ESPECIAL- UM ANO DEPOIS DA ENCHENTE Marcas...

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4 Marcas das cheias 4 ESPECIAL- UM ANO DEPOIS DA ENCHENTE Passado um ano da enchente que atingiu cidades da região, o drama vivido ainda está presente N aquele fim de agosto de 2013, a água caiu sem intervalos. No mesmo ritmo intenso da chu- va, os rios se elevaram e gradativamente atin- giram as calçadas, as portas e até mesmo o telhado de casas. Den- tro delas, antes de a água entrar, as mãos tre- miam, um pouco pelo frio e outro tanto pelo desespero de perder o acumulado de uma vi- da. Os olhos demonstravam a intranquilida- de de quem não conseguia dormir, e o cor- po cansado trabalhava erguendo os móveis, na tentativa de mantê-los a salvo. Um úni- co desejo era comum a todos os milhares de atingidos pela cheia: que a água parasse de subir. Mas não parou, e o Vale do Sinos viveu a maior cheia em mais de 40 anos. E hoje, um ano depois, as marcas e traumas permanecem. COMPARAÇÃO 2013 - 2014 A menina - A expressão assustada da pequena Amanda Isabeli Dickel Alves, 7 anos, simbolizou a dor e o medo das muitas famílias atingidas pela enchente. Moradora do bairro Industrial, em Novo Hamburgo, a pequena ainda tem medo de que a tragédia se repita. “A cada chuva que cai ficamos apavorados e a Amanda não dorme porque acha que nossa casa pode alagar e cair”, conta sua mãe, Léa Cristina Martins, 32 anos. O companheiro da menina no ano passado, o cachorrinho Lilico, morreu dias depois do fim da enchente, e agora ela tem uma nova amiga, a cadelinha Belinha. Recomeço - Um ano depois de perder tudo o que tinha em casa, inclusive a geladeira recém-comprada, o carroceiro Luiz Ernesto de Oliveira, 40 anos, comemora o inverno de poucas chuvas. Ao lado da esposa e seus cinco filhos, enfrentou todas as dificuldades da enchente que atingiu o bairro Canudos, em Novo Hamburgo. Agora, junto do filho Alisson, 12 anos, lembra das dificuldades que viveu. “Foi uma tristeza muito grande ver a casa cheia de água daquele jeito. Quando acontece uma coisa dessas, se perde o que havia conquistado. A sorte é que recebemos ajuda de amigos”, conta. A dor - Morador do bairro Canudos, o aposentado Liberato Koinacki, 74 anos, busca sempre manter a mente ocupada para não lembrar da enchente. Depois de tirar a esposa Osmilda Lírio, 54, e seu filho da casa e levá-los para se abrigarem na moradia de sua sogra, voltou à residência e viu tudo debaixo d’água. A cena triste lhe causou um mal estar e ele quase desmaiou. “Eu nem posso me lembrar daquilo. Foi a coisa mais triste da minha vida. Tantas coisas novas em casa e a água destruiu tudo. Quando começa a chover, fico com medo que isso aconteça de novo”, lembra, emocionado. Abrigo - Enquanto esperava a água baixar, a aposentada Ivone Marcelino da Rosa, 68 anos, ficou abrigada no ginásio do Ciep, em Canudos. Ao lado da filha e dos dois netos, teve como moradia provisória a goleira da quadra, onde o colchão e os cobertores foram deixados. Ao recordar um período tão difícil, desta vez em casa e com o neto Adrian, 6 anos, diz que foi muito bem tratada no Ciep, mas que não quer passar por isso de novo. “Ainda não conseguimos ajeitar a vida. Quando começou a inundar a casa, só conseguimos salvar a televisão, o restante a água levou”, conta. Alegria - No ano passado, os rostos de Alziro e Delci Puhl, 56 e 49 anos, moradores do bairro Lomba Grande, demonstravam o desespero de quem perdeu os móveis comprados com tanto esforço. Quando o sol abriu, em 30 de agosto, eles começaram a lavar o que era possível, e a descartar o que não podia ser aproveitado. “O importante é que estamos bem. Contamos com a ajuda de amigos para reconstruir a vida, e estamos muito felizes por não ter chovido muito neste inverno. Espero que a gente nunca mais veja uma enchente”, afirma o morador. De volta - Na pequena casa rosa do bairro Canudos, apenas o teto ficou a salvo da enchente de 2013. O restante da estrutura ficou submerso, inclusive todos os móveis e pertences da dona de casa Elizangela Saul, 28 anos. Quando a água baixou, o trabalho foi grande para que ela, o marido e o filho pudessem retornar à moradia. “Aos poucos tudo vai se ajeitando. Mas eu estou muito feliz de não ter chovido muito neste inverno, porque cada dia que chove eu fico com medo que aconteça outra enchente”, afirma. REPORTAGEM MULTIMÍDIA Use seu smartphone e um aplicativo leitor de códigos QR para ler a imagem ao lado e acessar conteúdo exclusivo no site do Jornal NH. KARINA SGARBI texto NÉIA DUTRA vídeo e fotos jornalnh.com.br VEJA REPORTAGEM EM VÍDEO NO NÉIA DUTRA/GES-AGO/2013 JULIANA NUNES/GES-ESPECIAL NÉIA DUTRA/GES-AGO/2013 NÉIA DUTRA/GES NÉIA DUTRA/GES-AGO/2013 NÉIA DUTRA/GES NÉIA DUTRA/GES-AGO/2013 NÉIA DUTRA/GES NÉIA DUTRA/GES-AGO/2013 NÉIA DUTRA/GES NÉIA DUTRA/GES-AGO/2013 NÉIA DUTRA/GES Segunda-feira, 25.8.2014 / JORNAL NH

