Ética como Potência e Moral como Servidão

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    tica como Potncia e Moral como Servido

    porLuiz Fuganti

    Ao primeiro sinal da palavra tica o que salta ateno comum do cidado um chamado para que ele, ao

    ponderar seu sentido mais freqente e ordinrio, procure ascender a uma postura de vida e de

    comportamento que por princpio o colocaria no caminho do Bem, seja de natureza espiritual, seja um Bem

    para a humanidade ou, simplesmente, uma disposio por parte daquele que qualificado com atributos

    ditos ticos, a assumir um comportamento que tenderia para o to propalado bem comum da sociedade em

    que vive.

    Bastaria, para isso, apenas seguir o referencial da Lei, com o ideal de igualar-se a sua pura forma e

    introjetar seu paradigma universal. Mas ao mesmo tempo em que esta concepo do senso comum

    compartilhada como sendo a que melhor conduz o indivduo a um modo de vida responsvel e justo,

    concedendo-lhe o direito a uma espcie de liberdade assistida por fora e vigiada por dentro (como num

    panpticum ), relativa ao grau de liberdade que a prpria sociedade poderia suportar sem ser ameaada em

    sua constituio, instaura-se, na mesma proporo, a contraparte de um assujeitamento sutil e inaudito que

    submete e desvia tanto o desejo quanto mais ele adere, na espera de recompensas ou ganhos, ao modo

    moralmente til de ser.

    O modo que agrega o indivduo ao corpo da sociedade, atravs de uma relao dicotmica de boa ou m

    vontade para com o corpo de leis, o qual devolve ao indivduo o troco em forma de recompensas ou

    castigos, remonta j ao nascimento do Estado. Mas no apenas o Estado arcaico que cultiva este t ipo de

    cdigo. Pertence a prpria natureza do Estado este modo de codificar seus membros pela relao de

    obedincia e transgresso. por isso que o Estado um grande estimulador e reprodutor das paixes

    tristes, como diz Espinosa. por medo dos castigos e esperana das recompensas que o indivduo

    submete-se a um poder que o separa da sua prpria capacidade de agir e pensar livremente, desejando sua

    prpria servido. Ainda que aquele modo se alimente - por pura crena - de investimentos subjetivos de um

    indivduo habituado ao esforo cotidiano de sobrevivncia, dissimulando concrdias e inviabilizando relaes

    reais de solidariedade ou - por pura convenincia utilitria e objetiva - de investimentos de desejo (de poder)

    nem um pouco desinteressados (ao contrrio do que invoca o sujeito legislador de Kant), desvela-se assim

    como seu contraponto um comportamento de um tipo de vida inteiramente subserviente, tragado por um

    crculo vicioso, como num buraco negro, sempre realimentado pela repetio da perda da capacidade de

    criar as prprias condies existenciais de efetuao de suas potncias. assim que tombamos. Por morder

    a isca dos "nossos" interesses, interesses de um "Eu", camos cativos de uma moral que impe dever a uma

    instncia exterior como o Estado, o Bem, a Lei ou, em uma palavra, a valores de uma poca que, apesar de

    serem criados por uma determinada sociedade historicamente formada, so publicados e estabelecidos

    como universais e perenes, enfim, transcendentes ao tempo e ao espao nos quais emergiram.

    Expressos por discursos que pretendem representar e justificar os chamados "bons costumes",

    autoqualificados de cientficos, cultuados como verdades em si ou formas puras do saber, esses valores

    bloqueiam e separam o indivduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem prpria,

    desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenas ou opinies e destitudo-os de suas

    potncias autnomas que criam seus prprios modos de efetuao. dessa maneira que indivduos

    tornados fracos, por paixes de medo e esperana passam a clamar por uma ordem heternoma que os

    salvaria do caos, da impotncia e da misria, tal como no exemplo extremo do nazismo. Como diz Wilhelm

    Reich, os alemes no foram simplesmente enganados, eles desejaram o nazismo.

