Escritos VI
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Escritos VI 9
APRESENTAÇÃO
O incentivo à leitura e a apresentação de novos autores da literatura gaúcha: essa a tônica da obra que é oferecida a partir das páginas seguintes, para deleite do público que espera com expectativa ímpar a continuidade deste projeto que iniciou em 2007, e que chega agora ao quinto volume.
Ao destacarmos aqui essa questão crucial para o fomento da cultura que é a multiplicação dos leitores, estamos também colocando mais um grão para o cultivo da leitura, estamos ajudando a transformar o mundo por meio das palavras.
do grande público, estamos também incentivando o surgimento de novos talentos da literatura feita aqui no Rio Grande do Sul. São vozes privilegiadas, de diferentes profissões, de diferentes credos, de idades grandes artistas.
Em Escritos V, o leitor encontrará muitas e belas poesias, crônicas repletas de criatividade e por fim contos e personagens que irão transportar cada um agora apresentam ao grande público neste livro. Este é o mundo mágico da literatura, onde cada autor, cada autora, compartilha em seus textos a sua verdade, os seus personagens, os seus sonhos, seus anseios, as suas dúvidas e as suas certezas.
Dessa forma, é fundamental o papel dos autores de Escritos V, pois além de incentivar a leitura, eles dão ao grande público a oportunidade única de compartilhar da beleza e sensibilidade de seus textos. E isso é tudo que a literatura almeja: a interação do autor com o seu público. Boa leitura!
Benedito Saldanha Escritor e Editor
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TEXTOS E BIOGRAFIAS DOS AUTORES
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QUINTANARES Adão Wons
Estação Alegrete
um último apito
o trem prossegue.
Insólito tempo que não cessa
na rua dos Andradas
hotel Magestic
apartamento 217.
Quintanares vive
em silêncios que não calam.
Velhos sapatos usados
adornam caminhos passados
calçando fantasmas
que seguem habitados.
Quintanares habitam
à enlaçar madrugadas
alucinando as noites
de insônia
fitando a lua no parapeito
da janela enlutada.
E a agora somos nós Quintana
que realimentamos palavras
tuas
em versos que dizem
saudades.
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Adão Wons é natural de Cotiporã/RS. Sua vida está equilibrada entre a empresa que tira seu sustento e suas atividades culturais que abrange a literatura mundial. Imortal da Academia de Letras do Brasil. Embaixador Universal da Paz pelo Cercle Universel des Ambassadeurs de la Paz-Suisse/France. Editor do alternativo Cotiporã Cultural, onde divulga novos talentos na cena literária mundial. Seus poemas já foram traduzidos em inglês e Russo e publicados em
inúmeros jornais, no Brasil e pelo mundo. E-mail: [email protected]
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SOBREMESA MUSICAL Adélia Einsfeldt
Maestro Marcio Buzatto
regala a doce tarde
ao som
de violinos, violoncelo
elo entre
sopros bateria cordas
acordes musicais
ressoam
em harmonia
bela melodia
encantamento
com a Orquestra Filarmônica
da PUCRS.
Adélia Einsfeldt nasceu e reside em Porto Alegre/RS. Membro efetivo da IWA (International Writers and Artists Association) USA. Sócia efetiva da Sociedade Partenon Literário. Autora Portal CEN/Portugal. Lançamento do seu livro de poesia infantil “Animais se Divertem” em 2011 na Feira do Livro em Porto Alegre e livro “PÉTALAS” em 2013 com autógrafos na Feira do Livro em Porto Alegre e Santa Maria/RS. Integrante de grupos de poesia e
Performance.
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ANJO Aida de Bairros
Mãe das recordações
Oh tu minha alegria
A doçura do lar, o perfume do entardecer.
Que doce era teu sorriso de bom coração
Rainha das Visões...
No “jazigo” da tristeza tornam em cinza
A enfermidade e a morte.
Que dirás esta noite, pobre alma solitária!
Será o anjo da guarda, anjo toda alegria
Anjo toda bondade, anjo toda beleza, anjo toda ventura...
Alegria e clarões!
Mas de ti só imploro as tuas orações
Meu anjo do céu, Mãe das recordações
Rainha das visões!
Dedicatória à minha madrinha e mãe que agora vive no céu
como mais uma estrela a brilhar!
Aida Maria.
Aida Maria de Bairros nascida em Caçapava do Sul, mora atualmente em Viamão é Funcionária Pública e está pela primeira vez participando da coletânea Escritos pela Sociedade Partenon Literário. Aos oito anos venceu um concurso de poesias pela Caixa Econômica Federal e foi classificada com o 1º Lugar. O tema foi sobre as notas fiscais. No momento é vice-presidente da Associação Literária de Viamão, a ALVI.
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ÁRVORE E VIDA Alda Paulina S.B.Borges
Há uma leve semelhança
Entre uma velha árvore
E esta vida esperança
Que vai determinando
O tempo e a história
No suceder de criança.
Velha árvore crescida
Ramos estendidos
Entre verdes e amarelos
De outonos coloridos
Finalizando sua vida.
Até que o vento lufada
Forte como um lamento
Ponha a nu seu corpo
Num doloroso abandono
Sufrágios de sofrimento.
Já viveu sua primavera
Nascida de verde encanto
Foi confidente e quimera
De gentes e de prantos
Em etéreos matizes
De horas felizes.
Chegou seu inverno
Esquálida e triste
Resistindo ferrenha.
O senhor tempo a fará
Graveto e lenha
Que nada modificará
O destino que se tenha.
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SEU SIMÃO Alda Paulina S. Barreto Borges
Seu Simão, um preto véio como se autodenominava,
começou sua prosa com Pedro: Desde que o mundo é mundo, veja
seu moço cumé, toda história que se conta, tem no meio uma
muié.Sentados no alpendre da casa da fazenda, um, o curioso moço
vindo do cimo do mundo, e Seu Simão o oráculo das
circunstâncias.
Simão já apresentava a idade dos tempos, quando chegou na
fazenda pedindo emprego. Ficou capatazeando em troca de um
rancho onde pudesse viver só. De início despertou curiosidade, deu
poucas respostas, e na maioria das vezes, apenas um sorriso de
alvos dentes, em contraste à pele negra. Foi se aquerenciando.
Exímio na lida dos campos, integrado e aceito. Seu Simão faz tudo
desde benzeduras, bandagens e consertos nos entorses das
camperiadas. Inclusive sua própria comida perfumada pelo vento
soprando da banda do seu rancho. O patrão, descendentes, e todos,
sempre à procura de Simão para um conselho, para uma história,
para uma prevenção do ataque de formigas, de temporais, de
espantar raios, maus olhados, e, principalmente fazer benzeduras.
Tocava violão em noites de luar, cantando letras que ninguém sabia
traduzir, comoventes. Intrigantes ornatos no seu rancho: um altar
com imagem de bronze de Santo Onofre, e uma caixa do mesmo
material, sempre fechada. Quando indagado, respondia com seu
sorriso: Caixa de Pandora.
Entre mistérios e lendas, Pedro soube de Seu Simão. E ali
estavam os dois. Pedro ansioso por desvendar segredos e vivências.
E, na primeira pergunta direta, o velho responde com um convite
para irem até seu rancho. Pedro à espera. Simão levantou sem
pressa, passou a mão na carapinha branca, e seguiram em silêncio.
Entraram na sala da frente, apenas uma mesa, quatro cadeiras
rústicas feitas por ele, e o célebre altar de santo e caixa. Mandou
Pedro sentar, e começou a falar.
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- Moço, sei que vem de terra mui longe, e que breve se vai
por depressa. E sei que já está a par do que se diz, do que
inventam, e do que pode ou não ser verdadeiro aqui de portas a
dentro. Também venho de muito longe. Um dia bati por estas
bandas, com pouca tralha, e fui ficando e cá estou. Uso pouco as
palavras, estas, são apenas formiguinhas na amplidão de um
formigueiro cá de dentro, completo. Tenho cavernas e recantos,
onde em cada etapa fui fazendo quem sou. Meu tempo já não será
muito, e por isso, escolho vosmissê para alguns detalhes. Sim, foi
uma mulher que me transformou. Fui criado e vivido com estudos e
exemplos acima de muitos, até francês e alemão não são línguas
extranhas. Sabe moço, de uma lenda grega que se refere à CAIXA
DE PANDORA? Foi quando Zeus entregou a mulher à espécie
humana, e a primeira tragédia virou semente. Vejo os olhos do
moço brilhando, a pressa não é boa companheira. Pedro permanece
calado, contido. Pois eu também tenho uma Caixa de Pandora. Uso
algum estudo, tomei ciência de detalhes entre lendas, folclores,
medicina indígena e, principalmente, mental. Na mente está toda
dependência: a força, a dor, o desafio, a verdade, o poder, o sonho,
o querer, o ódio, a revolta, os aprendizados e as adaptações. Aqui
mora o efeito de uma mulher. O homem é um eterno dependente,
da mãe e da fêmea. Terá sempre o instinto superando a razão e a
capacidade de ser livre. E, para encurtar o causo, é por isso que
estou aqui. Vou te dar a posse desta caixa, a da minha Pandora, não
quero que ela venha a ser um dia, mal descoberta por pessoas de
pouca fé. Se por cá o moço ainda estiver quando eu me for para
baixo da terra, peço que enterre junto esta caixa. Caso contrário,
leve-a quando voltar para sua Pátria. Lá, um ferreiro ajudará a abrir
os segredos que somente então, serão teus. Conheça e compreenda.
Depois, faça com ele uma fogueira no alto de uma falésia, e das
cinzas, deixe que o vento sopre distâncias deste resumo de vida.
Alda Paulina S. Borges pertence ao Grêmio Literário Castro Alves e participou de várias coletâneas. Conselheira do Partenon Literário 2014. End: Rua Vitor Hugo, 88, CEP 95630070, Porto Alegre.
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QUANDO O AMOR ACABOU Alexandre Lettner
Quando acabou o amor
Carnês foram quitados,
Dívidas perdoadas.
Pois dinheiro não tinha mais valor,
Quando acabou o amor.
Quando acabou o amor
A alma gritou: - Dai-me de beber,
Pois sou deserto!
Salmos foram reescritos:
“ e um dia há de acabar o que mais valia”.
Quando acabou o amor, Barrabás sorriu com muito ardor,
Quando acabou o amor...
Quando o amor acabou foram queimados
Os cinemas, os violões e os livros foram extintos: e o o byte levou!
As mães não tinham mais nomes,
Pais eram confundidos....
Quando o amor acabou,
Peitos não mais amamentaram,
Ventres ficaram estéreis
Alguém gritou com desamor: sou o último humano!
Quando o amor acabou.....
E por ser Amor, por ser maior,
A paixão cometeu suicídio.
Quando acabou o amor,
As almas não eram mais gêmeas
E de tanto desamor foi escrito o último poema.
Alexandre Lettner dos Santos, contador e poeta. Costuma dizer que “com a contabilidade eu ganho a vida e com poesia a vida me ganha”. É casado com Adriana e é pai do Pietro. Participa da série Escritos
desde a 2ª ed. E-mail: [email protected].
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SABIÁ, ACORDEI COM SAUDADE DE VOCÊ!
Aliris Porto Alegre dos Santos
Esta manhã, não sei por que, acordei mais cedo. Ainda tentei
conciliar o sono, mas os pensamentos não permitiram: voaram,
voaram... Lembrei disso, daquilo e me detive na falta do canto do
sabiá que, na primavera, acompanha o meu despertar ou não me
deixa mais dormir com seu assobio insistente.
De início achei um privilégio meu, no verão sentir saudade
do canto do sabiá da primavera. Meu pensamento andou mais um
pouco e lembrei que muito já se falou no canto desse pássaro.
Concluí, então, que muitas outras pessoas, como eu, já se detiveram
nesse mesmo pensar prazeroso.
“Você sabia que o sabiá sabia assobiar?” Na infância, pediam
os adultos que repetíssemos a frase para “ treinar a língua” e
aguçar o ouvido às sutilezas do nosso idioma.
“Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.”
Na primeira estrofe da Canção do Exílio, Gonçalves Dias, ao
expressar saudade da pátria, lembra do canto do sabiá. Alguém já
disse que foi para rimar com lá, ou ele precisou do lá para rimar
com sabiá? Não sei... não sei! Ainda sobre essa mesma estrofe
dizem os mais ortodoxos que o sabiá não pousa nem faz ninho em
palmeiras. Eles esquecem na sua rigidez que detalhes como esse
pouco importam à poesia, mais preocupada com a escolha de
palavras suaves e bem colocadas que denotem sentimentalismo,
musicalidade, expressividade.
Seguindo viagem nas minhas reflexões, me lembrei que, há
algum tempo, li não sei onde sobre o canto do sabiá. Como é bom
saber um pouquinho mais das coisas: é na primavera que ele dá
sinal de vida tão logo “rompe fresca e sanguínea a madrugada”.
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Pontualidade e persistência, nada mais que a preservação da
espécie.
Pelo pouco que sei, o sabiá faz seu ninho no lugar mais
protegido possível e, enquanto a fêmea aquece os ovos para que a
reprodução se concretize, ele fica ao lado como guardião e seu
assobio é para demarcar território, dizer aos predadores: eu estou
aqui como companheiro fiel e guardião dos ovinhos que logo serão
vida para que se perpetue o cantar do sabiá. E – quem sabe? –
produzir mais e mais reflexões sobre essa manifestação tão
significativa que tive tempo e sensibilidade para ouvir e sentir
somente depois dos 60 anos.
Você que me lê, preste atenção: comece bem mais cedo a
afinar o ouvido e a sensibilidade para os sons da natureza. Vale a
pena! Neles, podemos descobrir maravilhas que não se impõem,
mas estão ali para o deleite daqueles que têm ouvidos para traduzi-
los e, principalmente, senti-los.
Nos últimos anos, em todas as primaveras acontece a mesma
coisa: ouço cedo o cantar do sabiá e não tinha certeza se o ninho
era na mangueira ou no abacateiro do meu quintal, dois imensos
palácios verdes que abrigam pássaros, insetos e produzem frutos
que, além de alimentarem, reúnem amigos para saboreá-los em
gostosos bate-papos nos fins de tarde. Nunca procurei saber o local
exato, pois acredito que certas intimidades são insondáveis,
impenetráveis! É bom que se descubram as coisas lentamente, um
pouco por dia... saboreando o prazer de ler nas entrelinhas o que as
linhas não querem dizer claramente.
A certeza, entretanto, nem sempre é o que precisamos. Que
importava para mim se era na mangueira ou no abacateiro?
Desfrutar o som daquele belo assobio tão significativo, nas manhãs
de primavera, como um sinal com o sentido que cada um queira lhe
dar, é o que mais me sensibiliza.
Agora sei que o ninho fica na mangueira, mas foi alto o preço
da minha certeza: o meu belo abacateiro morreu no último inverno,
não resistiu ao ataque de uma praga. Toda a família teve com ele
uma afetiva convivência por mais de 20 anos. Não só nós, da
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família, mas também amigos lastimam sua falta... Ele sempre
esteve ali sem muito pedir, mas muito a oferecer...
Nossa mente – não precisamos entender muito sobre ela, isso
é trabalho para cientistas! – nos faz viajar, sentir, visitar e revisitar
situações, locais, amores vividos. Tudo num piscar de olhos! Que
privilégio nossa memória!
Hoje desfrutei intensamente desse privilégio: lembrei
músicas, fatos passados, poesias e aproveitei para juntar todo esse
emaranhado de recordações num formato breve e reflexivo de
vivências, que rapidamente me ocorreram. Outras ficaram pelo
caminho – não lastimo –, pois o mais importante não é lembrá-las e
sim vivê-las no momento certo, sem precisar saber muito bem o
porquê.
Sabiás, obrigada por vocês existirem, me darem oportunidade
de ouvi-los, de repensar a vida e querer vivê-la sem retoques nem
muitas certezas, apenas vivê-la e buscar o que para mim é a sua
essência: a felicidade.
Que importa se o sabiá que ouço nas manhãs de primavera
está nessa ou naquela árvore, se é o mesmo de outros tempos?
Certezas, certezas... para que servem?... Não sei e, mais uma vez,
como disse um poeta que não tenho certeza do nome, “Tudo vale a
pena se a alma não é pequena!” Quer me parecer tenha sido
Fernando Pessoa!
Neste exato momento em que pensei ter posto o ponto final,
ouço a conversa de dois bem-te-vis a me dizer: “– O sabiá está em
outra estação, mas eu aqui estou!”
Conversas de bem-te-vis será assunto de outra reflexão! Que
bom! O mundo está cheio de oportunidades, basta saber vê-las,
ouvi-las, senti-las e, se possível, vivê-las em toda a sua plenitude
sem muitas perguntas, respostas ou certezas... apenas vivê-las!
11.01.2013
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Aliris Porto Alegre dos Santos - Gaúcha radicada em Brasília. Professora aposentada. Vaidosa e perfeccionista. O catolicismo foi herança de família; o espiritismo, opção e, mais recentemente, a meditação prânica tem lhe trazido muito bem-estar. Autora do Manual de gramática do TRF-1ª Região e co-autora do livro Aposente-se: o único risco é ser feliz. Ao longo da vida registrou emoções, sonhos, vivências nos seus Cadernos de anotações da vida que agora
começa a publicar em janelasdaminhalma.blogspot.com.br.
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UM GRE-NAL INESQUECÍVEL Álvaro de Almeida Leão
Carlão mora num edifício de quatro apartamentos – dois por
andar – no centro de uma pequena cidade do interior. Gosta muito
de Denise, sua mulher.
Numa quarta-feira à tardinha, de tempo instável, previsão de
muita chuva em todo o Estado, Carlão está se aprontando para
descer a serra e assistir a mais um Gre-Nal na sua vida de torcedor.
Certamente um grande jogo, em que será conhecido o campeão da
temporada. Fardado dos pés à cabeça, com o uniforme do time do
coração, bandeira em punho, Carlão é só felicidade. Bradando
palavras de ordem, conclui com o tradicional:
– É campeão... É campeão... É campeão... Não vai ter pra
eles!...
Beija a sua mulher Denise e se despede. Sai em seu carro,
buzinando muito, como que comemorando por antecipação a
vitória, que crê certa. Para ir ao estádio, Carlão levou, além do
ingresso, uma pequena quantia em dinheiro, a carteira de
identidade e os documentos do carro. Sabe como é: a falta de
segurança taí mesmo. Cartões de crédito, iphone, relógio e a
corrente de ouro, nem pensar!
Nas proximidades da saída da cidade, o Carlão para o carro
em frente a uma residência. Anuncia-se tocando a campainha. Em
seguida aparece Débora, linda guria. O Carlão, radiante, envolve-a
em seus braços e beija-a, apaixonadamente. Débora também está
fardada, só que com as vestes e cores do time rival ao do seu
amado.
Os dois entram no carro e, após uns trinta minutos, chegam a
uma estrada de chão batido. A cada três ou quatro quilômetros,
avistam uma casa. A região, apesar de não ter infraestrutura de rede
elétrica, telefônica e abastecimento de água, é muito aprazível.
Depois de algum tempo dirigindo, Carlão finalmente
estaciona o carro em frente à casa de final de semana da família de
um amigo, que lhe foi gentilmente emprestada para aquela noitada,
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que muito prometia. A chuva de granizo que começa a cair faz com
que Carlão se apresse em deixar o carro abrigado no galpão. Bem
abraçadinhos, ele e Débora caminham cerca de cem metros rumo à
casa principal. É aí que pretendem permanecer até o término do
Gre-Nal.
A casa é bem simples. Móveis rústicos são seus
componentes. Sem a presença de caseiro, a paz reina absoluta.
