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Estratégias familiares e redes de sociabilidades formadas por fabricantes de cal na freguesia da Ilha do Governador (Rio de Janeiro, século XIX) JUDITE PAIVA SOUTO 1. Introdução Situada na parte ocidental da Baía de Guanabara e conhecida atualmente por abrigar o Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, a freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador, na segunda metade do século XIX, estava dividida em seis fazendas ou seções: Freguesia, Fazenda de S. Bento, Fazenda da Bica, Fazenda Amaral, Fazenda da Ribeira ou Juquiá e Fazenda da Ponta do Tiro até Cocotá. (ANEXO I) Embora esta divisão possa sugerir larga produção de gêneros agrícolas, o professor da instrução primária Antônio Estevão da Costa e Cunha, em relato manuscrito datado de 1870, ressaltou que não havia na Ilha do Governador grandes extensões de terras produtoras e que apenas uma pequena parte da população se dedicava à lavoura. Segundo ele, uma das principais atividades desenvolvidas na freguesia era a fabricação de cal, cuja produção descreve detalhadamente. Consultando o Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro periódico anual que circulou entre 1844 e 1914, com informações variadas sobre autoridades políticas e organização administrativa, jurídica, política, social, religiosa e cultural da sociedade brasileira –, percebemos que até 1883 não se recenseavam as lavouras da freguesia, possivelmente pela sua inexpressividade. Por outro lado, as referências às fábricas são frequentes. Em 1878, por exemplo, foram recenseadas quinze unidades produtoras de cal, duas de telhas e tijolos e uma de formicida. Os fabricantes de cal pareciam ter alguma projeção local. Neste mesmo ano, dos sete eleitores da Ilha, 4 eram caieiros. Destes, dois eram parentes: Francisco Antônio Bittencourt e Manoel Leite Bittencourt. Para melhor analisar os interesses e a rede de sociabilidade formada por estes proprietários, vejamos alguns dados acerca da produção de cal na província do Rio de Janeiro durante o século XIX.

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Estratégias familiares e redes de sociabilidades formadas por fabricantes de cal na

freguesia da Ilha do Governador (Rio de Janeiro, século XIX)

JUDITE PAIVA SOUTO∗

1. Introdução

Situada na parte ocidental da Baía de Guanabara e conhecida atualmente por abrigar o

Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, a freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da

Ilha do Governador, na segunda metade do século XIX, estava dividida em seis fazendas ou

seções: Freguesia, Fazenda de S. Bento, Fazenda da Bica, Fazenda Amaral, Fazenda da

Ribeira ou Juquiá e Fazenda da Ponta do Tiro até Cocotá. (ANEXO I)

Embora esta divisão possa sugerir larga produção de gêneros agrícolas, o professor da

instrução primária Antônio Estevão da Costa e Cunha, em relato manuscrito datado de 1870,

ressaltou que não havia na Ilha do Governador grandes extensões de terras produtoras e que

apenas uma pequena parte da população se dedicava à lavoura. Segundo ele, uma das

principais atividades desenvolvidas na freguesia era a fabricação de cal, cuja produção

descreve detalhadamente.

Consultando o Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro –

periódico anual que circulou entre 1844 e 1914, com informações variadas sobre autoridades

políticas e organização administrativa, jurídica, política, social, religiosa e cultural da

sociedade brasileira –, percebemos que até 1883 não se recenseavam as lavouras da freguesia,

possivelmente pela sua inexpressividade.

Por outro lado, as referências às fábricas são frequentes. Em 1878, por exemplo, foram

recenseadas quinze unidades produtoras de cal, duas de telhas e tijolos e uma de formicida. Os

fabricantes de cal pareciam ter alguma projeção local. Neste mesmo ano, dos sete eleitores da

Ilha, 4 eram caieiros. Destes, dois eram parentes: Francisco Antônio Bittencourt e Manoel

Leite Bittencourt.

