Escritos VI

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Escritos VI 9 APRESENTAÇÃO O incentivo à leitura e a apresentação de novos autores da literatura gaúcha: essa a tônica da obra que é oferecida a partir das páginas seguintes, para deleite do público que espera com expectativa ímpar a continuidade deste projeto que iniciou em 2007, e que chega agora ao quinto volume. Ao destacarmos aqui essa questão crucial para o fomento da cultura que é a multiplicação dos leitores, estamos também colocando mais um grão para o cultivo da leitura, estamos ajudando a transformar o mundo por meio das palavras. do grande público, estamos também incentivando o surgimento de novos talentos da literatura feita aqui no Rio Grande do Sul. São vozes privilegiadas, de diferentes profissões, de diferentes credos, de idades grandes artistas. Em Escritos V, o leitor encontrará muitas e belas poesias, crônicas repletas de criatividade e por fim contos e personagens que irão transportar cada um agora apresentam ao grande público neste livro. Este é o mundo mágico da literatura, onde cada autor, cada autora, compartilha em seus textos a sua verdade, os seus personagens, os seus sonhos, seus anseios, as suas dúvidas e as suas certezas. Dessa forma, é fundamental o papel dos autores de Escritos V, pois além de incentivar a leitura, eles dão ao grande público a oportunidade única de compartilhar da beleza e sensibilidade de seus textos. E isso é tudo que a literatura almeja: a interação do autor com o seu público. Boa leitura! Benedito Saldanha Escritor e Editor

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Poemas de diversos autores

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Escritos VI 9

APRESENTAÇÃO

O incentivo à leitura e a apresentação de novos autores da literatura gaúcha: essa a tônica da obra que é oferecida a partir das páginas seguintes, para deleite do público que espera com expectativa ímpar a continuidade deste projeto que iniciou em 2007, e que chega agora ao quinto volume.

Ao destacarmos aqui essa questão crucial para o fomento da cultura que é a multiplicação dos leitores, estamos também colocando mais um grão para o cultivo da leitura, estamos ajudando a transformar o mundo por meio das palavras.

do grande público, estamos também incentivando o surgimento de novos talentos da literatura feita aqui no Rio Grande do Sul. São vozes privilegiadas, de diferentes profissões, de diferentes credos, de idades grandes artistas.

Em Escritos V, o leitor encontrará muitas e belas poesias, crônicas repletas de criatividade e por fim contos e personagens que irão transportar cada um agora apresentam ao grande público neste livro. Este é o mundo mágico da literatura, onde cada autor, cada autora, compartilha em seus textos a sua verdade, os seus personagens, os seus sonhos, seus anseios, as suas dúvidas e as suas certezas.

Dessa forma, é fundamental o papel dos autores de Escritos V, pois além de incentivar a leitura, eles dão ao grande público a oportunidade única de compartilhar da beleza e sensibilidade de seus textos. E isso é tudo que a literatura almeja: a interação do autor com o seu público. Boa leitura!

Benedito Saldanha Escritor e Editor

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TEXTOS E BIOGRAFIAS DOS AUTORES

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QUINTANARES Adão Wons

Estação Alegrete

um último apito

o trem prossegue.

Insólito tempo que não cessa

na rua dos Andradas

hotel Magestic

apartamento 217.

Quintanares vive

em silêncios que não calam.

Velhos sapatos usados

adornam caminhos passados

calçando fantasmas

que seguem habitados.

Quintanares habitam

à enlaçar madrugadas

alucinando as noites

de insônia

fitando a lua no parapeito

da janela enlutada.

E a agora somos nós Quintana

que realimentamos palavras

tuas

em versos que dizem

saudades.

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Adão Wons é natural de Cotiporã/RS. Sua vida está equilibrada entre a empresa que tira seu sustento e suas atividades culturais que abrange a literatura mundial. Imortal da Academia de Letras do Brasil. Embaixador Universal da Paz pelo Cercle Universel des Ambassadeurs de la Paz-Suisse/France. Editor do alternativo Cotiporã Cultural, onde divulga novos talentos na cena literária mundial. Seus poemas já foram traduzidos em inglês e Russo e publicados em

inúmeros jornais, no Brasil e pelo mundo. E-mail: [email protected]

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SOBREMESA MUSICAL Adélia Einsfeldt

Maestro Marcio Buzatto

regala a doce tarde

ao som

de violinos, violoncelo

elo entre

sopros bateria cordas

acordes musicais

ressoam

em harmonia

bela melodia

encantamento

com a Orquestra Filarmônica

da PUCRS.

Adélia Einsfeldt nasceu e reside em Porto Alegre/RS. Membro efetivo da IWA (International Writers and Artists Association) USA. Sócia efetiva da Sociedade Partenon Literário. Autora Portal CEN/Portugal. Lançamento do seu livro de poesia infantil “Animais se Divertem” em 2011 na Feira do Livro em Porto Alegre e livro “PÉTALAS” em 2013 com autógrafos na Feira do Livro em Porto Alegre e Santa Maria/RS. Integrante de grupos de poesia e

Performance.

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ANJO Aida de Bairros

Mãe das recordações

Oh tu minha alegria

A doçura do lar, o perfume do entardecer.

Que doce era teu sorriso de bom coração

Rainha das Visões...

No “jazigo” da tristeza tornam em cinza

A enfermidade e a morte.

Que dirás esta noite, pobre alma solitária!

Será o anjo da guarda, anjo toda alegria

Anjo toda bondade, anjo toda beleza, anjo toda ventura...

Alegria e clarões!

Mas de ti só imploro as tuas orações

Meu anjo do céu, Mãe das recordações

Rainha das visões!

Dedicatória à minha madrinha e mãe que agora vive no céu

como mais uma estrela a brilhar!

Aida Maria.

Aida Maria de Bairros nascida em Caçapava do Sul, mora atualmente em Viamão é Funcionária Pública e está pela primeira vez participando da coletânea Escritos pela Sociedade Partenon Literário. Aos oito anos venceu um concurso de poesias pela Caixa Econômica Federal e foi classificada com o 1º Lugar. O tema foi sobre as notas fiscais. No momento é vice-presidente da Associação Literária de Viamão, a ALVI.

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ÁRVORE E VIDA Alda Paulina S.B.Borges

Há uma leve semelhança

Entre uma velha árvore

E esta vida esperança

Que vai determinando

O tempo e a história

No suceder de criança.

Velha árvore crescida

Ramos estendidos

Entre verdes e amarelos

De outonos coloridos

Finalizando sua vida.

Até que o vento lufada

Forte como um lamento

Ponha a nu seu corpo

Num doloroso abandono

Sufrágios de sofrimento.

Já viveu sua primavera

Nascida de verde encanto

Foi confidente e quimera

De gentes e de prantos

Em etéreos matizes

De horas felizes.

Chegou seu inverno

Esquálida e triste

Resistindo ferrenha.

O senhor tempo a fará

Graveto e lenha

Que nada modificará

O destino que se tenha.

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SEU SIMÃO Alda Paulina S. Barreto Borges

Seu Simão, um preto véio como se autodenominava,

começou sua prosa com Pedro: Desde que o mundo é mundo, veja

seu moço cumé, toda história que se conta, tem no meio uma

muié.Sentados no alpendre da casa da fazenda, um, o curioso moço

vindo do cimo do mundo, e Seu Simão o oráculo das

circunstâncias.

Simão já apresentava a idade dos tempos, quando chegou na

fazenda pedindo emprego. Ficou capatazeando em troca de um

rancho onde pudesse viver só. De início despertou curiosidade, deu

poucas respostas, e na maioria das vezes, apenas um sorriso de

alvos dentes, em contraste à pele negra. Foi se aquerenciando.

Exímio na lida dos campos, integrado e aceito. Seu Simão faz tudo

desde benzeduras, bandagens e consertos nos entorses das

camperiadas. Inclusive sua própria comida perfumada pelo vento

soprando da banda do seu rancho. O patrão, descendentes, e todos,

sempre à procura de Simão para um conselho, para uma história,

para uma prevenção do ataque de formigas, de temporais, de

espantar raios, maus olhados, e, principalmente fazer benzeduras.

Tocava violão em noites de luar, cantando letras que ninguém sabia

traduzir, comoventes. Intrigantes ornatos no seu rancho: um altar

com imagem de bronze de Santo Onofre, e uma caixa do mesmo

material, sempre fechada. Quando indagado, respondia com seu

sorriso: Caixa de Pandora.

Entre mistérios e lendas, Pedro soube de Seu Simão. E ali

estavam os dois. Pedro ansioso por desvendar segredos e vivências.

E, na primeira pergunta direta, o velho responde com um convite

para irem até seu rancho. Pedro à espera. Simão levantou sem

pressa, passou a mão na carapinha branca, e seguiram em silêncio.

Entraram na sala da frente, apenas uma mesa, quatro cadeiras

rústicas feitas por ele, e o célebre altar de santo e caixa. Mandou

Pedro sentar, e começou a falar.

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Escritos VI 19

- Moço, sei que vem de terra mui longe, e que breve se vai

por depressa. E sei que já está a par do que se diz, do que

inventam, e do que pode ou não ser verdadeiro aqui de portas a

dentro. Também venho de muito longe. Um dia bati por estas

bandas, com pouca tralha, e fui ficando e cá estou. Uso pouco as

palavras, estas, são apenas formiguinhas na amplidão de um

formigueiro cá de dentro, completo. Tenho cavernas e recantos,

onde em cada etapa fui fazendo quem sou. Meu tempo já não será

muito, e por isso, escolho vosmissê para alguns detalhes. Sim, foi

uma mulher que me transformou. Fui criado e vivido com estudos e

exemplos acima de muitos, até francês e alemão não são línguas

extranhas. Sabe moço, de uma lenda grega que se refere à CAIXA

DE PANDORA? Foi quando Zeus entregou a mulher à espécie

humana, e a primeira tragédia virou semente. Vejo os olhos do

moço brilhando, a pressa não é boa companheira. Pedro permanece

calado, contido. Pois eu também tenho uma Caixa de Pandora. Uso

algum estudo, tomei ciência de detalhes entre lendas, folclores,

medicina indígena e, principalmente, mental. Na mente está toda

dependência: a força, a dor, o desafio, a verdade, o poder, o sonho,

o querer, o ódio, a revolta, os aprendizados e as adaptações. Aqui

mora o efeito de uma mulher. O homem é um eterno dependente,

da mãe e da fêmea. Terá sempre o instinto superando a razão e a

capacidade de ser livre. E, para encurtar o causo, é por isso que

estou aqui. Vou te dar a posse desta caixa, a da minha Pandora, não

quero que ela venha a ser um dia, mal descoberta por pessoas de

pouca fé. Se por cá o moço ainda estiver quando eu me for para

baixo da terra, peço que enterre junto esta caixa. Caso contrário,

leve-a quando voltar para sua Pátria. Lá, um ferreiro ajudará a abrir

os segredos que somente então, serão teus. Conheça e compreenda.

Depois, faça com ele uma fogueira no alto de uma falésia, e das

cinzas, deixe que o vento sopre distâncias deste resumo de vida.

Alda Paulina S. Borges pertence ao Grêmio Literário Castro Alves e participou de várias coletâneas. Conselheira do Partenon Literário 2014. End: Rua Vitor Hugo, 88, CEP 95630070, Porto Alegre.

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Escritos VI 20

QUANDO O AMOR ACABOU Alexandre Lettner

Quando acabou o amor

Carnês foram quitados,

Dívidas perdoadas.

Pois dinheiro não tinha mais valor,

Quando acabou o amor.

Quando acabou o amor

A alma gritou: - Dai-me de beber,

Pois sou deserto!

Salmos foram reescritos:

“ e um dia há de acabar o que mais valia”.

Quando acabou o amor, Barrabás sorriu com muito ardor,

Quando acabou o amor...

Quando o amor acabou foram queimados

Os cinemas, os violões e os livros foram extintos: e o o byte levou!

As mães não tinham mais nomes,

Pais eram confundidos....

Quando o amor acabou,

Peitos não mais amamentaram,

Ventres ficaram estéreis

Alguém gritou com desamor: sou o último humano!

Quando o amor acabou.....

E por ser Amor, por ser maior,

A paixão cometeu suicídio.

Quando acabou o amor,

As almas não eram mais gêmeas

E de tanto desamor foi escrito o último poema.

Alexandre Lettner dos Santos, contador e poeta. Costuma dizer que “com a contabilidade eu ganho a vida e com poesia a vida me ganha”. É casado com Adriana e é pai do Pietro. Participa da série Escritos

desde a 2ª ed. E-mail: [email protected].

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SABIÁ, ACORDEI COM SAUDADE DE VOCÊ!

Aliris Porto Alegre dos Santos

Esta manhã, não sei por que, acordei mais cedo. Ainda tentei

conciliar o sono, mas os pensamentos não permitiram: voaram,

voaram... Lembrei disso, daquilo e me detive na falta do canto do

sabiá que, na primavera, acompanha o meu despertar ou não me

deixa mais dormir com seu assobio insistente.

De início achei um privilégio meu, no verão sentir saudade

do canto do sabiá da primavera. Meu pensamento andou mais um

pouco e lembrei que muito já se falou no canto desse pássaro.

Concluí, então, que muitas outras pessoas, como eu, já se detiveram

nesse mesmo pensar prazeroso.

“Você sabia que o sabiá sabia assobiar?” Na infância, pediam

os adultos que repetíssemos a frase para “ treinar a língua” e

aguçar o ouvido às sutilezas do nosso idioma.

“Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.”

Na primeira estrofe da Canção do Exílio, Gonçalves Dias, ao

expressar saudade da pátria, lembra do canto do sabiá. Alguém já

disse que foi para rimar com lá, ou ele precisou do lá para rimar

com sabiá? Não sei... não sei! Ainda sobre essa mesma estrofe

dizem os mais ortodoxos que o sabiá não pousa nem faz ninho em

palmeiras. Eles esquecem na sua rigidez que detalhes como esse

pouco importam à poesia, mais preocupada com a escolha de

palavras suaves e bem colocadas que denotem sentimentalismo,

musicalidade, expressividade.

Seguindo viagem nas minhas reflexões, me lembrei que, há

algum tempo, li não sei onde sobre o canto do sabiá. Como é bom

saber um pouquinho mais das coisas: é na primavera que ele dá

sinal de vida tão logo “rompe fresca e sanguínea a madrugada”.

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Pontualidade e persistência, nada mais que a preservação da

espécie.

Pelo pouco que sei, o sabiá faz seu ninho no lugar mais

protegido possível e, enquanto a fêmea aquece os ovos para que a

reprodução se concretize, ele fica ao lado como guardião e seu

assobio é para demarcar território, dizer aos predadores: eu estou

aqui como companheiro fiel e guardião dos ovinhos que logo serão

vida para que se perpetue o cantar do sabiá. E – quem sabe? –

produzir mais e mais reflexões sobre essa manifestação tão

significativa que tive tempo e sensibilidade para ouvir e sentir

somente depois dos 60 anos.

Você que me lê, preste atenção: comece bem mais cedo a

afinar o ouvido e a sensibilidade para os sons da natureza. Vale a

pena! Neles, podemos descobrir maravilhas que não se impõem,

mas estão ali para o deleite daqueles que têm ouvidos para traduzi-

los e, principalmente, senti-los.

Nos últimos anos, em todas as primaveras acontece a mesma

coisa: ouço cedo o cantar do sabiá e não tinha certeza se o ninho

era na mangueira ou no abacateiro do meu quintal, dois imensos

palácios verdes que abrigam pássaros, insetos e produzem frutos

que, além de alimentarem, reúnem amigos para saboreá-los em

gostosos bate-papos nos fins de tarde. Nunca procurei saber o local

exato, pois acredito que certas intimidades são insondáveis,

impenetráveis! É bom que se descubram as coisas lentamente, um

pouco por dia... saboreando o prazer de ler nas entrelinhas o que as

linhas não querem dizer claramente.

A certeza, entretanto, nem sempre é o que precisamos. Que

importava para mim se era na mangueira ou no abacateiro?

Desfrutar o som daquele belo assobio tão significativo, nas manhãs

de primavera, como um sinal com o sentido que cada um queira lhe

dar, é o que mais me sensibiliza.

Agora sei que o ninho fica na mangueira, mas foi alto o preço

da minha certeza: o meu belo abacateiro morreu no último inverno,

não resistiu ao ataque de uma praga. Toda a família teve com ele

uma afetiva convivência por mais de 20 anos. Não só nós, da

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família, mas também amigos lastimam sua falta... Ele sempre

esteve ali sem muito pedir, mas muito a oferecer...

Nossa mente – não precisamos entender muito sobre ela, isso

é trabalho para cientistas! – nos faz viajar, sentir, visitar e revisitar

situações, locais, amores vividos. Tudo num piscar de olhos! Que

privilégio nossa memória!

Hoje desfrutei intensamente desse privilégio: lembrei

músicas, fatos passados, poesias e aproveitei para juntar todo esse

emaranhado de recordações num formato breve e reflexivo de

vivências, que rapidamente me ocorreram. Outras ficaram pelo

caminho – não lastimo –, pois o mais importante não é lembrá-las e

sim vivê-las no momento certo, sem precisar saber muito bem o

porquê.

Sabiás, obrigada por vocês existirem, me darem oportunidade

de ouvi-los, de repensar a vida e querer vivê-la sem retoques nem

muitas certezas, apenas vivê-la e buscar o que para mim é a sua

essência: a felicidade.

Que importa se o sabiá que ouço nas manhãs de primavera

está nessa ou naquela árvore, se é o mesmo de outros tempos?

Certezas, certezas... para que servem?... Não sei e, mais uma vez,

como disse um poeta que não tenho certeza do nome, “Tudo vale a

pena se a alma não é pequena!” Quer me parecer tenha sido

Fernando Pessoa!

Neste exato momento em que pensei ter posto o ponto final,

ouço a conversa de dois bem-te-vis a me dizer: “– O sabiá está em

outra estação, mas eu aqui estou!”

Conversas de bem-te-vis será assunto de outra reflexão! Que

bom! O mundo está cheio de oportunidades, basta saber vê-las,

ouvi-las, senti-las e, se possível, vivê-las em toda a sua plenitude

sem muitas perguntas, respostas ou certezas... apenas vivê-las!

11.01.2013

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Aliris Porto Alegre dos Santos - Gaúcha radicada em Brasília. Professora aposentada. Vaidosa e perfeccionista. O catolicismo foi herança de família; o espiritismo, opção e, mais recentemente, a meditação prânica tem lhe trazido muito bem-estar. Autora do Manual de gramática do TRF-1ª Região e co-autora do livro Aposente-se: o único risco é ser feliz. Ao longo da vida registrou emoções, sonhos, vivências nos seus Cadernos de anotações da vida que agora

começa a publicar em janelasdaminhalma.blogspot.com.br.

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UM GRE-NAL INESQUECÍVEL Álvaro de Almeida Leão

Carlão mora num edifício de quatro apartamentos – dois por

andar – no centro de uma pequena cidade do interior. Gosta muito

de Denise, sua mulher.

Numa quarta-feira à tardinha, de tempo instável, previsão de

muita chuva em todo o Estado, Carlão está se aprontando para

descer a serra e assistir a mais um Gre-Nal na sua vida de torcedor.

Certamente um grande jogo, em que será conhecido o campeão da

temporada. Fardado dos pés à cabeça, com o uniforme do time do

coração, bandeira em punho, Carlão é só felicidade. Bradando

palavras de ordem, conclui com o tradicional:

– É campeão... É campeão... É campeão... Não vai ter pra

eles!...

Beija a sua mulher Denise e se despede. Sai em seu carro,

buzinando muito, como que comemorando por antecipação a

vitória, que crê certa. Para ir ao estádio, Carlão levou, além do

ingresso, uma pequena quantia em dinheiro, a carteira de

identidade e os documentos do carro. Sabe como é: a falta de

segurança taí mesmo. Cartões de crédito, iphone, relógio e a

corrente de ouro, nem pensar!

Nas proximidades da saída da cidade, o Carlão para o carro

em frente a uma residência. Anuncia-se tocando a campainha. Em

seguida aparece Débora, linda guria. O Carlão, radiante, envolve-a

em seus braços e beija-a, apaixonadamente. Débora também está

fardada, só que com as vestes e cores do time rival ao do seu

amado.