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Marcasdas cheias

4ESPECIAL- UM ANO DEPOIS DA ENCHENTE

Passado um ano da enchente que atingiu cidadesda região, o drama vivido ainda está presente

Naquele fim de agosto de 2013, a água caiu sem intervalos. No mesmo ritmo intenso da chu-va, os rios se elevaram e gradativamente atin-giram as calçadas, as

portas e até mesmo o telhado de casas. Den-tro delas, antes de a água entrar, as mãos tre-miam, um pouco pelo frio e outro tanto pelo desespero de perder o acumulado de uma vi-da. Os olhos demonstravam a intranquilida-de de quem não conseguia dormir, e o cor-po cansado trabalhava erguendo os móveis, na tentativa de mantê-los a salvo. Um úni-co desejo era comum a todos os milhares de atingidos pela cheia: que a água parasse de subir. Mas não parou, e o Vale do Sinos viveu a maior cheia em mais de 40 anos. E hoje, um ano depois, as marcas e traumas permanecem.

COMPARAÇÃO 2013 - 2014

A menina - A expressão assustada da pequena Amanda Isabeli Dickel Alves, 7 anos, simbolizou a dor e o medo das muitas famílias atingidas pela enchente. Moradora do bairro Industrial, em Novo Hamburgo, a pequena ainda tem medo de que a tragédia se repita. “A cada chuva que cai ficamos apavorados e a Amanda não dorme porque acha que nossa casa pode alagar e cair”, conta sua mãe, Léa Cristina Martins, 32 anos. O companheiro da menina no ano passado, o cachorrinho Lilico, morreu dias depois do fim da enchente, e agora ela tem uma nova amiga, a cadelinha Belinha.

Recomeço - Um ano depois de perder tudo o que tinha em casa, inclusive a geladeira recém-comprada, o carroceiro Luiz Ernesto de Oliveira, 40 anos, comemora o inverno de poucas chuvas. Ao lado da esposa e seus cinco filhos, enfrentou todas as dificuldades da enchente que atingiu o bairro Canudos, em Novo Hamburgo. Agora, junto do filho Alisson, 12 anos, lembra das dificuldades que viveu. “Foi uma tristeza muito grande ver a casa cheia de água daquele jeito. Quando acontece uma coisa dessas, se perde o que havia conquistado. A sorte é que recebemos ajuda de amigos”, conta.

A dor - Morador do bairro Canudos, o aposentado Liberato Koinacki, 74 anos, busca sempre manter a mente ocupada para não lembrar da enchente. Depois de tirar a esposa Osmilda Lírio, 54, e seu filho da casa e levá-los para se abrigarem na moradia de sua sogra, voltou à residência e viu tudo debaixo d’água. A cena triste lhe causou um mal estar e ele quase desmaiou. “Eu nem posso me lembrar daquilo. Foi a coisa mais triste da minha vida. Tantas coisas novas em casa e a água destruiu tudo. Quando começa a chover, fico com medo que isso aconteça de novo”, lembra, emocionado.

