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Aconteceu-me ontem uma coisa realmente ex-traordinária. (Hoje nesta ilha aconteceu um milagre.) Não tendo conseguido conter-me em casa, desci para Avenida, segun-do hábito antigo. Já ela estava repleta de carnavalescos, que aproveitavam, como podiam, sua terceira noite em Belo Hori-zonte. (Representei bem: um espectador desprevenido pode imaginar que não sou um intruso. É o resultado natural de uma trabalhosa preparação: quinze dias de contínuos ensaios e estudos. Incansavelmente, repeti cada um dos meus atos.) (Era impossível dormir.) Lembro-me que li num livro qualquer, que nem faço idéia de como me chegara às mãos, uma bela passagem d’ “O Amanuense Belmiro”:

“ - Cidade besta, Belo Horizonte! exclamou Redelvim, consultando o relógio. A gente não tem para onde ir . . .

- Não acho! retrucou Silviano. Em Paris é a mesma coisa. - Em Paris? perguntou Florêncio. Não sabia que você andou por Paris . . . É boa! - Ó parvo, quero dizer que o problema é puramente interior, entende? Não está fora de nós, no espaço! Florêncio, já meio alegre, levou as mãos ao ventre, num riso convulsivo. Redelvin e Glicério também desatinaram a rir. Silviano, indignado, quis retirar-se. Disfarçando o mau epílogo da festa, alvitrei uma retirada em conjunto”.

(Adormeci tarde e a música e os gritos acordaram-me de madrugada. A vida de fugitivo tornou-me o sono leve). Na manhã seguinte, acomodei-me junto ao balcão de informações

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da rodoviária e pude ouvir um jovem casal se achegar à aten-dente, que lhe ofereceu sua atenção, - “Pois não?”

– Bom dia, não somos daqui, na verdade chegamos em Belo Horizonte há alguns dias. Queremos uma informação sobre onde é a Praia da Estação.

– Praça da Estação? - retrucou. – Na verdade eu li na internet que os belorizontinos cri-aram a sua própria praia nessa Praça, parece que fica em frente a um museu, não é?

– Nó, é mesmo. Olha, essa praia acontece aos sábados, a meninada contrata uns caminhão pipa e fica lá, de biquini, fazendo bagunça. A polícia já foi lá tirar mas eles continuam.

– Mas por quê?

– Desrespeito uai, com o museu, o povo fica pelado, atrapalhando a praça, que é muito bonita, tem até estátua . . . E vocês estão se divertindo aqui em Belo Horizonte?

– Muito! Ontem fomos a Ouro Preto e hoje descansa-mos na cidade. Amanhã vamos pra Inhotim. A gente tá gostan-do demais de Belo Horizonte!

Eles sorriram mais uma vez entre si e foram embora de mãos dadas, olhando atentamente o mapa aberto. Também me retirei dali em seguida, acompanhando-os com meu olhar se distanciando. Há muito que ando em estado de entrega. En-tregar-se a gente às puras e melhores emoções, renunciar aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade – descendo de novo, cautelosamente, à margem do caminho, o véu que cobre a face real das coisas e que foi, aqui e ali, descer-

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meu caro júlio,

como pode ver, atravessamos um dia fresco e um sol que se usa das nuvens. como se fossem folhas de árvore, atravessa-as quando lhe convém. ou se esconde. fui acordado pelo barulho de uma máquina abrindo um buraco do tamanho da cozinha bem à frente do portão. gostoso acordar cedo sábado.

veja você que encontrei esse endereço em todos os fogos o fogo,uma pequena surpresa que encontrei num sebo enquanto buscavaoutra coisa. o livro do cortázar veio com esse cartão, evidênciamaterial que confirma a surpresa. de repente percebi que esteendereço me alcançou enquanto você está no espírito santo.

apesar desse nome pouco elegante, o comicarne fica no bairro que possui uma rua belo horizonte, que está rodeada do nome de ilustres figuras. há outra coincidência, ibes significa “instituto do bem estar social”, é um bairro planejado e construído através de uma parceria entre órgãos do governo e a fundação da casa popular do general dutra. confira o anexo.

em breve mais notícias do clima. bj

marco

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oi marco, por aqui sol e poucas nuvens. a luz se oferece intensa, cega. a minha fotofobia exige que toda experiência lá fora se passe sempre com os olhos semicerrados. por vezes o ar das montanhas baixas me é familiar, por outras o mar me inunda. ainda enxergo a cidade à distância, alcanço só sua paisagem. mas apesar dos últimos dias não terem passado sob nenhuma espacialidade específica além do meu restrito teatro de câmaras interno (quantas vozes ecoando em mim!), o seu email me encontrou justamente investigando o que fazer em Vila Velha. procurar por Belo Horizonte, motivado pelo acaso, é uma proposta que me interessa porque parece um caminho devolta pra casa, o desejo resignado e sem escolha de achar a casa ... às vezes tenho a sensação de me aproximar de certos lugares porque projeta-se ali algo que reconheço instintivamente, que ignoro por que razão pertence a mim e me recebe. fico pensando se a gente não fica o tempo todo buscando um lar, mas desisti desse lirismo existencial pois nos últimos dias só encontro um abrigo no meu próprio corpo, exilado nele. 32 graus me deixam um tanto tonto, marco.

tendo todas as múltiplas possibilidades que se acercam do infinito, a que insiste é a de voltar-se pra casa. estou viajando? não há como localizar o comicarne sem o número, o comércio da região foi constantemente incrementado (lan houses, lojas de acessórios de carro, salões de beleza novos) e não há lembrança nenhuma. o tempo aqui parece ser ainda mais acelerado e vago. fui à rua Belo Horizonte com o Vinícius Guimarães, aquele parecia um lugar ao mesmo tempo inédito e familiar pra nós dois. fiquei muito interessado no paralelo possível entre a nossa cidade (que rapidamente cresceu para além de seus contornos planejados) e os diversos arranjos, desvios, adaptações e “puxadinhos” que são notáveis ali na rua, que certamente não foram previstos dentro da compreensão social que organizou a construção do bairro Ibes durante a ditadura militar, nem ainda segundo o modelo de “arquitetura popular modernitária”. são sintomas da vida se apropriando do lugar e de sua história, a vida prevalecendo. veja as fotos. um bjo, J

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Marco Antoniotinha uma senhora hipnoticamente tricotando no ônibus. mas consegui che-gar na humberto de campos. apesar de aqui estar um pouco árido nesse sol a pino, a primeira coisa que vi mesmo foi uma castanheira. e por aí?

Luisa Macedotalvez a sombra dessa castanheira tenha se alastrado até aqui, a rua

humberto de campos está inteiramente coberta por pequenas frestas de luz em que piso com delicadeza. um caminhão de mudança atravessa a rua e

minha visão.

Marco Antonionunca li humberto de campos. você já? pensei em gravar uns áudios, mas esqueci de recarregar a bateria do gravador.

Luisa Macedonunca li humberto de campos. essa caminhada só me faz pensar em joão do rio

e suas narrativas apaixonadas das ruas. acho que ele faria belos áudios com um gravador, talvez eu também... continuo pensando em sobrepor imagens.

Marco Antonioserá que o humberto conheceu o joão?

Luisa Macedohumberto e joão circulavam pelas ruas do rio mas por caminhos distin-

tos. eram rivais e em comum talvez tenham tido mesmo só a localização geográfica.

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Marco Antonioe nós dois, tão distantes, buscando uma geografia em comum…

Luisa Macedotalvez seja a distância o que nos une, na impossibilidade de uma geografia que não habitaremos. restam as tenta-

tivas de construirmos um lugar comum.

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Belo Horizonte, 06 de maio de 2013Caríssimo Breno, 

foi uma coincidência feliz que meu convite para que você participasse do iluminuras 3 te encontrasse em pleno trânsito, no meio de suas viagens.  Antes que eu te dissesse que meu argumento para reunir obras e artistas em torno do tema de Belo Horizonte fosse ligado às ideias de margem, fronteira, linhas de fuga, passeios, alteridade etc, você me contou que havia deixado BH, depois de não sei quantos anos vivendo aqui, e sem projeto de voltar. Essa sua nova situação, de imediato, me interessou muito, já que em grande parte de minha abordagem e das relações que estabeleço com a cidade no livro se delineia uma condição de ‘estrangeiro’. Assumindo esse sentimento que mantenho por BH, eu quis me aproximar e me afeiçoar da cidade a partir de um conjunto de artistas e obras. A princípio, eu pensei em ocupar a trama ordenada do traçado urbano do mapa de BH como uma planta baixa e assim construir uma exposição que aconteceria somente em seu projeto expográfico. Eu queria organizar uma espécie de história da arte e das imagens em torno da cidade e espacializar esses trabalhos no mapa, criando relações entre as obras e lugares. Eu ando interessado em exercícios curatoriais ficcionais, como publicar catálogos de exposições que jamais aconteceram, senão nas páginas de um livro ou organizar curadorias que têm por espaço expositivo uma publicação. Durante a pesquisa elegi o cachorrinho que Portinari pintou no painel do altar da igrejinha da Pampulha como meu herói belorizontino. Fiquei a fim de catalogar as obras de arte instaladas no espaço urbano, fotografá-las em seu entorno cotidiano; quis também localizar algumas performances e ações realizadas no espaço urbano, revisitar “Do Corpo à Terra”, de Frederico Morais, e depois de muito passear pela cidade, por sua cultura visual e pelo seu meio artístico, e também consultando as minhas impressões mais íntimas, de quem vive por aqui por muito anos, decidi que a melhor maneira de me relacionar com a cidade seria através de obras e artistas que tangenciam, comentam ou indicam certas características culturais que reconheço por aqui.