    de tais valores, aos quais uma suposta vontade humana deveria se curvar, que curiosamente se extrai

    uma significao intrnseca, a substncia real, ao mesmo tempo forma em si e oriente para o Homem, para

    falar hegelianamente. Desenhando um plano de tal ordem transcendente natureza material tida como

    catica, o investimento em tais valores atribui Lei a irnica tarefa e o crdito infinito de piedosamente

    salvar o Homem, j que, sobrevoando a natureza, estaria imune tambm s tendncias perversas de uma

    natureza humana decada, sempre em falta com o bem e a verdade, demasiado atolada nas paixes do

    corpo e da alma. , portanto, nesse modo de instituir valores e vnculos que fundam-se dvidas infinitas e

    impagveis, onde no sobra outra alternativa aos "cidados" seno rolar indefinidamente o principal da

    dvida e pagar interminavelmente seus juros. Eis como uma dvida de poder, por natureza impagvel, se

    torna dvida de existncia. Por esses bizarros caminhos que se chega a desejar a prpria sujeio como

    se da liberdade se tratasse. Quando queremos formar nossos cidados, investimos em assujeitamentos. Eis

    todo o cinismo da idia moderna de liberdade.

    Mas a partir de modos de relaes microfsicas de poder, imanentes ao prprio tipo de formao social,

    que se mostra realmente como se instaura e triunfa esse nihilismo, essa negao das qualidades nmades

    da vida, tornando as sociedades puramente reativas e conservadoras de uma maneira baixa de existir.

    Assim, a constituio da crena em formas metafsicas fechadas em si - que na verdade so geradas e

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    puramente transcendental, a partir do qual tudo o que acontece em sociedade poderia ser julgado,

    resgatado ou condenado. sobre esse plano que geralmente a conscincia ingnua , simultaneamente,

    determinada e tornada cmplice, pois corrobora verdades que toma como justas e neutras, eternas e

    externas, isto , dotadas de uma transcendncia que justificaria lgica e moralmente sua racionalidade

    legisladora. Numa espcie de coao de interesse mtuo, determinam-se as justas formas e prescrevem-se

    limites normativos como modelos autenticadores de idias justas e de discursos unificadores, de atos

    equilibrados e de comportamentos responsveis. No entanto, talvez a transposio mais sintomtica deste

    processo moralizante aparea no ideal de unificao aspirado pelo poder, que se destaca e controla uma

    sociedade civil submetida aos seus interesses. Consequentemente, o poder produzir o simulacro de uma

    conciliao, de um achatamento ou dissoluo das diferenas.

    Naturalmente, do ponto de vista poltico, a encarnao mxima da unificao se efetuaria na figura do

    Estado Nacional, sendo secundrio o aspecto ideolgico de sua bandeira, isto , de quem o controla,

    operando invariavelmente a servio do interesse privado ou parcial e em nome de um simulacro de conceito

    universal de coisa pblica, sempre destacada da sociedade. O mais importante seria superar o estado de

    natureza, o qual, na viso de Hobbes, tende discrdia, dissoluo e guerra, para substitu-lo, na

    prtica, por foras capazes de dominar, controlar e estancar a ferida das disputas individuais. assim, por

    exemplo, que Hobbes concebe a fico da unidade e da paz civil a partir de uma superao do estado de

    direito natural do homem, que alimentaria, na diversidade, a guerra de todos contra todos, para um estado

    de direito civil, onde o indivduo delega parte de seus direitos naturais e recebe, em contrapartida, direitos de

    civilidade que lhe garantem a segurana, o desenvolvimento e a paz. Nesse sentido, o indivduo

    submeter-se-ia a uma rede de direitos e deveres coextensivos a esta instncia unificadora da sociedade,antes dividida e agora pacificada, a que se denomina Estado.

    Para ns, toda essa viso da Lei, do Bem comum e da Obedincia a um plano de organizao de direitos e

    deveres que normatizariam as condutas e levariam a uma pretensa ordem universal, numa palavra, tudo o

    que constitui a atitude Moral propriamente dita na relao do indivduo com a sociedade, precisa ser

    claramente distinguida de uma outra atitude, a postura a que chamamos tica.

