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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
Instituto de Ciências Humanas
Curso de Psicologia
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE ADOECIMENTO PSÍQUICO A PARTIR DO DOCUMENTÁRIO “ESTAMIRA”
Fabiana Alves de Oliveira RA: A72CII-0
Leandro Azeredo de Brito RA: B02910-2
São José do Rio Preto
2014
UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
Instituto de Ciências Humanas
Curso de Psicologia
Fabiana Alves de Oliveira RA: A72CII-0
Leandro Azeredo de Brito RA: B02910-2
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE ADOECIMENTO PSÍQUICO A PARTIR DO DOCUMENTÁRIO “ESTAMIRA”
São José do Rio Preto
2014
Relatório de reflexões teóricas apresentado à disciplina Psicopatologia do 7º semestre do curso de Psicologia da Universidade Paulista – UNIP, ministrada pela Profª Ana Yara Monteiro.
INTRODUÇÃO
Estamira é louca ou extremamente lúcida? Ao som marcado por notas rústicas e
insistentes, que remetem a instrumentos musicais primitivos, em sintonia com um canto
oriental delirante, as primeiras cenas do documentário de Marcos Prado mostram
Estamira entrando em um ônibus coletivo e transitando entre um mundo ordenado, de
placas indicando sentidos e direções, e o aterro sanitário de Gramacho, um lugar para
onde vão as sobras, resultado dos excessos do nosso consumismo, mostrando uma cena
em que o lixo voa desordenadamente, ao acaso do vento. “Olha lá onde é que eu estou:
eu estou aqui e estou lá”.
Contrastando cenas de cores vivas e iluminação natural, com outras em preto e
branco, que dão destaque à morbidez do lixo acumulado, o diretor Marcos Prado dá voz
à Estamira e o seu discurso é o eixo do documentário que retrata o modo de ser de uma
mulher de 63 anos, diagnosticada com esquizofrenia, e que teve uma vida marcada pela
dor, miséria, abuso sexual encontrando no adoecimento mental o recurso para suportar a
vida, a resposta ao trauma que já não pode ser elaborado. Seu discurso delirante carrega
a marca da contradição, da alternância entre momentos em que parece ser totalmente
sem sentido e momentos de uma extrema lucidez.
As palavras de Estamira vêm em tom de indignação, denunciando, através do
lixo, o sintoma social de uma época marcada pelo consumismo, pelo exagero, pelo
descaso e pela negligência. Aponta uma função enganadora do discurso contemporâneo,
denunciando a face perversa do poder, da ordem imposta, nomeando esta função de
“trocadilo”.
O ADOECIMENTO MENTAL E SUAS DIMENSÕES BIOLÓGICA, SOCIAL E
ECONÔMICA
Quando afirma “o homem como único condicional”, Estamira anuncia a
indeterminação como condição humana. O “trocadilo”, segundo ela, “faz as pessoas
viverem na ilusão, e acreditar em coisas que não existem”, concentrando no neologismo
a denúncia das injustiças sofridas por ela. Aos 12 anos foi levada à prostituição pelo avô
materno e revela como foi abusada sexualmente por ele. Segue-se um casamento infeliz,
regado à violência e álcool.
“Eu nasci dia 07 de abril de 1941. A carne e o sangue. O formato. Formato
homem, par. Mãe e avó. E aí então, sabe o que que aconteceu? Eles levaram o meu pai
em 1943. Aí... nunca mais o meu pai voltou!...Meu pai chamava eu de tanto
nomezinho... chamava eu de uns nome engraçado: “merdinha”... neném... fiinha do
pai...Aí então, depois, sabe o que eles falaram? Depois eles falaram que o meu pai
morreu. E aí então minha mãe ficou pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo
comigo.... Que judiação, não? Coitada da minha mãe, mais perturbada do que
eu. Bem, eu sou perturbada, mas lúcido e sei distinguir a perturbação. Mas coitada da
minha mãe não conseguia. Mas também, pudera, eu sou Estamira!”.