Carlão acende os lampiões a gás. Ao invés de assistirem ao Gre-
Nal num estádio de futebol, foram ser protagonistas de uma partida
a dois, tendo como campo, a cama. Antes do aquecimento, fizeram
o inverso do que fazem os jogadores de futebol: desfardaram-se.
A cachoeira bem próxima, a chuva que caía, a agradável
brisa, tudo contribuiu para emoldurar e enriquecer o jogão de bola
que foi a partida. Eufóricos, acabaram bebendo além da conta os
vinhos de boa casta que haviam levado.
A noitada estava boa demais. Entretanto, como ninguém é de
ferro, os exaustos jogadores foram descansar e acabaram pegando
no sono. Quando acordaram, perceberam que já era uma hora da
madrugada. Levantaram-se assustados, vestiram-se e voltaram o
mais rápido possível para suas respectivas casas.
No caminho de volta, ansioso por notícias do Gre-Nal, o
Carlão liga o rádio do carro. Àquela hora, somente programas
musicais ou de cunho religioso. Por mais que tentasse descobrir o
resultado do jogo, não conseguia. Chovia torrencialmente. Não
havia sequer uma viva alma, tanto na estrada quanto nas ruas de
sua cidade.
Ao chegar em casa, Carlão faz o possível e o impossível para
não acordar sua mulher, que dorme a sono solto. Já de pijama e
pronto para se deitar, ele, num gesto mal calculado, desperta a sua
Denise. Ao vê-lo, ela diz:
– Oi, bem, já estás aqui? Conta, por favor, sobre os melhores
lances do Gre-Nal, estou curiosa pra saber.
- É complicado analisar um Gre-Nal. Daí então se dizer que
Gre-Nal é Gre-Nal.
- O que fazes de pé? A que horas chegaste?
– Levantei-me para ir ao banheiro. A que horas foste dormir?
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– Ali pelas onze da noite.
– Eu cheguei mais ou menos à meia-noite. Enfrentar o
trânsito não foi fácil. Como estavas dormindo, achei que não
deveria acordar a minha querida esposinha.
– O que o amor não faz...
– É, Denise, o verdadeiro amor é divino.
– Mas, que desânimo é esse? Nosso time ganha o
campeonato, e tu estás aí com cara de quem comeu e não gostou!
– Como assim?
– Isso mesmo. Ganhamos e tu aí, sem demonstrares alegria.
– Ganhar convencendo é uma, ganhar fazendo o torcedor
sofrer é outra bem diferente.
– A vitória com a diferença de dois gols não foi tão ruim
assim...
– É, mas se o time adversário tivesse diminuído essa
diferença, não sei o que seria de nós. Daí para empatar e ganhar o
jogo seria um passo.
– E o lance do pênalti?
– O juiz, ao marcar o pênalti, tendo ocorrido ou não, é
irrelevante. Marcou tá marcado.
– E o gol, considerado por toda a mídia como impedido?
– De onde me encontrava, não poderia fazer um juízo a
respeito. Assisti ao jogo atrás da goleira.
– E os jogadores do nosso time que fizeram os gols, que tal?
– Não gosto nem de citar os nomes. São uns mercenários.
Estão em litígio com a diretoria do clube. Acho que nem terão seus
contratos renovados.
– Enfim, meu Carlão, o importante é que ganhamos, não é
mesmo? Estava com saudades de ti.
– Eu também.
– Nada como amar e ser amada.
– Verdade, Denise.
– Te amo.
– Eu também. Agora com licença que vou ao banheiro e já
volto.
Escritos VI 28
No banheiro, Carlão reflete sobre como foi duro o
interrogatório. Parecia não ter fim: “Não compreendi bem quando
ela disse, „cara de quem comeu e não gostou‟. Teria sido
coincidência ou ironia? Foi como um tiro no coração. Senti um
calafrio na espinha. O que é a consciência... Será que a Denise
desconfia de alguma coisa? Não sei, não... Acho que me saí muito
bem. Em nenhum momento caí em contradição. Fui convincente,
tenho certeza. Que bom que meu time venceu!... Sou campeão!...
Sou campeão!... Só ainda não sei qual foi o placar final. A
diferença de dois gols não poderia ter sido melhor. Logo mais, no
trabalho, vou me esbaldar na gozação”.
Ao voltar para o quarto, dirige-se à esposa:
– Boa noite, minha Denise. Desejo que sonhes com os anjos.
– Tu também. Mereces.
Logo que amanhece, Carlão vai até a porta do apartamento a
fim de apanhar o jornal que assina. Está ansioso para saber o
resultado do jogo e ler o que diz a crítica especializada. Ao abrir a
porta, algo lhe causa profunda estranheza: ao lado do jornal
encontra-se sua mala. Ao mesmo tempo em que apanha o jornal, já
se liga na manchete principal. Apavora-se ao ler: MAU TEMPO
TRANSFERIU O GRE-NAL PARA HOJE.
O Carlão, sentindo as pernas trêmulas, pensa em voz alta:
– Meu bom Deus! Tô ferrado!... O que a Denise me disse não
foi nada de coincidência, foi pura ironia. Acho que deu pra minha
bolinha... Eu imaginava que estava bem na foto. Que nada! A cada
pergunta só me ferrava. A mentira tem pernas curtas. Também
pudera, eu fiz por merecer. Os questionamentos da Denise sobre o
jogo foram geniais. Minhas respostas só poderiam ser evasivas, não
tinha nada mesmo a acrescentar. Apesar de gostar da Débora, sinto
que a Denise, essa sim, é a mulher da minha vida. Infelizmente, dei
chance ao azar. Será que tem volta? Será? Acho difícil... Mas uma
coisa é certa: esse Gre-Nal será, sem dúvida alguma, UM GRE-
NAL INESQUECÍVEL
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Álvaro de Almeida Leão, Paraibano, nascido em Campina Grande, gaúcho por adoção. For-mado em Administração e Ciências Contábeis. Funcionário aposentado do BANRISUL. Autor dos livros Ensaios e Humor para o Mau Humor. Participa em coletâneas do Partenon Literário e AGEI. Voluntário de ONGs. As paisagens campestres do bairro Belém Novo e o alvorecer na orla de Capão da Canoa lhe dão a inspiração
para compor seus contos. E-mail: [email protected]
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FASCINAÇÃO Anna Maria Petrone Pinho
Por que escrevo? Não sei.
Talvez para não ter idade, para matar saudade, brincar de faz-
de-conta, de pegar sonhos fugidios, de esconder do sofrimento, de
fada madrinha com vara-de-condão e tudo, para fazer da vida uma
suave berceuse.
Talvez para expor melodias, pequenas melancolias,
escondidas confidências, inconfessados temores, desiludidos
amores, censurados despudores, cansaços e desabafos, dúvidas e
receios, mágoas, carícias, enleios.
Talvez para contar dos estranhos caminhos a que meus passos
me levaram, tão diversos daqueles que idealizei, dizer das marcas e
pegadas, que deixei pelas estradas, que são sinais tristezas, misérias
e alegrias que pela vida encontrei.
Talvez para falar aos senhores da vida, àqueles que detêm a
mocidade, de tudo que aprendi, para estender-lhes a mão e apontar-
lhes o rumo da glória, da felicidade, do bom e do bem.
Talvez para expandir as mil facetas da minha alma, tão
comportada e contida, poder ser brejeira, marota, safada, sarcástica,
astuta, lunática, o ponto e o contraponto, o concreto e o impalpável,
a guerra e a paz.
Talvez para falar a linguagem da prostituta, da intelectual, da
filósofa, chegar ao fundo da caixa de Pandora, anatomizar
sentimentos e paixões nos seus arcanos mais profundos, desfibrar
corações e mentes, ser física e metafísica, retomar-me e recriar-me,
compreender a importância da minha própria existência, como
razão do meu ser.
Talvez para experimentar, aqui na Terra mesmo, a
transcendental promessa bíblica da bem-aventurança.
Talvez para misturar a minha emoção à emoção das multi-
várias-vidas que vivem em torno de mim e emprestar minha voz
aos que têm a boca fechada, como uma boca inexistente.
Por que escrevo? Não sei.
Escritos VI 31
Só sei é que quando escrevo, o sangue pulsa mais forte, sou
vida, eternidade e morte, sou essência e aparência, sou a fera e sou
a bela, sou mulher e sou donzela, sou o que bem me aprouver.
Só sei é que quando escrevo, em flautas-doces componho
doces canções, em palcos iluminados danço danças exóticas, ponho
flores nos cabelos e colares no pescoço, construo os sonhos que
quero, pinto-os de cores alegres, cubro-me de perfumes, sou rainha
e sou vassala no reino que bem quiser.
Só sei é que quando escrevo, visito praças, ruas, jardins e
casas espargindo música no ar e toda engalanada em pompas,
descubro que a ventura existe e que me é permitido alcançá-la, em
voos de esperança, me que me sejam curtas as asas.
Só sei é que, quando escrevo, busco a última ponta do
caminho, no mundo da fantasia, e entre violinos, harpas e sinos,
vou até onde as paralelas se encontram, só por um pouco de poesia.
Só sei é que quando escrevo meu deslumbramento é tanto
que a emoção alcança o extremo de meus sentidos, uma ternura
gradual me leva ao esquecimento de mim mesma e numa suave
inconsciência de simbiose com o ambiente, sinto-me como uma
terra exuberante e jovem onde será lançada a semente da
eternidade.
Por que escrevo? Não sei.
Só sei é que, quando escrevo, sou bonita e sou feliz.
Anna Maria Petrone Pinho, Advogada, professora de psicologia, ex-assessora jurídica do Município de Porto Alegre, Anna Maria nasceu na cidade do Rio Grande, mudando-se para Porto Alegre aos cinco anos de idade. Autora dos livros Crenças e descrenças, verdades e mentiras e Caminho das descobertas, participou também de muitas coletâneas. Seu conto Uma festa para Suzana foi adaptado para um filme de curta metragem.
Escritos VI 32
SOL E LUA André Flores
Vi o sol e a lua...
Andando no céu..
de mãos dadas.
Namoravam entre as estrelas...
apaixonados pelas madrugadas.
Vi o sol e a lua...
Nuas, despidas na intimidade...
Fazendo amor entre as nuvens.
Enquanto dias e noites passavam...
Eles estavam ali...
Suspeitos por amar...
Condenados pela paixão.
Vi o sol e a lua...
Andando no céu...
Correndo de encontro à felicidade.
Não havia maldade...
Não era arte...
Nem disfarce...
Apenas amavam um ao outro....
Na forma mais pura.
Vi o sol e a lua...
Encantando os dias e noites...
Decorando o céu...
Com o seu esplendor...
Mostrando que o amor...
Pode ser traduzido em,
Simples imagens.
Escritos VI 33
VERSOS LIBERTOS André Flores
Não tenho controle sobre meus versos...
Eles simplesmente saem...
Espontaneamente, sem pedir licença.
Precisam ser vistos, lidos e ouvidos...
Eu, apenas respeito as suas vontades...
E coloco-os no papel.
ALMA DE CRIANÇA André Flores
O mundo visto através dos olhos de uma criança...
Traz consigo toda pureza d alma...
Nele, as paisagens são mais coloridas, cheias de vida...
Tão cristalinas, quanto a água que sai da fonte...
Onde nunca foi tocada pela mão do homem.
André da Silva Flores. O Aprendiz de poeta, 40 anos, natural de Novo Hamburgo, casado com Cristiane, tem uma filha, Letícia. Filho de Antônio e Teresinha Beatriz, reside na cidade de Portão/RS. Formado em Administ. de Empresas pela Universidade de Caxias do Sul. Desempenha trabalhos comerciais junto à rede de lojas CR DIEMENTZ Participou da Antologia Escritos V (Ed. Revolução cultural) lançada na 59ª Feira do Livro de Porto Alegre e da Antologia
Incertezas e suas Fragilidades (Ed SCORTECCI), lançado em Mar/2014.
Escritos VI 34
MORENA MENTA Anelise Todt
Morena menta
Maçã do rosto, vermelho
Na pele um pecado disfarçado
De sonho bom
Inebria o cheiro, atiça o tato
Desfila no meu espelho o teu retrato
Com mel nos lábios, o sabor de menta
me beija com hortelã e preguiça
A poesia dos versos que cria
A cada balançar que me deixa sem notícias
Um toque teu que transforma rimas
Em mãos de Midas
Morena menta, mente teu sono
Que encontra meu retorno
Qualquer hora da manhã
Fruta cor em cortes frescos
Vigia tropical o meu desejo
Acordado em teu peito frágil
Pudor e pecado gracejas
Rumores ou segredos
Esse calafrio morena
Minha sombra ou será teu corpo
Confunde o castigo de um desejo
Teu beijo...
Morena Menta
Teu beijo...
Anelise Todt é poetisa e comunicadora. Natural de Porto Alegre, residiu em São Leopoldo/RS e atualmente mora em Curitiba, capital do Estado do Paraná. Cursa Comunicação Empresarial na UFPR.
Escritos VI 35
ALLANA WILLERS Benedito Saldanha
Allana partiu Mas deixou conosco o seu canto doce E um olhar repleto de esperanças Como um último pedido Para que lutemos pelos nossos sonhos.
Allana partiu E deixou em todos nós Uma lágrima na garganta Mas eu ainda guardo o seu olhar Enquanto ela canta.
Espalhe-se a saudade Encontrem a liberdade Que um dia ela sentiu E nós caminharemos mesmo contra o vento Buscando a paz de um novo mundo Que Allana não viu. Mas Allana partiu E o mundo parou por sua causa Porque as chamas interromperam sua jornada Tantas vidas abreviadas Em prol do imprevisto e da ganância E os muros de discórdia jamais serão derrubados Porque Allana partiu E não haverão os beijos felizes dos enamorados Porque Allana partiu.
Escritos VI 36
Ela viveu no tempo que Deus quis E o anjo do bem já se aproxima Allana foi coragem Foi filha, foi mulher e foi menina. Espalhe-se a saudade Encontrem a liberdade Que um dia ela sentiu E nós caminharemos mesmo contra o vento Buscando a paz de um novo mundo Que Allana não viu. Allana partiu E deixou em todos nós Uma lágrima na garganta Mas as tempestades não são pra sempre E o sol também se levanta. *Em memória de Allana Willers, falecida no incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, em 2013.
BENEDITO SALDANHA, pesquisador e escritor. Criador do Sarau com Ritmo. Publicou os livros “Lobo da Costa”, “Laços Eternos” e “Luciana de Abreu”. Criador do Concurso Poético Expresso das Letras. Presidente da Academia de Letras Porto Alegre e do Partenon Literário, foi jurado dos Concursos de Poesias BANRISUL e Histórias do Trabalho. Membro da Academia de Letras do Brasil. E-mail: [email protected]
Escritos VI 37
PUB BLUES Para ler ao som do Muddy Waters. Bruna Clavé Eufrasio
Eduardo entrou no Pub Blues, embalado pelo som da banda
que tocava euforicamente as músicas do Muddy Waters. Transitou
pelo espaço de maneira desconfortável, procurando uma mesa
vazia para tragar seu cigarro e espichar as pernas. Sentou em um
canto e baforou seu cigarro lentamente.
- Deseja algo senhor? – disse o garçom enquanto segurava
uma bandeja com uma garrafa de champagne.
- Desejo que suma daqui anda, vai. – responde Eduardo,
olhando para os músicos.
- Mas talvez eu possa ajudar, uma boa conver...
- Eu já disse que não!
- Tem um livro que eu estou lendo...
- Arf! Pouco me importa! Sou amigo do gerente, sabia?
- O livro que eu estou lendo... fala...quer dizer o livro não
fala, ele conta a história de um homem alcoólatra que encontra um
bilhete premiado e adivinha o que ele faz, compra todos os bares da
cidade....eu achei muito engraçado isso.
Eduardo levantou os olhos sem dizer nenhuma palavra,
apenas deu uma forte tragada cobrindo o rosto do garçom de
fumaça.
- O senhor não vai rir?
- Não! Mas já que quer agradar, vai e me traga um café bem
forte.
O garçom saiu ligeiro em busca do pedido. Eduardo olhava
fixamente o espiral de fumaça que saia da sua boca e falou em tom
baixo:
- Mas que inferno, nem em um momento como esse tenho
sossego.
Minutos depois o garçom voltou.
- Aqui está seu café senhor.
Eduardo pegou a xícara e começou a mexer com a colher.
Reparou que o garçom ainda estava olhando.
Escritos VI 38
- Tá.. eu já fiz o pedido agora pode se retirar, empregadinho.
- Tem certeza? Qualquer coisa... estou ali no balcão. Só
quero ajudar.
Eduardo ignorou o que o que estava sendo dito. Mexeu o café
com a pequena colher, observando o movimento que o liquido
fazia, parecia que as pequenas ondas acompanhavam o som do
blues. Enquanto erguia a xícara, dizia para si mesmo o quanto era
divino tomar um café bem forte antes de se jogar pela janela do
vigésimo andar.
Ouviu-se gritos vindo da porta do estabelecimento; era
Barbara entrando no PubBlues, tão magra e alta quanto um bambu.
As pessoas a olhavam com estranheza, afinal de contas o lugar era
frequentado por pessoas ditas cult e bem vestidas. A sua entrada
rasgou o ambiente, politicamente correto e trouxe o submundo com
toda sua marginalidade. Ela entrou tropeçando, esbarrando nas
pessoas que conversavam nos corredores, com aquele seu salto de
plataforma, o seu vestido vermelho justo e com o batom borrado
pelo rosto inteiro. Dançava completamente entorpecida, seus
movimentos não obedeciam mais aos seus comandos. Os guardas
tentaram conte-la, mas acabaram deixando-a entrar. Se arrastava
pelo Pub, e gritava loucamente na frente dos músicos, até ver
Eduardo sozinho.
- Eduardo? Eduardo? É você cara?
Eduardo não respondeu, nem sequer levantou a cabeça.
- Claro que você me conhece! Sou eu! A Barbara! Estudei
contigo em 1994! Caramba! Não se lembra de mim? Fala sério?
Claro que você se lembra de mim, vou te fazer lembrar, quer ver? -
disse fazendo um esforço enorme para ser compreendida, a sua
língua estava enrolada por demais para ter um dialogo com alguém.
- Desculpa, mas eu não lembro.
Nesse momento Eduardo recebe uma mensagem no celular.
- Não lembra então de quem te deu o primeiro beijo de
língua? disse gargalhando.
- Não acredito.... meu Deus, Barbara, não pode ser.
Escritos VI 39
Barbara jogou os cabelos em cima da mesa e fez um olhar
sedutor para Eduardo.
- Estou mais atraente?
- O que você fez da sua vida? Nunca imaginei que ....
- Para com esse papo que nunca imaginou... nunca ninguém
imagina nada... absolutamente nada...e você está fazendo o que
aqui?
Eduardo ergueu a xícara.
- Café?- disse Barbara - Eu quero uma dose bem forte de
wodka, pede uma para mim.
Barbara assobia até o garçom chegar à mesa.
- Me traz três doses bem caprichadas de wodka, em
comemoração ao reencontro.
- Barbara! Não basta o estado que você se encontra? Olha
para Você! Vai se estragar ainda mais?
- Vai toma no teu cú!
Barbara segurou o braço do garçom e solicitou que o pedido
fosse atendido o mais rápido possível. Logo em seguida as doses já
estão sem cima da mesa.
- E o senhor está bem? Pergunta o garçom tocando no ombro
de Eduardo.
Eduardo faz sinal para ele se afastar, enquanto que Barbara
virava o copo na boca.
- Porque você fez isso contigo, Barbara?
- Vai te foder! E você que largou o seminário? Vai querer me
dar lição de moral? Você era a minha única salvação para não ir
para o inferno.
Barbara se atirou sobre a mesa e encarou Eduardo.
- E agora quando eu morrer quem vai rezar pela minha alma?
Se é que a gente tem isso. Padreco rebelde.
