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Copyright © 2012 by Paulus Gerdes www.lulu.com http://www.lulu.com/spotlight/pgerdes

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Paulus Gerdes

ETNOMATEMÁTICA

CULTURA, MATEMÁTICA, EDUCAÇÃO

Colectânea de textos 1979-1991

Reedição

Moçambique 2012

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Título: Etnomatemática – Cultura, Matemática, Educação: Colectânea de Textos 1979-1991 1ª edição: Projeto de Investigação Etnomatemática, Instituto Superior

Pedagógico / Universidade Pedagógica, Maputo, Moçambique, 1991

Reedição: Instituto Superior de Tecnologias e Gestão (ISTEG),

Belo Horizonte, Boane, Moçambique, 2012 Autor: Paulus Gerdes, C. P. 915, Maputo, Moçambique ([email protected]) Impressão e distribuição: www.lulu.com http://stores.lulu.com/pgerdes http://www.lulu.com/spotlight/pgerdes Copyright © 2012 Paulus Gerdes

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CONTEÚDO

página

Apresentação da reedição (2012) 9

Apresentação da primeira edição (1991)

10

Prefácio de Ubiratan D’Ambrosio

11

1 Investigação etnomatemática: preparando uma resposta a um dos maiores desafios à educação matemática em África (1991)

15

Contexto educacional e sociocultural 15 Um dos maiores desafios à educação matemática 17 O Projeto de Investigação Etnomatemática em

Moçambique

17

2 Sobre o subdesenvolvimento matemático e a sua superação (1985)

25

Educação e investigação matemáticas universitárias 25 Ensino geral da matemática 29 A introdução da ‘Nova Matemática’ em África 30 Críticas e tentativas de adaptação 33 Críticas que vão ainda mais longe 35 Bibliografia

39

3 Sobre o conceito de etnomatemática (1989) 45 Etnógrafos sobre etnociência 46 Génese do conceito de etnomatemática no seio de

matemáticos e professores de matemática 47

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6

Conceito, acento ou movimento? 49 Notas 53 Bibliografia

55

4 Como reconhecer pensamento geométrico escondido: uma contribuição para o desenvolvimento da antropologia da matemática (1985)

61

Confrontação 61 Introdução 62 Primeiro exemplo 63 Segundo exemplo 67 Terceiro exemplo 68 Um método para reconhecer pensamento

geométrico escondido 71

Valor cultural e pedagógico 72 Referências

72

5 Sobre elementos matemáticos nos ‘Sona’ da tradição Tchokwe (1989)

75

Introdução: a tradição de desenhos dos Tchokwe 75 Análise e reconstrução de elementos matemáticos 76 a. Simetria e monolinearidade 77 b. Classes e algoritmos geométricos 79 c. Regras para a construção de sona

monolineares 80

Potencial educacional e matemático 81 Observações finais 85 Referências

85

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6 Sobre cultura, pensamento geométrico e educação matemática (1986)

89

Alguns aspectos culturais e sociais da educação matemática em países do Terceiro Mundo

90

Para uma reafirmação matemático-cultural 93 Exemplos de ‘consciencialização cultural’ de

futuros professores de matemática 95

a. Estudo de construções axiomáticas alternativas da geometria Euclidiana na formação de professores

95

b. Uma construção alternativa de polígonos regulares

99

c. De botões entrelaçados ao ‘teorema de Pitágoras’

103

d. De armadilhas de pesca tradicionais a funções circulares alternativas, futebol e a geração de poliedros (semi)regulares

106

Observações finais 113 Notas 114 Referências

115

7 Um motivo decorativo amplamente difundido e o Teorema de Pitágoras (1987)

119

Um motivo decorativo amplamente difundido 120 Descobrir o teorema de Pitágoras 121 Uma primeira demonstração 125 Uma infinidade de demonstrações 127 Teorema de Pappus 128 Exemplo 129 Notas 130 Referências

131

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8 Condições e estratégias para uma educação matemática emancipatória nos países subdesenvolvidos (1982)

133

Ponto de partida: A educação matemática não pode ser neutral

134

Educação matemática para emancipação. Como? 135 Problematizando a realidade em situações de sala de

aula 135

Criar confiança 139 A. Estratégias culturais 140 B. Estratégias sociais 146 C. Estratégias individuais-colectivas 147 Observações finais 149 Referências 150 9 Sobre a origem histórica do conceito de número

(1979) 151

Origem histórica 151 Historicidade 152 Desenvolvimento da noção de número 153 Relações entre os números 157 Considerações finais

161

Teses de doutoramento concluídas por Moçambicanos em etnomatemática ou educação matemática

163

O autor 165 Livros do mesmo autor 167

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Apresentação da reedição

A primeira edição do livro Etnomatemática: Cultura,

Matemática, Educação, publicada em 1991 pelo Projeto de Investigação Etnomatemática do então Instituto Superior Pedagógico (atual Universidade Pedagógica), encontra-se esgotada já faz bastante tempo.

Na presente reedição reproduzem-se os primeiros sete dos oito capítulos do livro. O oitavo capítulo Um método geral para construir polígonos regulares, inspirado numa técnica moçambicana de entrelaçamento não se reproduz. Um resumo do mesmo está incluído no capítulo 6.

Incluíram-se, no entanto, dois capítulos novos. O capítulo 8 é o texto de uma palestra proferida, em 1982, em Paramaribo (Suriname), intitulado Condições e estratégias para uma educação matemática emancipatória nos países subdesenvolvidos. O capítulo 9 é o texto duma palestra realizada, em 1979, em Maputo (Moçambique), intitulado Sobre a origem histórica do conceito de número. Com a inclusão destes dois textos pretende-se situar melhor o contexto da emergência de reflexões sobre cultura, matemática e educação em Moçambique.

No anexo apresenta-se a lista de teses de doutoramento concluídas por Moçambicanos em etnomatemática ou educação matemática.

Paulus Gerdes

25 de Junho de 2012 Dia de Independência Nacional

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Apresentação da primeira edição

Em Etnomatemática: Cultura, Matemática, Educação

apresenta-se, em língua portuguesa, uma colectânea de conferências proferidas e artigos publicados em livros e revistas internacionais no período abrangido entre 1985 e 1991. Neles se reflete sobre educação (e) matemática nos contextos culturais do Terceiro Mundo, de África e de Moçambique em particular. Outros textos do mesmo período serão recolhidos nas colectâneas Etnomatemática: Simetria e Cultura e Etnomatemática e a História da Matemática em África.

Agradeço ao ‘pai da etnomatemática’, Professor Ubiratan D’Ambrosio da Universidade Estadual de Campinas (Brasil) a gentileza de ter autorizado a reprodução da sua introdução numa outra colectânea de artigos da minha autoria, publicada em 1989 pela Revista BOLEMA da Universidade Estadual Paulista (Rio Claro, Brasil); agradeço à drª Joaquina Silva, docente do Departamento de Matemática na delegação do Instituto Superior Pedagógico na Cidade da Beira, a tradução dos capítulos 4, 5 e 6; ao Sr. Ângelo Jorge, do Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação (Maputo), a tradução do capítulo 2; aos colegas do Gabinete de Revisão Linguística da Faculdade de Línguas do Instituto Superior Pedagógico a revisão desta colectânea e à secretária Inês Vilanculos a dactilografia dos capítulos 4, 5 e 6.

Dedico esta colectânea à memória dos presidentes Eduardo Mondlane (1920-1969) e Samora Machel (1933-1986), dirigentes históricos da luta pela libertação de Moçambique, cujas reflexões sobre história, educação e cultura muito inspiraram o meu trabalho de investigação.

Maputo, 19 de Outubro de 1991

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Prefácio

Escrever a introdução desta colectânea de trabalhos de Paulus Gerdes é uma honra e um privilégio.

Paulus Gerdes desponta como uma das figuras de proa no que chamamos Etnomatemática. Ele nos dá elementos de natureza histórica, cognitiva e pedagógica que apoiam o aparecimento desse novo campo de interesse académico.

Ao introduzir uma seleção de textos sobre etnomatemática é interessante tecer algumas considerações de natureza mais geral e que servirão sobretudo para definir o contexto teórico da abordagem, que reflete uma postura em relação ao estudo da Matemática e das ciências em geral, à sua História e ao seu ensino. É importante reconhecer na Etnomatemática um programa de pesquisa que caminha juntamente com uma prática escolar.

Não seria necessário tentar uma definição ou mesmo conceituação de Etnomatemática nesse momento. Mais como um motivador da postura teórica, utilizamos como ponto de partida a etimologia do termo. ETNO é hoje aceito como algo muito amplo, referente ao contexto cultural, e portanto inclui considerações como linguagem, jargão, códigos de comportamento, mitos e símbolos. MATEMA é uma raiz difícil, que vai na direção de explicar, de conhecer, de entender. E TICA vem sem dúvida de techné, que é a mesma raiz de arte e de técnica. Assim, poderíamos dizer que ETNOMATEMÁTICA é a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender, nos diversos contextos culturais. Nessa concepção, nos aproximamos de uma teoria do conhecimento ou como é modernamente chamada, uma teoria de cognição.

Somos assim levados a identificar técnicas ou mesmo habilidades e práticas utilizadas por distintos grupos culturais na sua busca de explicar, de conhecer, de entender o mundo que os cerca, a realidade a eles sensível, e de manejar essa realidade em seu benefício e no benefício de seu grupo. Naturalmente nos situamos assim no

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contexto etnográfico. O próximo passo é a busca de uma fundamentação teórica, de um substrato conceitual no qual essas técnicas, habilidades e práticas se apoiam. Aí nos ajuda muito a análise histórica e é por isso que Etnomatemática e História das ciências aparecem como áreas muito próximas nesse programa. Dentre essas várias técnicas, habilidades e práticas encontram-se aqueles que utilizam processos de contagem, de medida, de classificação, de ordenação e de inferência e que permitiram a Pitágoras identificar o que seria a disciplina científica que ele chamou Matemática. Naturalmente, essa tentativa de classificar estilos de abordagem da realidade, da natureza, é tipicamente grega e assim Matemática como a concebemos nos nossos sistemas escolares resulta do pensamento grego. Outros sistemas culturais desenvolveram e desenvolvem técnicas, habilidades e práticas de lidar com a realidade, de manejar os fenómenos naturais, e mesmo de teorizar essas técnicas, habilidades e práticas, de maneira distinta, embora os meios de fazer isso encontrem uma universalidade decrescentemente hierarquizada de processos de contagem, medições, ordenações, classificações e inferências. Isto é, grupos culturalmente diferenciados como grupos de adolescentes de uma comunidade indígena e jovens profissionais de uma cidade industrializada explicam o fenómeno da chuva de maneira absolutamente distinta, inclusiva quantificando-o de outro modo. Igualmente, ao propormos a crianças de comunidades distintas, na faixa de 10 anos, a construção de um papagaio, que envolve medições, contagens e outras técnicas, a abordagem será completamente diferente. Da mesma maneira, ao propormos um problema como o controle de um sistema eléctrico de grande potência a engenheiros e a matemáticos, a abordagem será também diferente. Essas diferenças vão além da mera utilização de técnicas, habilidades e práticas distintas, refletindo posturas conceituais distintas e enfoques cognitivos distintos.

Ao reconhecer essas diferenças, ao reunir sua vivência em vários mundos, suas experiências em vários níveis de desenvolvimento, Paulus Gerdes procura, nos seus trabalhos, exemplificar como diversas manifestações matemáticas encontram seu ninho cultural entre o povo que sente o porque da utilização desse instrumental, povo que necessita esse instrumental para sua plena realização cultural, económica e social. Etnomatemática é tudo isso.

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1989 Ubiratan D’Ambrosio Professor Catedrático de Matemática e Pró-Reitor de Desenvolvimento Universitário Universidade Estadual de Campinas Brasil

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Capítulo 1

Investigação etnomatemática:

preparando uma resposta a um dos maiores desafios à educação matemática em África *

__________ * Comunicação apresentada no Simpósio Educação Matemática

em África para o Século 21, realizado no dia 24 de Agosto de 1991, durante o Terceiro Congresso Pan-Africano de Matemática, Nairobi (Quénia).

__________ Contexto educacional e sociocultural

Três documentos importantes sobre os desafios ao Sul em geral e à educação em África em particular foram publicados em 1990: * “O desafio ao Sul”, relatório da Comissão Sul, dirigida pelo

antigo Presidente da Tanzânia, Julius Nyerere; 1 * “Reflexões Africanas sobre as Perspectives da Educação para

Todos”, uma seleção de contribuições solicitadas para a Conferência Regional sobre Educação para Todos, Dakar, 27-30 de Novembro de 1989; 2

* “Educar ou Morrer: o impasse e as perspectivas de África”, estudo dirigido por Joseph Ki-Zerbo. 3 Estes estudos profundos delineiam o contexto educacional e

sociocultural que certamente deve ser tomado em conta ao refletir sobre “Educação Matemática em África para o Século 21”.

“O desafio ao Sul” critica as estratégias de desenvolvimento que minimizam a importância dos factores culturais. Aquelas estratégias

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suscitam apenas a indiferença, a alienação e a discórdia social. As estratégias de desenvolvimento seguidas até hoje em dia “não conseguiram as mais das vezes utilizar as enormes reservas de sabedoria tradicional, de criatividade e capacidade de iniciativa existentes nos países do Terceiro Mundo”. Em contrapartida, os mananciais de cultura do Sul deviam alimentar o processo de desenvolvimento (p. 55).

Um aspecto importante de “Reflexões Africanas...” consiste no facto de que dois temas recorrem persistentemente em todas as contribuições: a tónica sobre a crise da(s) cultura(s) contemporânea(s) africana(s) e o tema das línguas africanas (como veículo de cultura e meio de educação). O ponto fulcral da crise das culturas africanas reside na questão da identidade cultural africana (p. 9). A identidade cultural de um povo (inclusive a consciência desta identidade) é vista como trampolim para o esforço de desenvolvimento (p. 10). África precisa de uma educação-orientada-pela-cultura, que pode assegurar a sobrevivência das culturas africanas, salientando a originalidade de pensamento e encorajando a virtude da criatividade (p. 15). A apreciação científica da experiência e dos elementos culturais africanos é considerada “um caminho certo para poder conseguir que os africanos vejam a ciência como meio de compreender as suas culturas e como um instrumento para servir e fazer progredir essas culturas” (p. 23).

“Educar ou Morrer...” mostra que, atualmente, o sistema educacional africano favorece o consumo estrangeiro sem gerar uma cultura que seja compatível com a civilização original e verdadeiramente promissora. Inadaptado e elitista como é, o sistema educacional existente alimenta a crise ao produzir pessoas social e economicamente inadaptadas, e ao negligenciar sectores inteiros da população ativa. Educação para Todos, na análise de Ki-Zerbo, devia constituir uma tentativa de encorajar o desenvolvimento de iniciativa, curiosidade, consciência crítica, responsabilidade individual, respeito por regras colectivas, e gosto pelo trabalho manual. África necessita dum “sistema educacional novo, corretamente enraizado tanto na sociedade como no meio ambiente, e, por isso, capaz de gerar a autoconfiança da qual a imaginação brota” (p. 104).

Recordando-nos do adequado provérbio africano “Quando perdido, é melhor voltar a um ponto familiar antes de se atirar para a frente”, Ki-Zerbo sublinha que “África se encontra em

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dificuldades sérias, não porque o seu povo não tenha fundamentos para se manter de pé, mas porque os seus fundamentos continuam, desde o período colonial, a ser removidos debaixo dele” (p. 82). Provavelmente isto é particularmente verdadeiro no caso da Matemática. Aqui reside um dos principais desafios aos educadores matemáticos de África. Um dos maiores desafios à educação matemática

Os países africanos vêem-se confrontados com o problema de ‘níveis baixos’ de aproveitamento na educação matemática. O medo pela matemática é amplamente difundido. Muitas crianças (e professores também?) sentem a matemática como uma disciplina bastante estranha e sem utilidade, importada de fora de África.

A herança 4, as tradições e as práticas matemáticas de África devem ser ‘integradas’ ou ‘incorporadas’ no currículo. 5 Tanto no Norte como no Sul, compreende-se cada vez mais que é necessário multiculturalisar o currículo de matemática para poder melhorar a qualidade do ensino, para poder aumentar a autoconfiança social e cultural de todos os alunos (cf. por exemplo D’Ambrosio, Bishop, Mellin-Olsen, Zaslavsky). 6 Como responder a este desafio? O Projeto de Investigação Etnomatemática em Moçambique

Ki-Zerbo salienta (p. 87) que toda a renovação educacional em África deve ser baseada na investigação. Este apelo é, de facto, necessário, uma vez que se verifica, segundo Hagan em “Reflexões Africanas...” que “em África existe geralmente uma falta surpreendente de investigação para sustentar propostas para reformas educacionais” (p. 24). É no contexto de procurar uma resposta a este desafio à educação matemática em África, que se iniciou a investigação etnomatemática em Moçambique. 7

Estudos etnomatemáticos analisam: 8

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* tradições matemáticas que sobreviveram à colonização e atividades matemáticas na vida diária das populações, procurando possibilidades de as incorporar no currículo;

* elementos culturais que podem servir como ponto de partida para fazer e elaborar matemática dentro e fora da escola. Uma vez que a maioria das tradições ‘matemáticas’ que

sobreviveram à colonização e das atividades ‘matemáticas’ na vida diária do povo moçambicano não é explicitamente matemática, isto é, a matemática está ‘escondida’, o primeiro objectivo do Projeto de Investigação Etnomatemática consiste em ‘descobrir’ esta matemática ‘escondida’.

Os primeiros resultados dessa ‘descoberta’ estão incluídos no livro “Sobre o Despertar do Pensamento Geométrico” (1985) 9 e ligeiramente alargados em “Etnogeometria: Contribuições da Antropologia cultural para com a Génese e a Didática da Geometria” (1991). 10

Em “Sobre Cultura, Matemática e Desenvolvimento Curricular em Moçambique” (1986) 11 e “Sobre Cultura, Pensamento geométrico e Educação Matemática” (1988) 12 resumimos a nossa experimentação com a incorporação de elementos culturais africanos tradicionais na educação matemática. O segundo artigo confronta o preconceito difundido sobre o conhecimento matemático, de a matemática ser ‘culturalmente neutra’, apresentando construções alternativas de ideias geométricas euclidianas desenvolvidas a partir de tradições culturais de Moçambique. Estabelecendo também o poder educacional destas construções, o artigo ilustra a metodologia de ‘consciencialização cultural’ no contexto da formação de professores.

Nos artigos “Um padrão decorativo difundido e o Teorema de Pitágoras” (1988) 13 e “Quantas demonstrações do Teorema de Pitágoras existem?” 14 e mais elaboradamente no livro “Pitágoras terá sido Africano? Um Estudo em Cultura e Educação Matemática: Pontos de Partida Culturais” (1991) 15 mostramos como ornamentos e artefactos africanos diversos podem ser usados para criar um contexto rico para a (re)descoberta e demonstração do chamado Teorema de Pitágoras e de ideias e proposições com ele relacionadas.

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Em “Geometria dos SONA: História, Educação, Recreação, Desenho Artístico e Potencial Científico” (1991), 16 tenta-se reconstruir componentes matemáticos da tradição de desenho dos Tchokwe (Angola) e explorar o potencial educacional, artístico e científico da mesma. Num artigo anterior “Sobre possíveis usos de desenhos tradicionais na areia de Angola na sala de aula de matemática” (1988) 17 já analisámos algumas possibilidades de uma incorporação educacional dessa tradição. No artigo “Encontre as Figuras que Faltam” (1988) 18 e no livro “Lusona: Recreações Geométricas de África” (1991) 19 apresentam-se divertimentos matemáticos que se inspiram na geometria da tradição de desenho na areia. Para crianças (idade 10-15) elaborou-se o livrinho “Vivendo a matemática: Desenhos de África” (1990). 20 Uma vista panorâmica desta linha de investigação é dada em “Sobre Elementos Matemáticos na Tradição ‘Sona’ dos Tchokwe” (1990). 21

Nos últimos anos jovens docentes 22 que regressaram do exterior onde fizeram os seus estudos superiores e uma série de estudantes tanto da Universidade Eduardo Mondlane (Maputo) como do Instituto Superior Pedagógico (Maputo e Beira), interessaram-se pela investigação etnomatemática e iniciaram trabalhos de pesquisa. A formação em investigação etnomatemática será incluída em ambos os cursos de Licenciatura em Educação Matemática: Educação Matemática do Ensino Primário (Beira) e Educação Matemática do Ensino Secundário (Maputo). Com a expansão desta linha de investigação espera-se poder contribuir para a preparação de uma reforma curricular que garanta que a educação matemática no século 21 em Moçambique de facto “se sintonize com as tradições africanas e com o meio ambiente sociocultural”. 23 Notas 1. O desafio ao Sul, Oxford University Press, Oxford, 1990, 325 p.

