ESCRITURA EM HIPERTEXTO: UMA ABORDAGEM DO …

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RAQUEL RITTER LONGHI ESCRITURA EM HIPERTEXTO: UMA ABORDAGEM DO STORYSPACE Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica PUC/SP São Paulo 2004

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RAQUEL RITTER LONGHI

ESCRITURA EM HIPERTEXTO:UMA ABORDAGEM DO STORYSPACE

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica

PUC/SP

São Paulo2004

RAQUEL RITTER LONGHI

ESCRITURA EM HIPERTEXTO:UMA ABORDAGEM DO STORYSPACE

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica

PUC/SP

Tese apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de São Paulo,como exigência parcial para obtenção do título deDoutor em Comunicação e Semiótica – Signo eSignificação nas Mídias – sob a orientação do Prof.Dr. Arlindo Ribeiro Machado Neto.

São Paulo2004

FOLHA DE APROVAÇÃO

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_____________________________________________

Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a

reprodução total ou parcial desta Tese por processos de fotocopiadoras ou

eletrônicos.

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Raquel Ritter Longhi

São Paulo, outubro de 2004

RESUMO

Este trabalho tem o objetivo de analisar a escrita em hipertexto

através de um programa de computador, o Storyspace, e de duas obras

com ele criadas: Afternoon, a story (Michael Joyce, 1992) e Patchwork Girl

(Shelley Jackson, 1995). Entendemos que, como tecnologia de escrita, o

hipertexto deve ser estudado do ponto de vista de suas características

técnicas e de como elas influenciam as escritas nos meios digitais e as

novas poéticas desses meios.

O primeiro capítulo apresenta o programa Storyspace, discorrendo

sobre suas características no sentido de como elas interferem na criação.

O segundo capítulo procura definir poéticas digitais, levantando

especificidades, tais como a intermídia ou fusão conceitual, a materialidade

da escrita e a metalinguagem.

O terceiro capítulo faz uma análise de Afternoon, a story, de Michael

Joyce, observando particularidades como seu pioneirismo na criação de

ficção em hipertexto.

O quarto e último capítulo traz Patchwork Girl, de Shelley Jackson,

examinando algumas de suas características, como a obra que interroga

sua própria tecnologia de inscrição.

ABSTRACT

This work aims to analyse hypertext writing through the software

Storyspace, as well as two works in that application, Michael Joyce’s

Afternoon, a story (1992), and Shelley Jackson’s Patchwork Girl (1995). We

think that since hypertext is a writing technology, it must be understood from

this technical aspects, and the new poetics that it is able to produce.

The first chapter presents Storyspace, the software, talking about its

technical aspects, and how that collaborates in the literary creation.

Second chapter intends to define digital poetics, bringing up some

aspects, like intermedia, or conceptual fusion and the materiality of writing.

Third chapter makes an analysis of Michael Joyce's Afternoon, a

story, observing some aspects, like its originality.

Fourth chapter brings Shelley Jackson's Patchwork Girl, and

examines some features, like hypertext which talk about hypertext, or, in

other words, the work which asks for its own inscription technology.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................... 10

1 STORYSPACE, UM PROGRAMA DE ESCRITA ................................ 161.1 Onde está a qualidade? .............................................................. 231.2 Características do programa de escrita ....................................... 251.3 Código fechado ........................................................................... 34

2 HIPERTEXTO E CRIAÇÃO – POÉTICAS DIGITAIS .......................... 382.1 Estruturas circulares .................................................................... 472.2 O círculo e a criação .................................................................... 492.3 Tela do computador, espaço de escrita ...................................... 532.4 Atualização e não-linearidade ..................................................... 542.5 Meio, mensagem, técnica ............................................................ 552.6 Intermídia, fusão conceitual ......................................................... 592.7 Antecedentes e referências ......................................................... 642.8 Poesia virtual, pattern poetry ....................................................... 662.9 Poesia total .................................................................................. 672.10 Remediation ................................................................................ 692.11 O Hipertexto que fala sobre o Hipertexto .................................... 732.12 Interrogando a materialidade da escrita ...................................... 74

3 AFTERNOON, PIONEIRO .................................................................. 773.1 A leitura produz um original ......................................................... 793.2 Paralelismo, associação, não-linearidade ................................... 833.3 Estranhamento e desorientação .................................................. 913.4 Anti-narrativa ............................................................................... 933.5 O leitor e a materialidade do texto ............................................... 953.6 Um jogo de leituras ...................................................................... 96

4 PATCHWORK GIRL – O HIPERTEXTO COMO METÁFORA ............ 1014.1 Engajamento total ........................................................................ 1064.2 Navegação intermídia .................................................................. 107

CONCLUSÃO ........................................................................................... 114

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 116

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 O Storyspace em Remediation ...................................... 18

FIGURA 2 Página inicial de Afternoon, a story ............................... 20

FIGURA 3 Uma das formas de organização dentro do Storyspace:espaços de escrita e suas conexões por links e espaçode edição textual ............................................................ 26

FIGURA 4 A lista de links do Storyspace, em Afternoon, a story ... 27

FIGURA 5 Storyspace Map View .................................................... 31

FIGURA 6 Chart View ..................................................................... 32

FIGURA 7 Outline View ................................................................... 33

FIGURA 8 As possibilidades combinatórias no livro de RaymondQuèneau, que se dão pela seleção e combinação das“tiras” de texto ................................................................ 46

FIGURA 9 As páginas inovadoras de Sterne .................................. 58

FIGURA 10 Ilustração de Higgins sobre intermídia (HIGGINS,1984) .............................................................................. 62

FIGURA 11 A consciência do meio em Patchwork Girl, através dasimagens dos mapas de visualização, e ilustrações etextos da hiperficção ...................................................... 70

9

FIGURA 12 Espaço de escrita de Afternoon, a story. Na parteinferior, os “botões” de navegação – Y, N, e as opções:Links (para verificar os links), History (para ver ohistórico dos espaços percorridos na atual leitura;Bookmark (na forma de clips), adicionar notas(representado por uma folha escrita) e back,representado por uma seta ............................................ 86

FIGURA 13 O espaço de escrita [midwife], no qual Joyce fazreferência direta e Laurence Sterne .............................. 90

FIGURA 14 A lista de links que partem do espaço [I want to say],de Afternoon, a story, inclusive os guard-fields ............. 100

FIGURA 15 Imagem de um mapa de visualização de PatchworkGirl, com os pequenos retângulos que inspiraramShelley Jackson ............................................................. 102

FIGURA 16 O espaço [her], mostrando o corpo marcado com suassegmentações, em Patchwork Girl ....................... 107

FIGURA 17 Neste espaço, a ilustração do cérebro tem subdivisõesclicáveis, que levarão a outros espaços de escrita emPatchwork Girl ............................................................... 108

INTRODUÇÃO

Há uma transformação gradativa das técnicas de escrita. Isto pode

ser verificado pela evolução da criação literária. Pode-se afirmar que há

uma transformação na cultura e nas artes que é geral, refletida na literatura.

O impresso rompeu com um modelo anterior de escrita, o manual. O digital

rompe com o modelo impresso.

O fato de a literatura estar encontrando nos meios digitais um

espaço de criação tem sido objeto de estudo de vários autores. Ligado ao

concomitante aparecimento do hipertexto, o tema literatura eletrônica tem

sido analisado em duas linhas de pensamento: aquela que aproxima a

teoria literária – e, junto com ela, o pós-estruturalismo – da criação literária

em hipertexto, e aquela que intenta criar conceitos novos para dar conta do

que pode ser um novo fazer criador da literatura. Em suma, uma

aproximação ao tema utiliza-se de conceitos ligados ao universo da cultura

impressa, enquanto outra vertente busca criar novos conceitos para forjar a

teoria da criação literária em meios digitais.

Na primeira ponta, estão autores como G. P. Landow, David Bolter e

Michael Joyce. Eles procuram explicar a criação literária em hipertexto

através de conceitos estabelecidos pela cultura do livro impresso, o que dá

margem a críticas, às vezes contundentes, sobre a efetividade da utilização

de tais paradigmas na análise da criação em hipertexto, já que um meio

novo e uma linguagem nova exigiriam, também, conceitos novos e novos

modelos de referência para serem analisados.

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A outra parte, que tem à frente autores como Aarseth, Hayles,

Glazier, procura analisar a criação poética digital nos novos meios a partir

da materialidade própria do meio, ou seja, reconhecendo as características

específicas do meio digital e assim as nomeando.

Nós iremos, neste trabalho, estudar o hipertexto através de um

programa de computador, o Storyspace, e duas obras com ele criadas:

Afternoon, a story (de Michael Joyce, 1992) e Patchwork Girl (de Shelley

Jackson, 1995). Inicialmente, procuraremos definir as “poéticas digitais”,

que fazem parte deste campo da criação que aparece com o surgimento

dos novos suportes tecnológicos de final do século XX. No Brasil, ainda são

poucos os estudos na área, e esta obra pretende ser uma contribuição ao

tema. Além disso, o Storyspace é um aplicativo para a criação em

hipertexto distribuído comercialmente, e dono de um mercado importante e

consagrado.

A ênfase no programa está sendo dada, porque entendemos que o

Storyspace tem uma participação fundamental na criação literária em

hipertexto. Além disso, no mundo digital, marcado por uma ampla gama de

software de criação, torna-se necessário conhecer o código para melhor

compreender as obras. Isso vem de encontro, na verdade, a uma

indagação do fazer artístico, que predominou na arte do século XX: aquela

relação epistemológica do autor com sua obra, e que, nos meios digitais,

amplia-se para uma conexão entre o autor, a obra e as características

técnicas desta última.

No caso de hiperficções, este tipo de escrita criativa que encontrou

no hipertexto um suporte original, trata-se de reconhecer a materialidade de

que é feita, ou seja, entrar a fundo no próprio texto hipertextual através da

verificação das características de um software como o Storyspace, para

entender mais profundamente e claramente este tipo de obra. Glazier diz

que “ser capaz de ao menos ler o código, pode ser imensamente útil, se

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não, essencial” (GLAZIER, 2003: 26). Para este autor, o código é a cena da

poiesis (idem, p.116) e, neste sentido, nossa exploração do Storyspace

vem colaborar com o estudo da escrita criativa em hipertexto.

Alguns autores, como o já citado Glazier (2003), fazem distinção

entre poesia e prosa no que concerne ao lugar que tais criações ocupariam

nos meios digitais – a primeira tendo prevalência sobre a segunda, pelas

suas características. Diz ele que o texto digital é altamente sensitivo em

cada grão de sua superfície, e isso é o que define a poesia inventiva: a

habilidade para qualquer palavra ou caractere ser parte da ação do texto.

Ele conclui, dizendo que é a poesia que deve ser qualificada unicamente

para servir de lugar para a emergência de novas formas de textualidade

digital (GLAZIER, 2003: 95).

É justamente por levar em conta características que definem as

chamadas poéticas digitais, dentre elas, a redefinição dos limites entre as

formas da poesia e da prosa, que entendemos não ser correto, como

Glazier sustenta, colocar a poesia no lugar principal da criação poética nos

meios digitais. Isso porque, em primeiro lugar, e antes de tudo, as formas

da poesia e da prosa estão convergindo nestes meios, assim como há uma

imbricação dos conteúdos com seus aparatos técnicos.

Se, na cultura impressa, o limite entre a prosa e a poesia são claros,

isso não acontece no digital, onde uma profusão de novas textualidades

emerge a partir de plataformas (software) diferentes e de distintas maneiras

de se apropriar destas ferramentas. Devemos definir uma forma textual na

tela do computador, que lembra a poesia, como poesia? Devemos enfaixar

a prosa do hipertexto criativo na categoria da prosa literária? Ou quem sabe

deveríamos buscar novas definições para estas categorias, levando em

conta as características desses meios?

Conforme Glazier, a materialidade é importante porque a escrita não

é um evento isolado de seu meio, mas é, em vários graus, um engajamento

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com este meio. Esta preocupação com o material tem sido um elemento

constante na literatura moderna e contemporânea, e altamente relevante

para a poesia nos meios digitais (GLAZIER, 2003: 23). Mas estamos

falando em suportes digitais, e, portanto, necessitamos de novos conceitos

para dar conta de características que são, certamente, diferentes, se não

opostas, ao suporte impresso, ou físico. No mundo dos bits, falar em

materialidade pode soar estranho, e assim é.

Optamos, então, por utilizar outras denominações para o que seria a

materialidade do meio impresso, que, para o virtual, emprestamos de Bolter

e Grusin (1999), que analisam as formas como os meios digitais se

apropriam dos seus anteriores, através de um jogo entre o apagamento da

presença do meio, que definem como immediacy, e a consciência da

presença do meio na forma de representação, a qual os autores chamam

de hypermediacy. Tal lógica seria constatada no modo como o próprio meio

se dá a conhecer, ou seja, à medida que torna visíveis suas características

específicas, ou as esconde, segundo os autores. O que Glazier e Hayles

denominam materialidade, portanto, para nós pode ser definido como as

características técnicas dos meios, termo que também utilizaremos neste

trabalho.

Para ficarmos dentro de parâmetros mais atualizados de reflexão e

análise da cultura digital, portanto, vamos examinar Afternoon, a story e

Patchwork Girl do ponto de vista da influência do hipertexto, enquanto

suporte de escrita, na narrativa destas obras.

A busca pela consciência da presença do meio podia ser constatada

na literatura do final do século XVIII nos escritos de Laurence Sterne, por

exemplo, nos quais a utilização criativa da tipografia constituía o diferencial

de obras como A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1760-

67); no campo da poesia, Mallarmé instituiu a preocupação com a

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materialidade, esta, da página impressa, ao jogar com os elementos verbais

e os espaços do suporte da página, no seu Lance de Dados (1897).

A poesia nos meios digitais estende, agora, as investigações acerca

das práticas inovadoras como elas ocorreram nos meios impressos,

tornando possível a continuação de linhas de pesquisa e questionamento

que não podiam ser contempladas naquele meio (GLAZIER, 2003).

Na poesia, o exemplo de Mallarmé é fundador, enquanto que, na

prosa, as obras de Edgar Alan Poe, Jorge Luis Borges, Laurence Sterne e

Alain Robbe-Grillet servem como referências para se pensar o hipertexto e

as suas características, especialmente a multiplicidade e a narrativa

labiríntica. A relação entre a palavra e a imagem que faz Apollinaire em

seus Calligramas, no início do século XX, mostra este tipo de continuidade.

Esta relação é sublinhada porque as letras do poema são arranjadas na

forma dos objetos que evocam. E mais, as letras combinadas a formar

aquelas figuras, interrogam as conotações de cada objeto.

Como tecnologia de escrita, o hipertexto deve ser estudado do

ponto de vista de suas características técnicas e de como elas influenciam

as escritas nos meios digitais e as novas poéticas.

O primeiro capítulo deste trabalho apresenta o programa

Storyspace, discorrendo sobre suas características no sentido de como elas

interferem na criação, especialmente através de obras como Afternoon, a

story e Patchwork Girl.

O segundo capítulo procura definir poéticas digitais, levantando

especificidades, tais como a intermídia, ou fusão conceitual, a materialidade

da escrita, a metalinguagem e as formas das estruturas sígnicas das obras

em contextos digitais.

O terceiro capítulo faz uma análise de Afternoon, a story, de Michael

Joyce, observando particularidades como seu pioneirismo na criação de

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ficção em hipertexto, na sua origem, a partir de uma idéia que necessitava

também de uma ferramenta para lhe dar forma. A origem da obra se dá

com a criação do programa Storyspace.

O quarto e último capítulo traz a estimulante Patchwork Girl, de

Shelley Jackson, examinando algumas de suas características mais

instigantes, como o hipertexto que fala do hipertexto, ou, em outras

palavras, a obra que interroga sua própria tecnologia de inscrição.

1 STORYSPACE, UM PROGRAMA DE ESCRITA

Acabei de me dar de presente uma máquina elétrica.Todos os dias exercito-me em bater durante meia hora, naesperança de me converter a uma escrita mais datilográfica.

O que me levou a esta decisão foi primeiro um exercíciopessoal. Tendo múltiplas tarefas a realizar, às vezes fui obrigado[...] a entregar textos a datilógrafas. Quando refleti sobre isso,fiquei muito incomodado. Sem fazer nenhuma espécie dedemagogia, isso me representou a alienação dessa relação social,em que um ser, o copista, fica confinado perante o mestre a umaatividade eu diria quase escravagista, quando o espaço da escritaé justamente o da liberdade e do desejo. Em suma, penseicomigo: ‘Só há uma solução. Tenho realmente de aprender aescrever à máquina’1.

No mundo da cultura digital, não é muito comum discorrer sobre a

perenidade da obra; obras digitais são criadas e disponibilizadas para

serem usufruídas num determinado período, dentro do qual a evolução

própria do meio e do software prenunciam seu futuro – tão logo surgem as

atualizações nas ferramentas, as obras estão fadadas a serem colocadas

no museu da artemídia.

Uma das peculiaridades quando se fala de obras criadas com o

software Storyspace (Ssp) é justamente sua perenidade. Obras como

Afternoon, a story, da qual falaremos posteriormente, com mais de 15 anos,

se mantêm objeto de fruição e de estudos, especialmente por sua

qualidade e pioneirismo. Diferentemente do que ocorre com a maioria dos

software de criação, as obras em Storyspace retêm um valioso interesse

1 BARTHES, Roland, 2004a: 254.

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além de seis meses ou um ano de seu lançamento. Trata-se de um

programa único em suas peculiaridades, com atributos que, usados na

criação e na experimentação das formas literárias em contextos digitais,

foram – e ainda são – responsáveis por criações de qualidade marcante.

Recentemente, Afternoon, a story, e I have said nothing, de J.

Yellowlees Douglas, foram incluídas na antologia Postmodern American

Fiction: A Norton Anthology, um termômetro que afere e consagra obras

literárias nos Estados Unidos. Pela primeira vez, foram colocadas, naquela

importante antologia, obras produzidas em hipertexto, ao lado de nomes

como William S. Borroughs, Norman Mailer, Thomas Pynchon, dentre

outros, numa coleção que reúne autores inovadores de 1945 a 19972.

A inclusão de obras em Storyspace na antologia citada acima são

sinais de que tal tipo de criação, embora tenha surgido dentro da categoria

de experimentalismo, a está ultrapassando, e entrando para a lista das

obras mais importantes da literatura contemporânea.

Escritores inventivos como Mark Amerika utilizam esse programa

como ferramenta auxiliar na criação. Autor de Grammatron, obra escrita

para a WWW, o autor utilizou o Storyspace para elaborar mapas de

visualização da história e, assim, evitar “perder-se” durante o processo

criativo, como explicou:

Criar estruturas hipertextuais complexas para a WWW éum pesadelo, porque, depois de um certo ponto, não se podevisualizar um mapa cognitivo da obra, que tem milhares de telas elinks. Com o Ssp, pude criar um roadmap com o qual foi possívelvisualizar o conteúdo e os links3.

O guia teórico para Grammatron, Hypertextual Consciousness foi

quase exclusivamente composto em Storyspace, com apenas alguns

adendos específicos da WWW para efeitos.

2 Cf. DOUGLAS, 2000.3 “Storyspace and the making of Grammatron”, in:http://www.eastgate.com/storyspace/writing/Amerika.html

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O Storyspace também foi utilizado por Jay David Bolter e Richard

Grusin na organização do livro Remediation (1999). Embora este fato não

seja citado no livro, Bolter, um dos autores do programa, faz uso do

aplicativo para conceber o livro, como se vê à página 32. Os autores

colocam uma figura que representa o estilo de múltiplas janelas da interface

de computador, servindo para exemplificar o que os autores definem como

a lógica da hypermediacy (que veremos mais adiante), o Storyspace

aparece com um pequeno "mapa de visualização" e também com a divisão dos

conteúdos da obra, logo abaixo, em uma outra janela, esta, de texto (Fig. 1).

FIGURA 1 O Storyspace em Remediation.

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A mesma evolução tecnológica que é responsável por tirar de

circulação software e obras de caráter digital, no entanto, foi a responsável

pela adoção do Storyspace por pesquisadores e escritores, no começo da

década de 90. Este é o caso testemunhado por George Landow,

pesquisador e professor da Brown University. Segundo este autor, o

Storyspace veio preencher uma lacuna deixada pelo desaparecimento do

Intermedia, uma ferramenta desenvolvida pela Apple Computers: o fim do

programa Intermedia foi anunciado quando a Apple alterou a A/UX, sua

versão do Unix, e fez novos modelos de Machintosh incompatíveis com as

primeiras versões de A/UX, ou seja, impossibilitando então o uso do

Intermedia, que era a ferramenta utilizada na Brown para o estudo e a

criação em hipertexto4. Mesmo assim, Intermedia ainda ficou sendo usado

na Brown University por cerca de dois anos, enquanto os pesquisadores

buscavam outro programa que contemplasse algumas de suas

possibilidades de criação em hipertexto. Landow recorda que o Storyspace

podia rodar em qualquer máquina, PC ou Machintosh, e imediatamente

todas as obras produzidas pelos pesquisadores e seus alunos na Brown

foram transferidas para o programa da Eastgate.

O Storyspace foi demonstrado ao público pela primeira vez em

1987, num workshop da ACM – Association for Computing Machinery –,

pelos seus criadores, Michael Joyce, John B. Smith e J. David Bolter. Em

1989, aparece Afternoon, a story, de Michael Joyce, cuja origem está

estreitamente ligada ao desenvolvimento da própria ferramenta, e em 1991

é lançado pela Eastgate o Storyspace5.