Barbara olhou o copo vazio e gritou:
- Acabou... me traz mais três doses de vodka, cacete!
Eduardo passou as mãos nos cabelos, sentindo-se
envergonhado. Todas as atenções já estavam voltadas para os dois.
Ele se levantou e a pegou pelo braço retirando-a de cima da mesa.
Escritos VI 40
- Barbara se você quer beber, vai beber lá na rua, eu vim aqui
justamente para ficar quieto, tomar um café, escutar uma boa
música.
- Tomar café? Fresco! Você é fresco isso sim! Sabe o que te
falta? Te falta uma...
- Olha o jeito que você fala!
- Sempre te achei meio afeminado, sabe? Aquele beijo que te
dei eu já senti que você não iria gostar da coisa... mas, fiquei na
minha, sabe como é... a gente fica quieta para não perder o
namorado. Caralho cadê minha dose de wodka? Já pedi mais de
mil vezes!
- Aqui está! Desculpa a demora. - disse o garçom.
- Cacete! Me dá isso de uma vez! - disse Barbara já erguendo
o copo.
O celular de Eduardo acende a luz indicando que recebeu
uma mensagem, ele lê o texto e sorri levemente. Barbara tenta ver
o que está escrito.
- Mas como eu estava falando... sempre te achei meio
afeminado.... mas, agora você está ai recebendo mensagem no
celular, dando sorrisinho, fico imaginando que seja mensagem da
sua ilustre esposa.
- Não casei.
- Então você é gay?
- Só porque eu não casei não significa que eu seja gay!
- Não é gay?
- Não, sou gay!
- O que você veio fazer aqui nesse bar? Tomar café? Que
bosta é essa? Toma isso aqui.
Barbara ergueu o copo na frente do Eduardo e derrubou um
pouco no suéter que ele estava vestindo. Eduardo tentou limpar
com as mãos, mas o estrago já estava feito.
- Para com isso! Não bebo porres homéricos como você!
Olha o jeito que você está Barbara! Com essa cara de drogada
prostituída! Essa não é a garota com quem me relacionei, na
infância! Que inferno mesmo! Em que rua você entrou e se perdeu,
hein garota? Olha o estrago que você fez na minha roupa!
Escritos VI 41
- Em que rua me perdi?- disse Barbara soltando uma enorme
gargalhada e chegando bem perto do ouvido de Eduardo - Chega
mais, escuta bem o que eu vou te falar: Eu me perdi na rua
chamada amooor, conhece? Não sei se você conhece essa rua, mas
foi lá que eu me perdi.
Nesse momento Barbara acendeu um cigarro e deu uma
tragada bem forte, soltando a fumaça lentamente.
- Mas vou te dizer que é aquela rua onde você sobe correndo
eufórico, perde o ar no meio do caminho, quer subir, subir, subir a
lomba correndo, porque a subida te dá uma adrenalina do caralho.
Aí você corre, corre, corre, continua correndo sem parar até chegar
lá no topo da lomba... lá no topo...
Barbara sobe em cima da mesa e fica em pé com os braços
para o alto.
- No topo da montanha onde tem uma vista linda,
completamente des-lum-bran-te, mas ai quando você está lá no
topo, vem um vento forte que faz você se desequilibrar, então você
não se controla, perde o foco, fica bamba, os olhos embaralham e
você cai. Cai, não! Eduardo! Pior que cair, você despenca ladeira a
baixo. Aí você sai rolando, rolando, rodando e não consegue dar a
mão pra ninguém, porque a velocidade da queda é tão grande que
você fecha os olhos e só abre quando está arrebentada no chão.
Barbara pula de braços abertos para chão.
- E você? Aonde foi que se perdeu nesses vinte e poucos
anos...
- Eu não me perdi.
- Como assim? Todo mundo se perde, Eduardo! Uns mais,
outros menos.
- Não sei, Barbara.
- Sabe sim! Todos nós sabemos, lá no fundo a gente sabe
aonde deu o tropeço fatal. Vai, conta!
Eduardo senta novamente na cadeira, esfrega as mãos no
rosto, escuta o som tocado pela banda e acende outro cigarro.
- Me perdi em um beco, Barbara.
Barbara solta uma risada.
Escritos VI 42
- Aquele beco que você passa devagarzinho pela frente,
olhando o que tem lá dentro e de repente sente um medo, um medo
tão grande, que sai correndo, mas todos os dias o beco está lá no
mesmo lugar e a tua curiosidade de entrar é cada vez maior e o
medo é cada vez mais intenso, mas quanto você passa perto sente
um calor que expandi pelo teu corpo, uma coisa tão boa, mas
continua a sentir medo de entrar e ver como é dentro do beco.
- Medo?
- Sim, medo de nunca mais querer sair de lá.
Eduardo recebe outra mensagem pelo celular.
- Aí Eduardo, essa metáfora foi a mais linda que eu já
escutei! E você por que não entra de vez no beco? Esquece o
medo, Eduardo!
Eduardo recebe outra mensagem no celular e levanta-se da
cadeira.
- Barbara, vamos parar por aqui, por favor. Gostaria que você
saísse agora da minha mesa. Um amigo meu está chegando.
- Mas esse telefone não para de receber mensagem, porra. Tá
louco! Faz mais de vinte anos que não nos vemos e você está me
trocando por essas merdas de mensagem de celular? Você tá louco
meu... ah meu... vai te foder!
Barbara abraça Eduardo fortemente, manchado-o de batom.
- Eduardo, porque você não ficou comigo naquela época?
Talvez seríamos felizes hoje!
- Sai Barbara, não fiquei contigo e nem vou ficar, você está
horrível, olha para ti. Não te maltrate mais, para com isso.
- Eu que tenho que te falar isso! Não te maltrata! Mania essa
que temos de nos maltratar. Eu entrando na rua do amor e rolando
ladeira abaixo e você com medo de entrar no beco do desejo.
Barbara tomou o último gole restante de wodka e começou a
falar extremamente alto.
- Entra Eduardo! Entra no beco e se atira! Se joga! Entra de
cabeça! Uma vez você falou para eu exercitar a prática do amor,
lembra? Achei tão lindo, agora eu que te digo isso! Exercita o
amor, prática do amor, meu amor. Mas você é só teoria mesmo
Escritos VI 43
hein seu filho da puta, só teoria! Me traga mais um dose de wodka
pelo amor de Deus, caralho! Cadê o garçom?!
- O infeliz deve ter ido embora.
- Foda - se! Fica ai com essas mensagens, com esse teu
celular. Enfia no teu cú. Foda-se esse mundo. Tchau. E antes de eu
ir, Eduardo! Entra no beco!
Barbara sai gargalhando. Os músicos continuaram tocando
eufóricos os melhores blues, como se quisessem arrebatar todo
mundo com um sentimento de amor, tristeza, euforia e solidão tudo
misturado em uma só canção.
Eduardo terminou de tomar seu café e começou a fumar
desesperadamente como se fosse comer o cigarro.
- Os minutos que antecedem o fim (ou os minutos que
antecedem o começo?). São intermináveis. Coragem, coragem.
O celular apita indicando uma nova mensagem.
- Chegou a hora!- disse levantando-se da cadeira e indo até a
janela.
Eduardo sentiu uma enorme vontade de ser livre, de sair
voando pelos quatro cantos da cidade. As palavras de Barbara
ainda martelavam dentro da sua cabeça e o pior é que, embora ela
estivesse bêbada, foi capaz de dizer umas verdades que entraram
dentro da alma. “Entra no beco Eduardo” “Você é só teoria
mesmo” “Pratica a prática do amor”, essas frases soavam como
navalha, mas o que fazer, quando não se tem para onde ir? Eduardo
sentia-se encurralado dentro do Pub Blues; Vitor já estava a
caminho e o tempo todo em que Eduardo conversava com Barbara,
Vitor mandava incessantes mensagens.
Vitor percebe que Eduardo está sozinho, olhando a rua pela
janela e se aproxima.
- Eduardo!
Eduardo responde sem olhar para trás.
- Não acredito!
- Não vai me olhar? Sou eu o Vitor. Olha para mim.
Trocamos tantas mensagens, emails, quantos telefonemas, mas pelo
visto te ligar toda a noite não foi o suficiente para que
reconhecesses a minha voz, enquanto eu te atendia ali na mesa.
Escritos VI 44
Eduardo permanece parado olhando a rua.
- Nem acredito que esse é o nosso primeiro encontro.
Coragem Eduardo, olha para mim.
- Por quê? Por que não me dissestes?
- Um dos mais requisitados administradores iria se aproximar
de um simples garçom do Pub Blues?
- Podias ter me dito.
- Para quê? Certamente não viria. Achou realmente que eu
era o gerente? Chama o gerente e peça para me demitir. Não era
isso que você iria fazer, quando disse que era amigo do gerente?
Quanta hipocrisia.
Eduardo apertou a cabeça com as mãos, mas não conseguia
encarar Vitor.
- Estou confuso Vitor, minha cabeça pesa como se eu
estivesse carregando uma tonelada de pedras, tudo é novo, mais
novo ainda agora..
- Agora é tarde demais. Já senti como realmente você é, não
preciso ver mais nada.
Eduardo se virou rapidamente e encarou Vitor.
- Como assim?
Vitor começa a ir embora.
- Não! Não! Me perdoa, por favor!
- Quando te vi falando daquele jeito comigo- disse Vitor,
olhando fixamente para Eduardo- eu gelei por dentro.
- Se você queria me desconstruir, você conseguiu. Por favor,
fica! Estou sentindo uma sensação tão boa dentro de mim, como se
estivesse livre, como se estivesse encontrado finalmente meu
quebra-cabeça, como se eu finalmente tivesse conseguido pular
desse edifício.
- Vai se jogar então?
- Agora é tarde, já entrei nesse beco sem saída mesmo.
Eduardo caminha em direção a Vitor, que se afasta
rapidamente.
- Por favor, Vitor!
Vitor fitou os olhos em Eduardo seriamente, e em seguida
acaricia-o no rosto abrindo um suave sorriso. Assim permaneceram
Escritos VI 45
trocando sorrisos e caricias até os primeiros raios de sol iluminar o
Pub Blues.
Bruna Clavé Eufrasio é natural de Canoas-RS, Historiadora. Nas horas vagas se aventura a escrever versos, contos e peças de teatros. Tem publicado dois poemas pela Entreverbo - Revista. Foi responsável pela dramaturgia de uma peça de teatro, apresentada no Festival de Esquetes de Novo Hamburgo. Atualmente trabalha na Secretaria de Cultura do Estado do RS.
Escritos VI 46
VIAJANDO NO TEMPO Camila de Bairros
Estava caminhando em volta de penhascos não sabia que estes
eram mágicos...
Inspiradores de sabedoria e elementos da terra: Gnomos protetores
das rochas antigas...
Leprechaum, OH Leprechaum místico, rico e sábio duende da
Irlanda!
Dizem que ouro de Leprechaum é ouro de tolo, pois desaparece e
deixa com imagem de Bobo!
Eu viajo em sonhos e escritos por todo lugar...
Uma feiticeira me convidou para um passeio em seu castelo:
Tinha uma coruja branca, um pequeno caldeirão, livros de feitiço.
Ela usava um chapéu cônico preto, um longo vestido lilás
E seus olhos brilhavam como dois besouros.
E dançando ao som do vento viajo pelo Brasil a fora:
Vejo, sinto e me encanto com as ninfas e as fadas serelepes...
Viajando mais um pouco...
A sorte me leva até ele que é pura sorte e muito especial...
Se encontrares ele terás seu desejo realizado:
O Uirapuru é um pássaro que realiza desejos e seu canto é de uma
melodia suave.
Por isso viajo seja na imaginação ou nos sonhos perdidos
Para encontrar vestígios de lugares desconhecidos...
Camila de Bairros é natural de Viamão e foi classificada em dois concursos em sua cidade Natal. Participou de duas coletâneas em 2013 na 59ª Feira do Livro de Porto Alegre. Duas de suas poesias no Escritos V pelo Partenon Literário e uma pela Associa-ção Gaúcha dos Escritores Independentes. Lançou seu primeiro livro de poesias solo. E-mail: [email protected]
Escritos VI 47
FELIZ NATAL! Cecília C. de Almeida
Um ano termina e outro já vem chegando.
O badalar dos sinos, o colorido dos enfeites natalinos,
os pedidos ao Papai Noel,
talvez, quem sabe, algum em especial.
As músicas que ficam no ar, tanta gente a passar
num vai e vem sem fim pelas ruas da cidade.
É o Natal que se aproxima.
Presentes, pinheiro enfeitado brilhando em mil luzes.
Cartões enviados, recebidos com mensagens natalinas.
A ceia de Natal, a família reunida:
pais, avós, esposa, filhos, noiva, namorada.
É noite feliz!
Há dois mil anos uma estrela brilhante correu nos céus,
guiou pastores e reis anunciando ao mundo
o nascimento do Salvador.
Num coro celestial os anjos cantaram:
“Glória a Deus nas alturas e na terra, paz aos homens de boa
vontade!”
E da gruta pequenina, lá, da distante Belém,
esta mesma estrela guia tão cheia de luz
derrame sobre todos nós as bênçãos do Menino Jesus!
Pois o mundo precisa de paz, solidariedade;
precisa de respeito, esperança, caridade.
O mundo precisa de amor!
Que tenhamos todos muita paz, prosperidade,
que o Papai Noel nos traga a tal de “felicidade”.
Que neste ano tenhamos o nosso mais lindo Natal.
Muita saúde e alegria neste ano que aí vem.
FELIZ NATAL e um ANO NOVO também!
Escritos VI 48
VERSOS ESPARSOS Cecília C. de Almeida
Eu sou uma estrela e todas as noites venho te ver.
Espero a noite abraçar o dia, o céu escurecer,
as aves aos ninhos retornarem e a madrugada irromper
para eu mergulhar na magia de te ver.
A noite desce, enfim, num grande abraço.
Eu te espero na janela, te faço companhia,
eu te amo, até ao nascer do dia.
Moro no céu da tua madrugada.
Sou a tua namorada, mas, depois eu me vou
perdida nas luzes do amanhecer.
Se nuvens me ocultam e em uma ou outra noite
talvez não possas ver o meu brilho,
não te desesperes e nem fiques triste.
Curta a minha saudade.
Olha atentamente o movimento ritmado
dos ponteiros do relógio movendo-se em direção ao tempo.
Cada segundo avançado me levará mais e mais na tua direção
e, trará o momento de novamente eu te amar.
Curta a minha saudade.
Ela será breve, pois amanhã, antes do anoitecer,
as nuvens já terão ido embora.
Espero a noite chegar
para estar contigo outra vez.
Escritos VI 49
PAIXÃO TRICOLOR Cecília C. de Almeida
Hoje, estou toda emoção!
Olhei o céu azul, nenhuma nuvem sequer.
Vi que não havia cenário mais lindo e mais perfeito
do que este, que a natureza criou
para que eu lembrasse meu tricolor centenário.
A brisa que sopra beija e balança a tua bandeira
tricolor, como a bandeira dos pampas.
Guapa, valorosa e guerreira hasteada, agora, em tua nova
casa,
tão heroica quanto fora no Olímpico monumental.
GRÊMIO da minha paixão!
Campeão de muitas batalhas sofridas, suadas, peleadas.
Campeão do Mundo, da América, do Brasil
e também do meu Rio Grande do Sul.
Vi o teu reflexo neste céu azulado,
lembrei de tuas glórias, teus heróis, teu passado.
Mas, se por um motivo qualquer,
aquelas coisas do destino,
alguma nuvem toldar o teu céu,
lembra-te que no coração de cada gremista
a frase já está marcada:
”COM O GRÊMIO, ONDE O GRÊMIO ESTIVER!”
Faz desta bandeira o pala azul que te cobre.
Pois, és como o gaúcho, corajoso, destemido
que enfrenta de peito aberto
o furor do Minuano, pois nasceste no mesmo mês
em que o gaúcho peleou
em defesa do seu ideal libertário.
Escritos VI 50
Segue, meu GRÊMO centenário,
Segue a tua trajetória, sempre em busca da vitória,
cuja chama, em ti, jamais se apagará.
Segue junto a esta torcida que te ama
e, que num grande coral,
ecoa pelos pampas, cidades, serranias
cantando tua valentia
e que contigo está para o que der e vier.
Pois és, meu IMORTAL TRICOLOR,
muito mais que um grito, uma derrota ou uma vitória:
ÉS AMOR!
Cecília C. de Almeida é natural de Porto Alegre/RS. Bacharel em História, cursando, atualmente, Direito na ULBRA. Escreve crônicas, contos e poesias. Teve seus poemas publicados na Coletânea Escritos (2007) e Coletânea do Concurso Literário do Expresso das Letras (2008). É membro da Academia de Letras e Artes de Porto Alegre (ALAPOA). Também é membro da Sociedade Partenon Literário. E-mail: [email protected]
Escritos VI 51
BOI JAGUÁ Diniz Blaschke
A menina ostentava toda sua vitalidade e juventude de quinze
anos no serviço do dia a dia na beira do rio, lavava não só a roupa
de sua família, que era formada, além dela, pelos seus pais e mais
cinco irmãos menores e também lavava a roupa de mais duas
famílias de casas vizinhas a sua e com esse pouco que ganhava
ajudava na renda familiar e os valores eram tão ínfimos que mal
pagavam a soda cáustica que era comprada para fazer com gordura
animal o sabão que era utilizado para lavar essa roupa.
Seu pai vivia da pesca no rio e sua mãe cozinhava e tomava
conta da casa e dos seus irmãos menores, enquanto ela passava a
maior parte do dia solitária em volta das pedras do rio como
chamavam o local onde o rio fazia uma curva e em função desse
acidente geográfico jogava a água da corrente em direção a esse
terreno rochoso da beirada e ali a água corria com maior força e
mais limpa também era o melhor local do rio em um longo trecho
de costa barrenta para lavar roupa e era sobre essas pedras,
protegida apenas por uma sombra rala de uns poucos galhos de um
chorão próximo que ela passava a maior parte do dia, lavando suas
roupas e as estendendo nos galhos para então depois de secas as
recolher, eventualmente um irmão seu menor a acompanhava, por
insistência de sua mãe, mas ela evitava isso, não gostava de mais
essa incumbência, pois passava a ter de cuidar do irmão também e
isso a distraia e gostava de ficar só com seus pensamentos.
As casas não eram muito distantes, estavam um pouco acima
da barranca ao alcance da vista não eram mais que um grupo de dez
casebres rústicos, paredes de tábuas e cobertura de capim Santa Fé,
melhor capim para cobrir casa não deixava passar uma gota de
água mesmo na pior das tempestades o perigo vinha de dentro da
casa pois normalmente o fogo era no chão dessas casas que não
tinham piso e o calor interno ressecava muito a parte interna do
capim e uma fagulha era sempre um risco.
Escritos VI 52
Esses rios caudalosos de grandes corredeiras trazem também
em suas águas inúmeras histórias que às vezes descem rio abaixo
outras vezes aportam nesta ou naquela costa e Mariana era este o
seu nome já ouvira inúmeras dessas histórias sobre anjos,
demônios, monstros e uma em especial lhe despertava a
curiosidade que era a história de um pescador que recebera uma
maldição e fora transformado em uma grande cobra a que
chamavam Boi Jaguá e que vivia nadando nas profundezas do rio
durante o dia na forma de cobra e ao entardecer se aproximava da
costa e a noite tomava novamente a forma humana original de
pescador e assim vagava pela margem do rio até que o dia o levasse
novamente como cobra para dentro das águas. Já a haviam alertado
para nunca deixar o sabão nas pedras, pois o Boi Jaguá comia e
algumas vezes de propósito ela havia deixado uma grande barra de
sabão bem branca e bem a mostra em cima de uma pedra próximo
da água e realmente no outro dia não estava mais lá, seria o Boi
Jaguá?
