Esplendor e sigilo: o Brasil na cartografia portuguesa dos séculos ...

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O presente artigo tem como base minha dissertação de mestrado 1 e aborda a cartografia 2 realizada pelos portugueses como uma forma de arte, fonte de imagens da terra brasileira. Considero que os mapas lusos assumem um grande valor para o estudo da História da Arte no Brasil. Afinal, por quase três séculos, os portugueses – ao contrário de franceses e holandeses – praticamente não pintaram vistas panorâmicas da região. Portanto, procuro analisar o desenvolvimento da cartografia portuguesa no século 15, a qual teria semelhanças com as novas concepções espaciais da pintura do Renascimento italiano. Em seguida, busco identificar características que aproximem obras de diferentes autores lusos, no período entre os séculos 16 e 17, para apontar a influência da mentalidade portuguesa nas representações da terra brasileira. Entretanto, seria necessário compreender, primeiramente, o processo da expansão oceânica lusa. Afinal, como sustenta o historiador Paulo Knauss, “em sendo imagem do espaço, mapas e plantas são produtos de sua circunstância histórica contraditória e complexa”. 3 Os descobrimentos portugueses duraram quase dois séculos e se estenderam pelos sete mares e pelos cinco continentes. Para tal empreendimento, contava a favor de Portugal sua geografia, entre o mar Mediterrâneo e o oceano Atlântico, além de sua estabilidade política, fator raro entre os reinos vizinhos. Portugal foi o primeiro Estado moderno europeu, e a dinastia de Avis, iniciada com D. João I (1356-1433) em 1383, tinha o apoio da Igreja e da burguesia mercantilista. A vitória sobre a cidade africana de Ceuta, em 1415, seria a primeira de muitas conquistas do império português, o qual só findaria com a devolução de Macau à China, em 1999. Se não há como negar que interesses econômicos, além de militares e políticos, moveram os portugueses a empreender suas viagens ultramarinas, também seria verdade que um estado de espírito os impulsionava a arriscar suas próprias vidas em prol de um objetivo comum, de cunho patriótico e antiislâmico. Afinal, como afirma o professor Arthur Cézar Ferreira Reis, “a era oceânica (...) teve, e essa é a verdade irreversível, como seu principal criador, o povo de Portugal, para isso empenhado em todos os recursos disponíveis e com uma ousadia quase inacreditável”. 4 Os lusos teriam sido influenciados pela crença numa Terceira Idade: um período de felicidade terrena antes do Juízo Final, em que o cristianismo se espalharia por todo o mundo. 5 Essa crença teria sido disseminada em Portugal pela festa do Espírito Santo, introduzida pelos franciscanos na época do rei D. Dinis (1261-1325). Agregando todas as classes sociais, esse culto reafirmava a identidade lusa e pode ter preparado os alicerces de uma nova cruzada dos portugueses, ARTIGO • ANDRÉ MONTEIRO DE BARROS DORIGO 35 Esplendor e sigilo: o Brasil na cartografia portuguesa dos séculos 16 e 17 André Monteiro de Barros Dorigo O presente artigo tem por objetivo analisar as representações da terra brasileira a partir de mapas portugueses traçados entre os séculos 16 e 17. Além disso, buscou-se compreender a mentalidade dos portugueses nos primeiros tempos da colonização do Brasil, a qual levaria a um tipo de representação peculiar da terra brasileira. Cartografia, História da Arte, Antropologia da Arte.