A história de Estamira mostra que, apesar de possíveis fatores hereditários da
doença, pois sua mãe também apresentou transtornos mentais, ela foi uma pessoa
saudável, uma boa mãe, tinha valores religiosos que lhe davam a possibilidade de
acreditar em um deus protetor e bondoso, proporcionando uma solução na fantasia à sua
situação de vulnerabilidade. De acordo com Lotufo Neto (1997) apud Silva e Zanello
(2010) a ideia de que a religião nos mostra regras e atividades com o intuito de evitar
doenças e até mesmo a morte, afeta o modo como os indivíduos enfrentarão as
adversidades da vida, uma vez que, para a maioria da população brasileira, as dimensões
espirituais e religiosas caracterizam‐se como fatores que ajudam na estruturação da
experiência humana, nas crenças, nos valores, nos comportamentos e até mesmo nos
padrões de adoecimento.
Mas o desamparo vivido e que se repetia desde criança e as sucessivas situações
de abuso e violência se acumularam em traumas que não podiam mais ser elaborados de
forma neurótica. O fato de ter sido separada do pai, segundo ela, com dois anos de
idade, sustenta uma possível constituição psíquica marcada pela simbiose materna, onde
a interdição paterna não cumpre a função adequada de possibilitar o recalque, através da
castração, situando o sujeito na ordem do simbólico. Na vida adulta, situações limite
como a ocorrência de dois estupros desencadeiam experiências psicóticas, que se
manifestam através de um discurso delirante. Segundo Leite (2006) apud Juhas e Santos
(2011), na neurose há o recalque e uma resposta ao trauma com uma fantasia e com o
simbólico. Na psicose, como é o caso de Estamira, é o delírio que tenta responder ao
traumático inassimilável.
TRATAMENTO E MEDICALIZAÇÃO SEM ACOMPANHAMENTO
É de se notar a necessidade que Estamira mostra de falar, através das metáforas
que usa, de ser escutada, função que assume o cinegrafista, ao dar voz a ela, em
contraste com o tratamento oferecido pelo SUS. Estamira, em meio aos devaneios e
delírios, desfere uma crítica muito lúcida ao modelo de tratamento utilizado pelos
médicos: “Aqui ó, o retorno, daqui a quarenta dias... Presta atenção nisso... Ela é
copiadora... Eles estão fazendo, sabe o quê? Dopando, quem quer que seja, só com um
remédio!” Em tom de revolta, denuncia os automatismos das prescrições de remédios
sem levar em consideração as singularidades.
Lê seu diagnóstico: “portadora de quadro psicótico, com evolução crônica,
alucinações auditivas.” Sua leitura segue um ritmo lento, deixando transparecer a
sensação da pobreza do diagnóstico (SOUSA, 2007). O tratamento que é ofertado pelo
SUS é reducionista, pois o adoecimento é tratado apenas como fenômeno biológico; é
desumanizador, pois o paciente é considerado como um conjunto de sintomas que
devem ser extintos, desconsiderando suas particularidades, sua história de vida,
contexto social e econômico e todos os aspectos culturais que constituem a
subjetividade humana. Estamira tem uma história rica, marcada por acontecimentos que
dizem muito de sua situação atual de adoecimento, que devem ser ouvidas para melhor
compreensão de seu modo de ser.
FUNÇÕES MENTAIS ALTERADAS
No que se refere às funções mentais, Estamira apresenta alterações nas
dimensões de linguagem, pensamento e juízo de realidade.
Alterações de linguagem
Segundo Dalgalarrondo (2008), a linguagem é uma atividade especificamente
humana, sendo o principal instrumento de comunicação. Além disso, ela é fundamental
na constituição e na expressão dos pensamentos. Em qualquer língua, há três elementos
essenciais: o fonético (sons, elementos materiais da fala), o semântico (significação dos
vocábulos) e o sintático (relação lógica das diversas palavras).
Dalgalarrondo (2008), ainda cita as seguintes funções da linguagem:
comunicativa (socialização do indivíduo), suporte do pensamento (pensamento lógico e
abstrato), instrumento de expressão (estados emocionais, vivências subjetivas),
afirmação do eu (oposições eu/mundo, eu/tu, eu/outros) e dimensão artística/lúdica
(elaboração e expressão do belo, do gramático, do sublime ou do terrível).
O linguista norte americano Noam Chomsky (2005) apud Dalgalarrondo (2008),
chama atenção para um aspecto essencial da linguagem humana: a criatividade. Esse
domínio criativo da linguagem torna o estudo de suas alterações mais complexo, pois a
flexibilidade da sua produção dificulta a conceituação entre o normal e o patológico.