4 Dickens Web, um amplo estudo sobre a obra de Charles Dickens, foi uma das primeiras obras autilizar o hipertexto para organizar a informação com fins educativos, com a participação depesquisadores e estudantes da Brown University. A obra foi criada em Intermedia. Com odesaparecimento deste software, foi transferida para o Storyspace, como observa Landow noartigo “The Death of Intermedia and the Migration to Storyspace”, in:http://www.cyberartsweb.org/cpace/ht/jhup/int2.html5 Conforme Mark Bernstein, em comunicação sobre o Storyspace (2002).

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Desde então, o programa tem sido utilizado no ensino da escrita em

hipertexto, em obras de não-ficção, como The Dickens Web, de George P.

Landow, e Socrates In The Labyrinth, de David Kolb, além de na criação,

estudo e análise de obras literárias em hipertexto. Obras em hipertexto

escritas neste programa continuam a ser lidas e discutidas hoje como há

dez anos, conforme salienta Mark Bernstein (2002: 174), responsável pela

Eastgate. Não é de se estranhar que, na história deste programa, ele tenha

sido visto, muitas vezes, como sinônimo de hipertexto.

FIGURA 2 Página inicial de Afternoon, a story

Refletir sobre um programa de computador e obras com ele

originadas traz uma questão que nos parece ser central, e que diz respeito

ao estatuto do programa de computador em relação ao objeto estético. O

exemplo de Michael Joyce e a criação de Afternoon parece ilustrar muito

21

bem a afirmação de Weizenbaum (em Computer Power and Human

Reason, cit. por RISÉRIO, p.123): “o ato criativo na ciência é equivalente ao

ato criativo na arte”.

No que concerne às criações que se utilizam de programas de

computador, isso parece paradigmático. Em primeiro lugar, é importante a

indagação: até que ponto aquele que cria um programa de computador que

traz em si o gene da sua própria transformação em produtos estéticos,

como é o caso do Storyspace, não estaria dando origem a um objeto

estético? Nesse sentido, o programa de computador, dada a apropriação

potencial que dele pode ser feita, que resultará em objetos estéticos,

poderia ser considerado, também ele, um objeto estético?

A utilização do meio digital traz novas formas de conceber o ato

criativo, como lembra Barbosa (1996: 109). A relação do artista com a obra

inclui, de forma definitiva, a máquina. Às duas fases complementares do

processo criador citadas por Barbosa (1996: 110) – a da concepção e a da

realização – adicionamos uma terceira: a criação da ferramenta necessária

para concretizar a idéia inicial, que é o caso da criação do Ssp.

Temos aí pelos menos duas visões da origem do programa

Storyspace como objeto estético, que é a sua criação enquanto ferramenta

para colocar em prática uma idéia de obra, e a sua própria potencialidade

criativa, a ser explorada por outros artistas. Barbosa ainda salienta, a esse

respeito, que: “Sucede então que a relação artística, que era uma relação

comunicativa direta entre um autor e um receptor, apenas mediados pela

obra, passa a ser uma relação comunicativa indireta onde um mecanismo

cibernético se interpõe [...]” (1996: 110). A interferência do suporte é de tal

forma definitiva, no caso do Ssp, que cada obra neste programa trará junto

consigo um arquivo de leitura, que permite sua fruição em qualquer

computador. O leitor pode não só ler, como também fazer anotações,

22

utilizando a obra como uma espécie de “modelo”, um original que pode ser

alterado.

O artista que, para dar forma a uma necessidade criativa, concebe

um programa, como é o caso de Joyce, é também um técnico. Como

técnico, Joyce cria um objeto tecno-estético, poderíamos afirmar, e como

artista, da mesma forma. Joyce não é um técnico, porém, no sentido estrito

da palavra, mas pode ser, de longe, considerado um artista criador.

Concluindo: não seria este ato, que envolve desde a criação do programa

até a criação da obra, um ato artístico?

“O ato criativo na ciência é equivalente ao ato criativo na arte”,

voltamos a mencionar. A partir do momento em que criou o objeto técnico

para dar forma a sua idéia, Michael Joyce está nas duas pontas do

processo criativo, que podem ser unificadas numa só instância.

Notemos que o ato criativo, neste caso, envolveu um antes e um

depois da criação da ferramenta. É como se Van Gogh tivesse criado a tela,

as tintas e os pincéis com o único objetivo de concretizar seus quadros.

Voltando a este processo, não é demasiado afirmar que ele sintetiza a

trajetória da arte que reflete sobre si mesma, como uma metáfora para a

relação da arte com a técnica responsável pela sua criação, em forma de

metalinguagem, como veremos no capítulo quatro.

É quando refletirmos mais profundamente sobre Patchwork Girl, no

capítulo quatro, que veremos uma obra interrogando a tecnologia de

inscrição que a produz. Esse questionamento se dá de várias formas, por

exemplo, através de interrogações sobre a própria natureza da “monstra”,

que é a metáfora para a “criatura”: ela está em permanente questionamento

em relação ao seu autor, um ente que se divide em, pelo menos, três

partes: é, ao mesmo tempo, o autor da obra, o criador do monstro e o

próprio programa de computador.

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Veremos, em Patchwork Girl, um processo criativo que se auto-

referencia, ao mesmo tempo em que interroga seu suporte; a monstra que

reivindica a atenção do leitor inquirindo sobre sua própria natureza, e assim

trazendo para si o papel de sujeito da narrativa, não é mais do que a

personificação do objeto estético criado a partir de um programa de

computador.

1.1 Onde está a qualidade?

Um dos objetivos deste trabalho é mostrar a qualidade literária das

obras produzidas em Storyspace, a partir da análise da obra e do

programa. Ao longo deste processo de pesquisa, entretanto, ficou claro,

para nós, que a qualidade de uma criação está estreitamente ligada à

ferramenta que lhe deu origem. Por isso, o foco também no programa

Storyspace. Temos clareza de que as características desta ferramenta

estão integradas aos produtos e são definitivamente responsáveis pelos

resultados obtidos no processo de criação.

Não fossem tais estratégias criativas, nossa análise poderia ver-se

empobrecida pelo fato de deter-se exclusivamente no resultado, e não na

“causa”. Por isso, é tão profundamente instigante o que Melo e Castro nos

recorda:

Criar será incidir, pesquisando e investigando, sobre aprópria natureza do material pesquisado e investigado. Umaligação entre o produto criado e o método criador se formaindissoluvelmente, estruturando-se na mesma malha de relaçõesrecíprocas. Malha essa cujas relações Jakobson diz tambémdeixarem de ser as da seleção (ou exclusão) para serem as dacombinatória e da reciprocidade (1976: 58).

Trabalhar na análise de obras literárias a partir de sua ferramenta de

criação, no nosso entender, implica fazer a ligação conceitual de duas

instâncias, quais sejam, a idéia (obra) e o objeto de que é feita (o programa,

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ou, em outras palavras, suas características técnicas, ou, conforme alguns

autores, “materialidade”). Tal imbricação entre conteúdo e materialidade

não é mais do que uma tendência da criação contemporânea, que aparece

já a partir das criações da vanguarda literária do século XIX, com Mallarmé

e sua constelação de escrita, ou com a prosa de Laurence Sterne, em A

Vida e as opiniões do Cavaheiro Tristram Shandy, escrita entre 1760 e

1767, e que viria a influenciar autores como Virgínia Woolf, James Joyce e

Samuel Becket6, e da qual falaremos no capítulo três.

É a partir dessas reflexões e do andamento das próprias leituras das

obras, que estabelecemos critérios para servir à nossa exploração relativa à

qualidade das hiperficções e do programa que são objetos deste estudo.

Entretanto, para se verificar qualidades em qualquer tipo de produto,

é necessário estabelecer critérios. Na literatura tradicional, pode-se afirmar

que já existe um corpo teórico consistente de análise e, assim, critérios

mais facilmente identificáveis. No caso dessa pesquisa, em que padrões de

análise ainda estão sendo construídos, com poucas referências já

instituídas, a construção de quadros de referência foi baseada nas

características materiais do texto hipertextual e nas características

“literárias” das obras, em especial, sua construção textual. Desta forma,

contemplamos as duas instâncias discutidas neste tipo de criação literária:

a da literatura tradicional, presente no próprio texto verbo-visual destas

obras, e a da literatura eletrônica, cuja materialidade parece ser um dos

pontos-chave da pesquisa contemporânea na escrita criativa, basta ver

autores como Hayles (2002) e Glazier (2003), por exemplo.

Alguns teóricos ressaltam a necessidade de se ater às

características proporcionadas pelos suportes digitais para a análise crítica

destes produtos. Na nossa opinião, entretanto, tal sugestão não é capaz de

6 De acordo com José Paulo Paes, no prefácio à edição da obra de Sterne para a Companhia dasLetras (vide Bibliografia).

25

abranger a totalidade dos elementos que fazem das escritas criativas no

suporte digital algo surpreendente. Como Bolter e Grusin atestam no seu

estudo Remediation (1999), o novo é a construção que se aproveita do

anterior, remodelando e reajustando formas, e isso não é exceção nas

obras de ficção em hipertexto produzidas em Storyspace.

Se há qualidades a serem detectadas e analisadas, elas estão tanto

no que concerne à escrita em hipertexto, que se aproveita das

características técnicas do seu próprio suporte, como na construção textual,

verbal e, por vezes, visual, que aflora em cada espaço de escrita formado

pela hiperficção.

1.2 Características do programa de escrita

O Storyspace é composto por espaços de escrita que podem ser

conectados por links. O texto de cada espaço de escrita é disponibilizado

na sua própria janela e o programa é capaz de mostrar o conjunto desses

espaços na tela do computador, organizados de acordo com opções do

usuário (Fig. 3). Estas visões podem ser em forma de árvore, sublinhados

ou mapas – este último o preferido dos usuários. O mapa mostra cada

espaço de escrita com os respectivos títulos e cada um dos seus links, o

que permite ao autor adicionar, fazer conexões (outros links) e reorganizar

o todo, movendo os espaços de escrita dentro do mapa de visualização.

Nesse sentido, pode-se dizer que a ferramenta está mais centrada no

processo de escrita do que na apresentação visual, embora os mapas de

visualização sejam, ao mesmo tempo, uma forma de visualizar a narrativa e

uma forma visual de organização do hipertexto.

26

FIGURA 3 Uma das formas de organização dentro do Storyspace:espaços de escrita e suas conexões por links e espaço deedição textual

O Storyspace enfatiza assim a escrita, a conexão entre os espaços

de escrita, os quais podem conter textos, imagens ou outras formas de

representação, e a organização do seu conjunto. Para ligar dois espaços,

basta desenhar uma linha entre eles. Para trabalhar com estrutura

hierárquica, pode-se desenhar espaços dentro de outros espaços e assim

organizar e reorganizar a escrita.

Porém, o que chama a atenção no sistema hipertextual desse

programa é, sem dúvida, o chamado link condicional, ou guard field, que

possibilita links multi-direcionais, ao contrário dos links unidirecionais,

característicos da plataforma hipertextual da WWW, por exemplo. Este é

um atributo que ainda não foi atingido pela plataforma da WWW. O guard

27

field pode levar a vários espaços de informação diferentes entre si. Para a

criação literária em hipertexto, tal característica provou ser fundamental e,

mais ainda, mostrou sua capacidade de fugir das típicas navegações

hierárquicas da WWW.

FIGURA 4 A lista de links do Storyspace, em Afternoon, a story

Guard fields são expressões boleanas baseadas na seleção do

leitor e na sua trajetória prévia de leitura. Tratam-se de comandos que

determinam certas condições para que um link seja ou não acessado

durante a leitura. Eles são possibilitados apenas para a criação e leitura off-

line, ou seja, fora do ambiente da WWW. Alguns exemplos destas

condições garantidas pelos guard fields, são:

28

a) um link somente poderá ser aberto se um outro determinado link

(também chamado “espaço de escrita”) já tiver sido acessado

pelo leitor;

b) um link poderá ser acessado randomicamente. Por exemplo,

uma em cinco vezes: a cada cinco leituras, tal link será aberto

apenas uma vez;

c) um link poderá ser acessado apenas se um outro determinado

link ainda não tiver sido acessado durante a leitura.

Como salienta Bernstein (2002: 173), neste último caso, o guard

field provou ser inestimável para quebrar ciclos de leitura e colaborar em

situar os ciclos e contrapontos no coração da narrativa hipertextual

contemporânea.

Assim, o leitor dispõe de uma estratégia de leitura que vai se

desvelando ao longo de seu contato com o hipertexto. Mais ainda, os links

condicionais, tão logo acessados, mostram que esse leitor se encontra em

um ambiente capaz de permitir maiores possibilidades de ramificações da

narrativa, já que as seqüências dadas pelo mesmo link podem levar a

diferentes espaços de escrita. Isso será um diferencial na construção da

narrativa, é inegável. Quando baseado na trajetória de leitura prévia através

do hipertexto, o guard field oferece links dinâmicos, cujo comportamento

muda conforme o curso da leitura, e isso marca a multi-seqüencialidade da

narrativa.

O que está em questão, porém, não é somente o percurso de leitura

– embora seja interessante especular nesse sentido, já que a estratégia de

leitura faz parte do processo narrativo –, mas a presença potencial de uma

leitura como um processo não-linear, no qual são oferecidas alternativas de

progressão que não são únicas, nem, tampouco, podem ser definidas como

“estáticas”. Neste sentido, o centro de uma discussão sobre o hipertexto

29

enquanto sistema de escrita, ou técnica de escrita, no que concerne à não-

linearidade, tem que ser pensado levando-se em conta esta potencialidade.

Ao leitor, é oferecido um conjunto de alternativas multi-seqüenciais de

leitura, em um espaço descontínuo. Tais opções serão acionadas conforme

suas decisões a respeito dos links a serem seguidos, ou, ainda, no caso

dos guard fields, conforme os trajetos que perfizer na ação de leitura.

Podemos ter, assim, pelo menos duas instâncias narrativas de

importância crucial no processo de escrita em hipertexto, ainda que todas

elas sejam criadas por um autor: aquela que o leitor escolhe e aquela que

ele é levado a perfazer, já que é dada por condições estabelecidas pelo

autor da obra. Para exemplificar, numa obra como Patchwork Girl, que

veremos mais detalhadamente no capítulo quatro, o leitor poderá escolher

entre seguir um link aberto quando clicar no texto ou na imagem, ou seguir

um link listado quando aciona o botão “links”. Por outro lado, este mesmo

leitor, neste mesmo processo de leitura, pode optar por clicar em qualquer

link que seja acionável dentro do espaço de escrita ou da imagem e ser

levado a um espaço de escrita criado por uma condição estabelecida pelo

autor da obra.

O link é o motor do hipertexto. Define a ação do leitor e as

estratégias do autor da obra. No Storyspace, o link é fundamental; a ele são

dados atributos, como os já citados guard fields. Ao autor são fornecidas

facilidades para a criação do link, que incluem toda uma gama de

características, que tendem a enriquecer a narrativa. Uma destas

possibilidades, é a caixa de diálogo do link. Ela mostra todos os links que

se originam do respectivo espaço de escrita, com sua destinação e guard

field, se houver. Também mostra o tipo de link, ou seja, se ele é um link de

texto, gráfico (que parte de uma imagem) ou, ainda, se o guard field pode

ser ativado naquele momento da leitura.

30

Ao criar uma obra com o programa Storyspace, o autor decide quais

os atributos de leitura que permitirá ao leitor. A forma como será lida é

estabelecida pelo autor nas configurações específicas relativas ao arquivo.

Em uma versão do aplicativo, o Storyspace Reader, que acompanha

cada obra em Ssp, estão as especificidades que o autor estabeleceu para

sua obra – e as condições para a visualização dos mapas, por exemplo. O

Storyspace Reader é necessário para que o leitor usufrua a obra neste

programa, mas não permite que o hipertexto seja modificado na sua

origem. Ou seja, enquanto em Afternoon, a story, não é permitida a visão

dos mapas de visualização, Patchwork Girl garante esta possibilidade.

Estes mapas (view windows) mostram como está estruturado o hipertexto

em relação a cada espaço de escrita, seus links e destinações, podendo

ainda mostrar os seus nomes e os textos de cada espaço.

Tal possibilidade vai além da narrativa, podendo ser tomada, antes,

como a estratégia hipermediacy (BOLTER; GRUSIN, 1999), que permite ao

leitor a consciência da presença do meio, através de representações

verbais e visuais. Isso não é nada mais do que mostrar a matéria de que é

feita o hipertexto, ou seja, sua natureza mais fundamental, sua estrutura de

ligações e conexões entre links e seus espaços de escrita. Enfim, trata-se

da materialidade do texto, tornada presente ao seu leitor e usuário.

A fascinação com o meio, conforme os mesmos autores, que tem

uma história como prática representacional e lógica cultural (BOLTER;

GRUSIN, 1999: 31), é evidente nos meios digitais contemporâneos, com

suas características de múltiplas janelas (windowed style) e conteúdos. Tal

multiplicidade leva o usuário repetidamente a ter contato com a interface, e

o leitor oscila entre manipular as janelas e/ou examinar seus conteúdos,

conforme os autores (BOLTER; GRUSIN, 1999: 33).

No Storyspace, as janelas de visualização podem ser

disponibilizadas de quatro maneiras, sendo três delas muito úteis para a

31

navegação: o Storyspace map (Fig. 5) mostra os espaços de escrita como

caixas retangulares, podendo exibir ainda a ligação entre eles, os nomes

dos links e os seus textos; o chart view (Fig. 6) mostra a estrutura sem as

informações sobre os links e o outline view (Fig. 7) mostra resumidamente a

lista de espaços de escrita.

FIGURA 5 Storyspace Map View

32

FIGURA 6 Chart View

33

FIGURA 7 Outline View

Para o leitor, trata-se de mais informação sobre o hipertexto. Ao

clicar sobre as setas que ligam dois espaços de escrita no Storyspace Map

View, por exemplo, pode-se ver uma janela com informações sobre aquele

determinado link, como seu nome e destinação.

Ao possibilitar que se possa ver o mapa do hipertexto e vê-lo de

várias formas – dispostas na mesma tela, em pequenos espaços de escrita,

alinhados em uma lista, ou ainda como um diagrama –, o programa mostra

uma estrutura em sua própria construção. Mostra as ligações, os links entre

espaços de texto. Isso possibilita, ao mesmo tempo, uma visão geral da

escritura como um todo, que não era percebida, pelo menos de imediato.

Tal visão de conjunto deixa clara a presença do texto, ou seja, apesar da

consciência de que se trata de um texto virtual, que toma existência

34

concreta somente quando acessado, pode-se vê-lo, disponível junto a um

conjunto de outros textos. O mapa do hipertexto em Storyspace mostra que

o virtual pode ser real, mas é, principalmente, o que se pode ver, o atual. E

assim se efetiva a obra que se mostra, que se interroga a si mesma,

fazendo do jogo materialidade versus significação, uma mistura do objeto

do qual se fala com o objeto pelo qual se fala.

1.3 Código fechado

O Storyspace nasceu da necessidade de um autor em criar uma

ferramenta que lhe permitisse construir uma narrativa baseada

especificamente na multi-seqüencialidade.

Quando Michael Joyce participa da criação do Storyspace, junto

com J. David Bolter e John B. Smith, ele está preocupado em dar forma a

uma obra literária, talvez mais do que a um programa de computador.

Afternoon, a story surge desta preocupação e concomitante com a criação

da própria ferramenta que lhe dá origem concreta. A obra é publicada em

disquetes antes mesmo que o Storyspace tenha sido lançado. Enquanto um

programa de criação em hipertexto, Storyspace surge depois do

lançamento da hiperficção de Michael Joyce. Neste sentido, é possível

vislumbrar a gênese do Storyspace como programa de código aberto, ainda

que somente na sua origem. Para criar Afternoon, a story, Joyce manipulou

todas as possibilidades de um programa de computador em construção.

Desta forma, a hiperficção Afternoon, a story não é apenas uma das

mais exemplares obras do gênero, mas também a manipulação do código

de um aplicativo no momento de sua própria gênese – uma obra-prima fruto

da originalidade na produção e no uso da ferramenta. Esta questão pode

servir para uma discussão sobre a relação do artista com a técnica que lhe

proporciona a criação, como vimos anteriormente. Mas também mostra, de

35

forma exemplar, a relação do artista criador com a liberdade na invenção, a

partir de sua própria relação criativa com a ferramenta. O que Joyce faz não

é somente dominar a técnica narrativa literária, mas a própria ferramenta,

além de ter um controle do hipertexto, tanto do ponto de vista conceitual

quanto técnico.

O Storyspace tem algumas limitações, entretanto, que, se não são

suficientes para o excluírem do rol de criações históricas na literatura em

hipertexto, atestam, por si só, um momento da criação literária experimental

em hipertexto. Ou seja, ainda que sejam consideradas importantes para a

criação, tais características tornam o aplicativo apto a um enquadramento

específico dentro do panorama das ferramentas para a criação com os

meios digitais.

Talvez a principal destas limitações seja o código “fechado”, o que

permite pouca interferência do autor a favor de um resultado que vai além

do que a ferramenta oferece.

Uma interação maior com o aplicativo, entretanto, que se detém

muito mais no seu código do que nas possibilidades que ele oferece de

antemão, é uma tendência emergente da criação na chamada software-art,

ou “arte-programa”, segundo Beigelmann (2003: 41).

Programas de código fechado como o Storyspace estão localizados

em uma determinada fase do desenvolvimento da criação, em que a

interferência do artista se dá em muito maior medida na forma de utilização

do programa, do que na manipulação do seu próprio código de

programação.

Mas, que dizer daquele que criou o programa? Trata-se, também,

de um artista?

Neste sentido, pode-se entender uma ferramenta como o

Storyspace como um objeto estético? Na opinião de Terry Winograd, um

36

programa de computador é uma criação artística. Este autor observa o

fascínio em comparar os diversos programas de inteligência artificial com a

personalidade de seu criador, “que se reflete no seu robô como a do

romancista em sua obra” (WINOGRAD, apud RISÉRIO, 1998: 120).