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O presente artigo tem como base minhadissertação de mestrado1 e aborda a cartografia2

realizada pelos portugueses como uma forma dearte, fonte de imagens da terra brasileira.Considero que os mapas lusos assumem umgrande valor para o estudo da História da Arteno Brasil. Afinal, por quase três séculos, osportugueses – ao contrário de franceses eholandeses – praticamente não pintaram vistaspanorâmicas da região. Portanto, procuroanalisar o desenvolvimento da cartografiaportuguesa no século 15, a qual teriasemelhanças com as novas concepções espaciaisda pintura do Renascimento italiano. Emseguida, busco identificar características queaproximem obras de diferentes autores lusos,no período entre os séculos 16 e 17, paraapontar a influência da mentalidadeportuguesa nas representações da terrabrasileira. Entretanto, seria necessáriocompreender, primeiramente, o processo daexpansão oceânica lusa. Afinal, como sustentao historiador Paulo Knauss, “em sendoimagem do espaço, mapas e plantas sãoprodutos de sua circunstância históricacontraditória e complexa”.3

Os descobrimentos portugueses duraram quasedois séculos e se estenderam pelos sete mares epelos cinco continentes. Para talempreendimento, contava a favor de Portugalsua geografia, entre o mar Mediterrâneo e ooceano Atlântico, além de sua estabilidade

política, fator raro entre os reinos vizinhos.Portugal foi o primeiro Estado modernoeuropeu, e a dinastia de Avis, iniciada com D.João I (1356-1433) em 1383, tinha o apoio daIgreja e da burguesia mercantilista. A vitóriasobre a cidade africana de Ceuta, em 1415,seria a primeira de muitas conquistas do impérioportuguês, o qual só findaria com a devoluçãode Macau à China, em 1999. Se não há comonegar que interesses econômicos, além demilitares e políticos, moveram os portugueses aempreender suas viagens ultramarinas, tambémseria verdade que um estado de espírito osimpulsionava a arriscar suas próprias vidas emprol de um objetivo comum, de cunhopatriótico e antiislâmico. Afinal, como afirma oprofessor Arthur Cézar Ferreira Reis, “a eraoceânica (...) teve, e essa é a verdadeirreversível, como seu principal criador, o povode Portugal, para isso empenhado em todos osrecursos disponíveis e com uma ousadia quaseinacreditável”.4 Os lusos teriam sidoinfluenciados pela crença numa Terceira Idade:um período de felicidade terrena antes do JuízoFinal, em que o cristianismo se espalharia portodo o mundo.5 Essa crença teria sidodisseminada em Portugal pela festa do EspíritoSanto, introduzida pelos franciscanos na épocado rei D. Dinis (1261-1325). Agregando todasas classes sociais, esse culto reafirmava aidentidade lusa e pode ter preparado osalicerces de uma nova cruzada dos portugueses,

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Esplendor e sigilo: o Brasil na cartografiaportuguesa dos séculos 16 e 17

A n d r é M o n t e i r o d e B a r r o s D o r i g o

O presente artigo tem por objetivo analisar as representações da terra brasileira a

partir de mapas portugueses traçados entre os séculos 16 e 17. Além disso,

buscou-se compreender a mentalidade dos portugueses nos primeiros tempos da

colonização do Brasil, a qual levaria a um tipo de representação peculiar da terra

brasileira.

Cartogra f ia , H is tó r ia da Ar te , Ant ropo log ia da Ar te .

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em pleno século 15. Entretanto, não foisomente a fé que os moveu. A dúvida fazia comque avançassem cautelosamente pela costaafricana, enquanto aprimoravam seusconhecimentos náuticos e afastavam os medosdo mar. Por exemplo, tanto a fé quanto a dúvidaestariam presentes em D. Henrique (1394-1460). Filho do rei D. João I, era mestre eadministrador da poderosa Ordem de Cristo –que fora criada em 1319 para substituir a extintaOrdem dos Templários –, tornando-se opatrocinador das primeiras expedições lusas.Católico fervoroso e defensor do espírito decruzada, o infante era um estudioso dematemática e de astronomia, reunindo grandesnavegadores e sábios em torno de si. Aos olhoscontemporâneos, essa combinação entre crençamedieval e empirismo renascentista poderia serconsiderada esdrúxula. Entretanto, poderiasignificar a esperança na vida terrena,característica de uma Terceira Idade, época tantodo espírito como do intelecto. Essa fé daria acerteza de que, na busca de seus desígnios,nada os impediria.