(em Inglês); Edições Afrontamento, Porto, 1991, 318 p. (em Português).

2. African Thoughts on the Prospects of education for All, UNESCO-UNICEF, Dakar / Abidjan, 1990, 193 p.

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3. Educate or Perish: Africa’s Impass and prospects, UNESCO-UNICEF, Dakar / Abidjan, 1990, 109 p.

4. Cf. P. Gerdes, On the History of Mathematics in subsaharan Africa, comunicação apresentada no Terceiro Congresso Pan-Africano de Matemática, Nairobi, 1991.

5. Cf. por exemplo.: * Ale, S. (1989): Mathematics in rural societies, in: C. Keitel,

P. Damerow, A. Bishop, P. Gerdes (coord.), Mathematics, Education, and Society, UNESCO, Paris, 35-38.

* Doumbia, S. (1989): Mathematics in traditional African games, in: C. Keitel, P. Damerow, A. Bishop, P. Gerdes (coord.), Mathematics, Education, and Society, UNESCO, Paris, 174-175.

* Eshiwani, G. (1979): The goals of mathematics teaching in Africa: a need for re-examination, Prospects, UNESCO, Paris, IX(3), 346-352.

* Jacobsen, E. (1984): What goals for mathematics teaching in African schools?, Educafrica, UNESCO, Dakar, Vol. 10, 118-134.

* Langdon, N. (1989): Cultural starting points for mathematics: a view from Ghana, Science Education Newsletter, British Council, London, Nº 87, 1-3.

* Musa, M. (1987): The mathematical heritage of the Hausa people: a resource guide for mathematics teaching, M.Ed. thesis, Ahmadu Bello University, Zaria (Nigeria).

* Njock, G.. (1985): Mathématiques et environnement socio-culturel en Afrique Noire, Présence Africaine, New Bilingual Series, Nº 135, 3rd Quarterly, 3-21.

* Mmari, G. (1978): The United Republic of Tanzania: mathematics for social transformation, in: F. Swetz (coord.), Socialist Mathematics Education, Burgundy Press, Southampton PA, 301-350.

* Shirley, L. (1988): Historical and ethnomathematical algorithms for classroom use, Ahmadu Bello University, Zaria (Nigeria), 12 p. (mimeo).

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* Touré, Saliou (1984): Preface, in: Mathématiques dans l’environnement socio-culturel Africain, Institut de Recherches Mathématiques d’Abidjan, Abidjan, 1-2.

* Zaslavsky, C. (1973): Africa counts: number and pattern in African culture, Prindle, Weber & Schmidt, Boston, 328 p.

* Zaslavsky, C. (1980): Count on your finger: African style, Harper and Row, New York.

6. Cf. por exemplo.: * D’Ambrosio, U. (1985): Socio-cultural Bases for

Mathematics Education, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (Brasil), 103 p.

* Bishop, A. (1988a): Mathematical Enculturation, a Cultural Perspective on Mathematics Education, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 195 p.

* Bishop, A. (coord.) (1988b): Mathematics Education and Culture, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 286 p.

* Frankenstein, M. & Powell, A. B. (1989): Mathematics education and society: empowering on-traditional students, in: C. Keitel, P. Damerow, A. Bishop, P. Gerdes (coord.), Mathematics, Education, and Society, UNESCO, Paris, 157-159.

* Mellin-Olsen, S. (1986): Culture as a key theme for mathematics education, in: Mellin-Olsen, S. & Hoines, M. (coord.), Mathematics and Culture, a seminar report, Radal (Noruega), 99-121.

* Zaslavsky, C. (1989): Integrating mathematics with the study of cultural traditions, in: C. Keitel, P. Damerow, A. Bishop, P. Gerdes (coord.), Mathematics, Education, and Society, UNESCO, Paris, 14-15.

7. Sobre o desenvolvimento da educação matemática em Moçambique, vide por exemplo: * Draisma, Jan (1985): Curriculum development in the

People’s Republic of Mozambique – the case of mathematics, INDE, Maputo, 12 p.

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* Draisma, Jan e. o. (1986): Mathematics Education in Mozamique, Proceedings of SAMSA 4, Kwaluseni (Suazilândia), 56-96.

* Gerdes, P. (1981): Changing mathematics education in Mozambique, Educational Studies in Mathematics, Dordrecht / Boston, Vol. 12, 455-477.

* Gerdes, P. (1984): The first mathematics olympiads in Mozambique, Educational Studies in Mathematics, Dordrecht / Boston, 15(2), 149-172.

8. Cf. Gerdes, P. (1989): Mathematics education and culture in Third World countries, Namnären, Göteborg (Suécia), 16(4), 24-27; e: The use of ethnomathematics in the classroom (partial transcription), in: Proceedings of a Conference on the Politics of Mathematics Education, NECC Mathematics Commission, 1989, Cidade de Cabo, 26-36.

9. Zum erwachenden geometrischen Denken, Maputo / Dresden, 260 p. Cf. também Gerdes, P.: How to recognize hidden geometrical thinking? A contribution to the development of anthropological mathematics, For the Learning of Mathematics, Montreal, 1985, 6(2), 10-12, 17. Cf. também os dois artigos seguintes, em que analisámos porque cesteiros ‘preferem’ certas simetrias: Fivefold Symmetry and (basket)weaving in various cultures, in: I. Hargittai (coord), Fivefold symmetry in a cultural context, World Scientific Publishing, Singapore, 1991, 243-259 e: On ethnomathematical research and symmetry, Symmetry: culture and science, Budapest, 1(2), 1990, 154-170.

10. Gerdes, P. (1990): Ethnogeometrie. Kulturanthropologische Beiträge zur Genese und Didaktik der Geometrie, Verlag Franzbecker, Bad Salzdetfurth (Alemanha), 360 p.

11. In: S. Mellin-Olsen & M. J. Hoines (coord.), Mathematics and Culture, a seminar report, Caspar Forlag, Radel (Noruega), 15-42.

12. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht /Boston, 19(3), 137-162; e in: Bishop, A. (coord.), Mathematics Education and Culture, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht / Boston, 137-162.

13. For the Learning of Mathematics, Montreal, 8(1), 35-39.

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14. Namnären, Göteborg (Suécia), 15(1), 38-41. 15. Instituto Superior Pedagógico, Maputo, 1992. 16. Instituto Superior Pedagógico, Maputo, 1993. 17. Primeira versão, in: Abacus, the Journal of the Mathematical

Association of Nigeria, Ilorin (Nigeria), 18(1), 107-125; segunda versão mais elaborada in: Educational Studies in Mathematics, Dordrecht / Boston, 19(1), 3-22; versão portuguesa: Bolema, Rio Claro (Brasil), 1989, Especial Nº 1, 51-77.

18. Namnären, Götenborg (Suécia), 15(4), 51-53; versão portuguesa in: Bolema, Rio Claro (Brasil), 1989, Especial Nº 1, 79-97.

19. Versão em língua portuguesa, Instituto Superior Pedagógico, Maputo, 120 p. A versão bilíngue em Inglês e em Francês foi publicada em 1991 (ISP, Maputo).

20. Gerdes, Paulus: Vivendo a Matemática: Desenhos da África, Editora Scipione, São Paulo (Brasil), 64 p.

21. For the Learning of Mathematics, Montreal, 10(1), 31-34 e versões ligeiramente adaptadas: Afrika Matematika, Benin City (Nigéria), Série 2, Vol. 3, 1991, 119-130 e: Discovery and Innovation, Nairobi (Quénia), 3(1), 1991, 29-36. Em Francês: A propos d’éléments mathématiques dans les ‘SONA’ de la tradition Tchokwe, Plot, Orléans (França) Nº 54, 1991, 5-9. A versão em Português foi publicada em: Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, Lisboa, Nº 20, 1991, 21-27.

22. Por exemplo Abdulcarimo Ismael e Marcos Cherinda, que apresentam neste Congresso comunicações sobre a origem dos conceitos de ‘par’ e ‘ímpar’ na cultura Makhuwa (Norte de Moçambique) e sobre o cálculo mental na língua Tsonga (Sul de Moçambique), respectivamente.

23. “Reflexões africanas..”, p. 14.

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Capítulo 2

Sobre o subdesenvolvimento matemático

e a sua superação * __________ * Versão abreviada e ligeiramente adaptada do prefácio à tese de

doutoramento (Dr.phil.), intitulado Zum erwachenden geometrischen Denken (Sobre o despertar do pensamento geométrico), defendida, no dia 5 de Janeiro de 1986, na Escola Superior Pedagógica ‘Karl Friedrich Wander’ em Dresden na então República Democrática Alemã. O texto foi traduzido por Ângelo Jorge do Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação (INDE), Maputo.

__________

O subdesenvolvimento matemático constitui uma das facetas, uma das expressões, do estado em que se encontram os países chamados do ‘Terceiro Mundo’, ‘em vias de desenvolvimento’ ou também ‘subdesenvolvidos’. Neste texto analisam-se alguns aspectos que caracterizam o subdesenvolvimento matemático e possíveis condições para a sua superação. Educação e investigação matemáticas universitárias

Existem muito poucos matemáticos nacionais qualificados. Por exemplo, só em treze países africanos o número de doutorados em matemática ultrapassa os dez. 1 Onze países africanos não têm, até agora, nenhum doutorado em matemática. Em geral os matemáticos têm à sua disposição apenas bibliotecas muito pequenas, às vezes com

1 Cf. Hogbe-Nlend, 1979, p. 159.

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menos de 300 livros de especialidade, como nos casos das universidades do Benim e de Burquina Faso.

Os países industrializados ‘ocidentais’ e, em menor escala, os países árabes, produtores de petróleo, provocam uma forte ‘fuga de cérebros’ dos países africanos. Por exemplo, 30% dos matemáticos sudaneses emigraram; 2 e o primeiro Presidente da União Africana de Matemática, Hogbe-Nlend (1976-1986) trabalha há mais de 20 anos na França.

Aproximadamente 70% dos matemáticos (doutorados) dos países em vias de subdesenvolvimento (com exceção da Índia) foram formados nos Estados Unidos da América, França, Grã-Bretanha e noutros países da Europa. 3 A sua investigação atual continua quase sempre o trabalho de doutoramento. Por isso os domínios de investigação estão muito dispersos e os matemáticos do ‘Terceiro Mundo’ trabalham normalmente isolados uns dos outros.4 As suas publicações sofrem dos mesmos males que as dos países mais industrializados: ‘publique ou pereça’ e ‘poluição de publicação’. 5 Desenvolvem-se “especialidades muito estreitas que não exigem nem uma base larga de conhecimento, nem uma consciência das raízes históricas”. 6 Prefere-se resolver problemas que o próprio matemático ou o seu tutor tinham levantado, selecionando, em geral, aqueles que são, provavelmente, mais fáceis de serem resolvidos. 7

A maior parte das universidades e escolas superiores no ‘Terceiro Mundo’ foram criadas segundo o modelo de instituições da Europa Ocidental ou norte-americanas. As formas de organização, os programas de ensino, os critérios de avaliação, as formas de promoção e reconhecimento são decalcados do ‘ocidente’. 8 A grande maioria dos matemáticos dos países em vias de desenvolvimento dedica-se à

2 Cf. El Tom, 1983, p. 368. 3 Cf. El Tom, 1979b, p. 112. 4 Cf. Hogbe-Nlend, 1979, p. 160. 5 Cf. Shashahani, 1979, p. 148. 6 Ibid., p. 149 7 Cf. a este respeito as críticas de Kline, p. 10 e seg.; Coleman, e. o.,

p. 124 e seg.; Dieudonné, 1982, p. 31; D’Ambrosio, 1976, p. 1420 e seg.

8 Cf. El Tom, 1979a, p. 56; El Tom, 1979b, p. 113.

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investigação ‘pura’, 9 em vez de “...fazer face aos problemas matemáticos resultantes das prioridades nacionais, que, embora desafiantes, não se relacionam, às vezes, aos do centro de atenção dos investigadores nos países desenvolvidos”. 10

Como é que a falta de interesse por um desenvolvimento da matemática, que poderia contribuir para a superação do subdesenvolvimento, dependência, pobreza, e doença (por exemplo, melhoramento de modelos matemáticos da malária e bilharziose), é explicada pelos próprios matemáticos envolvidos? Negar a pergunta é a primeira resposta possível, ou seja, afirmar que matemática é idêntica a desenvolvimento, ou mais precisamente, os progressos da teoria matemática implicam automaticamente o desenvolvimento da sociedade sem que isso dependa do seu domínio ou conteúdo. Quando esta concepção foi criticada durante a primeira Conferência de Diretores de Departamentos / Faculdades de Matemática das Universidades Africanas (Yaoundé, Camarões, 26-30 de Setembro de 1983) aprontaram-se, de imediato, outras respostas. Segundo uns existiria só uma única ciência matemática unificada e toda a matemática, por mais abstracta que fosse, por mais desligada da vida dos povos que pudesse parecer, encontraria alguma vez, ainda que muito mais tarde, a sua aplicação na praxis. Estes matemáticos utilizam os exemplos dos números complexos e das geometrias não-euclidianas como argumentos para a sua posição e apresentam, como conclusão, que seria indiferente a escolha do domínio da matemática em que se realizassem as investigações. Outros matemáticos procuram, para justificar uma investigação exclusivamente ‘pura’ uma evasiva no estilo do famoso Hardy: “A matemática ‘verdadeira’/’real’ dos matemáticos ‘verdadeiros’ / ‘reais’... é, quase por completa, sem utilidade nenhuma...”, 11 e a matemática aplicada é, pelo contrário, ‘trivial’; 12 a matemática ‘realmente verdadeira’ só pode ser

9 Cf. Shashahani, 1979, p. 145. 10 D’Ambrosio, 1979b, p. 79. 11 Hardy, 1940, p. 119. 12 Ibid., p. 139. O subdesenvolvimento do continente africano constitui ainda um

solo bem fecundo para este género de opiniões como ‘matemática aplicada é trivial’. A ideia de que toda a matemática aplicada seria trivial, já não é opinião predominante nos países industrializados.

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justificada como arte. 13 Em todas estas tentativas de justificação, as variantes de ‘toda a matemática = desenvolvimento’ e ‘matemática = arte’, permanece a questão: porquê, então, tomam estes matemáticos precisamente como temas de investigação os dos seus mestres norte-americanos ou europeus? Que interesses servem com as linhas de pesquisa assim ‘escolhidas’? Numa ‘negritude’ radical pode-se procurar uma resposta parcial à questão colocada, segundo observou um matemático nigeriano: “Se nós, matemáticos negros, investigamos os mesmos temas que os matemáticos brancos, fazemo-lo para mostrar que os negros são tão inteligentes como os brancos”. Mas, no fim do século 20 ainda é necessário mostrar isto? A história não deu já provas suficientes disso? É de notar que o facto da elite em muitos países em vias de desenvolvimento acreditar que só a matemática elementar pode ser útil, contribui para um “ambiente hostil” em que os matemáticos trabalham. 14

Nos últimos anos cresce o número de matemáticos, nos países do ‘Terceiro Mundo’, que se tornam conscientes dos problemas principais do subdesenvolvimento, do funcionamento do neocolonialismo e do seu reflexo na matemática. 15 Dinamizadores deste processo são, por exemplo, o Presidente da Comissão Interamericana para a Educação Matemática e Pró-Reitor da Universidade de Campinas, D’Ambrosio (Brasil), El Tom (Sudão), Shashahani (Irão), Ashour (Egito), e o Presidente da Associação Matemática do Sudeste Asiático, Nebres (Filipinas). Jovens matemáticos progressistas tomam novos caminhos. Por exemplo, Babikar e outros investigam em Cartum modelos matemáticos de formação de desertos, e Ogana e outros, em Nairobi, problemas de ecologia matemática, particularmente os que se relacionam com o combate a insectos. No primeiro Congresso Pan-Africano de Matemáticos em 1976 em Rabat (Marrocos) foi considerado de extrema importância “procurar vias apropriadas de aplicação da matemática à solução dos nossos problemas a fim de

Cf. Atiyah, 1984; Thom, 1979; Von Neumann, 1974; MacLane, 1981.

13 Hardy, 1940, p. 140. 14 Cf. El Tom, 1979a, p. 55; El Tom, 1984, p. 2 e seg. 15 Cf. por exemplo, El Tom, 1979b, p. 113 e seg.

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garantir a poupança indispensável de tempo para recuperar o nosso atraso”. 16

A situação política nem sempre permite aos matemáticos dedicarem-se diretamente à superação do subdesenvolvimento matemático. O conhecido matemático uruguaio J. Massera foi mantido na prisão durante oito anos pela ditadura militar. O. Tambo, outrora professor de Matemática e Física, viu-se obrigado a dedicar-se inteiramente à luta contra o regime do apartheid na África do Sul, sendo (1985) o Presidente do Congresso Nacional Africano (ANC), tal como anteriormente o Vietnamita Ta Quang Buu, catedrático de matemática, se dedicara à direção militar do movimento de resistência contra o colonialismo francês, tendo ficado, depois, em 1974, Ministro do Ensino Superior. 17 Ensino Geral da Matemática

Em 1980, 33% da população mundial eram ainda analfabetos. Apesar do crescimento do número de escolas, alunos e professores depois da conquista das independências nacionais, o grau de alfabetização em África, em 1980, variou ainda de 5% em Burquina Faso, 10% no Djibouti, 10% no Mali, 10% no Níger a 65% na Suazilândia, 69% no Zimbabwe, 79% na Tanzânia, 85% nas Maurícias. 18 O grau de alfabetização de todo o continente africano foi apenas de 34% em 1980. Salas de aula superlotadas, falta de meios didáticos necessários e falta de professores qualificados, com um salário e status social relativamente baixos, contribuem para um baixo

16 Actas do primeiro Congresso Pan-Africano de Matemáticos, 1976, p. 19.

17 Cf. Malgrange, 1977, p. 59. A constatação de Dieudonné “... Matemáticos assumiram até há muito pouco tempo, apenas raras vezes, posições políticas extremas ...Normalmente, limitam-se a viver, como bons cidadãos no regime político, em que a sorte os fez nascer; participam muito menos em movimentos de protesto ou até revoltas que os seus contemporâneos da arte e literatura” (1985, p. 4), talvez não seja geralmente válida para os matemáticos dos países em vias de desenvolvimento.

18 Cf. Brehme, p. 450 e seg.

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nível de ensino. 19 No caso do ensino da Matemática existe um outro factor que contribui em muito para esta situação, a saber a transplantação precipitada de programas de ensino. Antes de analisarmos as consequências dessa transplantação, aclaremos este fenómeno por meio de um exemplo. A introdução da ‘Nova Matemática’ em África

As elites nos países africanos independentes reconheceram a importância da edificação de um moderno sistema educativo para o melhoramento do nível geral de vida e para a formação de uma força de trabalho especializada. Onde poderiam ser encontradas soluções rápidas para esta edificação? Como se deveria organizar, em particular, o ensino das ciências naturais e da matemática que tinha sido restringido ao mínimo possível pelas potências coloniais?

No contexto da confrontação mundial entre os ‘blocos’ políticos e económicos, o lançamento do primeiro satélite soviético, em Outubro de 1957, provocou uma reação em cadeia: não só, mas essencialmente sob influência deste chamado ‘Sputnik-choque’ como catalisador, 20 foram feitos esforços nos Estados Unidos da América para se ultrapassar o atraso tecnológico (real ou fictício) relativo à União Soviética. Entre vários esforços tentou-se através duma reforma do ensino secundário elevar o número e a qualidade dos profissionais com formação matemática. A esta reforma chama-se ‘Nova Matemática’ ou também ‘Matemática Moderna’.

Na tentativa de fazer recuar a influência das anteriores potências coloniais, a ‘Nova matemática’ foi um bom artigo de exportação dos Estados Unidos da América para criar ‘goodwill’ (boa vontade) em África. No ano de 1961, realizou-se no prestigioso Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) um seminário onde participaram 40 professores de países africanos anglófonos. 21 Foi sublinhada a necessidade de reformas nos programas de ensino. Como resultado

19 Cf. a este respeito, por exemplo, Eshiwani, 1979, p. 347; Nebres, 1979, p. 67; Nebres, 1983, p. 4; El Tom, 1984, p. 3.