    Contrariamente ao modo asctico e moral de ser, o modo de vida tico instiga, no a obedincia a um

    conjunto de regras e valores prescritos pelo poder alheio, interiorizando formas e incorporando atitudes

    vindas de fora para podermos comungar das benesses do poder ou de vantagens que so, no final das

    contas, aguilhes. No o modo de ser dos bons sujeitos legisladores guardies do Juzo e da Lei abstrata,

    do Bem ou dos valores transcendente vida cotidiana.

    a partir de outro lugar que no o da dominao e da sujeio, a partir de um topos ocupado pela

    potncia de afirmar as prprias diferenas constituintes dos seres ou ponto de vista da vida em processo de

    diferenciao, que o modo de vida tico se instala. O modelo da tica no o do livre arbtrio para o Bem a

    partir da livre recusa do Mal. Bem e Mal so fices fundadas numa mesma iluso de conscincia. E essa

    suposta liberdade nada mais do que a ignorncia das causas que determinam tal escolha ou recusa. A

    originalidade de Espinosa no consistiu em afirmar que o Mal, enquanto substncia, no tinha realidade,

    mas justamente aquilo que o Ocidente mais cultuou: o prprio Bem, como substncia do ser, tambm

    perdeu toda realidade. Mas, como diria Nietzsche, para alm do Bem e do Mal no significa para alm do

    bom e mau. Estes adjetivos qualificam agora no apenas atitudes e conseqncias, mas tambm e

    sobretudo tipos ou modos de vida, maneiras de existir. Mau tudo aquilo que se serve das paixes tristes,

    da tristeza mesma para firmar e conservar seu poder ou separar as potncias da vida de suas condies de

    afirmao, isto , do que podem. Assim so maus, para Espinosa, no apenas o tirano que s consegue

    reinar sobre a impotncia alheia, mas tambm o prprio escravo que alimenta a necessidade do tirano como

    seu provedor, bem como um terceiro tipo que vive da misria dos dois e extrai dela um poder espiritual: o

    sacerdote. Eis a trindade do tirano, do escravo e do sacerdote, as trs cabeas do ressentimento que

    estariam na base de todo poder. Sobre essa trade, Epicuro, Lucrcio, Espinosa e Nietzsche dizem

    praticamente a mesma coisa. Denunciam tudo o que precisa da tristeza, da impotncia e da misria alheias

    para triunfar.

    A tica, ao contrrio, se funda num modo de viver sinalizado pela alegria. O problema tico parte da

    compreenso de que, como diria Espinosa, tudo na natureza participa de uma ordem comum de encontros.

    Bons e maus encontros, eis o objeto da problematizao tica. Tudo se compe e decompe na natureza do

    ponto de vista das partes que a constituem. Assim, para explicar a natureza do mau, Espinosa lana mo de

    um modelo no moral, mas alimentar ou natural. O mau sempre um mau encontro que, como a ingestode um veneno, decompe parcial ou totalmente os elementos que esto sob a relao caracterstica que

    constitui o nosso ser existente e diminui ou destri nossa potncia de existir, agir e pensar, nos entristecendo

    ou matando. O bom seria como um alimento que se compe com o nosso corpo constituindo um bom

    encontro, na medida que aumenta nossa potncia de existir, de agir e pensar, produzindo

    consequentemente afetos de alegria.

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    Mas, como um alimento ou um veneno, nem tudo que mau num momento, para um indivduo, num

    determinado lugar, o necessariamente se um dos elementos no encontro variar, como o lugar, o tempo, o

    indivduo, corpo ou idia. Desse modo, o que me envenena num tempo ou lugar, pode me alimentar noutro

    tempo ou lugar, bem como o que alimento para um pode ser veneno para outro. O mau no proibio, a

    no ser para o homem prisioneiro da conscincia e da imaginao. O mau significa sempre um mau

    encontro que decompe minha natureza por ignorar ou no partilhar suas leis; no leis humanas ou divinas

    promulgadas por um Senhor como palavras de ordem ou sentenas, mas leis da natureza que simplesmente

    nos fazem compreender o modo como a prpria natureza funciona por si, a partir de si e para si e que nos

    afetam tambm na medida em que somos parte da prpria natureza e agimos e pensamos por estasmesmas regras.