Alguns trabalhos traçam espécies de cartografias na cidade: nos percursos de Mariana Rocha até a casa de recém-falecidos que ela encontra nos obituários dos jornais, nos passeios ao acaso de Clarissa Campolina que investigam o cotidiano mais insuspeito,

nos trajetos de Isabela Prado aprendendo a tocar violino ao longo de um rio canalizado, nas intervenções de Ines Linke e Louise Ganz numa das fronteiras da cidade. Em outros, já se impõem marcas na trama urbana: Daniel Herthel ocupou e fechou a rua em frente à sua casa com o mobiliário do seu quarto e da sua oficina, Pablo Lobato instalou abacaxis na arquitetura da rodoviária de Belo Horizonte, Shima, Cleverson Salvaro e Rafael Perpétuo abrem sua casa para experimentos em residência artística e exposições, Paulo Nazareth enuncia e localiza na cidade possibilidades poéticas para o olhar. Marta Neves reconhece referências estrangeiras em nomes que batizam butecos, edifícios e instituições por Belo Horizonte. Pensando ainda nos intercâmbios viabilizados pela cidade, artistas “estrangeiros” colaboram com sua perspectiva: Stéphane Vigny, quando residente na cidade, quebrou um prato de cerâmica, desses que comumente adornam os lares belorizontinos, para o juntar com chicletes; o paulistano Roberto Winter produziu em seu vídeo uma análise do conjunto arquitetônico da Cidade Administrativa, no caminho ao aerorporto, atravessando as margens de Belo Horizonte; Simone Cortezão, vinda de andanças pelo Vale do Aço mineiro, ouve o ressoar de suas memórias pelo silêncio da noite belorizontina. Mas quando pensei em você, não me veio nenhum trabalho específico à cabeça, mas sim um desejo de ser guiado por um passeio pela cidade, eu queria que você me mostrasse a sua Belo Horizonte, que certamente seria uma grande descoberta pra mim. A propósito, nesse caso, qual seria o itinerário que você escolheria pra gente?

Pensando na proposição dos passeios por BH eu me lembrei da excursão que os surrealistas planejaram à Romorantin, uma cidade francesa absolutamente desinteressante e insípida, que oferecia resistência e desafio a um olhar criativo... Iniciei esta carta falando de uma coincidência e a concluo com uma outra: faltou te contar, Breno, que assim que me decidi por propor passeios por Belo Horizonte com os artistas, tive um acidente e rompi o ligamento do tornozelo, o que me forçou ao repouso por semanas em casa, numa cidadezinha próxima (onde eu moro atualmente), e me obrigou a assumir por inteiro um certo distanciamento em relação à cidade. Diante da impossibilidade completa de explorarmos juntos Belo Horizonte, sintomáticas ou simbólicas (ou indiferentes, não se sabe), essas coincidências, no entanto, nos oferecem a possibilidade de compartilharmos a Belo Horizonte que habita nossa “nostalgia”, assumindo que você e eu estamos muito distantes dela. Me fala um pouco da Belo Horizonte que você levou consigo?uma braço , J

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Pirangi, 7 de maio de 2013Caro Júlio,

Escrever sobre Belo Horizonte, depois de alguns meses fora dessa cidade e sem qualquer perspectiva de retorno, atualmente só pode acontecer em desvios e me remete a circunstâncias de apagamento em percursos onde o que se repete é o imediato em novidades. Nos últimos meses tenho viajado com freqüência e me deparado cotidianamente, se é que essas circunstâncias de deslocamentos em seu conjunto podem ser consideradas como um cotidiano, com algum sentimento de várias temporalidades sobrepostas. Quando se está um dia em Palmas, outro em Florianópolis e no outro em Belém a saída mais fácil é se apegar ao imediato como forma acumulativa de tempo para se situar. E tal situação é instigante, se pensarmos que no excesso da mudança dos espaços é o tempo que ganha importância por que é o que me exige mais presença. Talvez os espaços que tenho experimentados sejam retrospectos numa memória evocativa que demanda algum pouso. Daí, penso que essa nossa interlocução, apesar de escrita, se desvia das memórias. Inclusive, de certo modo, essa resposta que ainda está em trânsito, acessa alguma velocidade imemorial que inclui a sua carta, o seu pedido de ontem pra hoje.

Acho precisa e instigante a sua abordagem que desvia de algum trabalho que eu já tenha realizado em Belo Horizonte e que se orienta para um percurso pela cidade comigo, situação que aponta para uma necessidade de experiência atualizada como propulsora de nossa interlocução. Que, talvez, aponta para aquilo que faz a obra não como processo da obra, mas entendendo sua constituição processual como a própria obra. E, pensando aqui, talvez seja um modo mais objetivo para pensarmos os trabalhos que realizo. Posso assumir a situação de um artista des-obrado, sem trabalho a priori ou a posteriori de sua duração. Em que os trabalhos se efetivam em situações de temporalidades especificas, em espaços bem concretos e em condições de alterações. A essas condições de aparição e de configuração dos trabalhos tenho chamado de “espacialidades da experiência”. Nas minhas viagens recentes tenho promovido algumas ocupações urbanas experimentais Brasil afora. Nessas ocupações colaboram pessoas que emprestam espaços privados para outras que propõe alguma ativação para esses espaços. O que acontece é uma subversão generalizada das propriedades que pode ser entendida, por exemplo, nos espaços

privados emprestados que são tornados temporariamente espaços públicos; nos processos de realização das ativações que demanda co-responsabilidades entre pessoas que emprestam, realizam e colaboram, o que num sentido imediato amplifica e desautoriza alguma autoria desses trabalhos; ou mesmo numa tentativa de situar qual o meu trabalho nisso. Sobre a condição do trabalho, penso num sentido aberto abrangendo seus modos de realização não necessariamente comuns e replicáveis, onde seu bloco de consistência não cristaliza sua duração. Mais do que uma dificuldade de registro penso nas formas de comunicação da experiência. Na profusão das colaborações, sobre a indução de que todos são artistas, diria que artistas são os outros, isto é, quando exercemos alguma atividade criativa estamos indo de encontro a modos de alteridade, seja na diferença expressa na obra, seja na abertura para um outro qualquer sem a necessidade de cooptação e mesmo no reconhecimento de outros em si mesmo. Gostaria de continuar essa conversa contigo com mais tempo e sobre narrativas expandidas.

Faz alguns dias que me encontro em Pirangi, nas proximidades de Natal e logo sigo para Salvador na expectativa de um pouso um pouco mais permanente, apesar de sabermos que se viaja muito num mesmo lugar, ainda mais quando os lugares te chamam ao encontro. Nostalgia, como dor do exílio da pátria, por enquanto, só no filme do Tarkovsky.

Se eu estivesse em Belo Horizonte, cidade em esquecimento, caminharíamos sem precisar encontrar o que quer que seja, mas na despretensão dessa aposta vaga talvez alguma tangência com uma imaterialidade aparente que se desfaz em coincidências temporais. Num sentido incerto te convidaria para uma caminhada noturna. Passaríamos por alguns bares sob o pretexto de descanso mas que ajustaria o campo perceptivo da caminhada. Experimentaríamos fragmentos de dimensões humanas em espacialidades concretas. Talvez não desse tempo para falarmos de arte. E se a deriva chegasse? Acho difícil derivar com o imperativo prévio. E, sem garantias, traçaríamos alguns pensamentos de percursos, pois dizem que os melhores pensamentos nos assaltam nas caminhadas. Quem sabe, faríamos alguma fumaça para queimar pensamentos.

Abraço camarada, Breno

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Daniel, o vídeo “Genoveva de Souza, 1687” foi sua resposta à demanda de se realizar uma ação no espaço urbano de Belo Horizonte durante sua residência no programa Bolsa Pampulha. Nesse sentido, o trabalho expressa sua relação com a cidade, e por isso te pergunto o que te motivou a demolir as paredes da sua casa para ocupar a rua em frente com o seu mobiliário? Esta sobreposição entre os espaços público e privado potencializa-se ainda mais quando você dispõe os objetos de maneira a inviabilizar o acesso à rua.

Daniel Herthel: A provocação de pensar uma proposta que dialogasse com Belo Horizonte foi para mim um desafio grande pois tive de sair de uma temática de trabalho reservada e desprovida de um contexto social ou geográfico. Uma vez fora das paredes do Museu da Pampulha todas as propostas expositivas ganharam não apenas as ruas de Belo Horizonte, mas a cidade como um todo. Assim, se eu pensasse em um lugar para meu trabalho estar este seria minha oficina.