Os dois entram no carro e, após uns trinta minutos, chegam a

uma estrada de chão batido. A cada três ou quatro quilômetros,

avistam uma casa. A região, apesar de não ter infraestrutura de rede

elétrica, telefônica e abastecimento de água, é muito aprazível.

Depois de algum tempo dirigindo, Carlão finalmente

estaciona o carro em frente à casa de final de semana da família de

um amigo, que lhe foi gentilmente emprestada para aquela noitada,

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que muito prometia. A chuva de granizo que começa a cair faz com

que Carlão se apresse em deixar o carro abrigado no galpão. Bem

abraçadinhos, ele e Débora caminham cerca de cem metros rumo à

casa principal. É aí que pretendem permanecer até o término do

Gre-Nal.

A casa é bem simples. Móveis rústicos são seus

componentes. Sem a presença de caseiro, a paz reina absoluta.

Carlão acende os lampiões a gás. Ao invés de assistirem ao Gre-

Nal num estádio de futebol, foram ser protagonistas de uma partida

a dois, tendo como campo, a cama. Antes do aquecimento, fizeram

o inverso do que fazem os jogadores de futebol: desfardaram-se.

A cachoeira bem próxima, a chuva que caía, a agradável

brisa, tudo contribuiu para emoldurar e enriquecer o jogão de bola

que foi a partida. Eufóricos, acabaram bebendo além da conta os

vinhos de boa casta que haviam levado.

A noitada estava boa demais. Entretanto, como ninguém é de

ferro, os exaustos jogadores foram descansar e acabaram pegando

no sono. Quando acordaram, perceberam que já era uma hora da

madrugada. Levantaram-se assustados, vestiram-se e voltaram o

mais rápido possível para suas respectivas casas.

No caminho de volta, ansioso por notícias do Gre-Nal, o

Carlão liga o rádio do carro. Àquela hora, somente programas

musicais ou de cunho religioso. Por mais que tentasse descobrir o

resultado do jogo, não conseguia. Chovia torrencialmente. Não

havia sequer uma viva alma, tanto na estrada quanto nas ruas de

sua cidade.

Ao chegar em casa, Carlão faz o possível e o impossível para

não acordar sua mulher, que dorme a sono solto. Já de pijama e

pronto para se deitar, ele, num gesto mal calculado, desperta a sua

Denise. Ao vê-lo, ela diz:

– Oi, bem, já estás aqui? Conta, por favor, sobre os melhores

lances do Gre-Nal, estou curiosa pra saber.

- É complicado analisar um Gre-Nal. Daí então se dizer que

Gre-Nal é Gre-Nal.

- O que fazes de pé? A que horas chegaste?

– Levantei-me para ir ao banheiro. A que horas foste dormir?

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– Ali pelas onze da noite.

– Eu cheguei mais ou menos à meia-noite. Enfrentar o

trânsito não foi fácil. Como estavas dormindo, achei que não

deveria acordar a minha querida esposinha.

– O que o amor não faz...

– É, Denise, o verdadeiro amor é divino.

– Mas, que desânimo é esse? Nosso time ganha o

campeonato, e tu estás aí com cara de quem comeu e não gostou!

– Como assim?

– Isso mesmo. Ganhamos e tu aí, sem demonstrares alegria.

– Ganhar convencendo é uma, ganhar fazendo o torcedor

sofrer é outra bem diferente.

– A vitória com a diferença de dois gols não foi tão ruim

assim...

– É, mas se o time adversário tivesse diminuído essa

diferença, não sei o que seria de nós. Daí para empatar e ganhar o

jogo seria um passo.

– E o lance do pênalti?

– O juiz, ao marcar o pênalti, tendo ocorrido ou não, é

irrelevante. Marcou tá marcado.

– E o gol, considerado por toda a mídia como impedido?

– De onde me encontrava, não poderia fazer um juízo a

respeito. Assisti ao jogo atrás da goleira.

– E os jogadores do nosso time que fizeram os gols, que tal?

– Não gosto nem de citar os nomes. São uns mercenários.

Estão em litígio com a diretoria do clube. Acho que nem terão seus

contratos renovados.

– Enfim, meu Carlão, o importante é que ganhamos, não é

mesmo? Estava com saudades de ti.

– Eu também.

– Nada como amar e ser amada.

– Verdade, Denise.

– Te amo.

– Eu também. Agora com licença que vou ao banheiro e já

volto.

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No banheiro, Carlão reflete sobre como foi duro o

interrogatório. Parecia não ter fim: “Não compreendi bem quando

ela disse, „cara de quem comeu e não gostou‟. Teria sido

coincidência ou ironia? Foi como um tiro no coração. Senti um

calafrio na espinha. O que é a consciência... Será que a Denise

desconfia de alguma coisa? Não sei, não... Acho que me saí muito

bem. Em nenhum momento caí em contradição. Fui convincente,

tenho certeza. Que bom que meu time venceu!... Sou campeão!...

Sou campeão!... Só ainda não sei qual foi o placar final. A

diferença de dois gols não poderia ter sido melhor. Logo mais, no

trabalho, vou me esbaldar na gozação”.

Ao voltar para o quarto, dirige-se à esposa:

– Boa noite, minha Denise. Desejo que sonhes com os anjos.

– Tu também. Mereces.

Logo que amanhece, Carlão vai até a porta do apartamento a

fim de apanhar o jornal que assina. Está ansioso para saber o

resultado do jogo e ler o que diz a crítica especializada. Ao abrir a

porta, algo lhe causa profunda estranheza: ao lado do jornal

encontra-se sua mala. Ao mesmo tempo em que apanha o jornal, já

se liga na manchete principal. Apavora-se ao ler: MAU TEMPO

TRANSFERIU O GRE-NAL PARA HOJE.

O Carlão, sentindo as pernas trêmulas, pensa em voz alta:

– Meu bom Deus! Tô ferrado!... O que a Denise me disse não

foi nada de coincidência, foi pura ironia. Acho que deu pra minha

bolinha... Eu imaginava que estava bem na foto. Que nada! A cada

pergunta só me ferrava. A mentira tem pernas curtas. Também

pudera, eu fiz por merecer. Os questionamentos da Denise sobre o

jogo foram geniais. Minhas respostas só poderiam ser evasivas, não

tinha nada mesmo a acrescentar. Apesar de gostar da Débora, sinto

que a Denise, essa sim, é a mulher da minha vida. Infelizmente, dei

chance ao azar. Será que tem volta? Será? Acho difícil... Mas uma

coisa é certa: esse Gre-Nal será, sem dúvida alguma, UM GRE-

NAL INESQUECÍVEL

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Escritos VI 29

Álvaro de Almeida Leão, Paraibano, nascido em Campina Grande, gaúcho por adoção. For-mado em Administração e Ciências Contábeis. Funcionário aposentado do BANRISUL. Autor dos livros Ensaios e Humor para o Mau Humor. Participa em coletâneas do Partenon Literário e AGEI. Voluntário de ONGs. As paisagens campestres do bairro Belém Novo e o alvorecer na orla de Capão da Canoa lhe dão a inspiração

para compor seus contos. E-mail: [email protected]

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Escritos VI 30

FASCINAÇÃO Anna Maria Petrone Pinho

Por que escrevo? Não sei.

Talvez para não ter idade, para matar saudade, brincar de faz-

de-conta, de pegar sonhos fugidios, de esconder do sofrimento, de

fada madrinha com vara-de-condão e tudo, para fazer da vida uma

suave berceuse.

Talvez para expor melodias, pequenas melancolias,

escondidas confidências, inconfessados temores, desiludidos

amores, censurados despudores, cansaços e desabafos, dúvidas e

receios, mágoas, carícias, enleios.

Talvez para contar dos estranhos caminhos a que meus passos

me levaram, tão diversos daqueles que idealizei, dizer das marcas e

pegadas, que deixei pelas estradas, que são sinais tristezas, misérias

e alegrias que pela vida encontrei.

Talvez para falar aos senhores da vida, àqueles que detêm a

mocidade, de tudo que aprendi, para estender-lhes a mão e apontar-

lhes o rumo da glória, da felicidade, do bom e do bem.

Talvez para expandir as mil facetas da minha alma, tão

comportada e contida, poder ser brejeira, marota, safada, sarcástica,

astuta, lunática, o ponto e o contraponto, o concreto e o impalpável,

a guerra e a paz.

Talvez para falar a linguagem da prostituta, da intelectual, da

filósofa, chegar ao fundo da caixa de Pandora, anatomizar

sentimentos e paixões nos seus arcanos mais profundos, desfibrar

corações e mentes, ser física e metafísica, retomar-me e recriar-me,

compreender a importância da minha própria existência, como

razão do meu ser.

Talvez para experimentar, aqui na Terra mesmo, a

transcendental promessa bíblica da bem-aventurança.

Talvez para misturar a minha emoção à emoção das multi-

várias-vidas que vivem em torno de mim e emprestar minha voz

aos que têm a boca fechada, como uma boca inexistente.

Por que escrevo? Não sei.

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Escritos VI 31

Só sei é que quando escrevo, o sangue pulsa mais forte, sou

vida, eternidade e morte, sou essência e aparência, sou a fera e sou

a bela, sou mulher e sou donzela, sou o que bem me aprouver.

Só sei é que quando escrevo, em flautas-doces componho

doces canções, em palcos iluminados danço danças exóticas, ponho

flores nos cabelos e colares no pescoço, construo os sonhos que

quero, pinto-os de cores alegres, cubro-me de perfumes, sou rainha

e sou vassala no reino que bem quiser.

Só sei é que quando escrevo, visito praças, ruas, jardins e

casas espargindo música no ar e toda engalanada em pompas,

descubro que a ventura existe e que me é permitido alcançá-la, em

voos de esperança, me que me sejam curtas as asas.

Só sei é que, quando escrevo, busco a última ponta do

caminho, no mundo da fantasia, e entre violinos, harpas e sinos,

vou até onde as paralelas se encontram, só por um pouco de poesia.

Só sei é que quando escrevo meu deslumbramento é tanto

que a emoção alcança o extremo de meus sentidos, uma ternura

gradual me leva ao esquecimento de mim mesma e numa suave

inconsciência de simbiose com o ambiente, sinto-me como uma

terra exuberante e jovem onde será lançada a semente da

eternidade.

Por que escrevo? Não sei.

Só sei é que, quando escrevo, sou bonita e sou feliz.

Anna Maria Petrone Pinho, Advogada, professora de psicologia, ex-assessora jurídica do Município de Porto Alegre, Anna Maria nasceu na cidade do Rio Grande, mudando-se para Porto Alegre aos cinco anos de idade. Autora dos livros Crenças e descrenças, verdades e mentiras e Caminho das descobertas, participou também de muitas coletâneas. Seu conto Uma festa para Suzana foi adaptado para um filme de curta metragem.

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Escritos VI 32

SOL E LUA André Flores

Vi o sol e a lua...

Andando no céu..

de mãos dadas.

Namoravam entre as estrelas...

apaixonados pelas madrugadas.

Vi o sol e a lua...

Nuas, despidas na intimidade...

Fazendo amor entre as nuvens.

Enquanto dias e noites passavam...

Eles estavam ali...

Suspeitos por amar...

Condenados pela paixão.

Vi o sol e a lua...

Andando no céu...

Correndo de encontro à felicidade.

Não havia maldade...

Não era arte...

Nem disfarce...

Apenas amavam um ao outro....

Na forma mais pura.

Vi o sol e a lua...

Encantando os dias e noites...

Decorando o céu...

Com o seu esplendor...

Mostrando que o amor...

Pode ser traduzido em,

Simples imagens.

Page 25: Escritos VI

Escritos VI 33

VERSOS LIBERTOS André Flores

Não tenho controle sobre meus versos...

Eles simplesmente saem...

Espontaneamente, sem pedir licença.

Precisam ser vistos, lidos e ouvidos...

Eu, apenas respeito as suas vontades...

E coloco-os no papel.

ALMA DE CRIANÇA André Flores

O mundo visto através dos olhos de uma criança...

Traz consigo toda pureza d alma...

Nele, as paisagens são mais coloridas, cheias de vida...

Tão cristalinas, quanto a água que sai da fonte...

Onde nunca foi tocada pela mão do homem.

André da Silva Flores. O Aprendiz de poeta, 40 anos, natural de Novo Hamburgo, casado com Cristiane, tem uma filha, Letícia. Filho de Antônio e Teresinha Beatriz, reside na cidade de Portão/RS. Formado em Administ. de Empresas pela Universidade de Caxias do Sul. Desempenha trabalhos comerciais junto à rede de lojas CR DIEMENTZ Participou da Antologia Escritos V (Ed. Revolução cultural) lançada na 59ª Feira do Livro de Porto Alegre e da Antologia

Incertezas e suas Fragilidades (Ed SCORTECCI), lançado em Mar/2014.

Page 26: Escritos VI

Escritos VI 34

MORENA MENTA Anelise Todt

Morena menta

Maçã do rosto, vermelho

Na pele um pecado disfarçado

De sonho bom

Inebria o cheiro, atiça o tato

Desfila no meu espelho o teu retrato

Com mel nos lábios, o sabor de menta

me beija com hortelã e preguiça

A poesia dos versos que cria

A cada balançar que me deixa sem notícias

Um toque teu que transforma rimas

Em mãos de Midas

Morena menta, mente teu sono

Que encontra meu retorno

Qualquer hora da manhã

Fruta cor em cortes frescos

Vigia tropical o meu desejo

Acordado em teu peito frágil

Pudor e pecado gracejas

Rumores ou segredos

Esse calafrio morena

Minha sombra ou será teu corpo

Confunde o castigo de um desejo

Teu beijo...

Morena Menta

Teu beijo...

Anelise Todt é poetisa e comunicadora. Natural de Porto Alegre, residiu em São Leopoldo/RS e atualmente mora em Curitiba, capital do Estado do Paraná. Cursa Comunicação Empresarial na UFPR.

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Escritos VI 35

ALLANA WILLERS Benedito Saldanha

Allana partiu Mas deixou conosco o seu canto doce E um olhar repleto de esperanças Como um último pedido Para que lutemos pelos nossos sonhos.

Allana partiu E deixou em todos nós Uma lágrima na garganta Mas eu ainda guardo o seu olhar Enquanto ela canta.

Espalhe-se a saudade Encontrem a liberdade Que um dia ela sentiu E nós caminharemos mesmo contra o vento Buscando a paz de um novo mundo Que Allana não viu. Mas Allana partiu E o mundo parou por sua causa Porque as chamas interromperam sua jornada Tantas vidas abreviadas Em prol do imprevisto e da ganância E os muros de discórdia jamais serão derrubados Porque Allana partiu E não haverão os beijos felizes dos enamorados Porque Allana partiu.

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Escritos VI 36

Ela viveu no tempo que Deus quis E o anjo do bem já se aproxima Allana foi coragem Foi filha, foi mulher e foi menina. Espalhe-se a saudade Encontrem a liberdade Que um dia ela sentiu E nós caminharemos mesmo contra o vento Buscando a paz de um novo mundo Que Allana não viu. Allana partiu E deixou em todos nós Uma lágrima na garganta Mas as tempestades não são pra sempre E o sol também se levanta. *Em memória de Allana Willers, falecida no incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, em 2013.

BENEDITO SALDANHA, pesquisador e escritor. Criador do Sarau com Ritmo. Publicou os livros “Lobo da Costa”, “Laços Eternos” e “Luciana de Abreu”. Criador do Concurso Poético Expresso das Letras. Presidente da Academia de Letras Porto Alegre e do Partenon Literário, foi jurado dos Concursos de Poesias BANRISUL e Histórias do Trabalho. Membro da Academia de Letras do Brasil. E-mail: [email protected]

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Escritos VI 37

PUB BLUES Para ler ao som do Muddy Waters. Bruna Clavé Eufrasio

Eduardo entrou no Pub Blues, embalado pelo som da banda

que tocava euforicamente as músicas do Muddy Waters. Transitou

pelo espaço de maneira desconfortável, procurando uma mesa

vazia para tragar seu cigarro e espichar as pernas. Sentou em um

canto e baforou seu cigarro lentamente.

- Deseja algo senhor? – disse o garçom enquanto segurava

uma bandeja com uma garrafa de champagne.

- Desejo que suma daqui anda, vai. – responde Eduardo,

olhando para os músicos.

- Mas talvez eu possa ajudar, uma boa conver...

- Eu já disse que não!

- Tem um livro que eu estou lendo...

- Arf! Pouco me importa! Sou amigo do gerente, sabia?

- O livro que eu estou lendo... fala...quer dizer o livro não

fala, ele conta a história de um homem alcoólatra que encontra um

bilhete premiado e adivinha o que ele faz, compra todos os bares da

cidade....eu achei muito engraçado isso.

Eduardo levantou os olhos sem dizer nenhuma palavra,

apenas deu uma forte tragada cobrindo o rosto do garçom de

fumaça.

- O senhor não vai rir?

- Não! Mas já que quer agradar, vai e me traga um café bem

forte.

O garçom saiu ligeiro em busca do pedido. Eduardo olhava

fixamente o espiral de fumaça que saia da sua boca e falou em tom

baixo:

- Mas que inferno, nem em um momento como esse tenho

sossego.

Minutos depois o garçom voltou.

- Aqui está seu café senhor.

Eduardo pegou a xícara e começou a mexer com a colher.

Reparou que o garçom ainda estava olhando.

Page 30: Escritos VI

Escritos VI 38

- Tá.. eu já fiz o pedido agora pode se retirar, empregadinho.

- Tem certeza? Qualquer coisa... estou ali no balcão. Só

quero ajudar.

Eduardo ignorou o que o que estava sendo dito. Mexeu o café

com a pequena colher, observando o movimento que o liquido

fazia, parecia que as pequenas ondas acompanhavam o som do

blues. Enquanto erguia a xícara, dizia para si mesmo o quanto era

divino tomar um café bem forte antes de se jogar pela janela do

vigésimo andar.

Ouviu-se gritos vindo da porta do estabelecimento; era

Barbara entrando no PubBlues, tão magra e alta quanto um bambu.

As pessoas a olhavam com estranheza, afinal de contas o lugar era

frequentado por pessoas ditas cult e bem vestidas. A sua entrada

rasgou o ambiente, politicamente correto e trouxe o submundo com

toda sua marginalidade. Ela entrou tropeçando, esbarrando nas

pessoas que conversavam nos corredores, com aquele seu salto de

plataforma, o seu vestido vermelho justo e com o batom borrado

pelo rosto inteiro. Dançava completamente entorpecida, seus

movimentos não obedeciam mais aos seus comandos. Os guardas

tentaram conte-la, mas acabaram deixando-a entrar. Se arrastava

pelo Pub, e gritava loucamente na frente dos músicos, até ver

Eduardo sozinho.

- Eduardo? Eduardo? É você cara?

Eduardo não respondeu, nem sequer levantou a cabeça.

- Claro que você me conhece! Sou eu! A Barbara! Estudei

contigo em 1994! Caramba! Não se lembra de mim? Fala sério?

Claro que você se lembra de mim, vou te fazer lembrar, quer ver? -

disse fazendo um esforço enorme para ser compreendida, a sua

língua estava enrolada por demais para ter um dialogo com alguém.

- Desculpa, mas eu não lembro.

Nesse momento Eduardo recebe uma mensagem no celular.

- Não lembra então de quem te deu o primeiro beijo de

língua? disse gargalhando.

- Não acredito.... meu Deus, Barbara, não pode ser.

Page 31: Escritos VI

Escritos VI 39

Barbara jogou os cabelos em cima da mesa e fez um olhar

sedutor para Eduardo.

- Estou mais atraente?

- O que você fez da sua vida? Nunca imaginei que ....

- Para com esse papo que nunca imaginou... nunca ninguém

imagina nada... absolutamente nada...e você está fazendo o que

aqui?

Eduardo ergueu a xícara.

- Café?- disse Barbara - Eu quero uma dose bem forte de

wodka, pede uma para mim.

Barbara assobia até o garçom chegar à mesa.

- Me traz três doses bem caprichadas de wodka, em

comemoração ao reencontro.

- Barbara! Não basta o estado que você se encontra? Olha

para Você! Vai se estragar ainda mais?