Para melhor analisar os interesses e a rede de sociabilidade formada por estes

proprietários, vejamos alguns dados acerca da produção de cal na província do Rio de Janeiro

durante o século XIX.

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2. A atividade caieira no período oitocentista

Dentre as diversas referências a fortificações, igrejas e edificações oficiais em pedra e

cal, encontramos um importante registro da produção deste material de construção por Jean

Baptiste Debret. Integrante da Missão Artística Francesa de 1816, o pintor dedicou uma de

suas pranchas à representação do fabrico de cal de concha. (Anexo II)

A gravura de Debret apresenta uma edificação envolta por vegetação em praia

aparentemente pouco habitada, dois barcos de um mastro e sete trabalhadores ocupados em

diferentes afazeres. À esquerda três homens se encarregam do transporte da lenha; ao lado,

ainda à esquerda, um operário dispõe a madeira amontoada em círculo em um terreiro. No

centro, outros três homens, com água na altura da cintura, munidos de uma grande barra,

aparentando cerca de 5 metros de comprimento, raspam o fundo da baía e à direita em uma

ponta oposta da praia, em terreno ligeiramente elevado, um grande volume de vapor ocupa a

imagem.

Ao comentar a produção, Debret confirma o predomínio da cal fabricada a partir de

conchas em relação à produzida a partir de pedras e acrescenta que de longe era possível

avistar os vapores levantados por aquela produção nas ilhas da baía da Guanabara.

As fases representadas correspondem ao processo descrito tanto pelo já mencionado

professor Costa e Cunha quanto pelo engenheiro civil José Américo dos Santos. Havia

primeiramente a coleta das conchas, depois a calcinação em fornos e em seguida a mistura

com água. Sua comercialização era realizada na Corte e na capital da província, Niterói. O

pessoal necessário incluía um feitor ou administrador e 8 a 30 operários que normalmente

eram escravos do fabricante.

O número de caieiras na Ilha do Governador era bastante expressivo principalmente se

comparado ao quantitativo de outras freguesias da província. Tomando-se os dados do

Almanak para o ano de 1861, período de maior quantitativo de fábricas na Ilha, a freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação de Irajá possuía apenas 1; a de Senhor Bom Jesus do Monte

de Paquetá, 10; a freguesia de São Lourenço e a freguesia de São Gonçalo da Vila de Niterói,

3 cada uma e a freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Cabo Frio apresentava 2.

3

Desta forma, tratamos de uma indústria que foi registrada por um dos mais famosos

artistas do oitocentos e que parece ter tido um de seus polos mais importantes na freguesia da

Ilha do Governador. Os proprietários de fábricas de cal se faziam presentes em diversas

esferas da vida pública: integravam associações, irmandades religiosas, eram nomeados para

cargos públicos e disputavam eleições. Passemos às considerações acerca das relações

estabelecidas por alguns deles e de sua atuação no âmbito local.

3. Os fabricantes de cal e sua rede de sociabilidade

Nossa abordagem terá como objeto a família de Francisco Antônio Bittencourt, juiz de

paz e fabricante de cal, bem como a de Manoel Barbosa da Silva, cavaleiro da Ordem da

Rosa, juiz de paz e subdelegado. Trataremos das alianças estabelecidas por seus membros

através do casamento e das estratégias para adquirir prestígio social. Assim, analisaremos

aspectos da biografia de Francisco Antônio Bittencourt e de seus filhos, Manoel Leite

Bittencourt, fabricante de cal, fiscal municipal, inspetor de quarteirão e Francisco Pereira

Bittencourt, fabricante de cal, fiscal, intendente municipal e subdelegado; bem como Manoel

Barbosa da Silva, sogro deste último.

