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stima-se em 800 milhões o número de pessoas desnutridas no mundo, o que representa 12,4% da população do pla- neta. Cerca de 11 mil crianças morrem de fome a cada dia e uma pessoa em cada sete padece de fome. No Brasil, a situação é ainda mais grave. O Mapa do Fim da Fome da Fundação Getúlio Vargas iden- tificou 50 milhões de miseráveis no Brasil. Quase um terço da população brasileira (29,3%) tem renda mensal inferior a R$ 80,00 por pessoa. Para arcar com a indigência, deveriam ser gastos R$ 1,69 milhão mensal. A amostra de domicílios de 1999, do IBGE, revela que, no país, 27,6% da população ganha até dois salários mínimos. No Norte, a média sobe para 29,2%, enquanto no Nordeste, a região mais pobre, é de 47,5%. Na região Sudeste, cai para 17,7%. Os sem-rendimento somam 3,5% no país: 5,4% no Norte, 4,2% no Nordeste e 3,1% no Sudeste. Energia solar seria saída para fome Esses números mostram que, se o Brasil fosse um estômago, ele estaria roncando alto. Mas não para um pequeno grupo de pessoas. Enquanto o panorama geral da fome no país e no mundo é aterrador, aque- les que vivem de luz afirmam que a alimentação não é necessária para a sobrevivência humana. Pelo con- trário. Segundo eles, se alimentar é altamente nocivo à saúde. Ao menos da maneira tradicional, praticada pelo homem desde o início de sua existência. Adeptos da “alimentação prânica”, que se dá através da cap- tação de energia solar, estas pessoas, cujo número ultrapassaria os cem no mundo, juram trocar os ali- mentos convencionais pela luz. No Brasil, a maior divulgadora da filosofia da “não-alimentação”, como também é conhecida e n t re os seguidores, é a escritora Evelyn Levy Torrence, de 44 anos. Ela conta que não se alimen- ta convencionalmente há anos e, mesmo assim, é muito ativa. “Nosso objetivo é o de ajudar a acabar com a fome no mundo, mostrando às pessoas que nós não comemos e não estamos mortos por causa disso”, diz a escritora. Evelyn atua junto ao marido, o norte-americano Steve Torrence, dando palestras sobre o assunto e garantindo que o corpo deve ser nutrido apenas pela luz, livrando-o de todas as to- xinas encontradas nos alimentos. Os Torrence acreditam que comer é um “vício mortal”, cuja única utilidade é proporcionar prazer às pessoas. Segundo a teoria defendida pelo casal, basta olhar para o céu e captar o Prana, energia prove- niente do sol. “O Prana é encontrado dentro de toda molécula e é pura luz divina capaz de gerar todo e qualquer tipo de vida”, garante Evelyn. Absorvida pelos canais oculares, esta energia seria transmitida para a glândula pituitária, ativando a pineal, que é a responsável pela regulação dos rit- mos biológicos no homem. “Qualquer um a qual- quer hora pode vibrar a luz do Prana e tornar-se compatível com essa energia. Absorvê-la é apenas uma questão de magnetismo pessoal e intenção mental”, simplifica. No entanto, este procedimento exige algo a mais do indivíduo que quer se alimen- tar de luz. A escritora esclarece que para absorver o Prana, a pessoa “precisa elevar sua vibração, aumentar sua freqüência energética mental e abrir completamente o coração para receber esta carga poderosa enviada por Deus”. A rotina recomendada pelo casal é mais rígida do que parece. De acordo com Evelyn, todas as ma- nhãs a pessoa deve iniciar o dia meditando em tudo de bom que pode existir no mundo. “Pensar na luz e respirar, pensar no amor e respirar, pensar ANNA LUISA S. CARVALHO, CARLA NASCIMENTO, GLÁUCIA OLIVEIRA E WALTER DHEIN Estômago iluminado Seguidores do “viver de luz” garantem que o sol é a chave para acabar com a fome no mundo Janeiro/Junho 2006 52

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stima-se em 800 milhões o número depessoas desnutridas no mundo, o querepresenta 12,4% da população do pla-neta. Cerca de 11 mil crianças morrem

de fome a cada dia e uma pessoa em cada setepadece de fome.