- Vai toma no teu cú!

Barbara segurou o braço do garçom e solicitou que o pedido

fosse atendido o mais rápido possível. Logo em seguida as doses já

estão sem cima da mesa.

- E o senhor está bem? Pergunta o garçom tocando no ombro

de Eduardo.

Eduardo faz sinal para ele se afastar, enquanto que Barbara

virava o copo na boca.

- Porque você fez isso contigo, Barbara?

- Vai te foder! E você que largou o seminário? Vai querer me

dar lição de moral? Você era a minha única salvação para não ir

para o inferno.

Barbara se atirou sobre a mesa e encarou Eduardo.

- E agora quando eu morrer quem vai rezar pela minha alma?

Se é que a gente tem isso. Padreco rebelde.

Barbara olhou o copo vazio e gritou:

- Acabou... me traz mais três doses de vodka, cacete!

Eduardo passou as mãos nos cabelos, sentindo-se

envergonhado. Todas as atenções já estavam voltadas para os dois.

Ele se levantou e a pegou pelo braço retirando-a de cima da mesa.

Page 32: Escritos VI

Escritos VI 40

- Barbara se você quer beber, vai beber lá na rua, eu vim aqui

justamente para ficar quieto, tomar um café, escutar uma boa

música.

- Tomar café? Fresco! Você é fresco isso sim! Sabe o que te

falta? Te falta uma...

- Olha o jeito que você fala!

- Sempre te achei meio afeminado, sabe? Aquele beijo que te

dei eu já senti que você não iria gostar da coisa... mas, fiquei na

minha, sabe como é... a gente fica quieta para não perder o

namorado. Caralho cadê minha dose de wodka? Já pedi mais de

mil vezes!

- Aqui está! Desculpa a demora. - disse o garçom.

- Cacete! Me dá isso de uma vez! - disse Barbara já erguendo

o copo.

O celular de Eduardo acende a luz indicando que recebeu

uma mensagem, ele lê o texto e sorri levemente. Barbara tenta ver

o que está escrito.

- Mas como eu estava falando... sempre te achei meio

afeminado.... mas, agora você está ai recebendo mensagem no

celular, dando sorrisinho, fico imaginando que seja mensagem da

sua ilustre esposa.

- Não casei.

- Então você é gay?

- Só porque eu não casei não significa que eu seja gay!

- Não é gay?

- Não, sou gay!

- O que você veio fazer aqui nesse bar? Tomar café? Que

bosta é essa? Toma isso aqui.

Barbara ergueu o copo na frente do Eduardo e derrubou um

pouco no suéter que ele estava vestindo. Eduardo tentou limpar

com as mãos, mas o estrago já estava feito.

- Para com isso! Não bebo porres homéricos como você!

Olha o jeito que você está Barbara! Com essa cara de drogada

prostituída! Essa não é a garota com quem me relacionei, na

infância! Que inferno mesmo! Em que rua você entrou e se perdeu,

hein garota? Olha o estrago que você fez na minha roupa!

Page 33: Escritos VI

Escritos VI 41

- Em que rua me perdi?- disse Barbara soltando uma enorme

gargalhada e chegando bem perto do ouvido de Eduardo - Chega

mais, escuta bem o que eu vou te falar: Eu me perdi na rua

chamada amooor, conhece? Não sei se você conhece essa rua, mas

foi lá que eu me perdi.

Nesse momento Barbara acendeu um cigarro e deu uma

tragada bem forte, soltando a fumaça lentamente.

- Mas vou te dizer que é aquela rua onde você sobe correndo

eufórico, perde o ar no meio do caminho, quer subir, subir, subir a

lomba correndo, porque a subida te dá uma adrenalina do caralho.

Aí você corre, corre, corre, continua correndo sem parar até chegar

lá no topo da lomba... lá no topo...

Barbara sobe em cima da mesa e fica em pé com os braços

para o alto.

- No topo da montanha onde tem uma vista linda,

completamente des-lum-bran-te, mas ai quando você está lá no

topo, vem um vento forte que faz você se desequilibrar, então você

não se controla, perde o foco, fica bamba, os olhos embaralham e

você cai. Cai, não! Eduardo! Pior que cair, você despenca ladeira a

baixo. Aí você sai rolando, rolando, rodando e não consegue dar a

mão pra ninguém, porque a velocidade da queda é tão grande que

você fecha os olhos e só abre quando está arrebentada no chão.

Barbara pula de braços abertos para chão.

- E você? Aonde foi que se perdeu nesses vinte e poucos

anos...

- Eu não me perdi.

- Como assim? Todo mundo se perde, Eduardo! Uns mais,

outros menos.

- Não sei, Barbara.

- Sabe sim! Todos nós sabemos, lá no fundo a gente sabe

aonde deu o tropeço fatal. Vai, conta!

Eduardo senta novamente na cadeira, esfrega as mãos no

rosto, escuta o som tocado pela banda e acende outro cigarro.

- Me perdi em um beco, Barbara.

Barbara solta uma risada.

Page 34: Escritos VI

Escritos VI 42

- Aquele beco que você passa devagarzinho pela frente,

olhando o que tem lá dentro e de repente sente um medo, um medo

tão grande, que sai correndo, mas todos os dias o beco está lá no

mesmo lugar e a tua curiosidade de entrar é cada vez maior e o

medo é cada vez mais intenso, mas quanto você passa perto sente

um calor que expandi pelo teu corpo, uma coisa tão boa, mas

continua a sentir medo de entrar e ver como é dentro do beco.

- Medo?

- Sim, medo de nunca mais querer sair de lá.

Eduardo recebe outra mensagem pelo celular.

- Aí Eduardo, essa metáfora foi a mais linda que eu já

escutei! E você por que não entra de vez no beco? Esquece o

medo, Eduardo!

Eduardo recebe outra mensagem no celular e levanta-se da

cadeira.

- Barbara, vamos parar por aqui, por favor. Gostaria que você

saísse agora da minha mesa. Um amigo meu está chegando.

- Mas esse telefone não para de receber mensagem, porra. Tá

louco! Faz mais de vinte anos que não nos vemos e você está me

trocando por essas merdas de mensagem de celular? Você tá louco

meu... ah meu... vai te foder!

Barbara abraça Eduardo fortemente, manchado-o de batom.

- Eduardo, porque você não ficou comigo naquela época?

Talvez seríamos felizes hoje!

- Sai Barbara, não fiquei contigo e nem vou ficar, você está

horrível, olha para ti. Não te maltrate mais, para com isso.

- Eu que tenho que te falar isso! Não te maltrata! Mania essa

que temos de nos maltratar. Eu entrando na rua do amor e rolando

ladeira abaixo e você com medo de entrar no beco do desejo.

Barbara tomou o último gole restante de wodka e começou a

falar extremamente alto.

- Entra Eduardo! Entra no beco e se atira! Se joga! Entra de

cabeça! Uma vez você falou para eu exercitar a prática do amor,

lembra? Achei tão lindo, agora eu que te digo isso! Exercita o

amor, prática do amor, meu amor. Mas você é só teoria mesmo

Page 35: Escritos VI

Escritos VI 43

hein seu filho da puta, só teoria! Me traga mais um dose de wodka

pelo amor de Deus, caralho! Cadê o garçom?!

- O infeliz deve ter ido embora.

- Foda - se! Fica ai com essas mensagens, com esse teu

celular. Enfia no teu cú. Foda-se esse mundo. Tchau. E antes de eu

ir, Eduardo! Entra no beco!

Barbara sai gargalhando. Os músicos continuaram tocando

eufóricos os melhores blues, como se quisessem arrebatar todo

mundo com um sentimento de amor, tristeza, euforia e solidão tudo

misturado em uma só canção.

Eduardo terminou de tomar seu café e começou a fumar

desesperadamente como se fosse comer o cigarro.

- Os minutos que antecedem o fim (ou os minutos que

antecedem o começo?). São intermináveis. Coragem, coragem.

O celular apita indicando uma nova mensagem.

- Chegou a hora!- disse levantando-se da cadeira e indo até a

janela.

Eduardo sentiu uma enorme vontade de ser livre, de sair

voando pelos quatro cantos da cidade. As palavras de Barbara

ainda martelavam dentro da sua cabeça e o pior é que, embora ela

estivesse bêbada, foi capaz de dizer umas verdades que entraram

dentro da alma. “Entra no beco Eduardo” “Você é só teoria

mesmo” “Pratica a prática do amor”, essas frases soavam como

navalha, mas o que fazer, quando não se tem para onde ir? Eduardo

sentia-se encurralado dentro do Pub Blues; Vitor já estava a

caminho e o tempo todo em que Eduardo conversava com Barbara,

Vitor mandava incessantes mensagens.

Vitor percebe que Eduardo está sozinho, olhando a rua pela

janela e se aproxima.

- Eduardo!

Eduardo responde sem olhar para trás.

- Não acredito!

- Não vai me olhar? Sou eu o Vitor. Olha para mim.

Trocamos tantas mensagens, emails, quantos telefonemas, mas pelo

visto te ligar toda a noite não foi o suficiente para que

reconhecesses a minha voz, enquanto eu te atendia ali na mesa.

Page 36: Escritos VI

Escritos VI 44

Eduardo permanece parado olhando a rua.

- Nem acredito que esse é o nosso primeiro encontro.

Coragem Eduardo, olha para mim.

- Por quê? Por que não me dissestes?

- Um dos mais requisitados administradores iria se aproximar

de um simples garçom do Pub Blues?

- Podias ter me dito.

- Para quê? Certamente não viria. Achou realmente que eu

era o gerente? Chama o gerente e peça para me demitir. Não era

isso que você iria fazer, quando disse que era amigo do gerente?

Quanta hipocrisia.

Eduardo apertou a cabeça com as mãos, mas não conseguia

encarar Vitor.

- Estou confuso Vitor, minha cabeça pesa como se eu

estivesse carregando uma tonelada de pedras, tudo é novo, mais

novo ainda agora..

- Agora é tarde demais. Já senti como realmente você é, não

preciso ver mais nada.

Eduardo se virou rapidamente e encarou Vitor.

- Como assim?

Vitor começa a ir embora.

- Não! Não! Me perdoa, por favor!

- Quando te vi falando daquele jeito comigo- disse Vitor,

olhando fixamente para Eduardo- eu gelei por dentro.

- Se você queria me desconstruir, você conseguiu. Por favor,

fica! Estou sentindo uma sensação tão boa dentro de mim, como se

estivesse livre, como se estivesse encontrado finalmente meu

quebra-cabeça, como se eu finalmente tivesse conseguido pular

desse edifício.

- Vai se jogar então?

- Agora é tarde, já entrei nesse beco sem saída mesmo.

Eduardo caminha em direção a Vitor, que se afasta

rapidamente.

- Por favor, Vitor!

Vitor fitou os olhos em Eduardo seriamente, e em seguida

acaricia-o no rosto abrindo um suave sorriso. Assim permaneceram

Page 37: Escritos VI

Escritos VI 45

trocando sorrisos e caricias até os primeiros raios de sol iluminar o

Pub Blues.

Bruna Clavé Eufrasio é natural de Canoas-RS, Historiadora. Nas horas vagas se aventura a escrever versos, contos e peças de teatros. Tem publicado dois poemas pela Entreverbo - Revista. Foi responsável pela dramaturgia de uma peça de teatro, apresentada no Festival de Esquetes de Novo Hamburgo. Atualmente trabalha na Secretaria de Cultura do Estado do RS.

Page 38: Escritos VI

Escritos VI 46

VIAJANDO NO TEMPO Camila de Bairros

Estava caminhando em volta de penhascos não sabia que estes

eram mágicos...

Inspiradores de sabedoria e elementos da terra: Gnomos protetores

das rochas antigas...

Leprechaum, OH Leprechaum místico, rico e sábio duende da

Irlanda!

Dizem que ouro de Leprechaum é ouro de tolo, pois desaparece e

deixa com imagem de Bobo!

Eu viajo em sonhos e escritos por todo lugar...

Uma feiticeira me convidou para um passeio em seu castelo:

Tinha uma coruja branca, um pequeno caldeirão, livros de feitiço.

Ela usava um chapéu cônico preto, um longo vestido lilás

E seus olhos brilhavam como dois besouros.

E dançando ao som do vento viajo pelo Brasil a fora:

Vejo, sinto e me encanto com as ninfas e as fadas serelepes...

Viajando mais um pouco...

A sorte me leva até ele que é pura sorte e muito especial...

Se encontrares ele terás seu desejo realizado:

O Uirapuru é um pássaro que realiza desejos e seu canto é de uma

melodia suave.

Por isso viajo seja na imaginação ou nos sonhos perdidos

Para encontrar vestígios de lugares desconhecidos...

Camila de Bairros é natural de Viamão e foi classificada em dois concursos em sua cidade Natal. Participou de duas coletâneas em 2013 na 59ª Feira do Livro de Porto Alegre. Duas de suas poesias no Escritos V pelo Partenon Literário e uma pela Associa-ção Gaúcha dos Escritores Independentes. Lançou seu primeiro livro de poesias solo. E-mail: [email protected]

Page 39: Escritos VI

Escritos VI 47

FELIZ NATAL! Cecília C. de Almeida

Um ano termina e outro já vem chegando.

O badalar dos sinos, o colorido dos enfeites natalinos,

os pedidos ao Papai Noel,

talvez, quem sabe, algum em especial.

As músicas que ficam no ar, tanta gente a passar

num vai e vem sem fim pelas ruas da cidade.

É o Natal que se aproxima.

Presentes, pinheiro enfeitado brilhando em mil luzes.

Cartões enviados, recebidos com mensagens natalinas.

A ceia de Natal, a família reunida:

pais, avós, esposa, filhos, noiva, namorada.

É noite feliz!

Há dois mil anos uma estrela brilhante correu nos céus,

guiou pastores e reis anunciando ao mundo

o nascimento do Salvador.

Num coro celestial os anjos cantaram:

“Glória a Deus nas alturas e na terra, paz aos homens de boa

vontade!”

E da gruta pequenina, lá, da distante Belém,

esta mesma estrela guia tão cheia de luz

derrame sobre todos nós as bênçãos do Menino Jesus!

Pois o mundo precisa de paz, solidariedade;

precisa de respeito, esperança, caridade.

O mundo precisa de amor!

Que tenhamos todos muita paz, prosperidade,

que o Papai Noel nos traga a tal de “felicidade”.

Que neste ano tenhamos o nosso mais lindo Natal.

Muita saúde e alegria neste ano que aí vem.

FELIZ NATAL e um ANO NOVO também!

Page 40: Escritos VI

Escritos VI 48

VERSOS ESPARSOS Cecília C. de Almeida

Eu sou uma estrela e todas as noites venho te ver.

Espero a noite abraçar o dia, o céu escurecer,

as aves aos ninhos retornarem e a madrugada irromper

para eu mergulhar na magia de te ver.

A noite desce, enfim, num grande abraço.

Eu te espero na janela, te faço companhia,

eu te amo, até ao nascer do dia.

Moro no céu da tua madrugada.

Sou a tua namorada, mas, depois eu me vou

perdida nas luzes do amanhecer.

Se nuvens me ocultam e em uma ou outra noite

talvez não possas ver o meu brilho,

não te desesperes e nem fiques triste.

Curta a minha saudade.

Olha atentamente o movimento ritmado

dos ponteiros do relógio movendo-se em direção ao tempo.

Cada segundo avançado me levará mais e mais na tua direção

e, trará o momento de novamente eu te amar.

Curta a minha saudade.

Ela será breve, pois amanhã, antes do anoitecer,

as nuvens já terão ido embora.

Espero a noite chegar

para estar contigo outra vez.

Page 41: Escritos VI

Escritos VI 49

PAIXÃO TRICOLOR Cecília C. de Almeida

Hoje, estou toda emoção!

Olhei o céu azul, nenhuma nuvem sequer.

Vi que não havia cenário mais lindo e mais perfeito

do que este, que a natureza criou

para que eu lembrasse meu tricolor centenário.

A brisa que sopra beija e balança a tua bandeira

tricolor, como a bandeira dos pampas.

Guapa, valorosa e guerreira hasteada, agora, em tua nova

casa,

tão heroica quanto fora no Olímpico monumental.

GRÊMIO da minha paixão!

Campeão de muitas batalhas sofridas, suadas, peleadas.

Campeão do Mundo, da América, do Brasil

e também do meu Rio Grande do Sul.

Vi o teu reflexo neste céu azulado,

lembrei de tuas glórias, teus heróis, teu passado.

Mas, se por um motivo qualquer,

aquelas coisas do destino,

alguma nuvem toldar o teu céu,

lembra-te que no coração de cada gremista

a frase já está marcada:

”COM O GRÊMIO, ONDE O GRÊMIO ESTIVER!”

Faz desta bandeira o pala azul que te cobre.

Pois, és como o gaúcho, corajoso, destemido

que enfrenta de peito aberto

o furor do Minuano, pois nasceste no mesmo mês

em que o gaúcho peleou

em defesa do seu ideal libertário.

Page 42: Escritos VI

Escritos VI 50

Segue, meu GRÊMO centenário,

Segue a tua trajetória, sempre em busca da vitória,

cuja chama, em ti, jamais se apagará.

Segue junto a esta torcida que te ama

e, que num grande coral,

ecoa pelos pampas, cidades, serranias

cantando tua valentia

e que contigo está para o que der e vier.

Pois és, meu IMORTAL TRICOLOR,

muito mais que um grito, uma derrota ou uma vitória:

ÉS AMOR!

Cecília C. de Almeida é natural de Porto Alegre/RS. Bacharel em História, cursando, atualmente, Direito na ULBRA. Escreve crônicas, contos e poesias. Teve seus poemas publicados na Coletânea Escritos (2007) e Coletânea do Concurso Literário do Expresso das Letras (2008). É membro da Academia de Letras e Artes de Porto Alegre (ALAPOA). Também é membro da Sociedade Partenon Literário. E-mail: [email protected]

Page 43: Escritos VI

Escritos VI 51

BOI JAGUÁ Diniz Blaschke

A menina ostentava toda sua vitalidade e juventude de quinze

anos no serviço do dia a dia na beira do rio, lavava não só a roupa

de sua família, que era formada, além dela, pelos seus pais e mais

cinco irmãos menores e também lavava a roupa de mais duas

famílias de casas vizinhas a sua e com esse pouco que ganhava

ajudava na renda familiar e os valores eram tão ínfimos que mal

pagavam a soda cáustica que era comprada para fazer com gordura

animal o sabão que era utilizado para lavar essa roupa.

Seu pai vivia da pesca no rio e sua mãe cozinhava e tomava

conta da casa e dos seus irmãos menores, enquanto ela passava a

maior parte do dia solitária em volta das pedras do rio como

chamavam o local onde o rio fazia uma curva e em função desse

acidente geográfico jogava a água da corrente em direção a esse

terreno rochoso da beirada e ali a água corria com maior força e

mais limpa também era o melhor local do rio em um longo trecho

de costa barrenta para lavar roupa e era sobre essas pedras,

protegida apenas por uma sombra rala de uns poucos galhos de um

chorão próximo que ela passava a maior parte do dia, lavando suas

roupas e as estendendo nos galhos para então depois de secas as

recolher, eventualmente um irmão seu menor a acompanhava, por

insistência de sua mãe, mas ela evitava isso, não gostava de mais

essa incumbência, pois passava a ter de cuidar do irmão também e

isso a distraia e gostava de ficar só com seus pensamentos.

As casas não eram muito distantes, estavam um pouco acima

da barranca ao alcance da vista não eram mais que um grupo de dez

casebres rústicos, paredes de tábuas e cobertura de capim Santa Fé,

melhor capim para cobrir casa não deixava passar uma gota de

água mesmo na pior das tempestades o perigo vinha de dentro da

casa pois normalmente o fogo era no chão dessas casas que não

tinham piso e o calor interno ressecava muito a parte interna do

capim e uma fagulha era sempre um risco.