3.1 Francisco Antônio Bittencourt

Francisco Antônio Bittencourt foi juiz de paz (1883-1886), fiscal da municipalidade

(1861-1864), proprietário de fábrica de cal na Ribeira (1858-1887) e de uma casa de secos e

molhados na praia do Zumby. Faleceu em 24 de dezembro de 1885 com 71 anos. Seu

inventário foi aberto em 30 de dezembro de 1885, tendo tramitado na 1ª Vara de Órfãos e

Sucessões. Deixou 22:480$930 (vinte e dois contos, quatrocentos e oitenta mil, novecentos e

trinta réis), dos quais, após pagamentos de dívidas e gastos com o próprio inventário,

19:345$330 (dezenove contos, trezentos e quarenta e cinco mil trezentos e trinta réis) foram

divididos entre seus herdeiros. (TABELA 1)

4

Dentre as pessoas com quem manteve negócios, estava Bernardo José Serrão1, juiz de

paz, subdelegado, inspetor de quarteirão, fabricante de sabão, responsável por reforma na

Capela do Carmo, proprietário de um teatro no Jequiá, proprietário de terras na Ilha, incluindo

o terreno que Francisco Antonio Bittencourt havia arrendado a 300 mil réis ao ano.

TABELA 1: Composição da fortuna (em mil-réis) acumulada por Francisco Antonio Bittencourt (1885)

Ativos Avaliação

Dinheiro, moedas e letras 5:768$480 Joias 156$000

Utensílios, móveis, ferramentas, roupas 698$450 Barcos, canoas, e redes 2:528$000

Madeiras e máquina a vapor 530$000 Escravos 2:000$000 Imóveis 7:700$000

Adiantamento de herdeiras 3:100$000 Total 22:480$930

Em seu inventário foram arrolados, entre outros, 12 bens de raiz, imóveis construídos

em terreno arrendado na freguesia da Ilha. Um deles estava ocupado com caieira a qual parece

ter tido relevância nos rendimentos de Francisco Antônio Bittencourt, tendo em vista os dados

constantes em seu inventário (Tabela 2).

TABELA 2: Rendimentos (em mil-réis) de Francisco Antonio Bittencourt (1886)

Ativo Valor

Valor obtido na venda da

cal no tempo do

inventariante.

1:282$000

1 Serrão foi homenageado com o nome de uma rua que atravessa os bairros Zumbi e Ribeira, na Ilha do Governador.

5

Dinheiro recebido de uma

dívida 7$000

Cal vendida no mês de

janeiro. 470$000

Aluguel de casas até o mês

de fevereiro. 157$000

Neste inventário, percebemos que durante o primeiro ano de tramitação do inventário

houve renda de 1:282$000 (um conto, duzentos e oitenta e dois mil réis) referentes à venda de

cal, além dos 470$000 (quatrocentos e setenta mil réis) com a venda no mês de janeiro. Note-

se que o valor obtido com a venda de cal em janeiro foi maior que o dobro da renda obtida

com aluguel de casas, 157$000 (cento e cinquenta e sete mil réis).

Considerando-se a ausência de menção a instrumentos relacionados à lavoura e os

valores obtidos em suas diferentes atividades, inferimos que, Francisco Antônio Bittencourt

tinha na produção de cal sua maior fonte de lucro pelo menos em seus últimos anos.

O fabricante de cal buscou se integrar na sociedade por mecanismos diversos, a

exemplo do polêmico convênio da cal. Seus 27 associados residiam em freguesias situadas na

baía de Guanabara: 3 eram fabricantes de freguesias da cidade de Niterói, 9 na freguesia da

ilha de Paquetá e 15 na Ilha do Governador. Diversas foram as denúncias divulgadas na

imprensa acerca desta associação. Criada para assegurar a venda do produto, seus dirigentes

foram acusados de beneficiar apenas alguns membros e de cobrar preços exorbitantes.

Além disso, participou de subscrição popular, aberta em 1854 na Ilha, para a

confecção da estátua equestre de D. Pedro I. Cabe dizer que dos 15 signatários 13 eram

fabricantes de cal, numa demonstração da atuação deste grupo no local. Também integrou

comissão nomeada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro para arrecadar donativos para a

festa da independência ao lado do filho Francisco e do sogro deste, Manoel Barbosa da Silva.