Pois agora, nos fins do século XX, temos a criação de aplicativos

com o objetivo da criação estética, como é o caso do Storyspace. Há uma

via de duas mãos na relação do programa com suas obras, como se vê

numa leitura mais atenta de obras como Patchwork Girl e Afternoon, a

story. Na primeira, por exemplo, esta relação é personificada intimamente

entre o objeto e seu criador, a “monstra” e o autor, conexão que

poderíamos estender para a obra e o programa que lhe dá origem, porque

o tratamento metafórico dessas instâncias constitui a principal característica

da obra, como poderemos ver mais amplamente no capítulo quatro. O

criador está conectado com sua criatura, através das alusões a sua própria

materialidade, ou seja, o hipertexto.

Pode-se ver esta obra em Storyspace como um objeto estético

segundo, porque originado de um primeiro, o programa ou ferramenta. Tal

como numa relação dialética, na qual uma instância produz outra seguinte,

ou, ainda, uma linha de evolução da criação técnica, embora não implique,

necessariamente, no surgimento de um objeto “melhor” do que o anterior,

mas tão interessante quanto, só que diferente.

O fato de os artistas subverterem os códigos dos programas de

computador para criar obras estéticas não seria um intervenção em vias de

transformar a ferramenta em objeto estético? Ou, por outra, o fato de um

programa de computador permitir uma interfer6encia criadora, como a que

estamos vendo acontecer nos mais recentes experimentos em arte e

tecnologia, não será um sinal de que tais programas são, de saída, objetos

estéticos?

37

Veja-se, por exemplo, a origem da videoarte, com o trabalho de

Nam June paik: quando o artista coreano distorce a imagem do tubo

iconoscópico com ímãs, circuitos alterados e processadores de imagem

(MACHADO, 1996) ele não estaria desvendando, naquele objeto (TV) uma

sua potencialidade para o exercício criativo? Desta forma, não estaria aí a

presença em potencial do objeto estético no aparato técnico?

É certo que a criação do objeto estético vai ocorrer com a

interferência do artista, seja utilizando o programa dentro de suas

possibilidades dadas, seja subvertendo alguma dessas características.

Mas, o que dizer no caso do Storyspace, quando vemos que um de seus

criadores, Michael Joyce, concomitante com a criação da ferramenta, dá

origem a uma obra como Afternoon, a story? Se vislumbramos o ato

criativo, veremos que se trata de um impulso similar, seja na criação da

obra, seja na criação da ferramenta. Ainda que se possa estabelecer

diferenças de timing entre essas duas instâncias, a essência do ato criativo

permanece intocável e insubstituível.

Enfim, a relação da ferramenta com a origem da obra de arte

merece ser analisada mais amplamente, o que pretendemos fazer neste

trabalho, não esquecendo que as características técnicas do programa

terão profunda influência na obra criativa.

2 HIPERTEXTO E CRIAÇÃO – POÉTICAS DIGITAIS

A literatura só pode viver se se propõe a objetivosdesmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades derealização. Só se poetas e escritores se lançarem a empresas queninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a teruma função7.

O signo verbal que compõe as criações poéticas nos meios digitais

pode ser definido como um “signo em profundidade”: vertical, espesso, cuja

espessura resulta de camadas de signos embutidos em palimpsesto,

gerando simultaneidade de informação e tendendo a ou sendo um

ideograma – um ícone (PIGNATARI, 1987: 102-103).

A característica do palimpsesto já foi verificada em obras

hipertextuais, por exemplo, por Michael Joyce, que observa que o texto

ocupa cada tela apagando sua anterior, como num palimpsesto, no qual o

que se escreve num dado momento apaga o que foi escrito anteriormente.

Tais signos geram uma explosão de informação, tendem a ser ícones e,

ainda, têm a característica da multiplicidade – expandindo-se em várias

alternativas de significação; da transgressão – fornecem outros sentidos às

atividades de leitura e de escrita; da auto-referenciação, ou de uma relação

epistemológica consigo mesmos – como o hipertexto que se utiliza da

metalinguagem, entre outros elementos que discutiremos neste capítulo.

7 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio, p.127.

39

Como lembrou Genette, o estudo estrutural da “linguagem poética” e

das formas de expressão literária em geral não pode prescindir da análise

das relações entre o código e a mensagem (GENETTE, 1972: 150-51).

Entretanto, sendo estreitamente imbricados nos meios digitais, e em

especial nas hiperficções que analisaremos neste trabalho, código e

mensagem tornam-se uma só entidade, cujas relações orgânicas de

significado virão a enriquecer o estudo das obras literárias de hipertexto de

ficção. Tornam-se, assim, um tipo de mensagem que, como disse Roman

Jakobson (s.d.), toma a sua própria forma por objeto, ultrapassando

conteúdos. Para este autor, é isso que vai definir o literário como “poético”.

No meio digital, a leitura se dará como feixe de possibilidades,

potencializações de opções latentes, atualizadas pelo ato de ler. Mas não é

somente no que concerne à estrutura orgânica do texto que veremos uma

função definidora da leitura nas poéticas digitais. Obras como Patchwork

Girl, por exemplo, retomam um caracter de erotização conferido à leitura

por Roland Barthes. Inspirado em Lacan, o autor francês escreveu que, na

leitura, há um erotismo relacionado ao desejo – “na leitura, o desejo está

presente junto com o seu objeto, que é a definição do erotismo”

(BARTHES, 2004: 36). A obra de Shelley Jackson torna aparente uma

relação erótica entre seu objeto, a escrita, e a própria história do

personagem principal, especialmente porque a “monstra” se refere, na

maioria das vezes, em primeira pessoa, como se estivesse querendo forçar

um contato íntimo com o leitor, através da escritura.

Também se pode constatar, na leitura desta hiperficção, algo que

Barthes classificou como “tipos de prazer de ler” (2004: 38). Primeiro, o

leitor tem, com o texto lido, uma relação fetichista: tira prazer das palavras,

de certas palavras, de certos arranjos de palavras; o que seria um tipo de

leitura metafórica ou poética; o segundo modo é o extremo oposto, e diz

respeito ao prazer metonímico da narração, que “puxa” o leitor para a

frente, faz com que o mesmo não suporte esperar pelos desfechos, que

40

não agüente o suspense da narrativa; e, finalmente, a terceira aventura de

leitura, que é a da própria Escritura (sic): “a leitura é condutora do Desejo

(sic) de escrever” (2004: 39). Ele continua: “Desejamos o desejo que o

autor teve de escrever, ou ainda: desejamos o desejo que o autor teve do

leitor enquanto escrevia, desejamos o ame-me que está em toda escritura”

(2004: 39).

Numa leitura de Patchwork Girl, a relação do leitor com a obra será

tanto mais erótica quanto maior for se percorrendo as diversas lexias. Uma

relação produtiva, portanto, que suscitará sempre o desejo de também

escrever, o que se faz através da leitura que “escreve” seu trajeto, como se

estivesse tecendo uma outra obra.

Buscar compreender o signo poético nos contextos digitais é o

primeiro passo para entender a criação literária nesses meios, marcadas

por uma explosão de novas roupagens para a palavra, a imagem e o som.

Tudo isso vai influir no que se define como "poética digital" e, mais ainda, a

forma como estes signos – verbais, imagéticos, sonoros – vão se relacionar

nos novos meios. Esta relação inclui características como a intermídia, que

discutiremos neste capítulo.

O que se entende por “poéticas digitais”, ou “poéticas tecnológicas”

diz respeito, em primeiro lugar, à linguagem como tecnologia, talvez a mais

avançada de todas, segundo Machado (1996). Abraham Moles (1990)

ressaltou a importância da estética informacional, relacionada com as artes

ótica, cinematográfica e à arte por computador, derivados, todos, da

combinatória e do que ele definiu como Arte Permutacional (1990: 36). Na

criação literária, o texto visto como um “campo de possibilidades”, marcado

pela vertente da combinatória, consagra-se a partir da década de 50,

embora tal potencialidade expressiva sempre tenha feito parte da poesia de

todos os tempos, como salientou Machado:

41

Num certo sentido, podemos dizer que toda literaturaplenamente realizada é uma literatura potencial, e cabe àsgerações sucessivas ir revelando essas possibilidades latentesque os próprios contemporâneos de cada obra muitas vezes nãopuderam perceber. [...] A diferença introduzida pelos textospermutativos é que neles a pluralidade significante é dada comodispositivo material: o leitor não apenas os interpreta mais oumenos livremente, como também os organiza e estrutura, ao nívelmesmo da produção (1996: 180).

As poéticas digitais, portanto, têm na sua gênese a característica da

combinatória entre seus elementos, onde a ação da troca é significativa, e

caracteriza um texto poético que não é apenas a criação de um sujeito, mas

a atualização de um campo de possíveis (MACHADO, 1996: 180) por um

leitor, ou usuário, pois a obra vai se realizar no ato de leitura, diz o autor.

Em cada um desses atos, assumirá uma forma diferente, e, no caso dos

contextos digitais, estará “inscrita no potencial dado pelo algoritmo” (1996:

180).

Para Roland Barthes,

... a leitura, [...] (esse texto que escrevemos em nós quandolemos), dispersa, dissemina; ou, pelo menos, diante de umahistória (como a do escultor Sarrasine), vemos bem que certaimposição do prosseguimento (do “suspense”) luta continuamenteem nós com a força explosiva do texto, sua energia digressiva: àlógica da razão (que faz com que esta história seja legível)entremeia-se uma lógica do símbolo. Essa lógica não é dedutiva,mas associativa: associa ao texto material (a cada uma de suasfrases) outras idéias, outras imagens, outras significações (2004b:28).

A leitura de um hipertexto é um campo de possibilidades, tornadas

concretas pela potencialidade própria do texto na tela. Pedro Barbosa

observa que

o texto virtual é imaterial: o que existe no suporte físico de umcomputador não é um texto, não é um sentido, não tem umsignificado – é apenas o “motor” de uma pluralidade derealizações textuais por materializar signicamente (1996: 118).

42

Neste campo de criação, é necessário, ainda, conforme o mesmo

autor, distinguir o trabalho do verdadeiro criador com o trabalho do técnico,

ou funcionário8. Nesta atividade está a natureza do ato criativo originado

com as tecnologias. Segundo Machado, “as máquinas têm ‘possibilidades’

que já vêm inscritas no seu dispositivo técnico” (1996: 14). Caberia às

poéticas tecnológicas resgatá-las, em todas as suas conseqüências, diz

ele, observando que este relacionamento criativo inclui uma redefinição da

maneira de entender e de lidar com os meios técnológicos: “É como se

cada obra reinventasse a maneira de se apropriar de uma máquina

enunciadora” (1996: 15).

Não seria demasiado incluir, nesta reflexão, a importância do

programa de computador na origem da obra de arte tecnológica. Neste

caso, a função do artista criador está presente a partir da própria criação da

ferramenta, como é o exemplo de Michael Joyce, que cria o programa

Storyspace para dar forma a uma idéia: a ficção em hipertexto Afternoon, a

story, como mencionamos no primeiro capítulo.

As poéticas digitais, portanto, devem levar em conta, além de

características sígnicas, também os aspectos técnicos da criação e a

relação criativa do artista com a máquina, ou o programa de computador.

Além disso, é fundamental verificar as “escritas criativas”, base para as

poéticas digitais ao longo de todo um contexto histórico que anuncia e dá

forma tais criações.

O que entendemos por escritas criativas sempre fez parte dos

modos de inscrição, desde os primeiros exemplos de visualidade

comunicativa, como os poemas visuais, ou simples informações inscritas

em pedra, momentos recuperados de muitos séculos antes de Cristo, como

o Disco de Festus (HIGGINS, 1987). Estamos entendendo como escritas

8 Em Máquina e Imaginário, Arlindo Machado sustenta que “só um verdadeiro criador (seja eleartista, engenheiro ou cientista) pode dar forma sensível às mutações que a sociedade industrialavançada está produzindo [...]” (1996: 14).

43

criativas todas as escrituras que buscam – e logram –, de modo inventivo,

romper padrões estabelecidos. Na história da literatura, sua presença é

ancestral: desde o Simmias egg, no século III a.C., passando pelas

invenções do simbolista francês Mallarmé, por Ezra Pound, pelos poetas

concretos... a transgressão inventiva das regras de escrita, seja buscando a

visualidade através da utilização dos espaços em branco, seja pelo trabalho

criativo tipográfico, é uma constante.

O exemplo de Mallarmé é interessante. O poeta tinha um objetivo

quase impossível de atingir, em sua época, ao qual dedicou toda sua vida:

fazer com a linguagem da poesia algo que jamais havia sido feito antes. Ele

estava empenhado na “abertura” do poema, para dar ao leitor a

possibilidade do exercício da imaginação. Sobre isso, chegou a escrever

que: “(os parnasianos) são faltos de mistério; privam a mente do delicioso

prazer de acreditar que está criando” (MALLARMÉ, apud WILSON, 2004:

44). Seu Un coup des dés mostrou que isso era possível, com o tratamento

espacial do signo gráfico e do espaço em branco da página, numa explosão

dos limites até então existentes para a criação poética.

Posteriormente, na antiga União Soviética, poetas como Maiakóvski

e El Lissístzki preocupam-se com o objeto “livro” enquanto suporte para a

criação poética. Em seu artigo “O futuro do livro”, El Lissítzki estabelece a

necessidade de superação do livro, tal como é conhecido e a incorporação

a este dos progressos da técnica, “enquanto ele não for substituído pelas

representações audiovisuais” (cf. RISÉRIO, 1998: 96).

Estritamente relacionada à busca de novos suportes, portanto, a

escrita criativa também foi anunciada em um outro momento do século XX,

dessa vez, pela mente sábia do filósofo alemão Walter Benjamin, que a vê

sendo transportada do livro às ruas dos centros urbanos, antevendo a

emergência de novos sistemas, como formas de escritura mais variáveis.

Benjamim previu, assim, a riqueza da atividade poética que viria a surgir

44

num futuro não muito distante, anunciada por novos suportes e técnicas

para a inscrição. Sua preocupação era também com a explosão de

informação na forma de letras, palavras, textos, algo que se observaria num

crescendo que começa com os luminosos noturnos com de seu tempo e

que hoje atinge o apogeu com a explosão de informações trazida pela

onipresença dos meios digitais e eletrônicos. Escreveu Walter Benjamin,

que:

Antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro,caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letrascambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de suapenetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas(1993b: 28).

Foi nesse contexto que o filósofo alemão refletiu sobre o lugar da

criação poética. Ao poeta, dentro daquela sociedade da escrita em ebulição

de formas e suportes, de leituras que se transformavam na sua geometria

de horizontalidades e verticalidades, caberia a exploração dos domínios de

sua ferramenta.

Apesar de tantos exemplos, que incluem a “morte do livro”,

entretanto, pode-se perceber que a preocupação era mais um anúncio de

mudanças nos suportes do que, propriamente, a extinção do impresso. Isso

veio a se confirmar, nos dias de hoje, quando o livro permanece estável na

sua imutabilidade, e ainda um objeto de fruição. Foi Jacques Derrida (1973)

quem observou que a morte do livro era o anúncio, na verdade, do fim da

escrita linear, abrindo caminho para a emergência de outros modelos de

inscrição.

Concomitante com os vários anúncios sobre o fim do livro, que eram

nada mais do que reflexões sobre a característica física da inscrição, como

dissemos acima, surgem estratégias e propostas estéticas que visavam à

expansão dos limites daquele suporte. As décadas de 50 e 60 do século XX

são marcadas por dois acontecimentos paradigmáticos, nesse sentido: a

Poesia Concreta e a Literatura Combinatória.

45

Os poetas concretos, por exemplo, inspirados por Mallarmé, Ezra

Pound. E. e. Cummings e James Joyce, dentre outros, fazem o poema

tomar forma em um novo conceito de composição, onde noções tradicionais

como princípio-meio-fim e verso, tendem a desaparecer e ser superados

por uma “organização poético-gestaltiana, poético-musical, poético-

ideogrâmica da estrutura: Poesia concreta”, como proclamou Augusto de

Campos9. Em Poetamenos (1953), o autor buscava, na espacialização do

signo tipográfico e na cor, os elementos para compor sentidos múltiplos,

num texto “previsto para duas vozes-cores, masculina e feminina”

(CAMPOS et al., 1975: 16).

Dentro do experimentalismo com a linguagem, que também era a

experimentação com os suportes, Raymond Quèneau e seus Cent mille

milliards de poèmes (1961) afiguram-se como peças-chave da literatura

combinatória. Tratava-se de inventar novas possibilidades para o livro, que

incluíam o seu desdobramento em possibilidades potenciais de

concretização de um longo poema, a partir da combinatória de suas partes,

divididas nas páginas em forma de pequenas “tiras de texto”, passíveis de

diversas combinações (Fig. 8).

9 No artigo “Pontos-Periferia-Poesia Concreta” (1956), in: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI,Décio; CAMPOS, Haroldo de (1975).

46

FIGURA 8 As possibilidades combinatórias no livro de RaymondQuèneau, que se dão pela seleção e combinação das “tiras” detexto

A literatura combinatória, que foi ainda a grande presença do

movimento Oulipo (Ouvroir de Litèrature Potentiel – Oficina de Literatura

Potencial) francês, e o movimento concreto, tanto na poesia como na

música, são duas grandes referências para a criação poética que anuncia a

literatura do ano 2000 e do século XXI, associada aos meios eletrônico-

digitais. A poesia concreta fez a crítica da linearidade discursiva a partir da

explosão da frase, baseando-se no ideograma, ao mesmo tempo em que o

reconstituía na forma de palavras-signo e, ainda, justapondo significados na

associação dos signos que incluíam, além da palavra, a imagem formada

pela posição tipográfica no espaço da página. A literatura combinatória

apropria-se da página impressa, subvertendo sua característica mais

fundamental: sua integridade, uma vez que transforma sua própria

47

materialidade, a página, em fragmentos que servirão para as quase infinitas

combinatórias.

No campo da prosa, o escritor Julio Cortázar ofereceu ao leitor

possibilidades de leitura multiseqüenciais, em O jogo da Amarelinha

(Rayuela, escrito em 1963) e sua continuação em 62: Modelo para armar

(escrito em 1968). Se, no primeiro, coloca ao leitor três possibilidades

diferentes de fazer as seqüências de leitura – a primeira, conforme o

estabelecido na ordem das páginas, a segunda, uma seqüência oferecida

pelo próprio autor, e a terceira, que se expande potencialmente em muitas

combinações, a ordem que o próprio leitor preferir –, no segundo livro ele

faz uma espécie de “continuação” do capítulo 62 de O jogo da amarelinha.

O objetivo do autor, como ele mesmo diz, é realizar as intenções contidas

naquele capítulo. A respeito da possibilidade latente de interferência na

ordem narrativa, Cortázar deixa claro que quem deverá armar este modelo

será o leitor, e isso se dará tanto no nível da forma, quanto do sentido:

... a armação a que se alude é de outra natureza, sensível já nonível da escrita, onde recorrências e deslocamentos procurameliminar qualquer fixidez causal, mas sobretudo no nível dosentido, onde a abertura para um ajustamento é mais insistente eimperiosa. A opção do leitor, sua montagem pessoal doselementos da narrativa serão, em cada caso, o livro que resolveuler (2000: 5).

O autor, assim, separa uma parte da obra anterior, para dar origem

a outra obra, sempre lembrando que o leitor fará a combinatória desta

narrativa, e, segundo o desejo do autor, escapando da sua fixidez causal.

2.1 Estruturas circulares

Há no ambiente digital uma espécie de hibridação: as formas

poéticas abarcam poesia e prosa, assim como abrangem um universo de

representações que vão desde a palavra até o som, passando por toda

48

espécie de imagem, em movimento ou não. Além disso, a estrutura destas

narrativas apresenta-se sob formas inovadoras. Neste sentido, a não-

linearidade aparece como um de seus grandes diferenciais.

Contrapondo-se à idéia de seqüências lógicas estabelecidas pelo princípio

aristotélico da trama, com começo, meio e fim, aparece a ausência total

destas instâncias. Ao invés de seqüência, repetições; ao invés de

temporalidade, utilização do espaço virtual da tela do computador; ao invés

de linha, círculo.

O poeta Octavio Paz (1996) estabeleceu uma diferença entre poesia

e prosa que inspira nossas reflexões acerca destas criações. Ele observou

que a figura geométrica que simboliza a prosa é uma linha: "reta, sinuosa,

espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diante e com uma meta

precisa" (1996: 12). Já o poema, continua o poeta, apresenta-se como um

círculo, ou esfera, algo que se fecha sobre si mesmo. Ainda que este autor

observe um paradoxo entre as duas formas, nas narrativas que têm lugar

nos meios digitais, vemos uma hibridação entre elas. À idéia de linha reta,

com uma meta definida, que o autor confere à prosa, contrapõe-se a

narrativa em hipertexto e hipermídia, por exemplo: não-linear ou multi-

linear, com vários objetivos ao mesmo tempo, aberta a várias

possibilidades, e que retoma o sentido de espaço-tempo, anteriormente

discutida pelo poeta Haroldo de Campos (1986), que também discorria

sobre a característica híbrida do Finnegans Wake, de James Joyce,

definindo-o como prosapoesia (1986: 23).

É precisamente quando Octavio Paz acentua a característica de

poesia em obras como Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, ou O

Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, de Jorge Luis Borges, que podemos

compreender mais claramente a relação de mistura destas formas e

trazê-las para o contexto das narrativas digitais. Paz observa que, nas

obras citadas, a prosa se nega a si mesma: “as frases não se sucedem

obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são presididas

49

pelas leis da imagem e do ritmo. Há um fluxo e refluxo de imagens, acentos

e pausas, sinal inequívoco de poesia" (1996: 15).