Inicialmente seria apenas um convite a visitar a casa do artista, mas o que aconteceu foi uma visita da casa às ruas de Belo Horizonte. Expor um espaço particular é difícil, mas este movimento não-natural que eu poderia expressar com a frase “ei, não precisa vir aqui, eu vou até você”, apesar de ser gentil e bem intencionado, se tornou conturbador e agressivo não só wpara mim, mas também para quem foi até o local ou quem tentou passar por ele. Assim, acredito que este choque entre público e privado aconteceu de forma mais igualitária nas suas consequências.

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Marta, em sua série de postais “Leves Defeitos” você posa pra foto vestida de noiva - com a convicção e o mal jeito de uma noiva - em frente a lugares e letreiros que trazem nomes estrangeiros. Há, no entanto, um descompasso entre os espaços e suas caracte-rísticas frente ao que representam os nomes de que se apropriam. Eu queria te ouvir sobre como esta ironia do trabalho comenta alguns aspectos da cultura belorizontina.    

Marta Neves: Parece que há na própria história de Belo Horizonte a ideia de certa cópia de modelos europeus (principalmente franceses) na arquitetura, dando à cidade seu arzinho de “Belle Époque”. Mais recentemente, o próprio crescimento da cidade é marcado por esses estrangeirismos. Aliás, parece até que é nos bairros mais carentes que isso acontece mais frequentemente: a riqueza de Nova Iorque, a classe de Veneza, a fama da Califórnia denominam  bairros distantes do centro e mais: distantes da riqueza, da “classe” e da boa fama que suas designações fazem lembrar.

Para além disso, penso ainda na frase de Nelson Rodrigues, que dizia que “o brasileiro é o narciso que cospe na própria imagem”, ou seja, parece que, dentro de um certo espírito tupiniquim, só valorizamos o que é de fora. Não só em Belo Horizonte, mas também em outras tantas cidades brasileiras, sempre nos deparamos com nomes de monumentos, ruas, lugares estrangeiros. (Aliás, isso me lembra o trabalho daquele artista dos EUA, Jimmie Durham, que esteve na 29ª Bienal de São Paulo, fazendo um curioso apanhado antropológico de como nós, brasileiros, gostamos de coisas “chiques” de fora, nomeadas com palavras e nomes alienígenas).

Aliás, apesar de termos uma das mais importantes mostras de arte do planeta, continuamos, como artistas, a manter um verdadeiro frisson com o que vem de fora: o Soho, em Nova Iorque, a Documenta, em Kassel, as cidades como Londres e por aí vai.

Por outro lado, acho que o descompasso entre esse glamour do estrangeiro e a simplicidade meio caipira de certos lugares onde me fotografei marca também minha vontade de celebrar esses mesmos espaços simplórios. Eles têm, ingenuamente que seja, seu próprio charme, não grandioso ou celebrado mundialmente como a 5ª Avenida ou os Champs Élysées. São alegres na sua marginalidade e até um pouco cínicos, digamos, na sua maneira de se auto-homenagearem através de nomes famosos. Pelo menos é assim que a coisa toda funciona na minha maneira de entender. Mais do que a pura subserviência ao que vem de fora, há uma malandragem  qualquer que faz com que, por mais desdenhosos que sejamos conosco, possamos também  rir da nossa vontade de poder. É por aí que vejo a mistura entre o convicto e o sem jeito, entre o altivo e o canhestro dentro desse trabalho. O que não deixa de se relacionar, uma vez mais, com todo o espírito “kitsch” da minha produção. Se o “kitsch” é uma espécie de doença cultural, ele é, por outro lado, uma forma especial de ver o mundo, de se divertir com ele, uma válvula de escape cuja criatividade muitas vezes é a mesma, ainda que sob a capa de falsa arte, da arte verdadeira. Se o “kitsch” é inicialmente o falsamente culto, o enganosamente poético, o metidamente fino, ele converte-se, com o passar do tempo e com as novas formas – cada vez mais desenvoltas como se manifesta – em algo curioso por si mesmo e – por que não? – um motivo de interesse, de estudo e um alimen-to à criação, por tudo o que revela (e esconde, daí ficar ainda mais sedutor) de nós mesmos.

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A IMAGEM se divide em três planos horizontais, como três faixas. A luz era um lusco-fusco que só se via quando atravessava a densa copa da árvore (Ficus elastica?) que domina a faixa superior: negro denso polvilhado irregular de azul pálido. A iluminação pública já havia sido acionada por seus sensores que sentiram falta do sol. Por isso, na faixa do meio, era possível enxergar sombras tão bem recortadas, azuis índigo, de folhas da árvore. A casa parecia ser adaptada de um contêiner, a fachada tomada por estrias verticais de fora a fora. Contribui para manchar uma pequena área de dou-rado a lâmpada que parece pender do teto na pequena varanda. A faixa inferior correspondia ao primeiro plano, denso, povoado por uma maioria de grandes áreas escuras borradas: movimento. Dentre as figuras escuras arredondadas que se ajuntam como ca-chos de uva, alguns pontos de luz mostram que os indivíduos que ali se encontram usam de vez em quando roupas mais claras. Uma silhueta branca encimada por uma roda de cores, também mancha-das, Ocupa o quadrante inferior direito É a cabeça de um homem.Ele está de costas e se dirige à direita. Aliás, a grande maiorida dos presentes se dirige à direita. Caminham, ocupando toda a largura da estreita rua. A cabeça é manchada de cores porque usa uma pe-ruca colorida. Alguns sobem no muro logo adiante para ver melhor a procissão. Procissão não, um bloco de carnaval.

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QUANDO SOUBE o que era um miosótis criei aquele azul na minha memória. Ironicamente, apesar de conhecer a lenda da "não-me-deixes", não me lem-brava de como era a flor. Se tinha muitas pétalas, seu tamanho, se dava em cachos ou não. Vejo a foto de uma flor desconhecida, azul. Não é o azul profundo do céu de outono, mas desses mais graves, aparentado do violeta. É possível perceber sua pequenez pelo ta-manho das folhas secas, maiores, espalhadas no chão. Também é possível visualizar o que parecem ser fezes ressecadas de cachorro misturadas a terra e areia. Esse chão ocupa todo o fundo da imagem, que fora foto-grafada de cima. Da quina inferior direita da foto sobe o magro braço dessa gramínea que no meio floresce azul. Azul miosótis. Uma diagonal que atravessa, di-reita para esquerda, a metade inferior da composição. O azul ovalado, ilhado, destaca-se com seu pequeno ponto amarelo ao centro. Valoroza área que quebra a quase monocromia de cinzas, marrons e algum verde.

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UM CALCETEIRO deve aplicar o acabamento adequado para evitar que nasçam bolor ou ervas nas juntas em uma calçada. Sua delicada arte exige preparo, performance e sensibilidade. Preparo para mapear a composição com esses módulos irregulares; performance porque sua execução exige saber lidar com formas imprevistas; sensibilidade - afi-nal - pois se trata de uma verdadeira arte. Numa calçada de pedras portuguesas na Avenida Afonso Pena o chão é sujo e muito irregular. As pedras mais antigas tendem ao cinza ou ao escuro. As mais novas tem cor viva e formam cicatrizes onde houve alguma intervenção no subsolo. A imagem nos mostra o desenho do calçamento onde aparece uma figura que pode ser a de uma flor: um mi-olo circular em pedras vermelhas, as quatro pétalas também circulares em pedras pretas. Da flor na verdade se vê menos da metade. O miolo desaparece na margem superior, deixando entrever de si uma cunha. Temos uma pétala inteira ocupando todo o centro da foto. Outra pé-tala está completamente fora das margens e das outras duas vemos uma pequena fração. Próxima à margem inferior, enegrecida, outra forma circular, só que dessa vez a sombra projetada de uma placa de trânsito. No canto direito superior manchas desfocadas projetadas pelo bloqueio que a copa de uma árvore oferece à luz do sol. Mesmo mais nítida que a sombra da árvore, a da placa possui uma orla ligeiramente borrada, mas não o suficiente para impedi-la de tangenciar a pétala da flor no chão, às 12:41 do dia dezessete de agosto de 2012.

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Circulação “Lição: Nessa rua tem um rio”

Córrego Acaba MundoR Professor Morais (próx Av Afonso Pena)

Córrego da SerraR Aimorés (próx Av Contorno)Córrego do LeitãoPça Marília de Dirceu (Lourdes)

Córrego Pintos Av Francisco Sá (Prado)

Ribeirão ArrudasAv Andradas (Boulevard)

Córrego PastinhoAv Pedro II (próx R Três Pontas)

Córrego da MataAv Silviano Brandão (próx R Itajubá)

Córrego MarinhoAv Silva Lobo (próx R Viamão)

Córrego do LeitãoR Tupis (próx Av Olegário Maciel)Córrego Cônego PinheiroAv Mem de Sá (próx R Niquelina)

Córrego do LeitãoR Padre Belchior (próx Av Augusto de Lima)

Córrego da Serra e Córrego Acaba MundoAv Brasil (próx R Maranhão)

Córrego do LeitãoR São Paulo (próx R dos Guajajaras)

Realizadas:

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Isabela, me lembro do seu vídeo “Vanishing Point”, que é um registro em câmera fixa de um check-point entre Jerusalém e Qalandia, no território palestino. Me interessou a maneira clandestina como você cartografou uma fronteira absolutamente aquecida, disputada por interesses econômicos, políticos, ideológicos, religiosos, fronteira de guerra. Já em “Lição: Nessa rua tem um rio”, a performance acompanha uma cartografia invisível, subterrânea: você toma aulas de violino no meio da rua, ao longo de trechos canalizados do Rio Arrudas em Belo Horizonte. Como o trabalho acontece no espaço urbano e como se relaciona com aspectos de Belo Horizonte?