Como não deixou testamento, a herança foi partilhada entre seus seis herdeiros, dentre

eles Manoel Leite Bittencourt e Francisco Pereira Bittencourt. Atentemos para o destino de

alguns dos bens: Manoel Leite Bittencourt recebeu o estabelecimento de cal, a máquina a

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vapor e os prédios da praia do Zumbi. Francisco Pereira Bittencourt ficou com imóvel na

praia do Cabaceiro o valor referente ao serviço dos escravos e um barco.

Francisco Antônio Bittencourt deixou bens que foram aproveitados por seus filhos.

Pereira Bittencourt, à época do falecimento de seu pai, já era fabricante de cal, de modo que a

caieira ficou para seu irmão, Manoel, tendo este levado à frente a atividade da fábrica. A

partir desta herança e dos vínculos sociais que estabeleceram puderam se projetar na

sociedade local. Passemos aos herdeiros de Antônio Bittencourt.

3.2 Manoel Leite Bittencourt

Filho de Francisco Antônio Bittencourt, Manoel Leite Bittencourt residiu na Ribeira.

Foi fiscal municipal (1879-1883 e 1888), fabricante de cal (a partir de 1883) e inspetor de

quarteirão (1875-1878 e 1881).

Ocupar o cargo de inspetor de quarteirão significava ter autoridade sobre pelo menos 25

“fogos” e estar sob a direção de um subdelegado. Dentre suas atribuições estava a expedição

de passes para aqueles que quisessem ir a outro distrito, a declaração de boa conduta, o relato

de casos de varíola, a fiscalização de policiais e principalmente a manutenção da ordem. Para

tal deveria evitar motins, vozerios, reunião de escravos, a presença de bêbados, a

mendicância, a chamada vadiagem e a prostituição, no intuito de assegurar os “bons

costumes” (GRAHAM, 1997).

No Diário Oficial da União de 23/03/1890 consta o expediente da Intendência

Municipal referente ao requerimento de “Manoel Leite Bittencourt, para fábrica de cal na Ilha

do Governador. – Junte o conhecimento do haver pago a licença do anno passado”.

Interessante notar que Manoel dá continuidade à produção de cal após a morte de seu pai,

fazendo uso da herança recebida.

Em 1912 consta que “O general Souza Aguiar, Inspector da 9ª região, autorizou Sr.

Manoel Leite Bittencourt, presidente da sociedade de tiro n. 105, com séde na ilha do

Governador, a fazer funccionar a linha de tiro construida por conta da mesma sociedade”. 2

2 DOU, 29/12/1912, Seção 1, p. 14. A Linha de Tiro estava situada nas proximidades do Rio Jequiá, a leste do Morro do Matoso.

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Além dos cargos públicos ocupados e da presidência da Sociedade de Tiro, Manoel

Bittencourt também foi vice-presidente do bloco carnavalesco desta ilha, denominado

Amantes da União, tendo sido mencionado no jornal O Suburbano por ocasião do aniversário

de sua filha, o que demonstra uma inserção na chamada “boa sociedade”.

3.3 Francisco Pereira Bittencourt

Francisco Pereira Bittencourt, irmão de Manoel Leite Bittencourt, casou-se com

Antônia Barbosa da Silva, filha de Manoel Barbosa da Silva. Após o matrimônio, Antônia

assumiu o nome de seu esposo e passou a se chamar Antônia Barbosa Bittencourt. Desta

união tiveram dois filhos naturais da Ilha e batizados na mesma localidade.

Pereira Bittencourt residiu no Jequiá, praia do Cabaceiro, onde manteve um engenho de

cal. Foi substituto (1882-1885) e subdelegado de polícia (1886), secretário da municipalidade

(1874-1878) e secretário da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa

Senhora da Ajuda da Ilha do Governador, da qual seu sogro era provedor.