Discussões como esta são agora trazidas à luz do debate sobre as

narrativas em hipertexto, em autores como George Landow, J. David Bolter

ou Janet Murray, numa tentativa de retomar criticamente tais obras, para

com isso avaliar a importância das rupturas trazidas pelo ambiente de

escrita digital. Quando Paz afirma que Alice... e O jardim... têm

características do poema, porque concebidos à luz das imagens e do ritmo,

isto nada mais é do que resgatar, nestas obras, uma sua qualidade que não

era reconhecida, pelo menos, não de imediato. Acentuando a forma do

poema na prosa, o poeta anuncia uma mescla entre estes dois conceitos.

Tal mistura aparece claramente nas escrituras digitais, cuja hibridação de

formas parece ser um elemento fundador.

2.2 O círculo e a criação

Voltando mais precisamente ao círculo, vemos que esta imagem

não parece estar fora de contexto quando o assunto é narrativa literária.

Mais especificamente, ao círculo podem-se remeter, ainda, algumas das

atuais formas narrativas contemporâneas, muitas delas, criações que se

dão no computador.

À luz desta forma geométrica, pode-se associar repetições, além de

algo mais distintivo das atuais narrativas: o deslocamento e redefinição das

instâncias de começo, meio e final. Na figura geométrica do círculo, não há

começo nem final. Estas instâncias inscrevem-se em todos os pontos

formadores da linha do círculo, podendo ser designados como tal

aleatoriamente, sem qualquer ordenação prévia.

50

Nas narrativas chamadas "não-lineares", começos e finais podem

existir, mas não se encontram claramente definidos, ou definidos a priori.

Em Afternoon, a story, o escritor Michael Joyce avisa aos navegadores que

os começos e finais não estão dados de antemão naquela narrativa. O

escritor chega a esclarecer que o término da história pode estar

simplesmente no momento em que o leitor se cansa e resolve "sair" ou

"abandonar" aquela leitura. Se o leitor decidir por terminar a sua leitura em

um determinado ponto, segundo Joyce, aí estaria o "final" da história. Estas

instâncias, então, perdem sua natureza definidora especialmente em

relação ao tempo da narrativa para fazer surgir uma outra estrutura,

circular, em que os acontecimentos podem repetir-se, o leitor pode passar

várias vezes por um determinado espaço de escrita, e assim "revisitar"

partes da história. Dá-se, assim, uma estrutura cujo espaço narrativo supõe

mais do que uma seqüência, uma relação entre suas partes.

O poeta Augusto de Campos nos remete a esta rede de relações

com a idéia do ideograma, e também ao círculo, quando reflete sobre a

presença fundadora da prosa de James Joyce e do poema Un coup de dés,

de Mallarmé, para a gênese da Poesia Concreta. Nestas estruturas, diz o

poeta, "o contraponto é moto-perpétuo, o ideograma é obtido através de

superposições de palavras, verdadeiras 'montagens' léxicas. A infra-

estrutura geral é um desenho circular, onde "cada parte é começo, meio e

fim”10.

Pensar na forma do poema como um espaço de associações foi um

dos principais fundamentos da poesia concreta. Uma das chaves mais

importantes para se entender esta valorização da estrutura visual do

poema, sem dúvida, parece estar no ideograma chinês, inspirador dos

poetas concretos, tanto no sentido de sintaxe espacial ou visual, até o de

método de compor baseado na justaposição direta, inspirado pelos estudos

10 Conforme a leitura de Campos (1986) do artigo “A skeleton key to Finnegans Wake”, de JosephCampbell e Henry Morton Robinson. Faber & faber, London, 1947.

51

de Fenollosa e de Pound. Em tais associações, as seqüências lógicas são

abolidas, em nome de "uma organização poético-gestaltiana, poético-

musical, poético-ideogrâmica da estrutura" (CAMPOS, 1975: 25).

A comprovar a existência de uma estrutura circular, ainda, estão as

próprias palavras textuais de algumas obras: em Finnegans Wake, lembra

Augusto de Campos, a frase inicial é a continuação da última frase, e várias

outras ligam-se a sentenças anteriores ou posteriores neste sentido: “...

Joyce começa seu livro no meio de uma frase e o termina no meio de outra

que pode reportar à primeira, o conjunto formando, assim, um círculo”

CAMPOS; CAMPOS, 1986: 23).

No poema fundador de Mallarmé, Un coup de dés, objeto de

comparação com o Finnegans Wake, no estudo de Augusto de Campos

(1986), o poema e o romance, "chegaram a uma concepção de obra

'circular', onde o princípio, o meio e o fim adquirem relatividade perene"

(CAMPOS; CAMPOS, 1986: 121). Os autores continuam:

E se no caso de Mallarmé a “subdivisão prismática daIdéia”, a técnica de fazer reverberar em cada idéia principalconstelações de idéias subsidiárias, leva a uma espécie de “motoperpétuo”, sem limites, no caso de Joyce a obra inteira pode estarcontida em cada uma de suas partes, de tal sorte que é possíveliniciar a leitura de qualquer ponto (CAMPOS; CAMPOS, 1986:121).

Esta estrutura "circular", no que concerne ao Finnegans Wake, já

havia sido apontada também por Haroldo de Campos. Em seu artigo “A

Obra de Arte Aberta” (1975), o autor sustentava que "o Finnegans retinha a

propriedade do círculo, da eqüidistância de todos os pontos em relação ao

centro: a obra é porosa à leitura, por qualquer das partes através das quais

se procure assediá-la..." (1975: 31).

Estes começos e finais que se imbricam num todo também estão

presentes em outras formas narrativas: aqueles que assistiram a Antes da

52

Chuva11, por exemplo, não poderão esquecer da circularidade daquela

narrativa episódica. Nesta bela história, o primeiro capítulo parece tomar

um outro significado ao término do último fotograma, no último capítulo,

portanto, quando percebe-se sua estreita ligação – ademais, marcada pela

existência de referências temporais – com o capítulo final. É neste

surpreendente final que fecha-se o círculo; é aí que o espectador parece

voltar ao começo da história, interconectando-se nesta linha circular e ao

mesmo tempo eliminando qualquer seqüência temporal até então

experimentada. O sentido, aí sim, parece tomar forma neste "fechamento"

do círculo, que não é mais do que a abertura para a ausência de seqüência

lógica.

Se Joyce, Pound e Mallarmé foram inspiradores para os

concretistas, hoje a Poesia Concreta é uma referência para se pensar na

criação poética que se dá nos ambientes digitais. Ainda mais, levando-se

em conta as características deste suporte, especialmente a possibilidade de

disponibilização criativa de forma não-linear. Depreende-se disto, e ainda

utilizando as referências da teoria da poesia concreta, que a não-

linearidade, enfim, possa ser pensada em termos de relações entre blocos

de informação, ou fragmentos. Levando em consideração que a estrutura

não-linear do meio digital é onipresente, devido mesmo à sua natureza,

talvez seja interessante refletir sobre o que ela representa para a criação

poética em computador.

11 Filme do diretor Milcho Manchevski, Macedônia, 1994.

53

2.3 Tela do computador, espaço de escrita

Em primeiro lugar, pensemos neste espaço de escrita que é a tela, e

nas possibilidades de disponibilização do texto poético. Estamos nos

referindo a um espaço capaz de abrigar a palavra em diversas formas, que

podem incluir inclusive seu movimento, sua animação. Dentre esta

multiplicidade de manejos da palavra, ainda encontra-se sua própria

combinação com os espaços em branco, ou com outros espaços

(acionáveis com o clique do mouse, muitas vezes, ou espaços que

simplesmente surgem do nada, vindos de alguma reserva virtual de

informação digitalizada) dentro deste espaço maior, que é a tela.

A não-linearidade parece implicar necessariamente uma abolição do

sentido de tempo, pelo menos, daquela temporalidade explícita existente na

seqüência lógica aristotélica das narrativas com começo-meio-fim. No

espaço da hipermídia, a temporalidade assume um outro estatuto. O tempo

da técnica, como disse Octavio Paz (1996), é a abolição do tempo

cronométrico moderno. No que concerne à Poesia Concreta, por exemplo,

a utilização das categorias espaço e tempo veio introduzir uma outra

relação com a criação poética, uma estrutura espaço-temporal, uma

“tensão de palavras-coisas no espaço-tempo” (PIGNATARI, 1975: 41).

A referência à temporalidade, quando se fala em não-linearidade, é,

portanto, fundamental. Se tomarmos as criações poéticas ao longo da

história da literatura, veremos que não é diferente: a ruptura com as formas

lineares de disponibilização do poema vem marcada pela organização

espaço-temporal e valorização da forma.

54

2.4 Atualização e não-linearidade

Começos, meios e finais podem estar muito mais relacionados com

a narrativa em prosa do que, especialmente, com a poesia. Mas, quando se

pensa em criação poética no computador, duas questões aparecem: a

primeira, refere-se à hibridação entre estas duas formas, como já foi citado

anteriormente. Em segundo lugar, a idéia de inter-relação entre as partes.

Os elementos (textuais, imagéticos, sonoros, etc.) são dados e

disponibilizados de forma simultânea e atualizados pela ação do leitor. As

possibilidades do hipertexto e da hipermídia, então, passam a fazer

diferença para a criação poética. Arlindo Machado atenta para o que define

como “arquitetura não-linear” da hipermídia. Ele diz que:

A idéia básica da hipermídia é aproveitar a arquiteturanão-linear das memórias de computador para viabilizar “obras”tridimensionais, dotadas de uma estrutura dinâmica que as tornemanipuláveis interativamente (1996: 63).

O dado fundamental a respeito da "arquitetura não-linear" talvez

resida no fato de que, não importa a forma – prosa ou poesia –, a

possibilidade de atualização de suas partes e, assim, de sua inter-relação,

é um dos diferenciais deste tipo de criação.

Ao refletir sobre o hibridismo das formas e a estrutura circular,

podemos vislumbrar pelo menos três pontos importantes para a

compreensão da criação poética no computador: o primeiro diz respeito a

uma rede de relações entre as partes, sendo estas, letras, espaços, frases,

conjuntos de palavras e mesmo conteúdos. O segundo refere-se à

existência da não-linearidade como princípio gerativo da criação, pois

aquela inscreve-se dentro das próprias características físicas, ou

“materiais”, do meio digital, ou seja, elementos com que o poeta pode

contar quando cria com o computador. Colocada ainda no âmbito das

possibilidades do poema, a não-linearidade pode ser definidora de uma

55

estrutura espacial em que são possíveis as relações entre as partes, ou

seja, as diversas associações potencializadas pela disposição das partes o

poema no espaço virtual do computador. Em terceiro lugar, as realocações

das instâncias de começos, meios e finais, que embaralham-se, tornam-se

indefinidas e assim sugerem uma estrutura em círculo.

2.5 Meio, mensagem, técnica

As poéticas digitais são uma decorrência natural das mutações dos

modos de inscrição ao longo da história, originadas em função do

desenvolvimento das escritas criativas que, ao mesmo tempo, anunciam e

são precursoras de alguns padrões inovadores trazidos pelo hipertexto e

pela hipermídia. Com o surgimento dos meios digitais, as escritas criativas

evoluem para o suporte tecnológico, ao qual se associam de forma singular:

novas técnicas permitem novas conformações para a escrita.

Na verdade, o discurso poético está tanto mais identificado com o

discurso criativo quanto maiores sejam as utilizações que faz do meio,

como pode-se perceber da afirmação de Melo e Castro (1976):

... verificamos que quando o discurso se centra tonicamentesobre o meio da comunicação [...], ou seja, sobre a próprialinguagem, então é possível um alto teor de criatividade, que semanifesta na investigação, na dúvida, na crítica, sobre as própriaspossibilidades para se estruturar e realizar a comunicação. Umaprofunda preocupação e um por em causa os seus própriosrecursos comunicativos é característica definitiva do discursopoético (1976: 46).

É justamente pela presença marcante da relação da criação poética

com seu suporte, o que se vê no percurso que a criação vai executando ao

longo dos séculos XIX e XX, que se pode caracterizar as poéticas digitais,

ou seja, a estreita relação criativa que se estabelece com suas próprias

características tecnológicas. No século XIX, isso também decorre das

56

mudanças trazidas pela Revolução Industrial. A influência (e confluência)

dos códigos gerados pelas técnicas de reprodução da Idade Industrial,

particularmente o tipográfico, é percebida claramente na literatura

(PIGNATARI, 1987: 73). A conexão criativa dos escritores com as técnicas,

não só da escrita, mas aquelas que preenchiam o cenário industrial e

cultural de suas épocas, é acentuada por uma estreita vinculação das obras

com as afinidades de seus autores aos aparatos técnicos de suas épocas:

Não se pode ir muito fundo no estudo da escrituramachadiana, se não se compreendem as suas vinculações com atipografia e o jornalismo; Raul Pompéia era escritor e cartunista-desenhista; Bandeira e Mário de Andrade conheciam o códigomusical; Augusto dos Anjos é uma poesia-trauma que nasce dasciências naturais e do Positivismo; sem telégrafo, cinema e cubo-Dadá, o melhor da obra de Oswald não vem à tona dodesvendamento; sem arquitetura e pintura, a poesia de JoãoCabral não abre mão de suas sutiliezas (PIGNATARI, 1987: 98).

Não somente na literatura, mas transformações e evoluções dos

aparatos técnicos marcaram avanços também nas artes visuais. A invenção

da fotografia provocou um grande impacto na pintura clássica, que passou

a interrogar-se acerca da reprodução da realidade, abrindo caminho para a

pintura abstrata: “Libertada pela fotografia, da cansativa faina da

representação fiel – diz Susan Sontag –, a pintura pôde partir no encalço de

uma tarefa mais elevada: a abstração” (2004: 160).

Para autores como Glazier (2003), as características técnicas da

escrita, que influem decisivamente na sua poética (que ele define como

“materialidade”), já vinham sendo anunciadas há muito, através de vários

tipos de intervenções poéticas e literárias. A poesia experimental, a poesia

visual, a poesia sonora, a poesia concreta, por exemplo, são momentos de

invenção nos quais a materialidade da escrita era parte do processo criativo

e de seu resultado:

As condições que caracterizaram a feitura de poesiainovadora no século XX têm uma poderosa relevância nestasobras do século XXI. Isto é, poetas estão fazendo poesia com omesmo foco no método, na dinâmica visual e na materialidade; o

57

que foi expandido, foram os materiais com os quais se podetrabalhar. Tais materiais não somente fazem possível múltiplasformas de escrita, como também, no meio digital, contribuem paraa re-definição da própria escrita (GLAZIER, 2003: 1).

Para este autor, é no reconhecimento destas condições inovadoras

na forma de fazer poesia, e da apreciação das qualidades materiais dos

novos meios, que nós definimos como características técnicas, que será

possível identificar a nova poesia do século XXI. Por isso, o esforço em

conhecer mais profundamente os programas de computador faz parte desta

tentativa de identificar a poesia nos meios digitais. Na verdade, o que o

autor denomina materialidade do texto no meio digital tem relação com o

código de programação deste texto. Assim, a “leitura” não será somente

aquela do texto em si, mas do seu código intrínseco (GLAZIER, 2003).

Se o suporte material para a escrita pode induzir ao tipo de

experimentação artística que se opera – e isso é visto em vários autores,

como Laurence Sterne, que escreve seu A Vida e as Opiniões do

cavalheiro Tristram Shandy como se estivesse refletindo sobre a própria

matéria da página impressa e, em especial, da tipografia. Nesta obra de

Sterne, há páginas completamente negras, onde o que seria a impressão

de vários caracteres, palavras ou frases se torna um todo, como se o

conjunto de caracteres que deveriam ocupar a página com um determinado

sentido, para continuar com a história, por exemplo, se fundisse em um

objeto único, formado pela fusão dos pretos sobre o branco da página (Fig.

9). Além disso, o autor enfeita seu texto com caracteres especiais, como se

quisesse, apenas, criar uma variante da escritura através da tipografia.

58

FIGURA 9 As páginas inovadoras de Sterne

Em outros momentos, a própria noção de utilização dos sinais

tipográficos é subvertida: onde haveria que escrever frases, com um

sentido usual, para dar significado à história, o autor utiliza sinais como o

ponto, o travessão, o traço, repetitivamente, numa alternativa visual que

invoca muito mais a imagem desses caracteres do que, propriamente, a

palavra e as frases. É dessa forma que Sterne utiliza a tipografia e os

espaços em branco para refletir sobre seu próprio processo criativo, a partir

do material utilizado, ou seja, a escrita no impresso.

Exibindo parte de sua estrutura de navegação, que é também

leitura, como os já citados lista de links e mapas de visualização, que estão

além do texto narrativo verbal, estas obras impõem ao conteúdo da ficção o

campo semântico do fazer, da elaboração da obra. Junto com isso, a

discussão sobre a escrita em hipertexto: trata-se de uma tecnologia de

59

inscrição feita para um leitor que lê muito além das linhas; ele captura a

estrutura, lê nas entranhas do texto, e constrói, junto com a leitura, a escrita

de sua materialidade.

Glazier (2003) sustenta que a materialidade é importante porque a

escrita não é um evento isolado do seu meio, mas é, em vários graus, um

engajamento com este meio.

2.6 Intermídia, fusão conceitual

Uma vez imbricada com seu suporte a ponto de transformar-se em

um novo meio, diferenciado pelas características técnicas que lhe conferem

outros significados, como a palavra em movimento a dançar pelas telas de

computador, possibilitada pela codificação hipermidiática do software; ou o

texto que se substitui a si mesmo, em telas cujas palavras se acendem e se

apagam, a escrita caracterizada pelo hipertexto traz em si a característica

da fusão conceitual, em outras palavras, intermídia.

A idéia de intermídia remonta a Dick Higgins (1984), que traçou uma

análise das criações de vanguarda das décadas de 50 e 60, a partir da

utilização e conjugação de vários meios de representação na criação de

obras de arte, no que ele definiu como fusão conceitual. Em 1966, o poeta

Dick Higgins concebeu o termo intermedia, uma categoria formal para

definir uma inter-relação entre diferentes formas de representação que se

fundem em um novo meio.

Quando dois ou mais meios discretos se fundemconceitualmente, eles se tornam intermídia. Diferem de meiosmistos, sendo inseparáveis na essência da obra de arte (1984:138).

60

Higgins nomeou um fenômeno nas artes e definiu um quadro de

referência para que tais manifestações artísticas fossem compreendidas e

categorizadas.

Na década de 90, alguns autores retomaram o conceito para a

criação poética que começava a se dar com a utilização dos meios

eletrônicos desde os anos 70, como painéis eletrônicos, vídeo, laser e o

próprio computador, definindo-a como poesia intermídia (MENEZES, 1992;

CAMPOS, 1999). Fora estas referências, por um longo tempo não se

encontrou maiores alusões ao termo intermídia. Em 2002, apresentamos

um artigo (“Intermidia, ou, Para entender as poéticas digitais”)12, no qual

retomávamos o termo, para incluí-lo como característica importante e

definidora das criações em meios digitais. Entendíamos, então, e ainda

pensamos assim, que as criações poéticas nos meios digitais são

classificadas superficialmente, em geral, com base apenas no seu meio,

sem levar em consideração o nível mais profundo de seu significado, que

inclui a fusão conceitual de meios. O conceito de intermídia serve para

atentarmos mais especificamente para o fato desta fusão conceitual.

Em seu livro Digital Poetics (2003), Loss Pequeño Glazier retomou o

termo, num capítulo em que examina a configuração dos novos meios

digitais a partir do conceito de intermídia. O autor sustenta que a World

Wide Web oferece possibilidades diretas para misturar meios ou escritas

intermediais, lembrando que investigações quanto à escrita experimental do

século XX incluíram o conceito de intermídia, e que não é surpresa, hoje,

que tais investigações também sejam relevantes a uma teoria da WWW

(2003: 78).

12 Artigo apresentado no Núcleo de Pesquisa Comunicação Audiovisual, do XXV CongressoBrasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom).

61

As experimentações no sentido de levar o poema do impresso para

novos suportes e que convergiram, quase todas, para o computador, a

partir da década de 8013, mostraram aos poetas que o meio digital, enfim,

seria a resposta a tendências que já vinham se notando na área criativa. A

palavra queria ir além do papel, fundir-se com a imagem, o som, e criar

movimento. Na opinião de Machado (2000), o desafio central da poesia

contemporânea é justamente colocar em operação a ambigüidade básica

da palavra escrita, que é o fato de ter uma função icônica e simbólica ao

mesmo tempo.

Como “intermídia”, as criações nos meios digitais remodelam meios

anteriores ao surgimento do computador, no que Bolter e Grusin definem

como remediation (1999), um jogo entre o antigo e o novo, uma fusão de

técnicas e significados. Nas páginas que se seguem, utilizamos esta teoria

como um apoio para entender o processo criativo nos meios digitais,

relacionando-a com a idéia de intermídia.

O que chamou a atenção de Higgins para a intermídia foi o advento

do happening, no final dos anos 50 e começo dos 60. O happening tem

origem na idéia de “colagem”: em meados da década de 50, pintores nos

Estados Unidos e na Alemanha começaram a se voltar para trabalhos em

que criavam adicionando ou removendo, substituindo ou alterando

componentes da obra visual. Começaram incluindo objetos em suas obras,

em seguida realizaram colagens que envolviam o espectador, e

classificaram-nas como “ambientes”. Em 1958, inseriram pessoas como

parte de suas colagens, o que foi definido como happening. O happening,

para Higgins, era um intermeio, pois era um terreno desconhecido que

ficava entre a música, a colagem e o teatro (1984: 22).

13 Experiências na criação artística em computador, entretanto, começam a partir da década de60, quando Max Bense, na Universidade de Stuttgart, desenvolve trabalhos gráficos emcomputador (BENSE, 1971) e criação de modelos textuais neste meio (ARAÚJO, 2000).