Ela ficava sempre no rio até ao cair da tarde, olhando ao
longe, rastreava com o olhar desde ás margens até onde sua vista
alcançava, procurando localizar algum sinal, algum movimento na
água que pudesse indicar a presença dele, que segundo a lenda teria
sido um pescador jovem e formoso que caiu em desgraça ao se
apaixonar pela filha de um feiticeiro, um amor proibido e como
insistisse com esse amor proibido contrário à vontade do druida,
fora estigmatizado com esse triste destino.
Mariana tinha quase certeza que durante a noite ele
freqüentava suas pedras o porto onde ela passava o dia, começou a
deixar todo dia uma barra de sabão que não amanhecia, estava com
a convicção desse acerto que começava a nascer entre eles.
Começou a se demorar cada vez mais para retornar a casa no fim
da tarde e quando o fazia já podia ver na água o brilho das estrelas
e nas noites de lua então nada era mais bonito para ela do que ficar
admirando a luminosidade da lua refletida nas águas do rio. Em
uma dessas noites teve a impressão que a claridade da lua refletiu
em um corpo que saia da água, sentiu um arrepio lhe percorrer a
extensão da coluna vertebral e como no mesmo instante piara uma
Escritos VI 53
coruja na mata próxima se assustou como nunca se assustara, pois
era acostumada com a natureza da beira do rio.
Seus pais começaram a reclamar de suas demoras para
retornar do rio e de suas idas à margem em plena noite lhe dizendo
do risco que corria com essa história do Boi Jaguá. Ela insistia e
isso passou a ser rotina para ela que depois do jantar a noite ia
ainda ficar mais um pouco a margem do rio e só retornando já tarde
da noite.
Tinha nesses dias Mariana um brilho diferente no olhar um
róseo mais acentuado nas faces e um sorriso enigmático que
teimava em não sair de seu rosto.
Em determinada noite em que a lua cheia havia saído a pouco
e iluminava todo o ambiente prateando, mata, campos e rio o pai de
Mariana chegava à casa vindo do porto onde tinha vendido uma
enfiada de pintados e nessa tarefa já provara de uma cachaça forte
do compadre Mane, tudo por conta desses valores recebidos dos
pintados e perguntando a sua mulher por Mariana ela lhe disse em
tom queixoso que a filha passa o dia e a noite na beira do rio e que
os vizinhos já andam comentando que lhe falta juízo. Impulsionado
também pelo álcool ele disse que hoje acabaria com essa história de
passeios noturnos no rio e saiu de casa colhendo uma longa vara ao
passar pelo salso do oitão da casa indo então na direção das pedras
do rio o lugar que sabidamente por todos era o local onde Mariana
permanecia. E de longe ao se aproximar do local com a vara em
riste já pronta para o uso, para exemplar sua filha e se justificar
perante sua mulher, pode ver, iluminada pela lua, não a silhueta de
uma só pessoa, mas de duas e à medida que aproximava essas
pessoas caminhavam em direção ao rio já entrando na água, uma
tinha certeza que era sua filha Mariana, mas a outra não sabia quem
era e sem saber o que fazer parou, mas, mesmo assim essa dupla
não parou continuou entrando rio adentro agora com a água pela
cintura envolvidos por esse mar prateado que a lua refletia. A vara
lhe caiu das mãos, só conseguiu dar um grito pelo nome da filha e
esses dois pontos agora sumiram na água sentiu um arrepiou no
dorso e uma lágrima lhe queimou a face. Achou que podia estar
delirando da cachaça, foi até a pedra onde eles estariam antes e
Escritos VI 54
havia uma barra de sabão em cima da pedra, olhou mais uma vez
para a água que agora estava vítrea como um espelho.
No outro dia e nos que se seguiram muitas buscas foram
feitas, muita procura, muito chamado pelo nome de Mariana de
quem nunca mais se ouviu falar as pedras ficaram vazias naquele
trecho do rio que antes fora ocupado dia e noite por aquela
criaturinha incansável em sua tarefa de lavar, estender, secar e
recolher roupa. Esse lugar perdera seu encanto ficando vazio como
se vida não mais existisse ali e as pessoas evitavam inclusive de
freqüentar esse lugar como que respeitando um lugar privado que
fora unicamente de uma só pessoa.
Salvo algumas vezes, quando bate a saudade, o pai de
Mariana vem a esse lugar, senta em uma pedra e fica observando o
rio, pensando em quem teria levado a sua filha e por que ele não
buscou saber de seus segredos e do que se passava com ela
naqueles últimos tempos, em que ela andava tão estranha. Só então
ele observando melhor o formato de algumas pedras dessa
formação rochosa se encantou com uma que tinha a mesma forma
de Mariana quando ajoelhada esfregando a roupa, como não havia
visto essa pedra antes? Estaria ali todo esse tempo? A notícia se
espalhou e todos vieram contemplar admirando essa formação
natural que reproduzia os traços da Mariana e até hoje essa pedra
está lá e todos os pescadores ao passarem por esse trecho do rio
dizem “lá está a pedra da lavadeira, a que desposou o Boi Jaguá”.
Porto Alegre – RS - 2009
Diniz Blaschke, natural de São Borja, 54 anos formado em Direito, Servidor Público residente em Porto Alegre, tem dois livros publicados, um no gênero romance e outro no gênero de contos.
Escritos VI 55
LITURGIA DOS CORPOS EM VIDA Edson Olimpio Silva de Oliveira
"Nossos corpos são nossos jardins, nossas vontades são nossos jardineiros.”
- Our bodies are our gardens, to the which our wills are
gardeners."Othello", Scene X – por William Shakespeare.
primavera já carrega os ares da liberdade, a ruptura dos
grilhões do gélido inverno em que somente no
interlúdio do aconchego íntimo e amoroso a nudez é
consentida e idolatrada. No então, o verão é a plenitude
da exposição e a necessidade de retorno ao útero e berço de toda a
vida – o oceano. É nesta mágica conjunção de corpos e água que o
resplendor da vida acontece em forma, cor e odor. A beleza
transcende o detalhe e há tribos para todos os gostos e sintonias. Do
estrógeno à testosterona. Do lúdico e platônico ao intenso e carnal.
Da letargia do banho solar ao frêmito dos sentimentos que
transbordam. É a magnitude formidável da vida usando todo o
tempo fugaz dessa existência terrena.
Somos seres de contato e de amor tanto com nossos similares
quanto com a natureza esplendorosa. Assim não há feio para
perdoarmos ou aguilhoarmos, todos são belos dentro da sua
essência e possibilidade de nossa humanidade. Justo, talvez, pela
transitoriedade de nossos corpos e a certeza de seu ocaso exige-se,
necessita-se da luz solar, da água, da brisa quente, do mar, a
explosão da vida exposta em corpos com a mística da existência
que transcende e logo ali no horizonte irá liberar sua alma para
voos mais intensos.
Há garotos e garotas de Ipanema, da Cidreira e do Capão, de
Camboriú ou de Punta dos pruridos da juventude em flor de
polinização intensa aos prateados dos veteranos que saboreiam a
vida com as nuances do vinho magnífico e único sorvido e
degustado com o prazer das horas sem fim e longe, muito distante,
do garrafão dos ébrios e aprendizes. A vida se ajusta no equilíbrio
do ajuste constante entre os desiguais, cada um com seu universo e
seus dons. Com suas alegrias e satisfações.
A
Escritos VI 56
As correntes de pensamento se ajustam canalizadas pela
ideologia da vida em plenitude, na liberdade de ter e usar, de ser ou
de parecer, de enfeitar ou de despir. De exteriorizar o abraço
trepidante com o beijo úmido de paixão. Novamente e sempre a
mesma umidade dos sentimentos aflorados comparece com os
fluidos da manutenção da existência e das novas gerações
encubadas no amor ou nem tanto.
Transitamos pelas sombras e por tantas névoas, mas jamais
deixamos de aspirar e de sermos seres de luz. Invariavelmente
agradecemos a cada nova manhã, amamos o sol que nos aquece e
transpiramos o agradecimento divino estarmos nessa terra tão
maravilhosa que nos atura, suporta e ousa persistir em nos manter
com a liturgia de corpos em vida.
Edson Olimpio Silva de Oliveira é Médico e Cronista. Membro do Partenon Literário, da ALVI – Associação Literária de Viamão e da SOBRAMES – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Colunista permanente do Jornal Opinião de Viamão há 14 anos. Avô da Ana Luiza, do Lucas e do Pedro Henrique. Blog / site: www.edsonolimpio.com.br E-mail: [email protected]
Escritos VI 57
PARADOXO DO TEMPO Estela Dornelles
O tempo voa
Ultrapassa o próprio tempo da luz
Sempre correndo
Sempre voando
Na busca de um tempo que se foi
Na espera de uma chance que se foi
Pra voltar no tempo
Triste temporal do tempo
Que passa, sem medo, sem pena
Oh! Doce temporal do tempo
Para o seu relógio pra mim me organizar no tempo
Eu viajo no tempo, como se fosse um paradoxo do tempo
Perdida, atraída por um minuto perdido.
Estela da Silva Dornelles nasceu em São Jerônimo, atualmente reside em Guaíba-RS com seus filhos Eduardo (14), Guilherme (11) e Gabrielly (8), fonte inesgotável de amor e inspiração. Também integra a Sociedade Partenon literário. Está programado para o início de 2014 um livro de poesias, escritos com a alma, literalmente, intitulado "As estações do amor". E-mail:
Escritos VI 58
CONCERTO DE ELEGIAS PARA
FANTASMAS Felipe Saratt
Prelúdio
Sombras escorregam no mistério
A noite se encarrega de acender
A voz que vibra no cristal dos olhos
A escuridão deita em meu sofá
Escuto o ribombar dos trovões
E a morte me anima a ceder
Clarifico fantasmas dolorosos
Que de sombras a noite encharcam
Fritando sonhos na saliva morena do fogo
Movimento I
Sorvo as águas do choro
Aparo as arestas da melancolia
Separo carne e ossos
Do tempo que me resta impassível
E ouço a voz dos peixes como algas
Ondulando nos abismos marinhos
A luz crepita em doloroso silencio
Visto as roupas do antropomorfismo
E uma dor de existir me embriaga
Escritos VI 59
Movimento II
A sombra do vate empertiga-se
E a brasa da noite me aquece em seu colo
Onde as aguas são tecidas de hidrogênio
A voz do poeta não pertence a ninguém
E a morte me desmoraliza em seu leito de meretriz
A luz desce ao inferno a acende as fogueiras
Onde queimo minha alma
A crocitação da morte me ensaia
Em colheitas de murmúrio feroz
Movimento III
A luz rege sinfonias de morte
E o maestro da melancolia abrasa as mucosas
Inflama de lava as feridas
A luz me permite reger os sonhos
Que morrem de uma vez só
A dor delata silêncios que embromam
Finjo ser sóbrio e o delírio me devora
As fibras de voz cansada
Onde existo e sou antes de ser
Movimento IV
As sombras navegam poderosas
O mar de fúrias sangrentas
Náufrago em seu colo de aguas turbulentas
Escritos VI 60
A noite é meretriz que se farta
Na febre que me agiganta
Sou pequeno em meu êxtase sonoro
Os sonhos são neve que derrete ao sol de outono
Sinto um arrepio de sonhos ímpios
E Caronte me leva em seu barco
Epílogo
A voz que me impele coça as costas na vidraça
Um tempo que não chega
A morte que não se espanta
A lua é imensa concha dourada
Guarda a memoria dos loucos
E me embriaga de estranhas sonoridades
A nudez do tempo se esfrega em meus lábios
Sinto estas sombras brincando de luz
E o poeta acende fantasmas no jardim do destino
Felipe Saratt, nascido em Porto Alegre se dedica a escrever desde os treze anos e já ganhou alguns prêmios literários com sua poesia. Cursou letras na Faculdade Ritter dos Reis com ênfase em literatura de língua inglesa. Possui diversas referências em seus textos de poetas simbolistas franceses e românticos alemães e ingleses. Sonha em publicar um livro solo com seus poemas. Além disso, escreve contos fantásticos que sonha em publicar e um dia viver da sua arte.
Escritos VI 61
EPITÁFIO Gerci Godoy
Quando se apagarem as luzes
recolherei meu vaga-lume
quando murchar meu jardim
plantarei cores de meu tempo
quando o gosto de meu céu ficar amargo
visitarei colmeias
se por fim emudecerem os pássaros
hei de encantar meu desencanto em poesia.
Gerci Oliveira Godoy fez muitas oficinas literárias, lançou seu primeiro livro de poesias "Da boca pra dentro" em 2012. Após muitos anos de leituras e estudo das palavras conseguiu alguns prêmios literários e muitos amigos. O corpo pesa, a poesia é leve, eleva as penas, adoça os dias, inunda de sol a chuva dos olhos, abre as janelas da alma e desencanta palavras. E-mail: [email protected]
Escritos VI 62
PRENÚNCIO Gislaine Boeira Camarata
Do amor que era tão lindo...
Agora
O tempo é findo
E do que agora
E só agonia
Chega, agora,
Eu quero alforria...
Gislaine Boeira Camarata nasceu e reside em Porto Alegre. É Presidente da Associação Gaúcha dos Escritores Independentes (AGEI). Se dedica também ao cinema e participou de várias antologias.
Escritos VI 63
REVOLUÇÃO FARROUPILHA Heloisa Gehlen
Delineando-se no horizonte
Da Província de São Pedro
Chimangos e maragatos
Em luta se digladiaram
Por liberdade, igualdade
Nas coxilhas deste pago.
Combates, cercos, assaltos
Vitória e sedições
Tinir de lanças, facões
Relinchos de potro ao vento.
Por um Rio Grande liberto
Gaudérios / negros / estancieiros
Por dez anos aqui lutaram
Pela República no Império.
De mares peninsulares
Entusiastas da liberdade
Estrategistas, Revolucionários
Em anseios de mocidade
Prá cá vieram
Amar / Lutar / Libertar
Sonhos / Amores / Paixões
No entrevero liberal
Devagar pelos Pampas
Assim dizia o poeta
“Prá não levantar o pó
Das cavalgadas ancestrais
Na afirmação de uma Raça”
Liberdade
Igualdade
Humanidade
Assim ecoou o clarim
Semeando o ideal farrapo.
Escritos VI 64
LUA Heloisa Gehlen
Esfera de prata
Imponente
Glamorosa do céu
Astro reluzente
Encantando os enamorados
Testemunha de segredos
Amores, solidões
Para os nativos
Uma Deusa misteriosa
Incrustada no infinito
Cheia de indagações
Luz com brilho
No escuro do céu
Propiciando
Emoções, paixões, utopias
Noites de serenata
Com lindas canções
De amor
Lua, enfeitiçando
A correria da vida
Com sonhos, esperanças
Saudades e paz
04/11/2013 - Porto Alegre
ZUMBI Heloisa Gehlen
Você não será o Zumbi
O fantasma ambulante
Escritos VI 65
Que passa vagando
Sem noção
Misterioso
Perdido na escuridão
Ziguezagueando sem rumo
Numa urbanidade
Sem alma, selvagem
Pretensiosa, sem respeito
Terminando com o planeta
Você nem sabe
No meio desta confusão
E destruição
Você é luz
Tem brilho
Inteligência, argumento
Emoção, ciência
Para modificar as trevas do mundo
Não se deixe fenecer
Luta por uma modernidade melhor
Com moral e ética
Centrada na vida
Onde o bem
Da nossa prática
Se estenda a todos
Universalmente
E mostrará o que
A lenda não explica
Quem é o Zumbi alienado
Na intrínseca relação
Do Homem
Com o Cosmos 04/11/2013 - Porto Alegre
Escritos VI 66
Heloisa Helena Leal B. Gehlen é natural de Santa Maria e mora em Tenente Portela. Graduada em Pedagogia. Foi Coordenadora da Casa de Cultura de Tenente Portela. Fez palestras no Memorial de POA por ocasião dos 80 Anos da Coluna Prestes. Escreve textos para os jornais da região noroeste: Província e Folha Popular. Co-autora do livro O Tenente Portela e a Coluna Prestes no RS (prefácio de Anita Leocádia Prestes). Co-autora do Livro Lá nos Tempos do Umbu, lançado na Feira do Livro de Porto Alegre, com prefácio do Secretário Estadual de Cultura Luiz A. de Assis Brasil.
Escritos VI 67
AGORA TE BUSCO
Ivan Coiro Poetha
Agora, te busco encantada
pela madrugada
da tal solidão.
Agora, te encontro reticente
trazendo ao presente
a minha paixão...
Agora, te busco distante
com saudade constante
a me sufocar.
Agora, te busco em meus sonhos
e entre sonhos suponho
a loucura chegar...
Agora, te encontro proibida
e penso que a vida
é um eterno sonhar.
Agora, busco a felicidade
beirando insanidade
do eterno buscar...
ANJOS VIVEM EM MIM Ivan Coiro Poetha
Anjos vivem em mim
mesmo que eu não seja divino
no meu desatino
pela inspiração.
Escritos VI 68
Anjos me trazem a clareza
e luz e a beleza
ao meu coração...
Anjos eternos em mim
trazem vida aos meu versos.
de sonhos pregressos
da minha experiência.
Anjos me lançam harmonia
pra versos e poesias
da minha existência
Anjos vivem mim
e de Deus são reflexos
de planos complexos
para a humanidade
Anjos vivem em mim
repletos de amor
de luz e esplendor
que nunca tem fim.
Ivan Coiro é jurado do Concurso de poesias do BANRISUL. Reside em Porto Alegre. Cinco participações na Feira do Livro de Porto Alegre. Mais de 60 Coletâneas. Livro solo “Palavra
de Poetha” (lançado em 2014). Idealizador e produtor de Informativo Cultural, Palavra de Poetha. Apreciador dos Vinhos e das Letras.
Escritos VI 69
PINGOS NOS 'IS' Juliano Paz Dornelles
Aproveito este espaço de interação dialógica pra lançar duas
posições pessoais sobre temas do meu interesse. O primeiro ponto
refere-se à criação de novos conceitos sobre termos já
conceituados. O segundo ponto diz respeito à relação entre obra e
autor. Tentarei expor de forma breve e sucinta, com exemplos
banais, o que aqui defendo.
CONCEITOS . . . Juliano Paz Dornelles
Para alguns filósofos os entes só existem após criação de uma
palavra que os define. Assim, a água faria parte do universo da
existência após o surgimento da palavra que a define. Contudo,
sabemos que o liquido inodoro, insípido, incolor, existe desde antes
de sua definição.
Do mesmo modo, alguns cientistas poderiam dizer que foram
os gregos que inventaram a democracia. Pelo simples fato de serem
os filósofos gregos que a definiram pela primeira vez. Até hoje,
muitos cientistas estão amarrados aos conceitos da escola socrática
sobre democracia. Simplesmente entendem por democracia aquilo
que foi estabelecido pela definição platônica.
Hoje sabemos que sistemas democráticos, aos moldes
ocidentais, existem desde antes do império grego. Muito antes de
sua definição e conceito. Fazendo parte da cultura de povos tribais
em várias partes do globo durante séculos. O que os socráticos
fizeram, foi apenas criar um conceito. O que qualquer um pode
fazer.
É certo que corremos o risco de viver uma confusão
generalizada se cada criar um conceito próprio sobre as coisas. O
mundo em que vivemos está acostumado com padrões. Padrões que
engessam a sociedade e a filosofia. Mesmo quando facilitam a
matemática da ciência.
Escritos VI 70
Muito além de reinventar a democracia. Ou redefinir o
conceito de água. O que proponho que nos atrevamos a criar os
próprios conceitos, independente daqueles que nos foram deixados
no passado. Rompendo a dependência de fundamentações teóricas
e das referências pré-estabelecidas. Se atrevendo a criar o novo ao
partir do nada, ou de si mesmo.