No Brasil, a situação é ainda mais grave. O Mapado Fim da Fome da Fundação Getúlio Vargas iden-tificou 50 milhões de miseráveis no Brasil. Quaseum terço da população brasileira (29,3%) temrenda mensal inferior a R$ 80,00 por pessoa. Paraarcar com a indigência, deveriam ser gastos R$ 1,69milhão mensal.

A amostra de domicílios de 1999, do IBGE, revelaque, no país, 27,6% da população ganha até doissalários mínimos. No Norte, a média sobe para29,2%, enquanto no Nordeste, a região mais pobre,é de 47,5%. Na região Sudeste, cai para 17,7%. Ossem-rendimento somam 3,5% no país: 5,4% noNorte, 4,2% no Nordeste e 3,1% no Sudeste.

Energia solar seria saída para fomeEsses números mostram que, se o Brasil fosse um

estômago, ele estaria roncando alto. Mas não paraum pequeno grupo de pessoas. Enquanto o panoramageral da fome no país e no mundo é aterr a d o r, aque-les que vivem de luz afirmam que a alimentação nãoé necessária para a sobrevivência humana. Pelo con-trário. Segundo eles, se alimentar é altamente nocivoà saúde. Ao menos da maneira tradicional, praticadapelo homem desde o início de sua existência. Adeptosda “alimentação prânica”, que se dá através da cap-tação de energia solar, estas pessoas, cujo númeroultrapassaria os cem no mundo, juram trocar os ali-mentos convencionais pela luz.

No Brasil, a maior divulgadora da filosofia da“não-alimentação”, como também é conhecida

e n t re os seguidores, é a escritora Evelyn LevyTorrence, de 44 anos. Ela conta que não se alimen-ta convencionalmente há anos e, mesmo assim, émuito ativa. “Nosso objetivo é o de ajudar a acabarcom a fome no mundo, mostrando às pessoas quenós não comemos e não estamos mortos por causadisso”, diz a escritora. Evelyn atua junto ao marido,o norte-americano Steve Torrence, dando palestrassobre o assunto e garantindo que o corpo deve sernutrido apenas pela luz, livrando-o de todas as to-xinas encontradas nos alimentos. Os To rre n c eacreditam que comer é um “vício mortal”, cujaúnica utilidade é proporcionar prazer às pessoas.

Segundo a teoria defendida pelo casal, bastaolhar para o céu e captar o Prana, energia prove-niente do sol. “O Prana é encontrado dentro detoda molécula e é pura luz divina capaz de gerartodo e qualquer tipo de vida”, garante Evelyn.Absorvida pelos canais oculares, esta energia seriatransmitida para a glândula pituitária, ativando apineal, que é a responsável pela regulação dos rit-mos biológicos no homem. “Qualquer um a qual-quer hora pode vibrar a luz do Prana e tornar-secompatível com essa energia. Absorvê-la é apenasuma questão de magnetismo pessoal e intençãomental”, simplifica. No entanto, este procedimentoexige algo a mais do indivíduo que quer se alimen-tar de luz. A escritora esclarece que para absorver oPrana, a pessoa “precisa elevar sua vibração,aumentar sua freqüência energética mental e abrircompletamente o coração para receber esta cargapoderosa enviada por Deus”.