62

FIGURA 10 Ilustração de Higgins sobre intermídia (HIGGINS, 1984)

O autor reconheceu intermídia no teatro e nas artes visuais das

décadas de 50 e 60, e viu paralelos do happening na música, por exemplo,

no trabalho de John Cage, que explorava a fusão conceitual entre música e

filosofia, e, ainda, nos poemas construtivistas de Emmett Williams

(1984:23). Os então recentes experimentos em poesia sonora e poesia

concreta também logo foram categorizados como obras intermídia. Para

Higgins, tais exemplos de criação eram intermediais, no sentido que

ficavam entre a literatura e as artes visuais. A obra, então, era colocada em

ambas as categorias: arte visual e literatura, exatamente pela fusão

63

operada no nível de sua significação. Estando em duas categorias, na

verdade, abria-se para uma terceira: a obra intermídia.

O embasamento da intermídia está na fusão conceitual de meios

distintos entre si que, conjugados no nível do seu significado, formam um

terceiro meio, este, diferente dos anteriores e, por isso mesmo, apto a uma

nova classificação e denominação. Tal “fusão conceitual” é mais do que

uma mistura. É uma inter-relação orgânica entre diferentes formas artísticas

e seus significados estéticos, reunidos em um mesmo modo de

representação. O termo, porém, não é datado a um momento histórico,

como seria fácil de se supor. Pode-se dizer, segundo o autor, que “existe a

obra intermídia; esta é uma possibilidade sempre que há o desejo de fundir

dois ou mais meios existentes que formem um terceiro” (HIGGINS, 1984:

25). Intermídia é uma possibilidade, sempre existiu e sempre existirá.

Na época em que Higgins desenvolveu sua teoria, computadores

existiam apenas como mainframes que ocupavam salas inteiras nas

universidades e organismos de pesquisa governamentais. Iniciavam os

primeiros passos para seu uso como rede de comunicação e informação.

Na Alemanha, em 1959, apareciam os primeiros programas de computador

geradores de texto (BOOTZ, 1996). Em meados da década de 50, o

hipertexto era apenas uma idéia14, que só seria nomeada na década de 60

por Theodor Nelson (1987).

Hoje, o volume da criação poética nos meios digitais parece trazer

de volta o apelo por sua classificação: é poesia o que vemos desenrolar-se

na tela do computador, onde as palavras transformam-se em imagem e os

resultados vão além das noções tradicionais de “poema” ou “verso”? Esta é

apenas uma das questões que aparecem no universo dos meios digitais e

14 No seu artigo “As we may think” (1945), o cientista americano Vannevar Bush propôs umsistema de arquivamento e disponibilização da informação, o Memex, que funcionaria em rede deassociações, diferente da forma hierárquica até então dominante. Este é considerado o embriãoda idéia de hipertexto.

64

das novas formas artísticas que ele encarna. Intermídia vem de encontro a

designar este tipo de obra.

2.7 Antecedentes e referências

A arte chinesa, nos séculos VIII, IX, X e XI, era calcada na idéia das

“três perfeições”, que reunia a caligrafia, a pintura e a poesia. O mais

criativo e o melhor artista deveria trafegar harmonicamente por estas três

categorias. Este exemplo não representa propriamente a “fusão” conceitual

que se opera hoje nos meios digitais, já que basta olhar a obra para

perceber claramente o que, nela, é poesia, o que é caligrafia e o que é

pintura. Entretanto, trata-se de uma referência importante no que concerne

à harmonização entre formas de representação em um único suporte. Não

se trata da palavra escrita, mas da palavra pintada (RISÉRIO, 1998: 59). A

arte chinesa compreendia a cultura de forma holística e para isso buscava

harmonizar o culto à caligrafia, à pintura e à poesia. A idéia era que esses

eram meios intercambiáveis de expressão e que o artista podia facilmente

transpor seu impulso criativo de uma forma a outra.

O próprio ideograma chinês, que representa um conceito através da

junção de duas ou mais imagens, poderia traduzir a idéia de fusão

conceitual, no caso, ligada essencialmente à letra, à palavra e à escrita. O

ideograma é uma das mais antigas formas de representação e comprova

que a busca pela expressão teve seu ponto alto na preocupação com a

forma imagética. Ernest Fenollosa foi o primeiro, no ocidente, talvez, a

reconhecer a importância da maneira como os chineses viam o mundo e

nele se expressavam para a criação poética de sua época. O cineasta

russo Serguei Eisenstein foi também importante neste sentido15, ao

15 Artigos de Fenollosa e Eisenstein, neste sentido, foram reunidos por Haroldo de Campos nolivro Ideograma. Lógica, Poesia, Linguagem, publicado pela EDUSP, São Paulo, em 2000.

65

relacionar o princípio da montagem cinematográfica à escrita figurativa

japonesa e chinesa. Conscientes desta importância, os poetas concretos

retomaram a idéia de ideograma na fundamentação de seu movimento. Da

mesma forma que Fenollosa viria a sugerir, Eisenstein também aponta o

princípio ideográfico como fundamental para a criação:

A questão é que a combinação de dois hieróglifos dasérie mais simples não deve ser considerada como uma somadeles e sim como seu produto, isto é, como um valor de outradimensão, de outro grau; cada um deles, separadamente,corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combinaçãocorresponde a um conceito (2000: 151).

Se Eisenstein inspirou-se no ideograma para elaborar sua teoria da

montagem cinematográfica, Fenollosa investigava em que sentido os

versos escritos sob a forma de hieróglifos visíveis – os ideogramas –

podiam ser tidos por verdadeira poesia. Este último estava investigando a

propriedade imagética da poesia na escrita figurativa chinesa, ou seja, a

imagem. Para resolver esta questão, buscou nas raízes do ideograma o

conceito fundamental. Fenollosa concluiu que um grande número das

raízes ideográficas carrega consigo uma idéia verbal de ação. O verbo

concreto, como o autor assim define, daria forma visível à ação. Esta

qualidade concreta do verbo, segundo ele, torna-se muito mais

impressionante quando passamos das imagens simples e ordinárias para

as compostas. No processo de composição ideográfico, duas coisas que se

somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação

fundamental entre ambas (2000: 116).

As explorações de Fenollosa e Eisenstein em torno do ideograma e

da escrita figurativa, se transpostos para a teoria intermídia, são

referenciais e mostram o papel fundamental desta forma de escrita, da

imagem e das suas relações conceituais na criação poética

contemporânea.

66

2.8 Poesia visual, pattern poetry

Tão antigas como na milenar cultura chinesa, também na cultura

ocidental encontram-se investigações sobre as inter-relações conceituais

que servem de referência para a criação poética contemporânea. No campo

da teoria, o estudo de Giordano Bruno De imaginum, signorum et idearum

compositione, datado de 1591, dava conta de aprofundar-se nas

proximidades entre as artes, propondo sua unidade e antecipando a idéia

de sinestesia e de intermídia. Só para se ter uma idéia do pensamento de

Bruno, vejamos o que ele colocava sobre as funções dos artistas e da arte:

“... em certa medida, filósofos são pintores; poetas são pintores e filósofos;

pintores são filósofos e poetas” (BRUNO, apud HIGGINS, 1984: 31).

No campo da criação, a poesia visual é antecedente de muitas

obras criativas de hoje, assim como a poesia concreta e seus poemas

verbivocovisuais, além de todos os experimentalismos poéticos dos anos

60 e 70 e as pós-vanguardas artísticas do começo do século XX. Antes de

tudo isso, porém, houve a pattern poetry, uma espécie de poesia visual dos

primórdios, uma forma particular de literatura, segundo Higgins (1987), na

qual texto e forma visual interagem. O autor considera pattern poetry

aquelas obras surgidas até o ano 1900, quando esta entra em uma espécie

de obscuridade e inicia-se uma segunda fase da poesia visual. Higgins

(1987) descreveu mais de três mil anos de poesia visual encontrada em

várias culturas, tanto no lado ocidental como oriental, ligadas à Igreja, à

cabala, em poemas, inscrições, etc.

A primeira forma de pattern poetry, segundo Higgins, data de 1.700

a.C. Trata-se do Disco de Festus, encontrado em Creta, mas de origem

desconhecida. É um disco de argila cinza, com inscrições em ambos os

lados, mais tarde decifradas como uma mensagem entre lavradores. Para

67

Melo e Castro16, esta é uma das matrizes da poesia visual. Outros

exemplos deste tipo de poesia datam dos anos 300 a.C. São constituídos

pelo conjunto de trabalhos de Simmias de Rhodes, compostos por poemas

em três formatos: o primeiro, em forma de eixo, o segundo, em forma de

asas, e o terceiro e talvez o mais conhecido antecedente da poesia visual,

em forma de ovo, o Ovo de Simmias.

2.9 Poesia total

No século XX, que inicia com a criação limítrofe de Mallarmé, Un

coup des dés, e as vanguardas literárias, a história da criação poética é

feita de uma procura por novos códigos e formas de expressão. No

decorrer do século, a idéia de fundir não só códigos mas também meios de

representação em direção a uma poesia total é um momento da criação

que sucede as vanguardas poéticas. Aparece como a poesia experimental

das décadas de 60 e 70. Na análise de Philadelfo Menezes, a busca de

uma poesia total surgiu como tentativa simultaneísta integradora dos

sentidos que pudesse revitalizar o experimentalismo pós-moderno

(MENEZES, 1992).

Os meios técnicos de expressão – e por conseguinte, de criação –

neste campo surgem a partir de meados da década de 50 e isso marca

uma nova fase da criação poética, imediatamente sucessora das

vanguardas, mas obviamente influenciada por todos os movimentos

daquelas. Resultado disso são várias formas de poesia experimental, que

têm como características, entre outras, a postura mais ativa do poeta, a

utilização de voz, do sopro e de outras atividades biológicas do autor ou do

performer, entre outros (MELO E CASTRO, 1993). A poesia sonora é um

dos resultados desse momento, uma forma de criação poética que se

16 No curso “Que olhos vêem que mundo? Infopoesia”. Itaucultural, São Paulo, agosto de 2000.

68

utiliza, então, dos meios técnicos eletromagnéticos (de gravação da voz),

faz um cruzamento com as poesias visuais e performáticas num exercício

intermidiático (MENEZES, 1992). Também conseqüência disso é a poesia

visual, que busca a fusão conceitual da imagem com a palavra, amparada

por meios de criação como o vídeo e o computador.

A classificação proposta por Melo e Castro (1993), neste sentido, é

útil para um breve recorrido pelas formas expressivas pelas quais passou a

criação poética:

1. Poesia visual – Caligramas de Apollinaire; experiênciasgráficas do futurismo; concretismo (brasileiro e internacional).Visopoemas (Lisboa);

2. Poesia auditiva – Experiências com a voz humana tratada ounão com o magnetofone; poesia rítmica ou poesia melódicacom palavras, sílabas ou sons puros. Algumas experiênciasdadaístas e letristas. Composição direta na trilha sonora.

3. Poesia tátil – O poema é um objeto. Todas as formas decolaboração com artistas plásticos. Ready-mades. Objetopoema e poema objeto. Todos os processos de construçãoque dão ao poema um corpo material.

4. Poesia respiratória – Experiência de Pierre Garnier com osopro humano.

5. Poesia lingüística – e.e. cummings, James Joyce, Ezra Pounde muitos outros. Tentativas de criação de palavras e línguasnovas. Poesia poliglota.

6. Poesia conceitual e matemática – Cibernética. Métodospermutacionais e combinatórios. Estrutura numérica da obrade arte. Experiência de Raymond Queneau.

7. Poesia sinestésica – desenvolvimento das sinestesias.Produtos híbridos dos tipos de poesia já referidos.

8. Poesia espacial – Mallarmé: Um coup de dés. De um modogeral, o sentimento espacial manifesta-se como denominadorcomum de todas as formas atuais do experimentalismopoético (1993: 35-36).

69

2.10 Remediation

A remodelação de meios anteriores ao surgimento do computador

nos ambientes digitais define a lógica da remediation, de acordo com Bolter

e Grusin (1999)17, que opera em dois sentidos: de tornar o usuário

consciente da presença do meio (o que os autores definem como

hypermediacy) ou tornar o meio transparente ao usuário, o que é definido

como immediacy, ou seja, o usuário não tem consciência da presença do

meio. Esta teoria serve para tornar mais explícita a fusão conceitual de

meios que se opera nos ambientes digitais. Remediation, segundo os

autores, é a chave para entender como um meio remodela seus

predecessores e outros meios contemporâneos.

Enquanto Higgins, na teoria intermídia, fala da fusão de meios,

Bolter e Grusin atestam que a criação (em hipermídia) é o ato de reajustar

formas:

Na colagem e na fotomontagem, assim como emhipermídia, criar é reajustar formas existentes. Em fotomontagemas formas pré-existentes são as fotografias; no hipertexto literáriosão os parágrafos da prosa; e na hipermídia elas podem serprosa, gráficos, animações, vídeos e sons (1999: 39).

Para analisar a comunicação, informação e a expressão poética nos

meios digitais, estes autores sustentam que há uma lógica que oscila entre

a immediacy e a hypermediacy. A primeira torna o meio imperceptível aos

olhos do observador/usuário, enquanto a segunda possibilita ao observador

a consciência da presença do meio. Remediation acontece, então, pela

substituição de um meio por outro todo o tempo, em alguns casos na forma

de hypermediacy, ou seja, em que a presença do meio é percebida, e em

outros, como immediacy, quando a presença do meio não é percebida.

17 Não há palavra na língua portuguesa adequada para traduzir remediation, immediacy ehypermediacy, por isso, utilizamos estes termos no seu original, em ingês.

70

Como exemplo de hypermediacy, os autores observam o estilo das

janelas (windowed style) da World Wide Web, em que é possível abrir-se

vários tipos de informação em espaços diferentes. Devido à multiplicidade

das janelas e à heterogeneidade dos seus conteúdos, o usuário é

freqüentemente trazido ao contato com a interface, oscilando entre

manipular as janelas ou examinar os seus conteúdos. Isso torna o meio

perceptível ao usuário, já que ele acessa as diferentes formas de

representação existentes nesse espaço heterogêneo (BOLTER; GRUSIN,

1999: 33).

FIGURA 11 A consciência do meio em Patchwork Girl, através dasimagens dos mapas de visualização, e ilustrações e textos dahiperficção

71

O segundo exemplo, immediacy, leva como que a uma

naturalização do meio. Veja-se o caso da metáfora da “área de trabalho”

(desktop metaphor): o computador assimilou instrumentos de trabalho do

mundo real, por assim dizer, como a lixeira, os arquivos, pastas, etc., e o

mouse possibilitou ao usuário tocar, mover e manipular estes signos visuais

instantaneamente. Tal “transparência”, segundo os autores, possibilita à

interface como que “apagar-se” a si mesma, a tal ponto que o usuário não

fica consciente de sua presença, mas apenas do conteúdo (BOLTER;

GRUSIN, 1999: 24).

A lógica da remediation dá uma idéia das formas pelas quais ocorre

a fusão de meios. A presença marcante do meio resultante é algo que

sempre fascinou o artista e o técnico, na verdade: o meio como referencial,

como algo que se mostra na sua especificidade e nas suas características.

Por outro lado, a ilusão de transparência do meio também tem sua

importância, já que com isso privilegia-se o conteúdo, que, desta forma,

adquire mais força e poder de significação.

A fusão conceitual, como propõe Higgins, resulta em um novo meio,

formado por partes significantes de meios anteriores. Como dizem Bolter e

Grusin (1999), o que é novo nos novos meios é também velho e familiar:

eles prometem o novo pela remodelação do que os precederam.

A teoria da remediation, neste sentido, vem corroborar a tese de

Higgins: o meio resultante do reajustamento das formas significantes que

se dão nos meios digitais é um intermeio. Apesar de o estudo de Bolter e

Grusin não se deter nas criações poéticas, o que é uma pequena parte de

suas preocupações, retomamos a lógica da remediation por parecer ideal

para colaborar com o entendimento do que Higgins propõe como obra

intermídia.

Assim como Higgins, Bolter e Grusin estão preocupados em

identificar, na criação artística contemporânea, traços de sua herança

72

histórica. Ainda que exista uma lacuna de quase 50 anos em relação a um

e outro, os estudos de ambos parecem estar relacionados. Eles buscam um

entendimento dos novos meios a partir da presença, neles, dos meios

anteriores.

Tendo a fusão da imagem e da palavra como referência, a literatura,

nestes ambientes, é de mixagem, uma mistura não só de meios

perceptíveis, o que fica no plano da chamada multimídia, mas de meios que

não se destacam dos demais, que estão fundidos com o objetivo de

multiplicar os significados da obra criativa. Para Higgins, a intermedialidade

é apenas uma parte de como a obra era e é; reconhecer isso faz a obra

fácil de ser classificada, já que se pode entendê-la melhor e a seus

significados.

Como Fenollosa preocupava-se com a presença imagética do

ideograma na poesia chinesa no sentido da forma poética, hoje uma

preocupação recorrente com relação à criação poética nos meios digitais é

se estas podem ser consideradas “poesia”, uma vez que trazem formas

distintas de representação. O conceito de Higgins poderia bem dar conta

desta fusão. Este tipo de poesia não é só uma quantidade de versos,

imagens e sons, mas também um momento para a criação espacial destas

formas, tudo convergindo em um novo tipo de representação poética,

inclusive o passado e o presente da criação literária: intermídia.

A idéia de retomar um conceito como o de intermídia vem de

encontro a fazer uma ponte com o passado para chegar ao entendimento

da criação do presente. Este exercício só vem a comprovar que o novo

sempre opera com as referências do antigo, seja na fusão conceitual, seja

na remodelação de significados.

73

2.11 O Hipertexto que fala sobre o Hipertexto

Seguindo a tendência epistemológica do fazer artístico do século

XX, as poéticas digitais vão refletir sobre si mesmas, o que é ressaltado por

obras como Patchwork Girl e Afternoon a Story, como veremos nos

capítulos três e quatro. A metalinguagem da obra em hipertexto está

profundamente ligada com a materialidade deste tipo de escrita: as

referências são feitas na direção da característica técnica do suporte, por

exemplo, em relação à forma do texto (as “partes” da monstra, em

Patchwork Girl, são também os fragmentos de que é feita a escrita

hipertextual, como veremos no capítulo quatro).

Lev Manovich (2000) observou que, nos meios digitais, o conteúdo

e sua interface, pelo nível de integração que alcançam, não podem ser

pensados como entidades independentes. Isso parece encaixar-se

perfeitamente numa hiperficção em Storyspace, especialmente, Patchwork

Girl, que faz da conexão do conteúdo da ficção com a tecnicidade do texto

digital sua base criativa. Isso transparece na interface, que mostra um texto

em pedaços, ao mesmo tempo em que a personagem se refere a si própria

como uma criação cujas cicatrizes marcam sua dispersão.

“Modo de usar” é como se definem as instruções de utilização de

um produto que ainda não conhecemos, geralmente, instruções contidas

em um manual que acompanha o respectivo produto. Algumas obras

literárias, como O Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortázar, instituíram uma

espécie de “modo de usar” da própria obra. No caso, um modo de ler.

Cortázar advertia o leitor de seu romance de que poderia fazer uma leitura

da obra a partir de diferentes seqüências propostas. Raymond Queneau, no

também já citado Cent mille milliards de poèmes, introduz sua obra ao leitor

com um “Mode d’emploi”, no qual explica como fazer a leitura, efetuando

percursos de combinatórias.

74

As ficções em hipertexto apropriaram-se do modo de usar. Em

Afternoon, a story, Michael Joyce dá coordenadas ao leitor sobre como

iniciar ou terminar de ler sua história – “quando a história não progride, ou

quando o leitor se cansou dela, a experiência de leitura termina”, diz o

autor, no espaço [work in progress]. O hipertexto talvez necessite de

instruções pelo fato de se constituir em um tipo de escrita realizado em um

suporte que ainda não está plenamente integrado aos modos culturalmente

aprendidos de empreender a leitura.

Em alguns casos, as instruções são colocadas em um manual à

parte, como em Patchwork Girl, um arquivo em PDF, separado da obra

ficcional. Neste manual, a autora explica como instalar a obra e qual é a

sua composição – espaços de escrita, links, janelas e mapas e

funcionamento do ato de leitura, entre outros aspectos.

Mas o modo de usar também pode estar dentro do corpo da obra

ficcional e isso é tão fundamental na obra de Jackson, que se tornou

também objeto de sua ficção, num exercício metafórico no qual a autora

amiúde vai mesclar o teor de sua história ficcional com as características

físicas que compõem o próprio hipertexto. Isso é metalinguagem. É o

hipertexto que fala do hipertexto.

2.12 Interrogando a materialidade da escrita

Em Patchwork Girl, a conexão da obra com sua técnica é definidora,

uma intenção latente da obra. O hipertexto serve como metáfora para a

história, sendo parte do próprio corpo da obra, tal é sua relação com o

conteúdo da ficção. Nesta obra, o hipertexto discorre sobre sua própria

natureza, em uma história que fala de um corpo separado em partes e sua

auto-referencialidade em busca de si mesmo, num caminho para fazer

sentido a si próprio, dentro de suas marcas, cicatrizes e deformações.

75

É nesse sentido que Patchwork Girl encarna a conexão da obra com

seu suporte: isso “emerge de interações entre as propriedades físicas e as

estratégias artísticas da obra” (HAYLES, 2003: 33). A autora sustenta que a

forma física do artefato literário sempre afeta o que as palavras – e outros

componentes semióticos – significam (2003: 19). A obra interroga a

tecnologia de inscrição que a produz, mobilizando saltos reflexivos entre

seu mundo imaginativo e o aparato material incorporado naquela criação

como presença física, diz Hayles (2003: 25), e isso parece definir

Patchwork Girl. Esta hiperficção, escrita por Shelley Jackson e baseada em

Frankenstein, de Mary Shelley, ao mesclar a história de Frankenstein com a

digressão teórica sobre o hipertexto, está auto-refletindo sobre sua própria

materialidade, ou seja, sobre a forma de escrita hipertextual.