Isabela Prado: Ideia de fluxo (controlado, manipulado, canalizado): elemento em comum aos dois trabalhos. Uma imposição de uma força sobre outra. Esse padrão de controle, em ambos os casos, está baseado

em uma visão especifica sobre o comportamento esperado do fluxo (dos rios, dos palestinos). Relação.

Micro-macro: dois trabalhos tem relação com a questão local urbana, que tangencia questões politicas. Um fica no registro macro,

outro fica mais no tête-à-tête, contato mais direto com o público, in loco, microação-micropolítica.

Na Palestina, cartografia de cena conhecida e visível, mas eu estava escondida para poder cartografar. Fronteira muito conhecida e muito

visível para os palestinos, mas é quase invisível para quem está de fora. Não se tem ideia do impacto no cotidiano. O vídeo dá visibilidade a

isso fora da Palestina. Registro de fronteira.

Palestina: sensação do fluxo, um fluxo contido, limitado, velado Tentativa de um abafamento, repressão. Vídeo dá a impressão de

que nada acontece. Por um lado, tem muita coisa acontecendo, embora possa parecer invisível. Por outro, dia após dia, nada muda.

Em BH: existe uma invisibilidade dos rios. Performance tenta mapear e criar uma cartografia a partir dessa transparência.

Registro de fronteira – que é invisível e quase imperceptível para o público da cidade.

No lição não tem espetáculo. Atinge círculo mais imediato de indivíduos que trabalham, moram, circulam próximos a cada um

dos córregos cartografados.

Efeito: ter na memória das pessoas uma versão da cidade que inclui esse mapa subterrâneo. Revalidação do espaço urbano, bem como

um mapeamento afetivo, pela ativação da memória.

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Como o trabalho acontece no espaço urbano e como se relaciona com aspectos de Belo Horizonte? Acontece a partir das interseções entre

rios submersos e ruas/avenidas. Mapeamento de pontos (checkpoints) dessas interseções. Pontos que criam uma relação com o planejamento

urbano da cidade – inicialmente no perímetro da avenida do Contorno, em que os rios obedecem a uma trajetória artificial, de

linhas retas e cruzamentos perpendiculares, em que o rio faz dobras de 90 graus. Trabalho vai revelando presença desses córregos

canalizados sob o asfalto.

Na performance, recebo aulas de violino nas ruas de Belo Horizonte, em que o professor tenta me ensinar a execução da melodia “Se esta

rua fosse minha”. As lições correspondem a aulas sucessivas, que ocorrem sempre em ruas sob as quais correm trechos de córregos

afluentes do Ribeirão Arrudas, em vários pontos da cidade, como Av. Pedro II, Av. Silviano Brandão, Av. Francisco Sá,

Av. Professor Morais, Av. Silva Lobo etc.

“Lições” consecutivas por necessidade conceitual do trabalho – que mostra inicialmente a dificuldade em manejar o instrumento e a

adaptar o corpo para tocá-lo, para eventualmente “aprender” a lição. Metáfora para a dificuldade em estabelecer uma nova relação e uma

nova consciência da cidade, mais harmônica, em seu diálogo com o meio ambiente.

Trabalho silencioso, respeita o fluxo dos rios. Aciona o público local – disseminação (não-ativista, não-panfletária) de informação,

de consciência. Discretamente, o trabalho articula, por meio da metáfora, da participação do espectador e da experiência espacial,

uma proposta de recriação da cidade.

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Simone, seu livro “Cartografia da Paisagem Alterada” levanta muitas fontes, de arquivos oficiais a álbuns familiares, para produzir um relato histórico em escala reduzida, e em 1a. pessoa, sobre a memória de cidades do Vale do Aço pelas quais morou. Me encanta justamente a carga afetiva que se adere aos diversos registros, há uma imbricação das instâncias íntima e coletiva das memórias a partir do modo como você organiza e interpreta esses dados e fotos. Percebo na escrita da sua “geo-literatura” uma perspectiva de investigação em torno de temas “menores”, como o cotidiano na cidade, pássaros que migram, os usos dos espaços públicos, jardins e quintais domiciliares. Mas é muito curioso que, no livro, o capítulo dedicado a Belo Horizonte seja uma breve descrição de uma noite insone, em que o som da cidade não te permite dormir e você diz que a sua memória retorna aos “sons da madrugada no Vale do Aço”. Me conta histórias de Belo Horizonte?

Simone Cortezão: Quando estava fazendo o guia me interessei por uma construção histórica que passava pela fabulação, entre minhas experiências com o lugar e dos outros habitantes. Cooptei memórias coletivas,  no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, numa tessitura,  para produzir uma ‘geo-literatura’ com o material do dia-a-dia; aquilo que é o registro silencioso, a história do ‘menor’, como você disse. Estava em busca das reinvenções mínimas.  Assim, eu estava ali, entre essa construção histórica do Vale do Aço atravessada pela cidade de Belo Horizonte, entre uma dupla atenção a esses dois lugares; retornava aos sons e memórias das chaminés e estrondos que ecoam no Vale do Aço como uma cidade da sonolência e monotonia. As noites eram assim, às vezes, um barulho ou alguma coisa que explodia ao longe, repentinamente, depois o nada, por muito tempo, ou ainda de repente tudo ficava sombrio,  o zumbido como um silêncio constante, que fazia as noites sonolentas, na morosidade e espera.

Talvez, não totalmente salva da monotonia e da morosidade, estava aqui em Belo Horizonte; também noturna para mim; como entorpecimento insone da intermitência dos sons e barulhos diversos; gritos, sirenes,

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alarmes ... uma espécie de histeria, talvez até a histeria seja melhor, por ser a saída do controle; ou a cidade latida pelo interdito automobilístico como apresentamos no filme que há pouco finalizei, “Vago Vizinho”. Particularmente, o som é uma espécie de reflexo da vida nesse lugar, os volumes conformam um estado da paisagem. Por isso no guia, quando falo de Belo Horizonte como meu momento insone, acho que é do estado que essa cidade apresenta para mim, quase como descompasso do mesmo, daquilo que constitui sua esterilidade.

Desde que cheguei aqui, não foi só uma noite insone, foram muitas. Perto do meu quarto, debaixo da minha janela: um hotel de luxo, bancos, lojas, boates, fachadas com revestimentos brancos e vidros, tudo altamente equipado com alarmes para a segurança do empreendimento. Durante as noites, vários disparos e gritos soltos atravessavam meu quarto, para mim eram os reflexos do vazio da cidade que se volta para dentro. Nesse lugar, entre placas do mercado imobiliário de venda e aluguel, era uma espécie de visada minha, que alguns anos mais tarde iriam me expurgar dali, eu não era mais a ‘demanda’ desse mundo corporativo.

Aos poucos, ver e habitar esse mundo corporativo pela segunda vez foi bastante curioso, em estados diferentes, da sobra e do remanescente espacial final da produção industrial - os fluxos de lama, os pátios de bobinas, as chaminés, as matas imensas de eucalipto… e agora o mundo corporativo como cidade, anúncios imobiliários, prédios azulejados, vidros espelhados, lojas de luxo, áreas de ressaca. No curta “Vago Vizinho” é o encontro com o lugar e as pessoas, é uma narrativa a partir de quatro personagens conectados por um evento da cidade que convivem com o vestígio de alguém. Nesse acaso, caminhamos por alguns lugares da cidade - av. Amazonas, av. Antônio Carlos, rio Arrudas, Andradas e apartamentos vazios e ocupados - para capturar Belo Horizonte, ironicamente, talvez,    ali no mesmo estado de entorpecimento dos espaços: deserta e estéril, saqueada pela troca que a conveniência não conhece muito bem.

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Clarissa, em “Notas Flanantes” você traça uma estratégia para se aproximar e se relacionar com Belo Horizonte – “a fim de encontrar com a cidade e construir uma outra para o filme” – que já admite a dimensão urbana como incontornável, só sendo possível conhecê-la através da experiência em campo, pelos seus “passeios pela cidade”, reagindo diretamente a seu ritmo e àquilo que extrai do olhar alguma qualidade de contemplação. Portanto, em primeira pessoa, você constrói uma cidade íntima e subjetiva, que você vai descobrindo ao percorrer os quadrantes da Belo Horizonte “em que acorda todos os dias”. Que aspectos desta cidade – outra, sua – você considera mais relevantes?