    , portanto, a partir de uma atitude bem diversa que se promove uma Maneira de Viver conforme critrios de

    conduta imanentes ao prprio ser do desejo, ser da vida, ser da sociedade, ser da natureza (tudo isso uma

    e a mesma coisa no ser, no obstante sua distino modal ou diferena de regime). Um conjunto de

    diferenas singulares livres no se deixa reduzir ou atrelar em relaes contratuais, legais ou institucionais,

    as quais buscariam simplesmente silenciar os conflitos sociais ou deles extrair mais valia. Por no comportar

    mais a idia de um indivduo atomizado - cindido entre a impotncia de afirmar e a obedincia redentora - ou

    do eu pessoal - prisioneiro de atributos constituintes do sujeito como instncia moral ou racional - o conceito

    de uma cidadania liberadora pensado a partir de uma multiplicidade de singularidades como potncias

    autnomas ou com tendncia autonomia. O campo social passa a ser compreendido ou constitudo por um

    conjunto de foras em relao e no mais como um agregado de formas atomizadas, fechadas em limites

    morais e capturadas por valores utilitrios ou finalistas. A vontade social torna-se propriamente plural, um

    autntico campo de multiplicidades virtuais ou potncias de atualizao (com repulsa a unificaes e

    fechamentos totalitrios), torna-se verdadeiramente autnoma e aberta.

    Como, enquanto cidado, tornar-se uma potncia pluralista, um agenciador de relaes civis intensas e

    realmente solidrias ?

    Tudo aquilo que por si s ou apenas a partir de si - de modo imanente - cria e condiciona modos de

    composio entre indivduos e elementos que lhe atravessam, usando como critrio seletivo do que se

    passa em sociedade a capacidade de afirmao e diferenciao, incorporada em cada acontecimento,

    constitui um filtro ou um plano de composio gerador de realidades livres, constitui um campo de atrao e

    consistncia como potncia autnoma.

    No mais profundo do nosso ser e na mais superficial das nossas superfcies de ser, somos no uma unidade

    ou identidade formal como um eu, mas multiplicidades singulares sem sujeito. No entanto, quanta potncia,

    quanta diferenciao, quanta generosidade nesses modos prprios e singulares de ser ! Os laos que

    estabelecemos conosco, com outrem, com as multiplicidades sociais que se atualizam e nos afetam, enfim

    com a natureza, so catalizadores de acontecimentos, so condies de encontros e de transmisses de

    realidades, so o arco para flechas que trazem o futuro, mas que redimem o passado e fazem do presente

    um verdadeiro campo de experimentao e de produo inocente de realidade.

    Somos potncias individuantes que selecionam e extraem destes encontros ou relaes o que realmente

    comunga na pura afirmao de tudo o que difere, criando singularidades intensificadoras da vida, como se

    atingssemos um duplo do real em cada acontecimento, um real virtual que inflama a existncia atual e

    acelera os processos que precipitam a gerao do novo. Somos irredutveis a formas mdias de igualizao.Participamos na afirmao, portanto, de diferenas criadoras que propiciam a expanso da vida em

    sociedade, superando limites que buscamos ultrapassar.

    Chamamos tica no a um dever para com a Lei ou o Bem, nem tampouco a um poder de segregar ou

    distinguir o puro do impuro, o joio do trigo, o Bem do Mal, mas a uma capacidade da vida e do pensamento

    que nos atravessa em selecionar, nos encontros que produzimos, algo que nos faa ultrapassar as prprias

    condies da experincia condicionada pelo social ou pelo poder, na direo de uma experincia liberadora,

    como num aprendizado contnuo. Fazendo coexistir as diferenas, conectando-as ao acaso dos espaos e

    dos tempos que as misturam e tornam seus encontros, ao mesmo tempo, contingentes e necessrios num

    plano comum de natureza adjacente ao campo social, (pois a vida no existe fora dos encontros e dos

    acontecimentos que lhe advm), afirmamos o que h de fatal nestes encontros, algo como o sentido

    superior de tudo o que . Pois querendo o acontecimento no prprio acontecimento, que liberamos algo

    que se distingue dos simples fatos cotidianos.

    A apropriao e criao de regras e cdigos que comandam a interpretao dos acontecimentos pelos

    intrpretes do poder, seja do ponto de vista poltico, econmico ou miditico, impem o que se deve pensar,

    como se deve agir e em que ou quem acreditar, sob a guilhotina dos prmios ou dos castigos por Bem ou

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    , , ,

    questo. A inveno dos fatos - ou do que deve ser destacado como histrico ou possuindo sentido

    relevante, como o que faz a notcia - sempre dada no modo como o poder se apodera dos acontecimentos

    e lhes confere significado, na maneira como essa verdade produzida pelo poder, a verdade do poder.