A obra de arte contemporânea se transforma, hoje, numa

epistemologia de si própria, como observou Arlindo Machado:

... o artista pode, em circunstâncias nada excepcionais, exibir-secomo aquele para quem fazer arte é o equivalente a falar sobre aarte. [...] uma porcentagem esmagadoramente grande das obrasartísticas produzidas em nossa civilização ocidental já traz,implícita, a sua própria teoria, a crítica ou a reflexão sobre simesma (1974 – primeira parte: 4).

Não é difícil perceber como Patchwork Girl utiliza-se de sua própria

materialidade com o objetivo de cativar o leitor. Isso pode ser lido em cada

espaço de escrita, onde o hipertexto é a metáfora para a história do próprio

monstro mulher que é o Frankenstein de Shelley Jackson. Vejamos alguns

exemplos, constantes em alguns dos espaços de escrita desta obra:

... But my real skeleton is made of scars: a web that traverses mein three-dimensions. What holds me together is what marks mydispersal. I am most myself in the gaps between my parts, thoughif they sailed away in all directions in a grisly regatta then would benothing left here in my place.

[…]

I am made up of a multiplicity of anonymous particles, and have noabsolute boundaries. I am a swarm. ‘Scraps? Did you call mescraps? Is that my name?’

76

[…]

I hop from stone to stone and an electronic river washes out myscent in the intervals. I am a discontinuous trace, a dotted line.

[…]

… a dotted line demonstrates: even what is discontinuous and inpieces can blaze a trail (excertos de Patchwork Girl, S. Jackson,1995).

Impossível deixar de relacionar a metáfora ao suporte tecnológico

hipertextual: partículas, ausência de limites absolutos, descontinuidade...

A frase “What holds me together is what marks my dispersal” (“O

que me mantém unido é o que marca minha dispersão”) é uma alusão à

própria essência do hipertexto, representada pelo link: ao mesmo tempo

que aglutina o todo hipertextual pela conexão, o link marca a dispersão da

informação em uma rede multiforme. Tais alusões à sua materialidade não

são mais do que a pontuação de uma questão que sempre acompanhou o

processo artístico: o paradoxo criação/teoria, como recorda Machado

(1974), que encontra sua mais plena expressão justamente na literatura

contemporânea, e a hiperficção não fica à margem desta preocupação,

como se percebe no exemplo de Jackson.

O questionamento de sua própria materialidade não é mais do que a

busca da opacidade da matéria artística, como podemos inferir da

observação de Machado:

As artes contemporâneas têm buscado com relutadoesforço essa opacidade da matéria artística, esse estado deesvaziamento dos conteúdos semânticos e pragmáticos, apretexto de uma brancura essencial, onde o espelho dasconstruções sintáticas não deixe de refletir senão o própriomaterial, os meios de estruturação da obra (1974: 4).

Esse é o caso, também da possibilidade de visualização dos mapas

do Storyspace, proporcionada por Patchwork Girl, que permite a plena

consciência da estrutura da obra, o que dá ao leitor a consciência da

materialidade da escrita naquele tipo de sistema hipertextual.

3 AFTERNOON, PIONEIRO

The apparent autonomy of the computer is simply a newmanifestation of the apparent autonomy of the book; thecomputer’s voice is the voice of the prose that has addressed usfor centuries from the pages of books. Our ambivalent reaction tothe voice of any book (is it the author? is it simply the voice of thereader? is it somehow independent of either?) is the source of boththe interest and the fear that the computer inspires18.

Quando Michael Joyce participa da criação do Storyspace, junto

com J. David Bolter e John B. Smith, ele está preocupado em dar forma a

uma obra literária, talvez mais do que a um software. Em seu livro Of two

Minds, Joyce lembra:

Eu queria, simplesmente, escrever um romance quemudasse conforme sucessivas leituras, e que estas versõesfossem feitas de acordo com conexões que eu tivesse descobertono processo de escrita, e queria que meus leitorescompartilhassem disso (1995: 31).

Esta poderia ser, em rápidas linhas, a definição de Afternoon, a

story. Esta hiperficção surge desta preocupação: romances que pudessem

mudar a cada vez que alguém os lesse e, ainda, aparece concomitante com

a criação da própria ferramenta que lhe dá origem concreta. Embora tenha

sido criada juntamente com o programa Storyspace, Afternoon, a story foi

publicada antes mesmo do lançamento do software. Talvez este fato sirva

para definir esta obra como pioneira e precursora da literatura em

hipertexto. E, também, explique por que Afternoon é a mais citada dentre as

18 BOLTER, Jay David, 1991: 188.

78

obras em ficção hipertextual. Além de ter sido a primeira publicada em um

sistema de hipertexto como o Storyspace, o fato de Afternoon, a story ser

exemplar no uso do hipertexto é um dos motivos pelos quais é reconhecida

sua originalidade.

Escrita por Michael Joyce, em 1989, Afternoon é distribuída pela

Eastgate Systems, responsável também pelo Storyspace, e é

disponibilizada em sistemas Windows ou Machintosh, hoje, em 2004, da

mesma forma que rodava em um computador há 15 anos. O interesse por

Afternoon, a story, atestado por pesquisadores, leitores e escritores, não se

perdeu no tempo da evolução dos software, e isso pode indicar um sinal de

sua importância na criação literária em hipertexto19.

Pode-se indagar que tipo de influência teve Michael Joyce em

Afternoon, a story? Por certo, do ponto de vista da técnica, nenhuma, já que

seu trabalho pioneiro introduziu o hipertexto na ficção. Esta é a

originalidade da obra, que aparece em um contexto de transformações,

com os meios digitais, mas também de dúvidas e incertezas devido à pouca

familiaridade com esses meios.

Pode-se dizer, por outro lado, que Afternoon, a story incorpora

influências da literatura como um todo, e isso, desde o texto em sua

fragmentação, até sua multiplicidade, fatores que já foram analisados por

autores como o próprio Joyce (1995), Landow (1997), Bolter (1991), dentre

outros.

19 J. Yellowlees Douglas (2000), Espen Aarseth (1997), Ilana Snyder (1997) e J. D. Bolter (1991)são alguns autores que verificam as características do hipertexto ficcional criado neste programa;George Landow utilizou o Storyspace em sala de aula (1997).

79

3.1 A leitura produz um original

Mas a originalidade é conferida à obra também através da soma

entre sua produção e fruição. Há um momento que, conforme Joyce bem

definiu (1995: 177), o leitor torna-se um leitor como escritor (“reader as

writer”). Nesse sentido, obras em Storyspace como Afternoon são originais

também do ponto de vista da leitura. Na primeira leitura que realizamos de

Afternoon, a story, há quatro anos, verificamos que a obra continha uma

espécie de aura, no sentido benjaminiano do termo, que se traduz pela

sensação do aqui e agora. Lendo Aarseth (1997), a questão da aura em

relação às obras digitais vem novamente à tona. Para o autor, obras

disponibilizadas na World Wide Web nos trazem a uma nova era na história

da arte, a qual podemos chamar “Age of Post-reproduction”. Aqui, a obra de

arte recupera parte de sua aura, seu “aqui e agora”, através da sensação

de que ela não poderá ser plenamente copiada e reproduzida, de vez que

tem um espaço singular na rede e uma dimensão temporal, um tempo de

vida dinâmico. Isso se deve, em grande parte, às diferentes possibilidades

e variações de leitura que ela oferece. Ainda podemos especular se, como

diz Beigelmann (2003), pode ser definida como “original de segunda

geração”. Para a autora:

A informática em si é tecnologia de replicação, clonagem.Ao mesmo tempo em que permite a produção de “idênticos”múltiplos pela cópia do código, engendra o fenômeno cultural eestético do “original de segunda geração” (2003: 59).

Argumentávamos que, cada leitura de Afternoon, a story sendo uma

leitura única, daria uma aura à obra, que a tornaria um produto especial,

único, presente no aqui e no agora do ato de leitura que a conforma

enquanto obra literária, e que varia de leitor a leitor. Pode-se dizer que cada

leitura realizada desta obra é única. Isto a coloca num patamar específico –

mais alto, certamente, do que a posição anterior da obra em si, ou seja,

antes da apreciação. Após uma leitura que a retira do limbo a que estava

80

relegada, presa ao disquete, esperando por um leitor, a obra parece

adquirir ao redor de si um halo de originalidade.

A hiperficção, portanto, ao receber uma leitura que é única, porque

feita de acordo com uma determinada combinatória entre seus elementos,

será transformada, também ela, em um objeto incomum. Tal singularidade,

entretanto, não se constitui apenas na instância da produção do objeto,

mas obedece a uma outra ponta, aquela da fruição da obra: no contexto

digital, não só o autor terá importância sobre o resultado de sua obra, mas

também, e principalmente, o leitor e o uso que dela realizar. Este mix de

funções já foi objeto de teóricos da Escola de Constanza, como Wolfgang

Iser, e, posteriormente, de outros pesquisadores, como Umberto Eco e

Roland Barthes, que sustentavam que os atos de leitura pressupunham

interpretações diferenciadas. Porém, é somente com as possibilidades do

hipertexto que isto realmente se amplia.

Varia também, neste caso, o tempo necessário para efetivar-se sua

leitura, já que o tempo será determinado pelo leitor, que, a exemplo do que

acontece com Finnegans Wake, de James Joyce, ou Galáxias, de Haroldo

de Campos, pode “visitá-las” e “revisitá-las”, em momentos distintos. Tais

obras não oferecem uma organização de leitura pré-definida. Isso vem a

reforçar a análise referente à leitura única. A obra será irreproduzível no

momento que se oferecer em vários tipos de conformação, originadas pelas

leituras que dela se fizer. Executar a leitura em tempos diferentes a cada

vez que se lhes efetua se torna, portanto, um diferencial deste tipo de obra,

que não é um produto acabado, pronto para o consumo, mas um produto

para ser apreciado sob diversos ângulos e de diferentes formas.

A narrativa de ficção em hipertexto, porque possibilita leituras

únicas, torna-se, ela mesma, um original. Para Bolter, por exemplo, na

hiperficção não há uma história, mas várias leituras. A história será a soma

destas leituras (1991: 124-125). Nas palavras de Michael Joyce, “a história

81

existe em vários níveis, e muda conforme as decisões que você (leitor)

faz”20.

Para efetuarmos uma análise de uma obra como Afternoon, a story,

no entanto, deveremos levar em conta quadros de referência distintos

daqueles utilizados na crítica literária tradicional. Se algo nos trouxe a

cultura digital, foi lentes para vermos o mundo com outros olhos. De acordo

com Hayles (2002), os meios digitais nos deram uma oportunidade de ver o

impresso com outros olhos e, com isso, a possibilidade de entender quão

profundamente a teoria e a crítica literária têm sido saturadas com

premissas específicas do impresso.

Que a literatura eletrônica opera de forma diferente do impresso,

devido ao seu suporte, e por isso requer novos quadros de referência, é

óbvio. Vários autores têm se debruçado em buscar estes quadros teóricos

para analisar as práticas de escrita e de leitura trazidas pelos meios digitais,

como Moulthrop, Aarseth, Douglas, Hayles, Glazier. Desses autores

encontramos novos referenciais teóricos que podem dar conta da análise

da literatura em hipertexto, especialmente naquilo que concerne à sua

materialidade, relativa ao suporte digital que influi decisivamente na escrita

em hipertexto. Levar em conta o meio digital na sua materialidade implica

ainda, segundo Hayles, ter consciência de que as “funções textuais não

devem ser baseadas apenas nas marcas que aparecem na tela, mas

também levar em conta o que está acontecendo dentro da máquina” (2002:

40). Nesse sentido, a leitura deve orientar-se não apenas para o sentido do

texto, mas, numa perspectiva integrada, para todos os componentes do

suporte, que se tornam práticas significantes, como salientou essa autora.

A questão principal relativa a este tipo de poética conformar obras

em hiperficção, talvez seja a inversão daquilo que o lingüista Roman

Jakobson (s.d.) definiu como a própria função poética da linguagem, ou

20 Esta é uma das “orientações” que autor faz ao leitor, em Afternoon, a story.

82

seja, a projeção do eixo do paradigma sobre o eixo do sintagma. Na poesia,

por exemplo, o uso figurativo das palavras é que confere seu significado, ou

seja, as seleções de combinação (paradigma) prevalecem sobre a

contigüidade (sintagma). Isso seria, em grande parte, o que diferenciava a

poesia da prosa, sendo a poesia o campo por excelência da metáfora,

enquanto que a prosa seria mais baseada na metonímia.

No contexto associativo das narrativas em hipertexto, tal asserção

encontra uma outra acepção, ou seja, trata-se de se projetar o eixo do

sintagma sobre o eixo do paradigma, uma vez que as operações de

seleção e combinação devem se dar de forma inversa no sentido de se

obter da obra sua significação. Ou seja, as alternativas de combinatória, na

prosa hipertextual, são dadas de modo simultâneo; cabe ao leitor

atualizá-las, através da sua leitura, que é uma busca incessante de

conexões, nem sempre óbvias, mas freqüentemente desafiadoras, entre

palavras, sons e imagens. Como definiu Michael Joyce: “O significado na

narrativa é uma re-alocação ordenada mas contínua de estruturas

significativas através do texto” (1995: 191). Ele continua, mais adiante,

ratificando que “o sentido da narrativa é sempre estreitamente

potencializado – externa e em certa medida anterior ao texto” (1995: 192).

Da mesma forma, trata-se de um texto que tem a característica da

multiplicidade, muito bem observada por Ítalo Calvino (1997) e que

Machado interpreta a partir da crítica literária que busca na gênese da

escritura a investigação. Para o autor, esta crítica tem demonstrado que:

A escritura, no seu momento genético, é sempre plural;ela se dá como feixe de possibilidades e a grandeza do resultadofinal está menos em escolher a melhor alternativa do que em darforma orgânica à multiplicidade (1997: 148).

Se observarmos a já citada lembrança de Michael Joyce quanto à

origem de Afternoon, veremos que tal afirmação é mais do que teoria, está

baseada na realidade da criação, como exemplifica a história de Joyce.

83

Com o computador e a possibilidade de armazenamento da

informação de forma virtual, as estratégias de fruição da obra artística

também vão ganhar, no caso da literatura, por exemplo, em obras que

permitem a construção de trajetos de leitura formados pelo acesso aleatório

a um campo de possibilidades. As obras digitais que tratam de devolver ao

leitor esta prerrogativa, e assim de efetuar a multiplicidade, nada mais são

do que a concretização de um conjunto de possibilidades previstas

anteriormente na história da criação literária. Mas, como bem nos lembra

Machado (1997), embora os atos de leitura e recepção, por pressuporem

interpretações diferenciadas, fossem tidos como “atos de criação e

expressões de uma certa liberdade, a verdade é que apenas a partir dos

anos 1960 tais atos ganharam autonomia suficiente, a ponto de

converterem, muitas vezes, o receptor em co-criador da obra” (1997: 145).

3.2 Paralelismo, associação, não-linearidade

A atualização de informações existentes em estado latente é o

motor do discurso de leitura de Afternoon e das obras hipertextuais,

marcado por elementos como o paralelismo das tramas, como se vê em

Afternoon, pelas associações mentais e pela não-linearidade no discurso

narrativo hipertextual. O leitor faz assim um percurso que inclui atualização

e recuperação de informações, a fim de consolidar a narrativa e assim obter

significados dela. Em Afternoon..., em particular, fazemos um percurso no

qual podemos, ao mesmo tempo, atualizar uma informação que existia em

estado latente, potencial e, ainda, recuperar uma informação que já

havíamos obtido, mas que havia sido apagada pela sua própria atualização

posterior.

A partir das instruções do autor, o leitor pode escolher uma forma de

leitura, que poderá mudar conforme o seu trajeto. Por exemplo, uma leitura

84

que inicia tendo como alternativa de continuação somente a tecla enter, vai

efetuar um percurso definido pelo autor como default. Mas se, em dado

momento, o leitor decidir por modificar esta estratégia, o que pode

acontecer com a narrativa? Optamos por perfazer uma leitura a partir deste

exemplo, ou seja, começar com a tecla enter e seguir, a partir do terceiro

espaço visitado, com a alternativa Y, que, no caso desta hiperficção, se

refere à palavra yes. O sentido que foi se construindo dizia respeito às

reflexões do narrador sobre sua dúvida em ter visto seu filho e sua mulher

vitimados por um acidente de automóvel, seguida de pensamentos sobre

algum lugar do passado de sua história pessoal, e a volta à dúvida sobre o

acidente, no espaço [die], que diz: “I felt certain it was them, I recognize her

car from that distance, not more than a hundred yards off along the road to

the left where she would turn if she were taking him to the Country Day

School. [...]. [die]”.

Parece mais o fluxo do pensamento, colocado em janelas distintas,

em espaços próprios, em fragmentos que não fazem mais do que reforçar o

modo de funcionamento de sua mente. Como observou Vannevar Bush

(1945), num outro contexto, a respeito do que mais tarde seria reconhecido

como a origem teórica para o surgimento do hipertexto, são os trilhos do

nosso pensamento, que atua de forma não-linear.

Mais uma vez, vê-se aqui a metáfora: em espaços de escrita e

fragmentos, a reflexão do narrador vai por pedaços, assuntos dispersos,

momentos de sua experiência de vida, e por sentimentos diferentes com

relação a cada um desses momentos.

O fluxo de pensamentos do narrador parece ir por dois caminhos em

paralelo, que se tangenciam em alguns momentos: a dúvida sobre o

acidente ter vitimado seu filho e sua mulher, e a conversa com Werther e a

(outra) dúvida sobre a relação deste último com a ex-mulher do narrador.

85

Ao mesmo tempo em que narra o diálogo com Werther, o narrador

parece conversar com sua própria consciência, com seus medos, como se

vê no espaço [whom]:

(whom) he says, (A writer should know that whom are youconcerned about? Her or him?)

The lady or the tiger.

(why didn’t you just turn your car around and see if it was them,instead of worrying yourself to death?)

(I was afraid to see.)

(You can never be afraid of that. Not in this business.)

Insurance or poetry? [whom]

Note-se que aí também está presente a menção ao ofício do

escritor, a à própria função poética: nas palavras e frases da ficção,

imbricam-se as palavras que levam além do conteúdo da história. O autor

debate-se não somente em uma dúvida, mas reflete sobre sua própria ação

– “insurance or poetry”?

Várias histórias correm em paralelo ao percorrer os caminhos de

Afternoon, a story. Conforme o leitor atuar sobre as opções dadas,

(utilizando a tecla enter/return do teclado, ou simplesmente clicar sobre

qualquer das palavras do texto, ou ainda, clicar sobre Y (yes) ou N (no),

abrir-se-á um fio de história) (Fig. 12). Assim, as estórias se desenvolvem

tal como em uma montagem paralela, no cinema. É desta forma que a

leitura pode começar com um texto em que o autor diz, sem ter certeza,

que pode ter visto seu filho morto em um acidente de automóvel. Seções

(espaços de escrita) diferentes se abrem, para dar a conhecer tanto sua

dúvida quando fala sobre o acidente na estrada que teria presenciado, ou

suas relações com a esposa, a amante e o funcionário, por exemplo, como

se fossem pensamentos desconexos na rede associativa da mente.

Afternoon, a story dá forma a estas associações mentais.

86

FIGURA 12 Espaço de escrita de Afternoon, a story. Na parte inferior, os“botões” de navegação – Y, N, e as opções: Links (paraverificar os links), History (para ver o histórico dos espaçospercorridos na atual leitura; Bookmark (na forma de clips),adicionar notas (representado por uma folha escrita) e back,representado por uma seta

Se a leitura de fato, como diz Liestol (1997)21, articula um eixo do

discurso, temos aí uma linearidade pela atividade de dar seqüência a um

texto potencialmente dado como série de possibilidades, e portanto, de

seqüências distintas. Acontece então a linearidade, porque ela surge a

partir de uma seqüencialidade inerente à leitura realizada. Se for assim,

21 Para este autor, o hipertexto inclui um terceiro nível à história-discurso, que pode ser definidocomo o nível do “discurso discorrido”. Isto se refere à criação de um caminho baseado na seleçãoe combinação de elementos já existentes numa ordem espacial de nós e ligações. Então, a linhado discurso, para este autor, dividir-se-á em dois níveis diferentes: o discurso como texto não-linear armazenado no espaço (virtual), e o discurso discorrido, tal e como foi lido de fato. Haveráuma história possível ou potencial, aquela que está armazenada, e outra história de fato, que odiscurso discorrido articula.

87

chegamos à conclusão de que a não-linearidade, no hipertexto, dá-se única

e exclusivamente no eixo do paradigma, ou seja, da forma como é disposta

a informação.

“Recuperar”, visto sob outro ângulo, significa uma volta atrás, no

sentido de buscar algo que ficou. Ora, este processo implica um ir e vir, um

fluxo e refluxo, onde dá-se, essencialmente, a não-linearidade. Ao ler uma

ficção em hipertexto como Afternoon, a story, por exemplo, fazemos estes

saltos a partir de diversas opções de continuidade da história.

Já em relação ao paralelismo, vemos que está estreitamente

associado às associações mentais. As situações dramáticas colocadas em

paralelo podem ser vistas como a mesma passagem, pois, ao mesmo

tempo em que Peter, o narrador, diz que provavelmente viu seu filho morto

em um acidente de carro, em suas divagações, aparece seu

relacionamento com o empregado, Werther, ou ainda, com a esposa, ou

com a amante, Nausicaa. A narração de Afternoon, sempre na primeira

pessoa, passa, ainda, pela dúvida de Peter desde o momento em que

pensa ter visto seu filho morto, passando pelo pavor de procurá-lo nos

hospitais.