A rotina recomendada pelo casal é mais rígida doque parece. De acordo com Evelyn, todas as ma-nhãs a pessoa deve iniciar o dia meditando emtudo de bom que pode existir no mundo. “Pensarna luz e respirar, pensar no amor e respirar, pensar

ANNA LUISA S. CARVALHO, CARLA NASCIMENTO, GLÁUCIA OLIVEIRA E WALTER DHEIN

Estômago iluminadoSeguidores do “viver de luz” garantem que o sol é a chave para acabar com a fome no mundo

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na alegria e respirar, pensar em Deus e respirar. Enão deixar nenhum pensamento negativo invadira mente”, ensina. Não é surpresa que a teoria da“não-alimentação” possa representar a solução dop roblema da fome no mundo para o casalTorrence. Por que as pessoas morrem de fome?Segundo Evelyn “as pessoas morrem porque nãotêm conhecimento do processo de captação da luz”.

Nem tudo são luzesMas para começar a se alimentar unicamente de

Prana é importante que o iniciante desse processoa c redite na viabilidade da “não-alimentação”,tenha total consciência de sua escolha, não tenhanenhuma recaída durante a fase inicial e siga cor-retamente as instruções da doutrina. Esses passos jásão um grande impedimento para que pessoas, eprincipalmente crianças, subnutridas e sem qual-quer orientação possam se concentrar numa medi-tação visando a absorção da energia.

O caminho necessário a ser perc o rrido para se“viver de luz” é organizar o organismo do indiví-duo através do “processo de 21 dias”. Na primeirasemana, a pessoa não pode comer nem beberabsolutamente nada, pode sentir cansaço e deveficar de repouso, meditando. A semana seguinte é

a fase de desintoxicação, na qual é permitida e atérecomendada a ingestão de líquidos (25% de qual-quer líquido natural e 75% de água) para “limpar”o organismo. Na semana final do período, já é pos-sível se alimentar de sucos naturais de frutas eágua. A partir daí, a pessoa não sentiria maisfome, pois suas glândulas pituitária e pineal játeriam sido re p rogramadas para não dependere mde alimentos e passam a nutrir o corpo com a ener-gia prânica.

Os divulgadores dessa prática afirmam ainda quedurante esse período de 21 dias, o espírito da pessoadesprende-se de seu corpo retornando ao final doprocesso. Além disso, afirmam que são guiados pormestres astrais e pregam a crença na técnica da“não-alimentação” como fundamental para seconseguir “viver de luz”. Mesmo assim, eles nãoconsideram a doutrina uma religião, o que nãoimpede grandes polêmicas no campo religioso acer-ca de certas declarações do grupo.

O pastor evangélico João Flávio Martinez contes-ta as citações bíblicas das pessoas que se alimen-tam de Prana, como a de que Jesus já pregava anão-alimentação em seus jejuns. “Eles se esquecemde que a prática do jejum é uma forma de con-sagração a Deus em momentos de crise e reflexão,

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“Nosso objetivo é o deajudar a acabar com

a fome no mundo. Nós não comemos enão estamos mortos

por causa disso”Evelyn Levy Torrence, escritora

“Nosso objetivo é o deajudar a acabar com

a fome no mundo. Nós não comemos enão estamos mortos

por causa disso”Evelyn Levy Torrence, escritora

Para vibrar a luz do Prana é preciso concentração e pensamento positivo

nunca uma iniciação para parar de comer”, expli-ca ele. Evelyn Torrence já mencionou Cristo comoum de seus instrutores nessa “nova revelação”, masMartinez desfaz seu argumento: “Não haveria me-lhor hora para Cristo ensinar o conceito de ´viver deluz` do que no dia em que a multidão que lheseguia no deserto ficou faminta. Mas Cristo nãoensinou isso, ao contrário, ele efetuou o milagre damultiplicação dos pães, relatada em Mateus capí-tulo 14, versículo16”.