O principal objetivo de D. Henrique eradescobrir a verdade sobre as terras que existiamalém das ilhas Canárias e a respeito das quais,até então, não havia ninguém na cristandadeque tivesse informações. Com o tempo,Portugal não apenas revoluciona as práticas denavegação européias, mas também a geografiaregistrada em seus mapas. Os lusos foramherdeiros de uma tradição cartográfica medieval,as cartas-portulano.6 Feitas em pergaminho,eram muito úteis para a navegação mediterrâneae foram aperfeiçoadas para as viagens oceânicas.Isso foi possível graças à redescoberta da obrade Cláudio Ptolomeu (século 2), aliada a suaspróprias experiências no mar. Desse modo,acabaram por desenvolver um novo tipo decarta, que corrigiu e ampliou os mapas daAntigüidade e da Idade Média. Num mesmocontexto histórico, pode-se observar que ospintores do Quattrocento italiano tambémrealizavam experimentos que desembocariamnum novo sistema pictórico, capaz de demarcarem profundidade o espaço bidimensional. Umde seus principais teóricos foi Leon BattistaAlberti (1404-1472) que, baseado na geometriade Euclides (século 3 a.C.), adota a noção deperspectiva linear na pintura. A elaboração tanto

de mapas como de pinturas correspondia,portanto, ao desejo do homem europeu deconquistar o espaço. Em linhas gerais, o mapateria a intenção de condensar o espaço em umúnico plano, a pintura, de expandi-lo até oinfinito. Mesmo reconhecendo suas diferenças,pode-se perceber que italianos e portuguesestiveram em comum a influência dos textosclássicos e o uso da experiência como base desuas atividades. Pode-se inferir que, em vez deuma ruptura, a Renascença teria sido o resultadode um longo processo lavrado na Idade Médiae, mais ainda, como alguns historiadores lusossustentam, os descobrimentos teriam sido oRenascimento português. Entretanto, o sistemaperspectivo desenvolvido pelos pintoresitalianos não poderia ser considerado umaverdade absoluta, uma lei permanente. Nemmesmo os mapas seriam documentosestritamente científicos, podendo comfreqüência obedecer a propósitos subjetivos,como será visto posteriormente.

A Coroa lusitana, tentando preservar osconhecimentos adquiridos em suas viagens,manteve a prática medieval de produzir mapasmanuscritos. Além disso, instituiu a política desigilo em torno dos descobrimentos, com aproibição da saída de cartas para outros países ea pena de morte para os infratores. Essa políticafaria uso da espionagem e, principalmente, dacontra-espionagem, que visava até à divulgaçãode lendas e notícias falsas sobre regiões quepretendia ocultar. No entanto, a chegada dosportugueses à Índia fez com que os estrangeirosprocurassem, a qualquer preço, cartas queregistrassem os novos descobrimentos. Naquelaépoca, estava em Lisboa um espião italiano,chamado Alberto Cantino, que realizou oprimeiro suborno de um cartógrafo luso. Em1502, Cantino enviou para a Itália um planisfériodesenhado e iluminado sobre pergaminho, emque constavam todos os descobrimentos lusosaté aquele ano. Não se sabe quem executou talcarta, que, por isso ficou conhecida comoplanisfério Cantino. Nele, o litoral africano estámuito bem traçado, além de apresentar odesenho do oceano Índico baseado emmedições de navegadores como Vasco daGama. Nesse planisfério também consta aprimeira representação lusa, até entãoconhecida, do Brasil, ou melhor, Terra de VeraCruz: diversas árvores e três araras