OBRAS E AUTORES. . . Juliano Paz Dornelles
A relação entre obra e autor emerge além da esfera
conceitual. Uma receita de bolo pode ser facilmente reproduzida,
independente da participação daquele que a criou. Pensar assim,
soa como dizer que o caminho de Cristo pode ser percorrido, por
qualquer um, independente de Jesus. O que, aos olhos da fé, seria
uma ofensa aos cristãos que defendem a parte que diz: 'Ninguém
vem ao Pai, senão por mim'.
Mas estamos falando de ciência. Salvo as crenças e religiões
a quem tem fé. O que quero dizer é que, além das palavras, o que
dá força ao texto é a história de quem as cunhou.
Um vegetariano poderia reproduzir uma cartilha sobre dicas
de churrasco, sem, ao menos, nunca tê-lo experimentado. Contudo,
é na vivência do assador que o texto se legitima. É importante
considerarmos estas e outras questões.
Juliano Paz Dornelles é Jornalista, natural de São Borja. Pós-graduado em Comunicação com o Mercado e Mestrando em Comunicação Social. Autor do blog www.pazdornelles.com. Dentre suas obras, podemos citar: ‘O livro do Guerreiro Justo–A luta continua’, ‘Virtual e real–Crônicas, ensaios e artigos’ e ‘Versos em linhas tortas – Entre o céu e a terra’.
Escritos VI 71
VOLTEI PRA VOCÊ! Katia Chiappini
Estou, sim, voltando
Sou a mesma mulher
E estou concordando:
-Seja como quiser
Tenho tudo definido
Serei sua formosura
Com direito adquirido
Ao carinho em fartura
Lembro de sua promessa:
-Ser meu amor de novela
Espero agora sem pressa
Sentei-me junto à janela
Quero as noites especiais
Sem pejo e sem segredo
Voltei para buscar mais
Sem indecisão ou medo
Voltei para o seu abraço
Ciente do que hoje sou
Quero seu braço e cansaço
Como quando me amou
Voltei como o filho pródigo
Arrependida voltei
Sem seguir lei ou código
Meu coração entreguei
Quem espera a bonança
Esquece da tempestade
Escritos VI 72
A vida é uma grande dança
Ou de amor ou de saudade
Katia Chiappini tem formação universitária com formação em Ciências jurídicas e Sociais. Possui estudos avançados em música e leciona piano, dando prioridade à melhor idade. É professora estadual aposentada. Antes de se aposentar foi diretora de escola, cuja experiência a colocou bem próxima dos problemas cruciantes da educação. Mas a poesia sobrevive com Benedito Saldanha e seus ''pupilos''. Blog pessoal: katiachiappini-
rememberthis.blogspot.com.br. E-mail: [email protected].
Escritos VI 73
FETICHE Maria Elizabeth Knopf
Br 216, subindo a serra. Poderia ter feito outro caminho, mas
prefiro esse. Curvas fechadas, pneus guinchando, abismos de
bordas desprotegidas, paredões que podem desabar a qualquer
momento. E hoje, garoa fina caindo. Lenta e incessante, forçando a
terra a escorrer para o asfalto.
A 160, 180 km por hora, ou mais, quando possível, é como
estar parado numa cápsula brilhante. Assisto o mundo, veloz, do
lado de fora. Casas, árvores, postes, montanhas e outros vislumbres
voadores me atingem a retina e não os identifico. São apenas
espectros, alegorias. E minha cabeça uma viagem de muitos
pensamentos colaterais.
O risco das derrapagens me dá um prazer mórbido e, no
aparelho de som Raul Seixas prefere ser “uma metamorfose
ambulante” e sei que já não sou mais quem fui, sou apenas “aquela
velha opinião formada sobre tudo”.
Eu pretendia uma casinha humilde, de ripas brancas, canteiro
de hortaliças e flores vermelhas na frente, isto há bem pouco
tempo. Tornei-me um executivo ganancioso. Moro numa cobertura
que ameaça roubar toda a vista da cidade, com uma mulher de
cabelos loiros alisados, que usa cremes Shiseido, bolsas Vuitton,
passa o dia em academias e shoppings e faz sexo como se fosse
uma boneca inflável.
Também sou pai de uma menininha linda de três anos, que já
frequenta o salão de beleza, nunca se suja e senta de perninhas
cruzadas, igualzinha à mãe.
Tiro o CD, pego outro, da caixa no banco ao lado, sem olhar.
Introduzo-o no aparelho. Estou indo para um encontro de negócios
amanhã. Hotel cinco estrelas. Pessoas inteligentes. Roupas
elegantes. Falaremos de carros, barcos, Paris. Beberemos uísque
importado.
Terei que estar inteiro, loquaz, convincente: é a campanha de
vendas de um novo cotonete, que não deverá chamar-se nem
Escritos VI 74
cotonete, nem palinete, mas qualquer coisa que ainda não descobri,
para parecer novo, eficiente, desejável. Como se fosse possível
fabricar outra vez uma haste de plástico com duas bolinhas de
algodão enroladas, que só serve para empurrar ainda mais para
dentro a cera do ouvido. E quando se abre a caixinha, pula aos
montes para fora, contaminando-se no chão, e indo para o lixo.
Tudo calculado para que acabem mais rápido, a fim de serem
repostos.
No alto falante agora, Cazuza: “mentiras sinceras me
interessam”. As minhas não serão sinceras. Serão bem planejadas,
bem dirigidas, com reclames que farão você desejar ter essa bosta
de cotonete, palinete, seja lá o que, com urgência, como se fosse a
coisa mais preciosa da terra, sem perceber que não serve para nada.
E logo um milhão de pessoas comprará nada, para que uns poucos
lucrem. São as leis do mercado.
Mas, de onde saiu essa caixa de CD? Não lembro. Enquanto
o carro desliza, examino os CDs: Elvis Presley, Jim Morrison, Jimi
Hendrix, Kurt Cobain, Elis Regina, Renato Russo, Janis Joplin,
Cassia Eller – que sacanagem. Paro de olhar, são as músicas dela,
como foram parar entre as minhas caixas, será que não devolvi?
Onde ela estará agora, numa casinha com flores vermelhas na
frente? Com outro homem, sozinha? Também, que coisa mais
idiota, morar assim e, quem sabe, comer arroz com feijão todos os
dias, e costurar a própria roupa?
Dou-me conta de outra bruta sacanagem, estão todos mortos,
estou ouvindo música só de mortos. Será que ela está viva, será
que não matei apenas seus sonhos, que eram nossos? Onde estará.
Estará bem, mal, feliz como eu?
Feliz? Posso com certeza dizer que sou feliz, quando só
pensar nela faz meu coração palpitar? Quando só penso em
comprar, mentir, juntar dinheiro e agora na porra de um plástico
com algodão?
Pelo canto do olho vislumbro, muito longe, num vale, uma
imensa mancha vermelha, maior talvez que uns quatro campos de
futebol, o que será? Diminuo a velocidade e procuro a entrada para
o vale, uma estrada de chão, em bom estado, que desce pelo meio
Escritos VI 75
de um mato limpo, com uma ou outra casa escondida, portas e
janelas fechadas.
Quando acaba a estrada, estou diante de uma imensa
plantação de flores. São papoulas. Um campo de papoulas, que se
move como uma onda voluptuosa. Sim, volúpia descreve o que
sinto.
Essas pequenas comunidades alemãs, por onde estou
passando, plantam papoulas para retirar as sementes e temperar
pães e cucas. Não são aquelas papoulas de onde se extrai heroína,
antes silvestres e hoje cultivadas principalmente nas montanhas do
Afeganistão onde, ao amanhecer, centenas de homens machucam
suas cápsulas, para que reajam ao orvalho, e deixem escorrer o
sumo precioso.
Mas estou viajando novamente, pego outro CD, e é Ravel.
Clássico misturado ao Rock, bem típico dela. É o Bolero, belo,
hipnótico, que me preenche todos os nervos, como uma vertigem,
enquanto as papoulas dançam e eu fico de pau duro.
Pode, alguém sentir tesão olhando papoulas? Serei um
daqueles fetichistas bizarros? Desço do carro para observar mais de
perto e então (que coisa surreal) uma vaca me ultrapassa e invade o
campo, pastando ruidosa e voraz.
Tento afastá-la, sacudindo os braços e ela nem parece
perceber a minha presença. Próximo, há uma pilha de madeira que
imagino deva ser rachada e transformada em lenha. Pego uma e
ameaço a vaca. Nada. Bato nela, nada. Então bato com força, ela
reage e tenta me atacar, não há tempo para correr de volta ao carro.
Espanco-a com todas as minhas forças, num prazer crescente,
sensual.
Ouço vozes de muitas pessoas se aproximando; enfim o
socorro. Quando a primeira paulada me atinge nas pernas, tento
argumentar, mas logo outras se espalham como fogo pelo corpo.
Estão me torturando, percebo, apesar da dor. Deixarão partes vitais,
como a cabeça e o pulmão para o final, para que eu morra
lentamente.
Eu grito. Eles gritam, em coro, uma frase incompreensível
para mim. Nossos gritos encobrem Ravel, mas ele continua soando
Escritos VI 76
na minha cabeça, onde ela dança como um dervixe, usando uma
imensa saia vermelha, ondulante como um campo de papoulas.
Uma explosão de gozo e dor estilhaça o universo.
Maria Elizabeth Knopf, 60 anos, divorciada, Profissão: Oficial de Justiça aposentada do TR/RS, escreve contos, possui apenas um texto publicado através de seleção no Concurso Histórias do Trabalho, Iniciou o Curso de Formação de Escritores e Agentes Literários na UNISINOS. Atualmente participa de Oficinas de escrita com Diego Petrarca.
Escritos VI 77
SETE ESTRADAS Mauricio Cesar de Castro
Sonhos e espinhos a incerteza do princípio
Passos e descaminhos o medo do precipício
Pronomes em desalinho um verbo no particípio
Lápis incolor contorna o incerto caminho
Fotos amareladas, cartas rasgadas
Segredo sagrado sete estradas
As marcas do passado os pés no presente
Os fantasmas do futuro
Voam pela janela pulam o muro
Nos vigiam constantemente
Sol no solo noite de neblina
Som do sul, céu azul, nuvem na retina
O todo construindo a parte
O azar sorrindo da sorte
Cimento na terra lágrima na garganta
A fé do ateu guerra santa
A prostituta e o poeta
A profana e o profeta
Na corda-bamba se equilibra a razão
O fim pode ser a porta do recomeço
O amor enfim sempre preso pelo avesso
Na doce e perigosa armadilha da ilusão
POMBAS Mauricio Cesar de Castro
Os homens explodem as bombas
ao invés de contemplarem o voo das pombas
com tanta raiva nos olhos
Escritos VI 78
deixam descolorir seus sonhos
e cegam para o encanto
que é o mágico encontro
das pedras com as ondas
Os homens fogem de suas sombras
escondem suas lágrimas
cultivam vinganças e mágoas
fingem não sentir dissabores
plantam no céu as guerras
e colhem no chão as dores
de ganância são ricos
mas miseráveis de espíritos
Pobres homens!
ALÉM DE TE AMAR Mauricio Cesar de Castro
Além do mistério arquitetônico da linha do horizonte
Do voo sincrônico das gaivotas, da poesia das estrelas
Além da imensidão onde o sol se faz da lua, fiel amante
Te amar é prazer e medo, brisa e tempestade, incertezas
Além das ondas atrevidas que beijam o rochedo
Mas sempre voltam sedutoras para os braços do mar
Além do que (até) possam dizer as palavras (em segredo)
E o sábio som do silêncio nos olhos (quase) confidenciar
Além do feitiço em aquarela do arco-íris no infinito
Das folhas ao vento, das luzes ao entardecer
Do verso que na palma da mão o destino tenha escrito
Te amar é a religião mais profano em que acredito
Divino pecado, onde a dor faz fronteira com o querer
É o que me mata de amor para do amor renascer
Escritos VI 79
PORTO ALEGRE Mauricio Cesar de Castro
Luzes no infinito, o sol nu no horizonte
se deleita nas águas de um jeito vadio
até a lua parece ficar no cio
e faz perfume da brisa
o fim da tarde cobre-se em cores
em tons suaves de amores
o canto dos pássaros se harmoniza
O beija-flor acaricia as nuvens
causando ciúmes nas flores
o pôr do sol divino
poema que seduz o viver
encantar é o seu destino
incomparável bem-querer
O navio repousa no cais
aquarela sagrada ao brilho do olhar
corpo e alma em paz
desejos navegam no mágico sonhar
indescritível esplendor, coração entregue
Porto Cidade Amada Alegre
VAGA-LUMES Mauricio Cesar de Castro
Estrelas ou vaga-lumes
Incertezas ou ciúmes
Descalço ou com sapato
No barro ou no asfalto
Eu sigo pela estrada
Sozinho ou de mãos dadas
Enfrentando a chuva e o vento
Escritos VI 80
Desafiando a fúria do tempo
Meu melhor amigo é o coração
Apesar das desavenças
Que temos, enfim
Pois me previne do perigo
Dizendo que não
E eu o desafio
Afirmando que sim
SÓ Mauricio Cesar de Castro
Só falta você aqui comigo
Só falta você aqui
Só falta você
Só falta
Só
Só falta
Só falta você
Só falta você aqui
Só falta você aqui comigo
Mauricio Cesar de Castro, nascido em 11 de outubro de 1976, em Porto Alegre. Graduado em LETRAS, Licenciatura Plena - Habilitação em Português e Literatura da Língua Portuguesa. Pós-Graduado em Ensino de Língua e Literatura (abordagem textual) - ensino Fundamental e Médio. Professor da rede estadual de 1998 a 2001. Desde 2004 é docente concursado da rede de Viamão. Além de professor é poeta, compositor e produtor cultural.
Escritos VI 81
RENAS(CENAS) Patrícia Brufatto
O sol nasce;
a maré cresce
o vento sacode as árvores
Sussurrante, perdido pelo horizonte...
O arco – íris com tantas maravilhas
de cores sensíveis; transparentes azulados...
Parece vidro multicor desenhado
Insígnia rara que sobressai uma neblina fina,
armazenando beleza greciana
onde o mundo pára para olhar com
gesto de que um dia a vida renasceria.
ANOS DE VIDA Patrícia Brufatto
I Anos de vida
experiências adquiridas,
base de um crescer
amores desta vida que muitas vezes
nos fazem sofrer.
II Brilho nos olhos
Desejos audaciosos
Fruto de uma questão do saber viver
III Carregar sonhos de um mundo risonho
Perder medos e decifrar segredos
Experiências vividas,
Anos de vida
Escritos VI 82
DAS MANHÃS DE SETEMBRO Patrícia Brufatto
I O meu dado caiu na tua manhã
Feito flor, feito ternura
Que o sol poente se pôs a iluminar...
II Abri a minha janela,
Passarinho voou...
Menino – passarinho com imensa “ganas” de voar
Que dentro do meu coração
O amor é plural
III Sacias meu desejo que
Ressou em tuas manias, velhas amigas
gravadas em teu peito
talismãs na mesma busca
dos meus ideais
somos eu e tu
quase iguais.
INTERFONE Patrícia Brufatto
Maliciosas fantasias do interfone
ao arranha – céus
Diz ao certo teu sobrenome
Desmantela tuas caravelas
Invade a marcha das nuvens
Revoadas de desejos incuráveis a contextura
Coriscos, onde fundem cascatas quando
Relevos repelem nas nossas peles
No interfone da Guanabara
Escritos VI 83
MEUS (EUS) Patrícia Brufatto
Acendo meus candelabros,
a noite adormece,
Assemelho minha vida com a tua
Musa, donzela, ela: Patrícia
Jeito: carícias – a delícia perpetua por todo meu ser: firme,
forte
Que a sorte me fez poeta
Mundo, projetos, palavras, manuscritos,
Portas abertas
Sensações, sentimentos, estereótipos, folhas ao vento...
Balançam lembranças no tempo
Patrícia Brufatto Santa Rita nasceu no bairro Glória, em Porto Alegre, num mês de sol escaldante e irradiante: janeiro, no dia 24. É graduada em Letras/LC Licenciatura plena, na UNILASALLE, em Canoas, nas habilitações língua portuguesa, literaturas, espanhol. Tem formação em Inglês. Apreciadora da Arte, freqüenta eventos em geral.
Escritos VI 84
PORTO MAIS QUE ALEGRE Renan Dorneles
Ah, Porto Alegre!
Terra onde sempre morei
Aqui, colhi e plantei
Sorri e chorei
Amei e desamei.
Ainda moro aqui
E viveria para sempre.
Não há quase nada diferente,
As pessoas são bonitas
E o sotaque irreverente.
Um lugar belo de pessoas belas
Ao som dos pássaros vira cinema.
Frio e calor revezam-se entre as temperaturas
E onde estou enxergo tudo às alturas.
Vejo pessoas sorrindo
E tomando chimarrão
Ai meu Deus, como é lindo
Ter o Sul no coração!
REDDITO Renan Dorneles
O impossível me atrai
O possível me ajeita
O chão me sustenta
O céu me representa.
Sou muro erguido
Escritos VI 85
Construído de amor
E receita.
SILENCIAR-SE Renan Dorneles
“Tem dias em que me agarro ao silêncio. Eu me contento em ouvir
as idiotices de cada um… Eu noto com mais facilidade os defeitos,
os trejeitos, eu disfarço para parecer um qualquer num dia comum.
Mas eu sou meio antiquado, eu moro nas estantes, nos cantos, nos
quadros, e me torno nó, pó, solitário. Eu prefiro calar pra não
responder, eu prefiro não perguntar porque não quero saber. Eu
tranco a minha sinceridade e a minha grande vontade de gritar. Me
cabe melhor o silêncio nesses dias estranhos. Sem motivos, eu
apenas me calo, eu só me omito e me restrito. Eu aprendi que o
silêncio é quase sempre o melhor abrigo.”
ANACRÔNICOS Renan Dorneles
“O amor é um arco-íris de cores aleatórias, sem grandes histórias.
O vermelho que apaixona, erotiza, romantiza e assanha. O azul que
arrepia, decora poesia, arranha. O amarelo que brilha e enriquece,
mas a milhas e milhas de quilômetros do nosso amor. O rosa que
suaviza e tranquiliza qualquer poetiza que passe descalça. O verde
que respira, pira e vira o funk em valsa. O branco que pacifica,
multiplica a fé no Senhor. O roxo que escandaliza, protesta e
argumenta. O marrom que censuriza, volta no tempo e tenta o
concerto. O preto que determina, finaliza, calcula e decide. Apesar
das cores, os amores e as formas dele não são impossíveis para
daltônicos, e sim, para anacrônicos.”
Escritos VI 86
MINHA LÍNGUA Renan Dorneles
“Podem me chamar de velho, louco, estranho ou à toa, mas eu
gosto é de música boa, a que fala a minha língua, a insana poesia
que me recita. Eu gosto é do português, do louco que escreve os
porquês, eu gosto é das mentes psicopatas que criam bondades para
os descolados. Eu gosto é do Renato, Cazuza, Raul, eu gosto é do
Fernando Abreu, Leminski e Lispector. Eu gosto é da diretoria,
aquela que cria, não copia. Eu gosto é do povo gritando, do poder
exalando, eu gosto é da fé de viver, e ser o que quiser ser. Eu gosto
é do hoje, eu gosto da loucura, mas saiba que a minha loucura não é
igual a sua porque a minha é uma insanidade do bem que o vento
trouxe junto a um papel riscado, e eu calado, li que era um poeta
algemado que gosta do mergulho nas próprias palavras não ditas,
me calo. Eu gosto é do bom que poucas pessoas tem o dom de
apreciá-lo.”