Abrigo - Enquanto esperava a água baixar, a aposentada Ivone Marcelino da Rosa, 68 anos, ficou abrigada no ginásio do Ciep, em Canudos. Ao lado da filha e dos dois netos, teve como moradia provisória a goleira da quadra, onde o colchão e os cobertores foram deixados. Ao recordar um período tão difícil, desta vez em casa e com o neto Adrian, 6 anos, diz que foi muito bem tratada no Ciep, mas que não quer passar por isso de novo. “Ainda não conseguimos ajeitar a vida. Quando começou a inundar a casa, só conseguimos salvar a televisão, o restante a água levou”, conta.

Alegria - No ano passado, os rostos de Alziro e Delci Puhl, 56 e 49 anos, moradores do bairro Lomba Grande, demonstravam o desespero de quem perdeu os móveis comprados com tanto esforço. Quando o sol abriu, em 30 de agosto, eles começaram a lavar o que era possível, e a descartar o que não podia ser aproveitado. “O importante é que estamos bem. Contamos com a ajuda de amigos para reconstruir a vida, e estamos muito felizes por não ter chovido muito neste inverno. Espero que a gente nunca mais veja uma enchente”, afirma o morador.

De volta - Na pequena casa rosa do bairro Canudos, apenas o teto ficou a salvo da enchente de 2013. O restante da estrutura ficou submerso, inclusive todos os móveis e pertences da dona de casa Elizangela Saul, 28 anos. Quando a água baixou, o trabalho foi grande para que ela, o marido e o filho pudessem retornar à moradia. “Aos poucos tudo vai se ajeitando. Mas eu estou muito feliz de não ter chovido muito neste inverno, porque cada dia que chove eu fico com medo que aconteça outra enchente”, afirma.

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Segunda-feira, 25.8.2014 / JORNAL NH

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Uma enchente recorde Com o avanço dos rios, foi inevitável dei-xar a moradia e procurar abrigo, levando nos braços alguns poucos pertences que pude-ram ser resgatados. No Vale do Caí, a popu-lação usava barcos para se deslocar até um local seguro. No Paranhana, além de casas inundadas, algumas estradas foram bloque-adas. E no Sinos, as crianças olhavam as-sustadas para suas casas, enquanto a mobí-lia boiava dentro delas. Passado um ano da enchente, os olhos que viram de perto a devastação se enchem de lágrimas ao lembrar dos duros momen-tos que viveram. As marcas deixadas pela água vão muito além de traços nas paredes, contas a pagar e itens danificados. Estão no medo dos dias chuvosos, no sonho destruí-do e na dor de quem precisou recomeçar a vida à força, mesmo depois de ter acumu-lado algumas conquistas. “As pessoas que foram afetadas pela enchente não perderam

somente seus objetos, seus pertences. Per-deram com eles o investimento afetivo que fizeram para suas vidas”, afirma a psicólo-ga e professora da Feevale Denise Quares-ma Da Silva. Embora não consiga esquecer ou apagar a dor deixada pela cheia, a população atingida em 2013 comemora o inverno de pouca chu-va deste ano. O serviços gerais Alziro Puhl, 56 anos, por exemplo, não esconde o sorriso quando compara o inverno deste ano com o anterior. “Estamos bem melhor assim e espe-ro que não haja chuva forte. Não quero perder meus móveis outra vez”, comenta. Relembrando as dificuldades enfrenta-das pelas famílias atingidas pela enchente, o Jornal NH começa hoje uma série de re-portagens em que mostra a situação atual de muitas delas, o que está sendo feito pa-ra evitar novas tragédias e as lições deixa-das pela cheia.

Desde 1965, o Rio dos Sinos não al-cançava um nível tão alto. Em Novo Hamburgo, por exemplo, a marca recor-de de 8,44 metros foi registrada no ápi-ce da enchente de agosto do ano passa-do. O dado evidencia a necessidade de planejamento, organização e de que se-jam realizadas ações preventivas a novas possíveis enchentes. Algumas iniciati-vas neste sentido estão em execução, co-mo o Estudo de Alternativas para Mini-mização do Efeito das Cheias do Trecho Baixo do Rio Caí, que será replicado nas bacias do Sinos e Gravataí. “Até o final de 2015 teremos a figura completa des-tas três bacias, com projetos definidos. Daí pra frente será mais fácil buscar re-cursos para financiar as obras”, afirma

o diretor de Incentivo ao Desenvolvi-mento da Fundação Estadual de Plane-jamento Metropolitano e Regional (Me-troplan), Dante Larentis. Fato é que, com mais de 1,8 mil pes-soas desabrigadas, toda região precisou contar com a solidariedade de sua popu-lação. Em um momento difícil e caóti-co, foi no apoio de amigos e familiares que as pessoas atingidas conseguiram buscar forças para se reerguer. Roupas, móveis e colchões, além do trabalho voluntário, demonstraram a vocação da comunidade em atender ao chamado de ajuda. “Eu sou muito grata aos meus amigos, sem eles eu não teria consegui-do me recuperar”, diz a dona de casa Al-da Maria Walter, 63 anos.