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multicoloridas. Em um primeiro momento,pode-se inferir que estariam representados doisartigos de valor comercial: as aves exóticas e ospaus-brasis. Porém, os lusos estariam diante deuma nova terra com novas gentes, batizada porCabral de “verdadeira cruz”. A partir dessa ótica,as três araras simetricamente dispostas na formade um triângulo poderiam simbolizar aSantíssima Trindade, ou a própria Terceira Idade,a Idade do Espírito Santo, quando o cristianismose espalharia por todo o mundo. Se a fé quemovia os lusos estaria aí caracterizada, suaexperiência também fez com que essa cartafosse a mais aperfeiçoada até então conhecida.Como afirma o poeta Luís de Camões em OsLusíadas: “(...) Não se aprende, Senhor, nafantasia / Sonhando, imaginando ou estudando, /Senão vendo, tratando e pelejando”.7

Além de estabelecer feitorias, os lusos trataramde reconhecer o amplo litoral brasileiro duranteos primeiros anos do século 16. Uma provadisso seria a carta Terra Brasilis, cuja autoria écreditada a Lopo Homem, Pedro e Jorge Reinel(Imagem de abertura). É um manuscritoiluminado sobre pergaminho e faz parte de umacoleção realizada entre 1515 e 1519, ochamado Atlas Miller, considerado o maisimportante atlas português do século 16. Aocontrário do planisfério Cantino, feito de formaclandestina, o luxuoso Atlas teria sido umpresente de D. Manuel I (1469-1521) ao rei da

França. O rei português teria possíveis interessespolíticos em apresentar-lhe as possessões de seuimpério. O litoral brasileiro está minuciosamentetraçado, buscando-se a identificação de seusacidentes geográficos. Entretanto, as bandeirasportuguesas definem como domínios osestuários do Amazonas e do Prata. Isso se deugraças a um desvio no traçado da costa paraincluí-los no hemisfério luso do Tratado deTordesilhas. Além disso, os portugueses serepresentam como os senhores do Atlântico,pois suas caravelas se espalham por todo ooceano. O interior da terra, aindadesconhecido, é preenchido por representaçõesdos seus habitantes, da flora, da fauna, além dafigura mítica de um dragão. Entretanto, oprincipal tema representado é o corte demadeira nativa, considerado a primeira imagemde uma atividade econômica no Brasil. O quedemonstraria, portanto, o caráter pragmático emercantil dos portugueses. Além disso, éimportante observar um trecho da legendadessa carta, que destaca os aspectosaterrorizantes dos seus nativos:

EEssttaa ccaarrttaa éé ddaa rreeggiiããoo ddoo ggrraannddee BBrraassiill eeddoo llaaddoo oocciiddeennttaall aallccaannççaa aass AAnnttiillhhaass ddooRReeii ddee CCaasstteellaa.. AA ssuuaa ggeennttee éé ddee ccoorreessccuurraa.. SSeellvvaaggeemm ee ccrruuddeellííssssiimmaa aalliimmeennttaa--ssee ddee ccaarrnnee hhuummaannaa.. EEssttee mmeessmmoo ppoovvooeemmpprreeggaa,, ddee mmooddoo nnoottáávveell,, oo aarrccoo ee aasssseettaass ((......))..

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Esta imagem do indígena brasileiro difere dosescritos dos primeiros cronistas lusos da terrabrasileira, como Pero Vaz de Caminha: “E poisNosso Senhor, que lhes deu bons corpos ebons rostos, como a bons homens, por aquinos trouxe, creio que não foi sem causa”.8 Aantropofagia era comum entre a família Tupi-Guarani, que povoava grande parte da costabrasileira. Não era um hábito alimentar, masfazia parte de um importante ritual daquelassociedades. Entretanto, ao longo de diversascartas quinhentistas lusas, o nativo brasileiroacabou por tornar-se uma figura bestial – aocontrário, por exemplo, da iconografia realizadapelos franceses. Ao longo do processocolonizador do Brasil, os missionárioscontinuaram a vislumbrar as qualidades dosindígenas com o objetivo de catequizá-los. Oscolonizadores, ao contrário, enfatizavam seusaspectos assustadores para escravizá-los. A figurado canibal retratada nas cartas poderiasimbolizar, portanto, um entrave à colonizaçãoda região e, ao mesmo tempo, um escravo empotencial. Mais do que isso, a generalização daimagem do cruel antropófago poderia assustarpossíveis invasores estrangeiros,desestimulando-os a empreender viagens para oBrasil. De acordo com o contra-almirante MaxJusto Guedes, a cartografia de origemportuguesa “é calcada exclusivamente naexperiência, incapaz de se deixar influenciar pelafantasia (exceto quando intencionalmentedestinada a mistificar potências rivais) (...)”.9