Renan Dorneles, nascido em Porto Alegre, viveu toda a sua vida na cidade de Canoas. Aos 19 anos, seu maior sonho é ter um caso com o recíproco. Tanto no amor, quanto na escrita e em todos os sentidos imagináveis. Escrever e viver o que escreve é sua intenção. Futuro jornalista, ele apenas quer viver da escrita, mergulhado nas suas palavras vindas de um local tão lindo que nem ele sabe descrever.
Escritos VI 87
AME Rodrigues Poeta
Ame,
Ame sem parar,
Ame muito e amiúde,
Ame simplesmente
Pelo simples fato de amar,
Ame a qualquer custo,
E desesperadamente, ame,
Ame a vida todos os dias,
Ame a cada instante,
Ame o presente momento,
E ame o que ainda esta por vir,
Ame seus familiares,
Ame seus amigos,
Ame até mesmo seus inimigos
Ame o animalzinho de estimação
Ame os de rua também
Mas ame, até de olhos fechados, ame,
Afinal,
Nada mais nos restara,
Que não, amar.
NA VIDA NO AMOR E NO SEXO Rodrigues Poeta
Quero você assim
Bem pertinho de mim
Agarrada em meu peito,
Quero estar com você
E eu prometo fazer
O amor mais perfeito,
Escritos VI 88
Nosso amor vai ser mais
Muito mais que de mais
Vai ser bem mais bonito,
De pra mim o seu beijo
E me pegue de jeito
Nesse sonho infinito,
Sou feliz por te amar
E prometo ficar
Sempre junto ao seu lado,
Vai ser eu e você
De mãos dadas por que
Vamos estar lado a lado,
Nosso amor é assim
Pra você e pra mim
Uma loucura perfeita,
Então vamos seguir
Vamos juntos fugir
Como manda a receita,
Vamos então mundo a fora
Sem ter dia nem hora
De voltar à realidade,
Pois esse amor é profundo
E mostraremos ao mundo
Que o amor não tem idade,
E viveremos assim
Sempre juntos enfim
Sem lógica ou nexo,
E na mais completa exatidão
Seremos cúmplices então
Na vida no amor e no sexo.
Escritos VI 89
AMOR OU PAIXÃO Rodrigues Poeta
Eu não sei se é amor
Eu não sei se é paixão
Eu só sei que você
Invadiu o meu coração
E agora meu bem
Eu vivo mais feliz
Pois você anjo meu
É tudo o que eu sempre quis
Eu jurei não mais me apaixonar
Por outra pessoa
De repente você me tocou
Com o seu olhar
E o meu coração
Deixou de ficar à toa
Você chegou devagarzinho
E entrou bem de mansinho
No meu coração
E agora eu estou
Na boa
Ai meu Deus que alegria
Eu te vejo todo o dia
E invento fantasia
Só pra te amar
Veja só que coisa louca
É o beijo da tua boca
E o brilho deste olhar
O meu coração
Agora esta contente
Pois tudo de repente
Está mais lindo de se ver
Não tenho mais a nostalgia
Que eu tinha outro dia
Escritos VI 90
Pois você é a alegria
Do meu viver
POETA DE CORAÇÃO Rodrigues Poeta
Não tenho curso superior
Tão pouco sou doutor,
Não sou menestrel
Muito menos bacharel,
Não sei se escrevo bem ou mal
Ou se apenas faço rimas e coisa e tal,
Não escrevo para que somente os sábios possam ler
Escrevo para que todos possam entender,
Gosto da simplicidade das palavras
Pois são menos complicadas,
Nunca fiz faculdade de literatura
Eu até gostaria, mas não tive estrutura,
Hoje para ser poeta tem que ser estudado
Para fazer das palavras um enigma, ser mestrado,
Não quero com tudo isso afirmar
Que não seja preciso estudar,
Quero apenas com isso dizer
O quão gostoso é escrever,
Hoje um poema para ser extraordinário
Tem que ser lido tendo em mãos um dicionário,
Para mim, a poesia é a simplicidade do coração.
É um sentimento que flui com emoção,
Para definir um bom poeta
Críticos usam apenas uma meta,
Complicar ainda mais as palavras
Dizem tudo e com isso dizem nada,
Sou como o povo e a sua simplicidade
E não como alguns renomados e suas vaidades,
Escritos VI 91
Sei que nunca serei um poeta renomado
Mas enfim nunca pensei em ficar famoso com versos rimado
Fico apenas feliz em saber que tenham lido e gostado
Seja como for, amo escrever e escrevo com emoção.
Não sei se é praga, castigo ou maldição.
Apenas nasci assim, um poeta de coração.
Rodrigues Poeta nasceu José Ricardo Rodrigues Duarte em Porto Alegre, em 14/08/1974. Filho de João Carlos Mires Duarte e Iara Salete Rodrigues Duarte, tendo os Irmãos André, (Andréia já falecida), Elaine, Rafael, Jéssica e Tiago. Tornou-se encantado pela arte literária ao conhecer o poema “Minha Namorada” de Vinicius de Moraes. Lançou os livros infantis “Vida e Seus Amigos o Valor da Amizade” e “Vida e Seus Amigos 2 O
Resgate do Rei”.
Escritos VI 92
DESENTENDIMENTOS. Roselena Nunes Fagundes
Desisti de entender o desentendimento,
Não entendendo o mal entendido...
Desentendo o que foi entendimento,
Entendendo o triste desentendido!
Não entendo o que entendi,
Desentendendo os desentendimentos!
Entendo que então desentendi
Os desentendimentos não entendidos!
Ignoro tudo o que entendi
Dos desentendimentos entendidos!
Não entendendo o que desentendi
Dos já entendidos desentendimentos!
Roselena Nunes Fagundes é Gabrielense, gaúcha, brasileira. Professora, pedagoga, psicopedagoga. Poetisa, escritora, sonhadora. Aventureira, mundana e universal. Curiosa, desbravadora, perspicaz. Amante da vida, do amor e da poesia.
Escritos VI 93
Brasil Brasil país de muitos contrastes
onde desde o descobrimento sua beleza resplandece, nossos índios ainda lutam pelos seus espaços, nossos
negros fazem valer suas crenças que ainda permanecem. Brasil país de temperaturas variadas, de fauna e flora
ainda a serem cuidadas, de regiões diferenciadas e de etnias diversificadas.
Brasil dos nossos antepassados que deixaram seus legados
do Oiapoque ao Chuí, de muitas riquezas a serem exploradas. Brasil do carnaval, do futebol,
do rei Pelé, da linda Bahia, e do candomblé é um país de trabalhadores
esperançosos, de muita
fé...
Sônia Marli Ferreira é natural de Alegrete/RS. Autora dos livros de poesias: Paixão (2007) e Idas e Vindas (2008) e dos livros infantis Luizinho e o Tesouro (2009), O Gatinho Sofio (2010), Três Patinhos sem Lagoa (2012) e. Entre Sonhos e Realidade (2013). Sempre participa da Feira do Livro de Porto Alegre/RS, Feiras do Interior do Estado e na Bienal de São Paulo, sendo que lança um título inédito por ano.
Escritos VI 94
Di - Vaga - Ação Teresinha de Jesus Paz Pereira
A folha de papel, trama de fibras vegetais alvejadas pelo
cloro e amotinadas em retângulo, buscava a justificativa de
seu destino. Ansiava pela invasão das palavras que dariam sentido
ao seu sacrifício, pois continuar um eucalipto abrigando ninhos e
administrando reações químicas seria melhor escolha de vida.
A mulher era desconhecida no mundo literário. Sua vida
passara a valer mais desde quando o destino lhe jogara na arena das
palavras, que lhe seduziram e devoraram em arrebatamento
completo. Porém agora, debruçada à mesa, ansiava que a
possuíssem como as tantas vezes em que conduziam sua mão sem
deixá-la sequer pensar. Mas nada. Só os cotovelos a reclamar e
tensão já pressionando o oxigênio de seus pulmões, pois
as palavras de vida própria estavam desconhecendo antigas
trajetórias - caminhos sinuosos onde perfeitos casamentos tinham
acontecido.
E o vasto espaço branco pedia, implorava ser impregnado por
seres gráficos negros que chegariam com muita inspiração e rara
técnica, horas a fio sem trégua. Isto daria martiridade
completamente justificada ao papel, pois a cada movimento da mão
da mulher a ponta da caneta rasgaria os elos das fibras inundando-
as de tons que decifram sentimentos. Como soldados rastejando
estrategicamente pela folha para que o caos das ideias se
organizasse.
E a incansável pessoa querendo ser dominada pelo invisível
e querendo dominar dicionários numa íntima relação com algo dito
sem vida, mas pleno de vida: a folha de papel.
Porém, só acontecia a trajetória dos ponteiros beijando os
números de um a doze e de um a doze novamente, fechando o vinte
e quatro. E mulher e papel num tal idílio, num tal enfrentamento.
Viver tem dessas coisas, de vez em quando se fica a zero
engessada num momento quase infinito. E se ligasse a televisão?
Se parasse o relógio? A passos rápidos foge dali para não ver a cor
Escritos VI 95
de sua vergonha riscada no inquisidor espelho, testemunha de sua
frustração. Que ao menos se desatasse o coração de suas amarras.
Que se abrissem as comportas. Que uma avalanche d'água face
abaixo inundasse o papel dissolvendo-lhe as cadeias e levando os
elementos a seguirem seu destino, ao invés de ficarem presos em
geometria angelical a olhar para ela suplicantes, carentes de
símbolos.
Porém, o que não se vê ainda insiste e ordena dentro,
devolvendo a mulher àquela arena, àquela cena. As mãos são
induzidas a manipular. Os dedos calejados e sem rumo seguram o
papel num tempo que para, não é mais dona de nada. Eles fazem
dobraduras na cativa folha. O invisível quer e manda. Um objeto,
com linhas convergentes a um ponto se faz avião. Os dedos, agora
tomados de precisão e competência, impulsionam fortemente o
acontecido que voa pela janela em busca de outro destino. Voa
leve, entregue à vida e deixa em seu rastro a liberdade das árvores.
Teresinha de Jesus Paz Pereira “tepaz” trabalha na Secretaria Estadual de Saúde em Porto Alegre. Mora no Centro Histórico de Porto Alegre. Sempre teve facilidade com a expressão escrita, mas faz mais ou menos cinco anos que iniciou oficinas e se descobriu fazendo o que parece ser prosa poética, nem ela sabe bem...
Escritos VI 96
FOI ASSIM QUE COMEÇOU Vera Albers
Muitas vezes aconteceu-me querer que os meus sonhos (não
havia noite que eu não sonhasse) fossem realidade. Mas dessa vez,
meu Deus, esconjuro, faça com que a realidade seja um sonho.
Pois foi assim que começou.
- Como é, Pi – dizia uma voz – está vivo ou está morto?
- Ora, Ja, por acaso não sei reconhecer quem está vivo ou
morto?
As vozes cessaram.
Virando os olhos só conseguia ver o reflexo de luzes que
deixavam uma estria multicor atrás de si.
- E agora, o que fazemos?
- Acho que não tem jeito. Já vai chegar a polícia.
- A polícia? E se descobrirem sobre nós?
- Não há o que descobrir: pegue os envelopes e enfie-os no
bolso do morto. Ponhas as luvas, vá já.
Nesse momento uma das linhas que perpassavam minha
mente como que fixou-se e pude sentir o choque do carro que
parou bruscamente depois que o meu bateu. Não sei como cai fora
dele, mas tive o impulso de levantar e explicar-me. Assumir logo a
culpa pelo acontecido. Eu havia acelerado de repente e ... será que
alguém morreu por causa disso?
A vontade de levantar-me e fugir transformou-se em pânico.
E se tiver matado alguém?
Só que não conseguia levantar.
Estarei sonhando?
Mas depois de um tempo que não sei calcular, a custo me
ergui e, cambaleante, segui pela rodovia.
Correr? Não.
Andar?
Mas para onde?
Escritos VI 97
Para casa é claro.
Eu e meu cérebro éramos duas entidades separadas. Uma
perguntava, outra respondia. E meu cérebro respondia em ondas.
Uma delas me dizia que minha casa estava logo adiante.
E era como se tivesse deixado meu corpo eu pairasse acima
das coisas. Via a planta delas. Mas dali só via a extensão ao meu
lado e a rodovia em frente.
Qual é meu nome? Quem sou eu?
Pus a mão no bolso da calça e a retirei vivamente. Uns
pacotinhos de papel, enfileirados, grudados um no outro, dentro de
um saco impermeável. Nada mais. O que estão fazendo ali? Meu
cérebro nada respondeu. Mas eu continuava andando. E se eu
estivesse na América?
Se estivesse na América o caminhão que vem vindo à toda
pararia com esse seu gesto para pedir carona, disse o cérebro.
E não é que parou?
Subi na boléia. O caminhão era enorme e o motorista
também. Camisa xadrez, fundo vermelho, barba em volta do
queixo, jeito folgazão.
Aonde vamos? Jeff, disse, dando-me uma pancadinha nas
costas.
Procurei rir, junto com ele.
Qual é a cidade que nos espera?
Santa Fé.
È para lá mesmo, disse e apertei a mão que o homem me
estendia.
Sentei ao seu lado. Embaixo do espelhinho uma loira
rebolava.
Em trinta minutos mais ou menos, estaremos lá. Já estaria lá,
na verdade, não fosse o desastre.
Desastre?
Sim, de onde você vinha?
Dois carros se chocaram, o motorista de um deles morreu.
Cristo, pensei.
Sossega, disse-me o cérebro, você está inteiro.
Escritos VI 98
Só se aconteceu depois da mulher me deixar na estrada, falei,
a primeira coisa que me veio à cabeça.
Deixar na estrada, hein?
Mulheres, mulheres...é isso aí.
Que tal um trago? Acho que nós dois estamos precisando.
Esticou o braço peludo para olhar o relógio: sete e meia.
Logo ali adiante há a cafeteria de um motel que eu conheço, a
Shirley‟s, comeremos alguma coisa também, isso é importante .
Apalpei automaticamente o bolso da jaqueta. Algo parecido
com uma carteira achatada me deu um mínimo de alívio. Ele notou
o gesto.
Sossega body, não se preocupe, você é meu convidado.
Descemos e entramos numa enorme cafeteria para
caminhoneiros. A América é assim, ela parece feita para
caminhoneiros, reparei, para mim mesmo.
Uma imensa vitrine de vidro opaco e, nas prateleiras, uma
enormidade de pratos feitos.
Dois pimentões vermelhos recheados que despontavam do
arroz de um deles tinha um ar de família, não sei por quê. Meu
cérebro continuava ausente, quanto ao passado.
Meu companheiro escolheu uma mesa de fórmica ao lado de
outro body, que o cumprimentou ao vê-lo e eu fiz sinal de que ia
para o banheiro.
Aproximei-me furtivamente do espelho quase sem reflexo e o
que vi me abalou.
Cristo!Aquilo sou eu?! Não é assim que me sinto, não é
assim que me reconheço!
O que me fitava era uma cabeça redonda com uns cabelos
crespos, pretos e eriçados, uma grande pinta de nascença ao lado do
nariz afilado em forma de alfinete, os lábios grossos, as bochechas
meio caídas e dois olhos esbugalhados, com reflexos laranja! E
ainda por cima, baixinho. Sofregamente tirei do bolso a carteira
achatada. Continha uma nota de cem dólares e uma ID: nela meu
nome era Robert Montserrat. E a foto o confirmava.
Escritos VI 99
Senti uma tontura súbita e apoiei-me ao espelho para não
cair. Aí, de repente, tive o primeiro vislumbre de alguma cena do
passado, o que me deixou ofegante, além de confuso.
Uma mesa de mogno, comprida, quase do tamanho da sala.
Em volta dela, uma porção de gente de avental branco. Uma
mulher, também de avental, regendo a sessão e falando,
explicitamente, algo infalável. A não ser que os que a rodeavam
fossem de total e absoluta confiança, e as paredes a prova de som.
Eu, era eu? Um médico? Um cientista? Um professor? Em cima da
mesa, uma porção de folhas impressas. Numa delas, para onde caiu
meu olhar,
Vejo o cabeçalho, bem no meio do tampo, e meio
amarfanhado: Pail-77. O que será?
Vi-me saindo de lá. Como era possível que existisse algo
assim? Não poderia me omitir diante daquilo. Seria necessário
comunicá-lo a alguém, o mais rápido possível. Era o que me
dispunha a fazer quando...
Corte.
E os pacotinhos? Tem algo a ver com meu passado? Ou são
desse presente maldito?
Procuro agarrar-me a algo de concreto. Vamos, cérebro,
vamos. Puxei de novo a carteira. A licença estava lá, super
achatada. Li: If this is the first licence issued to you, the two
numbers are the same as the last two digits of the document shown
alongside. Driving Licence enquiries - Tel: 017292782787
Falta alguma coisa após o número. Não tem o nome. Até a
carta está sem memória, cristo. Tornei a enfiar a mão no bolso da
calça e entrei na privada. Fechei a porta com trinco e,
delicadamente, retirei a fileira de pacotinhos ensacados, embolei-os
e subi no assento. Levantei a tampa da caixa d‟ água e enfiei-os
bem no fundo dela. Descansem aí, falei, dando um profundo
suspiro.
Até eu saber quem sou.
Escritos VI 100
Encostei as duas palmas da mão à parede e senti-a gelada. E a
tampa da pia estava colada do modo errado. O formato da bacia era
reto para fora e bojudo para dentro. Estaria com febre?
Cambaleando, voltei à mesa de fórmica.
Venha, body, qual é mesmo seu nome? Ah, Robert. Sente
aqui, Robert, este é o Flip, meu amigão. Vamos ver o que há de
bom, o que me diz, Flip?
Flip não disse nada.
-Traga aquele prato de pimentões vermelhos, Parecem dois
chifres, vão bem pro nosso amigo aqui, disse Jeff, rindo para o
empregado e dando-me outro tapa nas costas.
Esses caras vivem bebendo, pensei. Nem sei como
conseguem dirigir esses treminhões. Vai ver que é por isso mesmo.
Enfiei o garfo pesado e escorregadio no arroz e, ao por o
pimentão na boca, tive outro vislumbre.
Quem dirigia era a Shirley que falava e ria o tempo todo. Eu,
ao lado dela, contido e atento. Ela falava espanhol. A estrada era
poeirenta, o sol escaldante e a cidade para onde íamos não chegava
nunca. Paramos à sombra de uma árvore. Ela virou o rosto para o
meu lado e fitou-me nos olhos. Depois encostou seus lábios aos
meus e nos beijamos longamente.
Só me faltava esta. Ter esta lembrança excitante, bem agora.
- Robert, falou Jeff com voz empastada. Não vou poder
dirigir agora. Vou dar uma dormidinha aqui no Shirley‟s. Se estiver
com pressa, pode seguir viagem com o nosso amigo Flip, ele
também vai para lá.
- Dormidinha? Ótima idéia. Eu também vou aproveitar para
descansar, falei, afoito, engolindo o arroz e o pimentão, por sinal,
frio.
- Deixe o Flip ir, se está com pressa. Eu não estou. Esperarei
você me chamar, quando você acordar. Não vá esquecer de me
chamar. OK?
Fomos, ambos, para a recepção. Deram-me o número 8; a ele
o 6.
Escritos VI 101
Mal abri a porta do quarto senti que dificilmente teria
agüentado um minuto a mais. Só tive o tempo de calar a voz do
apresentador da TV e caí na cama feito uma pedra.
Meu sono foi tão pesado que só acordei com o som de duas
pancadas abafadas. Esfreguei os olhos, passei a mão no cabelo e
entreabri a porta.
- Há um casal lá embaixo perguntando por você, disse o
porteiro.
- Obrigado – já vou descer.