20 Cf. NCTM, 1970, p. 256 e seg. 21 Cf. EDC, 1970, p. 1; Swetz, 1975, p. 5.

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deste seminário iniciou-se, em Julho de 1962, em Entebbe (Uganda) o chamado Programa de Matemática Africano (AMP) sob a direção do professor W. Martin do MIT e financiado pela Fundação Ford e pela Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos da América (USAID). Entre 1963 e 1970 foram publicados 60 livros de matemática (Entebbe Mathematics Series). Embora 102 dos 186 autores fossem africanos, 22 o conteúdo e métodos destes livros de ensino são orientados por partidários do colectivo norte-americano da ‘Nova Matemática’, denominado ‘School Mathematics Study Group’ (SMSG). Como resposta à iniciativa dos Estados Unidos da América foram formados e financiados pela Grã-Bretanha dois colectivos concorrentes de autores: ‘The Joint Mathematics Project’ na África ocidental e o ‘School Mathematics Project for East Africa’ (SMPEA), que desenvolveram as ideias do colectivo britânico da ‘Nova Matemática’ denominado ‘School Mathematics Project’ (SMP). 23 Pela França foi estimulada a criação, nas suas ex-colónias, de institutos de pesquisa do ensino da Matemática (‘Instituts de Recherche de l’Enseignement de la Mathématique’, IREM’s) segundo o modelo dos IREM’s da ‘Metrópole’. Conforme o estilo do SMSG os materiais do Programa de Matemática Africano são muito teóricos; evitam-se as aplicações da matemática; a reprodução dos conteúdos é muito formalizada. 24 Os livros de Entebbe foram testados por professores bem qualificados e apenas em poucas escolas. Mas como estes livros foram introduzidos em todas as escolas, os seus resultados foram duvidosos. Mesmo os aspectos mais progressistas destes materiais em relação aos manuais utilizados no tempo colonial mal foram realizados: Matemática ao nível da escola primária já não é somente aritmética; não se toma só em consideração como se resolve um problema, mas também a questão de porquê; põe-se mais ênfase do que antes no rigor das argumentações; são recomendados métodos de experimentação mais ativos. 25 A fraca realização provocou amplos protestos; não só protestos de professores sem formação ou com formação deficiente, mas também alunos, pais e políticos ‘atacaram’ a ‘Nova Matemática’. Em casos extremos, como em 1977, na Nigéria, a

22 Cf. EDC, 1970, p. 2. 23 Cf. Swetz, 1975, p. 6 e seg.; Mmari, 1980, p. 110 e seg. 24 Cf. Swetz, 1975, p. 7. 25 Cf., por exemplo Eshiwani, 1979, p. 348.

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‘Nova Matemática’ foi ‘abolida’ temporariamente pelo Ministério da Educação e anunciado o regresso à ‘Matemática tradicional’ do tempo colonial; 26 em 1982, no Quénia, o Presidente decidiu a abolição da ‘Nova Matemática’ com o argumento de que “ela fazia parte dum complot imperialista para dominar os Quenianos”.27 Em certos casos, uma ingerência política direta já existia no berço da introdução da ‘Nova Matemática’, como em 1977, no Sudão, quando ela foi ordenada para o nível primário, não como resposta a propostas de professores de matemática nesse sentido, mas “motivada essencialmente pelo desejo de emular outros países árabes”. 28

A transplantação de programas de ensino de Matemática não é específica para África, mas constitui uma expressão geral de subdesenvolvimento matemático. 29 Com o copiar dos programas de ensino tomaram-se-lhes também as perspectivas: a matemática do ensino primário principalmente como preparação para o ensino secundário, a matemática do ensino secundário principalmente como preparação para o ensino superior. 30 O ensino da matemática está, por isso, estruturado em função dos interesses de uma pequena minoria social. Transmite-se uma tal imagem da matemática que ela parece pouco útil aos alunos; exagera-se o valor da matemática em si: “uma importância algo romântica da matemática como construtor de pensamento claro, como a ciência rigorosa por excelência”. 31 Particularmente entre os filhos de operários e camponeses é que a matemática goza de pouca popularidade; o medo da matemática está amplamente espalhado. 32 O ensino da matemática serve a seleção de elites: “A Matemática é universalmente reconhecida como o filtro educacional mais eficaz”, sublinha El Tom. 33 D’Ambrosio acrescenta:

26 Cf. Shirley, 1980, p. 5. 27 Anon., 1982, p. 28. 28 El Tom, 1983, p. 366. 29 Cf., por exemplo, Nebres, 1979, 1983, 1984. 30 Cf., por exemplo, Freudenthal, 1979; Nebres, 1984; Eshiwani,

1979. 31 D’Ambrosio, 1979a, p. 37. 32 Cf., por exemplo, D’Ambrosio, 1982, 1984. 33 El Tom, 1984, p. 3. Sobre o ensino da matemática e selecção de

elites nos países industrializados, vide, por exemplo, Samuel, 1974, p. 147 e seg.

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“A Matemática tem sido utilizada como uma barreira ao acesso social, reforçando a estrutura de poder que prevalece nas sociedades (do ‘Terceiro Mundo’). Nenhuma outra disciplina escolar serve tão bem este objectivo de reforçar a estrutura do poder, como a Matemática. E o principal instrumento para este aspecto negativo da educação matemática é a avaliação”. 34 A crítica não poderia fazer-se esperar.

Críticas e tentativas de adaptação

Os fracassos evidentes da introdução da ‘Nova Matemática’ não estavam nem de acordo com os interesses dos seus financiadores nem com os da elite dos países em vias de desenvolvimento. Tornaram-se necessárias adaptações.

Depois de uma visita de matemáticos e especialistas de educação matemática da ‘American Conference Board of Mathematical Sciences’ a África, em Setembro de 1969, foi decidido avançar com uma segunda fase do ‘Programa de Matemática Africano’, no qual a ênfase seria posta no melhoramento da formação matemática dos professores do ensino primário. Simultaneamente efetuou-se uma regionalização: USAID e o Banco Mundial financiam desde 1970 o ‘Programa Regional de Matemática para África Oriental’ (EARMP) e o ‘Programa Regional de Matemática para África Ocidental’ (WARMP). Os livros de Entebbe foram reelaborados. 35

Os programas de ensino da ‘Nova Matemática’ colocavam altas exigências aos alunos no respeitante a conhecimentos de língua, em particular do vocabulário, estrutura sintáctica e utilização de símbolos. 36 Os problemas eram imensos quando os alunos não aprendiam a matemática na sua língua materna, como é o caso da maioria das crianças africanas. Durante o segundo Congresso Internacional sobre Educação Matemática (ICME II) em Exeter (Inglaterra), em 1974, foi recomendado que “uma investigação fundamental devia ser realizada no campo das relações entre a aprendizagem de estruturas matemáticas

34 D’Ambrosio, 1983, p. 363. 35 Cf. Swetz, 1975, p. 7; Williams, 1978, p. 300 e seg.; Ohuche,

1978, p. 275. 36 Cf., por exemplo, Eshiwani, 1979, p. 349.

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básicas e a língua através da qual são aprendidas”. 37 Como resultado foram organizados alguns seminários inter-africanos. Ainda em 1974 teve lugar o seminário da UNESCO ‘Interações entre Linguística e Educação Matemática’ em Nairobi (Quénia), financiado pela UNESCO e pelo ‘Centro para o Desenvolvimento Educacional Ultramarino’ (Grã-Bretanha). Um ano mais tarde a Associação da ‘Commonwealth’ para o Ensino da Matemática e das Ciências Naturais coordenou uma conferência sobre o mesmo tema em Acra (Gana). ‘Matemática, línguas africanas e francês’ era o título dum seminário que se realizou em Niamey (Níger) em 1977. Estas conferências inter-africanas contribuíram decisivamente para a compreensão das dificuldades de aprendizagem da Matemática numa segunda língua e das possíveis interferências entre a língua materna, a língua de ensino e a Matemática. A troca de experiências forneceu muitas sugestões para a revisão das formulações até aí utilizadas. 38 Os problemas linguísticos no ensino da Matemática não são, no entanto, exclusivos de África. Eles encontram-se em toda a parte: 39 a linguagem artificial da Matemática é sempre diferente da linguagem natural. A amplitude dessa diferenciação é, em geral, maior para as crianças que aprendem a matemática numa segunda língua do que para as crianças que a aprendem na língua materna. A tendência de intensificar ou iniciar o ensino da Matemática na língua materna ou numa outra língua africana em vez de numa língua da Europa é crescente ao nível de todo o continente.

Embora as contribuições linguísticas sejam de extrema importância, elas somente poderiam ser aplicadas para ‘aplanar’ as dificuldades que resultam da introdução da ‘Nova Matemática’: elas ainda não conduziram, por si só, a uma crítica mais aprofundada das perspectivas dos programas de ensino.

O primeiro Congresso Pan-Africano de Matemáticos em 1976 (Rabat, Marrocos) julgou essencial que se respondesse à questão ‘O que se ensina, quando, como e com que objectivos?’ 40 O Colóquio

37 Citado em CASME, 1975, p. 4. 38 Cf. CASME, 1975; National University of Lesotho, 1980; IREM

Niamey, 1977; Lassa, 1980; UNESCO, 1975. 39 Cf. Austin & Howson, 1979. 40 Actas do primeiro Congresso Pan-Africano de Matemáticos, p.

19.

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Internacional sobre Matemática e Desenvolvimento, em 1978, em Bordeaux (França) recomendava já uma adaptação do ensino da Matemática ao ‘ambiente local’. 41 O Presidente da Comissão Africana para a Educação Matemática (1976-1986), Eshiwani, realçou a importância de uma formulação dos objectivos do ensino da Matemática de acordo com a “cultura e necessidades locais”. 42 A Conferência Internacional sobre o Desenvolvimento da Matemática no ‘Terceiro Mundo’ em Cartum (Sudão) em 1978, pronunciou-se em como esse ‘ambiente local’ deveria ser integrado no ensino: “Alunos deviam aprender Matemática, na medida do possível, através de experiências práticas ativas e com ajuda de meios de ensino pertencentes ao seu meio ambiente. Generalizações e estruturas deviam sair mais das experiências dos alunos do que de afirmações formais do professor”. 43 Com isto estava ainda aberta a pergunta colocada por Eshiwani: que necessidades, ou melhor, necessidades de quem se deveriam ter em conta ao elaborar os programas de ensino. Broomes e Kuperes responderam a esta pergunta, em 1980, da seguinte maneira: A esmagadora maioria (talvez mais de 80%) das crianças do ‘Terceiro Mundo’ não termina ou apenas termina o ensino primário e, 85% destas crianças vivem no campo. Por isso, os programas de ensino da Matemática deviam estar harmonizados com as ‘comunidades rurais’, melhor ainda, ser desejados por essas comunidades: “... o currículo escolar da Matemática...requereria métodos de ensino e de aprendizagem modelados conforme as atitudes, capacidades e hábitos de trabalho que são desejados pela comunidade”. 44 Mas, quem é a ‘comunidade’? Nestes autores ainda falta uma perspectiva clara sobre as possíveis contradições de classe no seio da ‘comunidade’ e as suas consequências para o ensino da Matemática.

Críticas que vão ainda mais longe

No estudo sobre o ensino da Matemática no seio da etnia Kpelle (Libéria), Gay e Cole chegaram à conclusão de que os conteúdos de

41 Cf. Rapport Final, 1978, p. 2. 42 Eshiwani, 1979, p. 346. 43 El Tom, 1979a, p. 182. 44 Broomes, 1982, p. 25; cf. Broomes & Kuperes, 1983.

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ensino não faziam nenhum sentido sob o ponto de vista da cultura dos Kpelle. E, uma vez que os métodos de ensino utilizados dependem principalmente da memorização e disciplina cega, compreende-se donde vêm as ‘dificuldades’ de aprendizagem da matemática escolar. 45 Experiências comparadas mostraram que os adultos Kpelle alcançavam melhores resultados que os adultos norte-americanos na solução de tarefas – como a estimativa do número de tigelas de arroz com as quais se pode encher uma bacia –, que pertencem à sua ‘matemática indígena’. 46 Para Gay e Cole, o problema principal consiste em: “Como podemos ensinar eficazmente o velho, introduzindo o novo, da maneira mais humana e eficiente possível?” 47

Posteriores investigações comparáveis de psicólogos não só confirmaram os resultados de Gay e Cole, mas também trouxeram à luz novos aspectos. Crianças pertencentes às etnias Baoulé e Dioula (Costa de Marfim) alcançaram inicialmente, devido a dificuldades na língua francesa e desconhecimento do sistema escolar, um aproveitamento mais baixo nos exercícios de aritmética que crianças norte-americanas da mesma idade, mas depois de alguns anos de escolaridade os resultados para ambos os grupos foram os mesmos. 48 Além disso, as crianças Baoulé e Dioula, tanto as escolarizadas como as não escolarizadas dominavam métodos precisos de contagem. 49 As crianças Dioula não escolarizadas eram muito hábeis em cálculo mental (particularmente na adição). 50 A atividade comercial, na qual estas crianças tomam parte, estimula o desenvolvimento das suas capacidades cognitivas. 51 Em contrapartida, as crianças escolarizadas costumam utilizar, ao resolver exercícios de cálculo da vida diária, métodos estandardizados aprendidos na escola, que muitas das vezes são pouco práticos. 52 O desenvolvimento da ‘aritmética informal’ está dependente de factores culturais. Por exemplo, as crianças Baoulé

45 Gay & Cole, 1967, p. 6. 46 Ibid., p. 66, 67. 47 Ibid., p. 7. 48 Cf. Ginsburg e outros, 1981a, p. 30. 49 Cf. Posner & Baroody, 1979, p. 493. 50 Cf. Ginsburg e outros, 1981b, p. 174. 51 Ibid., p. 175; cf. Petitto, 1982; Petitto & Ginsburg, 1982, p. 101;

Fahrmeier, 1975. 52 Cf. Ginsburg e outros, 1981b, p. 176.

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não-escolarizadas – elas vivem no campo e participam pouco em atividades comerciais ou semelhantes – têm mais dificuldades em cálculo mental do que as crianças Dioula não-escolarizadas. 53

Psicólogos e matemáticos da América Latina chegam, na base das suas investigações, a conclusões que ainda vão mais longe do que as anteriores. E. Luna (República Dominicana) coloca a questão se é possível que a escola ‘reprima’ e ‘confunda’ os conhecimentos práticos que o aluno aprendeu fora da escola... 54 Isto não só é possível, mas acontece frequentemente, como mostram as brasileiras Carraher (Nunes) e Schliemann: crianças que antes de irem à escola sabiam resolver criativamente problemas aritméticos – como por exemplo, no bazar – já não são capazes mais tarde, na escola, de resolver os mesmos exercícios, isto é, não os sabem resolver segundo os métodos ensinados na escola. 55 D’Ambrosio afirma que a matemática ‘aprendida’ elimina a chamada matemática ‘espontânea’, 56 quer dizer, “um indivíduo que sabe trabalhar perfeitamente com números, operações, formas e noções geométricas, cria, quando confrontado com uma aproximação completamente nova e formal dos mesmos factos e necessidades, um bloqueio psicológico que cresce como uma barreira entre os modos diferentes de pensamento numérico e geométrico”. As habilidades espontaneamente adquiridas fora da escola, são reprimidas e esquecidas na escola, enquanto que as novas habilidades escolares não são assimiladas, ou como consequência do já citado bloqueio psicológico, ou por causa da saída prematura da escola. Por isso, “as primeiras fases da educação matemática oferecem uma maneira muito eficaz de inculcar o sentimento de falhanço e de dependência nas crianças”. 57

Como pode ser evitado esse bloqueio psicológico, essa repressão e perturbação da matemática ‘espontânea’ (D’Ambrosio), ‘natural’ (Carraher e outros), ‘informal’ (Posner e outros), ‘não-estandardizada’ (Carraher, Gerdes), e ‘indígena’ (Gay e Cole)?

53 Cf. Posner, 1982, p. 207 e seg.; Petitto & Ginsburg, 1982. 54 Luna, 1983, p. 4. 55 Carraher e outros, 1982. 56 D’Ambrosio, 1984, p. 6. 57 Ibid., p. 7.

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Gay e Cole consideram necessário estudar primeiro a ‘matemática indígena’ para, depois, estabelecer ‘pontes’ efetivas entre esta e a matemática da escola: 58 o professor devia ensinar às crianças como se pode lidar criativamente com a ‘matemática indígena’, e, partindo daí, avançar para uma matemática nova. 59 Eles deixam, no entanto, em aberto a questão: que matemática escolar e para quê?

G. Mmari, especialista tanzaniano de planificação curricular, é de opinião de que “ainda são usados, na Tanzânia, métodos matemáticos tradicionais...Um bom professor pode utilizar esta situação para sublinhar as verdades universais dos conceitos matemáticos”. 60 E como é que o bom professor pode fazer isso? O coordenador de educação matemática da UNESCO, E. Jacobsen responde: “A população que constrói casas não usa matemática; ela faz matemática da maneira tradicional... Se conseguirmos tornar clara a estrutura científica porque é feita assim, então pode-se ensinar ciência desse modo”. 61 Segundo D’Ambrosio é necessário “gerar maneiras de compreender, e métodos para a incorporação e compatibilização de práticas populares, conhecidas e correntes, no currículo. Por outras palavras, no caso da Matemática, é necessário o reconhecimento e a incorporação da etnomatemática no currículo”. Isto exige o desenvolvimento de “métodos de investigação antropológicas bastante difíceis respeitantes à Matemática”. 62 E D’Ambrosio acrescenta em 1985: “matemática antropológica – um campo de estudo até agora pobremente cultivado – é um tópico que achamos constituir um tema essencial de investigação nos países do Terceiro Mundo..., como a base sobre a qual podemos desenvolver o currículo de uma maneira relevante”. 63 M. El Tom é de opinião que a investigação da etnomatemática na linha de D’Ambrosio, é realmente necessária, embora só fora de um contexto de relações de dominação e de dependência internacionais possa ser realizável até às últimas

58 Gay & Cole, 1967, p. 1. 59 Ibid., p. 94. 60 Mmari, 1978, p. 313. 61 Citado por Nebres, 1984, p. 4. 62 D’Ambrosio, 1984, p. 10. 63 D’Ambrosio, 1985, p. 47.

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consequências. 64 Impõe-se uma integração das práticas e tradições populares matemáticas nos programas de ensino.

A integração de práticas e tradições matemáticas dos povos outrora colonizados nos seus programas de ensino da Matemática, acelera a popularização desta ciência – e contribui para garantir que a Matemática seja desenvolvida conforme os interesses destes povos – porque ela faz superar o ‘bloqueio psicológico’. Contudo não reside aqui a única razão para o seu contributo na descolonização cultural. Uma descolonização total, exige, salientou o primeiro Presidente de Moçambique independente, Samora Machel, um renascimento cultural: “manifestações de cultura durante muito tempo reprimidas devem reganhar o seu lugar”. 65 O reconhecimento das práticas e tradições científicas populares e a sua incorporação no currículo contribui para o renascimento cultural, por reforçar a autoconfiança cultural. 66 O conhecimento das capacidades matemáticas criativas do povo moçambicano e doutros povos outrora colonizados e escravizados é um pressuposto necessário para a confiança nas possibilidades e potencialidades matemáticas destes povos. Simultaneamente reforça a autoconfiança social: sabendo que os antepassados - colectores, caçadores, pastores, camponeses, artesãos, etc. - eram capazes de desenvolver a sua matemática, os filhos de camponeses e outros trabalhadores sentir-se-ão confiantes de que são capazes de se apropriarem da Matemática e de desenvolvê-la criativamente. Bibliografia Actes du premier Congrés Pan-Africain des Mathématiciens (1976),

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64 Numa carta ao autor. 65 Machel, 1978, p. 402. 66 Cf. Gerdes, 1982; 1985.

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Capítulo 3

Sobre o conceito de etnomatemática *

__________ * Tradução da primeira parte da introdução à tese

Ethnomathematische Studien [Estudos Etnomatemáticos], Maputo, 1989, 3 volumes. A defesa dessa tese para o ‘doutoramento superior’ (Dr.Sc.) na Universidade Karl Marx em Leipzig na então República Democrática Alemã estava prevista para o mês de Novembro de 1989, mas não se realizou devido à reunificação alemã e às implicações subsequentes para a referida universidade e para o respetivo Departamento de Matemática. No entanto, em Janeiro de 1996, o autor defendeu, na Universidade de Wuppertal no Oeste da Alemanha, uma outra tese para ‘doutoramento superior’ (‘Habilitation’, Dr.rer.nat.habil.), intitulada Sona Geometrie – Reflektionen über eine Sandzeichen-Tradition im südlichen Zentralafrika (Geometria Sona – Reflexões sobre uma tradição de desenhos na areia na África central-austral).