A pior - A dona de casa Eliane Smaniotto, 50 anos, lembra da enchente de 2013 como a pior pela qual passou. Ela comenta que perdeu muitos móveis e objetos, assim como aconteceu com seus vizinhos. Às pressas e tentando salvar o que era possível, ela e a família deixaram a casa no mês de agosto do ano passado, na Vila Integração, em Novo Hamburgo. “Aqui é um lugar muito bom de morar, tanto que estamos há 24 anos nesta casa. Mas precisamos de ações que evitem esse tipo de situação, porque ninguém tem condições de perder tudo a cada enchente”, relata.

Cheia - Nesta casa, em São Sebastião do Caí, no bairro Navegantes, a água impediu por pelo menos três dias a saída da família do servidor público Paulo Dutra Rodrigues, 52 anos. Como a residência tem um segundo piso, ele conseguiu levar todos os móveis para a parte superior, evitando que a água levasse o acumulado de uma vida. Hoje, sem enchente, ele comemora o tempo firme e seco. “Pra nós é ótimo que fique assim. Sempre que chove muito, temos medo que o rio suba demais e atinja a nossa casa de novo”, comenta.

Nos joelhos - Para escapar da força das águas e evitar uma tragédia ainda maior, os moradores de Montenegro percorriam no ano passado a Rua Ramiro Barcelos com água na altura dos joelhos. Levando os poucos pertences que conseguiam carregar, as famílias sentiram na pele a força do Rio Caí. Em alguns casos, onde a água chegava a níveis mais altos, só era possível sair de casa com o auxílio de barcos. No fim de agosto de 2013, eram justamente os barcos os únicos que podiam utilizar a via, hoje repleta de carros.

Memória - Ao lembrar do momento em que tentou entrar em casa e viu todos os móveis adquiridos com tanto esforço boiando na água, a dona de casa Alda Maria Walter, 63 anos, mal consegue conter as lágrimas. Até hoje, a moradora do bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, continua sem um armário para guardar as roupas. “Fica tudo bagunçado e isso me incomoda muito. Tudo o que eu tenho aqui eu consegui com o auxílio dos meus amigos. Eles me ajudaram muito, e a minha família também. Fico muito triste em lembrar da enchente”, conta.

O medo - Na enchente do ano passado, a água atingiu a altura das janelas da casa da família da vendedora Gislaine Oliveira de Souza, 32 anos, localizada no bairro Vila Rica, em Campo Bom. Sem tempo de salvar os móveis, ela teve que deixar a casa rapidamente antes que a água chegasse ao nível máximo. Depois, precisou juntar forças para recomeçar. “Nós perdemos tudo, e só com a ajuda de amigos conseguimos recuperar os móveis aos poucos. É muito difícil viver assim, com medo de que chova e uma nova enchente atinja a minha casa”, comenta.

Ponte - Além dos rios dos Sinos e Caí, o Paranhana também teve uma grande elevação de nível com a enchente do ano passado. No registro de 2013, a ponte localizada no limite entre Taquara e Parobé mal aparecia diante da cheia do rio. Por questão de segurança, a ligação entre as duas cidades pela estrada velha ficou interrompida por pelo menos dois dias durante a enchente. Na foto do ano passado, o local já havia sido liberado para tráfego de veículos e pedestres, após um laudo técnico da Secretaria de Planejamento e Captação de Recursos de Parobé.

NéIA DUTRA/GES-AGO/2013 NéIA DUTRA/GES DARIELE GOMES/GES-ESPECIAL-AGO/2013 NéIA DUTRA/GES

DIEGO DA ROSA/GES-AGO/2013 NéIA DUTRA/GES NéIA DUTRA/GES-AGO/2013 NéIA DUTRA/GES

CLAUCIA fERREIRA/GES-ESPECIAL-AGO/2013 MARIANA HALMEL/GES-ESPECIALNéIA DUTRA/GES-AGO/2013 NéIA DUTRA/GES

Segunda-feira, 25.8.2014 / JORNAL NH

AMANHÃ: o que prefeituras da região fizeram para amenizar problemas de cheias