A nomeação de membros da família Bittencourt para determinados cargos públicos

parecia estar estreitamente relacionada com o vínculo de parentesco. Francisco, o pai, foi

fiscal da municipalidade; dez anos depois seus filhos também o foram. Se o período entre o

exercício daquele e destes parece longo, observemos a proximidade dos irmãos: Francisco

esteve ligado ao cargo de 1874 a 1886, tendo sido suplente do irmão Manoel por quatro anos

(1879 a 1883).

Os irmãos também ocuparam cargos da polícia, disputaram eleições e foram membros

de associações. Manoel foi inspetor de quarteirão de 1875 a 1881. No ano seguinte, seu irmão

assumiu como substituto do subdelegado (1882 a 1885), e como titular do cargo (1886).

Ademais, ambos foram escolhidos eleitores em 1878, nomeados para a comissão de

alistamento e revisão eleitoral em 1895 e foram sócios em fábrica de formicida na freguesia,

numa demonstração da solidariedade entre os dois.

Em trinta de outubro de 1892, Pereira Bittencourt elegeu-se membro do Conselho

Municipal, tornando-se o primeiro intendente da Ilha. O Conselho começou a legislar a partir

de dezembro de 1892, data de sua criação (Lei nº 85, de 20/09/1892) e a ele cabia, juntamente

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com a Prefeitura, a administração da municipalidade. Dentre suas atribuições estava a

organização anual do orçamento da cidade, o estabelecimento e a regulamentação da instrução

pública, mercados, vias urbanas, fábricas, impostos, obras, compra de imóveis, entre outras

(TORRES, 2012). Antes de chegar ao cargo, este fabricante de cal aliou-se a um personagem

de prestígio da Ilha do Governador: Manoel Barbosa da Silva, cavaleiro da Ordem da Rosa.

3.4 Manoel Barbosa da Silva

Manoel Barbosa da Silva residiu no Morro da Tapera, foi eleitor (1867-1875), exerceu

os cargos de juiz de paz (1862-1864 e 1873-1884), suplente de subdelegado (1861-1883) e foi

agraciado com o título de cavaleiro da Ordem da Rosa. Considerando que eleitores e juízes de

paz eram escolhidos através do voto, vemos que o sogro de Pereira Bittencourt possuía uma

nada desprezível rede de apoio político na freguesia.

A indicação de Pereira Bittencourt para o cargo de subdelegado da polícia pode ter sido

resultado de seu vínculo com Manoel Barbosa, uma vez que o cavaleiro da Ordem da Rosa

esteve ligado a ela por mais de dez anos. Chefes de polícia, delegados e subdelegados eram os

principais agentes dos presidentes provinciais para o fornecimento de informações políticas.

Não raro buscaram esses cargos públicos “para exercer autoridade extra e estender favores,

isenções e proteção aos apadrinhados”. (GRAHAM, 1997, p. 87)

A boa relação entre Manoel Barbosa e seu genro se expressou em diversas

circunstâncias. Além de terem participado, em 1885, da já mencionada comissão de

arrecadação de donativos para a festa da independência; em 1878, Manoel foi presidente e o

genro mesário da junta de qualificação dos votantes da paróquia. Do mesmo modo, enquanto

Barbosa era provedor da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja matriz da freguesia,

Pereira Bittencourt era seu secretário.

Segundo o Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de

Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador, registrado em 1898, o provedor era o que

possuía maior destaque, pois era ele “o primeiro representante da Irmandade e nessa

9

qualidade preside a todos os atos públicos e particulares da mesma”.3 Entre suas atribuições

estava “regular todos os despachos da Irmandade”, “propor negócios à discussão” e “manter a

ordem”. Além disso, em caso de empate nas votações era seu o “voto de qualidade”.

Ademais, como afirma Mariza de Carvalho Soares, as irmandades no Brasil

apresentaram um perfil específico. Segundo a autora “em cada paróquia é instituída uma

Irmandade do Santíssimo Sacramento, que, incentivada pelas autoridades eclesiásticas, é a

preferida das elites da cidade”. (SOARES, 2000, p. 136-137). As irmandades se

responsabilizavam por boa parte dos principais eventos públicos da cidade como cortejos

festivos e fúnebres.