Nos aspectos da linguagem, em alguns momentos do documentário nossa
protagonista usa uma linguagem incompreensível. Num primeiro momento, Estamira
canta parecendo improvisar uma melodia e proferindo palavras que se parecem com
uma mistura de línguas. Em outro momento, a personagem fala ao telefone, usando
novamente palavras desconhecidas, mas respeitando os ritmos e pausas, como se de
fato, houvesse um interlocutor do outro lado da linha, entendo seu vocabulário e
interagindo. Estamira apresenta uma alteração que pode ser classificada como
Glossolalia. Segundo Dalgalarrondo (2008), essa alteração é caracterizada por uma
produção de fala pouco compreensível, uma concatenação ininteligível de sons que,
apesar de não terem sentido linguístico, seguem os aspectos prosódicos da fala.
Alterações do pensamento
Estamira apresenta também alterações do pensamento. Considera-se que este é
constituído por três elementos constitutivos, que são o conceito (elemento puramente
cognitivo), o juízo (afirmação de uma relação entre dois conceitos) e o raciocínio
(ligação entre conceitos, de sequência de juízos, de encadeamento lógico de
conhecimentos), que devem ser distinguidos das diferentes dimensões do processo de
pensar, a saber: curso, forma e conteúdo do pensamento. O pensamento se constitui a
partir de elementos sensoriais (imagens perceptivas e representações), que apesar de não
serem intelectivos propriamente, fornecem material para o processo do pensar.
Estamira demonstra em seu discurso uma alteração dos elementos constitutivos
do pensamento que é classificada como Desintegração dos conceitos. Nessa situação, o
sujeito passa a utilizar as palavras de forma totalmente pessoal e idiossincrática,
subvertendo a relação entre o objeto e a palavra que o designa (DALGALARRONDO,
2008). Estamira, entre algumas situações em que usa palavras com significado
totalmente novo, pessoal, fala sobre constelações, astros e de um cometa, mas explica
que cometa significa comandante. Da mesma forma, “raios” são os cabelos, “gravador
sanguíneo” seria o cérebro e “formato par” ou “formato ímpar” diferencia o sexo
feminino do masculino.
Outra alteração de função mental apresentada por Estamira é o Pensamento
Dereístico, que traz como marca a oposição ao pensamento realista, o qual se submete à
lógica e à realidade. No Pensamento dereístico, só existe submissão à lógica e à
realidade naquilo que interessa ao desejo do indivíduo, distorcendo e adaptando a
realidade aos seus anseios. O Pensamento volta-se mais para o mundo interno do sujeito
e suas fantasias. Algumas falas de Estamira que se caracterizam por esta alteração:
“Sabia que tudo que é imaginário existe, tem e é?”; “Ele [homem] depois que ele
desencarna, a carne se for pro chão dissolve, derrete, fica só os ossos e os raios (os
cabelos) e aí, ele fica formato a mesma coisa, mas só acontece que fica transparente,
perto da gente. Meu pai tá perto de mim, minha mãe, os amigos. Oh! estou vendo!”.
Alteração de juízo de realidade
Produzir juízos é uma atividade essencialmente humana, por meio de juízos, o
ser humano afirma sua relação com o mundo, discerne a verdade do erro, assegura-se da
existência ou não de um objeto ou distingue uma qualidade de outra (NOBRE DE
MELO, 1979 apud DALGALARRONDO, 2008).
Juízos falsos podem ser produzidos de várias formas sendo ou não patológicos.
É preciso então, fazer a distinção entre o erro não determinado por transtornos mentais e
as diversas formas de juízos falsos, patológicos.
Não existe um limite nítido entre o erro e o delírio. No entanto, os erros são
passíveis de serem corrigidos pela experiência, ou seja, pelos dados que a realidade
oferece.
Segundo Jaspers (1979) apud Dalgalarrondo (2008), os erros são
compreensíveis, pois podem surgir e persistir em virtude de ignorância, fanatismo
religioso ou político, enquanto o delírio tem como principal característica a
incompreensibilidade. Os tipos de erros mais comuns são: os preconceitos (racismo,
sexismo, etnocentrismo, classismo ou preconceito religioso), as crenças culturalmente
sancionadas (partilhadas por um grupo), as superstições (motivadas por fatores afetivos
como desejo, temores, etc.) e as chamadas ideias prevalentes (ideias errôneas por
superstição afetiva).