__________

O conceito de etnomatemática é, no seio de matemáticos e professores de matemática, relativamente novo. Amiúde designa-se o brasileiro U. D’Ambrosio como o ‘pai da etnomatemática’ [Cf. por exemplo Ferreira, 1988, p. 3; Borba, 1988, p. 24]. Desde 1975 ele salientou em muitas palestras a necessidade de uma etnomatemática. Em contrapartida, etnógrafos utilizam desde o fim do século passado o conceito mais geral de etnociência e noções com ele relacionadas, tais como etnolinguística, etnobotânica, etnozoologia, etnoquímica, etnoastronomia, etnopsicologia e etnológica. 1 Contudo, as interpretações usuais de etnociências por parte de especialistas das ciências sociais geralmente não correspondem à interpretação dominante do conceito de etnomatemática por parte de matemáticos, como mostraremos em seguida.

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Etnógrafos sobre etnociência

No dicionário etnológico de Panoff e Perrin apresentam-se duas definições do conceito de etnociência. No primeiro caso, ela é “ramo da etnologia que se dedica a comparar os conhecimentos positivos das sociedades exóticas com os que a ciência ocidental formalizou no quadro de disciplinas constituídas” [Panoff & Perrin, 1973, p. 68]. 2 Esta definição levanta imediatamente algumas questões, tais como: ‘O que são conhecimentos positivos?’, ‘Exóticos em que sentido?’, ‘Existe uma ciência ocidental?’ No segundo caso designa-se “toda e qualquer aplicação das disciplinas científicas ocidentais aos fenómenos naturais que são apreendidos de outra forma pelo pensamento indígena” como etnociência [Panoff & Perrin, 1973, p. 68]. Ambas as definições enquadram-se numa tradição, que data do tempo colonial durante o qual a etnografia nasceu nos países mais ‘desenvolvidos’ como uma ‘ciência colonial’, que estudava quase exclusivamente as culturas dos povos subjugados, uma ‘ciência’ também que opunha o chamado pensamento ‘primitivo’ ao pensamento ‘ocidental’ como algo absolutamente diferente. O casal M. e R. Ascher, matemática e etnógrafo, ainda não conseguiu libertar-se por completo desta tradição ao definir etnomatemática como o estudo das ideias matemáticas dos chamados povos sem escrita: “Ethno-mathematics is the study of mathematical ideas of nonliterate peoples. We recognize as mathematical thought those notions that in some way correspond to that label in our culture” [Ascher & Ascher, 1986, p. 125; cf. Ascher, M., 1984]. Por ‘a nossa cultura’ entendem eles a ‘cultura ocidental’, e afirmam além disso, que a matemática ‘ocidental’ não conhece uma pré-história ‘sem escrita’: “Ethnomathematics is not a part of the history of Western mathematics” [Ascher & Ascher, 1986, p. 139]. Na opinião do casal “a categoria de matemática é nossa” (= ocidental) [Ascher & Ascher, 1986, p. 132]. No entanto, podemos questionar se os povos ‘orientais’ e ‘austrais’, da Asia e de África, não contribuíram para o desenvolvimento dessa matemática, considerada ‘ocidental’ 3.

No seio de etnógrafos há também uma outra corrente, que considera a etnociência duma maneira bem diferente. Por exemplo, na sua introdução à antropologia social e cultural, C. Favrod caracteriza a etnolinguística do seguinte modo: “A etnolinguística tenta estudar a

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linguagem nas suas relações com o conjunto da vida cultural e social.” [Favrod, 1977, p. 90]. Transferindo-se a caracterização da etnolinguística para a etnomatemática, obtém-se analogamente: A etnomatemática tenta estudar a matemática (ou ideias matemáticas) nas suas relações com o conjunto da vida cultural e social. Neste sentido, a etnomatemática aproxima-se da sociologia da matemática de D. Struik [Vide Struik, 1986]. Génese do conceito de etnomatemática no seio de matemáticos e professores de matemática

No ensino colonial apresentava-se a matemática em geral como algo ‘ocidental’ ou ‘europeu’, como uma criação exclusiva da ‘raça branca’. Com a transplantação apressada – durante os anos 60 – de programas escolares dos países altamente industrializados para os países do ‘Terceiro Mundo’ continuou-se, pelo menos implicitamente, a negação da matemática africana, asiática, índia,... [Cf. Gerdes, 1985b, #0].

Nos anos 70 e 80 cresceu no seio de professores e didáticos de matemática nos países em vias de desenvolvimento e mais tarde também noutros países 4 a resistência contra a referida negação [Cf. Njock, 1985], contra os preconceitos racistas e (neo)coloniais, que ele reflete, contra o eurocentrismo relativo à matemática e à sua história [Cf. os estudos de Joseph, 1984, 1986, 1987a, 1987b]. Salientou-se que além da ‘matemática escolar importada’ existia e continua a existir uma ‘matemática indígena’ [Cf. por exemplo Gay & Cole, 1967]. Foi neste contexto que se propuseram vários conceitos para contrastar à ‘matemática académica’ / ‘matemática escolar’ transplantada, tais como (em sequência histórica): * sociomatemática de África [Zaslavsky, 1973]: as aplicações da

matemática na vida dos povos africanos e, inversamente, a influência que instituições africanas exerceram e ainda exercem sobre a evolução da matemática [Zaslavsky, 1973, p. 7];

* matemática espontânea [D’Ambrosio, 1982]: para poder sobreviver, todo o ser humano e cada grupo cultural desenvolve espontaneamente determinados métodos matemáticos 5;

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* matemática informal [Posner, 1982]: matemática que se transmite e se aprende fora do sistema de educação formal;

* matemática oral [Carraher e. o., 1982; Kane, 1987]: em todas as culturas humanas há conhecimentos matemáticos que oralmente são transmitidos de uma geração à seguinte;

* matemática oprimida [Gerdes, 1982]: nas sociedades de classe (por exemplo, nos países do ‘Terceiro Mundo’ na época da ocupação colonial) existem elementos matemáticos na vida diária das massas populares, que não são reconhecidos como matemática pela ideologia dominante;

* matemática não-estandardizada [Carraher, 1982; Gerdes, 1985; Harris, 1987]: além das formas estandardizadas dominantes da matemática ‘académica’ e ‘escolar’ têm-se desenvolvido em todo o mundo e em cada cultura formas matemáticas que se distanciam dos padrões estabelecidos;

* matemática escondida ou congelada [Gerdes, 1982, 1985]: embora, provavelmente, a maioria dos conhecimentos matemáticos dos povos outrora colonizados se tenham perdido, pode-se reconstruir ou ‘descongelar’ o pensamento matemático, que se encontra ‘escondido’ ou ‘congelado’ em técnicas antigas, tais como, por exemplo, na cestaria 6;

* matemática popular / do povo [Mellin-Olsen, 1986]: a matemática (embora muitas vezes não reconhecida como tal) desenvolvida na vida laboral de cada um dos povos pode servir como ponto de partida para o ensino da matemática. Estas propostas de novos conceitos são provisórias. Elas

enquadram-se numa tendência, iniciada no ‘Terceiro Mundo’ e que mais tarde encontrou eco noutros países.

Gradualmente uniram-se os vários aspectos, iluminados pelas referidas noções provisórias, sob o ‘denominador comum’ mais geral de etnomatemática. Este processo foi acelerado, em 1985, pela criação do Grupo Internacional de Estudo da Etnomatemática [ISGEm]. Matemáticos, inclusive o autor deste ensaio, que tentavam evitar o emprego deste termo por causa da sua conotação com a primeira interpretação etnográfica do mesmo conceito [vide em cima], foram ‘obrigados’ a utilizá-lo cada vez mais. O debate internacional sobre o que representa a etnomatemática foi-se intensificando e durante o último Congresso Internacional de Educação Matemática

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(Budapest, 1988) proferiram-se várias palestras etnomatemáticas para além da realização de uma mesa redonda, com a participação de U. D’Ambrosio (Brasil), M. Fasheh (Palestina), P. Gerdes (Moçambique), M. Harris (Grã-Bretanha) e P. Scott (USA), em torno do tema ‘O que se pode esperar da etnomatemática?’ [Vide Bishop e. o., 1988]. Conceito, acento ou movimento ?

Segundo o comentário, intitulado ‘Etnomatemática: o que poderia ser?’, na primeira edição do Boletim Informativo do ISGEm, a etnomatemática encontra-se na ‘zona de confluência’ da matemática e da antropologia cultural (etnografia). Num primeiro nível, ela pode ser chamada ‘matemática-no-contexto-cultural’ ou ‘matemática-na-sociedade’ [ISGEm-Newsletter, 1985, 1(1), p. 2]. Desta maneira, tanto a sociomatemática, como também a matemática popular, a matemática espontânea, informal, oral, congelada, não-estandardizada e reprimida se enquadram dentro da etnomatemática. Num segundo nível, relacionado com o primeiro, ela é “the particular (and perhaps peculiar) way that specific cultural groups go about the tasks of classifying, ordering, counting and measuring” [ISGEm-Newsletter, 1985, 1(1), p. 2].

Alguns investigadores tentam unir os dois níveis numa única definição. Por exemplo, no seu livro ‘Learning, aboriginal world view, and ethnomathematics’ (1985), A. Hunting vê a etnomatemática como “Mathematics used by a defined cultural group in the course of dealing with environmental problems and activities” [citado em ISGEm-Newsletter, 1986, 2(1), p. 3]. Para Ferreira, conhecido pelos seus estudos das atividades matemáticas no seio de índios do Brasil, etnomatemática é “matemática incorporada na cultura popular” [Ferreira & Imenes, 1986, p. 4]. Borba, autor de um estudo interessante sobre os conhecimentos matemáticos da população de uma ‘favela’, entende por etnomatemática “a matemática praticada por grupos culturais, como sociedades tribais, grupos de trabalho ou grupos de moradores” [Borba, 1988, p. 20] e vê a etnomatemática “como um campo de conhecimento intrinsecamente vinculado a um grupo cultural, e a seus interesses, estando pois estreitamente ligado à sua realidade, sendo expressa através de uma linguagem, geralmente diferenciada das usadas pela matemática vista como ciência, linguagem esta que está umbilicalmente ligada à sua cultura, à sua

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etnia” [Borba, 1987, p. 38]. Estas definições aproximam-se em muito de uma das de D’Ambrosio: “... different forms of mathematics which are proper to cultural groups we call Ethnomathematics” [D’Ambrosio, 1987, p. 5]. De acordo com estes autores é válido para cada etnomatemática:

(1) etnomatemática ⊂ matemática.

Contudo designa-se igualmente a investigação de uma etno-matemática concreta como etnomatemática. Assim escreve o mesmo Ferreira em 1986, que a etnomatemática constitui uma área da etnologia: (2) etnomatemática ⊂ etnologia, porque analisa “os conhecimentos matemáticos, praticados na vida diária dum grupo social” [Ferreira, 1986, p. 2]. Neste sentido, a interpretação da etnomatemática aproxima-se da definição de etnomatemática, acima deduzida da definição de etnolinguística dada pelo etnógrafo Favrod: “A etnomatemática tenta estudar a matemática nas suas relações com o conjunto da vida cultural e social”. No mesmo ensaio, Ferreira considera etnociência também como “um método para chegar aos conceitos das ciências institucionalizadas” [Ferreira, 1986, p. 3]. Isto implica que a etnomatemática pertence à didática da matemática:

(3) etnomatemática ⊂ didática da matemática.

A mesma ideia é também salientada no fim do referido comentário ‘Etnomatemática: o que poderia ser?’: “... examples of Ethno-mathematics derived from culturally identifiable groups, and related inferences about patterns of reasoning and models of thought can lead to curriculum development projects that build on the intuitive understandings and practiced methods students bring with them to school. Perhaps the most striking need for such curriculum development may be in Third World countries, yet there is mounting

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evidence that schools in general do not take advantage of their students’ intuitive mathematical and scientific grasp of the world” [ISGEm-Newsletter, 1985, 1(1), p. 2].

Como é que a etnomatemática pode satisfazer ao mesmo tempo as ‘condições’ (1), (2) e (3)? isto é, como é que a etnomatemática pode pertencer ao mesmo tempo à matemática, à etnologia e à didática da matemática?

Quando A. Bishop compara a definição do casal Ascher (Etnomatemática como o estudo de ideias matemáticas dos povos sem escrita [Ascher & Ascher, 1986, p. 125; cf. Ascher, 1984]) com uma de D’Ambrosio (Etnomatemática como uma coleção mais local de ideias matemáticas, que possivelmente ainda não são tão desenvolvidas e sistematizadas, como as da ‘corrente principal’ da matemática [Bishop, 1989, p. 2, 3], ele chega à conclusão de que o conceito de etnomatemática ainda não constitui um termo bem definido e que “in view of the ideas and data we now have, perhaps it would be better not to use that term but rather to be more precise about which, and whose, mathematics one is referring to in any context” [Bishop, 1989, p. 13].

Quando comparamos os ‘níveis’ distintos (1), (2) e (3), nos quais se interpreta a etnomatemática, podemos concordar com o apelo de Bishop à prudência. Talvez seja provisoriamente melhor falar de um acento etnomatemático na investigação e na educação matemática, ou de um movimento etnomatemático, que podemos caracterizar do seguinte modo: * ‘Etnomatemáticos’ salientam e analisam as influências de

factores socioculturais sobre o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento da matemática;

* Através do conceito de etnomatemática chama-se a atenção para o facto de que a matemática, com as suas técnicas e verdades, constitui um produto cultural 7; salienta-se, que cada povo – cada cultura e cada subcultura – desenvolve a sua própria matemática, em certa medida, específica. A matemática é considerada como uma atividade pan-humana, universal [Ascher & Ascher, 1981, p. 159]. Como produto cultural, a matemática tem a sua história. Ela nasceu sob determinadas condições económicas, sociais e culturais e desenvolveu-se em determinadas direções; nascida noutras condições, ela

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desenvolveu-se noutras direções. Por outras palavras, o desenvolvimento da matemática não é ‘unilinear’ [Ascher & Ascher, 1986, 139, 140].

* ‘Etnomatemáticos’ salientam que aparentemente a matemática escolar do ‘curriculum’ transplantado e importado é bastante alheia às tradições culturais de África, Ásia e América do Sul. Aparentemente (est)a matemática vem de fora para o ‘Terceiro Mundo’. Na realidade, contudo, grande parte dos conteúdos dessa matemática escolar é de origem africana e asiática. Os povos subjugados foram desapropriados dela no processo da colonização , em que se destruiu grande parte da sua cultura (científica) 8 [Cf. Gerdes, 1985b]. Posteriormente, os ideólogos coloniais negaram ou desprezaram os restos da matemática africana, asiática e dos índios. As capacidades matemáticas dos povos do ‘Terceiro Mundo’ foram negadas ou reduzidas à memorização. Esta tendência continuou-se e intensificou-se com a transplantação de ‘curricula’ nos anos sessenta dos países altamente industrializados para os países do ‘Terceiro Mundo’.

* ‘Etnomatemáticos’ tentam contribuir para o conhecimento das realizações matemáticas dos povos outrora colonizados. Procuram elementos culturais, que sobreviveram ao colonialismo e na base dos quais se encontram, entre outras, ideias matemáticas. Tentam reconstruir estes pensamentos matemáticos. 9

* ‘Estudos etnomatemáticos’ nos países do ‘Terceiro Mundo’ procuram tradições matemáticas que sobreviveram à colonização, atividades matemáticas na vida diária das populações e analisam as possibilidades de as incorporar nos ‘curricula’. 10

* ‘Estudos etnomatemáticos’ procuram também outros elementos culturais que podem servir como ponto de partida para atividades matemáticas no ensino. 11

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Notas 1. Cf. ISGEm-Newsletter, 1985, 1(1), p. 2: etnociência,

etnobiologia, etnobotânica, etnoquímica, etnoastronomia; Harris, 1969, p. 568: etnociência, etnolinguística, etnosemântica; Campos, 1987: etnociência, etnoastronomia.

2. Cf. a definição de Lévi-Strauss de etnozoologia: “... the positive knowledge which the natives (of this part of the world) possess concerning animals, the technical and ritual uses to which they put them, and the beliefs they hold about them” [Lévi-Strauss, 1962, p. 133].

3. Cf. Bishop, 1989, p. 3: “In a sense that term [matemática ocidental, pg] is ...inappropriate since many cultures have contributed to this knowledge...”

4. Vide, por exemplo, Harris, 1987, p. 26: “ ‘Ex Africa semper aliquid novi’ Pliny is supposed to have written: ‘There is always something new from Africa.’ Part of the newness of Paulus Gerdes;’ work in Mozambique [Gerdes 1986a] is that he offers ‘non-standard problems’, easily solved by many illiterate Mozambican artisans, to members of the international mathematics education community - who cannot (at first) do them. They have trouble in constructing angles of 90o, 60o and 45o and regular hexagons out of strips of paper, problems which are no trouble at all to people for whom the intellectual and practical art of weaving is a necessary part of life. Recently I have been offering to experienced teachers and teachers in training some of the ‘non-standard problems’ that are easily solved by any woman brought up to make her or her family’s clothes. Many of the male teachers are so unfamiliar with the construction and even shape and size of their own garments that they cannot at first perceive that all you need to make a sweater (apart from the technology and tools) is an understanding of ratio and all you need to make a shirt is an understanding of right-angled and parallel lines, the idea of area, some symmetry, some optimization and the ability to work from 2-dimensional plans to 3-dimensional forms. What makes the problems non-standard is the viewpoint of those who set the standards. Gerdes’ work, and the work of others in the field of ethnomathematics offer a rather

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threatening confrontation to the traditional standard setters. Gerdes is up against a number of factors that until recently have tried to determine the education, or previous lack of it, in his country. The freshness of his work is his illustration of the mathematics that already exists in Mozambican culture and how he is setting about ‘defrosting’ it. It is interesting to take Gerdes’ analysis and his energy and commitment and to apply them worldwide and in the different context of women’s culture...”

Cf. também Mellin-Olsen, 1986. 5. Estudantes e colegas de D’Ambrosio, tais como Carraher,

Schliemann, Ferreira e Borba publicaram muitos exemplos interessantes desta matemática espontânea.

6. Cf. o comentário de Bishop: “... in many underdeveloped countries and former colonies [there

is a response] which is aimed at developing a greater awareness of one’s own culture. Cultural rebirth or cultural ‘conscientisation’ is a recognized goal of the educational process in several countries. Gerdes, in Mozambique, is a teacher educator who has done a great deal of work in this area. He seeks not only to demonstrate interesting mathematical aspects of Mozambican life but also to develop the process of ‘defreezing’ the ‘frozen’ mathematics, which he uncovers. For example, with the plaiting methods used by fishermen to make their fish traps, he demonstrates significant geometric ideas which could easily be assimilated into the mathematics curriculum in order to create what he considers to be a genuine Mozambican mathematics education for the young people there” [Bishop, 1989, p. 13].

7. Cf. os estudos mais antigos do etnólogo White e do matemático Wilder.

8. Cf. por exemplo Bishop: “One of the greatest ironies..is that several different cultures and

societies contributed to the development of [the so-called] Western Mathematics - the Egyptians, the Chinese, the Indians, the Moslems, the Greeks as well as the Western Europeans. Yet when Western cultural imperialism imposed its version of Mathematics on the colonized societies, it was scarcely recognizable as anything to which these societies might have contributed...” [Bishop, 1989, p. 14].

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9. Cf. por exemplo: Ascher & Ascher, 1981; Bassanezi & Faria, 1988; Marschel, 1987; Closs, 1986; Doumbia, 1988; Njock, 1985; Villadiego, 1984; Gerdes, 1985b, 1986g, 1989 a, b, e.

10. Cf. por exemplo: Borba, 1987, 1988; Carraher, 1982; Ferreira & Imenes, 1986; Ferreira, 1986, 1988a e b; Shirley, 1988; Bishop, 1988a e b; Harris, 1987; Gerdes, 1982, 1985a, 1986a, b, g, 1987a, 1988b,e, 1989a.

11. Cf. Zaslavsky, 1988; Harris, 1987; Langdon, 1988; Gerdes, 1986b, d, 1988a, b, c, d, e, f, g, 1989a.

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Etnomatemática: Cultura, Matemática, Educação

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Capítulo 4

Como reconhecer pensamento geométrico escondido:

uma contribuição para o desenvolvimento da antropologia da matemática *

__________ * Versão abreviada da conferência Sobre cultura, matemática e

desenvolvimento curricular em Moçambique, proferida no Seminário Internacional sobre Matemática e Cultura, Bergen, Noruega, 26-28 de Setembro, 1985. O texto foi traduzido da revista internacional For the Learning of Mathematics (Montreal, 1986, 6(2), p. 10-12, 17), por Joaquina Silva, docente do Departamento de Matemática na Delegação do Instituto Superior Pedagógico na Cidade da Beira, Moçambique.