Manoel Barbosa da Silva, ocupante dos mais importantes cargos na Freguesia de Nossa

Senhora da Ajuda e detentor de honrarias, faleceu em sua casa naquela localidade, em onze de

agosto 1884. Seu inventário foi aberto em vinte e oito de junho de 1886 e tramitou perante a

4.ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, tendo como inventariante Margarida

Barbosa da Silva, sua esposa. Seus herdeiros foram Pedro Barbosa da Silva; Antonia Barbosa

Bittencourt, casada com Francisco Pereira Bittencourt; Maria Isabel Pinheiro; Mercedes

Barbosa da Rocha, casada com o professor Antônio Hilarião da Rocha e Manoel Barbosa da

Silva Júnior. 4

Dentre os bens inventariados de Manoel Barbosa da Silva estavam uma casa construída

em terreno de foreiro na praia da Tapera, pertencente ao fabricante de cal Manoel Rodrigues

Pereira Alves, e 5 escravos domésticos. 5

Seu genro, Francisco Pereira Bittencourt, parece não ter sido o único a escolher esta

família para estabelecer aliança através do matrimônio. O professor Antônio Hilarião da

Rocha também se casou com uma filha daquele subdelegado. Apesar de não ter deixado

grande fortuna, parecia deter um status privilegiado na localidade.

Isso pode ser compreendido através da visão de João Fragoso e Manolo Florentino os

quais demonstraram que a organização social possuía uma lógica que não se limitava à

riqueza e tampouco se explicava exclusivamente por fatores econômicos (FLORENTINO & 3 A mesa da irmandade era composta por dezessete irmãos, que poderiam ocupar um cargo de Provedor, 1 de Vice-Provedor, 1 de Secretário, 1 de Tesoureiro, 1 de Procurador, 5 cargos de Sub-Procurador e 7 de Mesário. 4 Maria Isabel Pinheiro era casada com Antônio José de Souza Pinheiro e Manoel Barbosa da Silva Júnior com Arminda Monteiro Barbosa da Silva. 5 Durante o inventário a escravidão foi abolida pela Lei Áurea (1888), acarretando a redução do montante a ser partilhado que já não poderia incluir o valor de cinco escravos.

10

FRAGOSO, 2001). Manoel Barbosa da Silva não foi senhor de terras ou de grande número de

escravos, mas ocupou cargos significativos como juiz de paz, provedor da Irmandade do

Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador e

além disso, detinha o título honorífico de cavaleiro da Ordem da Rosa.

Seu filho, Pedro Barbosa da Silva, era conhecido como capitão Barbosa6 e tinha suas

atividades como delegado amplamente divulgadas e apoiadas pelo jornal O Suburbano, cuja

direção era de seu cunhado, o professor Antônio Hilarião da Rocha.

4. Considerações finais

A relação entre a família de Francisco Antônio Bittencourt e Manoel Barbosa da Silva

pode ser compreendida a partir da tese de que poder econômico não significava

necessariamente possuir prestígio social. Manoel Barbosa da Silva não figurava entre os

proprietários da freguesia da Ilha do Governador, mas apresentava bom desempenho em

eleições, ocupava importantes cargos públicos e recebera título honorífico.

Conforme sustentou Sheila de Castro Faria, a família influenciava no status e na

classificação social, por isso a cuidadosa escolha do cônjuge fazia parte das estratégias

familiares (FARIA, 1995). Francisco Pereira Bittencourt ao casar-se com a filha de Manoel

Barbosa da Silva observou esse mecanismo. Procurou manter-se próximo ao sogro, atuando

na mesma irmandade religiosa e em comissões locais, tendo sido bem sucedido em sua

carreira política, uma vez que alcançou o Conselho Municipal em 1892.