Um almoço, conversas sobre a esposa de Peter ou Nausicaa, e o

papel de Werther em relação a este triângulo, acompanham a trama. O que

muda, então? Se algo muda, é o contexto. Uma vez que a leitura se dá por

caminhos diferentes, ainda que passem por pontos cuja história parece

estar em paralelo, cada um destes espaços de estória terá um sentido na

medida em que o próprio contexto narrativo for se efetuando. Ou seja, o

mesmo texto “eu acho que vi meu filho morto esta manhã”, ao ser aberto

pela primeira vez, poderá ter um impacto, e mesmo um significado; já ao

passarmos por este espaço posteriormente, e conforme os links lidos

anteriormente, poderá ter um outro significado. Sobre isso, e mais uma vez,

o autor explica ao leitor:

88

Uma palavra que não tem um seguimento (que não levaa um espaço de escrita) na primeira vez que você lê a seção,pode levá-lo a outro lugar se você a escolher quando encontrarnovamente a seção; e algumas vezes, o que parece ser um salto,como a memória, leva para outra direção22.

Um exemplo de o que se pode encontrar ao clicar em palavras “que

convidem”, como o próprio Joyce instrui na sua obra. No espaço [no], ao

clicar em [hours], abre-se o espaço [The Garden], com o seguinte texto:

In contrast to Newton and Schopenhauer, your ancestor did not believein a uniform, absolute time. He believed in an infinite series of times, in agrowing, dizzing net of divergent, convergent, and paralell times.

(Borges) [The Garden].

Elementar que a assinatura de Borges, abaixo da citação do autor,

vai remeter o leitor, em suas associações mentais, ao conto “O jardim dos

caminhos que se bifurcam”, do escritor argentino. Da mesma forma,

também remete a Borges o título do espaço de escrita: The Garden. Nesta

lexia, o autor Joyce faz uma homenagem ao autor Borges, que é, ao

mesmo tempo, uma citação seminal para a gênese e definição do

hipertexto.

Note-se que Afternoon, story é pioneira no uso do hipertexto para a

criação literária, e sua alusão a Borges parece ter sido também um ato

original. Muitos autores que tratam do hipertexto e do hipertexto literário

fazem a alusão ao conto de Borges como um dos precursores do hipertexto

(Moulthrop, Landow, Bolter, etc.). Isto nos leva a crer que, além de ter sido

anunciador da hiperficção, Afternoon, a story também instituiu referências

fundamentais para analisar esta escrita do ponto de vista conceitual.

Interessante também notar que esta é uma auto-referência no corpo

da obra, a algo que teria sido um precursor da escrita hipertextual, um

proto-hipertexto, como definiu Landow (1997), a respeito de obras como o

conto de Borges. Pode-se ver, aqui, o hipertexto que fala do hipertexto, o

22 Idem.

89

meta-hipertexto, que fala de si mesmo através da auto-referenciação, que

ao mesmo tempo é uma auto-alimentação de conteúdo.

Da mesma forma – e pode-se afirmar que trata-se de outro

elemento a lhe conferir originalidade –, está a citação de um outro autor

considerado importante para as referências ao hipertexto, que é Laurence

Sterne. Ele aparece no espaço [midwife]: a própria forma de disposição das

frases no espaço da tela parece ser um excerto da obra A Vida e as

Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy:

CHAP. XIII

It is so long since the reader of this rhapsodical work has beenpanted from the midwife, that it is high time to mention her again tohim, merely to put him in the mind that there is such a body still inthis world, and whom, upon the best judgement I can form uponmy own plan at present, -- I am going to...

But …

Which may require …

-- ‘twas right

in the mean time, --- because ---

(Sterne) [midwife]

Se o suporte material para a escrita pode induzir ao tipo de

experimentação artística que se opera, a referência a Sterne, neste caso, é

fundamental. Em pleno século XVIII, esse autor escreve um romance como

se estivesse refletindo sobre a própria matéria da página impressa e, em

especial, da tipografia. Em Tristram Shandy, há páginas completamente

negras, onde o que seria a impressão de vários caracteres, palavras ou

frases se torna um todo, como se o conjunto de caracteres que devessem

ocupar a página com um determinado sentido, para continuar com a

história, por exemplo, se fundissem em um único objeto, formado pela

fusão dos pretos sobre o branco da página.

Em outros momentos, a própria noção de utilização dos sinais

tipográficos é subvertida: onde haveria que escrever frases, com um

sentido usual, para dar significado à história, o autor utiliza de modo

90

repetitivo sinais como o ponto, o travessão, o traço, numa alternativa visual

que invoca muito mais a imagem desses caracteres do que, propriamente,

a palavra e as frases. É dessa forma que Sterne utiliza os sinais gráficos,

os espaços em branco, para refletir sobre seu próprio processo criativo, a

partir do material utilizado, ou seja, a escrita na página impressa e a própria

tipografia.

FIGURA 13 O espaço de escrita [midwife], no qual Joyce faz referênciadireta e Laurence Sterne

A citação a Sterne, em Afternoon, a story, recupera algumas das

características da escritura do autor, como a disposição dos elementos

tipográficos na página (Fig. 13). Agora transportados para o espaço da tela

do computador, eles estão a dizer: “aqui está parte do material que me

serviu de molde; aqui aparece uma das influências da escrita hipertextual,

da valorização da forma, do jogo com os espaços e sinais tipográficos”.

91

3.3 Estranhamento e desorientação

Referências à parte, a leitura de um hipertexto como Afternoon, a

story causa uma sensação de estranhamento. Contrariamente ao que se

possa pensar, entretanto, este estranhamento é algo estimulante. Ao

navegar pela história, podendo escolher dentre diferentes continuações

disponibilizadas nos espaços de escrita, em dado momento ocorre a

sensação de perder-se e encontrar-se ao mesmo tempo. Estando à deriva

num mar de possibilidades, escolhe-se uma delas e o que se descortina

naquele espaço de escrita que é a tela do computador, é o encontro. É a

consciência, afinal, de se estar frente a uma verdadeira obra. Uma obra de

arte. Passados quase quinze anos de sua publicação, esta obra é

atualíssima; por isso, clássica.

É desta forma que o leitor pode escolher de que maneira

empreenderá sua leitura23. Na nossa primeira leitura, ocorreu uma

sensação de desorientação (outra das características das narrativas em

hipertexto): ao mesmo tempo em que foi escolhido um caminho, por uma

destas formas apresentadas acima, e que abriu-se mais uma lexia da

história, apareceu a curiosidade sobre para onde levariam os outros

caminhos oferecidos anteriormente. Ao lado da curiosidade, a indecisão:

não teria sido melhor escolher outro link? Para onde levaria? Qual lexia

seria aberta, com que título, com que assunto? E ainda, o desejo de “estar”

em todas as lexias ao mesmo tempo, numa necessidade de deixar-se

envolver pela rede de páginas entrelaçadas que formam este hipertexto.

23 Além da tecla “return”, ou do clique do mouse, a leitura pode se dar através de uma barra dequatro “botões” existente ao pé de cada página. O primeiro é para o retorno, representado poruma flecha; o segundo, o ícone de um livro, é um browser, que aponta uma lista de possíveis linksa serem acionados a partir da página em questão; o terceiro é composto pelas letras Y” e “N”, querepresentam, obviamente, dentro deste contexto, as palavras “yes” e “no”, e que, quandoacionados, levam a páginas diferentes entre si; o último botão é usado para imprimir a página quese está lendo no momento.

92

Há uma espécie de “poder” de escolha conferido ao leitor. De um

lado, o leitor toma decisões que vão produzir um significado; é um pouco

autor, na medida em que, movendo-se entre blocos de informação, cria. De

outro lado, o autor, que é um leitor antes, porque todos somos leitores, mas

também um autor depois, porque possivelmente não previu todas as

combinatórias possíveis dentre os links e caminhos da história. Assim, a

cada leitura que fizer de sua própria obra, ele mesmo, o autor, também

criará uma leitura única, um texto com significado diferente do lido

anteriormente.

Como todo autor, que conhece o programa que manipula, o fato de

poder ver aquela lista de comandos traz ao leitor uma sensação de autoria.

Em geral, é muito mais o autor que tem consciência da estrutura de

funcionamento do meio do que o usuário, leitor ou espectador. Numa

narrativa, por exemplo, seja um romance num livro, um filme ou mesmo

uma hiperficção, ao leitor/espectador cabe a fruição da obra. Há mesmo um

“abandono”, um deixar-se levar. Isto é chamado de imersão por alguns

autores, como Turkle (1997), um momento em que ocorre a concentração

de todos os sentidos, quando se perde a noção da presença dos objetos e

equipamentos pelos quais é transmitida a narrativa. A imersão é a rendição

total à obra.

Estando imerso em uma história, elegendo caminhos, entrando em

seqüências espaciais de texto narrativo, e, ao mesmo tempo, tendo sinais

fornecidos pelo programa que mostram um pedaço do seu, por assim dizer,

“esqueleto”, o leitor captura parte da estrutura interna da obra. Ela concede,

então, ao leitor, parte de sua “intimidade”. Agora, o leitor confunde-se com o

outro, o autor, através do elo que é a obra. O leitor apreende a narrativa,

torna-se cúmplice do autor.

A leitura única, que concede um halo de originalidade para a

hiperficção e a sua construção como objeto original é o que, finalmente,

93

constrói o leitor como um autor. Não só isto, este leitor, executando sua

leitura, realiza o texto enquanto um todo de significado. Neste percurso, em

que seu “discurso discorrido” (LIESTOL, 1997) conformará um trajeto único,

apesar das múltiplas linearidades possíveis, o leitor vai tomando

consciência da ampliação de suas funções.

3.4 Anti-narrativa

Preocupado em construir uma terminologia crítica apropriada para

entender o hipertexto literário, Aarseth (1997) procura verificar, em

Afternoon, a story, sua relação com o modernismo na literatura, e de que

forma os aspectos modernistas dominam este texto, mais do que suas

características pós-modernistas. É assim que especula ainda sua eficiência

como narrativa, ou anti-narrativa (1997: 94). Conclui que Afternoon, a story

é, antes de tudo, um texto-limite, na fronteira entre a narrativa e a ergódica

– forma teórica proposta pelo autor para a crítica literária do hipertexto – e,

principalmente, no nosso entender, um texto que pode “ajudar a entender

os limites de categorias do hipertexto e da narrativa, mesmo que através da

sua subversão” (1997: 95).

Contudo, é justamente onde o autor destaca a diferença entre

Afternoon, a story e outros textos modernistas, que está a fragilidade de

seu argumento. Para Aarseth, esta diferença se apóia no fato de o

hipertexto alienar o leitor, mais do que ser utilizado para um efeito

lingüístico.

A principal diferença entre Afternoon e outros textosmodernistas reside no mecanismo hipertextual para alienar oleitor, mais do que para um efeito lingüístico. O hipertextoconvidativo rapidamente se transforma num labirinto denso emulticursivo, e o leitor se torna não apenas muito perdido comopreso pela repetição, caminhos circulares e suas própriasescolhas impotentes. O que nós identificamos como fragmentos (oque parecem ser fragmentos de narrativa), ou ainda, o ato da sua

94

(falsa) identificação, nos faz procurar pelo todo, mesmo que nãohaja evidências que tais fragmentos possam constituir um todo.Este tipo de impasse é o principal tropo da máquina literáriaAfternoon: uma aforia no sentido literal (AARSETH, 1997: 91).

Há que levar em conta, entretanto, que a materialidade deste texto

digitalizado é constituída por fragmentos, que terão efeitos consideráveis

sobre a leitura, fato atestado por vários autores. Para Hayles, por exemplo,

O texto anuncia suas diferenças com o corpo humanoatravés de sua ilegibilidade, lembrando-nos que o computador étambém um escritor, como também um escritor cujas operaçõesnós não podemos alcançar em toda a sua complexidadesemiótica. Ilegibilidade não é simplesmente uma ausência designificado, mas um anunciador de processos cognitivos queconstróem a leitura como uma produção ativa de um circuitocibernético e não meramente uma atividade interna da mentehumana (2002: 50).

A questão da ilegibilidade, posta pela autora como anunciadora de

processos cognitivos da obra digital, implica em uma “reciclagem do

conhecimento”, no dizer de Beigelmann, para quem trata-se de “um texto

que [...] agencia um processo de reciclagem do conhecimento em uma

escala sem precedentes, confundindo as práticas da escritura e da leitura”

(2003: 18).

Tal qual as preocupações com a desorientação, com a interrupção

do fluxo narrativo, a ilegibilidade também é colocada, então, como um

instrumento a mais de enriquecimento da narrativa do hipertexto,

ocasionando exercícios de conhecimento e de superação dos desafios da

leitura que se empreende neste tipo de ambiente tridimensional que é a tela

do computador.

95

3.5 O leitor e a materialidade do texto

Aarseth define o esquema aristotélico autor – narrador – narrado

(narratee) e leitor como um modelo de comunicação, com o objetivo de

verificar as relações estruturais entre Afternoon, a story e um texto do

códex tipicamente modernista. Na hiperficção, no entanto, as relações entre

estas figuras são subvertidas: o autor tem uma estreita relação com o

narrador, e o leitor, com o narrado (narratee). Esta ligação com o narrado,

entretanto, não é mais do que a familiaridade com a materialidade do texto,

ou seja, aquelas características técnicas do programa de escrita

perceptíveis na leitura, e que proporcionam a consciência da presença do

meio, tornando o leitor ciente de sua presença e intermediação.

O leitor sente-se à vontade, por exemplo, para buscar estratégias

diferentes de leitura, no momento em que encontra um espaço de escrita

que não tem continuidade, como quando, após efetuar sua leitura somente

através de cliques com o mouse, ou a tecla enter, definida pelo autor como

default, alcança um espaço de escrita – [call] – que interrompe a

continuidade da leitura, pelo menos, com a estratégia do clique do mouse.

É como se, ao ler um livro no formato impresso, o ato de virar as páginas

para dar seguimento à leitura fosse de repente inócuo. Ao virar a página,

não haveria mais continuidade, não haveria mais história. O que fazer,

então, frente a tal interrupção? O leitor de Afternoon, a story, avisado que

foi pelo autor da obra, de que há outras estratégias de leitura disponíveis,

poderá procurar por outras ações de leitura, modificando as táticas

empreendidas até então.

Obviamente que chegar a esta conclusão depende de quanto o

leitor tenha se inteirado das estratégias de leitura, o quanto tem

consciência, por exemplo, de possibilidades como a lista de links que

podem ser acionados a partir dos espaços de escrita, ou de conhecer as

perspectivas abertas através das teclas yes ou no, por exemplo. Ou seja:

96

no momento em que a leitura parece estar interrompida por alguma

misteriosa estratégia de autoria, o leitor pode, por si mesmo, buscar outras

possibilidades.

Ainda que, para o autor, esta seja uma “força opositora”, “uma

desfiguração desestabilizadora que esgota a paciência do leitor e o senso

de progressão” (AARSETH, 1997: 93), a nós parece, porém, que tal

interrupção seria, antes, um elemento a mais para enriquecer a narrativa

hipertextual, uma característica que imprime à obra outros movimentos,

assim como a desorientação, a ausência de começos ou finais, a não-

linearidade do texto.

Como já foi falado anteriormente, Michael Joyce afirma, em

Afternoon, a story, que o final da história se dá quando o leitor se cansa da

leitura. E isso define, de certa forma, o que seriam estas novas

configurações trazidas pela literatura em hipertexto. Cansar-se da leitura,

interrompê-la por algum motivo, então, pode ser um momento de pausa

para um momento de reflexão sobre o próprio percurso de leitura, um

momento de constatação, enfim, de que a obra em hipertexto é um produto

criativo que envolve um desafio ao leitor. A partir daí, a tomada de

consciência é um dos motores da leitura, e assim é tratada pelo autor da

obra.

3.6 Um jogo de leituras

Num primeiro momento, Afternoon mostra ao leitor várias

“advertências” referentes ao processo de leitura. Ao explicar as possíveis

estratégias de leitura, avisando que as palavras podem convidar – ou não –

o leitor a clicar sobre elas e assim dar seqüência (s) à narrativa, o autor

adverte seu leitor de que: “The lack of clear signals isn´t an attempt to vex

97

you, rather an invitation to read either inquisitively or playfully and also at

depth. Click on words that interest or invite you” [read at depth].

O fato de as palavras no texto que podem levar a outros

seguimentos não estarem marcadas como links, ao menos como

convencionalmente se conhece – sublinhadas, por exemplo – exige uma

maior atividade do leitor. Ele deve descobrir onde clicar para seguir sua

leitura. Isto, se optar por fazer seu percurso apenas dentro do espaço

textual, já que a interface do hipertexto apresenta a lista de links de cada

espaço de escrita, além de botões de navegação, como back, yes ou no.

O conselho do autor, entretanto, “clique em palavras que o

convidem” é um chamado à leitura “criativa”. Tais palavras (words that yeld)

levam a espaços de escrita associados significativamente aos próprios

vocábulos, como em: “I want to say I may have seen my son die this

morning” [I want to say].

Se clicarmos na palavra die, abre-se um segmento [die?], no qual o

narrador reflete sobre a cena que viu, e sua dúvida em relação a serem do

filho e da mulher os corpos estendidos no asfalto.

O leitor estará exercitando sua sensibilidade na escolha de clicar na

palavra que mais o estimular a isto. Trata-se de uma fragmentação do ato

de leitura, além do fracionamento da disposição dos espaços de escrita, ou

seja, uma vez que o leitor escolhe clicar ou não em “palavras que

convidem”, ele pode clicá-las antes mesmo de concluir a leitura do

respectivo espaço de escrita. Isso acontece, por exemplo, naquela leitura

em que a curiosidade a respeito dos links é maior do que a curiosidade

pelos seguimentos da narrativa. O link, desta forma, mais do que em

qualquer outro momento, é o motor da leitura, sendo sua ativação o que

permite o andamento e o movimento da obra.

98

O fato de procurar concretizar continuações não é mais importante

do que conferir as (diversas) possibilidades para tais eventuais conexões. É

justamente nestas ações de “checagem” do destino dos links, que o leitor

incorpora-se como sujeito, que não recebe a informação passivamente,

mas busca o sentido pelas suas próprias escolhas, mesmo que para isso

seja necessário sacrificar nexos causais (ou conexões de significados) num

primeiro momento.

Pode-se questionar, a partir do exposto acima, a eficácia – ou não –

da leitura, entendida como formadora de sentidos, uma vez que não houve

a “conclusão da leitura” do referido espaço de escrita. Barthes escreveu

que “a escrita cria um sentido que as palavras não têm de início” (2004:

8-9), e poderíamos especular de que maneira a leitura de uma hiperficção a

partir do exemplo visto acima, poderia, por sua vez, conferir às palavras um

sentido que vai além daquele colocado pela escritura. Por isso é

fundamental atentar para a leitura como um trajeto de escolhas.

Lembramos de Roland Barthes mais uma vez, quando escreveu:

Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper comfreqüência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, porafluxo de idéias, excitações, associações? Numa palavra, nuncalhe aconteceu ler levantando a cabeça? (2004b: 26).

Desrespeitosa e apaixonada, como observava o autor francês, a

leitura que “levanta a cabeça do livro” é também uma leitura de criação. No

caso da leitura que especula sobre o caminho dos links de uma obra de

ficção em hipertexto, clicando em palavras que convidem, e interrompendo

a leitura de determinados espaços de escrita, temos aí não um

impedimento para a concretização do significado do texto, mas a abertura

para a exploração do espaço textual criado pelo autor. Uma vez que as

repetições, no hipertexto de ficção, são constantes, pode-se vislumbrar que

a exclusão da informação de determinado espaço de escrita, num

determinado momento, não determinará a extinção daquele espaço, das

possibilidades de leitura, uma vez que o mesmo poderá repetir-se

99

posteriormente na leitura, já que a volta àquela lexia também é permitida ao

leitor a partir da lista de links.

Também sobre começos e finais, o autor adverte o leitor,

destacando a liberdade em escolher o momento de terminar sua leitura:

“Closure is, as in any fiction, a suspect quality, although here it is made

manifest. When it cycles, or when you tire of the paths, the experience of

reading it ends” [work in progress].

Interessante notar que é do próprio autor a referência ao fluxo da

história poder tornar-se desinteressante. Assim, é estabelecida com o leitor

uma relação de total liberdade – “a leitura termina quando você se cansa

dela”. Sendo assim, a sensação de estar deixando uma leitura incompleta

é, de saída, rechaçada. Cabe ao leitor o total controle sobre o ato de ler.

Ao contrário de fazer uma relação entre história e leitura, entretanto,

o autor ressalta que a história continua, independente da leitura ter sido

interrompida:

Even so, there are likely to be more opportunities thanyou think there are at first. A word which doesn´t yeld the first timeyou read a section may take you elsewhere if you choose it whenyou encounter the section again; and sometimes what seems aloop, like memory, heads off again in another direction [work inprogress].

100

FIGURA 14 A lista de links que partem do espaço [I want to say], deAfternoon, a story, inclusive os guard-fields

E é aqui que o autor alerta para as variadas continuações que

poderão ocorrer conforme a leitura se dê pelos links condicionais (guard-

fields). Os links condicionais, tão logo acessados, mostram ao leitor que ele

se encontra em um ambiente capaz de permitir mais possibilidades de

ramificações da narrativa, já que os seguimentos dados pelo mesmo link

podem levar a diferentes espaços de escrita. Isso será um diferencial na

construção da narrativa e, em Afternoon, a story, encontra sua origem, ao

mesmo tempo que seu apogeu.