__________ Confrontação

São educadores matemáticos, não é verdade? Vejamos se são bons em matemática.

* Sabem como construir uma circunferência, dado o seu

perímetro?

* Sabem como construir ângulos que meçam 90o, 60o ou 45o, usando somente as tiras de papel que eu vos distribuí?

* Qual é o menor número de tiras de papel de que precisam para serem capazes de entrançar uma tira mais larga?

* Podem obter um triângulo equilátero a partir da dobragem de um quadrado de papel?

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* Sabem como construir um hexágono regular a partir de tiras de papel?

Dei-vos cinco minutos. Quem resolveu todos os problemas? Ninguém? Como é possível? Quem resolveu quatro problemas? Ninguém? Três deles? ...

Falharam? Não têm as capacidades matemáticas necessárias? ... Não, essa não é a razão; precisam de mais tempo, não é? Mas são matemáticos, não são? Precisam de mais tempo para analisar estes problemas não

estandardizados. Está bem. Mas deixem-me dizer-vos que muitos dos nossos artesãos moçambicanos (‘analfabetos’) sabem como resolver estes problemas ... (obviamente “formulados” de outro modo). Introdução

O Presidente da Comissão Interamericana de Educação Matemática, Ubiratan D’Ambrosio, enfatizou a necessidade de reconhecimento, incorporação e compatibilização de etno-matemática no currículo (e.g., D’Ambrosio, 1984, p. 10). Esta integração das tradições matemáticas “requer o desenvolvimento de métodos de investigação

antropológicos relacionados com a matemática bastante difíceis” (D’Ambrosio, 1985, p. 47). “Matemática antropológica ... constitui um tema de investigação essencial em países do Terceiro Mundo ... como terreno subjacente sobre o qual podemos desenvolver o currículo de um modo relevante” (D’Ambrosio, 1985, p. 47). Para ser capaz de incorporar práticas (matemáticas) populares no

currículo, é antes de mais necessário reconhecer o seu carácter matemático. Métodos de contagem tradicionais, e.g. por meio de nós em cordas e sistemas de numeração, são facilmente reconhecíveis

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como matemática. Mas no que diz respeito ao pensamento geométrico, como reconhecê-lo?

As casas tradicionais moçambicanas têm telhados cónicos e bases circulares ou rectangulares. Esteiras rectangulares são enroladas em cilindros. Cestos possuem rebordos circulares. Armadilhas de pesca exibem buracos hexagonais. Podem estes exemplos figurar nas lições de matemática como ilustrações de noções geométricas?

Só como ilustrações? Esta é uma questão fundamental que foi também posta

recentemente por Howson, Nebres e Wilson no seu artigo de discussão sobre matemática escolar nos anos 90: “Tem havido crescentes declarações, particularmente com

respeito a países em vias de desenvolvimento, sobre ‘etno-matemática’, i.e., atividades matemáticas identificadas na vida quotidiana de sociedades. Por exemplo, uma variedade de tipos de simetria é usada para decoração em todas as culturas, numerosas construções são feitas ilustrando leis matemáticas. Em que medida são estas atividades realmente ‘matemáticas’? O que é isso que faz as actividades ‘matemáticas’ em vez de, digamos, ‘capazes de elaboração ou legitimação matemática’?” (Howson et al., 1985, p. 15).

Para responder a esta questão, vamos analisar alguns exemplos.

1º exemplo

Figura 4.1

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Tomem duas tiras de papel. Como podem dobrá-los, uma à volta da outra, para serem capazes de as entrançar depois (ver as Figuras 4.1 e 4.2)? Qual deve ser o ângulo inicial entre as duas tiras? Variem o ângulo. O que descobrem?

Figura 4.2

Figura 4.3

Figura 4.4

Só um ângulo especial torna possível futuras dobras (ver as Figuras 4.3, 4.4 e 4.5). Dois tipos de tiras podem ser entrelaçadas deste modo (ver as Figuras 4.6 e 4.7). O padrão de tiras da Figura 4.7 admite

11'

2 2'

2

2'1

1'

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mudanças de direção, como o ‘circular a volta’ da Figura 4.8. É exatamente esta possibilidade que torna este processo de entrelaçar tiras muito útil. Por exemplo, os artesãos moçambicanos utilizam este método para fazer os seus chapéus de palha, ligando as sucessivas voltas de uma espiral entrançada.

Figura 4.5

Figura 4.6

Figura 4.7

2

2'1

1'

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Figura 4.8

Repito de novo a questão. Pode este resultado ser usado na aula de matemática apenas como uma ilustração de noções geométricas? Qual é a vossa resposta?

Ao descobrir o método de entrelaçamento das tiras, fizeram matemática? Analisaram os efeitos da variação do ângulo entre as duas tiras de papel iniciais?

Indo mais longe. O que pode ser dito sobre aquele ângulo necessário entre as duas tiras?

Observem a tira resultante. Aquele ângulo particular cabe três vezes num ângulo raso (ver a Figura 4.9). Os triângulos pequenos possuem três destes ângulos, portanto ....

Figura 4.9

Que outro conhecimento geométrico pode ser obtido? (ver por exemplo a Figura 4.10).

12

3

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Figura 4.10 2º exemplo

Considerem o seguinte problema prático. Em muitas situações é desvantajoso ter um cesto densamente entrelaçado, e.g. quando se transportam pequenos pássaros num cesto, eles precisam de respirar. Por isso é útil ter um cesto com buracos. Um cesto com buracos poderá também ser menos pesado. Podem entrelaçar cestos com buracos?

Como na Figura 4.11?

Figura 4.11

Os buracos são fixos? Mais ou menos flexíveis? Pode-se permitir isto? Por que não? Como pode ser resolvido o problema?

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Figura 4.12 Talvez entrelaçando em mais do que duas direções? O que

acontece quando se introduzem tiras de suporte? E.g. de modo diagonal? (ver a Figura 4.12). Como podem ser introduzidos para que os buracos fiquem fixos? É possível adaptar as três direções de tal modo que eles fiquem mais ‘iguais’?

O padrão hexagonal regular resultante é exatamente o que os camponeses moçambicanos usam para os seus cestos de transporte leves e os pescadores para as suas armadilhas de pesca.

Estão fazendo matemática? Ainda estão duvidando? Suspendam por favor o vosso

julgamento para um momento posterior. Resolvamos juntos outro problema prático de produção.

3º exemplo

Como podemos apertar um rebordo às paredes de um cesto quando ambos, o rebordo e as paredes, são feitos do mesmo material? Tentem resolver este problema por vós próprios. Tomem duas tiras de papel iguais e considerem uma delas como uma parte do rebordo, a outra como pertencente à parede. Como se pode juntá-las?

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Podemos juntar as tiras do rebordo e da parede como na Figura 4.13? Não ... É necessário enrolar a tira da parede uma vez mais à volta da tira do rebordo. Deste modo (Figura 4.14)? Não? Então como? Como na Figura 4.15?

Figura 4.13

Figura 4.14

←→

Figura 4.15

Mas o que acontece quando achatam a tira da parede (ver a Figura 4.15)? Como podemos evitar o problema? Qual deve ser o ângulo inicial entre a tira da parede e a do rebordo (Figura 4.16)?

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Figura 4.16

Completemos o rebordo e a parede. Que acontece? Vejam a Figura 4.17. Há outras possibilidades? Introduzindo mais tiras horizontais ... o que acontece agora? Uma vez mais um padrão hexagonal aparece (ver a Figura 4.18).

Figura 4.17

Figura 4.18

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Que outro conhecimento geométrico pode ser obtido?

Possibilidade de um padrão de mosaicos hexagonal (ver a Figura 4.19), etc.

Figura 4.19

Fizeram matemática? Vamos tentar tirar algumas conclusões destes poucos exemplos

(muitos outros exemplos podem ser dados, ver Gerdes, 1985b). Um método para reconhecer pensamento geométrico escondido.

Na nossa análise de formas geométricas de objetos tradicionais (moçambicanos), como cestos, esteiras, potes, armadilhas de pesca, etc., colocamos a questão: porquê estes produtos materiais possuem a forma que têm? Para responder a esta questão, aprendemos as técnicas usuais de produção e tentamos variar as formas. Daí surgiu que as formas destes objetos quase nunca são arbitrárias, mas possuem geralmente muitas vantagens práticas, e constituem, muitas vezes, a única solução possível ou a solução óptima de problemas de produção específicos, como nos exemplos que demos. As formas tradicionais refletem experiência e sabedoria acumuladas. Constituem uma expressão não só de conhecimento biológico e físico acerca dos materiais que são usados mas também de conhecimento matemático.

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(Os primeiros resultados desta investigação estão sumarizados em Gerdes, 1985b). Valor cultural e pedagógico

Existe matemática ‘escondida’ ou ‘congelada’. O artesão que imita uma técnica de produção conhecida não está, geralmente, a fazer muita matemática. Mas o artesão que descobriu a técnica, fez matemática, desenvolveu matemática, estava a pensar matematicamente.

Descongelando esta matemática congelada, redescobrindo matemática escondida na cultura moçambicana, mostramos na verdade que o povo moçambicano, como qualquer outro povo, fez matemática. Depois de tantos anos de repressão colonial da cultura, encorajamos, descongelando a matemática congelada, uma compreensão de que o povo moçambicano - e outros povos outrora colonizados - era capaz de desenvolver no passado a matemática e, portanto, reganhando confiança cultural (Gerdes 1982, 1985a), será capaz, agora e no futuro, de desenvolver e usar criativamente a matemática.

O descongelamento da matemática congelada pode servir como ponto de partida para fazer e elaborar matemática na sala de aula, como mostramos nos exemplos que demos relacionados com a geometria.

Ao mesmo tempo ‘o descongelamento da matemática congelada’ força os matemáticos e os filósofos a refletir na relação entre pensamento geométrico e produção material, entre fazer matemática e tecnologia. Donde vêm as (iniciais) ideias geométricas? (Gerdes, 1985b). Referências D’Ambrosio, U. [1984]: The intercultural transmission of

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Capítulo 5

Sobre elementos matemáticos nos

‘Sona’ da tradição Tchokwe * __________ * Texto de uma conferência proferida em Arusha (Tanzânia), no

Congresso dos Matemáticos da África Oriental (Setembro de 1989). Publicado em inglês na revista internacional For the Learning of Mathematics (Montreal, 10(1), Fevereiro de 1990, 31-34). A tradução é de Joaquina Silva (docente do Departamento de Matemática na Delegação do Instituto Superior Pedagógico na Cidade da Beira, Moçambique) e foi publicada no Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática (Lisboa, Nº 20, Junho de 1991, 21-27).

__________ Introdução: a tradição de desenhos dos Tchokwe

O povo Tchokwe (ou Quioco), com uma população de cerca de um milhão, habita predominantemente o nordeste de Angola, região de Lunda. São tradicionalmente caçadores, mas desde meados do século 17 também se dedicam à agricultura. Os Tchokwe são conhecidos pela sua bela arte decorativa, que abrange desde a ornamentação de esteiras e cestos entrançados, trabalho em ferro, cerâmica, gravação de cabaças e tatuagens até pinturas nas paredes e desenhos na areia.

Quando os Tchokwe se encontram no centro da aldeia ou nos campos de caça, sentados à volta da fogueira ou à sombra de árvores frondosas, costumam passar o tempo em conversas ilustrando-as com desenhos (lusona, plural sona) no chão. Muitos destes desenhos pertencem a uma velha tradição; referem-se a provérbios, fábulas, jogos, advinhas, animais, etc. e têm um papel importante na transmissão do conhecimento e da sabedoria de uma geração para a

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seguinte. Os desenhos têm de ser executados suave e continuamente, pois qualquer hesitação ou paragem da parte do desenhador é interpretada pela audiência como uma imperfeição ou falta de conhecimento, o que é assinalado com um sorriso irónico (Fontinha, 1983).

Para facilitar a memorização dos seus estandardizados pictogramas e ideogramas, os ‘akwa kuta sona’ – especialistas de desenho – inventaram uma interessante mnemónica: depois de limpar e alisar o chão, marcam com as pontas dos dedos uma rede ortogonal de pontos equidistantes.

Figura 5.1

O número de filas e colunas depende do motivo a ser

representado. Por exemplo, para representar as marcas deixadas no chão por uma galinha perseguida, são precisas cinco filas de seis pontos (veja a Figura 5.1; Santos, 1961, p. 48). Aplicando o seu método – um exemplo de uso antigo de um sistema de coordenadas (cf. Santos, 1960, p. 267) – os ‘akwa kuta sona’ reduzem, em geral, a memorização de um lusona completo à de dois números e de um algoritmo geométrico. Análise e reconstrução de elementos matemáticos

A tradição dos sona esteve em desaparecimento: “o que se encontra hoje são provavelmente só vestígios de um repertório de símbolos espantosamente rico e variado, que se torna cada vez mais obsoleto” (Kubik, 1987, p. 59). Durante vários anos estudei os sona

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que foram registados na literatura etnográfica (especialmente Hamelberger, 1952; Santos, 1961; Fontinha, 1983; Kubik, 1987) e na literatura etnomatemática (Zaslavsky, 1973, Ascher, 1988) e, na base de uma análise sistemática dos (implícitos) valores culturais, consegui a reconstrução de elementos matemáticos importantes na tradição sona. Os primeiros resultados estão publicados em Gerdes, 1989c. a. Simetria e monolinearidade

A maior parte dos sona exibem simetria bilateral, bilateral dupla ou rotacional (veja os exemplos na Figura 5.2). Muitos sona são monolineares, isto é, são compostos de uma única linha arredondada fechada. No estudo anteriormente mencionado mostrei que alguns dos referidos sona feitos de duas ou mais linhas sobrepostas são, de facto, versões degradadas de padrões originalmente monolineares. Os prováveis sona originais foram reconstruídos (cf. a minha análise da tradição de desenhos Tâmil do Sul da Índia, que está tecnicamente relacionada com a tradição Tchokwe. Gerdes, 1989a). A Figura 5.3 dá um exemplo. Este lusona representa uma leoa com duas crias. O original reconstruído é monolinear (quando não se toma em consideração as caudas, que são desenhadas no fim).

bilateral bilateral dupla

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simetria rotacional

Figura 5.2

relatado reconstruído Figura 5.3

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cabeça de búfalo antílope rato Figura 5.4

b. Classes e algoritmos geométricos

Os sona podem ser classificados de acordo com o tipo de algoritmo geométrico que foi usado para os desenhar. Por exemplo, todos os sona na Figura 5.4 pertencem à mesma classe do pictograma da Figura 5.3b. Os sona na Figura 5.5 pertencem à mesma classe do pictograma da Figura 5.1. Estes sona podem ser chamados extensões do lusona da Figura 5.1. Variando as dimensões (mas não arbitrariamente, porque apenas algumas dimensões são possíveis!) das redes dos pontos de referência e aplicando o mesmo algoritmo geométrico, os ‘akwa kuta sona’ obtêm muitas dessas extensões. A Figura 5.6 mostra o algoritmo usado no caso das marcas deixadas no chão por uma galinha perseguida.

Figura 5.5

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Figura 5.6

c. Regras para a construção de sona monolineares

Os ‘akwa kuta sona’ conheciam uma série completa de regras de construção para padrões monolineares. A Figura 5.7 mostra uma destas regras no caso da composição de um padrão monolinear a partir de dois sona parcialmente sobrepostos que pertencem à classe da Figura 5.4.

Figura 5.7

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Para a representação de um leopardo com cinco crias (veja

Figura 5.8) esta regra foi aplicada quatro vezes. Os ‘akwa kuta sona’ que inventaram esta e outras regras de construção (cf. Gerdes, 1989c) sabiam porque eram válidas, i.e., podiam provar de um modo ou doutro a verdade dos teoremas que estas regras expressam.

Figura 5.8

Potencial educacional e matemático

Aquilo em que eu, inicialmente, estava mais interessado era na reconstrução do conhecimento matemático que esteve presente à invenção dos sona. Para se garantir que sejam monolineares os desenhos da classe da Figura 5.4, o número de filas e o número de colunas da rede de pontos referencial têm de ser números primos entre si. Isto conduziu-me à formulação de um modelo didático, geométrico, para a determinação do maior divisor comum de dois números naturais (veja Gerdes, 1988a) e de um modelo físico para a determinação de números primos (veja Gerdes, 1989c).

Há muitas maneiras de usar os sona Tchokwe na educação matemática. No meu artigo “Desenhos tradicionais na areia em Angola e seus possíveis usos na aula de matemática” (Gerdes, 1988a, 1989d) são dados exemplos que vão desde o estudo de relações aritméticas, progressões, simetria e semelhança até aos chamados grafos de Euler. Foi elaborada uma série de problemas geométricos: ‘Encontre as figuras que faltam’ (Gerdes, 1988b, c), como uma variante do conhecido tema dos problemas aritméticos do tipo

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‘Encontre os números que faltam’. A Figura 5.9 mostra um exemplo. Estes problemas têm como objectivo desenvolver uma sensibilidade para algoritmos geométricos, generalização e simetria. Outros usos didáticos dos sona foram sugeridos nos livros “Vivendo a matemática: Desenhos da África” (Gerdes, 1990) e “Lusona: recreações geométricas de África” (1991).

Figura 5.9

Muitas das (sub)classes (reconstruídas) dos ideogramas

Tchokwe satisfazem um princípio de construção comum. As curvas envolvidas podem ser geradas do seguinte modo: cada uma delas é a versão arredondada do caminho poligonal descrito por um raio de luz emitido do ponto A (veja Figura 5.10 como exemplo). O raio é reflectido nos lados do rectângulo ‘circunscrito’ à rede de pontos referencial. Ele encontra no seu caminho, através da rede de pontos, espelhos de dois lados que estão colocados, em intervalos regulares, horizontalmente no meio entre dois pontos vizinhos na vertical da rede e verticalmente no meio entre dois pontos vizinhos na horizontal da rede. Uma vez formulado este princípio de reconstrução comum, tornou-se possível encontrar uma grande classe de curvas fechadas que satisfaçam o mesmo princípio. A Figura 5.11 dá exemplos. A classe de curvas, que encontrei deste modo, é atrativa e interessante por muitas razões: as curvas são esteticamente atraentes; podem ser usadas em desenho têxtil, por exemplo; filmando-as, começando a curva num ponto, vê-se um algoritmo geométrico em ação; podem possivelmente

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ser aplicadas na codificação de informação, no desenvolvimento de circuitos de memória laser para computadores ópticos, no estudo da topologia de circuitos integrados de larga escala, etc.

Figura 5.10

A

A

A

a

b

c

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Figura 5.11

O estudo das propriedades matemáticas destas curvas constitui

um novo e atrativo campo de investigação. Um teorema com muitas consequências é ilustrado na Figura 5.12.

a b

Figura 5.12

Se alguém executa um desenho como este em papel quadriculado e enumera os quadrados por onde a curva passa sucessivamente, módulo 4, então obtém-se sempre um esquema como o da Figura 5.13.

13

01

23

01

2

2

0

21

03

1

2

0

3

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Figura 5.13 Observações finais

O estudo da tradição de desenho Tchokwe, ameaçada de extinção durante o período colonial, não é só interessante por razões históricas. A incorporação no currículo desta tradição sona, tanto em África como noutras partes do mundo, contribuirá para a reanimação e valorização da velha prática dos ‘akwa kuta sona’, reforçará a apreensão do valor da herança artística e científica do continente africano, poderá contribuir para o desenvolvimento de uma educação matemática mais produtiva e mais criativa. Por outro lado, uma análise dos sona dos Tchokwe estimula o desenvolvimento de novas áreas de investigação matemática. Referências Ascher, Marcia [1988]: Graphs in cultures (II): a study in

ethnomathematics, Archive for the History of Exact Sciences, Berlin, 39(1), 75-95.

Fontinha, Mário [1983]:Desenhos na areia dos Quiocos do Nordeste de Angola, Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa

0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0

0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 00 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0

0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 00 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 03 2 3 3 2 2 3 3 2 2 32

3 2 3 3 2 2 3 3 2 2 323 2 3 3 2 2 3 3 2 2 32

3 2 3 3 2 2 3 3 2 2 323 2 3 3 2 2 3 3 2 2 32

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Gerdes, Paulus [1988a]: On possible uses of traditional Angolan sand drawings in the mathematics classroom, Educational Studies in Mathematics, Dordrecht / Boston, 19(1), 3-22.

Gerdes, Paulus [1988b]: Find the missing figures. A series of geometric problems inspired by traditional Tchokwe sand drawings (Angola) and Tamil threshold designs (India), Mathematics Teaching, Derby, Vol. 124, p. 0, 18-19, 50.

Gerdes, Paulus [1988c]: Find the missing figures, Namnären, Tidskrift for Matematikundervisning, Estocolmo, 15(4), 51-53.