O homem afastou-se e eu fechei a porta. Dessa vez meu
cérebro não se fez de rogado. Abri a carteira, peguei vinte dólares
do maço que havia enfiado bem no fundo do bolso e deixei-os
embaixo do cinzeiro, sobre a TV. A janela abria-se sobre uma
garagem com telha de eternit. Desci as pernas com cuidado e andei
encurvado pelas bordas até a outra extremidade do telhado que
dava para a rua. Segurei-me na calha e deixei-me cair. Comecei
andando devagar, depois acelerei o passo. Dobrei a esquina e
comecei a correr pela rua da qual não se via o fim. Entre aí, falou o
cérebro. Entrei por um corredor estreito, uma espécie de túnel
cavado entre prateleiras e livros. Via-se uma luz amortecida no
fundo. Dois lances de escadas subiam, em caracol, ao mezanino
igualmente abarrotado de livros. Um sebo – com certeza.
Fui procedendo às apalpadelas em direção à luz. Um dos
livros aos quais me encostei soltou-se e quase caiu. Amparei-o com
a mão. Andei por uns bons cinquenta metros e me vi numa sala
redonda com o pé direito que chegava ao teto. Sua iluminação
provinha das frestas das telhas e de um lustre pendurado a um fio
que vinha do alto do teto e se projetava sobre uma pequena cascata
elétrica, um fogãozinho a carvão, dois gatos enormes, um preto e
um branco, dois sofás de cor parda, um em frente ao outro e,
sentado no que ficava próximo da cascata, um indiano anafado,
com olhos penetrantes e ar acolhedor.
- Bom dia, disse eu.
- Bom dia. Vai ficar com esse? Perguntou olhando para o
livro.- Vou, respondi automaticamente.
- Aceita um chazinho?É de ervas, não tem efeitos colaterais.
Escritos VI 102
Sentei no sofá em frente ao dele e dispus-me a tomar o chá.
O que senti pela primeira vez desde o início dessa história
maluca foi uma sensação de paz e frescor tão grandes que me
fizeram desejar não ter que sair dali logo em seguida, para ir sem
saber aonde e, ainda por cima, procurado pelo casal. - Procure um
jeito de ficar – disse-me o cérebro – é o lugar ideal, até pôr suas
idéias em ordem. Sorvi o chá lentamente enquanto meus olhos
davam a volta da abóbada.
– Um elevador? perguntei, ao ver um aparelho vermelho
parecido com as cabines telefônicas da velha Inglaterra.
- Eu mesmo estou dando um jeito nele, agora que tenho
livros até no sótão - uma mansarda que construí no telhado, mas
está difícil.
- Se quiser, posso dar uma olhada, ofereci afoitamente. (Será
que a engenharia fazia parte de minhas novas habilidades?).
Acabado o chá, levantamo-nos e fomos até a gaiola onde se
encontrava o elevador.
Ele tinha todo um arsenal de instrumentos, ferramentas
manuais, elétricas, chaves de todos os tipos, para mim
estranhamente familiares.
Juntos, conseguimos fazer com que a engenhoca subisse. A
alegria dele era visível.
- Você ajudou a mim, disse ele, agora Tsaatan vai ajudar a
você.
Colocou na cabeça um barrete – um orgoi – e olhou
fixamente para a máscara pendurada num dos vãos da estante.
É o ongon – ele disse. Juntou as palmas das mãos – é o irmão
do meu pai, meu guia.
A máscara era de metal, mas o que chamava a atenção eram
os dois olhos arregalados e os tufos da barba, bigodes e cabelos
naturais.
O barrete que ele vestiu tinha uma verdadeira cascata de fitas
que lhe cobriam as costas. É manene – ele me disse. É a irmã de
meu pai, ela me dá o dom de ver no passado das pessoas.
Começou a fazer movimentos amplos com os braços, às
vezes bruscos, e a girar sobre si.
Escritos VI 103
Depois desceu para o rés-de-chão.
Ao lado do divã, na saleta, fervia a chaleira com as ervas. A
infusão já era amarela esverdeada. Ele encheu um copo que jogou
sobre os carvões e encheu outro. Subiu de novo e fez-me um sinal
para que eu o bebesse. Em seguida pediu-me que tirasse a camisa e
curvasse minhas costas, mantendo baixa a cabeça. Começou então
a bater nelas com as mãos e com algum instrumento que não pude
ver enquanto a parte do líquido da chaleira que havia jogado no
fogão faz encher a sala de uma fumaça branca e cheirosa. Devia
haver vertido parte do líquido em suas mãos porque passei a senti-
las quentes e molhadas golpeando minhas costas. O vapor, as
pancadas, a parafernália toda me deixava entontecido. Minha
cabeça pendeu cada vez mais, depois tudo ficou preto ao meu redor
e eu cai no chão em posição fetal. Entre os fios que meu cérebro
puxou, fixou-se este.
Começou com o gato.
Não era em qualquer colo. Procurava o calor, como se
falasse: é aqui que eu quero ficar!
Gatinho, meu amiguinho. Com a titia ele quer é ficar. E
acariciava a cabecinha dele.
O menino Landino de 5 anos, olhava – extasiado.
O tio Richard o segurava pela mão.
Falou em Brecht e me perguntou onde poderia ser
comprado.
No sebo, respondi.
Ia justamente sair e me propus a comprá-lo. Mas antes ia
dar uma olhada na casa.
Parei o carro em frente à casa onde havia morado, agora
um depósito enorme e abandonado, um galpão - para ser mais
exata.
Entrei e comecei a ler as lombadas. Tão poucos livros,
pensei, diante das ampolas químicas e garrafinhas inúteis,
agora. Seria preciso uma boa limpeza... Mas o passado tem sua
vez.
Nada de Brecht.
Então irei até o sebo.
Escritos VI 104
Nessa hora ouço umas vozes vindas de fora. De fato, um
grupo de moleques e não tão moleques havia rodeado o carro.
Alguns deles até haviam entrado nele.
Ai, pensei, deixei minha bolsa lá.
Automaticamente tateei os seios com a mão.
O barulhinho de papel reanimou-me.
Voltei ao carro em disparada.
Conforme temia, minha bolsa já não estava.
Mentalmente refiz o inventário de seu conteúdo: cheques:
nenhum;
cartões : o de crédito, o do plano, carta,
algum dinheiro, pouca perda.
Mas a bolsa estava no fio da calçada, aberta e talvez não
roubada.
Suspiro de alívio.
As crianças debandaram feito pombos. Peguei a bolsa,
mudei o carro de lugar, pois o sebo não ficava longe, e fui
a pé.
Desci a rua de paralelepípedos, subi à esquerda e entrei
na vila que agora tem portões de ferro que se abrem e se
fecham, nas horas mortas.
Estavam justamente se abrindo.
Algo me cheirou à russa e... dando mais alguns passos, a
Décio Pi. Conquanto não os encontre lá, só faltaria essa –
pensei, dando mais uns passos pela direita e me lembrei que aí
é que havia o Instituto onde se dera a descoberta do aderente e
parece que o Décio estaria lecionando lá, com qualquer
desculpa, alguma embromação, com certeza.
Mas os envelopes estavam seguros, a bolsa havia sido
encontrada e eu estava indo em direção ao sebo do indiano,
deixando de lado inconveniências do passado, passado.
Não cheguei ao sebo...
A última coisa que lembrei foi do artigo no jornal
científico, louvando minha pesquisa e minha descoberta de todo
acidental.
Escritos VI 105
Não é fácil abalar a fleuma britânica. Daí a sintomática
reação de Keith Bivans, diretor dos arquivos da Royal Society, ao
ser questionado sobre a importância do achado da pesquisadora X,
a quem foi confiada a guarda temporária do precioso produto por
ela reencontrado. Com a sobrancelha levantada e cauteloso, Bivans
respondeu: “Estava debaixo de nossos narizes, mas em 350 anos
ninguém o encontrou”.
Trata-se de um pó amarelado e com odor pungente embalado
em pequenos envelopes colados em uma carta de 1675 endereçada
ao primeiro-secretário da Royal Society, Henri Ohrenburg (1515-
1677), vindo da Antuérpia e enviado por um apotecário e
alquimista chamado Augustin Burrens. Embora não chame a
atenção, é uma valiosa e concreta amostra do Pail 77, famigerado
aderente universal, que foi alvo de buscas que movimentaram
gerações de alquimistas e mesmo filósofos naturais como Robert
Boyle e Isaac Newton.
Décio e a russa me alcançaram por trás, me encapuzaram
e me arrastaram para algum lugar. Senti-me asfixiar, imersa
em um líquido que aos poucos ia engolindo e não conseguia
mais respirar...
Quando voltei a mim Tsaatan estava de pé, com as mãos
juntas e uma expressão de tranquilidade no rosto. -Terminei o
kamlanie – ele falou, e reencontrei sua alma dissociada. Consegui
recuperá-la.
Mas senti perturbações que ainda resistem. Você, meu amigo,
é duas almas numa só.
Olhei para ele completamente assombrado.
- Duas pessoas, meu amigo. Duas almas.
Continuava pasmo.
- Ponha a camisa, meu amigo. Vamos comer alguma coisa e
vamos ver como isso aconteceu.
Descemos e sentamo-nos no sofá do lado do forninho em
que ele introduziu uma bandeja esmaltada coberta por uma folha de
Escritos VI 106
alumínio e , vertendo um pouco de chá em duas taças sem alça e
esfregando as mãos em seguida, falou:
-Vamos nos aquecer um pouco, ele disse - enquanto a comida
fica pronta. Isso vai ser bom. Sorvemos o chá em pequenos goles.
Estava bastante quente.
Nessa hora o sininho da porta tilintou.
-É Paul, disse ele, olhando para o cuco na parede e
levantando-se. Ele sempre vem a essa hora. Um momento e já
volto.
Voltou com um embrulho amarrado de jornais, revistas e
algumas cartas.
-É a correspondência do dia, falou, depositando o embrulho
no sofá em frente e abrindo a porta do forninho com um pano.
Imediatamente percebi que meu cérebro queria que eu fizesse
algo.
-Posso dar uma olhada no jornal? É de hoje, presumo.
Claro, meu amigo, esteja à vontade. Nosso almoço está no
ponto, vou preparar os pratos.
Puxei do embrulho o que parecia ser o jornal local. A data era
a de 22 de setembro.
Folheei-o e, na última página das ocorrências policiais, lá
estava a foto.
Dois carros haviam-se chocado, um casal havia prestado
depoimento e o passageiro do carro que, segundo eles, provocara
o acidente e parecia ter morrido, havia desaparecido sem deixar
vestígios.Essa, a manchete.
Esse, sou eu, conclui imediatamente.
Mas então, como é que o casal veio atrás de mim no hotel?
Aproximei o jornal dos olhos para ler a descrição do
ocorrido.Não constava nenhum nome, nem o meu, nem o do
homem ou da mulher que estavam no outro carro.
-Então, meu amigo.- Bom apetite, disse meu anfitrião, dando-
me um prato do que me pareceu ser pimentão misturado com
berinjela e apontando para um vidro de mango chutney: eu mesmo
faço, e até vendo um bocado.
Escritos VI 107
-Você me disse seu nome, é um nome indiano, não é? falei ,
puxando o assunto, pois esquecera completamente do nome dele.
Não exatamente. Tsaatan-bô era o nome de meu avô, que
emigrou para a parte setentrional da Índia. Ele descendia de uma
antiga dinastia mongol e foi xamã até ter que deixar o país. Meu pai
e eu, o primogênito, herdamos o ofício e o primeiro nome. Na Índia
também a situação não era boa e meu pai resolveu então emigrar
para o novo continente. Conseguimos montar uma pequena venda,
depois a vendemos para comprar este sebo e aqui estou eu, há mais
de sessenta anos.
O prato estava bom, apesar de picante. Tomamos mais chá.
E então, meu rapaz, conte-me agora, sobre você.
É pouca coisa, infelizmente, comecei. Só me lembro de mim
a partir do acidente que está aqui, no jornal. Passei-lhe a folha e
Tsaatan fitou a foto longamente. Contei-lhe tudo o que sabia,
inclusive de um estranho sonho que tivera no hotel, antes de ouvir
as pancadas na porta, e que havia se dissipado totalmente, mas que
agora, reativado por quem sabe qual estranha coincidência,voltara
em fragmentos.
- De repente, Tsaatan, sonhei-me como mulher.
Os olhos dele fizeram-se ainda mais atentos.
- Continue.
Mulher, eu?
Mas e minhas calças, mas minha carteira... e o espelho...
Mulher, e não é só isso, ainda..., bem, com o Jeff?
Deve ter sido a barba do Jeff que me levou a isso.
Como é mesmo que se chamava aquele filme em que o cara
se transforma em mosca?
A Mosca! É isso, a mosca, que bom que estou lembrando.
A cara do Jeff é a cara do cara que se transforma em mosca,
por causa daquela barbicha rala que lhe cobre o rosto inteiro, como
se a tivessem colado.
E o efeito na pele é de um ralador
Mas o cabelo é macio.
E eu, eu tive um namorado assim.
Escritos VI 108
Que experiência...é como se quisesse entrar numa vida
passada.
Uma outra encarnação.
Só vislumbres.
- Meu amigo, disse Tsaatan, há realmente uma mulher
vivendo com você.
-O quê?
- Deve ter havido algo que liga você, Robert àquela
pesquisadora X. Lembra-se de algo mais?
- Sim, aquela visão de uma mulher de avental branco, na
reunião sigilosa, de que lhe contei.
Seria ela a mulher que está dentro de mim? Mas como?
-Não foi como a transferência da mosca, mas algo parecido.
A transmutação é algo que tem apaixonado os sábios e os santos de
todos os tempos. Esse elemento que reencontraram, funciona como
catalizador, mas deve ter outros poderes. A moça tinha-o em seu
poder, até ser defraudada e ... morta. A alma dela seguiu a dos
ladrões e...Você se lembra de mais alguma coisa? Faça um
esforço...
- Só dois nomes: Lana e Décio.Mas parece que Décio era
também o nome de um dos pesquisadores do grupo e Lana, deve
ser o da russa, a que queria a todo custo fazer parte do grupo e que
era amiguinha do Décio: Lana. Eles é que vieram atrás da mulher
que ...
E o nome da pesquisadora?
Não... ainda não. Mas não deve ser difícil remontar a ela. É
só saber como morreu.
Ah, sim! E aqueles envelopes que deixei na caixa d‟ água do
banheiro da lanchonete?
Claro! E o casal estava atrás deles!
Mas como vieram parar no meu bolso?
- Vamos fazer uma coisa. Um de meus clientes trabalha na
Delegacia que apura o caso do acidente. Vou ver se consigo falar
com ele e saber alguma coisa dos implicados.
Escritos VI 109
Foi até a entrada, onde ficava o telefone deixando-me com
minhas interrogações. Mas meu cérebro, agora, parecia ter
readquirido suas funções. Só minha consciência continuava
dividida.
Voltou com seus passinhos rápidos, pouco depois.
- Como imaginei. Os implicados: Decio Pi, originário de
Taiwan, e Lana Jaffa, originária de Varsóvia, ambos pesquisadores
residentes em Londres e portadores de visto temporário, nos EUA.
A vítima desaparecida, um eletricista de origem latina, que
responde ao nome de Robert Montserrat.
- Agora, só falta rastrear a vida deles todos e principalmente a
da jovem pesquisadora que foi resgatada no rio e cuja alma
acompanhou o casal e transmigrou no seu corpo, Robert,
imediatamente após o acidente. Essa é a tarefa que você tem pela
frente.A minha termina aqui.
Conforme o legado de meus avos, eu só consigo conhecer o
passado.
- Mas afinal, quem sou eu, homem ou mulher?
Você é os dois, meu amigo. O resto, agora, é com vocês.
Vera Albers, escritora paulista (cf. em Manuel da Costa Pinto, Literatura Brasileira hoje, p.100). Uma reunião de seus contos saiu pela Editora 34, com o título de Surtos Urbanos (1998). Seu primeiro romance foi publicado em 1980, com o título de Deformação. Recebeu o II lugar no concurso “Crônica e Literatura: Carlos Heitor Cony” de Uberlândia (2006). Seu poema “A cidade” foi publicado na Antologia Poética
Poetize. Reside à rua Santos Dumont, 494, Jardim Petrópolis, São Paulo. E-mail: [email protected]
Escritos VI 110
O SONHO Vilma Helaine Ribeiro
Tatiana e Tatiara planejaram passar quinze dias na praia. Na
manhã do dia 09 de fevereiro de 2010, as irmãs gêmeas arrumaram
as malas, despediram-se dos pais, entraram no carro e rumaram
para o litoral. No trajeto as irmãs conversaram:
-Viu só que sonho mais louco da mamãe? Eu fiquei
arrepiada, apesar de achar que os sonhos são besteiras. Que
loucura, dessa vez a mãe extrapolou, disse Tatiara.
-Pior! Eu nem parei para ouvi-la, essa história de sonho ela
inventou só para nos impedir de ficarmos longe das asas dela, tu
sabes que ela é zelosa, preocupada e possessiva. Imaginação e
criatividade não lhe faltam!
- Verdade! É possessiva, mas é adorável! Coitadinha, ficou
grudada no terço!
- Eu vi, mas deixa isso prá lá! Vamos pensar nos nossos
quinze dias de liberdade, diversão e de muita alegria! Já pensou se
encontro o amor da minha vida, lindo, de preferência rico, leve,
livre e solto correndo à beira mar!? Ah! Era tudo que eu queria!
- Eu só queria viver um grande amor, daqueles que vai além
da morte...
- Já começou segundinha! Fala da mamãe e está sempre com
a morte na boca! Pode parar! Que graça tem falar do amor depois
da morte? Só você mesmo! Eu quero viver meu amor bem vivinho,
morreu acabou tudo! Já era o amor, não acredito que haja outra
vida. Isso é pura invenção! A vida é aqui e agora!
- Mas eu só quis dizer que... Credo! Olha lá!!! Meu Deus que
coisa horrível!!!!
- Nossaaaaa! Olha só, aquilo ali já foi um carro, não deve ter
sobrado nem os cabelos de quem estava dentro dele. Nem o ferro
velho vai aproveitar o que sobrou.
- É por uma dessas que a mamãe se preocupa. Ela falou de
um acidente na estrada...
Escritos VI 111
- Bobagem, sempre haverá acidentes nas estradas, a morte
não tira férias!
- Então vá devagar! Fiquei até com uma dor no coração de
ver aquilo.
As duas conversavam quando avistaram, no acostamento,
dois jovens acenando.
- Você está vendo o mesmo que eu? Aquilo é um colírio em
dose dupla!? Ou é miragem!? Nossa é tudo que eu queria!
- Igual nós! Mas eu não vou parar, disse Tatiana. Não vou
mesmo, mas nem pensar!
- Mas você não sente pena dos coitadinhos? Parecem
desesperados! São lindos!
- São mesmo, mas não vou parar! Sou contra dar carona para
estranhos, não vamos nos arriscar. Nisso eu concordo com a
mamãe.
Mas ao passar pelos belos rapazes, Tatiana reduziu a
velocidade, os rapazes correram até o carro, que parou no
acostamento. Um deles aproximou-se da janela e falou:
- Olá! Foi Deus quem te fez parar moça! O outro apenas
cumprimentou-a com a cabeça. Tatiara ficou atraída pelo segundo
rapaz, e seus olhos brilharam quando ele lhe olhou e sorriu. É um
Deus Grego, pensou ela encantada, ele poderia ser o meu grande
amor!
- Nosso carro estragou e nós temos que voltar para a casa dos
nossos pais. Será que vocês podem nos dar carona? Posso garantir
que não somos bandidos.
- Mas não estou vendo o carro de vocês, onde está o carro?
- O guincho acabou de levar moça. Por favor, nos dê carona!
- Não sei não! O que achas Tatiara? Tatiara!!!! Estou falando
contigo!!!