Quanto aos juízos de realidade, Estamira manifesta Delírios Persecutórios, em
que o sujeito acredita ser vítima de um complô, ou está sendo perseguido por pessoas
conhecidas ou não. No discurso de Estamira, isso aparece claramente em algumas
situações, como “fizeram macumba para mim”; “tenho a impressão que tem pessoas
do FBI atrás de mim”; “tem gente me filmando no ônibus”; ou ainda “...os astros
negativos ofensivos, eles querem ver se atinge uma coisa minha, chamada coração, ou
então a cabeça”.
Outra alteração quanto ao juízo de realidade em Estamira é o Delírio de
Grandeza, que se caracteriza por uma crença nutrida no indivíduo de que se é
extremamente especial, dotado de poderes e capacidades. Assim, o delírio é dominado
por ideias de poder e riqueza. A autoestima pode ser extremamente aumentada e o
sujeito acredita que tem conhecimentos superiores ou especiais. Nas palavras de
Estamira, encontramos aspectos que se enquadram nesse tipo de delírio: “Eu sou
perfeita, meus filhos são comum. Eu sou perfeita! Eu sou melhor de que Jesus e orgulho
disso. Se quiser fazer comigo pior do que fez com tal de Jesus pode fazer!” ; “Eu sou
Estamira, sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver
sem Estamira”; “Eu sou a beira do mundo. Eu estou aqui, eu estou lá, eu estou em tudo
quanto é lugar. Eu sou a beira”; “Eu revelei quem é Deus, sem prevaleção, sem
repugnância. Com muito orgulho com muita honra. Eu, Estamira, eu! Posso revelar,
revelei porque posso, porque sei, consciente, lúcido e ciente o que é Deus, quem é Deus,
o que significa Deus e outros mais”.
Estamira apresenta características de Delírio místico, que pode ser definido
como a sensação de estar em comunhão permanente com, receber mensagens ou ordens
de um novo messias, um deus, etc. Os delírios místicos frequentemente apresentam
aspecto grandioso, enfatizando própria importância do sujeito que delira. Estamira diz:
“A minha missão, além de ser a Estamira, é mostrar a verdade, capturar a mentira e
tacar na cara”; “Felizmente, nesses anos que eu comecei a revelar, já está quase todo
mundo alerta. Erra só quem quer!”. A palavra está situada em uma dimensão de
salvação e surge para revelar algo.
Podemos considerar também em Estamira uma Percepção delirante, que é
definida como uma significação delirante que acontece a partir de um ato perceptivo
normal. Estamira escuta o barulho de trovão e diz: “E vem relâmpago. Lá em casa ele
sai debaixo da cama”.
CONCLUSÃO
Para além do quadro psicopatológico, Estamira revela uma riqueza de
pensamentos, uma lucidez que raramente se encontra na normalidade, a que nomeamos
como saúde mental. Em sua missão de “revelar a verdade e capturar a mentira”,
denuncia o enfraquecimento da singularidade vivida nos dias atuais diante do contexto
capitalista, que se impõe e orienta a forma de ser no discurso contemporâneo. Nesse
mundo marcado pela massificação, pelo abuso, pelo excesso e pelo descuido, “todos
precisam de Estamira”. Todos precisam desta mira, desta visão que fala do homem
“como único condicional”, esta mira que aponta para o “trocadilo”, a perversidade da
ordem que se impõe, reduzindo o modo de ser do homem a simples “copiadores de
receita”.
REFERENCIAS
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais.
Porto Alegre: Artes Médicas, 2008.
JUHAS, T. R.; SANTOS, N. O. Ainda em cartaz, "Estamira": A Psicanálise nas
telas do Cinema. Estud. psicanal. no.36 Belo Horizonte dez. 2011. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0100-
34372011000300015&script=sci_arttext Acesso em 25/03/2014.
SILVA, M. S.; ZANELLO, V. M. Religiosidade e loucura: a influência da religião
na forma como o “doente mental” enfrenta a doença. PSICOLOGIA IESB, 2010,
VOL. 2, NO. 1, 37‐47. Disponível em:
http://php.iesb.br/ojs/index.php/psicologiaiesb/article/view/25/28 Acesso em
25/03/2014.
SOUSA, E. L. A. Função: Estamira. Estud. psicanal. n.30 Belo Horizonte ago. 2007.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0100-
34372007000100007&script=sci_arttext Acesso em 25/03/2014.