    Encontramos algo diferencial dos fatos nos acontecimentos de uma sociedade e naquilo mesmo que nos

    acontece, pela simples razo de vivermos em sociedade, sendo capazes de experimentar por ns mesmos

    e apreender aquilo que constitui os acontecimentos, do mesmo modo que constitumos os acontecimentos.

    Tornamo-nos acontecimentos! Encontramos algo que duplica nossa experincia sensvel e casual em

    vivncia necessria e experincia do pensamento, isto , algo como sentido ativo que nos leva a contrair e

    antecipar o futuro, ganhando velocidade e liberdade. Assim se constitui uma cultura nmade e uma memria

    virtual do futuro que nos distancia do presente cristalizado e faz fugir todo poder paralisador da vida. Atravs

    do sentido vivo em devir que no se deixa fixar ou capturar quando rebatido sobre o plano dos fatos ou

    das significaes dominantes do poder constitudo.

    Deste ponto de vista, como poder-se-ia formar autnticos agentes sociais, isto , verdadeiros modificadores

    ou criadores de novas condies sociais de existncia? Como formar cidados livres no pleno sentido da

    palavra ?

    Como diria Nietzsche, sem o No destruidor do leo, no geramos a condio para o grande Sim criador da

    criana instaurar uma roda que gira por si mesma, um novo comeo, uma nova inocncia. Por isso a

    necessidade da crtica. preciso comear por denunciar as armadilhas que nos reservam os valores

    estabelecidos pelos poderes que se descolam e se voltam contra o campo social. Os Estados enquanto

    mquinas de submeter o conjunto das relaes sociais, correspondem a investimentos que a prpria

    sociedade faz para se manter coesa e que acabam voltando-se contra ela mesma.

    Somos capazes de inventar outros modos de relaes sociais ou estamos fadados ao tdio e repetio do

    enfadonho ? Para responder esta questo, precisamos antes problematizar a natureza das relaes que

    constituem o tecido atual das nossas sociedades e o modo como so reproduzidas. Somos prisioneiros de

    um "pr-conceito" ou de uma imagem que subjaz nas mais recnditas camadas da nossa histria e do

    inconsciente coletivo e que coexiste no modo atual de transmitir contedos materiais, energticos ou

    espirituais. Somos prisioneiros do mito que reza que toda relao social pressupe uma troca concretizada

    por meio de um equivalente, isto , por meio de um valor abstrato capaz de axiomatizar ou igualizar

    qualquer relao, destituindo-a de toda e qualquer singularidade que possa diferenci-la e afirm-la como

    um valor autnomo insubstituvel. Assim, no s os produtos materiais transformaram-se em mercadorias.So todos os processos espirituais de singularizaes e subjetivaes humanas que caem na axiomtica

    delirante do campo econmico - j que a axiomatizao primeira a do tempo - e que as reduzem todas a

    elementos com unidades mnimas equivalentes e permutveis entre si. No o Dinheiro que constitui a

    forma privilegiada da mercadoria no capitalismo. o modo de produo de subjetividade ou dos processos

    de subjetivao que constitui a condio fundamental geradora de todos os estofos ou substratos para a

    existncia e a reproduo bem sucedida do prprio Capital.

    A subjetividade a mercadoria por excelncia em nossas sociedades. Ela a criao e a reproduo, pelo

    poder, de um territrio que no pra de faltar a si mesmo, alimentando assim a infindvel insuficincia de

    ser: sempre preenchida pelo "poder" de compra, sempre frustrada pela iluso insupervel do consumo ideal

    que escapa no instante mesmo em que o atingimos; sempre reproduzida em sua falta territorial, abismal

    carncia, impotncia real de conquista da moeda que tudo pode mas que sempre cava mais fundo, pela sua

    dupla face esquizofrnica, o buraco da dvida existencial. Fenda intransponvel.

    Estamos em novos ambientes. O capitalismo fabricou para si atmosferas ainda mais complexas. Como diria

    Deleuze, no mais a toupeira disciplinar, mas a serpente fluida do controle. A subjetividade j no

    produzida simplesmente pelas velhas mquinas disciplinares. As mquinas a vapor e de carbono deram

    lugar s mquinas de silcio, de terceira gerao. O modus operandi do poder disciplinar, fechado e

    segmentarizado no tempo e no espao, como descreveu Foucault, cedeu lugar para as cifras magnticas

    que conectam ou desencaixam fluxos de energia em espao aberto e controle ininterrupto.