A decisão de colonizar o Brasil tinha doisobjetivos principais: garantir o monopólio darota para as Índias e afastar os franceses queassediavam a costa desde princípios do século16. O sistema de capitanias hereditárias,adotado em 1532, visava estabelecermecanismos mais eficazes de controle sobre acosta brasileira. Mesmo com a instauração doGoverno Geral, em 1549, a Coroa criava todasas dificuldades às entradas para o interior, comreceio que se despovoasse o litoral. SérgioBuarque de Holanda considera que a influênciadaquela colonização litorânea praticada pelosportugueses ainda persiste até nossos dias.“Quando hoje se fala em ‘interior’, pensa-se,como no século 16, em região escassamentepovoada (...).”10 O período definido comoUnião Ibérica (1580-1640) possibilitou o

preparo de numerosas expedições para ossertões, diluindo a fronteira de Tordesilhas. Noentanto, a cartografia lusa de finais do século 16e do 17 persiste em basicamente registrar olitoral brasileiro. Encontra-se no InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro, no Rio deJaneiro, um códice cujo título é “Livro que dáRezão do Estado do Brasil”, de c. 1626. Seutexto é do sargento-mor Diogo CamposMoreno, e seus mapas foram identificados comode João Teixeira Albernaz. São 20 cartas querepresentam desde a costa meridional daAmérica do Sul até o litoral do Maranhão eapenas duas plantas: da cidade de Salvador e doforte Novo da Passagem, localizado na RegiãoNordeste. A terceira carta do códice traçadopor Albernaz se refere ao Rio de Janeiro. Nelaestá traçada a baía de Guanabara, além da faixalitorânea que segue na direção da região deCabo Frio, com suas lagoas e cadeiasmontanhosas. A cidade de São Sebastiãoestende-se ao longo de seu porto, descrito nalegenda retangular do canto inferior esquerdo dacarta. É considerado o melhor do Estado doBrasil, por ser bem defendido e por ser“abundantíssimo” em madeiras para o reparo denaus, podendo receber muitas e grandesembarcações. Entretanto, é de estranhar ocontraste entre a representação sumária dacidade e a ênfase dada na descrição de seuporto. Afinal, não são nítidos os morros ondeestava situada, e seus edifícios são merosretângulos ao longo da costa. Há também que

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se destacar a fortaleza de Santa Cruz, na entradada baía, com a seguinte inscrição: “Fortalezanova: a melhor que há em todo o Estado doBrasil, mas mal provida de Artilharia, por não termais que 11 peças de Bronze e 9 de Ferro”.Mais uma vez percebem-se a mentalidademercantil lusa e a prioridade na defesa da costa,colocando em segundo plano, por exemplo, arepresentação da cidade. Além disso, asobriedade decorativa com que os cartógrafoslusos retrataram o Brasil do século 17 énitidamente diferente dos mapas barrocos daocupação holandesa,11 que, ao contrário, teriama finalidade de divulgar o Nordeste brasileiro afim de que mais recursos fossem arrecadadospara sua empresa colonial.