Clarissa Campolina: “Notas Flanantes” surgiu da dificuldade em responder uma pergunta “sobre a cidade em que eu acordo todos os dias”.  Comecei a pensar em como me relacionava com Belo Horizonte e a questionar minha forma de lidar com o espaço urbano: como um lugar de passagem; onde a dinâmica cotidiana não permite desvios; onde a possibilidade da experiência é reduzida, dificultada, ou quase impossibilitada. O trabalho foi assim tomando corpo e no intuito de me encontrar com a cidade e construir uma outra para o filme, resolvi dar lugar ao acaso, sorteando quadrantes em uma mapa de Belo Horizonte. Cada quadrante do mapa possuía uma letra e um número correspondente - as letras o orientavam na horizontal e os números na vertical. Escrevi todas as letras em papéis brancos e os números em papéis azuis. Antes de cada passeio pela cidade, retirava dois papéis de cores diferentes e descobria o bairro por onde começaria meu percurso. Criei este dispositivo como forma de me lançar às ruas sem imagens pré-concebidas, memórias ou laços afetivos.

Com essa regra do jogo definida, o vídeo começou a se fazer. Quando os passeios se iniciaram, não sabia o que encontraria e evitava conhecer as características do lugar sorteado. Esse método, ao lado do mistério que a cidade guarda em seus espaços e dinâmica, me permitiu inventar pequenas histórias e imaginar outras vidas. Acredito que essa recusa em conhecer previamente o lugar que seria visitado também possibilitou a ficcionalização da personagem e do meu próprio encontro com a cidade. O processo deste encontro entre a personagem e as imagens e sons aparentemente banais da cidade – o desenho urbano; o vazio; o cotidiano ordinário e seus habitantes apressados; a repetição dos acontecimentos e o tempo que escorre neles; os limites que rodeiam os espaços públicos – tornou-se parte fundamental da obra. Essa característica trazia

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para a obra uma narrativa tênue – subjetiva, fragmentada e lacunar – e potencializava a fabulação do cotidiano urbano presente nos passeios pelas ruas de Belo Horizonte.

Essa possibilidade de invenção foi a forma silenciosa que o filme e eu própria encontrei de resistir à dinâmica muitas vezes opressora da urbe; de reagir à impessoalidade de lugares revestidos de concreto e contornados por muros; de reencontrar minha subjetividade (ou a da personagem) impressa na paisagem urbana; tornando-se, assim, a característica mais cara desta cidade singular e imaginária.

Nota 59

Ela continuou descendo a ladeira e já na esquina respondeu que o motivo que a levou até aquela rua era a ausência da resposta quando certa vez lhe perguntaram: “Como é a cidade em que você acorda todos os dias?” Aquele era o décimo passeio que ela fazia no intuito de responder a essa pergunta. No entanto, sentia que quanto mais caminhava, mais longe ficava da resposta e mais próxima ela se sentia dela mesma e de uma cidade que era capaz de inventar. As ruas se transformavam em um lugar de espera e contemplação, derivas e imaginação.

Aos poucos, ela foi se tornando outra, assim como sua relação com o tempo e com o espaço.

Não precisava abrir os olhos para que seus pés reconhecessem o chão. Isso lhe dava a liberdade de olhar e escutar o invisível. De repente um telhado; um reflexo de sol sobre a pedra; o cheiro de um caminho a faziam parar. A cidade lhe apresentava situações banais e ela sentia um prazer especial.

Sozinha, desejava atravessar paredes, entrar nas casas sem ser convidada, conversar com as pessoas que caminham apressadas do outro lado da calçada. O espaço impunha seus limites com construções que barram o olhar e potencializam o imaginar.

Ela podia resistir, passava horas olhando pelas frestas dos portões, inventando histórias para os pés que entrevia e para as palavras soltas que ouvia.

Ainda me pergunto onde ela esteve. Para onde esses passeios a levaram. Quantas cidades ela encontrou.

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Ines, Louise, “Percurso 1” é uma caminhada por toda a extensão da rede de distribuição de água que abastece a região metropolitana de BH, uma viagem ao longo da qual vocês experimentam a paisagem na escala de seus usos poéticos e ocupação pelo corpo. 8 km do trecho ficam em território belorizontino, 12 km em Nova Lima. Assim, as micro-intervenções de Thislandyourland são realizadas num território de fronteira, ao mesmo tempo em que as ações comumente ultrapassam os limites da propriedade privada em favor do direito de ir e vir. Como os passeios de vocês discutem o acesso  à terra mas, sobretudo, como produzem lugares e modos de habitá-los ?

Ines Linke & Louise Ganz: Em 2007 iniciamos uma série de percursos na região metropolitana de Belo Horizonte. Os dois primeiros passeios foram feitos acompanhando linhas determinadas pela infraestrutura – uma de abastecimento de água e outra de abastecimento de energia elétrica. A primeira possui 20 km de extensão, é um caminho plano e gramado construído sobre o cano que sai da estação de tratamento instalada nas margens do rio das Velhas, e leva a água até a primeira caixa distribuidora de água, já em Belo Horizonte.  A segunda é uma área verde sob torres de alta tensão que atravessa a região sul da cidade, em meio aos edifícios, onde percorremos um trecho de 2km de extensão. Em ambas as situações estávamos interessadas nas possibilidades de uso desses espaços verdes, acessíveis, cobertos por vegetação espontânea, sem programas arquitetônicos definidos, lineares e que atravessam uma condição urbana. Desse modo, uma situação que atualiza uma discussão entre campo/cidade e público/privado.Um dos desdobramentos da primeira série de percursos foi  o projeto “Como pular a cerca”, de 2010. Com a privatização das terras das regiões metropolitanas, os acessos aos bens naturais são cada vez

mais restritos. As mineradoras, as empresas e a agroindústria são grandes donos de terras e constroem o território conforme seus interesses privados, restringindo o uso e declarando áreas de proteção ou reserva ambiental. Os condomínios, country clubs ou resorts exigem identificação e englobam áreas naturais apenas para seus associados ou hóspedes. Assim, perdemos o direito e o acesso democrático aos bens naturais. Thislandyourland Journeys realiza passeios em áreas privativas, onde invadimos, pulamos cercas e muros, negociamos ou tentamos ultrapassar fronteiras. Iniciamos a realização de roteiros, mapas e narrativas desses percursos para discutir as fronteiras entre público e privado. Assim, em vez de afirmar os territórios definidos, espacializa-se os limites existentes por meio de práticas do cotidiano que levantam perguntas sobre como as pessoas lidam com os espaços e como se produz realidade. Caminhamos ao longo da infraestrutura de água, um sistema paralelo aos outros caminhos e estradas. O cano passa num túnel por baixo da Serra que separa Nova Lima de Belo Horizonte. Por um lado tem as mineradoras e condomínios e, pelo outro, o Aglomerado da Serra. O caminho percorrido é interrompido pela montanha, que se coloca como obstáculo físico. A serra difere dos limites construídos que delimitam as propriedades privadas que podem ser ultrapassados com mais facilidade.

De certa forma nós convidamos as pessoas para redimensionar as noções de propriedade privada e considerar a possibilidade de ver os recursos naturais como bens públicos, criando praticas e apropriações momentâneas de lugares que apontam para o uso público da propriedade privada e para procedimentos de deslocamentos físicos que estabelecem outras relações com o entorno. Criamos ações simples, que interferem no sistema vigente, nas formas constituídas e nas representações estabelecidas para criar um mundo em obra.

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<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHT-ML 1.0 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-transition-al.dtd"><html xmlns="http://www.w3.org/1999/xht-ml"><head><meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=UTF-8" /><title>Edifício Sulacap</title></head>SAEMG - 6º andar<head><style type="text/css" media="print">#pbh { padding-top:6janelas; padding-left:12janelas + 1sacada;}#afonso_pena { padding-left:inherit - 2janelas; padding-top:∞;}#sob_a_sombra { padding-left:um cadim pro lado;}</style></head><body>

<div id="pbh"><img src="../relógios/prefeitura.jpg" /> <!-- São 14h10--><div id="afonso_pena"><img src="../avenidas/alto_da_afonso_pena.jpg" /> <!-- Muita buzina--><div id="sob_a_sombra"> <img src="../árvores/mangueira_grande.jpg" /> <img src="../igrejas/são_josé.jpg" /> <img src="../bichos/periquitos.png" /> </div></body></html>

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* Lemos no livro “Memórias de Ruas: Dicionário Toponímico de Belo Horizonte”, de Leonardo José Magalhães Gomes:<< A Planta Cadastral de Belo Horizonte, de 1942, mostra o local com o traçado normal, sem a rua Romano Stochiero, que é uma clara mudança no traçado da Planta de 1895 >>. Não há registros de sua criação e segundo a lembrança da filha de Romano Stochiero, a rua foi batizada em 1952. Imaginamos que seja uma rua que nasceu de dentro do galpão da Cerâmi-ca Romano Stochiero, como um campo dimensional mágico...

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Shima, Cleverson, Rafael, como chegar ao Romano Stochiero, 54 em Belo Horizonte?