Fé e vontade podem transformar a mente,não o corpo

Ótima saúde, fome no mundo eliminada e umagrande economia financeira (sim, porque ao se ali-mentar de luz não se gasta dinheiro com comida,certo?). Mas estes resultados proferidos por EvelynTorrence e seu marido são ilusórios. É o que garantea psiquiatra chefe do setor de dependentes químicosda Santa Casa, Analice Giggliotti. “Essas pessoassão mentirosas”, denuncia a médica, que afirmaser impossível alguém viver de luz. Segundo ela,estes indivíduos comem, caso contrário já estariam

mortos. E parece que a psiquiatra tem razão. Evelynchega a elogiar determinados alimentos: “frutas,nozes, frutas secas, castanhas e sucos naturais.Esses são considerados os únicos alimentos naturaisda Terra. Todos os outros foram produzidos e culti-vados pelas civilizações passadas e industrializadospor nossa civilização”.

Analice Giggliotti aprofunda ainda mais suacrítica aos adeptos da “não-alimentação”. Ela afir-ma que estas pessoas podem ser psicóticas ou deli-rantes em potencial: “Um dos fatores que podemlevar alguém a iniciar esse tipo de prática é aanorexia nervosa – distúrbio em que o indivíduoacredita estar obeso, quando, na verdade, ele nãoestá”. Em relação à “intenção mental”, capaz dereeducar o organismo a não receber alimentos,defendida por Evelyn Torrence, a médica é contun-dente: “A mente é capaz, sim, de fazer com que per-camos o apetite, mas apenas em casos det r a n s t o rnos psicológicos graves. E diminuir oapetite não significa que o corpo passou a se ali-mentar através de outra fonte nutricional, masapenas que não tem mais vontade de comer”.

De acordo com pessoas que afir-mam viver de luz, o Prana, únicafonte de energia delas, tambémpode alimentar crianças e bebês.A escritora brasileira Evelyn LevyTo rrence, que vive de luz háquase dez anos, engravidou desua primeira filha, hoje adulta,quando ainda comia norm a l-mente. Ela pretende ter outro fi-lho dentro de alguns anos e expli-ca que, como vai se alimentarapenas de Prana durante os novemeses de gestação, o bebê já vainascer sem a necessidade de sealimentar nem de tomar o leitem a t e rno, que nem será pro d u z i-do. “Sei que meu filho irá se de-senvolver sem problemas e seitambém que terei um filho dife-rente, porque não é a comida quegera vida, é a luz”, explica.

Uma re p o rtagem do jorn a lFolha de S. Paulo, publicada em2001, revelou que havia cerca decem pessoas no mundo vivendode luz – o número ainda não foiatualizado. Alguns defensores da“não-alimentação” afirmam que

d e n t re estes, existem algumas cri-anças que “apenas bebem águadesde que nasceram”. “Na horac e rta, essas crianças irão apare c e rpara o mundo”, profetizou Eve-lyn. E para o temor de médicos enutricionistas, ela ainda aconse-lha às mães que não têm coragemde não alimentar os filhos, que“ao menos parem de obrigá-los ase alimentar e lhes oferecer bio-tônicos para abrir o apetite”.

Segundo os livros da escritoraaustraliana Jusmaheen, uma dasprimeiras pessoas a viver de luz, oo rganismo de bebês cuja mãe não

se alimentou durante a gravidezjá traz as modificações neces-sárias nas glândulas pituitária epineal, que os torna indepen-dentes da comida. Outra prova deque os humanos não foram “pro-gramados” para depender dosalimentos seria o fato de “criançanão gostar de comer”.

No entanto, a pedagoga DeniseSantos explica que na infânciahá uma enorme necessidade dese contrariar regras para testaros limites. “Não são todas as cri-anças que recusam comida e asque o fazem, não têm o objetivode deixar de se alimentar, masapenas de contrariar as im-posições. Não comer o arroz comfeijão e pedir biscoitos, doces,batatas fritas”, observou ela,que não acredita na sobre v i v ê n-cia através da luz nem na infân-cia nem na idade adulta. “Achomuito difícil fazer um re c é m -nascido ou uma criança hipera-tiva se concentrar na meditaçãopara absorver o Prana”, brin-c o u .

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Sem biotônicos e com muita meditação