4 PATCHWORK GIRL – O HIPERTEXTOCOMO METÁFORA

O importante sobre a metáfora, eu diria, é ser sentidapelo leitor ou pelo ouvinte como uma metáfora24.

Em 1993, aluna de George Landow, Shelley Jackson começou a

escrever Patchwork Girl, em forma de notas soltas no seu computador

portátil. O professor falava de hipertexto e teoria crítica, que já era então

objeto de um livro básico no campo do hipertexto25, e Jackson planejava

escrever um hipertexto, embora sua Patchwork Girl ainda não tivesse

qualquer quadro conceitual definido. O que ela tinha em mente era apenas

uma desordem de idéias, pedaços de narrativa, citações e desenhos, tudo

interconectado, como contou a Mark Amerika, em entrevista à revista

eletrônica alemã Telópolis (maio, 2004). A origem do processo de criação

da autora é significativo: a estrutura da hiperficção surgiu quando encontrou

semelhanças entre as partes e as agrupou. Lugares do texto onde ela via

se contradizer, ou se encontrava indo em duas direções, deram lugar à

formação de estruturas paralelas.

Um dos fatores que serviu de modelo para pelo menos duas partes

de sua história, está no design do programa Storyspace. A autora conta

(idem) que, ao ver as estruturas retangulares dos mapas de visualização,

associava as imagens daqueles pequenos retângulos (Fig. 15) a túmulos

24 BORGES, 2000: 31.25 Hypertext: The convergence of contemporary critical theory and technology, de George P.Landow teve sua primeira edição em 1992.

102

dispostos em um cemitério e, assim, estruturou uma das seções como um

cemitério [graveyard], onde estão enterrados os corpos e suas histórias. Da

mesma forma, os retângulos dentro de retângulos também inspiraram a

autora a construir sua estrutura de colcha de retalhos [quilt], outra parte da

obra.

FIGURA 15 Imagem de um mapa de visualização de Patchwork Girl, comos pequenos retângulos que inspiraram Shelley Jackson

A partir da utilização do hipertexto, de acordo com Jackson, é que

foi possível escrever relacionando fragmentos, erguendo uma estrutura a

partir das próprias características técnicas daquele tipo de texto. O

reconhecimento feito pela autora da influência da materialidade da escrita

na obra, torna patente a importância de se deter neste tipo de característica

para a análise da criação literária em hipertexto. “O hipertexto facilita a

103

colocação das coisas lado a lado, mais do que uma após a outra”

(Telópolis, 2004).

O que a autora define como materialidade, como vimos

anteriormente, diz respeito a características do programa que influem

decisivamente na forma da escrita, tais como a estrutura de links e os

mapas de visualização. Patchwork Girl mostra como estes elementos

específicos do meio hipertextual operam na sua concepção.

Esta obra, como salienta Hayles (2002), anuncia a transição da

primeira para a segunda geração da literatura em hipertexto, tendo o

programa Storyspace como protagonista.

Escrito numa versão diferente do software Storyspaceque Joyce usou para Afternoon, Patchwork emprega a ferramentade formas significativamente diferentes. ... faz conexões entre otexto eletrônico e o corpo fragmentado da monstra. [...] anavegação é visualizada como tomando parte não apenas entrelexias, mas entre imagens e palavras, e mais profundamente entreo texto e o computador que o produz (2002: 37).

Para a autora, Patchwork Girl foi a primeira indicação de como a

literatura pode mudar significativamente, se o corpo literário não é um livro,

mas um computador. Esta hiperficção, escrita por Shelley Jackson e

baseada em Frankenstein, The Modern Prometeus de Mary Shelley, escrita

em 1818, ao mesclar a história de Frankenstein com a digressão teórica

sobre o hipertexto, está auto-refletindo sobre sua própria materialidade, ou

seja, sobre a forma de escrita hipertextual que, em última instância, é o

objeto de que é feita.

Não se pode deixar de levar em conta que a história de

Frankenstein é uma parábola para a era do computador, como lembrou

Bolter (1991: 187), porque ela mantém a ambivalência em relação ao

monstro. Na história de Mary Shelley, observa o autor, o monstro pode ou

não estar além do controle humano, mas certamente ele não é autônomo.

Mais precisamente, o monstro é o alter ego do seu mestre (1991: 187). Aqui

104

está a relação mais profunda e primeira da obra de arte que é Patchwork

Girl com suas características técnicas, oriundas do computador e da escrita

eletrônica que é produzida de e a partir desta máquina. Uma relação que é

a própria metáfora do conteúdo com sua materialidade, ou, por outra, do

sentido com a forma que lhe origina. Patchwork Girl é a metáfora do

hipertexto e do computador, acentuada pela relação do mestre com a

criatura; que também pode-se ver como a ligação da história com sua

estrutura concreto-virtual, dada pelo hipertexto.

Esta hiperficção parece exemplificar bastante bem o que Arlindo

Machado já anunciava, a respeito da obra de arte contemporânea ser uma

epistemologia de si própria: “... o artista pode [...], em circunstâncias nada

excepcionais, exibir-se como aquele para quem fazer arte é o equivalente a

falar sobre a arte” (1974: 4).

A obra se refere à história de Mary Shelley e a histórias de várias

mulheres, construindo uma colcha de retalhos de muitas faces, procurando

ao mesmo tempo construir-se a si mesma, como uma mulher. Melhor seria

dizer, quem sabe, uma criatura-mulher. Como seria esta mulher feita de

fragmentos? Numa série de espaços de escrita denominados [beauty

patches], a autora explica algumas questões que dizem respeito, de saída,

às características técnicas da obra, tais como: “One of the first proposals for

using computer graphics was to assemble a composite of the best features

of various actresses – Garbo’s eyes, Bardot’s mouth, Welch’s breasts...”

[beauty patches].

Nesta mistura de personagens com materialidades, cabe espaço

para as alusões ao mundo feminino, sejam os seus ícones, sejam as partes

de beleza que compõem o todo perfeito buscado pelo feminino, como em:

The Frauenzimmerlexicon listed ‘thirty components of completebeauty, including:

3. a gracious smile

14. small redish ears not standing too far away from the read

105

21. a delicate skin, underlaid with tiny blue veins

22. a long, alabaster neck

[...] [beauty patches].

As metanarrativas são presenças quase constantes, a fazer par com

a história da criatura-monstro-mulher-fragmentada, que reflete sobre sua

própria constituição feita de marcas e cicatrizes, ou ainda, pedaços de ser.

No espaço de escrita denominado [seam’d], aparece:

You may emphasize the presence of the text links byusing a special style, color ou typeface. Or, if you prefer, you canleave needles sticking in the wounds – in the manner of tailors –with thread wrapped around them. Being seam’d with scars wasboth a fact of eighteenth-century life and a metaphor for dissonantinterferences ruining any finely adjusted composition [...] [seam’d].

Não é difícil perceber como Patchwork utiliza-se de sua própria

materialidade com o objetivo de cativar o leitor. Isso pode ser lido em cada

espaço de escrita, onde o hipertexto é a metáfora para a história do próprio

monstro mulher que é o Frankenstein de Shelley Jackson. Vejamos alguns

exemplos:

... But my real skeleton is made of scars: a web that traverses mein three-dimensions. What holds me together is what marks mydispersal. I am most myself in the gaps between my parts, thoughif they sailed away in all directions in a grisly regatta then would benothing left here in my place.

ou

I am made up of a multiplicity of anonymous particles, and have noabsolute boundaries. I am a swarm. ‘Scraps? Did you call mescraps? Is that my name? [self swarm]

ou

I hop from stone to stone and an electronic river washes out myscent in the intervals. I am a discontinuous trace, a dotted line[hop]

ou

… a dotted line demonstrates: even what is discontinuous and inpieces can blaze a trail (excertos de Patchwork Girl, ShelleyJackson, 1992).

106

Impossível deixar de relacionar a metáfora ao suporte material de

escrita que é o hipertexto: partículas, ausência de limites absolutos,

descontinuidade...

A frase “What holds me together is what marks my dispersal” (“O

que me mantém unido é o que marca minha dispersão”) é claramente uma

alusão à própria essência do hipertexto, representada pelo link: ao mesmo

tempo em que aglutina o todo hipertextual pela conexão, o link marca a

dispersão da informação em uma rede multiforme. Tais alusões às

características técnicas como essa, não são mais do que a confirmação de

uma questão que sempre acompanhou o processo artístico: o paradoxo

criação/teoria, como recorda Machado (1974), que encontra sua mais plena

expressão justamente na literatura contemporânea, e a hiperficção não fica

à margem desta preocupação, como se percebe no exemplo de Jackson.

4.1 Engajamento total

Patchwork Girl abre com três janelas sobrepostas, e o espaço

intitulado [her], que pode dar origem a uma leitura, é ilustrado com um

corpo feminino com marcas de divisões, que aparecerá em partes, na

continuação da leitura (Fig. 16). Isso remete o leitor, de saída, ao

personagem principal da obra: uma garota em pedaços.

O convite à leitura é também uma chamada à ligação do leitor com a

obra, como pode se ler no espaço [graveyard]: “I am buried here. You can

ressurect me, but only piecemeal. If you want to see the hole, you will have

to sew me together yourself”.

Vê-se, aqui, a imposição ao aliciamento total na narrativa: se o leitor

quer ver o todo, deverá incorporar a obra junto ao seu próprio corpo. A voz

107

subjetiva que narra a história é a própria idéia de hipertexto, como se verá

nas várias metáforas presentes na obra.

FIGURA 16 O espaço [her], mostrando o corpo marcado com suassegmentações, em Patchwork Girl

4.2 Navegação intermídia

Navegar pela hiperficção Patchwork Girl é um exercício de

exploração de diferentes linguagens dispostas nas várias telas que se

abrem ao leitor. Por exemplo, sob os chamados espaços de escrita, estão

disponíveis mapas de visualização, que também são navegáveis. Assim,

pode-se executar a leitura tanto a partir de espaços textuais, como de

espaços imagéticos, como o espaço [phrenology] (Fig. 17):

108

FIGURA 17 Neste espaço, a ilustração do cérebro tem subdivisõesclicáveis, que levarão a outros espaços de escrita emPatchwork Girl

Aqui, a ilustração de um cérebro, cortado longitudinalmente e

dividido em várias partes, todas com um “nome” específico, convidam o

leitor a escolher trajetos diferentes, a partir de palavras dispostas como

partes do cérebro, como swarm, fog, hopscotch, they, quotes, secrets. Nas

palavras de Hayles (2003), “a navegação se dá, desta forma, não somente

entre lexias, mas entre imagens e palavras, e mais profundamente, entre o

texto e o computador que o produz” (2003: 38). Trata-se de um exemplo

contundente de fusão conceitual entre formas diferentes de representação,

diríamos nós, próprio do que Higgins (1984) definiu como intermídia, que

parece ser uma característica marcante das criações digitais, como vimos

no capítulo dois.

109

Ao mesmo tempo que é um cérebro, dividido em várias partes

navegáveis, a figura denota uma espécie de “mapa”, da mesma forma que

o mapa de visualização. Tal imagem cumpre uma função narrativa, já que

por ela elege-se seguimentos para a leitura, ao optar por algum dos

“pedaços” daquele cérebro, que irão levar a novas leituras da obra.

Narrativa, ela também, intermídia.

Seria esta imagem do cérebro uma metalinguagem? Uma alusão ao

mapa de navegação pela estrutura da hiperficção, neste caso

“personificada” ou configurada na imagem do cérebro? Seria a estrutura da

obra, o seu cérebro? As associações mentais que se dão no cérebro, como

Vannevar Bush um dia exemplificou26, seriam o modelo para os sistemas

de informação que atuam de forma não-hierárquica, como o hipertexto. Se

o mapa de visão do Storyspace mostra os espaços de escrita pelos quais

são compostos e suas destinações, o mapa do cérebro mostra as

seqüências de leitura a partir de palavras e imagens da mesma forma

“clicáveis”.

Ao clicar em sleep, abre-se o espaço [this writing], no qual se lê:

Assembling these patched words in na electronic space, Ifeel half-blind, as if the entire text is within reach, but because mymyopic condition I am only familiar with from dreams, I can seeonly that part most immediately before me, and have no sense ofhow that part relates to the rest. When I open a book I know whereI am, which is restfull. My reading is spatial and even volumetric. Itell myself, I am a third of the way down through a rectangularsolid, I am a quarter of the way down the page, I am here, on thepage, here on this line, here, here, here. But where I am now? Iam in a here and a present momento that has no history and noexpectations for the future.

Aqui, é o próprio autor que se mescla com personagem, e o

personagem, mais uma vez, parece fundir-se com a própria história e ainda,

com a materialidade do que é feito, mais uma vez, e ainda, o hipertexto.

26 No seminal artigo “As we may think”, de 1945 (vide Bibliografia).

110

Vejamos a segunda parte deste espaço de escrita, onde se percebe

claramente tal imbricação entre autor, obra e conteúdo:

Or, rather, history is only a haphazard hopscotch, throughother present moments. How i got from one to the other is unclear.Though I could list my past moments, they would remain discrete(and recombinant in potential if not in fact), hence without shape,without story or with as many stories as I care to put together.

As referências à narrativa são constantes, como em: “We live in the

expectation of traditional narrative progression; we read the first chapter and

begin already to figure out wheter our lives are romantic comedies or high

tragedy, mystery or adventure [...]”.

A história também procura envolver o leitor (ou o interlocutor)

inteiramente, como já havíamos observado, e mesmo comprometê-lo, como

se percebe neste espaço:

Likewise I shall fill the universe to bursting with flesh,flesh, flesh, if I want to. You will all be part of me. You already are;your bodies are already claimed by future generations, auctionedoff piecemeal to the authors of further monsters. These monstersmove among you already, buried in your flesh: sluggishly workingtheir buried limbs, testing their strenght, drawing you together inpremonitions of birth. Your fingers twitch in your sleep. Your heartjumps: na unfammiliar beat. Many monsters, or one: if I am madeof some of you, I could be made of more. If I am large, I could belarger. If it is hard to tell when I was born, I will be born again andagain; if it is hard to tell where I end, I shall continue.

I shall build a palace, a city, a planet of meat.

Uma clara alusão ao leitor, dirigindo-se a ele e à raça humana: o

monstro é feito de partes de cada um e pode também ser engrandecido

pelas partes de todos... há uma relação potencial entre o monstro,

construído de pedaços e as origens desses fragmentos que o compõem.

Cada espaço de escrita é um universo em si mesmo; a narrativa

toma forma de um todo a cada espaço que se abre; sua continuidade, desta

forma, não parece ser tão necessária para a concretização de uma idéia

que se possa atingir pela soma de suas partes; pelo contrário, cada parte

111

não parece ser necessária para que a seguinte se efetive, como se a

navegação não precisasse de, necessariamente, ser realizada dentro para

buscar “sentido”. A história parece fazer sentido a cada espaço; a cada nó.

Como estrelas numa galáxia, cada link tem seu próprio brilho.

A autora assume claramente a metáfora, no link [metaphor me]:

I am a mixed metaphor. Metaphor, meaning somethinglike “bearing across”, is itself a fine metaphor for my condition.Every part of me is linked to other territories alien to it but equallymine. Shin bone connected to the thight bone, thigh boneconnected to the hip bone: borrowed parts, annexed territories. Icannot be reduced, my metaphors are not tautologies, yet I amequally present in both poles of a pair, each end of the wire istethered to one of my limbs.

The metaphorical principle is my true skeleton.

Ler um hipertexto não se constitui em uma leitura no singular, mas

em várias leituras, que irão marcar diferentes momentos da obra. Há

momentos, porém, em que a leitura pára. Não há qualquer possibilidade de

um continuação diferente dos espaços até então percorridos, nem a opção

de clicar no texto, nem a de ir para a lista de links ou clicar no botão back.

Mas o leitor poderá agir buscando outras formas de seguir a

narrativa, não necessariamente a partir dos espaços textuais, mas dos

espaços disponibilizados pela lista de links, pelo botão back, ou pelo mapa

de visualização. Através do mapa, o leitor ativa o espaço [conception] e o

texto continua a mostrar o processo criativo da autora. Este tipo de “acaso”

é o que melhor pode exemplificar a não-linearidade. O leitor estava

seguindo um determinado “padrão” de leitura, clicando e escolhendo

caminhos – de, pelo menos, três maneiras: o clique dentro do espaço

textual; o clique no botão links ou o clique no botão back. Quando, num

jogo de descobrir, o leitor resolve buscar uma outra forma de empreender

sua leitura, através do mapa, sempre disponível na obra, encontra uma

continuidade que parecia esquecida pelo autor da obra.

112

É pelo mapa que leitor descobre uma nova continuação. Ou seja, a

não-linearidade se deu pelas diferentes formas de acessar os espaços de

escrita. No ambiente do hipertexto, essas diferentes maneiras são

marcadamente acentuadas, pois o espaço é fragmentado em várias

janelas, várias opções de seqüência, várias idas e vindas.

Pode-se concluir que tais idas e vindas constatadas na leitura de

Patchwork mostram que há uma não-linearidade em potencial, que pode

ser caracterizada pelas diversas e diferentes ações feitas pelo leitor. Talvez

um termo mais correto seja “multiplicidade”, que pode tipificar uma

mutiplicidade de leituras que seriam potencialmente diferentes entre si, mas

que são possíveis e que, juntas, formam a colcha de retalhos à qual se

refere a autora, uma técnica de “mosaico” da imaginação material. Neste

mesmo espaço, a autora termina com uma pergunta: “não são vocês os

demônios verdadeiros da multiplicidade?”

É no espaço [a single space] que a autora continua a falar sobre seu

processo criativo, desta vez observando a respeito de uma outra

característica do software Storyspace: a opção “explode”. Essa

possibilidade permite que se fragmente um espaço de escrita em múltiplos

pedaços, a critério do autor. Ela não está disponível na hiperficção, apenas

no programa. A autora, porém, observa este aspecto do programa e conta

de que forma ele serviu para o seu processo criativo:

While a single space can contain a large amount of text,most authors will want to split large spaces into more manageableparts. Just add an unusual character where you want each writingspace to end, and choose EXPLODE from the menu. I cut up thequilt, creating a new copy of each paragraph in its own writingspace. The exploded spaces are all created inside a new writingspace, a very-well-shaped girl, which I stuffed with cotton-wadding[a single space].

Não seria demais afirmarmos, após estas leituras, que Patchwork

Girl e a ficção em hipertexto foram feitos um para o outro. Toda a reflexão

da autora, ladeada pela trama ficcional em torno do Franskentein como

113

tema e objeto, apresenta-se perfeitamente em harmonia. Trata-se do

conteúdo perfeito para a forma. Ou seria o contrário?

Patchwork Girl, na sua estratégia de trazer a materialidade para

dentro da narrativa, é um exemplo concreto de que a obra sempre traz a

marca do seu criador; assim como em Frankenstein, a criatura trazia em si

aquele que lhe deu origem. Patchwork mostra que, em hipertexto, o autor e

a obra podem confundir-se a tal ponto, pelo uso das características técnicas

do meio, que ambas as instâncias tornam-se um só ente. Um modelo de

explosão de criatividade.

CONCLUSÃO

O aplicativo Storyspace foi demonstrado pela primeira vez ao

público na primeira conferência da ACM – Association for Computing

Machinery, em novembro de 1987. Apesar desse 17 anos que nos separam

de seu surgimento, no entanto, podemos verificar uma presença

extraordinária deste programa no decorrer do desenvolvimento da pesquisa

e da criação em hipertexto.

Mais do que isso, o Storyspace ainda é objeto de fruição, através de

obras em hipertexto que se transformaram em paradigmas deste tipo de

escrita, e ferramenta auxiliar na pesquisa teórica, como atestam os

exemplos de Mark Amerika e Jay David Bolter, que recentemente

comprovaram sua utilização, como verificamos neste trabalho. Isso acentua

a atualidade e pertinência desta ferramenta no campo da pequisa teórica.

Já no que diz respeito à criação literária, o suporte de uma casa

editorial como a Eastgate Systems, responsável pela sua divulgação e

comercialização, é fundamental para este aplicativo, que conquistou e

ainda ocupa um lugar importante neste campo, sendo objeto de pesquisa e

criação de muitos autores.

A partir deste trabalho, verificamos que o programa Storyspace

apresenta peculiaridades para as narrativas nos meios digitais que podem

ampliar o espectro de utilização desta ferramenta para outros campos da

criação e da produção artística. É nossa intenção, nesse sentido, estender

115

nosso trabalho num futuro próximo, verificando de que forma o Storyspace

pode ser utilizado na criação de roteiros interativos.

Ao longo do deste trabalho, ao mesmo tempo em que examinamos

o aplicativo e as obras objeto desta tese, e em cada contato profissional e

acadêmico que realizamos, que nos propiciaram trocar idéias sobre esta

pesquisa, concluímos que há uma demanda relativa à criação com os

meios digitais que vão além da área da literatura. Estamos falando do que

parece ser uma necessidade premente de encontrar ferramentas que dêem

conta da criação nos chamados meios “interativos”, ou seja, aqueles meios

tradicionais que começam a buscar nos ambientes digitais outras

perspectivas de executabilidade.

Há um interesse crescente do cinema, por exemplo, em estender

sua narrativa tradicional, expandindo-a com as possibilidades da

hipermídia. Neste sentido, nos parece que um aplicativo como o Storyspace

vem ao encontro de preencher esta lacuna. Entendemos que ele pode ser

utilizado na criação de roteiros interativos, cuja ênfase se encontra no leitor

como sujeito executante do trajeto narrativo, e nas bifurcações possíveis

deste trajeto. Da mesma forma, o Storyspace pode ser utilizado

criativamente no roteiro de videogames. Este último, um campo em

expansão tanto em nível criativo, como em nível comercial.

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