Por fim, a cartografia lusa da terra brasileira, noperíodo compreendido entre os séculos 16 e17, teria duas marcantes características: oesplendor e o sigilo. Esplendor por serem obrasde arte cuidadosamente elaboradas, querepresentam com minúcia a costa brasileira epor vezes seus habitantes, sua flora e sua fauna.Sigilo por se tratar de objetos manuscritos,mantidos a princípio sob rígido controle, masque se mostrou ineficaz mediante as práticas desuborno das outras potências. Mais do que isso,as cartas teriam relações com uma política lusade nada divulgar sobre a colônia, que proibia –em contraste evidente com a América hispânica– a criação de universidades e muito menos aimpressão de livros. As cartas são também umtestemunho do primeiro processo humano dedimensões globais. Afinal, como afirma ohistoriador luso Vitorino Magalhães Godinho, “asnavegações de descobrimento teceram umarede mundial de rotas, pondo em mútua relaçãotodas as civilizações que se tinham desenvolvidoao longo da linha costeira dos oceanos”.12

Desde então, a mobilidade de homens,mercadorias e conhecimento tornou-se cadavez maior, num processo que perdura até osdias atuais.

André Monteiro de Barros Dorigo é designer gráfico, mestre emHistória e Teoria da Arte pelo PPGAV/UFRJ e atualmente leciona na

EBA/UFRJ.

NNoottaass

1 Dorigo, André Monteiro de Barros. Esplendor e sigilo: o Brasil

na cartografia portuguesa de 1502 a 1675. Dissertaçãode mestrado em Artes Visuais do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal doRio de Janeiro, 2005, 143 f.

2 A cartografia poderia ser definida como a ciência, a técnica ea arte de representar graficamente o espaço por meio demapas, cartas e plantas. Em português, as palavras mapae carta são quase-sinônimos. Entretanto, a primeiratende a definir documentos mais simples e esquemáticos,enquanto a segunda é aplicada aos mais complexos ouligados à navegação. Já a palavra planta é utilizada quandose representa uma área bastante limitada, contendomuitos detalhes.

3 Knauss, Paulo. Imagem do Espaço, Imagem da História. Arepresentação espacial da cidade do Rio de Janeiro. In:Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1997: 135.

4 Reis, Arthur Cézar Ferreira. A era dos descobrimentos. In:Revista do IHGB, RJ, n. 287, 1970:.14.

5 A crença numa Terceira Idade teve como precursor o abadecalabrês Joaquim de Fiori (1136-1202). Segundo a suateologia, a Primeira Idade, ou período do Pai, seria otempo em que os homens viviam segundo o VelhoTestamento. A Segunda Idade, ou o período do Filho,seria a época na qual os homens viviam sob a luz doNovo Testamento. Finalmente, a Terceira Idade, ou idadedo Espírito Santo, deveria ser disseminada pelas novasordens religiosas recomendadas por de Fiori, que vierama ser, possivelmente, a dos franciscanos e a dos jesuítas.

6 As cartas-portulano quase sempre representavam o marMediterrâneo e suas redondezas. Apesar de não possuirindicações de latitudes ou longitudes, a carta apresentavaescalas gráficas em milhas e redes de linhas que partiamdas rosas-dos-ventos, lembrando uma teia de aranha.Juntamente com a bússola, tais indicações forneciam oselementos essenciais para se estimar a direção, a posiçãoe a distância percorrida pela embarcação.

7 Camões, Luís de. Os Lusíadas. Canto X, 153. Porto: Lello &Irmão Editores, 1991: 394.

8 Caminha, Pero Vaz de, apud Pereira, Paulo Roberto. Os três

únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Rio deJaneiro: Lacerda Editores, 1999: 54.

9 Guedes, Max Justo. O reconhecimento do litoral brasileirona primeira década do século 16. In: Revista do IHGB, Rio deJaneiro, n. 287, 1970: 467.

10 Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio deJaneiro: José Olympio Editora, 1997: 67-68.

11 Sobre o assunto, ver Dorigo, André Monteiro de Barros. OBarroco na Cartografia de Georg Marcgraf. In: Anais do VI

Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, Rio de Janeiro, vol.I, 2004: 75-84.

12 Godinho, Vitorino Magalhães. O que significa descobrir? In:Novaes, Adauto. A descoberta do homem e do mundo. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1998: 71.

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