Romano Stochiero 54 é a transformação natural (anárquica e democrática) de uma residência de artistas em uma residência artística permanente. É uma das raríssimas ruas dentro da Av. Contorno que não tem nome de estado nem de tribo indígena, nem de médico, nem militar (mas de um proprietário de uma olaria), e corta uma quadra exatamente ao meio, no bairro de Santa Efigênia.

A nossa existência enquanto artistas, cidadãos moradores de Belo Horizonte, Minas Gerais e Brasil (descendentes de diversas etnias e miscigenações) é o que torna nosso apartamento também um espaço expositivo, em vernissages/exposições/finissages de um dia, sempre aos sábados, das 14h às 20h.

O espaço se relaciona com as brechas que a cidade nos oferta: a carência de editais, a pouca disponiblidade (e disposição) das galerias e espaços públicos ocupáveis de receber artistas, apoiar projetos, promover encontros e intercâmbios. Buscamos a horizontalidade e a natureza mais pura de um anfitrião: abrimos nossa residência para que ela seja ocupada da melhor forma possível, tornando os artistas, literalmente ‘convidados’.

Para chegar ao Romano Stochiero 54, basta chegar à rua homôni-ma, no apartamento 4A. Caso não seja um sábado de abertura, a chance de conhecer uma residência de artistas é de 100%, com tudo que uma casa de artistas possui. Não falta café e conversa.

Processemos!

(...) estou sempre à margem. Apesar da cidade estar na minha origem, acho q a questão do abrigo está p mim mais próximo na casa bachelardiana (essa casa agora c certeza p mim é a romano stochiero), aquela em que rilke sempre se aventura fora, com a certeza p todo enfrentamento, a casa é o abrigo mais sólido.

a idéia do Romano como plataforma de encontros e exposições surge em resposta às circunstâncias provincianas da cidade, acho que a casa se estabelece a partir do desencontro que há entre artistas e instituições. estas não estão dispostas a abrigar mais os artista como talvez um dia foram. apesar de toda discussão sobre o museu no brasil, q aconteceu nos anos 1990 e 2000, está claro como as instituições têm se distanciado do próprio circuito, vis-lumbrando apenas o cumprimento de agendas de política pública. Assim, BH tem se tornado fonte de instituições independentes (apesar da maioria almejar uma consolidação tal qual as insti-tuições públicas). O resumo da Romano é agir com a honestidade de uma casa, que recebe bem quem a visita. Nunca sair do foco que ela é uma casa, onde pessoas moram, mas que se metamorfoseia (não transforma-se) por um breve período, abrigando convidados. Eu mesmo acabei sendo abrigado pela casa. Eu tenho uma casa onde poderia estar agora, mas como Rilke, preferi me aventurar e ter a experiência empírica da residência (essa se difere de casa no momento em que a palavra residência parece mais algo temporário do que fixo) e entrar em um embate com outros artistas, que é quase 24h. Respira-se pensamento e arte nessa casa e é por isso que estou aqui. E eu acredito que também contribuo trazendo a experiência dos cantos, das bordas da cidade (até porque eu nasci e cresci na periferia de Neves, que já é outra cidade).

Shima, C. L. Salvaro e Rafael Perpétuo

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Pablo, gostaria de me deter numa frase que escrevi sobre “Coroa”, que é um trabalho que interfere de modo discreto e latente na arquitetura da rodoviária: “A obra aborda as relações entre a herança barroca e a vocação moderna: forças que convivem na cidade de Belo Horizonte desde sua inauguração”. Os abacaxis que adornavam a rigidez do concreto armado da cobertura do edifício me lembravam da ideia de “capital entre arraial e cidade planejada”, e esse me pareceu um comentário irônico sobre as concepções de gosto locais e sobre como o legado histórico de nossa modernidade - acelerada e tutelada - é mobilizado no presente.

Pablo Lobato: Bonita essa leitura, gosto bastante. Por outras ênfases você revela traços que não estavam racionalmente articulados num primeiro momento.

Quando fui tomado pela imagem que conduziu o trabalho, quis aproximar sensações com uma liberdade que experimentei no interior de Minas Gerais, em Bom Despacho. Na minha infância e adolescência a rua da cidade era um lugar próximo, onde aconteciam os jogos, os namoros e as coisas erradas. O meio fio, o muro, as árvores e praças eram minhas e dos meus amigos. Não me lembro de prédios cercados, intocáveis, distantes da experiência de estar no espaço urbano. Existia uma intimidade ordinária e nativa da relação com a cidade que nos permitia colocar a mão na arquitetura, sentir suas quinas e texturas.

Ao olhar para a Rodoviária de Belo Horizonte numa manhã de outono, enquanto aguardava no estacionamento a chegada da Julia, sem a pressa dos movimentos de embarque, pude ver, como pela primeira vez, aquele volume de concreto e suas nervuras verticais

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apontando para o céu. O desenho do prédio e o espaço por entre as massas cinzentas estavam mais palpáveis. E já nesse momento a antiga experiência de colocar a mão na arquitetura da cidade permitiu que a imagem chegasse. Quis aproximar a sensação-concreto que o prédio disparou em mim, de uma sensação-abacaxi.

Em alguns trabalhos a coragem de começar a trabalhar demora mais. Nesse caso, apesar da relação inusitada e um tanto quanto absurda, estava claro o que eu deveria fazer. Procurei manter essa intuição por perto durante a viabilização da instalação, que aconteceu meses depois, já ao final daquele ano de 2008. Apesarda quantidade de frutas instaladas num local por onde milhares de pessoas passam diariamente, o trabalho tinha algo de silencioso. Muitas pessoas que passavam pela rodoviária não o percebiam. E foi então que pude compreender um pouco mais a natureza do que eu havia realizado. Em meio a todos os transeuntes que cortavam aquele espaço, sem muita presença, na marcha típica de quem precisa chegar a outro lugar, alguns eram tocados pela imagem da Coroa. Muitos sozinhos, sem conseguir partilhar com o fluxo que seguia adiante, chegavam a parar e a deixar suas malas no chão para olhar o prédio. Essa zona fronteiriça, por onde deixamos e retornamos à cidade, essa espécie de portal, parecia perder, para essas poucas pessoas, sua invisibilidade funcional.

Eu nunca desejei que essas pessoas vissem o que eu vi na manhã de outono, no estacionamento da rodoviária. Nunca aspirei traduzir algo vivido, mas o modo como os passantes reduziam seus movimentos, apontando a cabeça e os olhos em direção ao prédio, o tempo e a pausa que a instalação criava, me lembravam muito o meu primeiro encontro com aquele espaço.

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paulo, queria retomar aquelas esculturas que você espalhava pela cidade no começo da carreira e também os recentes “cadernos de áfrica” para pensar sua relação com a cidade de Belo Horizonte. me lembro de vc me dizer que é do Palmital e que mesmo em Belo Horizonte se sente um estrangeiro...

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paulo nazareth: vamos deixar a ortografia como esta,__ certo? creio que voce quer que eu conte algo sobre o qu’eu chamo de objetos desencontrados ---- eles sao objetos esquecidos ao acaso ou propositadamente esquecidos,abandonados,deixados por ahi, pelos cantos da cidade por onde passo, bandejao [restaurante universsitario], restaurante popular, telefones publicos, bancos da plaza, parque municipal e outros lugares ---- penso que sao como os objetos, brinquedos,ferramentas que minha mae encontrava quando varria as ruas de governador valadares, minha mae ali varrendo-- sempre encontrava algo qu’eu podia usar, uns brinquedos de menino rico ou classe media que vinha parar em minhas maos, brinquedos com pequenos defeitos que por mim eram reparados, consertados refeitos---ahi nesse lugar do reparo, posso pensar minha primeira escola; eh o lugar de meu aprendisado inconciente, eu estava ahi fazendo algo que mais tarde pudi usar em meu trabalho : o remendar, o remendar da perna do RAMBO, o brazo do CAPITAO AMERICA, HOMEM ARANHA e INCRIVEL HULCK.---- os objetos desencontrados foram deixados por ahi, espalhados pela cidade, entre o Palmital e a Pampulha, Barreiro e Cafezal --- Eldourado e Vilarinho --- Bairro Sao Paulo, Sao Bernardo, Campo Alegre, Floramar, Serra do Capivari, arredores de

belo horizonte, ibirite, contagem, betim, caete, serra da piedade, cipoh e todo canto onde eu ando---- os objetos desencontrados foram ahi ficando , sem fotografia, sem imagem, soh o relato e fui esquecendo onde foram deixados--- nao teria imagem ---- eh o desencontro, o esquecer, o deixar, o perder, o deixar de ter---- ahi fui a india, nova delhi, caximira, mumbai, ahi desencontrei alguns— existe uma imagem, uma fotografia em um canto qualquer de mumbai, mas nao sei exatamente onde esta a fotografia, eh digital e estah desencontrada em agum canto, em um cd de arquivos do ano de 2006. ---ha muito tempo eu vivo em belo horizonete e seus arredores, nasci no morro do carapina em governador valadares, depois fui morar no planalto de governador valadares--- nesses anos de nascer e crecer um pouco, as favelas para mim ainda eram as casas de madeira, a casa de pau , casas de tabua, como aquelas dos filmes, fotografias, ilustraciones, desenhos antigos--- assim acreditavamos, meus amigos, irmaos e eu, que em belo horizonte nao existia favela; o contrario desconbri aqui quando cheguei pra morar com a familia -- ainda com o sarnei como presidente do brasil, moramos numa sauna numa mansao em reforma no mangabeiras por um mes e depois fomos pro mato antes mesmo da disputa color e lula e voltamos depois pra a cidade pra viver na favela do cafezal quando color ja era presidente do brasil. ---depois do cafezal veio o palmital que persiste ate hoje, lugar de dormir e descansar de onde saio e volto , primeiro para belo horizonte agora pra tudo cuanto eh canto. --- o estrangeiro que veem em mim talvez sehja pelo jeito de falar que ainda existe de governador valadares, de quem vem da rozsa, mas eh um jeito de falar misturado, um jeito de valadares com um jeito de meu avo e um