Gerdes, Paulus [1988d]: On possible uses of traditional Angolan sand drawings in the mathematics classroom, Abacus, Journal of the Mathematical Association of Nigeria, Ilorin, 18(1), 107-125.

Gerdes, Paulus [1989a]: Reconstruction and extension of lost symmetries: example from the Tamil of South India, Computers and Mathematics with Applications, Oxford, Vol. 17, 791-813.

Gerdes, Paulus [1989b]: On ethnomathematical research and symmetry, in: Nagy, D. & Darvas, G. (coord.), Symmetry in a kaleidoscope, Budapest (Symmetry: Culture and Science, Budapest, 1( 2), 1990, 154-170).

Gerdes, Paulus [1989c]: Rekonstruktion und Analyse von mathematischen Elementen in der Tchokwe Sandzeichnung-Tradition, in: Ethnomathematische Studien, Maputo / Leipzig, 120-189.

Gerdes, Paulus [1989d]: Desenhos tradicionais na areia em Angola e seus possíveis usos na aula de matemática, Bolema Especial, Rio Claro, Nº 1, 51-78.

Gerdes, Paulus [1990]: Desenhos da África, Editora Scipione, São Paulo, 64 p. (Publicado em várias línguas).

Gerdes, Paulus [1991]: Lusona: recreações geométricas de África, Instituto Superior Pedagógico, Maputo, 117 p. (Novas edições: Moçambique Editoras, Maputo & Texto Editoras, Lisboa, 2002; Edição colorida: Lulu, Morrisville NC, 2012).

Hamelberger, E. [1952]: A escrita na areia, Portugal em África, Lisboa, Nº 53, 323-330.

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Jaritz, Wolfgang [1983]: Über Bahnen auf Billardtischen - oder: eine mathematische Untersuchung von Ideogrammen Angolanischer Herkunft, Graz.

Kubik, Gerhard [1987]: African space/time concepts and the tusona ideographs in Luchazi culture with a discussion of possible cross-parallels in music, African Music, Grahamstown, 6(4), 53-89.

Santos, Eduardo dos [1969]: Sobre a matemática dos Quiocos de Angola, Garcia de Orta, Lisboa, Vol. 8, 257-271.

Santos, Eduardo dos [1961]: Contribuição para o estudo das pictografias e ideogramas dos Quiocos, Estudos sobre a etnologia do ultramar português, Lisboa, Vol. 2, 17-131.

Zaslavsky, Claudia [1973]: Africa counts: Number and pattern in African culture, Prindle, Weber & Schmidt, Boston, 328 p.

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Capítulo 6

Sobre cultura, pensamento geométrico

e educação matemática * __________ * Artigo publicado na revista internacional Educational Studies in

Mathematics (Dordrecht / Boston, 1988, 19(2), 137-162) e no livro Mathematics Education and Culture (coord. A. Bishop, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht / Boston, 1988, p. 137-162), traduzido do Inglês para o Português por Joaquina Silva, docente no Departamento de Matemática da Delegação do Instituto Superior Pedagógico na Cidade da Beira, Moçambique.

__________

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* Este artigo é dedicado a Samora Machel, o primeiro

Presidente da República Popular de Moçambique, fonte de inspiração para o nosso trabalho e estudo, que morreu no dia 19 de Outubro de 1986, dia da conclusão deste artigo.

“A colonização é o maior destruidor da cultura que a

humanidade alguma vez conheceu ... as manifestações da cultura longamente suprimidas têm de reganhar o seu lugar ...” (Samora Machel, 1978).

“A educação deve dar-nos uma personalidade moçambicana

a qual, sem subserviência de qualquer espécie e mergulhada nas nossas próprias realidades, seja capaz, em contacto com o mundo exterior, de assimilar criticamente as ideias e experiências de outros povos, passando também para eles os frutos do nosso pensamento e da nossa prática” (Samora Machel, 1970).

Alguns aspectos culturais e sociais da educação matemática em países do Terceiro Mundo

Em muitos dos países outrora colonizados, a educação pós-independência não teve sucesso na satisfação da fome de conhecimento das massas populares.

Embora tenha ocorrido uma explosão dramática na população escolar em muitas nações Africanas nos últimos vinte e cinco anos, a média da taxa de analfabetismo para África era ainda de 66% em 1980. Salas de aula superlotadas, carência de professores qualificados e falta de materiais de ensino contribuem para níveis baixos de resultados. No caso da educação matemática, esta tendência tem sido reforçada por uma apressada transplantação curricular das nações altamente industrializadas para os países do Terceiro Mundo. 1 Com a transplantação do currículo foi também copiada a sua perspectiva: “a matemática (elementar) é vista só como um patamar para a matemática

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do secundário, a qual por sua vez é vista como uma preparação para a educação universitária”. 2 A educação matemática é então estruturada no interesse de uma elite social. Para a maioria das crianças, a matemática aparece como bastante inútil. A aversão à matemática está espalhada; especialmente para os filhos e filhas de camponeses e operários, a matemática goza de pouca popularidade. A educação matemática serve para a selecção de elites: “A matemática é reconhecida universalmente como o filtro educacional mais efectivo”, como El Tom sublinha. 3 Ubiratan D’Ambrosio, presidente do Comité Inter-Americano de Educação Matemática afirma: “... a matemática tem sido usada como uma barreira ao acesso social, reforçando a estrutura de poder prevalecente nas sociedades (do Terceiro Mundo). Na escola, nenhum outro assunto serve tão bem este propósito do reforço da estrutura de poder como a matemática. E a principal ferramenta para este aspecto negativo da educação matemática é a avaliação.” 4

No seu estudo das dificuldades de aprendizagem matemática dos Kpelle (Libéria), Gay e Cole concluíram que não existem dificuldades inerentes: o que acontecia na sala de aula era o facto de o conteúdo não fazer nenhum sentido do ponto de vista da cultura Kpelle; além disso os métodos usados eram baseados principalmente em memorização mecânica e disciplina severa. 5 Experiências mostraram que os adultos Kpelle analfabetos tinham melhores resultados que adultos Norte Americanos quando resolviam problemas como a estimação do número de taças de arroz num recipiente, que pertencem à sua ‘matemática indígena.’ 6 São também colocados por investigadores Latino-americanos sérias dúvidas sobre a efectividade do ensino matemático escolar. Eduardo Luna (República Dominicana) colocou a questão se é possível que seja ‘reprimido’ e ‘confundido’ na escola o conhecimento matemático prático que as crianças adquirem fora da escola. 7 É não só possível, mas acontece frequentemente, como é mostrado pelos brasileiros Carraher e Schliemann: crianças, que sabiam como resolver criativamente problemas aritméticos que encontravam no dia a dia, por exemplo, no mercado, antes de irem à escola, podem, mais tarde na escola, não resolver os mesmos problemas, isto é, não os resolver com os métodos de aritmética ensinados na aula. 8 D’Ambrosio conclui que: “a matemática’ aprendida’ elimina a chamada matemática ‘espontânea’” 9, isto é,

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“Um indivíduo que manega perfeitamente bem os números, as operações, as noções e formas geométricas, quando enfrenta uma abordagem completamente nova e formal dos mesmos factores e necessidades cria um bloqueamento psicológico que cresce como uma barreira entre os diferentes modos de pensamento numérico e geométrico.” 10 O que acontece na escola é que “as capacidades espontâneas (são) desprezadas, reprimidas e esquecidas, enquanto as aprendidas (não são) assimiladas, como uma consequência de um bloqueamento na aprendizagem ou de uma desistência prematura ...”11 “Por esta razão, os estádios iniciais da educação matemática oferecem um caminho muito eficiente de criação do sentido de fracasso, de dependência nas crianças.” 12 Como pode ser evitado este bloqueamento psicológico? Como pode ser evitada esta “educação totalmente inapropriada, conduzindo a mal-entendido e alienação sociocultural e psicológica?” 13 Como pode ser evitado este ‘pôr de lado’ e este ‘apagar’ da (etno)matemática espontânea, natural, informal, indígena, popular, implícita, não estandardizada e / ou escondida? 14

Gay e Cole ficaram convencidos de que era necessário investigar primeiro a ‘matemática indígena’, para se poder construir pontes efectivas entre a ‘matemática indígena’ e a nova matemática a ser introduzida na escola: “... o professor deve começar com materiais da cultura indígena, levando a criança a usá-los de um modo criativo” 15, e a partir daí avançar para a nova matemática escolar. O especialista Tanzaniano de currículo, Mmari, insiste que: “... há métodos matemáticos tradicionais ainda em uso na Tanzânia. ... Um bom professor pode utilizar esta situação para sublinhar as verdades universais dos conceitos matemáticos.” 16 E como pode o bom professor conseguir isso? Jacobsen responde: “As pessoas (em África) quando estão a construir as casas não estão a usar matemática; estão a fazer matemática tradicionalmente ... se pudermos pôr a descoberto a estrutura científica do que é feito, podemos então ensinar ciência desse modo.” 17 Para D’Ambrosio torna-se necessário “... gerar modos de compreensão e métodos de incorporação e compatibilização no currículo de práticas populares conhecidos e correntes. Por outras palavras, no caso da matemática, reconhecimento e incorporação no currículo de etnomatemática” 18 “... isto requer o desenvolvimento de

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métodos de investigação antropológicos bastante difíceis; ... matemática antropológica ... constitui um tema de investigação essencial nos países do Terceiro Mundo ... como a base subjacente sobre a qual podemos desenvolver o currículo de um modo relevante.” 19 Para uma reafirmação matemático-cultural

D’Ambrosio deu ênfase à necessidade de incorporação da etnomatemática no currículo para evitar um bloqueamento psicológico. Em países anteriormente colonizados, existe também um bloqueamento cultural a ser eliminado. “Colonização – nas palavras do Presidente Samora Machel – é o maior destruidor da cultura que a humanidade tem conhecido. A sociedade africana e a sua cultura foram esmagadas, e quando sobreviveram foram cooptadas de modo a serem mais facilmente esvaziadas do seu conteúdo. Isto foi feito de dois modos distintos. Um foi a utilização de instituições com vista a apoiar a exploração colonial. O outro foi a ‘folclorização’ da cultura, a sua redução aos hábitos e costumes mais ou menos pitorescos, impondo no seu espaço os valores do colonialismo”. “A educação colonial aparece neste contexto como um processo de negação do carácter nacional, alienando o Moçambicano do seu país e da sua origem e, ao exacerbar a sua dependência do estrangeiro, forçá-lo a sentir-se envergonhado do seu povo e da sua cultura.” 20 No caso específico da matemática, esta ciência era apresentada como uma criação e capacidade exclusiva dos homens brancos; as capacidades matemáticas dos povos colonizados eram negadas ou reduzidas à memorização mecânica; as tradições Africanas e Índio-Americanas ficaram ignoradas ou desprezadas.

Um renascimento cultural é indispensável, como sublinha o Presidente Samora Machel: “... as manifestações de cultura suprimidas longamente têm de reganhar o seu lugar.” 21 Neste renascimento cultural, neste combate ao preconceito racial e colonial, uma reafirmação-matemático-cultural desempenha um papel: é necessário encorajar a compreensão de que os povos Africanos foram capazes de desenvolver matemática no passado, e portanto –

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reganhando confiança cultural 22 – serão capazes de assimilar e desenvolver a matemática de que necessitam.

Podemos concluir que a incorporação de tradições matemáticas no currículo contribuirá não só para a eliminação do bloqueamento psicológico individual e social, mas também do bloqueamento cultural relacionado. Agora, surge uma questão importante: que tradições matemáticas? Para se poder incorporar práticas populares (matemáticas), é preciso antes de mais reconhecer o seu carácter matemático. Neste sentido, D’Ambrosio fala sobre a necessidade de se alargar a nossa compreensão do que é a matemática. 23 Ascher e Ascher reparam nesta ligação: “Devido à visão provinciana dos matemáticos profissionais, muitas definições da matemática excluem ou minimizam o implícito ou informal; ... envolvimento com conceitos de números, configuração espacial e lógica, isto é, matemática implícita ou explícita, é pan-humano.” 24 Alargar a nossa compreensão do que é matemática é necessário, mas não suficiente. Um problema relacionado é o de como reconstruir as tradições matemáticas, quando provavelmente muitas delas foram – como consequência da escravatura, do colonialismo ... – destruídas. Poucas ou quase nenhumas fontes escritas (no caso de Moçambique) podem ser consultadas. Talvez para os sistemas numéricos e alguns aspectos do pensamento geométrico, a história oral possa ser uma alternativa. Que outras fontes podem ser usadas? Que metodologia?

Desenvolvemos uma metodologia complementar que capacita a descobrir na cultura material tradicional alguns momentos escondidos de pensamento geométrico. Pode ser caracterizada como se segue: olhamos para as formas e padrões geométricos de objectos tradicionais como cestos, esteiras, potes, casas, armadilhas de pesca, etc., e colocamos a questão: Por que é estes produtos materiais possuem a forma que têm? Para responder a esta questão, aprendemos as técnicas de produção usuais e tentámos variar as formas. Resultou que a forma destes objectos não é quase nunca arbitrária, mas geralmente representa muitas vantagens práticas e é, muitas das vezes, a única solução possível ou a solução óptima de um problema de produção. A forma tradicional reflecte experiência e sabedoria acumuladas. Constitui não só conhecimento biológico e físico acerca dos materiais que são usados, mas também conhecimento matemático, conhecimento acerca das propriedades e relações dos círculos, ângulos, rectângulos,

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quadrados, pentágonos e hexágonos regulares, cones, pirâmides, cilindros, etc.

Aplicando este método, descobrimos muita matemática ‘escondida’ ou ‘congelada.’ 25 O artesão, que imita uma técnica conhecida, não está, geralmente a fazer (muita) matemática. Mas o(s) artesão(s) que descobriu (descobriram) a técnica, fez (fizeram) bastante matemática, estava(m) a pensar matematicamente. Quando os alunos são estimulados a reinventar uma tal técnica de produção, estão a fazer e a aprender matemática. Eles só podem ser estimulados neste assunto se os próprios professores estão conscientes da existência da matemática escondida, estão convencidos do valor cultural, educacional e científico da redescoberta e exploração da matemática escondida, estão conscientes do potencial de ‘descongelamento’ desta ‘matemática congelada’. Apresentaremos agora algumas das nossas experiências nesta necessária ‘consciencialização cultural’ de futuros professores de matemática. Exemplos de ‘consciencialização cultural’ de futuros professores de matemática a. Estudo de construções axiomáticas alternativas de Geometria

Euclidiana na formação de professores

Foram inventadas muitas construções axiomáticas alternativas para a geometria euclidiana. Na construção de Alexandrov, 26 o famoso quinto postulado de Euclides foi substituído pelo ‘axioma do rectângulo’:

se , então

A B

CD

A B

CD

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isto é, se AD=BC e α e β são ângulos rectos, então AB=DC e γ e δ são ângulos rectos também.

Numa das sessões na sala de aula de um curso introdutório de geometria, coloquei a seguinte questão provocatória aos futuros professores de matemática – muitos deles são filhos ou filhas de camponeses – : “Que ‘axioma do rectângulo’ usam os nossos camponeses moçambicanos no seu dia a dia?” As primeiras reações eram um pouco cépticas no sentido de “Oh, eles quase não sabem nada de geometria ...” Seguiram-se contra-questões: “Os nossos camponeses usam rectângulos no seu quotidiano?” Constroem rectângulos?” Foi pedido a estudantes de diferentes partes do país que explicassem aos seus colegas como é que os seus pais constroem, por exemplo, as bases rectangulares das suas casas. Essencialmente, são comuns duas técnicas de construção: (a) No primeiro caso, começa-se por estender no chão dois paus

longos de bambu de igual comprimento.

Estes dois primeiros paus são então combinados com dois outros paus também de igual comprimento, mas normalmente mais pequenos que os primeiros.

Os paus são agora movimentados para formar um quadrilátero

fechado.

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Por último ajusta-se a figura até que as diagonais – medidas com

uma corda – fiquem com igual comprimento. Onde ficaram os paus estendidos no chão são então desenhadas linhas e a construção da casa pode começar.

(b) No segundo caso, começa-se com duas cordas de igual

comprimento que estão ligadas nos seus pontos médios.

Um pau de bambu, cujo comprimento é igual à largura desejada

da casa é colocado no chão e as pontas dos seus extremos são espetadas no chão. Um extremo de cada corda é amarrado a cada uma das pontas.

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As cordas são então esticadas e nos dois extremos restantes delas, novas pontas são espetadas no chão. Estas quatro pontas determinam os quatro vértices da casa a ser construída.

“Será possível formular o conhecimento geométrico implícito nestas técnicas de construção em termos de um axioma?”

“Que ‘axioma do rectângulo’ sugerem elas?” Os estudantes chegaram agora aos dois seguintes ‘axiomas de rectângulo’ alternativos: (a)

isto é, se AD=BC, AB=DC e AC=BD, então α, β, γ, e δ são ângulos rectos. Por outras palavras, um paralelogramo com diagonais iguais e um rectângulo. (b)

se , então

A B

CD

A B

CD

se , então

A B

CD

A B

CD

M

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isto é, se M é o ponto de interseção de AC e BD e AM=BM=CM=DM, então α, β, γ, e δ são ângulos rectos, AD=BC e AB=DC. Por outras palavras, um quadrilátero cujas diagonais são iguais e se intersectam ao meio é um rectângulo.

“Afinal, os nossos camponeses sabem alguma coisa de geometria”, repara um estudante. Um outro, mais duvidoso: “Mas estes axiomas são teoremas, não são?”...

Esta sessão conduziu a uma compreensão mais profunda por parte dos estudantes das relações entre experiência, as escolhas possíveis de axiomas, e axiomas e teoremas nas primeiras fases de construções axiomáticas alternativas. Isto prepara os futuros professores para discussões posteriores no seu estudo, sobre quais são os métodos de ensino de geometria que parecem ser mais apropriados no nosso contexto cultural. Isto contribui para a confiança matemático-cultural. b. Uma construção alternativa de polígonos regulares

Artesãos no norte de Moçambique tecem um funil do modo seguinte: começam por fazer uma esteira quadrada ABCD, mas não a terminam; com as tiras numa direcção (horizontal na nossa figura), os artesãos avançam só até ao meio.

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Então, em vez de introduzirem mais tiras horizontais, entretecem

as tiras verticais da direita (entre C e E) com as da esquerda (entre F e D). Deste modo a esteira não fica plana, mas é transformada num ‘cesto’. O centro T vai para baixo e torna-se o vértice do funil. Para garantir um rebordo estável, as suas arestas AB, BC e CA são rectificadas com pequenos ramos. Como resultado final, o funil tem a forma de uma pirâmide triangular. Isto explica resumidamente esta técnica tradicional de produção. 27

Coloquei aos nossos estudantes a seguinte questão: “Que podemos aprender desta técnica de produção?” “O quadrado ABCD foi transformado numa pirâmide triangular ABC.T, cuja base ABC é um triângulo equilátero. Talvez um método para construir um triângulo equilátero?” ...

Alguns reagiram cepticamente: “Um método muito desajeitado para fazer isso...”. Contra-questões: “Evitem conclusões precipitadas! Qual era o objectivo do artesão? Qual é o nosso objectivo?” “Podemos simplificar o método do artesão se quisermos construir só um triângulo equilátero?” “Como construir um tal triângulo a partir de um quadrado

G

D FE C

HT

A BA B

C = D

T

E = G F = H

A B

C

TA B

C

T

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de cartão?” Uma resposta a estas questões é dada nos diagramas seguintes:

dobrando as diagonais

dobrando FT

juntar os triângulos DFT e CFT até C e D coincidirem; F sobe, T desce

A B

CD

A B

CD

TT

A B

CD

T

F

A B

CD

T

F

A B

CD

T

F

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fixar o ‘triângulo duplo’ DFT à face ATC, por exemplo, com um ‘clip’

“Este método poderá ser generalizado?” “Partindo de um octógono regular, como transformá-lo numa pirâmide heptagonal regular?” “Como dobrar um octógono regular?”

dobrando as diagonais e FT

A B

D = C

TA B

D = C

T

F

T

AF

A

A

A

A

A

A

A

8

7

6

5

4

3

2

1

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F sobe, T desce e A7 e A8 aproximam-se até coincidirem

“Como transformar uma pirâmide heptagonal regular numa

pirâmide hexagonal regular?” Como são mais fáceis de dobrar os 2n-

gonos (dobrando a diagonal central quando se começa com um quadrado) e é aplicado de cada vez o ‘método do funil’ simplificado, o número de lados de um polígono regular (ou da base poligonal regular de uma pirâmide) decresce em 1, pode-se concluir que todos os polígonos regulares podem ser construídos deste modo. 28

Uma vez chegados a este ponto, é possível olhar para trás e perguntar: “Aprenderam alguma coisa dos artesãos que tecem funis?”