Os vínculos entre a parentela também foram uma importante estratégia social. Os

irmãos Francisco Pereira Bittencourt e Manoel Leite Bittencourt atuaram de maneira solidária

na freguesia, como fabricantes de cal, sócios em produção de formicida, eleitores, integrantes

da polícia local, havendo ocasião em que o primeiro foi suplente do segundo no cargo de

fiscal da municipalidade.

Em suma, verificamos que houve uma busca dos integrantes da família Bittencourt por

fortalecer vínculos entre si e com figuras detentoras de prestígio social, formando uma

6 Em sua homenagem, foi este o nome que recebeu uma das ruas do bairro do Cocotá, na Ilha do Governador.

11

verdadeira rede de sociabilidade e solidariedade em que todos os membros tinham vantagens

a computar.

5. Referências

5.1 Fontes

Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro. 1844-1889. Disponível em:

http://www.crl.edu/brazil/almanak. Acesso em: 12 de outubro de 2011.

Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da

Ajuda da Ilha do Governador da Freguezia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador

(1897-1898). Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – AR 364.

O Cruzeiro, 19/01/1878.

CUNHA, Antônio Estevão da Costa e. Notícia descritiva da Ilha do Governador. 1870.

Arquivo Nacional. NP – Diversos Códices da Antiga SDH, Cód. 807, vol. 3.

Diário Oficial da União, 29/12/1912, Seção 1, p. 14.

Diario de Notícias, 10/07/1885. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.

Debret, Jean Baptiste, 1768-1848. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome II.

Paris: Firmin Didot Fréres, Imprimers de L’Institut de France, 1835. Diponível em:

http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00624520#page/1/mode/1up. Acesso em: 12 de

maio de 2013.

Gazeta da Tarde, 17 de abril de 1895.

12

Inventário de 1886: Manoel Barbosa da Silva (falecido) e Margarida Barbosa da Silva

(inventariante). Acervo Museu da Justiça Estadual do Rio de Janeiro.

Inventário de 1885: Francisco Antonio Bittencourt (falecido) e Manoel Leite Bittencourt

(inventariante). Acervo Museu da Justiça Estadual do Rio de Janeiro.

O Suburbano: órgão dos interesses locaes. Ilha do Governador, 1900. (nºs 1 a 14 e 16 a 19).

Acervo Fundação Biblioteca Nacional.

Correio Mercantil, 24 de julho de 1872. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.

SANTOS, José Americo dos. Revista de Engenharia. Ano II, nº 1. 15 de janeiro de 1880. p. 4-

7. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=709743&pasta=ano

187&pesq=jose americo dos santos +cal. Acesso em: 12 de maio de 2013.

SANTOS, Noronha. Corographia do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Benjamin de Aguila

Edictor, 1907.

5.2 Referências bibliográficas

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UFRJ, 1997.

FARIA, Sheila Castro. Fortuna e Família em Bananal no século XIX. IN: CASTRO, Hebe

Maria de Mattos & SCHNOOR, Eduardo (Orgs.). Resgate: uma janela para o oitocentos.

Rio de Janeiro, Topbooks, 1995.

FLORENTINO, Manolo & FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto: mercado

atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

13

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de

Janeiro: Acces, 1994.

SCHUELER, Alessandra. Professores primários como intelectuais da cidade: um estudo

sobre produção escrita e sociabilidade intelectual (Corte imperial, 1860-1889). Revista

de Educação Pública. Universidade Federal do Mato Grosso, n. 17, 2008.

SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e

escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

TORRES, Rosane dos Santos. Filhos da pátria, homes do progresso: o Conselho

Municipal e a instrução pública na capital federal (1892-1902). Rio de Janeiro: Arquivo

Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2012.

ANEXO I

14

A freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador (RJ) em 1870, segundo o professor Antônio Estevão da Costa e Cunha.

15

ANEXO II

Representação de uma caieira por Jean Baptiste Debret.