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jeito de mae e pai com um jeito de quem anda por ahi – um jeito de preto e de branco do mato, um jeito um pouco caboclo krenac mas contaminado pelas aulas de portugues e a tentativa de aproximacion ao portugues dos livros , da escola, da universidade. Ahi o meu jeito ja nao eh nem da rozsa , nem da periferia, nem da universidade , nem do peao eh um jeito de fronteira,de quem nao esta nem aqui nem lah, de quem esta em movimento, em um constante transito.—o jeito de fora, do nao de aqui, tambem o estrageiro esta no jeito de levar o cabelo, --- o cabelo sempre o levei assim , esse black de rua, ou black do mato, algo como um cablacko---um black sem cuidados de salon --- meu cabelo me diferenciava dos outros, um cabelo que nao escorre, cabelo barroco, qe fica ahi buscando o ceu encuanto ando pela terra... ahi no Pedro Aleixo onde estudei me chamaram James Brown depois passei a ser LIMAO e BOMBOM sem deixar de ser BROWN ---eu sempre fui braw, mas nao sabia, agora sei que sou braw mas sou outros tambem.... meu cabelo black, sarara crioloo, pinxaim me faz estrangeiro entre os outros potenciais blacks--- porque sao poucos os que levam o cabelo assim--- no entanto quando fiquei careca antes de ronaldinho [RONALDO FENOMENO] segui sendo o outro, ainda nao havia celebridade que me resguardasse. --- para o meu black os JACKSON 5 ainda sao os santos alem de um ou outro jogador de bola. Ahi comezca o caminho de africa com o cual escrevo-desenho CADERNOS DE AFRICA, eh em meu cabelo, em minha cabeza, em meu andar, na cozinha de minha casa que comezca essa viajem---- e de aqui sigo inumeros caminhos---- belo horizonte, se quer saber, vejo sempre suas luzes lah da tampa, do alto do palmital onde vivo, pra onde sempre volto de minhas caminhadas, eu fico lah no

alto do morro e as luzes de belo horizonte cah em baixo se acendendo e apagando --- a policia sempre me parou e continua a parar porque sigo sendo paulo da silva, seja subindo ou descendo o morro, cabelo black nao eh cabelo de quem tem trabalho fixo, os patroes ainda pensam que sao donos de seu corpo e que podem ditar as reglas, ainda usam o artigo “boa aparencia” para controlar o negro e a policia ainda faz as vezes de capitao do mato perseguindo o negro fujao ou o negro que sai a vadiar---- eu hoje estou a vadiar----- viajar, viajo todos os dias entre Santa Luzia e Belo Horizonte zona metropolitana...a partir do Palmital-Santa Luzia-Minas Gerais/Brasil, onde moro , ando pra tudo cuanto eh canto, pra um monte de lugares--- ando da periferia para o centro, do centro para a feriferia, da periferia para a periferia, do centro para o centro. o Palmital eh o centro e me deslonco em suas bordas , em seu entorno, seu entorno eh muitos lugares, eh tudo que o circunda,eh belo horizonte que vejo lah de cima, eh as montanhas, o aeroporto lah longe que vejo bem pequeno,os avioes que vem e vao, eh o mundo que meus olhos buscam do alto do morro--- eu saio de casa que eh o centro geografico da historia que estou contando e retorno ao centro, retorno ao Palmital...ha momentos que o centro se desloca o centro se faz Cafezal,Vila Nossa Senhora de Fatima, Cabeza de Porco,[aglomerado]Favela da Serra [Capivari]/Belo Horizonte, Carapina, Planalto-Governador Valadares-MG,Vila do Joao, Jacare, Jacarezinho/Rio de Janeiro – o centro pode seguir nossas pernas, o centro pode ser levado com a gente---- pode ser feito pela gente--- o belo horizonte eu vejo do centro que existe no morro desencontrado em sua borda.--------------------------------------------------

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Roberto, seu vídeo é um registro prosaico, feito em celular, um drive-by de um complexo arquitetônico de escala monumental: a Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves, sede do governo estadual projetada por Oscar Niemeyer, localizada no caminho para o aeroporto de Confins. A crueza da sua imagem funciona como anti-publicidade, como consciência e vontadede contraposição à imagem idealizada que divulgava o empreendimento por toda a cidade, inclusive plotada no ônibus no qual você gravava. O seu esforço em reconhecer um dado palpável e direto me convence da densidade simbólica dessa construção e de sua dimensão política. Me interessa ouvir suas motivações em investigar esta “margem” de Belo Horizonte, sob esta perspectiva de “desencantar” a imagem.

Roberto Winter: De algum modo o vídeo parte de e lida com uma espécie de impossibilidade: a do registro. Em outras palavras, do reconhecimento de que qualquer tentativa de se fazer um registro nunca alcança plenamente seu objetivo. Seja por sua parcialidade ou pela distância que mantém da experiência direta daquilo que aborda, pode-se dizer que um registro é sempre incompleto. Mas é possível entender essa insuficiência como uma qualidade intrínseca do registro: em uma analogia com a representação diríamos que ela guarda sua qualidade de representação no equilíbrio entre a proximidade e o apartamento daquilo que representa. Pode-se entender este como um problema de diferenciação, ou seja, se a fidelidade da representação é tal que ela se torna aquilo que representa, deixa de ser, por definição, representação (e passa a ser a coisa em si). Todo registro é, assim, uma espécie de fracasso programado e, exatamente por isso, simultaneamente bem sucedido na sua auto-contradição.

O reconhecimento prévio da impossibilidade de que “Presente Virtual” fosse um registro modifica o seu estatuto final, o que é o mesmo que dizer que ao ser realizado consciente da sua impossi- bilidade, torna-se outra coisa já de partida. Entre elas, uma reflexão sobre a própria ideia de registro.

Uma aproximação possível com o vídeo pode ser realizada com um aprofundamento dessa problemática de diferenciação no registro tendo como protagonista a propaganda, ou a imagem publicitária. Aqui é preciso ressaltar a importância das imagens publicitárias que divulgavam a Cidade Administrativa nas laterais dos ônibus de Belo Horizonte e que, de algum modo, se tornam uma componente da obra. Em relação a essas imagens, não sei se há exatamente uma “vontade de contraposição” conforme indicado da pergunta, antes, é preciso reconhecer a possibilidade de abordá-las como registro. É claro que é necessário mobilizar um tipo muito específico de registro e muito provavelmente também estender essa noção quase ao limite do aceitável. São registros que precedem a própria existência daquilo que supostamente mostram, algo que já se tornou muito comum com as imagens produzidas por computadores (em especial no campo da arquitetura/construção, no qual abundam as ilustrações de prédios de apartamento que às vezes nem chegam a ser construídos). Mas é possível ver essas imagens sim como um registro das componentes que acompa- nham um projeto como o da Cidade Administrativa, de como ela deveria ser se vista a partir do enquadramento ideológico de seus promotores. É quase como se pudéssemos nos aproximar das imagens publicitárias a partir de uma perspectiva “invertida” em relação a diferenciação, como se nelas fosse possível entender a diferença em si como o centro do seu potencial de registro. Nenhuma dessas diferenças

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escolha de perspectiva inevitavelmente faz aparecerem e sumirem certas coisas dentro da imagem e na sua qualidade e sentido. Daí também sua dimensão política: além de seu o que, o vídeo pode se entender a partir de seu como. O espelhamento da imagem fixada na lateral do ônibus em relação àquela do vídeo é conteúdo dele tanto quanto cada um de seus frames, já que nesse espelhamento, nessa relação, nesse como do vídeo, se catalizam sentidos. Entender o vídeo dessa maneira também é entender que ele não é apenas um registro daquilo que nele se torna imagem, mas também de seu tempo. Na ambiguidade do título, o “presente” pode ser entendido, entre outros, como uma referência ao tempo atual, o presente. Presente que nunca é presente, portanto virtual (num sentido amplo). Mas também tempo que é mediado pela experiência virtual das imagens (ou dos registros), entre tantas, a publicitária ou a dos vídeos (como o da obra). Um tempo de profunda esquizofrenia em que uma imagem publicitária, descartável e consumível parece querer tornar-se um monumento mais que o próprio monumento que ela antecede — e aí novamente sua qualidade de registro: o desejo monumental, que se pode perceber na ideologia arquitetônica da construção e forma (e suas contradições), também está na imagem publicitária. Partir de uma impossiblidade e multiplicá-la pela diferença entre a imagem publicitária e o objeto registrado para resultar num outro registro, um do próprio tempo na sua dimensão político-social e artístico-cultural. Entendido assim, o vídeo não é um registro em imagens, mas de uma existência em imagens. Registro de um tempo histórico que por fim não está nas imagens, de umacondição que extrapola o vídeo e inclui tanto a construção e re- cepção de um complexo faraônico como a Cidade Administrativa quanto a peculiar forma de produção e consumo de imagens que o acompanha.

diminui a qualidade de registro dessas imagens, ao contrário, são justamente elas que ressaltam aquilo que nas imagens há de ideológico.