    Tanto o poder quanto a produo do seu estofo, a subjetividade, se realizam atualmente por modulao de

    fluxos sob controle aberto, infinitamente permutveis e em comunicao permanente, como modo de

    produo de canais e mais valia de canais, de fluxos e mais valia maqunica, de idias e mais valia de saber

    e poder. Controle num espao tornado aberto simultaneamente no interior e no exterior e em velocidadeabsoluta no tempo que nos constitui como cifras simultaneamente comunicantes.

    No obstante, do mesmo modo que o poder tornou-se mais sutil com suas novas mquinas e formas de

    exerccio, a vida, os devires ativos da vida tambm encontram ocasies inditas, inauditas e poderosas para

    reagir, criar, fazer passar o inesperado, o ar puro de novos devires e a potncias de novas composies no

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    seio mesmo de suas mquinas cibernticas de controle.

    A vida em ltima instncia no se deixa trocar nem avaliar a partir de uma axiomatizao abstrata das

    transmisses de energia. Pois ela quem avalia e faz passar no modo da intensidade excedentes no

    mensurveis, excessos pelos quais se torna possvel a constituio de novos tipos de relaes. Pois, na

    verdade, a natureza ou a prpria vida, que um modo de produo da natureza, quem produz realidade e

    portanto, por esta capacidade de gerar o excesso, torna ao mesmo tempo possvel e necessrio novos

    modos de se relacionar em sociedade. Essas novas maneiras de ser ou modos de relao se caracterizam

    pela capacidade de fazer passar o excedente no codificvel, as intensidades no mensurveis, as

    quantidades de energia no axiomatizveis.

    Podemos fazer de ns mesmos um elemento sempre diferencial e diferenciante, gerador de novos devires,

    um agente imperceptvel porque excntrico e em mutao constante, senhor das modificaes que fazem

    das relaes verdadeiras alianas propulsoras de uma vida social em plena expanso. S pelo excesso nos

    tornamos aptos a dar e ser generosos. E s nestas condies poderemos formar cidados aptos a construir

    um campo de consistncia e composio de tecidos sociais libertrios. Homens realmente livres - com fora

    suficiente para resistir e conjurar as ingerncias de poderes aliengenas ao campo de imanncia de uma

    sociedade civil - livres de um modelo de acumulao e consumo de energia mortificada e de produo de

    relaes de troca ou de transmisso abstratas, que separam os homens de suas prprias capacidades de

    agir e de pensar.

    Livres por estarem ligados a sua prpria potncia de produzir e afirmar seus devires criadores. a partir do

    modo como se produz e transmite energia, que no mais parasita, mas que estabelece autnticas

    simbioses, que as condies de existncia da vida podero encontrar seu meio de expanso e expresso da

    alegria, efeitos do aumento da capacidade de agir e pensar da Terra, na Terra, pela Terra.

    Referncias Bibliogrficas

    Deleuze, Gilles - Controle e Devir', in Conversaes, Ed. 34, SP

    Epicuro - Epicuro e les picuriens (textes choisis), PUF, Paris

    Espinosa, Baruch de - Tratado Teolgico Poltico, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Maia, Portugal

    Espinosa, Baruch de - L'thique, Gallimard, Paris.

    Espinosa, Baruch de - Tratado Poltico, Os Pensadores, Ed. Abril, SP

    Foucault, Michel - Microfsica do Poder, Ed. Graal, RJ

    Foucault, Michel - Vigiar e Punir, Vozes, Petrpolis.Fuganti, Luiz - Sade, desejo e Pensamento, Hucitec, SP

    Hobbes, Thomas - Leviat, Os Pensadores, Ed. Abril, SP

    La Botie, Etienne de - Discurso da servido voluntria, Brasiliense, SP

    Lucrcio - Lvcrecio De rerum natura, Bosch, Barcelona.

    Nietzche, Friedrich - Alm do Bem e do Mal, Cia. das Letras, SP

    Nietzche, Friedrich - Genealogia da Moral, Ed. Brasiliense, SP

    Reich, Wilhelm - Psicologia de Massas do Fascismo, Martins Fontes, SP

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