- Heim!!! Ah! Eu acho que não seria educado deixá-los aqui
na estrada, eles não parecem ser do mal. Estão até com carinha de
assustados, sussurrou.
- Olha moça, nossos pais moram na praia, nós precisamos
voltar, eles vão ficar preocupados quando ligarem e nós não
atendermos ao telefone e, além disso, ficamos até sem o celular e
Escritos VI 112
sem dinheiro, pois nossas carteiras ficaram no carro. Eu me chamo
Vitor e esse aqui é o meu irmão Thiago. Ele está mais nervoso do
que eu, precisamos voltar para casa moça! Nos dê carona, por
favor!
- Que feliz coincidência, Tatiana! Gêmeos! Isso não é mero
acaso!
- Está bem, eu dou carona, mas só com uma condição...
- Diga, seja o que for nós aceitaremos, respondeu Vitor.
- Levantem as camisas e deem uma volta completa, quero ver
se não estão armados. Os rapazes fizeram o que Tatiana pediu e
não havia sinal de armas com eles.
- Só mais uma perguntinha: Vocês também moram no litoral?
- Não, só nossos pais moram lá, nós moramos em Porto
Alegre.
- Tudo bem! Seja o que Deus quiser! Entrem! Tomara que eu
não me arrependa, pensou. Eles entraram no carro e durante o
trajeto conversaram alegremente. Pareciam velhos amigos.
Chegaram ao litoral. Os rapazes pediram para descer próximo à
rodoviária. O carro parou e Vitor falou:
- A casa dos nossos pais é aquela lá de janela azul, estão
vendo? Quando quiserem tomar um café, um refrigerante ou um
vinho é só chegarem. Muito obrigado pela carona e se um dia
precisarem de alguma coisa teremos prazer em ajudá-las. Thiago
despediu-se de Tatiana e apertou a mão de Tatiara, nesse momento
olhou em seus olhos e lhe disse:
- Espero Tatiara, que nossos caminhos se cruzem numa outra
oportunidade, não se esqueça de mim, pois não vou te esquecer,
não era para ser assim, mas nem tudo está perdido! Meu Deus, isso
que senti deve ser o tal amor à primeira vista, pensou ele.
- Vocês vão ficar aqui ou irão voltar para Porto Alegre,
perguntou Tatiara. O rapaz respondeu-lhe com um olhar triste e
distante:
- Ainda não sabemos se vamos ficar ou não. Se ficarmos,
procuraremos por vocês! Foi muito bom conhecê-las. Mas onde
vocês vão ficar?
Escritos VI 113
- Combinado! Ficaremos na pensão Beira Mar. Sabe onde
fica, perguntou Tatiana.
- Claro! Então estamos combinados, até mais. Tatiana
esperou os rapazes atravessarem a rua e só então rumou para a
pensão. Ambas desejavam muito que os belos rapazes resolvessem
ficar na praia e procurá-las mais tarde, mas isso não aconteceu e
elas ficaram frustradas. Pouco se divertiram e passaram mais tempo
esperando por eles, do que se banhando nas águas daquele mar
azul, majestoso e misterioso. Passavam pela residência deles todos
os dias, mas essa estava sempre fechada. Na última manhã delas no
litoral arrumaram as malas e, após almoçarem, resolveram ir à casa
dos rapazes. Chegaram à residência e viram um casal de idosos,
que estavam sentados na frente da casa. Tatiana sorriu e perguntou:
- Boa tarde, o senhor é o pai do Vitor e do Thiago? Eles estão
em casa ou já retornaram para Porto Alegre?
- Sim! Quem são vocês, perguntou o senhor muito espantado
e levantando-se da cadeira.
- Eu me chamo Tatiana e ela Tatiara. Demos carona para eles.
Vamos voltar para Porto Alegre agora. Pensamos em dar carona
pra eles, se ainda não arrumaram o carro.
- Mas pelo amor Deus menina, isso é impossível! Quem dera
isso fosse possível!
- Ah, eles já retornaram, disse Tatiana. Que pena, pensou ela.
Tatiara que ouvia a conversa sentiu uma dor profunda no coração e
levou a mão ao peito.
- Moça, você não entendeu, isso é impossível, pois nossos
filhos morreram no dia 09, por volta das cinco horas da manhã,
num acidente de carro quando estavam voltando para Porto Alegre.
Meus filhos estão mortos... que dor, que dor... Como vamos
suportar vivermos aqui sem eles?
As moças trocaram um olhar incrédulo, empalideceram e
ambas ficaram por segundos em estado de choque, até que Tatiana
disse:
- Mas não pode ser! Isso sim é que é impossível! Nós demos
carona prá eles. Vimos quando eles entraram aqui, ainda nos
acenaram sorrindo. O senhor não me leve a mal, mas isso só pode
Escritos VI 114
ser brincadeira sua, aliás, o Vitor e o Thiago nos disseram que o
senhor é o melhor pai do mundo e é muito brincalhão. Só que essa
é uma brincadeira de muito mal gosto, porque loucas nós não
somos. Se o senhor não quer chamar eles, ou se disseram que não
querem nos ver eu até entenderia, mas isso não é impossível!
- Calma Tatiana, quem sabe nós confundimos as casas, a
outra também tem janela azul...
-Não, eu tenho certeza que foi aqui que eles entraram! Isso é
uma brincadeira!
- Mas meu velho não está brincando, jamais brincaria com
algo tão grave e triste! Nossos filhos morreram... morreram.
Lamentou a velha senhora, chorando muito. Tatiara tremia e
chorava ao lembrar-se das palavras de Thiago, para não esquecê-lo.
Tatiana inconformada com a situação insistiu tanto, que o velho
senhor entrou na casa e retornou com um quadro nas mãos trêmulas
e com lágrimas nos olhos, falou:
- Vejam, tirem a duvida! Esses eram os nossos filhos!
Tinham uma vida pela frente e aconteceu essa desgraça. Eram bons
filhos, que Deus os tenha amparado, meus filhos eram muito
amorosos! Só nos deram alegrias! Agora estão mortos, mortos.
- Meu Deus!!!! São eles! Tatiara, olha só, eles estavam até
com a mesma roupa da fotografia... Não pode ser verdade! Não
pode ser! Não acredito no que estou vendo!
- É o carro que vimos, lá na estrada, o guincho levar, mas não
acredito... não acredito!!
- Sim, fazia um mês que Vitor tinha ganhado o carro no
sorteio do consorcio, estavam tão felizes. Tinham tantos planos e
morreram assim num estúpido acidente. Deus que me perdoe, mas
o bêbedo que destruiu a vida dos meus filhos, também morreu dias
depois, porque se isso não tivesse acontecido eu o mataria. O
infeliz nunca mais iria arrancar vidas inocentes nas estradas. Quero
que vague nos quintos do inferno! Assassino! Irresponsável
maldito!!
- Calma meu velho, não se agite, pelo amor de Deus, só nos
resta perdoar...
Escritos VI 115
- Nunca! Nunca irei perdoar esse desgraçado, nunca! Olha a
foto, eles tiraram na manhã dessa tragédia. Como perdoar isso?
Cheios de vida! Cheios de Luz!
- Mas como é possível que isso tenha acontecido? Os mortos
não pedem carona! Não pode ser! Eles estavam bem vivos,
conversaram conosco, falaram tanto em vocês e do amor que lhes
tinham. Das pescarias com o senhor, da corvina assada com sal
grosso que só a senhora sabe fazer, disse Tatiana. Tatiara disse:
- Pois é, e o Thiago falou do dia que eles ficaram doentes e
foram desenganados e que juntos vocês fizeram uma oração
abraçados rogando a Deus pela vida deles, falou da sua promessa
de nunca mais duvidar da existência de Deus, quando eles
melhoraram. De como vocês ficariam preocupados quando
ligassem para Porto Alegre e eles não atendessem ao telefone,
imploraram a carona. O velho senhor ouvia e só dizia:
- Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! É verdade eu prometi
isso! Filhos amados!
- Minha Mãe de Misericórdia, obrigada! Isso é uma
confirmação divina! Eles sempre diziam que se morressem antes de
nós, viriam nos ver, nem que fosse de carona, recordou a mãe dos
rapazes, olhando para o céu e depois para o quadro.
- Não acredito, não acredito! Isso é loucura! É um pesadelo!
Não é real, fantasmas não...
- Tatiana! Escuta! O sonho da mamãe aconteceu! Minha
Nossa Senhora! A mamãe sonhou que havia um acidente e que as
pessoas do carro sabiam que tinham morrido e pediam carona, mas
só um carro parou na estrada e os mortos entraram nele. Éramos
nós! Éramos nós no sonho dela! Eram eles! Meu Deus, só o Senhor
para explicar isso...
- Mas que loucura! Quer dizer que demos mesmo carona para
dois fantasmas?
- Não! Fantasmas não! Para dois filhos iluminados que
amavam seus pais e que mesmo depois de mortos queriam voltar
para casa, só para vê-los, confortá-los, despedirem-se. Agora eu
entendo o que o Thiago quis me dizer, recordou Tatiara.
Escritos VI 116
Desoladas, elas abraçaram os pais dos rapazes, choraram e
rezaram com eles. Após se despediriam. Estavam em silenciosa
prece quando passaram pelo local do acidente. Tatiara gritou:
- Olha eles ali!!! E só se ouviu a freada e o som da batida.
Dias depois, no hospital Tatiana acordou do coma e ao abrir os
olhos viu, além da mãe que rezava ao seu lado, Tatiara, Thiago e
Vitor sorrindo para ela, nos pés de sua cama. Ouviu a irmã dizer:
- Tatiana! Viemos nos despedir! Viva minha irmã querida!
Vamos ficar bem e um dia, daqui muito tempo, vamos nos
reencontrar. Acredite o amor existe e por isso estamos aqui. Fique
com Deus e presta sempre atenção aos sonhos da mamãe! Não
sejas tão materialista, cuide do lado espiritual para se fortalecer!
Diz para a mamãe que recebi todas as preces e que estou bem, que
não sofri dor, que não estou sozinha, pois o Thiago estava me
esperando, nosso amor já vem de outras vidas. Promete que irá
sempre ver os pais do Vitor e Thiago, eles precisam de vocês, estão
sozinhos lá, fala isso para nossos pais! Vitor disse: - Viveremos o
nosso amor em outra vida, Tatiana! Mas até isso acontecer, viva e
sejas muito feliz! Vais encontrar um bom rapaz, para construir
contigo uma linda família. Vou estar sempre irradiando luz, paz e
muito amor para vocês. Fica com Deus meu anjo! Thiago disse: -
Olha só cunhada, estamos muito felizes e prontos para seguirmos
nossa nova missão! Sempre que nos for possível viremos ver vocês.
Diz para o pai que ele precisa achar um documento, é um seguro de
vida que deixei em nome deles, esta dentro de um livro chamado
Nosso Lar, que eu lia todas as noites. Assim, eles não passarão
dificuldades. Ele não sabe ler, preciso que você me faça esse último
favor. Até um dia Tatiana! Tatiana sonolenta disse:
- Minha irmã querida, você esta linda, linda! Eu prometo, eu
prometo... Balbuciava ela, eu digo sim, eu faço isso... vou lá sim...
eu vou cuidar deles juro... não vai embora... Tatiara...Vitor...
Thiago... agora eu acredito... a morte não existe...
A mãe da jovem profundamente concentrada em oração ao
ouvir a voz de Tatiana, abriu os olhos e viu a luz que por segundos
iluminou o quarto, que estava na penumbra. Viu e sentiu em seu
rosto o beijo suave da filha e viu quando ela e os dois rapazes
Escritos VI 117
sorrindo lhes acenaram, e sumiram na luz que aos poucos foi se
dissipando. Chorando debruçou-se sobre Tatiana que ainda falava,
e agradeceu a Deus e a Nossa Senhora por atenderem as suas
preces! Tatiana se recuperou, saiu do hospital e dias depois junto
com os pais e dos pais dos rapazes encontram o documento e eles
receberam o seguro. As famílias se uniram. Tatiana entrou para o
Espiritismo, lá conheceu um rapaz e se casou. Vive feliz e já tem
um lindo menino chamado Vitor!
Vilma Helaine de Oliveira Ribeiro nasceu em Porto Alegre, em 26/11/1958. É Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Cursa Pós-Graduação em Assessoria Linguística, na FAPA. 1º lugar no Concurso Moacyr Scliar, com o conto Menino de Rua, recebendo das mãos do imortal o certificado. Ama incondicionalmente o Universo das Letras! Facebook: veorribeiro.
E-mail: [email protected].
Escritos VI 118
COMPANHEIRA Vilson Quadros Santanense
Companheira brasileira
De nome chamado coração, coração
Que eu queria ter uns quantos
Pra viver dois mil e tantos
Somente com você
Companheira brasileira
De nome chamado agora, agora
Que não terei mais que ir embora
Que serei teu a toda hora, a toda hora
Companheira brasileira
De nome chamado futuro, no futuro
Que o nosso amor
Será ainda mais seguro
Que uma flor plantada na montanha
Já cruzamos por tanta terra estranha
Companheira brasileira
De nome chamado coração, coração
Que eu queria ter uns quantos
Pra viver dois e mil e tantos
E depois dois mil e dois
Com a companheira brasileira
De nome chamado amor
Escritos VI 119
MORADA Vilson Quadros Santanense
Pra minha mora
Sempre volto ao fim da tarde
Pois a minha amada
Me fez um trecho de saudade
A minha morada
É o melhor lugar que já
Pois a minha amada
No colo vai me carregar
Na minha morada
Vivemos com felicidade
Pois a minha amada
É a minha outra metade
Na minha morada
Vivo bem cada segundo
Pois a minha amada
Me dá o melhor amor do mundo
Vilson Quadros Santanense é poeta, musicista, contador de histórias, diretor, ator e roteirista de filmes de curta-metragem. Membro fundador e vice-presidente da AGEI e associado do Partenon Literário. Tem sete livros publicados e participação em mais de cem coletâneas.
Escritos VI 120
A VIDA NÃO SE MODELA Virginia H. Vianna Rocha
Janela aberta à agonia,
ao corte exato do rio,
eco, grito. Alerta
à beleza. Adelgaça a vida
ao voo sereno d'asas.
Ao passe
do prêmio à graça de ser.
Transpassa
o sopro do tempo
nos guizos. Alvorecer
- alvo,
alvor,
ser arte e ofício tecido
nas manhãs de maçãs maduras.
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ÁGUAS DEVOLUTAS Virginia H. Vianna Rocha
Despejo d‟águas internas
– bolsa rota
encerra reino único, solidário
à germinação do sêmen. Vida.
- Inspiras
outorgas ao corpo frágil,
- desvalido sem amparo,
Aconchego ao transitório percurso.
- Desterro
Quando cessa a busca e, ao fim,
- Expiras.
Lava-se o corpo nos rituais antigos,
- águas devolutas à represa.
Escritos VI 121
AEDO Virginia H. Vianna Rocha
Eis-me aqui.
Quebrei relógios; m‟entreguei às águas
balbuciantes do parto em longas vagas
d‟incerto tempo em determinado destino
- manhãs entretecidas.
Despojo-me às cores esparramadas
em desconstruído arco-íris
- arcabouço de formas.
Máquinas, vozes. Silêncios
- calabouço definitivo.
Eis-me aqui.
Entrelaçada à terra intermediária
- crepúsculos alvorecidos.
Peregrina na terra, tempo, vida.
Eis-me aqui
onde o vento sopra e envia-me a mim.
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TROPEANDO Virginia H. Vianna Rocha
Chimarrão é trago longo
de amargo travo quente.
Típico espasmo nas lidas
duras do peão na campanha.
Na cidade, saudade agarrada ao peito
levada ao sol nos parques.
Chega, em paz, quem sorve com outro,
na roda do amargo verde.
Casquejam penúrias do tempo
se seca ou geada lesou o pasto
e o sorgo, por igual, não viceja.
Escritos VI 122
Louvam, se troveja ao engorde
no pastoreio das crias. Benfazeja chuva.
Nas beiras, a Lagoa dos Patos,
mar doce encerrado goteja
e sangra nas calhas de arroz.
Tenho o verde do pampa
por escolha ou destino.
Além-ladeiras, riscado de sapatas,
trilho ladrilhado de jacarandás e ipês.
sombreado sobre agreste pedra. Muros.
Estranhamento de gente alheia nas vias.
Fora do bairro habita a cidade nua.
Numa delas cresci.
O rio, nos recortes do muro às enchentes,
espia no alto dos prédios ao poente.
Madrugada crua e vazia, nascente
onde correm operários ao trabalho.
Tudo adiante, além, é pampa
às margens de onde nasci.
Nostalgia, no canto, infância
Não sei onde deixei ou perdi.
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D’ AS PEDRAS DO REINO Virginia H. Vianna Rocha
Pedras guardam segredos à espera
de quem desvele enredo subsumido
ao leito ressurreto em agruras. Moedas
ou escambos, resgate cru de sal.
Sebastiano mundo naufraga na miséria
de corpos carcomidos ao sol. Sobrevivo
ao escancaro da fartura d'outra terra.
Quase desnudo míngua o homem.
Desperta ao reino em pedras esculpido.
Escritos VI 123
Trono de sono. Incansável busca a espera
do que ao ser vivo prometido. Não
fogo em queima de bem-aventuranças.
Confirmam falanges, mudas e cegas,
enternecidas.
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TEMPO Virginia H. Vianna Rocha
I As coisas findas não desaparecem
sim
ples
men
te
descansam ocultas n‟outras
Anoitece.
A
noite
tece.
II À tessitura obscura da noite
Alvorada.
Alvo
Ra
dá
aos doze fios outros doze.
Metades desiguais. Único dia.
III Com o tempo, porque da vida
cada um conhece seus medos,
- revela-se aos próprios mistérios.
Tal como ondas às profundezas
Escritos VI 124
- inaugura-se em recomeço.
E ao seguir as correntes
- solidário consigo mesmo –
cumpre solitário destino
- outorga à condição humana.
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Quelqu’un m’a dit Virginia H. Vianna Rocha
Anjo cruza infinito azul
oposto ao marinho risco divisório
- aparente linha aos olhos.
Além
massa uniforme. Mescla confunde
mágoa /má água/ naufragada
arpejo /ar pejo/ estrangulado
despregam-me da inocência
Marulho d‟asas liquefeitas
- volúpia consentida ao beijo.
Não és anjo e, sim, desejo
Se nua pertenço ao corpo
Tenho tão pouco,
como debaixo das unhas.
Virginia H. Vianna de Hannequin Rocha, natural de Santana do Livramento/RS, nascida em 05/08/1945, residente na Rua André Puente nº185, apto. 803, Porto Alegre/RS. De ofício: advogada. Participação em Publicações Coletivas: Grêmio Literário Castro Alves – 50 anos, Org. Silvia Benedetti/ Oficina Sindaf (Sindicato dos Auditores Fiscais do RS), “Amor a Porto Alegre”, coordenação Hilda Simões Lopes Costa/ Oficina de Criação literária Alcy Cheuy – “Entre o Sena e o Guaíba” / Poemas n’arvores, Org. Benedito Saldanha. E-mail: [email protected] .
Escritos VI 125
SEPARAÇÃO Zé Augustho Marques
Que retorne o canibalismo
com seu mecanismo
de dentes do cinismo
sem o menor sentimentalismo
Que venha o caos
e sua antropofagia
com seus maus à revelia
e nos leve
a toda selvageria
ao som da morte,
e a dor da monotonia
Pois já não buscamos
O mais da poesia...
Maio 2014
Zé Augustho Marques é poeta, crítico de artes, colunista dos jornais Fala Brasil, RSLetras, Revista Caosótica, Revista de Artes Plásticas Dartis. Mantém um blog de cultura e tem nove livros publicados. Blog: www.zepoesia.blogspot.com E-mail: [email protected]