“É possível construir um heptágono regular usando só uma régua e um compasso?”. Por que não?” “E com o nosso método?”

“Quais são as vantagens do nosso método geral em relação às construções estandardizadas com régua e compasso?” “Quais são as desvantagens?” “Que método deve ser preferido para as nossas escolas primárias?” “Porquê?”.

c. De botões entrelaçados ao ‘Teorema de Pitágoras’ 29

Prendendo um pequeno laço à volta de um botão quadrado entrelaçado, é possível fechar a tampa de um cesto, como é feito comummente nas partes sul de Moçambique. O botão quadrado, entrelaçado com duas tiras, esconde algumas considerações

T

A

F A

A

A

A

A

A

A8

7

6

5

4

3

2

1

T

A A

A

A

AA

A

A8 7

6

5

43

2

1

=F

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geométricas e físicas notáveis. Tornando-as explícitas, o interesse nesta técnica antiga é já revivido. Mas muito mais pode ser feito a partir dela, como iremos agora mostrar.

Quando se considera o botão quadrado entrelaçado visto de cima, observa-se o padrão (a) ou, depois de rectificar as linhas levemente curvas e tornando as linhas escondidas visíveis, o padrão (b):

a b

No seu meio aparece um segundo quadrado. Que outros quadrados podem ser observados, quando se juntam alguns destes botões quadrados entrelaçados?

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Aparecerão outras figuras com a mesma área como (a do topo) de um botão quadrado entrelaçado? Sim, se quiser, pode estender alguns dos segmentos ou apagar alguns deles.

O que observa? Igualdade de áreas?

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Então C = A + B:

isto é, chega-se ao chamado ‘Teorema de Pitágoras’.

Os estudantes redescobrem eles mesmos este importante teorema e conseguem prová-lo. Um dos estudantes observe: “Não tivesse Pitágoras - ou alguém antes dele - descoberto este teorema, nós tê-lo-íamos descoberto” ... Exatamente! Estimula-se o desenvolvimento da necessária (auto)confiança matemático-cultural acima referida ao não só tornar explícito o pensamento geométrico ‘congelado culturalmente’ nos botões quadrados entrelaçados, mas ao explorá-lo, ao revelar o seu completo potencial.

“Não tivesse Pitágoras ... , nós tê-lo-íamos descoberto”. O debate começa. “Poderiam os nossos antepassados ter descoberto o ‘Teorema de Pitágoras’?”. “Fizeram-no?” ... “Por que é que não o sabemos?” ... “Escravatura, colonialismo ...”. Ao descongelar o pensamento matemático congelado’ estimula-se a reflexão no impacto do colonialismo, nas dimensões históricas e políticas da educação (e) matemática. d. De armadilhas de pesca tradicionais a funções circulares

alternativas, futebol e a geração de poliedros (semi)regulares

Os camponeses moçambicanos entrelaçam os seus cestos de transporte ‘litenga’ e os pescadores as suas armadilhas ‘lema’ com um padrão de buracos hexagonais regulares. Uma maneira para descobrir este padrão é a seguinte: como se pode prender um rebordo às paredes

B

A

C

ou CB

A

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de um cesto, quando o rebordo e a parede são ambos feitos com o mesmo material? Como enrolar uma tira da parede à volta da tira do rebordo?

←→

O que acontece quando se pressiona (horizontalmente) a tira da parede? Qual é o melhor ângulo inicial entre o rebordo e a tira da parede?

No caso de ambas as tiras terem a mesma largura, verifica-se que o ângulo inicial óptimo mede 60o. Juntando mais tiras da parede da mesma maneira e introduzindo depois mais tiras horizontais, obtém-se o padrão ‘litenga’ de buracos hexagonais regulares.

60o

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Por este processo de redescoberta do pensamento matemático escondido nestes cestos e armadilhas de pesca – noutras técnicas de produção tradicionais – os nossos futuros professores sentem-se eles próprios estimulados para reconsiderar o valor da nossa herança cultural: de facto, o pensamento geométrico não era e não é alheio à cultura moçambicana. Mas mais do que isso.

Este “descongelamento da matemática culturalmente congelada” pode servir, de muitas maneiras, de ponto de partida e fonte de inspiração para fazer e elaborar outras ideias matemáticas interessantes. No caso concreto deste padrão de entrelaçamento hexagonal, por exemplo, pode ser desenvolvido o seguinte conjunto de ideias geométricas. * Padrões de pavimentos e formulação de conjecturas

Hexágonos regulares e outros padrões de pavimentação relacionados podem ser descobertos pelos estudantes.

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hexágonos

triângulos losangos pentágonos

Com os triângulos equiláteros assim encontrados, podem ser

construídos muitos outros polígonos. Ao considerar estas figuras, podem ser formuladas conjecturas gerais, por exemplo:

* a soma das medidas dos ângulos internos de um polígono de n lados é igual a 3(n-2).60o.

* as áreas de figuras semelhantes são proporcionais aos

quadrados dos seus lados.

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lado=1, área=1=12; lado=2, área=4=22 ; lado=3, área=9=32

* a soma dos n primeiros números ímpares é n2.

Uma vez feitas as conjecturas, surge a questão da justificação, como provar os teoremas. * Uma função circular alternativa

Regressemos ao entrelaçamento destes cestos ‘litenga’. O que acontece quando as tiras ‘horizontais’ e ‘enroladas’ são de larguras diferentes, por exemplo 1 (unidade de medida) e a?

a

1

!

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Encontra-se um padrão hexagonal semi-regular. Como é que o ângulo óptimo ∝ depende de a ?

∝ = hex(a) Como varia !? ∝ e a podem ser ambos medidos. Encontra-se a seguinte relação:

Temos aqui uma maneira culturalmente integrada para introduzir

uma função circular. Depois do estudo das funções trigonométricas ‘normais’, as relações com a função aqui considerada podem ser facilmente estabelecidas, por exemplo:

a = hex-1

(∝) = !

! !"#!

* Bolas de futebol e poliedros

As faces e as arestas da armadilha de pesca ‘lema’ exibem o padrão de buraco hexagonal regular. Nos seus vértices a situação é diferente. Os artesãos descobriram que, para serem capazes de construir a armadilha, ‘curvando’ as faces nos seus vértices, é necessário, por exemplo, nos vértices A, B e C reduzir o número de tiras. Nestes pontos, as seis tiras que ‘circunscrevem’ um hexágono, têm de ser reduzidas para cinco. É por isso que se encontra nestes vértices pequenos buracos pentagonais.

2

1

30 60 90 graus

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O que pode ser aprendido deste conhecimento implícito? Que tipos de cestos podem ser entrelaçados, que exibam em todos os seus vértices buracos pentagonais?

O que resulta é que o ‘cesto’ mais pequeno possível, feito com seis tiras, é semelhante à bem conhecida bola de futebol moderna, feita com peças de couro pentagonais e hexagonais.

bola entrelaçada bola de futebol

Quando se ‘planifica’ esta bola, obtêm-se um icosaedro

truncado, limitado por 20 hexágonos regulares e 12 pentágonos regulares. Ao estender estes 20 hexágonos, gera-se o icosaedro regular. Por outro lado, quando se estendem os 12 pentágonos é produzido o dodecaedro regular.

Que tipo de ‘cestos’ pode ser entrelaçado, se se aumentar a sua ‘curvatura’? Em vez de ‘vértices’ pentagonais entrelaçados, surgem vértices-buracos quadrados. Ao planificar a ‘bola’ mais pequena possível, encontra-se um octaedro truncado, limitado por 6 quadrados e 8 hexágonos regulares. Uma vez mais, por extensão das suas faces,

AC

B

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são descobertos novos poliedros regulares, desta vez, o cubo e o octaedro regular. Quando se aumenta ainda mais a curvatura da ‘bola’, aparecem vértices-buraco triangulares e ao ‘planificar’ a ‘bola’ obtém-se um tetraedro truncado, limitado por 4 hexágonos regulares e 4 triângulos equiláteros. Por extensão das suas faces triangulares ou hexagonais obtém-se um tetraedro regular.

Muitas questões interessantes podem ser colocadas ao futuro professor, como por exemplo:

* Será possível ‘entrelaçar’ outros poliedros semi-regulares? Semi-regular em que sentido?

* Geramos todos os poliedros regulares? Porquê? * O que acontece se, em vez de se reduzir o material num

vértice do cesto, se aumenta? Observações finais

A reafirmação matemático-cultural é uma parte da luta contra o ‘subdesenvolvimento matemático’ e o combate do preconceito racial e (neo)colonial. Parece indispensável e, por exemplo, de forma já descrita, uma ‘consciencialização cultural’ dos futuros professores de matemática. Algumas outras condições e estratégias para a educação matemática se tornar emancipatória nos países anteriormente colonizados e (por isso) subdesenvolvidos foram sugeridas pelo autor noutros artigos. 30 Agradecimento O autor agradece ao Prof. Alan Bishop (Universidade de Cambridge, Inglaterra) pelo seu convite para redação deste artigo. Notas

1 Cf. e.g. Eshiwani (1979), Nebres (1983) e El Tom (1984). 2 Broomes e Kuperes (1983, p. 709).

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3 El Tom, (1984, p. 3.) 4 D’Ambrosio (1983, p. 363). 5 Gay e Cole (1967, p. 6). 6 Gay e Cole (1967, p. 66). 7 Luna (1983, p. 4) 8 Carraher e outros (1982). 9 D’Ambrosio (1984, p. 6). Cf. D’Ambrosio (1985b). 10 D’Ambrosio (1984, p. 6), itálicos P.G. 11 D’Ambrosio (1984, p. 8), itálicos P.G. 12 D’Ambrosio (1984, p. 7). 13 Pinxten (1983, p. 173). 14 D’Ambrosio: espontânea; Carraher e. o.: natural; Posner, Ascher

e. o.: informal; Gay e Cole: indígena; Mellin-Olsen: popular; Ascher e Ascher: implícita; Carraher e. o.: não-estandardizada; Gerdes: escondida, ‘congelada’; D’Ambrosio e. o.: etno-.

15 Gay e Cole (1967, p. 94) 16 Mmari (1978, p. 313). 17 Citado por Nebres (1984, p. 4). 18 D’Ambrosio (1984, p. 10). 19 D’Ambrosio (1985a, p. 47) 20 Machel (1978, p. 401). 21 Machel (1978, p. 402). 22 Cf. Gerdes (1982,1985a). 23 D’Ambrosio (1985, p. 45). 24 Ascher e Ascher (1981, p. 159 itálicos P.G.); cf. Gerdes (1985b,

#2). 25 Os primeiros resultados estão sumarizados em Gerdes (1985b).

Cf. Gerdes (1986a, f). Ao trazer à superfície o pensamento geométrico que estava escondido em técnicas de produção muito antigas, como a da cestaria, conseguimos formular novas hipóteses sobre o modo como os egípcios e os mesopotâmios antigos podiam ter descoberto as suas formulas para a área do

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círculo (cf. Gerdes (1985b, c, 1986d)) e para o volume da pirâmide truncada (cf. Gerdes (1985b)). Resultou possível formular novas hipóteses sobre como o chamado ‘Teorema de Pitágoras’ pôde ter sido descoberto (cf. Gerdes (1985b, 1986c, e)).

26 Curso experimental desenvolvido para escolas secundárias na URSS (1981) por um grupo dirigido pelo académico A. Alexandrov.

27 O conhecimento geométrico implícito que revela é analisado em Gerdes (1985b).

28 Para mais detalhes, ver Gerdes (1986b). 29 Outra introdução ‘integrada culturalmente’ ao ‘Teorema de

Pitágoras’ é apresentada em Gerdes (1986c, g). 30 Cf. e. g. Gerdes (1985a, 1986a), D’Ambrosio (1985b) e Mellin-

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Capítulo 7

Um motivo decorativo amplamente difundido e o

Teorema de Pitágoras * __________ * Tradução dum artigo publicado na revista internacional For the

Learning of Mathematics (Montreal, 8(1), 1988, 35-39). __________

No estudo clássico de Gay e Cole [1967] sobre as dificuldades de aprendizagem de matemática dos Kpelle (Libéria), os autores concluíram [p. 6], que não existem dificuldades inerentes. O que acontecia na sala de aula era que os conteúdos não faziam nenhum sentido sob o ponto de vista da cultura Kpelle.

Investigações e análises posteriores reforçaram essa conclusão e reconheceram que, tendo em conta o ‘falhanço educacional’ de muitas crianças dos países do Terceiro Mundo e de comunidades étnicas minoritárias em países industrializados como a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos da América, é necessário (multi)culturalisar o currículo escolar para poder melhorar a qualidade da educação matemática [cf. por exemplo, Bishop, 1988; D’Ambrosio, 1985a, b; Eshiwani, 1979; Gerdes 1985a, b, 1986a, b, 1988a, b; Ginsburg & Russell, 1981; Mellin-Olsen, 1986; Nebres, 1983; Njock, 1985]. Por outras palavras, o currículo de matemática deve ser ‘enquadrado’ no ambiente cultural dos alunos. Não só a etnomatemática, mas também outros elementos culturais podem servir como ponto de partida para fazer e elaborar matemática na sala de aula [cf. D’Ambrosio, 1985a, b; Gerdes, 1986b, 1988a, b].

Neste artigo exploramos o potencial matemático-educacional de um elemento cultural: um motivo decorativo amplamente difundido.

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motivo decorativo de ‘estrela’

Figura 7.1

detalhe duma esteira entrelaçada (Tchokwe, Angola) Figura 7.2

Um motivo decorativo amplamente difundido

Um dos padrões de cestaria melhor conhecidos dos índios Salish da Colômbia Britânica é a chamada estrela [Ferrand, 1900, p. 397, ver a Figura 7.1]. Os índios Pomo da Califórnia chamam ao mesmo padrão costa-de-veado ou cara-de-batata [Barrett, 1908, p. 199].

Este motivo decorativo tem uma tradição longa e pode ser encontrado em todo o mundo. 1 Na Figura 7.2 apresenta-se um pormenor duma bela esteira entrelaçada de Angola. Lá o padrão é chamado tartaruga [Bastin, 1961, p. 116]. O mesmo padrão de ‘estrela’ encontra-se também em pavimentos em países de língua árabe

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[Hutt, 1977, p. 43], em têxteis da Escandinávia (ver a Figura 7.3), do México Antigo [Weitlaner-Johnson, 1976, Vol. 1, Pl. 63, 64. Ver a Figura 7.4), Nigéria, Argélia [Picton & Mack, 1979, p. 35, 75] etc., em cestos do Lesotho, Quénia, Moçambique, etc. e num jogo de tabuleiro da Libéria [Machatscheck, 1984, p. 55].

padrão tradicional norueguês de têxtil Figura 7.3

padrão índio-mexicano Figura 7.4

Descobrir o Teorema de Pitágoras

Observando o número de quadrados unitários em cada fila de uma ‘estrela’ (ver a Figura 7.5), constata-se facilmente que a área de uma ‘estrela’ é igual à soma das áreas do quadrado sombreado 4 por 4 e do quadrado branco 3 por 3. 2

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quatro filas de quatro

três filas de três

Figura 7.5

Ao padrão de ‘estrela’ (Figura 7.1) pode também chamar-se ‘quadrado dentado’. Um quadrado dentado, em particular um com muitos dentes, aparenta um quadrado verdadeiro. E assim surge naturalmente a seguinte questão: será possível transformar um quadrado dentado num quadrado verdadeiro da mesma área?

demasiado grande demasiado grande demasiado pequeno certo

333

4444

T C

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b c Figura 7.6

Experimentando (ver a Figura 7.6), os alunos podem ser

conduzidos a tirar a conclusão de que isto é de facto possível. Na Figura 7.5 vimos que a área de um quadrado dentado (T) é

igual à soma das áreas de dois quadrados menores (A e B): T = A + B.

Na base da Figura 7.6 concluímos que a área dum quadrado dentado (T) é igual à área dum quadrado verdadeiro (C). Tendo agora em conta C=T, podemos concluir que

A + B = C.

Será que existem outras relações entre estes três quadrados? O que acontece quando se desenha o quadrado dentado juntamente com os dois quadrados verdadeiros (em que se decompõe) em papel quadriculado, de tal forma que se tornem ‘vizinhos’?

A Figura 7.7 mostra uma solução possível. Quando, em seguida, desenhamos o último quadrado verdadeiro (área C) na mesma figura, chegamos ao Teorema de Pitágoras no caso particular de triângulos rectangulares de lados a, b e c com a:b = n:(n+1), onde o quadrado dentado inicial tem n+1 dentes em cada lado. A Figura 7.8 ilustra o Teorema de Pitágoras no caso especial do triângulo rectangular (3, 4, 5). Na base destas experiências, os alunos podem ser levados a conjecturar o Teorema de Pitágoras em geral. Deste modo, quadrados

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dentados assumem um valor heurístico para a descoberta desse teorema importante.

Figura 7.7

Figura 7.8

T

A

B A + B = T

C

A

B A + B = C

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Será que este mesmo processo de descoberta sugere também

demonstrações (novas) do Teorema de Pitágoras? O que acontece quando se inverte o processo? Quando se

começa com dois quadrados arbitrários e se os utiliza para gerar um quadrado dentado, a que se poderá ser levado? Uma primeira demonstração

Sejam A’ e B’ dois quadrados arbitrários. Para a nossa inspiração olhemos para a Figura 7.5: disseque A’ em 9 quadrados congruentes pequenos e B’ em 16 quadrados congruentes, e junte, em seguida, as 25 peças como na Figura 7.9. O quadrado dentado assim obtido T’ tem área (T) igual à soma das áreas dos quadrados verdadeiros A’ e B’:

T = A + B. Por, uma vez mais, o quadrado dentado poder ser facilmente

transformado num quadrado verdadeiro C’ da mesma área (ver a Figura 7.10), chegamos a

A + B = C, isto é, ao Teorema de Pitágoras em toda a sua generalidade.

a

A

B

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b

Figura 7.9

Figura 7.10

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Uma infinidade de demonstrações

Em vez de dissecar A’ e B’ em 9 e 16 subquadrados, podemos dissecá-los, para cada valor natural de n, em n2 e (n+1)2 subquadrados respectivamente. A Figura 7.11 ilustra o caso n=14. A cada valor de n corresponde uma demonstração do Teorema de Pitágoras. 3 Por outras palavras, existe uma infinidade de demonstrações desse teorema famoso.

n = 14

Figura 7.11

Para valores relativamente altos de n, a verdade do Teorema de Pitágoras é quase imediatamente visível. Quando se toma o limite n→∞, obtemos mais uma demonstração do teorema.

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Para n=1 obtém-se uma demonstração muito curta e de fácil compreensão (ver a figura 7.12).

Figura 7.12

Teorema de Pappus

Analogamente, a generalização de Pappus do Teorema de Pitágoras para paralelogramas pode ser demonstrada de infinitas maneiras (A Figura 7.13 mostra o caso n=3).

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a

b

Figura 7.13 Exemplo

O estudo bem conhecido de Loomis “The Pythagorean Proposition” dá, ao todo, 370 demonstrações diferentes [1940; 1972, p. 269] e o seu autor convida os leitores “leia e escolha; ou melhor, encontre uma demonstração nova e diferente...” [p. 13]. A nossa reflexão sobre um motivo decorativo amplamente difundido não só levou a um caminho alternativo e ativo para introduzir o Teorema de

A + B = T

C

A

BA + B = C

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Pitágoras na sala de aula, como também para gerar uma infinidade de demonstrações do mesmo teorema. Sirva este exemplo como mais um estímulo para a multiculturalização da educação matemática. Notas 1. A possível origem técnica na fabricação de cestos é analisada em

Gerdes [1985, p. 47-51, 78-80]. 2. Também de muitas outras maneiras se podem conduzir os alunos a

tirar esta conclusão. Por exemplo, o professor pode pedir-lhes para transformarem uma ‘estrela’ feita de tijolos soltos em duas figuras semelhantes monocromáticos. Ou pode pedir-lhes para recortarem o maior quadrado possível duma ‘estrela’ feita de papel ou de cartolina e analisar quais as figuras que se podem formar com as outras peças (ver a Figura 7.14).

Figura 7.14

3. Estas demonstrações foram elaboradas pelo autor em [1986d]. 4. Uma outra demonstração por meio de limites foi dada em Gerdes

[1986c].