Page 44: Escritos VI

Escritos VI 52

Esses rios caudalosos de grandes corredeiras trazem também

em suas águas inúmeras histórias que às vezes descem rio abaixo

outras vezes aportam nesta ou naquela costa e Mariana era este o

seu nome já ouvira inúmeras dessas histórias sobre anjos,

demônios, monstros e uma em especial lhe despertava a

curiosidade que era a história de um pescador que recebera uma

maldição e fora transformado em uma grande cobra a que

chamavam Boi Jaguá e que vivia nadando nas profundezas do rio

durante o dia na forma de cobra e ao entardecer se aproximava da

costa e a noite tomava novamente a forma humana original de

pescador e assim vagava pela margem do rio até que o dia o levasse

novamente como cobra para dentro das águas. Já a haviam alertado

para nunca deixar o sabão nas pedras, pois o Boi Jaguá comia e

algumas vezes de propósito ela havia deixado uma grande barra de

sabão bem branca e bem a mostra em cima de uma pedra próximo

da água e realmente no outro dia não estava mais lá, seria o Boi

Jaguá?

Ela ficava sempre no rio até ao cair da tarde, olhando ao

longe, rastreava com o olhar desde ás margens até onde sua vista

alcançava, procurando localizar algum sinal, algum movimento na

água que pudesse indicar a presença dele, que segundo a lenda teria

sido um pescador jovem e formoso que caiu em desgraça ao se

apaixonar pela filha de um feiticeiro, um amor proibido e como

insistisse com esse amor proibido contrário à vontade do druida,

fora estigmatizado com esse triste destino.

Mariana tinha quase certeza que durante a noite ele

freqüentava suas pedras o porto onde ela passava o dia, começou a

deixar todo dia uma barra de sabão que não amanhecia, estava com

a convicção desse acerto que começava a nascer entre eles.

Começou a se demorar cada vez mais para retornar a casa no fim

da tarde e quando o fazia já podia ver na água o brilho das estrelas

e nas noites de lua então nada era mais bonito para ela do que ficar

admirando a luminosidade da lua refletida nas águas do rio. Em

uma dessas noites teve a impressão que a claridade da lua refletiu

em um corpo que saia da água, sentiu um arrepio lhe percorrer a

extensão da coluna vertebral e como no mesmo instante piara uma

Page 45: Escritos VI

Escritos VI 53

coruja na mata próxima se assustou como nunca se assustara, pois

era acostumada com a natureza da beira do rio.

Seus pais começaram a reclamar de suas demoras para

retornar do rio e de suas idas à margem em plena noite lhe dizendo

do risco que corria com essa história do Boi Jaguá. Ela insistia e

isso passou a ser rotina para ela que depois do jantar a noite ia

ainda ficar mais um pouco a margem do rio e só retornando já tarde

da noite.

Tinha nesses dias Mariana um brilho diferente no olhar um

róseo mais acentuado nas faces e um sorriso enigmático que

teimava em não sair de seu rosto.

Em determinada noite em que a lua cheia havia saído a pouco

e iluminava todo o ambiente prateando, mata, campos e rio o pai de

Mariana chegava à casa vindo do porto onde tinha vendido uma

enfiada de pintados e nessa tarefa já provara de uma cachaça forte

do compadre Mane, tudo por conta desses valores recebidos dos

pintados e perguntando a sua mulher por Mariana ela lhe disse em

tom queixoso que a filha passa o dia e a noite na beira do rio e que

os vizinhos já andam comentando que lhe falta juízo. Impulsionado

também pelo álcool ele disse que hoje acabaria com essa história de

passeios noturnos no rio e saiu de casa colhendo uma longa vara ao

passar pelo salso do oitão da casa indo então na direção das pedras

do rio o lugar que sabidamente por todos era o local onde Mariana

permanecia. E de longe ao se aproximar do local com a vara em

riste já pronta para o uso, para exemplar sua filha e se justificar

perante sua mulher, pode ver, iluminada pela lua, não a silhueta de

uma só pessoa, mas de duas e à medida que aproximava essas

pessoas caminhavam em direção ao rio já entrando na água, uma

tinha certeza que era sua filha Mariana, mas a outra não sabia quem

era e sem saber o que fazer parou, mas, mesmo assim essa dupla

não parou continuou entrando rio adentro agora com a água pela

cintura envolvidos por esse mar prateado que a lua refletia. A vara

lhe caiu das mãos, só conseguiu dar um grito pelo nome da filha e

esses dois pontos agora sumiram na água sentiu um arrepiou no

dorso e uma lágrima lhe queimou a face. Achou que podia estar

delirando da cachaça, foi até a pedra onde eles estariam antes e

Page 46: Escritos VI

Escritos VI 54

havia uma barra de sabão em cima da pedra, olhou mais uma vez

para a água que agora estava vítrea como um espelho.

No outro dia e nos que se seguiram muitas buscas foram

feitas, muita procura, muito chamado pelo nome de Mariana de

quem nunca mais se ouviu falar as pedras ficaram vazias naquele

trecho do rio que antes fora ocupado dia e noite por aquela

criaturinha incansável em sua tarefa de lavar, estender, secar e

recolher roupa. Esse lugar perdera seu encanto ficando vazio como

se vida não mais existisse ali e as pessoas evitavam inclusive de

freqüentar esse lugar como que respeitando um lugar privado que

fora unicamente de uma só pessoa.

Salvo algumas vezes, quando bate a saudade, o pai de

Mariana vem a esse lugar, senta em uma pedra e fica observando o

rio, pensando em quem teria levado a sua filha e por que ele não

buscou saber de seus segredos e do que se passava com ela

naqueles últimos tempos, em que ela andava tão estranha. Só então

ele observando melhor o formato de algumas pedras dessa

formação rochosa se encantou com uma que tinha a mesma forma

de Mariana quando ajoelhada esfregando a roupa, como não havia

visto essa pedra antes? Estaria ali todo esse tempo? A notícia se

espalhou e todos vieram contemplar admirando essa formação

natural que reproduzia os traços da Mariana e até hoje essa pedra

está lá e todos os pescadores ao passarem por esse trecho do rio

dizem “lá está a pedra da lavadeira, a que desposou o Boi Jaguá”.

Porto Alegre – RS - 2009

Diniz Blaschke, natural de São Borja, 54 anos formado em Direito, Servidor Público residente em Porto Alegre, tem dois livros publicados, um no gênero romance e outro no gênero de contos.

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Escritos VI 55

LITURGIA DOS CORPOS EM VIDA Edson Olimpio Silva de Oliveira

"Nossos corpos são nossos jardins, nossas vontades são nossos jardineiros.”

- Our bodies are our gardens, to the which our wills are

gardeners."Othello", Scene X – por William Shakespeare.

primavera já carrega os ares da liberdade, a ruptura dos

grilhões do gélido inverno em que somente no

interlúdio do aconchego íntimo e amoroso a nudez é

consentida e idolatrada. No então, o verão é a plenitude

da exposição e a necessidade de retorno ao útero e berço de toda a

vida – o oceano. É nesta mágica conjunção de corpos e água que o

resplendor da vida acontece em forma, cor e odor. A beleza

transcende o detalhe e há tribos para todos os gostos e sintonias. Do

estrógeno à testosterona. Do lúdico e platônico ao intenso e carnal.

Da letargia do banho solar ao frêmito dos sentimentos que

transbordam. É a magnitude formidável da vida usando todo o

tempo fugaz dessa existência terrena.

Somos seres de contato e de amor tanto com nossos similares

quanto com a natureza esplendorosa. Assim não há feio para

perdoarmos ou aguilhoarmos, todos são belos dentro da sua

essência e possibilidade de nossa humanidade. Justo, talvez, pela

transitoriedade de nossos corpos e a certeza de seu ocaso exige-se,

necessita-se da luz solar, da água, da brisa quente, do mar, a

explosão da vida exposta em corpos com a mística da existência

que transcende e logo ali no horizonte irá liberar sua alma para

voos mais intensos.

Há garotos e garotas de Ipanema, da Cidreira e do Capão, de

Camboriú ou de Punta dos pruridos da juventude em flor de

polinização intensa aos prateados dos veteranos que saboreiam a

vida com as nuances do vinho magnífico e único sorvido e

degustado com o prazer das horas sem fim e longe, muito distante,

do garrafão dos ébrios e aprendizes. A vida se ajusta no equilíbrio

do ajuste constante entre os desiguais, cada um com seu universo e

seus dons. Com suas alegrias e satisfações.

A

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Escritos VI 56

As correntes de pensamento se ajustam canalizadas pela

ideologia da vida em plenitude, na liberdade de ter e usar, de ser ou

de parecer, de enfeitar ou de despir. De exteriorizar o abraço

trepidante com o beijo úmido de paixão. Novamente e sempre a

mesma umidade dos sentimentos aflorados comparece com os

fluidos da manutenção da existência e das novas gerações

encubadas no amor ou nem tanto.

Transitamos pelas sombras e por tantas névoas, mas jamais

deixamos de aspirar e de sermos seres de luz. Invariavelmente

agradecemos a cada nova manhã, amamos o sol que nos aquece e

transpiramos o agradecimento divino estarmos nessa terra tão

maravilhosa que nos atura, suporta e ousa persistir em nos manter

com a liturgia de corpos em vida.

Edson Olimpio Silva de Oliveira é Médico e Cronista. Membro do Partenon Literário, da ALVI – Associação Literária de Viamão e da SOBRAMES – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Colunista permanente do Jornal Opinião de Viamão há 14 anos. Avô da Ana Luiza, do Lucas e do Pedro Henrique. Blog / site: www.edsonolimpio.com.br E-mail: [email protected]

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Escritos VI 57

PARADOXO DO TEMPO Estela Dornelles

O tempo voa

Ultrapassa o próprio tempo da luz

Sempre correndo

Sempre voando

Na busca de um tempo que se foi

Na espera de uma chance que se foi

Pra voltar no tempo

Triste temporal do tempo

Que passa, sem medo, sem pena

Oh! Doce temporal do tempo

Para o seu relógio pra mim me organizar no tempo

Eu viajo no tempo, como se fosse um paradoxo do tempo

Perdida, atraída por um minuto perdido.

Estela da Silva Dornelles nasceu em São Jerônimo, atualmente reside em Guaíba-RS com seus filhos Eduardo (14), Guilherme (11) e Gabrielly (8), fonte inesgotável de amor e inspiração. Também integra a Sociedade Partenon literário. Está programado para o início de 2014 um livro de poesias, escritos com a alma, literalmente, intitulado "As estações do amor". E-mail:

[email protected].

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Escritos VI 58

CONCERTO DE ELEGIAS PARA

FANTASMAS Felipe Saratt

Prelúdio

Sombras escorregam no mistério

A noite se encarrega de acender

A voz que vibra no cristal dos olhos

A escuridão deita em meu sofá

Escuto o ribombar dos trovões

E a morte me anima a ceder

Clarifico fantasmas dolorosos

Que de sombras a noite encharcam

Fritando sonhos na saliva morena do fogo

Movimento I

Sorvo as águas do choro

Aparo as arestas da melancolia

Separo carne e ossos

Do tempo que me resta impassível

E ouço a voz dos peixes como algas

Ondulando nos abismos marinhos

A luz crepita em doloroso silencio

Visto as roupas do antropomorfismo

E uma dor de existir me embriaga

Page 51: Escritos VI

Escritos VI 59

Movimento II

A sombra do vate empertiga-se

E a brasa da noite me aquece em seu colo

Onde as aguas são tecidas de hidrogênio

A voz do poeta não pertence a ninguém

E a morte me desmoraliza em seu leito de meretriz

A luz desce ao inferno a acende as fogueiras

Onde queimo minha alma

A crocitação da morte me ensaia

Em colheitas de murmúrio feroz

Movimento III

A luz rege sinfonias de morte

E o maestro da melancolia abrasa as mucosas

Inflama de lava as feridas

A luz me permite reger os sonhos

Que morrem de uma vez só

A dor delata silêncios que embromam

Finjo ser sóbrio e o delírio me devora

As fibras de voz cansada

Onde existo e sou antes de ser

Movimento IV

As sombras navegam poderosas

O mar de fúrias sangrentas

Náufrago em seu colo de aguas turbulentas

Page 52: Escritos VI

Escritos VI 60

A noite é meretriz que se farta

Na febre que me agiganta

Sou pequeno em meu êxtase sonoro

Os sonhos são neve que derrete ao sol de outono

Sinto um arrepio de sonhos ímpios

E Caronte me leva em seu barco

Epílogo

A voz que me impele coça as costas na vidraça

Um tempo que não chega

A morte que não se espanta

A lua é imensa concha dourada

Guarda a memoria dos loucos

E me embriaga de estranhas sonoridades

A nudez do tempo se esfrega em meus lábios

Sinto estas sombras brincando de luz

E o poeta acende fantasmas no jardim do destino

Felipe Saratt, nascido em Porto Alegre se dedica a escrever desde os treze anos e já ganhou alguns prêmios literários com sua poesia. Cursou letras na Faculdade Ritter dos Reis com ênfase em literatura de língua inglesa. Possui diversas referências em seus textos de poetas simbolistas franceses e românticos alemães e ingleses. Sonha em publicar um livro solo com seus poemas. Além disso, escreve contos fantásticos que sonha em publicar e um dia viver da sua arte.

Page 53: Escritos VI

Escritos VI 61

EPITÁFIO Gerci Godoy

Quando se apagarem as luzes

recolherei meu vaga-lume

quando murchar meu jardim

plantarei cores de meu tempo

quando o gosto de meu céu ficar amargo

visitarei colmeias

se por fim emudecerem os pássaros

hei de encantar meu desencanto em poesia.

Gerci Oliveira Godoy fez muitas oficinas literárias, lançou seu primeiro livro de poesias "Da boca pra dentro" em 2012. Após muitos anos de leituras e estudo das palavras conseguiu alguns prêmios literários e muitos amigos. O corpo pesa, a poesia é leve, eleva as penas, adoça os dias, inunda de sol a chuva dos olhos, abre as janelas da alma e desencanta palavras. E-mail: [email protected]

Page 54: Escritos VI

Escritos VI 62

PRENÚNCIO Gislaine Boeira Camarata

Do amor que era tão lindo...

Agora

O tempo é findo

E do que agora

E só agonia

Chega, agora,

Eu quero alforria...

Gislaine Boeira Camarata nasceu e reside em Porto Alegre. É Presidente da Associação Gaúcha dos Escritores Independentes (AGEI). Se dedica também ao cinema e participou de várias antologias.

Page 55: Escritos VI

Escritos VI 63

REVOLUÇÃO FARROUPILHA Heloisa Gehlen

Delineando-se no horizonte

Da Província de São Pedro

Chimangos e maragatos

Em luta se digladiaram

Por liberdade, igualdade

Nas coxilhas deste pago.

Combates, cercos, assaltos

Vitória e sedições

Tinir de lanças, facões

Relinchos de potro ao vento.

Por um Rio Grande liberto

Gaudérios / negros / estancieiros

Por dez anos aqui lutaram

Pela República no Império.

De mares peninsulares

Entusiastas da liberdade

Estrategistas, Revolucionários

Em anseios de mocidade

Prá cá vieram

Amar / Lutar / Libertar

Sonhos / Amores / Paixões

No entrevero liberal

Devagar pelos Pampas

Assim dizia o poeta

“Prá não levantar o pó

Das cavalgadas ancestrais

Na afirmação de uma Raça”

Liberdade

Igualdade

Humanidade

Assim ecoou o clarim

Semeando o ideal farrapo.

Page 56: Escritos VI

Escritos VI 64

LUA Heloisa Gehlen

Esfera de prata

Imponente

Glamorosa do céu

Astro reluzente

Encantando os enamorados

Testemunha de segredos

Amores, solidões

Para os nativos

Uma Deusa misteriosa

Incrustada no infinito

Cheia de indagações

Luz com brilho

No escuro do céu

Propiciando

Emoções, paixões, utopias

Noites de serenata

Com lindas canções

De amor

Lua, enfeitiçando

A correria da vida

Com sonhos, esperanças

Saudades e paz

04/11/2013 - Porto Alegre

ZUMBI Heloisa Gehlen

Você não será o Zumbi

O fantasma ambulante

Page 57: Escritos VI

Escritos VI 65

Que passa vagando

Sem noção

Misterioso

Perdido na escuridão

Ziguezagueando sem rumo

Numa urbanidade

Sem alma, selvagem

Pretensiosa, sem respeito

Terminando com o planeta

Você nem sabe

No meio desta confusão

E destruição

Você é luz

Tem brilho

Inteligência, argumento

Emoção, ciência

Para modificar as trevas do mundo

Não se deixe fenecer

Luta por uma modernidade melhor

Com moral e ética

Centrada na vida

Onde o bem

Da nossa prática

Se estenda a todos

Universalmente

E mostrará o que

A lenda não explica

Quem é o Zumbi alienado

Na intrínseca relação

Do Homem

Com o Cosmos 04/11/2013 - Porto Alegre

Page 58: Escritos VI

Escritos VI 66

Heloisa Helena Leal B. Gehlen é natural de Santa Maria e mora em Tenente Portela. Graduada em Pedagogia. Foi Coordenadora da Casa de Cultura de Tenente Portela. Fez palestras no Memorial de POA por ocasião dos 80 Anos da Coluna Prestes. Escreve textos para os jornais da região noroeste: Província e Folha Popular. Co-autora do livro O Tenente Portela e a Coluna Prestes no RS (prefácio de Anita Leocádia Prestes). Co-autora do Livro Lá nos Tempos do Umbu, lançado na Feira do Livro de Porto Alegre, com prefácio do Secretário Estadual de Cultura Luiz A. de Assis Brasil.

Page 59: Escritos VI

Escritos VI 67

AGORA TE BUSCO

Ivan Coiro Poetha

Agora, te busco encantada

pela madrugada

da tal solidão.

Agora, te encontro reticente

trazendo ao presente

a minha paixão...

Agora, te busco distante

com saudade constante

a me sufocar.

Agora, te busco em meus sonhos

e entre sonhos suponho

a loucura chegar...

Agora, te encontro proibida

e penso que a vida

é um eterno sonhar.

Agora, busco a felicidade

beirando insanidade

do eterno buscar...

ANJOS VIVEM EM MIM Ivan Coiro Poetha

Anjos vivem em mim

mesmo que eu não seja divino

no meu desatino

pela inspiração.

Page 60: Escritos VI

Escritos VI 68

Anjos me trazem a clareza

e luz e a beleza

ao meu coração...

Anjos eternos em mim

trazem vida aos meu versos.

de sonhos pregressos

da minha experiência.

Anjos me lançam harmonia

pra versos e poesias

da minha existência

Anjos vivem mim

e de Deus são reflexos

de planos complexos

para a humanidade

Anjos vivem em mim

repletos de amor

de luz e esplendor

que nunca tem fim.

Ivan Coiro é jurado do Concurso de poesias do BANRISUL. Reside em Porto Alegre. Cinco participações na Feira do Livro de Porto Alegre. Mais de 60 Coletâneas. Livro solo “Palavra

de Poetha” (lançado em 2014). Idealizador e produtor de Informativo Cultural, Palavra de Poetha. Apreciador dos Vinhos e das Letras.

Page 61: Escritos VI

Escritos VI 69

PINGOS NOS 'IS' Juliano Paz Dornelles

Aproveito este espaço de interação dialógica pra lançar duas

posições pessoais sobre temas do meu interesse. O primeiro ponto

refere-se à criação de novos conceitos sobre termos já

conceituados. O segundo ponto diz respeito à relação entre obra e

autor. Tentarei expor de forma breve e sucinta, com exemplos

banais, o que aqui defendo.

CONCEITOS . . . Juliano Paz Dornelles

Para alguns filósofos os entes só existem após criação de uma

palavra que os define. Assim, a água faria parte do universo da

existência após o surgimento da palavra que a define. Contudo,

sabemos que o liquido inodoro, insípido, incolor, existe desde antes

de sua definição.

Do mesmo modo, alguns cientistas poderiam dizer que foram

os gregos que inventaram a democracia. Pelo simples fato de serem

os filósofos gregos que a definiram pela primeira vez. Até hoje,

muitos cientistas estão amarrados aos conceitos da escola socrática

sobre democracia. Simplesmente entendem por democracia aquilo

que foi estabelecido pela definição platônica.

Hoje sabemos que sistemas democráticos, aos moldes

ocidentais, existem desde antes do império grego. Muito antes de

sua definição e conceito. Fazendo parte da cultura de povos tribais

em várias partes do globo durante séculos. O que os socráticos

fizeram, foi apenas criar um conceito. O que qualquer um pode

fazer.

