maior visibilidade da temtica em conseqncia das discusses travadas pelos movimentos sociais, especificamente, o Movimento Negro, que ao longo da histria luta pela implementao de polticas pblicas capazes de garantir o acesso populao negra e pobre do pas a direitos fundamentais, como educao, moradia, sade, etc. Nessa direo, reivindica-se tambm o direito ao pleno reconhecimento da diferena como marca de humanidade e no como um elemento que justifique processos de discriminao e excluso social permanentes.

    Nesse contexto, apontamos os estudos de Gonalves & Silva (2000) sobre o movimento negro e educao. Eles evidenciam que no projeto de educao do pas foram excludos os negros e os ndios. Os autores denunciam que no perodo colonial era proibido, sobretudo aos africanos escravizados, aprenderem a ler, escrever, a frequentar escolas quando essas existiam. Em alguns casos, nas fazendas de padres jesutas era concedido o privilgio dos filhos dos escravos receberem lies de catecismo e a aprendizagem das primeiras letras, contudo, no podiam almejar estudos de instruo mdia e superior. Naquelas escolas as crianas negras eram submetidas a um processo de aculturao da viso crist de mundo, atravs de mtodos repressivos com o objetivo de modelar a moral e o comportamento social.

    Sobre o desenvolvimento de cursos noturnos no final do sculo XIX, os autores, apontam que o objetivo daqueles era preparar os adultos, especificamente das classes populares, para novas modalidades de trabalho que estavam sendo introduzidas. As instrues davam nfase ao preparo para o trabalho que era considerado como um antdoto ao crime, ao vcio e promotores do progresso e da civilizao. Dessa forma, os cursos noturnos para jovens e adultos foram criados e expandidos no pas, visando desenvolver os ideais de civilidade, moralidade, liberdade, progresso, modernidade e a afirmao do trabalho.

    Destacam os autores que desde a sua fundao, a escola noturna foi vetada ao escravo. Em 1878 foi criado o Decreto de Lencio de Carvalho, instituindo os cursos noturnos voltados apenas para livres e libertos no municpio da Corte. Em abril de 1879, aquele veto foi derrubado, um ano aps a criao dos cursos de jovens e adultos. Mesmo assim, nem todas as provncias aceitavam a presena dos escravos e dos negros libertos e livres nas escolas noturnas. As escolas naquele perodo utilizavam poderosos mecanismos de excluso, tomando como base os

  • 42 EDUCAO E DIVERSIDADE

    critrios de classe (eram excludos os cativos) e de raa (excluam os negros em geral, mesmo que fossem livres e libertos). Destacam os autores:

    Ainda que amparadas por uma reforma de ensino, que lhes

    dava a possibilidade de oferecer instruo ao povo, essas

    escolas tinham de enfrentar o paradoxo de serem legalmente

    abertas a todos em um contexto escravocrata, por definio,

    excludente (GONALVES & SILVA, 2000, p.136).

    Para os autores, o abandono a que foi submetida populao negra em relao educao escolar no final do sculo XIX ficou evidente pela passividade com que o Estado assistiu aos processos de precarizao moral e educacional daquela populao, cujas implicaes repercutiram no sculo XX e identificamos suas conseqncias at os dias atuais,

    Quando samos do sculo XIX e adentramos o sculo XX,

    deparamo-nos com o abandono a que foi relegada a populao

    negra. A maior parte dos estudos retrata a situao dos negros

    nas reas urbanas, no perodo em que algumas cidades do pas

    iniciam rpido processo de modernizao. Mudanas bruscas

    de valores, associadas a profundas transformaes no mercado

    de trabalho, exigiam, da parte dos diferentes segmentos sociais,

    a criao de novas formas organizacionais, por adoo de