Assim, por mais que o registro mostrado no vídeo seja “prosaico” e tenha uma certa “crueza” (para usar as mesmas palavras da pergunta), não alcança exatamente uma “contraposição” em relação às imagens publicitárias. Ainda mais se pensarmos a “contraposição” no sentido mais comum: haveria uma dose exagerada de ingenuidade se a pretensão fosse conceber uma anti-estética qualquer como forma de resistência à publicidade. Não é necessário muito esforço para destacar a capacidade aparentemente infinita de cooptação da publicidade, bastando lembrar que ela está expressa praticamente em toda parte no polimorfismo extremo das propagandas e métodos do marketing, deixando de fazer sentido sequer conceber qualquer “contra”. A menos que o “contra” assuma o sentido daquilo que está posto como pano de fundo, por trás ou subjacente. Neste caso é interessante notar como torna-se parte de “Presente Virtual” a dimensão publicitária que ele não exatamente contém, mas carrega. Daí seu não ser “anti-publicitário”, mas talvez “contra-publicitário”, onde o “contra” assumiria este segundo sentido. Entendido assim, o esforço ao se fazer o vídeo está também em reconhecer um dado palpável e direto que inclui justamente essa dimensão publicitária — inclusão que se dá por alusão e representação ao mesmo tempo que por exclusão e diferença, o registro.

Tudo se passa como se fosse possível dizer que a imagem publicitária original acaba por estar no vídeo. Na apropriação de um certo modus operandi da publicidade (ou melhor, seu oposto): na maneira que o vídeo é filmado (a partir do ônibus) e como essa

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Stéphane, queria relembrar os tempos da sua residência aqui em Belo Horizonte. Quais memórias e impressões você guarda do contato com o ambiente cultural local e como os trabalhos inéditos que você produziu se relacionam com esta experiência?

Stéphane Vigny: Pra mim a experiência brasileira continua a ser, até hoje, uma lembrança muito rica e agradável. Isto porque recebi uma hospitalidade humana verdadeira, mas também interessada em minhas proposições artísticas. É claro que a minha relação com o Brasil e com Belo Horizonte em particular foi condicionada principal-mente pelo meu trabalho e pela produção da exposição. Eu te falei da prática do “système D” que vocês chamam de “Gambiarra” e dentro do qual eu reconheci uma forma muito satisfatória de criação artística involuntária ou por inadvertência. Você falava de uma “Estética da Precariedade”, eu acho, que correspondia à minha lógica de produção, que se acomoda ainda constantemente (não sempre) ao que o meio mais próximo me disponibiliza. É um modelo de adaptação necessário quando trabalho.

A peça “Empressé” (Apressado) é reveladora no sentido da invenção da gambiarra e é uma espécie de homenagem ao gênio criador popular que daí se destaca. É ainda um gesto artístico dos últimos minutos, já que foi a última peça realizada para a exposição algumas horas antes da abertura. Desde então guardei esta liberdade de fazer as coisas no último momento de maneira bem espontânea, como a peça “Persua-siva Percussão”, feita em 2010 dentro desse espírito e segundo esse mesmo princípio de improvisação. O que pra mim qualifica melhor o espírito brasileiro é a palavra jovem no sentido descomplexado e reativo, sempre orientado para o amanhã mas com uma nostalgia do presente. Como descreve Ernst Junger em “Sur les falaises de marbre”: "en deçà de la mort le temps ne se laisse point tarir " (sob a morte, o tempo não se deixa ressecar). Eu acho que esta citação pode convir à ‘Saudade’.

“Empressé”, o prato mural quebrado e recolado com chicletes, vem diretamente dos pratos que eu vi na casa da sua mãe, na parede da sala, que também existem aqui na França. Esta mutação de um objeto funcional em objeto decorativo me pareceu curiosa. Foi pra mim uma surpresa feliz me dar conta que este tipo de prática decorativa poderia ter uma dimensão universal, se pensa que sempre se trata de uma coisa muito localizada que pertence a uma única região do mundo. Eu penso que o fenômeno local é o mesmo em todos os lugares e que é a nossa concepção do universal que difere. Eu tenho sempre no meu trabalho esta preocupação em saber a quem eu me dirijo e se o meu trabalho pode “falar” para fora do meu ambiente cultural pessoal. Eu fico feliz quando uma peça, em sua recepção e compreensão, não é tão tribu-tária de uma região ou de um grupo restrito de pessoas.

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Volto de um passeio com Mariana Rocha. Há muito pouco a dizer. Diante da morte, pesa o silêncio que constrange a linguagem. O seu trajeto pelas ruas de Belo Horizonte é silencioso, é elaboração e metabolização de um espanto essencial do ser: a constatação violenta de seu “duplo esvaziado” (usando o vocabulário poético da artista), de seu destino e condição mortais. Profundamente afetada pelo sentimento da desaparição e interessada em investigar a energia do luto, ela caminha, silenciosamente, em direção ao endereço de um recém-falecido... pelo caminho, seus olhos vão concedendo à vida que passa, distraidamente, a qualidade intensa das “coisas que só são no momento do seu desaparecimeno”. Quer se sensibilizar nessa frequência e em tudo que vê percebe e projeta a ideia da morte, deseja experimentar esse mistério reverberando no seu corpo vivo. “Toda distância ou nenhuma” consiste em procedimentos simples, de ambição fenomenológica. A partir do obituário publicado, Mariana busca o endereço do falecido na lista telefônica. A seguir, se entrega ao percurso de sua casa até a casa do morto naquele dia, e depois de volta pra casa. Ela diz que “caminha para a linha existir”, essa linha que a conduz ao ambiente do luto, que também vincula todos à morte: a linha que ela percorre solitária, em cortejo. Observa a tudo como quem guarda um segredo; recolhe o pó que se acumula nos cantos das ruas (no peso equivalente às cinzas de seu corpo cremado); aproxima-se dos objetos abandonados pela rua; surpreende-se com a finitude e fragilidade de toda vida; fotografa e recolhe matérias do mundo; observa marcas e linhas descontínuas no chão; lança constantemente os olhos pro céu; hesita em contactar o lar do morto; registra impressões e consulta sua existência; reconhece ruínas que o tempo vai tecendo no mundo; insite em descobrir o que foi deixado ao esquecimento;

(este texto não termina com o ponto final da morte, mas com um ponto e vírgula que oferece uma espera)

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“O que eu tinha de viver, o que considero como meu quinhão nesta vida, termina aqui. Pelo menos se depender da minha vontade. Sinto-me assimilada a esta paisagem como um detalhe sem significação. Um dia desses, quando a caliça morta deixar repontar sobre a casa a primeira erva de ruína, irei por estes campos afora, até tocar com o pé um monte de terra encimado  por algumas flores secas. Em torno não haverá cerca, nem muro, nem nada - um jequitibá apenas, não muito longe, cobrirá com suas folhas negras um terço daquela área do cemitério mineiro, onde os bois e os cavalos pastam livremente. Direi comigo: “É aqui que ela descansa. Ou, quem sabe, remói a memória dos seus crimes”. Por cima, imenso e sem fulgor, estender-se-á um pesado céu de outono. Sentar-me-ei então à sombra do jequitibá e, tomando do chão um galho seco, traçarei o nome dela sobre a terra. Será, por um minuto, a única coisa que dela ainda haverá de sobreviver ao esquecimento. Depois virá de longe um vento solto, desses que rodam à toa pelas várzeas, e apagará o nome - e então só ficará o monte de terra, até que outro vento espalhe a terra, essa terra  se confunda a todas as terras, e o próprio cemitério desapareça, e as cruzes também, e a área volte novamente a ser apenas campo livre, onde pastem outros bois, que em meio à erva tenra encontrem, uma vez ou outra, um taco de madeira onde ainda sobre uma data ou o resto de um nome gasto pelas intempéries”.

Lúcio Cardoso, Crônica de uma casa assassinada

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... em consequência da grande quantidade de atmosfera entre nosso olho e eles,

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os mais remotos objetos parecem azuis

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e quase do mesmo matiz que a própria atmosfera. L. Da Vinci

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nunc edições de artista

ILUMINURAS 3 , de júlio martins e marco antonio motatiragem de 1000 exemplaresbelo horizonte, 2012-2013

ISBN 978-85-66283-01-3

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