É certo que corremos o risco de viver uma confusão

generalizada se cada criar um conceito próprio sobre as coisas. O

mundo em que vivemos está acostumado com padrões. Padrões que

engessam a sociedade e a filosofia. Mesmo quando facilitam a

matemática da ciência.

Page 62: Escritos VI

Escritos VI 70

Muito além de reinventar a democracia. Ou redefinir o

conceito de água. O que proponho que nos atrevamos a criar os

próprios conceitos, independente daqueles que nos foram deixados

no passado. Rompendo a dependência de fundamentações teóricas

e das referências pré-estabelecidas. Se atrevendo a criar o novo ao

partir do nada, ou de si mesmo.

OBRAS E AUTORES. . . Juliano Paz Dornelles

A relação entre obra e autor emerge além da esfera

conceitual. Uma receita de bolo pode ser facilmente reproduzida,

independente da participação daquele que a criou. Pensar assim,

soa como dizer que o caminho de Cristo pode ser percorrido, por

qualquer um, independente de Jesus. O que, aos olhos da fé, seria

uma ofensa aos cristãos que defendem a parte que diz: 'Ninguém

vem ao Pai, senão por mim'.

Mas estamos falando de ciência. Salvo as crenças e religiões

a quem tem fé. O que quero dizer é que, além das palavras, o que

dá força ao texto é a história de quem as cunhou.

Um vegetariano poderia reproduzir uma cartilha sobre dicas

de churrasco, sem, ao menos, nunca tê-lo experimentado. Contudo,

é na vivência do assador que o texto se legitima. É importante

considerarmos estas e outras questões.

Juliano Paz Dornelles é Jornalista, natural de São Borja. Pós-graduado em Comunicação com o Mercado e Mestrando em Comunicação Social. Autor do blog www.pazdornelles.com. Dentre suas obras, podemos citar: ‘O livro do Guerreiro Justo–A luta continua’, ‘Virtual e real–Crônicas, ensaios e artigos’ e ‘Versos em linhas tortas – Entre o céu e a terra’.

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Escritos VI 71

VOLTEI PRA VOCÊ! Katia Chiappini

Estou, sim, voltando

Sou a mesma mulher

E estou concordando:

-Seja como quiser

Tenho tudo definido

Serei sua formosura

Com direito adquirido

Ao carinho em fartura

Lembro de sua promessa:

-Ser meu amor de novela

Espero agora sem pressa

Sentei-me junto à janela

Quero as noites especiais

Sem pejo e sem segredo

Voltei para buscar mais

Sem indecisão ou medo

Voltei para o seu abraço

Ciente do que hoje sou

Quero seu braço e cansaço

Como quando me amou

Voltei como o filho pródigo

Arrependida voltei

Sem seguir lei ou código

Meu coração entreguei

Quem espera a bonança

Esquece da tempestade

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Escritos VI 72

A vida é uma grande dança

Ou de amor ou de saudade

Katia Chiappini tem formação universitária com formação em Ciências jurídicas e Sociais. Possui estudos avançados em música e leciona piano, dando prioridade à melhor idade. É professora estadual aposentada. Antes de se aposentar foi diretora de escola, cuja experiência a colocou bem próxima dos problemas cruciantes da educação. Mas a poesia sobrevive com Benedito Saldanha e seus ''pupilos''. Blog pessoal: katiachiappini-

rememberthis.blogspot.com.br. E-mail: [email protected].

Page 65: Escritos VI

Escritos VI 73

FETICHE Maria Elizabeth Knopf

Br 216, subindo a serra. Poderia ter feito outro caminho, mas

prefiro esse. Curvas fechadas, pneus guinchando, abismos de

bordas desprotegidas, paredões que podem desabar a qualquer

momento. E hoje, garoa fina caindo. Lenta e incessante, forçando a

terra a escorrer para o asfalto.

A 160, 180 km por hora, ou mais, quando possível, é como

estar parado numa cápsula brilhante. Assisto o mundo, veloz, do

lado de fora. Casas, árvores, postes, montanhas e outros vislumbres

voadores me atingem a retina e não os identifico. São apenas

espectros, alegorias. E minha cabeça uma viagem de muitos

pensamentos colaterais.

O risco das derrapagens me dá um prazer mórbido e, no

aparelho de som Raul Seixas prefere ser “uma metamorfose

ambulante” e sei que já não sou mais quem fui, sou apenas “aquela

velha opinião formada sobre tudo”.

Eu pretendia uma casinha humilde, de ripas brancas, canteiro

de hortaliças e flores vermelhas na frente, isto há bem pouco

tempo. Tornei-me um executivo ganancioso. Moro numa cobertura

que ameaça roubar toda a vista da cidade, com uma mulher de

cabelos loiros alisados, que usa cremes Shiseido, bolsas Vuitton,

passa o dia em academias e shoppings e faz sexo como se fosse

uma boneca inflável.

Também sou pai de uma menininha linda de três anos, que já

frequenta o salão de beleza, nunca se suja e senta de perninhas

cruzadas, igualzinha à mãe.

Tiro o CD, pego outro, da caixa no banco ao lado, sem olhar.

Introduzo-o no aparelho. Estou indo para um encontro de negócios

amanhã. Hotel cinco estrelas. Pessoas inteligentes. Roupas

elegantes. Falaremos de carros, barcos, Paris. Beberemos uísque

importado.

Terei que estar inteiro, loquaz, convincente: é a campanha de

vendas de um novo cotonete, que não deverá chamar-se nem

Page 66: Escritos VI

Escritos VI 74

cotonete, nem palinete, mas qualquer coisa que ainda não descobri,

para parecer novo, eficiente, desejável. Como se fosse possível

fabricar outra vez uma haste de plástico com duas bolinhas de

algodão enroladas, que só serve para empurrar ainda mais para

dentro a cera do ouvido. E quando se abre a caixinha, pula aos

montes para fora, contaminando-se no chão, e indo para o lixo.

Tudo calculado para que acabem mais rápido, a fim de serem

repostos.

No alto falante agora, Cazuza: “mentiras sinceras me

interessam”. As minhas não serão sinceras. Serão bem planejadas,

bem dirigidas, com reclames que farão você desejar ter essa bosta

de cotonete, palinete, seja lá o que, com urgência, como se fosse a

coisa mais preciosa da terra, sem perceber que não serve para nada.

E logo um milhão de pessoas comprará nada, para que uns poucos

lucrem. São as leis do mercado.

Mas, de onde saiu essa caixa de CD? Não lembro. Enquanto

o carro desliza, examino os CDs: Elvis Presley, Jim Morrison, Jimi

Hendrix, Kurt Cobain, Elis Regina, Renato Russo, Janis Joplin,

Cassia Eller – que sacanagem. Paro de olhar, são as músicas dela,

como foram parar entre as minhas caixas, será que não devolvi?

Onde ela estará agora, numa casinha com flores vermelhas na

frente? Com outro homem, sozinha? Também, que coisa mais

idiota, morar assim e, quem sabe, comer arroz com feijão todos os

dias, e costurar a própria roupa?

Dou-me conta de outra bruta sacanagem, estão todos mortos,

estou ouvindo música só de mortos. Será que ela está viva, será

que não matei apenas seus sonhos, que eram nossos? Onde estará.

Estará bem, mal, feliz como eu?

Feliz? Posso com certeza dizer que sou feliz, quando só

pensar nela faz meu coração palpitar? Quando só penso em

comprar, mentir, juntar dinheiro e agora na porra de um plástico

com algodão?

Pelo canto do olho vislumbro, muito longe, num vale, uma

imensa mancha vermelha, maior talvez que uns quatro campos de

futebol, o que será? Diminuo a velocidade e procuro a entrada para

o vale, uma estrada de chão, em bom estado, que desce pelo meio

Page 67: Escritos VI

Escritos VI 75

de um mato limpo, com uma ou outra casa escondida, portas e

janelas fechadas.

Quando acaba a estrada, estou diante de uma imensa

plantação de flores. São papoulas. Um campo de papoulas, que se

move como uma onda voluptuosa. Sim, volúpia descreve o que

sinto.

Essas pequenas comunidades alemãs, por onde estou

passando, plantam papoulas para retirar as sementes e temperar

pães e cucas. Não são aquelas papoulas de onde se extrai heroína,

antes silvestres e hoje cultivadas principalmente nas montanhas do

Afeganistão onde, ao amanhecer, centenas de homens machucam

suas cápsulas, para que reajam ao orvalho, e deixem escorrer o

sumo precioso.

Mas estou viajando novamente, pego outro CD, e é Ravel.

Clássico misturado ao Rock, bem típico dela. É o Bolero, belo,

hipnótico, que me preenche todos os nervos, como uma vertigem,

enquanto as papoulas dançam e eu fico de pau duro.

Pode, alguém sentir tesão olhando papoulas? Serei um

daqueles fetichistas bizarros? Desço do carro para observar mais de

perto e então (que coisa surreal) uma vaca me ultrapassa e invade o

campo, pastando ruidosa e voraz.

Tento afastá-la, sacudindo os braços e ela nem parece

perceber a minha presença. Próximo, há uma pilha de madeira que

imagino deva ser rachada e transformada em lenha. Pego uma e

ameaço a vaca. Nada. Bato nela, nada. Então bato com força, ela

reage e tenta me atacar, não há tempo para correr de volta ao carro.

Espanco-a com todas as minhas forças, num prazer crescente,

sensual.

Ouço vozes de muitas pessoas se aproximando; enfim o

socorro. Quando a primeira paulada me atinge nas pernas, tento

argumentar, mas logo outras se espalham como fogo pelo corpo.

Estão me torturando, percebo, apesar da dor. Deixarão partes vitais,

como a cabeça e o pulmão para o final, para que eu morra

lentamente.

Eu grito. Eles gritam, em coro, uma frase incompreensível

para mim. Nossos gritos encobrem Ravel, mas ele continua soando

Page 68: Escritos VI

Escritos VI 76

na minha cabeça, onde ela dança como um dervixe, usando uma

imensa saia vermelha, ondulante como um campo de papoulas.

Uma explosão de gozo e dor estilhaça o universo.

Maria Elizabeth Knopf, 60 anos, divorciada, Profissão: Oficial de Justiça aposentada do TR/RS, escreve contos, possui apenas um texto publicado através de seleção no Concurso Histórias do Trabalho, Iniciou o Curso de Formação de Escritores e Agentes Literários na UNISINOS. Atualmente participa de Oficinas de escrita com Diego Petrarca.

Page 69: Escritos VI

Escritos VI 77

SETE ESTRADAS Mauricio Cesar de Castro

Sonhos e espinhos a incerteza do princípio

Passos e descaminhos o medo do precipício

Pronomes em desalinho um verbo no particípio

Lápis incolor contorna o incerto caminho

Fotos amareladas, cartas rasgadas

Segredo sagrado sete estradas

As marcas do passado os pés no presente

Os fantasmas do futuro

Voam pela janela pulam o muro

Nos vigiam constantemente

Sol no solo noite de neblina

Som do sul, céu azul, nuvem na retina

O todo construindo a parte

O azar sorrindo da sorte

Cimento na terra lágrima na garganta

A fé do ateu guerra santa

A prostituta e o poeta

A profana e o profeta

Na corda-bamba se equilibra a razão

O fim pode ser a porta do recomeço

O amor enfim sempre preso pelo avesso

Na doce e perigosa armadilha da ilusão

POMBAS Mauricio Cesar de Castro

Os homens explodem as bombas

ao invés de contemplarem o voo das pombas

com tanta raiva nos olhos

Page 70: Escritos VI

Escritos VI 78

deixam descolorir seus sonhos

e cegam para o encanto

que é o mágico encontro

das pedras com as ondas

Os homens fogem de suas sombras

escondem suas lágrimas

cultivam vinganças e mágoas

fingem não sentir dissabores

plantam no céu as guerras

e colhem no chão as dores

de ganância são ricos

mas miseráveis de espíritos

Pobres homens!

ALÉM DE TE AMAR Mauricio Cesar de Castro

Além do mistério arquitetônico da linha do horizonte

Do voo sincrônico das gaivotas, da poesia das estrelas

Além da imensidão onde o sol se faz da lua, fiel amante

Te amar é prazer e medo, brisa e tempestade, incertezas

Além das ondas atrevidas que beijam o rochedo

Mas sempre voltam sedutoras para os braços do mar

Além do que (até) possam dizer as palavras (em segredo)

E o sábio som do silêncio nos olhos (quase) confidenciar

Além do feitiço em aquarela do arco-íris no infinito

Das folhas ao vento, das luzes ao entardecer

Do verso que na palma da mão o destino tenha escrito

Te amar é a religião mais profano em que acredito

Divino pecado, onde a dor faz fronteira com o querer

É o que me mata de amor para do amor renascer

Page 71: Escritos VI

Escritos VI 79

PORTO ALEGRE Mauricio Cesar de Castro

Luzes no infinito, o sol nu no horizonte

se deleita nas águas de um jeito vadio

até a lua parece ficar no cio

e faz perfume da brisa

o fim da tarde cobre-se em cores

em tons suaves de amores

o canto dos pássaros se harmoniza

O beija-flor acaricia as nuvens

causando ciúmes nas flores

o pôr do sol divino

poema que seduz o viver

encantar é o seu destino

incomparável bem-querer

O navio repousa no cais

aquarela sagrada ao brilho do olhar

corpo e alma em paz

desejos navegam no mágico sonhar

indescritível esplendor, coração entregue

Porto Cidade Amada Alegre

VAGA-LUMES Mauricio Cesar de Castro

Estrelas ou vaga-lumes

Incertezas ou ciúmes

Descalço ou com sapato

No barro ou no asfalto

Eu sigo pela estrada

Sozinho ou de mãos dadas

Enfrentando a chuva e o vento

Page 72: Escritos VI

Escritos VI 80

Desafiando a fúria do tempo

Meu melhor amigo é o coração

Apesar das desavenças

Que temos, enfim

Pois me previne do perigo

Dizendo que não

E eu o desafio

Afirmando que sim

SÓ Mauricio Cesar de Castro

Só falta você aqui comigo

Só falta você aqui

Só falta você

Só falta

Só falta

Só falta você

Só falta você aqui

Só falta você aqui comigo

Mauricio Cesar de Castro, nascido em 11 de outubro de 1976, em Porto Alegre. Graduado em LETRAS, Licenciatura Plena - Habilitação em Português e Literatura da Língua Portuguesa. Pós-Graduado em Ensino de Língua e Literatura (abordagem textual) - ensino Fundamental e Médio. Professor da rede estadual de 1998 a 2001. Desde 2004 é docente concursado da rede de Viamão. Além de professor é poeta, compositor e produtor cultural.

Page 73: Escritos VI

Escritos VI 81

RENAS(CENAS) Patrícia Brufatto

O sol nasce;

a maré cresce

o vento sacode as árvores

Sussurrante, perdido pelo horizonte...

O arco – íris com tantas maravilhas

de cores sensíveis; transparentes azulados...

Parece vidro multicor desenhado

Insígnia rara que sobressai uma neblina fina,

armazenando beleza greciana

onde o mundo pára para olhar com

gesto de que um dia a vida renasceria.

ANOS DE VIDA Patrícia Brufatto

I Anos de vida

experiências adquiridas,

base de um crescer

amores desta vida que muitas vezes

nos fazem sofrer.

II Brilho nos olhos

Desejos audaciosos

Fruto de uma questão do saber viver

III Carregar sonhos de um mundo risonho

Perder medos e decifrar segredos

Experiências vividas,

Anos de vida

Page 74: Escritos VI

Escritos VI 82

DAS MANHÃS DE SETEMBRO Patrícia Brufatto

I O meu dado caiu na tua manhã

Feito flor, feito ternura

Que o sol poente se pôs a iluminar...

II Abri a minha janela,

Passarinho voou...

Menino – passarinho com imensa “ganas” de voar

Que dentro do meu coração

O amor é plural

III Sacias meu desejo que

Ressou em tuas manias, velhas amigas

gravadas em teu peito

talismãs na mesma busca

dos meus ideais

somos eu e tu

quase iguais.

INTERFONE Patrícia Brufatto

Maliciosas fantasias do interfone

ao arranha – céus

Diz ao certo teu sobrenome

Desmantela tuas caravelas

Invade a marcha das nuvens

Revoadas de desejos incuráveis a contextura

Coriscos, onde fundem cascatas quando

Relevos repelem nas nossas peles

No interfone da Guanabara

Page 75: Escritos VI

Escritos VI 83

MEUS (EUS) Patrícia Brufatto

Acendo meus candelabros,

a noite adormece,

Assemelho minha vida com a tua

Musa, donzela, ela: Patrícia

Jeito: carícias – a delícia perpetua por todo meu ser: firme,

forte

Que a sorte me fez poeta

Mundo, projetos, palavras, manuscritos,

Portas abertas

Sensações, sentimentos, estereótipos, folhas ao vento...

Balançam lembranças no tempo

Patrícia Brufatto Santa Rita nasceu no bairro Glória, em Porto Alegre, num mês de sol escaldante e irradiante: janeiro, no dia 24. É graduada em Letras/LC Licenciatura plena, na UNILASALLE, em Canoas, nas habilitações língua portuguesa, literaturas, espanhol. Tem formação em Inglês. Apreciadora da Arte, freqüenta eventos em geral.

Page 76: Escritos VI

Escritos VI 84

PORTO MAIS QUE ALEGRE Renan Dorneles

Ah, Porto Alegre!

Terra onde sempre morei

Aqui, colhi e plantei

Sorri e chorei

Amei e desamei.

Ainda moro aqui

E viveria para sempre.

Não há quase nada diferente,

As pessoas são bonitas

E o sotaque irreverente.

Um lugar belo de pessoas belas

Ao som dos pássaros vira cinema.

Frio e calor revezam-se entre as temperaturas

E onde estou enxergo tudo às alturas.

Vejo pessoas sorrindo

E tomando chimarrão

Ai meu Deus, como é lindo

Ter o Sul no coração!

REDDITO Renan Dorneles

O impossível me atrai

O possível me ajeita

O chão me sustenta

O céu me representa.

Sou muro erguido

Page 77: Escritos VI

Escritos VI 85

Construído de amor

E receita.

SILENCIAR-SE Renan Dorneles

“Tem dias em que me agarro ao silêncio. Eu me contento em ouvir

as idiotices de cada um… Eu noto com mais facilidade os defeitos,

os trejeitos, eu disfarço para parecer um qualquer num dia comum.

Mas eu sou meio antiquado, eu moro nas estantes, nos cantos, nos

quadros, e me torno nó, pó, solitário. Eu prefiro calar pra não

responder, eu prefiro não perguntar porque não quero saber. Eu

tranco a minha sinceridade e a minha grande vontade de gritar. Me

cabe melhor o silêncio nesses dias estranhos. Sem motivos, eu

apenas me calo, eu só me omito e me restrito. Eu aprendi que o

silêncio é quase sempre o melhor abrigo.”

ANACRÔNICOS Renan Dorneles

“O amor é um arco-íris de cores aleatórias, sem grandes histórias.

O vermelho que apaixona, erotiza, romantiza e assanha. O azul que

arrepia, decora poesia, arranha. O amarelo que brilha e enriquece,

mas a milhas e milhas de quilômetros do nosso amor. O rosa que

suaviza e tranquiliza qualquer poetiza que passe descalça. O verde

que respira, pira e vira o funk em valsa. O branco que pacifica,

multiplica a fé no Senhor. O roxo que escandaliza, protesta e

argumenta. O marrom que censuriza, volta no tempo e tenta o

concerto. O preto que determina, finaliza, calcula e decide. Apesar

das cores, os amores e as formas dele não são impossíveis para

daltônicos, e sim, para anacrônicos.”

Page 78: Escritos VI

Escritos VI 86

MINHA LÍNGUA Renan Dorneles

“Podem me chamar de velho, louco, estranho ou à toa, mas eu

gosto é de música boa, a que fala a minha língua, a insana poesia

que me recita. Eu gosto é do português, do louco que escreve os

porquês, eu gosto é das mentes psicopatas que criam bondades para

os descolados. Eu gosto é do Renato, Cazuza, Raul, eu gosto é do

Fernando Abreu, Leminski e Lispector. Eu gosto é da diretoria,

aquela que cria, não copia. Eu gosto é do povo gritando, do poder

exalando, eu gosto é da fé de viver, e ser o que quiser ser. Eu gosto

é do hoje, eu gosto da loucura, mas saiba que a minha loucura não é

igual a sua porque a minha é uma insanidade do bem que o vento

trouxe junto a um papel riscado, e eu calado, li que era um poeta

algemado que gosta do mergulho nas próprias palavras não ditas,

me calo. Eu gosto é do bom que poucas pessoas tem o dom de

apreciá-lo.”

Renan Dorneles, nascido em Porto Alegre, viveu toda a sua vida na cidade de Canoas. Aos 19 anos, seu maior sonho é ter um caso com o recíproco. Tanto no amor, quanto na escrita e em todos os sentidos imagináveis. Escrever e viver o que escreve é sua intenção. Futuro jornalista, ele apenas quer viver da escrita, mergulhado nas suas palavras vindas de um local tão lindo que nem ele sabe descrever.

Page 79: Escritos VI

Escritos VI 87

AME Rodrigues Poeta

Ame,

Ame sem parar,

Ame muito e amiúde,

Ame simplesmente

Pelo simples fato de amar,

Ame a qualquer custo,

E desesperadamente, ame,

Ame a vida todos os dias,

Ame a cada instante,

Ame o presente momento,

E ame o que ainda esta por vir,

Ame seus familiares,

Ame seus amigos,

Ame até mesmo seus inimigos

Ame o animalzinho de estimação

Ame os de rua também

Mas ame, até de olhos fechados, ame,

Afinal,

Nada mais nos restara,

Que não, amar.

NA VIDA NO AMOR E NO SEXO Rodrigues Poeta

Quero você assim

Bem pertinho de mim

Agarrada em meu peito,

Quero estar com você

E eu prometo fazer

O amor mais perfeito,

Page 80: Escritos VI

Escritos VI 88

Nosso amor vai ser mais

Muito mais que de mais

Vai ser bem mais bonito,

De pra mim o seu beijo

E me pegue de jeito

Nesse sonho infinito,

Sou feliz por te amar

E prometo ficar

Sempre junto ao seu lado,

Vai ser eu e você

De mãos dadas por que

Vamos estar lado a lado,

Nosso amor é assim

Pra você e pra mim

Uma loucura perfeita,

Então vamos seguir

Vamos juntos fugir

Como manda a receita,

Vamos então mundo a fora

Sem ter dia nem hora

De voltar à realidade,

Pois esse amor é profundo

E mostraremos ao mundo

Que o amor não tem idade,

E viveremos assim

Sempre juntos enfim

Sem lógica ou nexo,

E na mais completa exatidão

Seremos cúmplices então

Na vida no amor e no sexo.

Page 81: Escritos VI

Escritos VI 89

AMOR OU PAIXÃO Rodrigues Poeta

Eu não sei se é amor

Eu não sei se é paixão

Eu só sei que você

Invadiu o meu coração

E agora meu bem

Eu vivo mais feliz

Pois você anjo meu

É tudo o que eu sempre quis

Eu jurei não mais me apaixonar

Por outra pessoa

De repente você me tocou

Com o seu olhar

E o meu coração

Deixou de ficar à toa

Você chegou devagarzinho

E entrou bem de mansinho

No meu coração

E agora eu estou

Na boa

Ai meu Deus que alegria

Eu te vejo todo o dia

E invento fantasia

Só pra te amar

Veja só que coisa louca

É o beijo da tua boca

E o brilho deste olhar

O meu coração

Agora esta contente

Pois tudo de repente

Está mais lindo de se ver

Não tenho mais a nostalgia

Que eu tinha outro dia

Page 82: Escritos VI

Escritos VI 90

Pois você é a alegria

Do meu viver

POETA DE CORAÇÃO Rodrigues Poeta

Não tenho curso superior

Tão pouco sou doutor,

Não sou menestrel

Muito menos bacharel,

Não sei se escrevo bem ou mal

Ou se apenas faço rimas e coisa e tal,

Não escrevo para que somente os sábios possam ler

Escrevo para que todos possam entender,

Gosto da simplicidade das palavras

Pois são menos complicadas,

Nunca fiz faculdade de literatura

Eu até gostaria, mas não tive estrutura,

Hoje para ser poeta tem que ser estudado

Para fazer das palavras um enigma, ser mestrado,

Não quero com tudo isso afirmar

Que não seja preciso estudar,

Quero apenas com isso dizer

O quão gostoso é escrever,

Hoje um poema para ser extraordinário

Tem que ser lido tendo em mãos um dicionário,

Para mim, a poesia é a simplicidade do coração.

É um sentimento que flui com emoção,

Para definir um bom poeta

Críticos usam apenas uma meta,

Complicar ainda mais as palavras

Dizem tudo e com isso dizem nada,

Sou como o povo e a sua simplicidade

E não como alguns renomados e suas vaidades,

Page 83: Escritos VI

Escritos VI 91

Sei que nunca serei um poeta renomado

Mas enfim nunca pensei em ficar famoso com versos rimado

Fico apenas feliz em saber que tenham lido e gostado

Seja como for, amo escrever e escrevo com emoção.

Não sei se é praga, castigo ou maldição.

Apenas nasci assim, um poeta de coração.

Rodrigues Poeta nasceu José Ricardo Rodrigues Duarte em Porto Alegre, em 14/08/1974. Filho de João Carlos Mires Duarte e Iara Salete Rodrigues Duarte, tendo os Irmãos André, (Andréia já falecida), Elaine, Rafael, Jéssica e Tiago. Tornou-se encantado pela arte literária ao conhecer o poema “Minha Namorada” de Vinicius de Moraes. Lançou os livros infantis “Vida e Seus Amigos o Valor da Amizade” e “Vida e Seus Amigos 2 O

Resgate do Rei”.

Page 84: Escritos VI

Escritos VI 92

DESENTENDIMENTOS. Roselena Nunes Fagundes

Desisti de entender o desentendimento,

Não entendendo o mal entendido...

Desentendo o que foi entendimento,

Entendendo o triste desentendido!

Não entendo o que entendi,

Desentendendo os desentendimentos!

Entendo que então desentendi

Os desentendimentos não entendidos!

Ignoro tudo o que entendi

Dos desentendimentos entendidos!

Não entendendo o que desentendi

Dos já entendidos desentendimentos!

Roselena Nunes Fagundes é Gabrielense, gaúcha, brasileira. Professora, pedagoga, psicopedagoga. Poetisa, escritora, sonhadora. Aventureira, mundana e universal. Curiosa, desbravadora, perspicaz. Amante da vida, do amor e da poesia.

Page 85: Escritos VI

Escritos VI 93

Brasil Brasil país de muitos contrastes

onde desde o descobrimento sua beleza resplandece, nossos índios ainda lutam pelos seus espaços, nossos

negros fazem valer suas crenças que ainda permanecem. Brasil país de temperaturas variadas, de fauna e flora

ainda a serem cuidadas, de regiões diferenciadas e de etnias diversificadas.

Brasil dos nossos antepassados que deixaram seus legados

do Oiapoque ao Chuí, de muitas riquezas a serem exploradas. Brasil do carnaval, do futebol,

do rei Pelé, da linda Bahia, e do candomblé é um país de trabalhadores

esperançosos, de muita

fé...

Sônia Marli Ferreira é natural de Alegrete/RS. Autora dos livros de poesias: Paixão (2007) e Idas e Vindas (2008) e dos livros infantis Luizinho e o Tesouro (2009), O Gatinho Sofio (2010), Três Patinhos sem Lagoa (2012) e. Entre Sonhos e Realidade (2013). Sempre participa da Feira do Livro de Porto Alegre/RS, Feiras do Interior do Estado e na Bienal de São Paulo, sendo que lança um título inédito por ano.

Page 86: Escritos VI

Escritos VI 94

Di - Vaga - Ação Teresinha de Jesus Paz Pereira

A folha de papel, trama de fibras vegetais alvejadas pelo

cloro e amotinadas em retângulo, buscava a justificativa de

seu destino. Ansiava pela invasão das palavras que dariam sentido

ao seu sacrifício, pois continuar um eucalipto abrigando ninhos e

administrando reações químicas seria melhor escolha de vida.

A mulher era desconhecida no mundo literário. Sua vida

passara a valer mais desde quando o destino lhe jogara na arena das

palavras, que lhe seduziram e devoraram em arrebatamento

completo. Porém agora, debruçada à mesa, ansiava que a

possuíssem como as tantas vezes em que conduziam sua mão sem

deixá-la sequer pensar. Mas nada. Só os cotovelos a reclamar e

tensão já pressionando o oxigênio de seus pulmões, pois

as palavras de vida própria estavam desconhecendo antigas

trajetórias - caminhos sinuosos onde perfeitos casamentos tinham

acontecido.

E o vasto espaço branco pedia, implorava ser impregnado por

seres gráficos negros que chegariam com muita inspiração e rara

técnica, horas a fio sem trégua. Isto daria martiridade

completamente justificada ao papel, pois a cada movimento da mão

da mulher a ponta da caneta rasgaria os elos das fibras inundando-

as de tons que decifram sentimentos. Como soldados rastejando

estrategicamente pela folha para que o caos das ideias se

organizasse.

E a incansável pessoa querendo ser dominada pelo invisível

e querendo dominar dicionários numa íntima relação com algo dito

sem vida, mas pleno de vida: a folha de papel.

Porém, só acontecia a trajetória dos ponteiros beijando os

números de um a doze e de um a doze novamente, fechando o vinte

e quatro. E mulher e papel num tal idílio, num tal enfrentamento.

Viver tem dessas coisas, de vez em quando se fica a zero

engessada num momento quase infinito. E se ligasse a televisão?

Se parasse o relógio? A passos rápidos foge dali para não ver a cor

Page 87: Escritos VI

Escritos VI 95

de sua vergonha riscada no inquisidor espelho, testemunha de sua

frustração. Que ao menos se desatasse o coração de suas amarras.

Que se abrissem as comportas. Que uma avalanche d'água face

abaixo inundasse o papel dissolvendo-lhe as cadeias e levando os

elementos a seguirem seu destino, ao invés de ficarem presos em

geometria angelical a olhar para ela suplicantes, carentes de

símbolos.

Porém, o que não se vê ainda insiste e ordena dentro,

devolvendo a mulher àquela arena, àquela cena. As mãos são

induzidas a manipular. Os dedos calejados e sem rumo seguram o

papel num tempo que para, não é mais dona de nada. Eles fazem

dobraduras na cativa folha. O invisível quer e manda. Um objeto,

com linhas convergentes a um ponto se faz avião. Os dedos, agora

tomados de precisão e competência, impulsionam fortemente o

acontecido que voa pela janela em busca de outro destino. Voa

leve, entregue à vida e deixa em seu rastro a liberdade das árvores.

Teresinha de Jesus Paz Pereira “tepaz” trabalha na Secretaria Estadual de Saúde em Porto Alegre. Mora no Centro Histórico de Porto Alegre. Sempre teve facilidade com a expressão escrita, mas faz mais ou menos cinco anos que iniciou oficinas e se descobriu fazendo o que parece ser prosa poética, nem ela sabe bem...

Page 88: Escritos VI

Escritos VI 96

FOI ASSIM QUE COMEÇOU Vera Albers

Muitas vezes aconteceu-me querer que os meus sonhos (não

havia noite que eu não sonhasse) fossem realidade. Mas dessa vez,

meu Deus, esconjuro, faça com que a realidade seja um sonho.

Pois foi assim que começou.

- Como é, Pi – dizia uma voz – está vivo ou está morto?

- Ora, Ja, por acaso não sei reconhecer quem está vivo ou

morto?

As vozes cessaram.

Virando os olhos só conseguia ver o reflexo de luzes que

deixavam uma estria multicor atrás de si.

- E agora, o que fazemos?

- Acho que não tem jeito. Já vai chegar a polícia.

- A polícia? E se descobrirem sobre nós?

- Não há o que descobrir: pegue os envelopes e enfie-os no

bolso do morto. Ponhas as luvas, vá já.

Nesse momento uma das linhas que perpassavam minha

mente como que fixou-se e pude sentir o choque do carro que

parou bruscamente depois que o meu bateu. Não sei como cai fora

dele, mas tive o impulso de levantar e explicar-me. Assumir logo a

culpa pelo acontecido. Eu havia acelerado de repente e ... será que

alguém morreu por causa disso?

A vontade de levantar-me e fugir transformou-se em pânico.

E se tiver matado alguém?

Só que não conseguia levantar.

Estarei sonhando?

Mas depois de um tempo que não sei calcular, a custo me

ergui e, cambaleante, segui pela rodovia.

Correr? Não.

Andar?

Mas para onde?

Page 89: Escritos VI

Escritos VI 97

Para casa é claro.

Eu e meu cérebro éramos duas entidades separadas. Uma

perguntava, outra respondia. E meu cérebro respondia em ondas.

Uma delas me dizia que minha casa estava logo adiante.

E era como se tivesse deixado meu corpo eu pairasse acima

das coisas. Via a planta delas. Mas dali só via a extensão ao meu

lado e a rodovia em frente.

Qual é meu nome? Quem sou eu?

Pus a mão no bolso da calça e a retirei vivamente. Uns

pacotinhos de papel, enfileirados, grudados um no outro, dentro de

um saco impermeável. Nada mais. O que estão fazendo ali? Meu

cérebro nada respondeu. Mas eu continuava andando. E se eu

estivesse na América?

Se estivesse na América o caminhão que vem vindo à toda

pararia com esse seu gesto para pedir carona, disse o cérebro.

E não é que parou?

Subi na boléia. O caminhão era enorme e o motorista

também. Camisa xadrez, fundo vermelho, barba em volta do

queixo, jeito folgazão.

Aonde vamos? Jeff, disse, dando-me uma pancadinha nas

costas.

Procurei rir, junto com ele.

Qual é a cidade que nos espera?

Santa Fé.

È para lá mesmo, disse e apertei a mão que o homem me

estendia.

Sentei ao seu lado. Embaixo do espelhinho uma loira

rebolava.

Em trinta minutos mais ou menos, estaremos lá. Já estaria lá,

na verdade, não fosse o desastre.

Desastre?

Sim, de onde você vinha?

Dois carros se chocaram, o motorista de um deles morreu.

Cristo, pensei.

Sossega, disse-me o cérebro, você está inteiro.

Page 90: Escritos VI

Escritos VI 98

Só se aconteceu depois da mulher me deixar na estrada, falei,

a primeira coisa que me veio à cabeça.

Deixar na estrada, hein?

Mulheres, mulheres...é isso aí.

Que tal um trago? Acho que nós dois estamos precisando.

Esticou o braço peludo para olhar o relógio: sete e meia.

Logo ali adiante há a cafeteria de um motel que eu conheço, a

Shirley‟s, comeremos alguma coisa também, isso é importante .

Apalpei automaticamente o bolso da jaqueta. Algo parecido

com uma carteira achatada me deu um mínimo de alívio. Ele notou

o gesto.

Sossega body, não se preocupe, você é meu convidado.

Descemos e entramos numa enorme cafeteria para

caminhoneiros. A América é assim, ela parece feita para

caminhoneiros, reparei, para mim mesmo.

Uma imensa vitrine de vidro opaco e, nas prateleiras, uma

enormidade de pratos feitos.

Dois pimentões vermelhos recheados que despontavam do

arroz de um deles tinha um ar de família, não sei por quê. Meu

cérebro continuava ausente, quanto ao passado.

Meu companheiro escolheu uma mesa de fórmica ao lado de

outro body, que o cumprimentou ao vê-lo e eu fiz sinal de que ia

para o banheiro.

Aproximei-me furtivamente do espelho quase sem reflexo e o

que vi me abalou.

Cristo!Aquilo sou eu?! Não é assim que me sinto, não é

assim que me reconheço!

O que me fitava era uma cabeça redonda com uns cabelos

crespos, pretos e eriçados, uma grande pinta de nascença ao lado do

nariz afilado em forma de alfinete, os lábios grossos, as bochechas

meio caídas e dois olhos esbugalhados, com reflexos laranja! E

ainda por cima, baixinho. Sofregamente tirei do bolso a carteira

achatada. Continha uma nota de cem dólares e uma ID: nela meu

nome era Robert Montserrat. E a foto o confirmava.

Page 91: Escritos VI

Escritos VI 99

Senti uma tontura súbita e apoiei-me ao espelho para não

cair. Aí, de repente, tive o primeiro vislumbre de alguma cena do

passado, o que me deixou ofegante, além de confuso.

Uma mesa de mogno, comprida, quase do tamanho da sala.

Em volta dela, uma porção de gente de avental branco. Uma

mulher, também de avental, regendo a sessão e falando,

explicitamente, algo infalável. A não ser que os que a rodeavam

fossem de total e absoluta confiança, e as paredes a prova de som.

Eu, era eu? Um médico? Um cientista? Um professor? Em cima da

mesa, uma porção de folhas impressas. Numa delas, para onde caiu

meu olhar,

Vejo o cabeçalho, bem no meio do tampo, e meio

amarfanhado: Pail-77. O que será?

Vi-me saindo de lá. Como era possível que existisse algo

assim? Não poderia me omitir diante daquilo. Seria necessário

comunicá-lo a alguém, o mais rápido possível. Era o que me

dispunha a fazer quando...

Corte.

E os pacotinhos? Tem algo a ver com meu passado? Ou são

desse presente maldito?

Procuro agarrar-me a algo de concreto. Vamos, cérebro,

vamos. Puxei de novo a carteira. A licença estava lá, super

achatada. Li: If this is the first licence issued to you, the two

numbers are the same as the last two digits of the document shown

alongside. Driving Licence enquiries - Tel: 017292782787

Falta alguma coisa após o número. Não tem o nome. Até a

carta está sem memória, cristo. Tornei a enfiar a mão no bolso da

calça e entrei na privada. Fechei a porta com trinco e,

delicadamente, retirei a fileira de pacotinhos ensacados, embolei-os

e subi no assento. Levantei a tampa da caixa d‟ água e enfiei-os

bem no fundo dela. Descansem aí, falei, dando um profundo

suspiro.

Até eu saber quem sou.

Page 92: Escritos VI

Escritos VI 100

Encostei as duas palmas da mão à parede e senti-a gelada. E a

tampa da pia estava colada do modo errado. O formato da bacia era

reto para fora e bojudo para dentro. Estaria com febre?

Cambaleando, voltei à mesa de fórmica.

Venha, body, qual é mesmo seu nome? Ah, Robert. Sente

aqui, Robert, este é o Flip, meu amigão. Vamos ver o que há de

bom, o que me diz, Flip?

Flip não disse nada.

-Traga aquele prato de pimentões vermelhos, Parecem dois

chifres, vão bem pro nosso amigo aqui, disse Jeff, rindo para o

empregado e dando-me outro tapa nas costas.

Esses caras vivem bebendo, pensei. Nem sei como

conseguem dirigir esses treminhões. Vai ver que é por isso mesmo.

Enfiei o garfo pesado e escorregadio no arroz e, ao por o

pimentão na boca, tive outro vislumbre.

Quem dirigia era a Shirley que falava e ria o tempo todo. Eu,

ao lado dela, contido e atento. Ela falava espanhol. A estrada era

poeirenta, o sol escaldante e a cidade para onde íamos não chegava

nunca. Paramos à sombra de uma árvore. Ela virou o rosto para o

meu lado e fitou-me nos olhos. Depois encostou seus lábios aos

meus e nos beijamos longamente.

Só me faltava esta. Ter esta lembrança excitante, bem agora.

- Robert, falou Jeff com voz empastada. Não vou poder

dirigir agora. Vou dar uma dormidinha aqui no Shirley‟s. Se estiver

com pressa, pode seguir viagem com o nosso amigo Flip, ele

também vai para lá.

- Dormidinha? Ótima idéia. Eu também vou aproveitar para

descansar, falei, afoito, engolindo o arroz e o pimentão, por sinal,

frio.

- Deixe o Flip ir, se está com pressa. Eu não estou. Esperarei

você me chamar, quando você acordar. Não vá esquecer de me

chamar. OK?

Fomos, ambos, para a recepção. Deram-me o número 8; a ele

o 6.

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Escritos VI 101

Mal abri a porta do quarto senti que dificilmente teria

agüentado um minuto a mais. Só tive o tempo de calar a voz do

apresentador da TV e caí na cama feito uma pedra.

Meu sono foi tão pesado que só acordei com o som de duas

pancadas abafadas. Esfreguei os olhos, passei a mão no cabelo e

entreabri a porta.

- Há um casal lá embaixo perguntando por você, disse o

porteiro.

- Obrigado – já vou descer.

O homem afastou-se e eu fechei a porta. Dessa vez meu

cérebro não se fez de rogado. Abri a carteira, peguei vinte dólares

do maço que havia enfiado bem no fundo do bolso e deixei-os

embaixo do cinzeiro, sobre a TV. A janela abria-se sobre uma

garagem com telha de eternit. Desci as pernas com cuidado e andei

encurvado pelas bordas até a outra extremidade do telhado que

dava para a rua. Segurei-me na calha e deixei-me cair. Comecei

andando devagar, depois acelerei o passo. Dobrei a esquina e

comecei a correr pela rua da qual não se via o fim. Entre aí, falou o

cérebro. Entrei por um corredor estreito, uma espécie de túnel

cavado entre prateleiras e livros. Via-se uma luz amortecida no

fundo. Dois lances de escadas subiam, em caracol, ao mezanino

igualmente abarrotado de livros. Um sebo – com certeza.

Fui procedendo às apalpadelas em direção à luz. Um dos

livros aos quais me encostei soltou-se e quase caiu. Amparei-o com

a mão. Andei por uns bons cinquenta metros e me vi numa sala

redonda com o pé direito que chegava ao teto. Sua iluminação

provinha das frestas das telhas e de um lustre pendurado a um fio

que vinha do alto do teto e se projetava sobre uma pequena cascata

elétrica, um fogãozinho a carvão, dois gatos enormes, um preto e

um branco, dois sofás de cor parda, um em frente ao outro e,

sentado no que ficava próximo da cascata, um indiano anafado,

com olhos penetrantes e ar acolhedor.

- Bom dia, disse eu.

- Bom dia. Vai ficar com esse? Perguntou olhando para o

livro.- Vou, respondi automaticamente.

- Aceita um chazinho?É de ervas, não tem efeitos colaterais.

Page 94: Escritos VI

Escritos VI 102

Sentei no sofá em frente ao dele e dispus-me a tomar o chá.

O que senti pela primeira vez desde o início dessa história

maluca foi uma sensação de paz e frescor tão grandes que me

fizeram desejar não ter que sair dali logo em seguida, para ir sem

saber aonde e, ainda por cima, procurado pelo casal. - Procure um

jeito de ficar – disse-me o cérebro – é o lugar ideal, até pôr suas

idéias em ordem. Sorvi o chá lentamente enquanto meus olhos

davam a volta da abóbada.

– Um elevador? perguntei, ao ver um aparelho vermelho

parecido com as cabines telefônicas da velha Inglaterra.

- Eu mesmo estou dando um jeito nele, agora que tenho

livros até no sótão - uma mansarda que construí no telhado, mas

está difícil.

- Se quiser, posso dar uma olhada, ofereci afoitamente. (Será

que a engenharia fazia parte de minhas novas habilidades?).

Acabado o chá, levantamo-nos e fomos até a gaiola onde se

encontrava o elevador.

Ele tinha todo um arsenal de instrumentos, ferramentas

manuais, elétricas, chaves de todos os tipos, para mim

estranhamente familiares.

Juntos, conseguimos fazer com que a engenhoca subisse. A

alegria dele era visível.

- Você ajudou a mim, disse ele, agora Tsaatan vai ajudar a

você.

Colocou na cabeça um barrete – um orgoi – e olhou

fixamente para a máscara pendurada num dos vãos da estante.

É o ongon – ele disse. Juntou as palmas das mãos – é o irmão

do meu pai, meu guia.

A máscara era de metal, mas o que chamava a atenção eram

os dois olhos arregalados e os tufos da barba, bigodes e cabelos

naturais.

O barrete que ele vestiu tinha uma verdadeira cascata de fitas

que lhe cobriam as costas. É manene – ele me disse. É a irmã de

meu pai, ela me dá o dom de ver no passado das pessoas.

Começou a fazer movimentos amplos com os braços, às

vezes bruscos, e a girar sobre si.

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Escritos VI 103

Depois desceu para o rés-de-chão.

Ao lado do divã, na saleta, fervia a chaleira com as ervas. A

infusão já era amarela esverdeada. Ele encheu um copo que jogou

sobre os carvões e encheu outro. Subiu de novo e fez-me um sinal

para que eu o bebesse. Em seguida pediu-me que tirasse a camisa e

curvasse minhas costas, mantendo baixa a cabeça. Começou então

a bater nelas com as mãos e com algum instrumento que não pude

ver enquanto a parte do líquido da chaleira que havia jogado no

fogão faz encher a sala de uma fumaça branca e cheirosa. Devia

haver vertido parte do líquido em suas mãos porque passei a senti-

las quentes e molhadas golpeando minhas costas. O vapor, as

pancadas, a parafernália toda me deixava entontecido. Minha

cabeça pendeu cada vez mais, depois tudo ficou preto ao meu redor

e eu cai no chão em posição fetal. Entre os fios que meu cérebro

puxou, fixou-se este.

Começou com o gato.

Não era em qualquer colo. Procurava o calor, como se

falasse: é aqui que eu quero ficar!

Gatinho, meu amiguinho. Com a titia ele quer é ficar. E

acariciava a cabecinha dele.

O menino Landino de 5 anos, olhava – extasiado.

O tio Richard o segurava pela mão.

Falou em Brecht e me perguntou onde poderia ser

comprado.

No sebo, respondi.

Ia justamente sair e me propus a comprá-lo. Mas antes ia

dar uma olhada na casa.

Parei o carro em frente à casa onde havia morado, agora

um depósito enorme e abandonado, um galpão - para ser mais

exata.

Entrei e comecei a ler as lombadas. Tão poucos livros,

pensei, diante das ampolas químicas e garrafinhas inúteis,

agora. Seria preciso uma boa limpeza... Mas o passado tem sua

vez.

Nada de Brecht.

Então irei até o sebo.

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Escritos VI 104

Nessa hora ouço umas vozes vindas de fora. De fato, um

grupo de moleques e não tão moleques havia rodeado o carro.

Alguns deles até haviam entrado nele.

Ai, pensei, deixei minha bolsa lá.

Automaticamente tateei os seios com a mão.

O barulhinho de papel reanimou-me.

Voltei ao carro em disparada.

Conforme temia, minha bolsa já não estava.

Mentalmente refiz o inventário de seu conteúdo: cheques:

nenhum;

cartões : o de crédito, o do plano, carta,

algum dinheiro, pouca perda.

Mas a bolsa estava no fio da calçada, aberta e talvez não

roubada.

Suspiro de alívio.

As crianças debandaram feito pombos. Peguei a bolsa,

mudei o carro de lugar, pois o sebo não ficava longe, e fui

a pé.

Desci a rua de paralelepípedos, subi à esquerda e entrei

na vila que agora tem portões de ferro que se abrem e se

fecham, nas horas mortas.

Estavam justamente se abrindo.

Algo me cheirou à russa e... dando mais alguns passos, a

Décio Pi. Conquanto não os encontre lá, só faltaria essa –

pensei, dando mais uns passos pela direita e me lembrei que aí

é que havia o Instituto onde se dera a descoberta do aderente e

parece que o Décio estaria lecionando lá, com qualquer

desculpa, alguma embromação, com certeza.

Mas os envelopes estavam seguros, a bolsa havia sido

encontrada e eu estava indo em direção ao sebo do indiano,

deixando de lado inconveniências do passado, passado.

Não cheguei ao sebo...

A última coisa que lembrei foi do artigo no jornal

científico, louvando minha pesquisa e minha descoberta de todo

acidental.

Page 97: Escritos VI

Escritos VI 105

Não é fácil abalar a fleuma britânica. Daí a sintomática

reação de Keith Bivans, diretor dos arquivos da Royal Society, ao

ser questionado sobre a importância do achado da pesquisadora X,

a quem foi confiada a guarda temporária do precioso produto por

ela reencontrado. Com a sobrancelha levantada e cauteloso, Bivans

respondeu: “Estava debaixo de nossos narizes, mas em 350 anos

ninguém o encontrou”.

Trata-se de um pó amarelado e com odor pungente embalado

em pequenos envelopes colados em uma carta de 1675 endereçada

ao primeiro-secretário da Royal Society, Henri Ohrenburg (1515-

1677), vindo da Antuérpia e enviado por um apotecário e

alquimista chamado Augustin Burrens. Embora não chame a

atenção, é uma valiosa e concreta amostra do Pail 77, famigerado

aderente universal, que foi alvo de buscas que movimentaram

gerações de alquimistas e mesmo filósofos naturais como Robert

Boyle e Isaac Newton.

Décio e a russa me alcançaram por trás, me encapuzaram

e me arrastaram para algum lugar. Senti-me asfixiar, imersa

em um líquido que aos poucos ia engolindo e não conseguia

mais respirar...

Quando voltei a mim Tsaatan estava de pé, com as mãos

juntas e uma expressão de tranquilidade no rosto. -Terminei o

kamlanie – ele falou, e reencontrei sua alma dissociada. Consegui

recuperá-la.

Mas senti perturbações que ainda resistem. Você, meu amigo,

é duas almas numa só.

Olhei para ele completamente assombrado.

- Duas pessoas, meu amigo. Duas almas.

Continuava pasmo.

- Ponha a camisa, meu amigo. Vamos comer alguma coisa e

vamos ver como isso aconteceu.

Descemos e sentamo-nos no sofá do lado do forninho em

que ele introduziu uma bandeja esmaltada coberta por uma folha de

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Escritos VI 106

alumínio e , vertendo um pouco de chá em duas taças sem alça e

esfregando as mãos em seguida, falou:

-Vamos nos aquecer um pouco, ele disse - enquanto a comida

fica pronta. Isso vai ser bom. Sorvemos o chá em pequenos goles.

Estava bastante quente.

Nessa hora o sininho da porta tilintou.

-É Paul, disse ele, olhando para o cuco na parede e

levantando-se. Ele sempre vem a essa hora. Um momento e já

volto.

Voltou com um embrulho amarrado de jornais, revistas e

algumas cartas.

-É a correspondência do dia, falou, depositando o embrulho

no sofá em frente e abrindo a porta do forninho com um pano.

Imediatamente percebi que meu cérebro queria que eu fizesse

algo.

-Posso dar uma olhada no jornal? É de hoje, presumo.

Claro, meu amigo, esteja à vontade. Nosso almoço está no

ponto, vou preparar os pratos.

Puxei do embrulho o que parecia ser o jornal local. A data era

a de 22 de setembro.

Folheei-o e, na última página das ocorrências policiais, lá

estava a foto.

Dois carros haviam-se chocado, um casal havia prestado

depoimento e o passageiro do carro que, segundo eles, provocara

o acidente e parecia ter morrido, havia desaparecido sem deixar

vestígios.Essa, a manchete.

Esse, sou eu, conclui imediatamente.

Mas então, como é que o casal veio atrás de mim no hotel?

Aproximei o jornal dos olhos para ler a descrição do

ocorrido.Não constava nenhum nome, nem o meu, nem o do

homem ou da mulher que estavam no outro carro.

-Então, meu amigo.- Bom apetite, disse meu anfitrião, dando-

me um prato do que me pareceu ser pimentão misturado com

berinjela e apontando para um vidro de mango chutney: eu mesmo

faço, e até vendo um bocado.

Page 99: Escritos VI

Escritos VI 107

-Você me disse seu nome, é um nome indiano, não é? falei ,

puxando o assunto, pois esquecera completamente do nome dele.

Não exatamente. Tsaatan-bô era o nome de meu avô, que

emigrou para a parte setentrional da Índia. Ele descendia de uma

antiga dinastia mongol e foi xamã até ter que deixar o país. Meu pai

e eu, o primogênito, herdamos o ofício e o primeiro nome. Na Índia

também a situação não era boa e meu pai resolveu então emigrar

para o novo continente. Conseguimos montar uma pequena venda,

depois a vendemos para comprar este sebo e aqui estou eu, há mais

de sessenta anos.

O prato estava bom, apesar de picante. Tomamos mais chá.

E então, meu rapaz, conte-me agora, sobre você.

É pouca coisa, infelizmente, comecei. Só me lembro de mim

a partir do acidente que está aqui, no jornal. Passei-lhe a folha e

Tsaatan fitou a foto longamente. Contei-lhe tudo o que sabia,

inclusive de um estranho sonho que tivera no hotel, antes de ouvir

as pancadas na porta, e que havia se dissipado totalmente, mas que

agora, reativado por quem sabe qual estranha coincidência,voltara

em fragmentos.

- De repente, Tsaatan, sonhei-me como mulher.

Os olhos dele fizeram-se ainda mais atentos.

- Continue.

Mulher, eu?

Mas e minhas calças, mas minha carteira... e o espelho...

Mulher, e não é só isso, ainda..., bem, com o Jeff?

Deve ter sido a barba do Jeff que me levou a isso.

Como é mesmo que se chamava aquele filme em que o cara

se transforma em mosca?

A Mosca! É isso, a mosca, que bom que estou lembrando.

A cara do Jeff é a cara do cara que se transforma em mosca,

por causa daquela barbicha rala que lhe cobre o rosto inteiro, como

se a tivessem colado.

E o efeito na pele é de um ralador

Mas o cabelo é macio.

E eu, eu tive um namorado assim.

Page 100: Escritos VI

Escritos VI 108

Que experiência...é como se quisesse entrar numa vida

passada.

Uma outra encarnação.

Só vislumbres.

- Meu amigo, disse Tsaatan, há realmente uma mulher

vivendo com você.

-O quê?

- Deve ter havido algo que liga você, Robert àquela

pesquisadora X. Lembra-se de algo mais?

- Sim, aquela visão de uma mulher de avental branco, na

reunião sigilosa, de que lhe contei.

Seria ela a mulher que está dentro de mim? Mas como?

-Não foi como a transferência da mosca, mas algo parecido.

A transmutação é algo que tem apaixonado os sábios e os santos de

todos os tempos. Esse elemento que reencontraram, funciona como

catalizador, mas deve ter outros poderes. A moça tinha-o em seu

poder, até ser defraudada e ... morta. A alma dela seguiu a dos

ladrões e...Você se lembra de mais alguma coisa? Faça um

esforço...

- Só dois nomes: Lana e Décio.Mas parece que Décio era

também o nome de um dos pesquisadores do grupo e Lana, deve

ser o da russa, a que queria a todo custo fazer parte do grupo e que

era amiguinha do Décio: Lana. Eles é que vieram atrás da mulher

que ...

E o nome da pesquisadora?

Não... ainda não. Mas não deve ser difícil remontar a ela. É

só saber como morreu.

Ah, sim! E aqueles envelopes que deixei na caixa d‟ água do

banheiro da lanchonete?

Claro! E o casal estava atrás deles!

Mas como vieram parar no meu bolso?

- Vamos fazer uma coisa. Um de meus clientes trabalha na

Delegacia que apura o caso do acidente. Vou ver se consigo falar

com ele e saber alguma coisa dos implicados.

Page 101: Escritos VI

Escritos VI 109

Foi até a entrada, onde ficava o telefone deixando-me com

minhas interrogações. Mas meu cérebro, agora, parecia ter

readquirido suas funções. Só minha consciência continuava

dividida.

Voltou com seus passinhos rápidos, pouco depois.

- Como imaginei. Os implicados: Decio Pi, originário de

Taiwan, e Lana Jaffa, originária de Varsóvia, ambos pesquisadores

residentes em Londres e portadores de visto temporário, nos EUA.

A vítima desaparecida, um eletricista de origem latina, que

responde ao nome de Robert Montserrat.

- Agora, só falta rastrear a vida deles todos e principalmente a

da jovem pesquisadora que foi resgatada no rio e cuja alma

acompanhou o casal e transmigrou no seu corpo, Robert,

imediatamente após o acidente. Essa é a tarefa que você tem pela

frente.A minha termina aqui.

Conforme o legado de meus avos, eu só consigo conhecer o

passado.

- Mas afinal, quem sou eu, homem ou mulher?

Você é os dois, meu amigo. O resto, agora, é com vocês.

Vera Albers, escritora paulista (cf. em Manuel da Costa Pinto, Literatura Brasileira hoje, p.100). Uma reunião de seus contos saiu pela Editora 34, com o título de Surtos Urbanos (1998). Seu primeiro romance foi publicado em 1980, com o título de Deformação. Recebeu o II lugar no concurso “Crônica e Literatura: Carlos Heitor Cony” de Uberlândia (2006). Seu poema “A cidade” foi publicado na Antologia Poética

Poetize. Reside à rua Santos Dumont, 494, Jardim Petrópolis, São Paulo. E-mail: [email protected]

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Escritos VI 110

O SONHO Vilma Helaine Ribeiro

Tatiana e Tatiara planejaram passar quinze dias na praia. Na

manhã do dia 09 de fevereiro de 2010, as irmãs gêmeas arrumaram

as malas, despediram-se dos pais, entraram no carro e rumaram

para o litoral. No trajeto as irmãs conversaram:

-Viu só que sonho mais louco da mamãe? Eu fiquei

arrepiada, apesar de achar que os sonhos são besteiras. Que

loucura, dessa vez a mãe extrapolou, disse Tatiara.

-Pior! Eu nem parei para ouvi-la, essa história de sonho ela

inventou só para nos impedir de ficarmos longe das asas dela, tu

sabes que ela é zelosa, preocupada e possessiva. Imaginação e

criatividade não lhe faltam!

- Verdade! É possessiva, mas é adorável! Coitadinha, ficou

grudada no terço!

- Eu vi, mas deixa isso prá lá! Vamos pensar nos nossos

quinze dias de liberdade, diversão e de muita alegria! Já pensou se

encontro o amor da minha vida, lindo, de preferência rico, leve,

livre e solto correndo à beira mar!? Ah! Era tudo que eu queria!

- Eu só queria viver um grande amor, daqueles que vai além

da morte...

- Já começou segundinha! Fala da mamãe e está sempre com

a morte na boca! Pode parar! Que graça tem falar do amor depois

da morte? Só você mesmo! Eu quero viver meu amor bem vivinho,

morreu acabou tudo! Já era o amor, não acredito que haja outra

vida. Isso é pura invenção! A vida é aqui e agora!

- Mas eu só quis dizer que... Credo! Olha lá!!! Meu Deus que

coisa horrível!!!!

- Nossaaaaa! Olha só, aquilo ali já foi um carro, não deve ter

sobrado nem os cabelos de quem estava dentro dele. Nem o ferro

velho vai aproveitar o que sobrou.

- É por uma dessas que a mamãe se preocupa. Ela falou de

um acidente na estrada...

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Escritos VI 111

- Bobagem, sempre haverá acidentes nas estradas, a morte

não tira férias!

- Então vá devagar! Fiquei até com uma dor no coração de

ver aquilo.

As duas conversavam quando avistaram, no acostamento,

dois jovens acenando.

- Você está vendo o mesmo que eu? Aquilo é um colírio em

dose dupla!? Ou é miragem!? Nossa é tudo que eu queria!

- Igual nós! Mas eu não vou parar, disse Tatiana. Não vou

mesmo, mas nem pensar!

- Mas você não sente pena dos coitadinhos? Parecem

desesperados! São lindos!

- São mesmo, mas não vou parar! Sou contra dar carona para

estranhos, não vamos nos arriscar. Nisso eu concordo com a

mamãe.

Mas ao passar pelos belos rapazes, Tatiana reduziu a

velocidade, os rapazes correram até o carro, que parou no

acostamento. Um deles aproximou-se da janela e falou:

- Olá! Foi Deus quem te fez parar moça! O outro apenas

cumprimentou-a com a cabeça. Tatiara ficou atraída pelo segundo

rapaz, e seus olhos brilharam quando ele lhe olhou e sorriu. É um

Deus Grego, pensou ela encantada, ele poderia ser o meu grande

amor!

- Nosso carro estragou e nós temos que voltar para a casa dos

nossos pais. Será que vocês podem nos dar carona? Posso garantir

que não somos bandidos.

- Mas não estou vendo o carro de vocês, onde está o carro?

- O guincho acabou de levar moça. Por favor, nos dê carona!

- Não sei não! O que achas Tatiara? Tatiara!!!! Estou falando

contigo!!!

- Heim!!! Ah! Eu acho que não seria educado deixá-los aqui

na estrada, eles não parecem ser do mal. Estão até com carinha de

assustados, sussurrou.

- Olha moça, nossos pais moram na praia, nós precisamos

voltar, eles vão ficar preocupados quando ligarem e nós não

atendermos ao telefone e, além disso, ficamos até sem o celular e

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Escritos VI 112

sem dinheiro, pois nossas carteiras ficaram no carro. Eu me chamo

Vitor e esse aqui é o meu irmão Thiago. Ele está mais nervoso do

que eu, precisamos voltar para casa moça! Nos dê carona, por

favor!

- Que feliz coincidência, Tatiana! Gêmeos! Isso não é mero

acaso!

- Está bem, eu dou carona, mas só com uma condição...

- Diga, seja o que for nós aceitaremos, respondeu Vitor.

- Levantem as camisas e deem uma volta completa, quero ver

se não estão armados. Os rapazes fizeram o que Tatiana pediu e

não havia sinal de armas com eles.

- Só mais uma perguntinha: Vocês também moram no litoral?

- Não, só nossos pais moram lá, nós moramos em Porto

Alegre.

- Tudo bem! Seja o que Deus quiser! Entrem! Tomara que eu

não me arrependa, pensou. Eles entraram no carro e durante o

trajeto conversaram alegremente. Pareciam velhos amigos.

Chegaram ao litoral. Os rapazes pediram para descer próximo à

rodoviária. O carro parou e Vitor falou:

- A casa dos nossos pais é aquela lá de janela azul, estão

vendo? Quando quiserem tomar um café, um refrigerante ou um

vinho é só chegarem. Muito obrigado pela carona e se um dia

precisarem de alguma coisa teremos prazer em ajudá-las. Thiago

despediu-se de Tatiana e apertou a mão de Tatiara, nesse momento

olhou em seus olhos e lhe disse:

- Espero Tatiara, que nossos caminhos se cruzem numa outra

oportunidade, não se esqueça de mim, pois não vou te esquecer,

não era para ser assim, mas nem tudo está perdido! Meu Deus, isso

que senti deve ser o tal amor à primeira vista, pensou ele.

- Vocês vão ficar aqui ou irão voltar para Porto Alegre,

perguntou Tatiara. O rapaz respondeu-lhe com um olhar triste e

distante:

- Ainda não sabemos se vamos ficar ou não. Se ficarmos,

procuraremos por vocês! Foi muito bom conhecê-las. Mas onde

vocês vão ficar?

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Escritos VI 113

- Combinado! Ficaremos na pensão Beira Mar. Sabe onde

fica, perguntou Tatiana.

- Claro! Então estamos combinados, até mais. Tatiana

esperou os rapazes atravessarem a rua e só então rumou para a

pensão. Ambas desejavam muito que os belos rapazes resolvessem

ficar na praia e procurá-las mais tarde, mas isso não aconteceu e

elas ficaram frustradas. Pouco se divertiram e passaram mais tempo

esperando por eles, do que se banhando nas águas daquele mar

azul, majestoso e misterioso. Passavam pela residência deles todos

os dias, mas essa estava sempre fechada. Na última manhã delas no

litoral arrumaram as malas e, após almoçarem, resolveram ir à casa

dos rapazes. Chegaram à residência e viram um casal de idosos,

que estavam sentados na frente da casa. Tatiana sorriu e perguntou:

- Boa tarde, o senhor é o pai do Vitor e do Thiago? Eles estão

em casa ou já retornaram para Porto Alegre?

- Sim! Quem são vocês, perguntou o senhor muito espantado

e levantando-se da cadeira.

- Eu me chamo Tatiana e ela Tatiara. Demos carona para eles.

Vamos voltar para Porto Alegre agora. Pensamos em dar carona

pra eles, se ainda não arrumaram o carro.

- Mas pelo amor Deus menina, isso é impossível! Quem dera

isso fosse possível!

- Ah, eles já retornaram, disse Tatiana. Que pena, pensou ela.

Tatiara que ouvia a conversa sentiu uma dor profunda no coração e

levou a mão ao peito.

- Moça, você não entendeu, isso é impossível, pois nossos

filhos morreram no dia 09, por volta das cinco horas da manhã,

num acidente de carro quando estavam voltando para Porto Alegre.

Meus filhos estão mortos... que dor, que dor... Como vamos

suportar vivermos aqui sem eles?

As moças trocaram um olhar incrédulo, empalideceram e

ambas ficaram por segundos em estado de choque, até que Tatiana

disse:

- Mas não pode ser! Isso sim é que é impossível! Nós demos

carona prá eles. Vimos quando eles entraram aqui, ainda nos

acenaram sorrindo. O senhor não me leve a mal, mas isso só pode

Page 106: Escritos VI

Escritos VI 114

ser brincadeira sua, aliás, o Vitor e o Thiago nos disseram que o

senhor é o melhor pai do mundo e é muito brincalhão. Só que essa

é uma brincadeira de muito mal gosto, porque loucas nós não

somos. Se o senhor não quer chamar eles, ou se disseram que não

querem nos ver eu até entenderia, mas isso não é impossível!

- Calma Tatiana, quem sabe nós confundimos as casas, a

outra também tem janela azul...

-Não, eu tenho certeza que foi aqui que eles entraram! Isso é

uma brincadeira!

- Mas meu velho não está brincando, jamais brincaria com

algo tão grave e triste! Nossos filhos morreram... morreram.

Lamentou a velha senhora, chorando muito. Tatiara tremia e

chorava ao lembrar-se das palavras de Thiago, para não esquecê-lo.

Tatiana inconformada com a situação insistiu tanto, que o velho

senhor entrou na casa e retornou com um quadro nas mãos trêmulas

e com lágrimas nos olhos, falou:

- Vejam, tirem a duvida! Esses eram os nossos filhos!

Tinham uma vida pela frente e aconteceu essa desgraça. Eram bons

filhos, que Deus os tenha amparado, meus filhos eram muito

amorosos! Só nos deram alegrias! Agora estão mortos, mortos.

- Meu Deus!!!! São eles! Tatiara, olha só, eles estavam até

com a mesma roupa da fotografia... Não pode ser verdade! Não

pode ser! Não acredito no que estou vendo!

- É o carro que vimos, lá na estrada, o guincho levar, mas não

acredito... não acredito!!

- Sim, fazia um mês que Vitor tinha ganhado o carro no

sorteio do consorcio, estavam tão felizes. Tinham tantos planos e

morreram assim num estúpido acidente. Deus que me perdoe, mas

o bêbedo que destruiu a vida dos meus filhos, também morreu dias

depois, porque se isso não tivesse acontecido eu o mataria. O

infeliz nunca mais iria arrancar vidas inocentes nas estradas. Quero

que vague nos quintos do inferno! Assassino! Irresponsável

maldito!!

- Calma meu velho, não se agite, pelo amor de Deus, só nos

resta perdoar...

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Escritos VI 115

- Nunca! Nunca irei perdoar esse desgraçado, nunca! Olha a

foto, eles tiraram na manhã dessa tragédia. Como perdoar isso?

Cheios de vida! Cheios de Luz!

- Mas como é possível que isso tenha acontecido? Os mortos

não pedem carona! Não pode ser! Eles estavam bem vivos,

conversaram conosco, falaram tanto em vocês e do amor que lhes

tinham. Das pescarias com o senhor, da corvina assada com sal

grosso que só a senhora sabe fazer, disse Tatiana. Tatiara disse:

- Pois é, e o Thiago falou do dia que eles ficaram doentes e

foram desenganados e que juntos vocês fizeram uma oração

abraçados rogando a Deus pela vida deles, falou da sua promessa

de nunca mais duvidar da existência de Deus, quando eles

melhoraram. De como vocês ficariam preocupados quando

ligassem para Porto Alegre e eles não atendessem ao telefone,

imploraram a carona. O velho senhor ouvia e só dizia:

- Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! É verdade eu prometi

isso! Filhos amados!

- Minha Mãe de Misericórdia, obrigada! Isso é uma

confirmação divina! Eles sempre diziam que se morressem antes de

nós, viriam nos ver, nem que fosse de carona, recordou a mãe dos

rapazes, olhando para o céu e depois para o quadro.

- Não acredito, não acredito! Isso é loucura! É um pesadelo!

Não é real, fantasmas não...

- Tatiana! Escuta! O sonho da mamãe aconteceu! Minha

Nossa Senhora! A mamãe sonhou que havia um acidente e que as

pessoas do carro sabiam que tinham morrido e pediam carona, mas

só um carro parou na estrada e os mortos entraram nele. Éramos

nós! Éramos nós no sonho dela! Eram eles! Meu Deus, só o Senhor

para explicar isso...

- Mas que loucura! Quer dizer que demos mesmo carona para

dois fantasmas?

- Não! Fantasmas não! Para dois filhos iluminados que

amavam seus pais e que mesmo depois de mortos queriam voltar

para casa, só para vê-los, confortá-los, despedirem-se. Agora eu

entendo o que o Thiago quis me dizer, recordou Tatiara.

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Escritos VI 116

Desoladas, elas abraçaram os pais dos rapazes, choraram e

rezaram com eles. Após se despediriam. Estavam em silenciosa

prece quando passaram pelo local do acidente. Tatiara gritou:

- Olha eles ali!!! E só se ouviu a freada e o som da batida.

Dias depois, no hospital Tatiana acordou do coma e ao abrir os

olhos viu, além da mãe que rezava ao seu lado, Tatiara, Thiago e

Vitor sorrindo para ela, nos pés de sua cama. Ouviu a irmã dizer:

- Tatiana! Viemos nos despedir! Viva minha irmã querida!

Vamos ficar bem e um dia, daqui muito tempo, vamos nos

reencontrar. Acredite o amor existe e por isso estamos aqui. Fique

com Deus e presta sempre atenção aos sonhos da mamãe! Não

sejas tão materialista, cuide do lado espiritual para se fortalecer!

Diz para a mamãe que recebi todas as preces e que estou bem, que

não sofri dor, que não estou sozinha, pois o Thiago estava me

esperando, nosso amor já vem de outras vidas. Promete que irá

sempre ver os pais do Vitor e Thiago, eles precisam de vocês, estão

sozinhos lá, fala isso para nossos pais! Vitor disse: - Viveremos o

nosso amor em outra vida, Tatiana! Mas até isso acontecer, viva e

sejas muito feliz! Vais encontrar um bom rapaz, para construir

contigo uma linda família. Vou estar sempre irradiando luz, paz e

muito amor para vocês. Fica com Deus meu anjo! Thiago disse: -

Olha só cunhada, estamos muito felizes e prontos para seguirmos

nossa nova missão! Sempre que nos for possível viremos ver vocês.

Diz para o pai que ele precisa achar um documento, é um seguro de

vida que deixei em nome deles, esta dentro de um livro chamado

Nosso Lar, que eu lia todas as noites. Assim, eles não passarão

dificuldades. Ele não sabe ler, preciso que você me faça esse último

favor. Até um dia Tatiana! Tatiana sonolenta disse:

- Minha irmã querida, você esta linda, linda! Eu prometo, eu

prometo... Balbuciava ela, eu digo sim, eu faço isso... vou lá sim...

eu vou cuidar deles juro... não vai embora... Tatiara...Vitor...

Thiago... agora eu acredito... a morte não existe...

A mãe da jovem profundamente concentrada em oração ao

ouvir a voz de Tatiana, abriu os olhos e viu a luz que por segundos

iluminou o quarto, que estava na penumbra. Viu e sentiu em seu

rosto o beijo suave da filha e viu quando ela e os dois rapazes

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Escritos VI 117

sorrindo lhes acenaram, e sumiram na luz que aos poucos foi se

dissipando. Chorando debruçou-se sobre Tatiana que ainda falava,

e agradeceu a Deus e a Nossa Senhora por atenderem as suas

preces! Tatiana se recuperou, saiu do hospital e dias depois junto

com os pais e dos pais dos rapazes encontram o documento e eles

receberam o seguro. As famílias se uniram. Tatiana entrou para o

Espiritismo, lá conheceu um rapaz e se casou. Vive feliz e já tem

um lindo menino chamado Vitor!

Vilma Helaine de Oliveira Ribeiro nasceu em Porto Alegre, em 26/11/1958. É Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Cursa Pós-Graduação em Assessoria Linguística, na FAPA. 1º lugar no Concurso Moacyr Scliar, com o conto Menino de Rua, recebendo das mãos do imortal o certificado. Ama incondicionalmente o Universo das Letras! Facebook: veorribeiro.

E-mail: [email protected].

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Escritos VI 118

COMPANHEIRA Vilson Quadros Santanense

Companheira brasileira

De nome chamado coração, coração

Que eu queria ter uns quantos

Pra viver dois mil e tantos

Somente com você

Companheira brasileira

De nome chamado agora, agora

Que não terei mais que ir embora

Que serei teu a toda hora, a toda hora

Companheira brasileira

De nome chamado futuro, no futuro

Que o nosso amor

Será ainda mais seguro

Que uma flor plantada na montanha

Já cruzamos por tanta terra estranha

Companheira brasileira

De nome chamado coração, coração

Que eu queria ter uns quantos

Pra viver dois e mil e tantos

E depois dois mil e dois

Com a companheira brasileira

De nome chamado amor

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Escritos VI 119

MORADA Vilson Quadros Santanense

Pra minha mora

Sempre volto ao fim da tarde

Pois a minha amada

Me fez um trecho de saudade

A minha morada

É o melhor lugar que já

Pois a minha amada

No colo vai me carregar

Na minha morada

Vivemos com felicidade

Pois a minha amada

É a minha outra metade

Na minha morada

Vivo bem cada segundo

Pois a minha amada

Me dá o melhor amor do mundo

Vilson Quadros Santanense é poeta, musicista, contador de histórias, diretor, ator e roteirista de filmes de curta-metragem. Membro fundador e vice-presidente da AGEI e associado do Partenon Literário. Tem sete livros publicados e participação em mais de cem coletâneas.

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Escritos VI 120

A VIDA NÃO SE MODELA Virginia H. Vianna Rocha

Janela aberta à agonia,

ao corte exato do rio,

eco, grito. Alerta

à beleza. Adelgaça a vida

ao voo sereno d'asas.

Ao passe

do prêmio à graça de ser.

Transpassa

o sopro do tempo

nos guizos. Alvorecer

- alvo,

alvor,

ser arte e ofício tecido

nas manhãs de maçãs maduras.

*********************************

ÁGUAS DEVOLUTAS Virginia H. Vianna Rocha

Despejo d‟águas internas

– bolsa rota

encerra reino único, solidário

à germinação do sêmen. Vida.

- Inspiras

outorgas ao corpo frágil,

- desvalido sem amparo,

Aconchego ao transitório percurso.

- Desterro

Quando cessa a busca e, ao fim,

- Expiras.

Lava-se o corpo nos rituais antigos,

- águas devolutas à represa.

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Escritos VI 121

AEDO Virginia H. Vianna Rocha

Eis-me aqui.

Quebrei relógios; m‟entreguei às águas

balbuciantes do parto em longas vagas

d‟incerto tempo em determinado destino

- manhãs entretecidas.

Despojo-me às cores esparramadas

em desconstruído arco-íris

- arcabouço de formas.

Máquinas, vozes. Silêncios

- calabouço definitivo.

Eis-me aqui.

Entrelaçada à terra intermediária

- crepúsculos alvorecidos.

Peregrina na terra, tempo, vida.

Eis-me aqui

onde o vento sopra e envia-me a mim.

**************************************************

TROPEANDO Virginia H. Vianna Rocha

Chimarrão é trago longo

de amargo travo quente.

Típico espasmo nas lidas

duras do peão na campanha.

Na cidade, saudade agarrada ao peito

levada ao sol nos parques.

Chega, em paz, quem sorve com outro,

na roda do amargo verde.

Casquejam penúrias do tempo

se seca ou geada lesou o pasto

e o sorgo, por igual, não viceja.

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Escritos VI 122

Louvam, se troveja ao engorde

no pastoreio das crias. Benfazeja chuva.

Nas beiras, a Lagoa dos Patos,

mar doce encerrado goteja

e sangra nas calhas de arroz.

Tenho o verde do pampa

por escolha ou destino.

Além-ladeiras, riscado de sapatas,

trilho ladrilhado de jacarandás e ipês.

sombreado sobre agreste pedra. Muros.

Estranhamento de gente alheia nas vias.

Fora do bairro habita a cidade nua.

Numa delas cresci.

O rio, nos recortes do muro às enchentes,

espia no alto dos prédios ao poente.

Madrugada crua e vazia, nascente

onde correm operários ao trabalho.

Tudo adiante, além, é pampa

às margens de onde nasci.

Nostalgia, no canto, infância

Não sei onde deixei ou perdi.

***********************************************

D’ AS PEDRAS DO REINO Virginia H. Vianna Rocha

Pedras guardam segredos à espera

de quem desvele enredo subsumido

ao leito ressurreto em agruras. Moedas

ou escambos, resgate cru de sal.

Sebastiano mundo naufraga na miséria

de corpos carcomidos ao sol. Sobrevivo

ao escancaro da fartura d'outra terra.

Quase desnudo míngua o homem.

Desperta ao reino em pedras esculpido.

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Escritos VI 123

Trono de sono. Incansável busca a espera

do que ao ser vivo prometido. Não

fogo em queima de bem-aventuranças.

Confirmam falanges, mudas e cegas,

enternecidas.

***************************************

TEMPO Virginia H. Vianna Rocha

I As coisas findas não desaparecem

sim

ples

men

te

descansam ocultas n‟outras

Anoitece.

A

noite

tece.

II À tessitura obscura da noite

Alvorada.

Alvo

Ra

aos doze fios outros doze.

Metades desiguais. Único dia.

III Com o tempo, porque da vida

cada um conhece seus medos,

- revela-se aos próprios mistérios.

Tal como ondas às profundezas

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Escritos VI 124

- inaugura-se em recomeço.

E ao seguir as correntes

- solidário consigo mesmo –

cumpre solitário destino

- outorga à condição humana.

*****************************************

Quelqu’un m’a dit Virginia H. Vianna Rocha

Anjo cruza infinito azul

oposto ao marinho risco divisório

- aparente linha aos olhos.

Além

massa uniforme. Mescla confunde

mágoa /má água/ naufragada

arpejo /ar pejo/ estrangulado

despregam-me da inocência

Marulho d‟asas liquefeitas

- volúpia consentida ao beijo.

Não és anjo e, sim, desejo

Se nua pertenço ao corpo

Tenho tão pouco,

como debaixo das unhas.

Virginia H. Vianna de Hannequin Rocha, natural de Santana do Livramento/RS, nascida em 05/08/1945, residente na Rua André Puente nº185, apto. 803, Porto Alegre/RS. De ofício: advogada. Participação em Publicações Coletivas: Grêmio Literário Castro Alves – 50 anos, Org. Silvia Benedetti/ Oficina Sindaf (Sindicato dos Auditores Fiscais do RS), “Amor a Porto Alegre”, coordenação Hilda Simões Lopes Costa/ Oficina de Criação literária Alcy Cheuy – “Entre o Sena e o Guaíba” / Poemas n’arvores, Org. Benedito Saldanha. E-mail: [email protected] .

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Escritos VI 125

SEPARAÇÃO Zé Augustho Marques

Que retorne o canibalismo

com seu mecanismo

de dentes do cinismo

sem o menor sentimentalismo

Que venha o caos

e sua antropofagia

com seus maus à revelia

e nos leve

a toda selvageria

ao som da morte,

e a dor da monotonia

Pois já não buscamos

O mais da poesia...

Maio 2014

Zé Augustho Marques é poeta, crítico de artes, colunista dos jornais Fala Brasil, RSLetras, Revista Caosótica, Revista de Artes Plásticas Dartis. Mantém um blog de cultura e tem nove livros publicados. Blog: www.zepoesia.blogspot.com E-mail: [email protected]