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Capítulo 8

Condições e estratégias para uma educação matemática emancipatória nos países subdesenvolvidos *

__________ * A palestra A Matemática ao Serviço do Povo: Alguns exemplos,

ideias e experiências pessoais na formação de professores em Moçambique foi proferida na “Caribbean Conference on Mathematics for the Benefit of the Caribbean Communities and its Reflection in the Curriculum”, que teve lugar em Paramaribo, a capital do Suriname, de 18 a 21 de Outubro de 1982. O autor participou nesta conferência a convite do Comité Interamericano de Educação Matemática (CIAEM). Publicada em: Ciência e Tecnologia, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Nº 7, 1984, 8-14; reproduzida em: Alfabetização técnica, a arte de aprender ciências e matemática, Universidade de Ijuí, RS, Brasil, 1992, 59-72. Versão em Inglês publicada, sob o título Conditions and strategies for emancipatory mathematics education in underdeveloped countries, na revista internacional For the Learning of Mathematics, Montreal, 1985, 5(1), 15-20; reproduzida em: Is mathematics teaching neutral?, University of Cape Town, 1987, 10-15; reproduzida, como um dos artigos mais influentes na educação matemática do último século, em: Bishop, Alan J. (Coordenador), Mathematics Education: Major Themes in Education, Routledge, London, 2010, Volume 1, 179-189.

__________

Refletindo sobre as suas experiências em Moçambique, o autor sugere algumas condições e estratégias para a educação matemática poder tornar-se emancipatória em países subdesenvolvidos.

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Ponto de partida: A educação matemática não pode ser neutral

Através do seu trabalho físico e intelectual, a humanidade é capaz de criar uma sociedade cada vez mais humana. Refletindo sobre as suas realizações, descobrindo as leis da natureza e da sociedade, a humanidade cria os seus instrumentos materiais e intelectuais para transformar a realidade, quer a natureza quer a sociedade. A matemática constitui um todo, integrado, destes instrumentos para compreender e transformar a realidade. Uma sociedade cada vez mais humana é a direção mais racional. No entanto, a humanidade dispõe, hoje em dia, dos meios para a sua autodestruição. Nem a matemática, nem a educação matemática, nem os matemáticos, podem ser indiferentes perante essas possibilidades diametralmente opostas:

mais humano pacífico

libertando criando

←→

mais desumano bélico

oprimindo destruindo

emancipando explorando

A história de Moçambique mostra de uma maneira bem claro que a educação matemática não pode ser neutral. 1 A matemática foi ensinada, durante a ocupação portuguesa e de acordo com os interesses do capitalismo colonial, apenas a uma pequena minoria das crianças africanas (veja Mondlane 1969). E estes Moçambicanos aprendiam a matemática para poderem calcular melhor as quotas obrigatórias da produção de algodão, o imposto de palhota e para se tornarem “boss-boys” mais lucrativos nas minas sul-africanas. Depois de uma guerra popular, dirigida pelo movimento de libertação FRELIMO, o colonialismo português foi derrotado e Moçambique alcançou a Independência em 1975. Os objectivos pós-independentes da educação matemática estão serviço da construção duma sociedade socialista

1 A história da matemática e da educação matemática é descrita nos documentos do 1º Seminário Nacional sobre o ensino da Matemática (1980), tal como em Gerdes (1980a, 1981a).

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(Veja Machel 1977, Ganhão 1978). A matemática ensina-se para “servir a libertação e o progresso pacífico do povo”. A matemática ensina-se para colocar as aplicações da matemática ao alcance das massas operárias e camponesas. A matemática ensina-se para estimular, por parte das largas massas, o interesse e o gosto pela criação matemática. Estes são objectivos gerais. Contudo, como eles podem ser realizados? Educação matemática para emancipação. Como?

A Independência e a opção pelo socialismo implicaram uma democratização global da educação matemática em Moçambique: a maioria das crianças e centenas de milhar de adultos já ganharam acesso à matemática; a profissão de professor de matemática já se abriu para filhos de camponeses e de trabalhadores; e a discussão sobre como melhorar a qualidade da educação matemática já não é reservada para uma elite, mas está a tornar-se um objecto de reflexão por parte da massa de professores, desde professores de educação de adultos e do ensino primário até aos docentes universitários (cf. Gerdes 1981a). A democratização global é uma condição necessária mas não suficiente para a educação matemática se tornar realmente emancipatória – cada um dominando a matemática e capaz de pensar matematicamente, para o benefício de toda a sociedade. Na base da experiência do autor quanto à formação de professores de matemática, algumas outras condições necessárias serão apresentadas. Problematizando a realidade em situações de sala de aula

Oiçamos brevemente alguns diálogos ocorridos nas minhas aulas: * Um estudante entra na sala de aula, atrasado e barrulhento.

Confrontação. Os teus pais puderam estudar no tempo colonial? Não... Quem paga os teus estudos? (Com a Independência em 1975, o ensino tornou-se grátis em Moçambique). Os camponeses e os operários... Quantos dias um camponês precisa de trabalhar para pagar o teu atraso? O que quer dizer? Quanto custa? O que temos de saber para podermos calculá-lo? (Num

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caso concreto, a turma calculou que o atraso duma hora, dum aluno, corresponde ao valor de um dia de trabalho dum camponês).

* Ao ler o jornal, uma fotografia: um camião passou numa ponte sobre o rio Changana e a ponte caiu. Porquê? O camião estava demasiadamente pesado? A ponte mal construída?

* Num relatório do Centro de Estudos Africanos da nossa universidade relata-se que, na empresa agrícola estatal de Moamba, um motorista de trator conduziu a sua máquina, durante duas horas, à velocidade máxima, para buscar dois pães. Porque é que ele fez assim? É justificável? É racional? Porque não? Como se pode explicar o seu comportamento? Como avaliar os custos?

* Num determinado período, a produção de açúcar foi baixando. Porquê? Mudanças no sistema de pagamento dos trabalhadores tinham sido introduzidas: dum pagamento em termos do número de filas de cana de açúcar cortadas, para um pagamento baseado no número de quilogramas de cana de açúcar cortada. Porquê? Como explicar as consequências económicas? Como aumentar a produção? A matemática está envolvida?

* O nosso país sofreu com as cheias dos rios Limpopo (1977) e Zambeze (1978). Porque não tivemos cheias nos primeiros anos de oitenta? A matemática está envolvida? Como?

* No combate contra a especulação, introduziu-se na cidade de Maputo (1981) um sistema de abastecimento dos géneros da primeira necessidade. Quanto arroz para cada pessoa neste mês? Quanto arroz pode ser comido, cada dia, por uma família de cinco pessoas? Estes diálogos são exemplos de problematizar a realidade

(Terminologia de Paulo Freire, 1970). “A realidade deve estar colocada diante de nós”, a isto é que se chama problematizar a realidade no sentido profundo do grego original “προ-βαλλειν”; não se pode fugir da realidade, é necessário refletir. A experiência mostra que problematizar a realidade leva a uma consciência da relevância da matemática como um meio de compreender e de transformar a realidade. Leva à consciência política (como no caso do estudante atrasado e dos seus colegas); à consciência física (como no caso da

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ponte que caiu); à consciência económica (como no exemplo do motorista de trator), etc.

Vejamos mais exemplos de como problematizar a realidade antes de tirar uma segunda conclusão – exemplos que fornecem um contexto rico, 2 cheio de sentido, à educação matemática. * Na província de Cabo Delgado, estudantes souberam que a área

duma machamba de algodão é de tantos metros. A área foi medida em m e não em m2? Faz sentido? Porquê?

* A produção moçambicana de sabão foi de 16 300 t em 1980 e de 23 700 t em 1981. Quais serão as necessidades nacionais em 1990? Como calculá-las? De quanto será a produção de sabão em 1990? Haverá crescimento regular das capacidades de produção ou não? Regular em que sentido? Porquê?

* Para vencer a batalha contra o subdesenvolvimento, na década de 80, a Assembleia Popular aprovou o Plano Prospectivo Indicativo para a década. Precisamos de x escolas em 1990. Em 1981, já temos y escolas e construímos mais z escolas. Como devemos estender as nossas capacidades para a construção de escolas? Crescimento regular? Regular em que sentido? Linear? Parabólico? Exponencial? (A análise destas questões fornece uma introdução possível ao estudo de sucessões exponenciais (ou geométricas)).

* As mulheres vão buscar água nas suas latas cilíndricas. São exploradas? O desenvolvimento conduzirá à água canalizada para cada casa. E entretanto? As latas podiam ser menos pesadas? É possível produzir mais latas com a mesma quantidade de matéria prima? Como? Quais são as consequências? (Esta análise constitui uma introdução possível ao estudo do cálculo diferencial). É de salientar que problematizar a realidade leva a uma

compreensão real da realidade, leva a uma compreensão da matemática como um instrumento para transformar a realidade. Dêmos

2 A terminologia é de Hans Freudenthal. Veja Gerdes (1981b).

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mais um exemplo para reforçar esta segunda conclusão (Veja Gerdes 1982). 3 * A riquetsiose é ainda uma das doenças mais frequentes nos

ruminantes (bois, cabritos, ovelhas) nesta zona de África. Ela mata bastante gado no nosso país. Veterinários descobriram um medicamento para curar animais doentes, chamado terramicina. Quanto medicamento se precisa para cada animal? Esta quantidade depende de que? Da cor do animal? Da altura? Como depende essa quantidade do peso da vaca? Dependência linear? Exponencial? Porquê? Como podemos determinar o peso de um boi ou de uma vaca? Somente em empresas bem equipadas é que se encontram balanças para pesar animais tão pesados como vacas. O que se pode fazer no campo menos desenvolvido? O peso de um animal se relaciona com ... ? Porquê? Como? Será possível determinar o peso de uma vaca de uma maneira indireta? Uma vaca saber nadar? O que isto implica? Relação peso-volume? Como se pode determinar o volume de uma vaca? Observemos uma vaca de perto: A forma do tronco duma vaca é aproximadamente cilíndrica! (Veja as figuras). Etc.

3 Para este e outros exemplos mais elaborados, veja Gerdes (1982).

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Tronco visto de trás

A realidade pode ser mudada. Mais animais poderão sobreviver. A população terá mais comida e mais leite. Cálculos melhorados levam à redução da quantidade de medicamento. E, como estes medicamentos ainda são importados, a aritmética bem aplicada poupa divisas. Problematizar a realidade motiva os estudantes e dá uma entrada

a métodos matemáticos potentes.

Criar confiança Para que a educação matemática se torne emancipatória, é

necessário estimular a confiança nos seus poderes criadores, em cada pessoa e em cada povo, confiança nas capacidades para compreender, desenvolver e usar a matemática. Pelo menos três tipos de estratégias para originar uma tal confiança devem ser considerados. A. Estratégias culturais

A colonização implicou o subdesenvolvimento de Moçambique e da maioria dos países do ‘Terceiro Mundo’. Subdesenvolvimento não é só um processo económico. A dominação estrangeira também

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causou um subdesenvolvimento matemático: matemática africana e índia-americana ficou ignorada ou menosprezada; as capacidades de certos povos foram negadas ou reduzidas à mera memorização; a matemática foi apresentada como uma criação e habilidade exclusiva dos homens brancos. Uma reafirmação cultural faz parte da luta contra o subdesenvolvimento matemático e do combate contra o preconceito racial e colonial. É necessário encorajar a compreensão de que 1) o povo tem sido capaz e será capaz de desenvolver a

matemática. Exemplos: a) Nas zonas litorais de Moçambique, seca-se o peixe para ser

vendido no interior. Como secar o peixe? Através da sua experiência, 4 os pescadores descobriram que é necessário colocar todo o peixe à mesma distância do fogo. Eles descobriram um conceito de circunferência, construindo a circunferência na areia, utilizando uma corda e dois paus (veja as figuras).

4 Veja Cherinda (1981).

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(Desenhos de Marcos Cherinda)

b) Como construir a base rectangular duma casa? Em algumas partes de Moçambique, os camponeses moçambicanos utilizam o seguinte método:

1

Colocam no chão dois paus de comprimento igual.

2

Combinam os primeiros dois paus com dois outros paus, também de comprimento igual.

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3

Ajustam a posição dos paus até se fechar o quadrilátero. Obtêm um paralelograma.

4

Ajustam mais a figura até ao momento em que as diagonais se tornem do mesmo comprimento. Obtêm assim um rectângulo. Lá onde os paus se encontram no chão, marcam os vértices e os lados do rectângulo. A construção da case pode-se iniciar.

Este conhecimento dos camponeses foi divulgado, à escala

nacional, na campanha para a criação de pequenas espécies, para ser utilizado na construção de pavilhões de coelhos.

2) a matemática do povo pode enriquecer a compreensão da matemática, do seu ensino e da sua história.

Exemplos: a) Em algumas zonas do norte de Moçambique, a construção das

aldeias obedeceu, tradicionalmente, ao seguinte padrão “circular”:

rua

casas

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Esta estrutura duma aldeia e, por exemplo, a estrutura do ninho

dum pássaro podem levar à formação dum mesmo conceito de “circunferência”: “pertencer a”. Este conceito é estendido por comparação da forma ou conteúdo (“pertencer a”), por exemplo, à borda duma peneira.

A fabricação duma esteira a partir do enrolar e coser de uma

banda de sisal conduz à formação de um outro conceito de “circunferência” (“circunferência espiral”).

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Ainda podemos ter um terceiro conceito de “circunferência”, o dos pescadores. Três conceitos abstratos, refletindo realidades diferentes. 5 Na língua oficial de Moçambique – o Português – existem dois conceitos de “circunferência”, a saber: circunferência (quando se refere ao perímetro) e círculo (quando se refere à área). Suponhamos que haja três conceitos de “circunferência” na língua materna duma criança. Pela interferência da língua materna e da língua de instrução, temos a seguinte matriz:

5 Representantes das classes exploradoras dizem sempre, duma maneira ou doutra, que os oprimidos não sabem racionar logicamente, não são capazes de abstrair. No entanto, os resultados da etnomatemática, da “matemática de classe” ou, usando o termo da minha preferência, da “matemática oprimida”, mostram que cada um e cada povo são capazes de abstrair. De certeza são abstrações em direções distintas e de níveis diferentes, que correspondem a distintas necessidades de vida. Na educação matemática é importante construir pontes entre as realidades distintas, tal como reflectidas em conceitos distintos.

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Língua materna M1 M2 M3

Português P1 P1 = M1 P1 = M2 P1 = M3

P2 P2 = M1 P2 = M2 P2 = M3

Assim, encontramos seis situações diferentes, bastante

complicadas: agora preciso de utilizar a terceira palavra da minha língua materna (M3), mas a segunda palavra do Português (P2), etc. Como evitar estas complicações? Comparando estes dois conceitos de “circunferência”, no Português, com o conceito de “quadrado” (geométrico), vemos que não existe uma necessidade de termos mais do que um conceito de “circunferência”: um referente à área e outro referente ao perímetro (tal como no Português)... Paradoxalmente, ao “abolir” uma das duas palavras da língua oficial, enriquece-se a linguagem científico-didática: apenas um conceito de “circunferência”! E assim se facilita o processo de aprendizagem da matemática por parte dos estudantes neste contexto multilinguístico.

b) Em certas zonas de Moçambique, existe um conceito de “cilindro”, que pode ser descrito como “esteira rectangular, enrolada”.

Este conceito pode ser utilizado como um caminho para descobrir a fórmula do volume dum cilindro (a partir da fórmula do volume dum paralelepípedo rectangular, no processo de aproximações sucessivas). Não só pode ser utilizado na educação, como também na formulação de hipóteses de como,

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há muito tempo, as primeiras fórmulas aproximativas) para o volume de cilindro puderam ser descobertas.

3) cada povo é capaz de desenvolver a matemática.

Isto pode ser feito através da divulgação da história cultural da

matemática. Através de palestras e da publicação de brochuras sobre matemática africana, indiana, chinesa e árabe, atira-se a atenção para o fato de que muito povos têm contribuído para o desenvolvimento da matemática. Deste modo faz-se uma tentativa de combater uma visão etnocêntrica e distorcida da história da matemática. As brochuras tentam analisar, de uma maneira acessível ao grande público, não só como, mas também porquê e para quê a matemática foi desenvolvida em sociedades diferentes em tempos distintos (Veja Gerdes 1980b, 1981b, 1984a) B. Estratégias sociais

Na sociedade colonial, como em qualquer sociedade de classes, preconceitos sobre os talentos matemáticos das camadas sociais discriminadas e exploradas, tal como de mulheres, são bastante generalizados. Para a educação matemática se tornar emancipatória, é necessário encorajar uma compreensão de que

filhos de todas as classes sociais e de ambos os sexos, são capazes de dominar, desenvolver e utilizar a matemática. Isto pode ser feito utilizando a história social da matemática.

Através de contraexemplos, desde a Hipatia de Alexandria (veja, por exemplo, Macome 1983) e Gauss aos melhores classificados nas Olimpíadas Nacionais de Matemática, desmistificam-se os preconceitos sobre as capacidades matemáticas de filhos de camponeses e de operários, desmistificam-se, também, os preconceitos sobre as capacidades das mulheres. Atribuem-se prémios especiais e bolsas de estudo às meninas melhor classificadas nas Olimpíadas de Matemática (Veja Gerdes 1984b).

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C. Estratégias individuais-colectivas

Todas as estratégias previamente mencionadas, já são individuais no sentido de que aumentam a autoconfiança estimulando o envolvimento e engajamento do indivíduo para com a matemática através do método de problematizar a realidade, reforçado pela compreensão da relevância da matemática, e pela confiança cultural e social criada. Apresentam-se em seguida estratégias mais específicas – digamos estratégias individuais-colectivas – baseadas nas minhas experiências de ensino.

a) Reflexão sobre erros

Costumo recolher “soluções” de problemas, apresentando-as, em seguida, aos estudantes, como, por exemplo, as duas soluções seguintes do mesmo problema:

1) !!!!!!

= !!!. !!!!!!. !!!

= !!!. !!!

!!!! = !!!. !!!

!!!√! =

(!!!)√!!!!√!

= !√!!!!√!

2)

!!!!!!

= ( !!!).( !!!)

!!!! = !!√!

!!!√! = !!√!

!!!√! = !!!

!!! = !

!! =

0. Os estudantes têm de analisar, individualmente, estas tentativas

de “solução”. Quais são os passos corretos, quais são os errados e porquê? Numa segunda fase, pede-se aos estudantes que comparem as suas análises a nível de grupo e tentem fazer uma análise mais profunda. Os grupos relatam as suas conclusões numa sessão da turma para uma análise final.

É interessante notar que os estudantes gostam deste tipo de “exercícios”, porque são obrigados a refletir, a argumentar e a repensar. b) Reflexão sobre a formação de conceitos Os estudantes conhecem a seguinte definição:

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para b  ∈ ℝ!! e n ∈ ℕ, define-se !! como a solução

positiva (em ℝ)  da equação !! = b. Indicamos-lhes que debatem questões tais como:

1) É possível definir !! ? Para que números? Tem sentido? 2) É possível definir !! ? É necessário? 3) Será possível definir !!! ? Se for, calcule 8!! . As perguntas são bastante abertas. Por exemplo: no último caso, encontram-se respostas por analogia:

!!! é a solução positiva da equação !!! = b, ou, aplicando uma propriedade suposta: !!! = !

!!   .

Esta reflexão estimula mais debate e, assim, contribui para uma compreensão mais profunda do conceito original.

c) Aprender a descobrir, descobrindo em conjunto

Qual será a função derivada da função f: ℝ! → ℝ, definida por f(x) =   !  ?

Os estudantes sabem que !!!!

= ! !!∆! !!(!)∆!

= !!∆!  !   !∆!

Como calcular lim∆!→!!!!!

? Como dividir Δ! por Δ! ?

Temos ! +  ∆! = ...?

Pedro sugere ! +  ∆! = ! + ∆!. Será verdade? Uma outra sugestão? Lázaro: Elevar todos os termos ao quadrado:

( ! + ∆!  −   !)! = ... Não assim? Porque? Ferdinando: Utilize uma outra notação:

! + ∆!  −   ! = (! +  ∆!)!! – !

!!

Como continuar?

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(! +  ∆!)!! – !

!! = (! +  ∆!)!!! – !!!! = (  (! +  ∆!)! −  !!)!!

Será verdade? ... Porque é que vocês quiseram trabalhar com quadrados?

( ! +  ∆!)! – ( !)! = (! +  ∆!)− ! = ∆! Como podemos chegar aí? Em geral: !! − !! = ...? !! − !! = (a − b). ...? !! − !! = (a − b).(a + b). Assim, obtemos (cada aluno tenta-o):

!!!!

= !!∆!  !   !∆!

= ( !!∆!  !   !)( !!∆!  !   !)∆!  ( !!∆!  !   !)

=

= ( !!  ∆!)!!  ( !)!

∆!  ( !!∆!  !   !) = !!  ∆! !  !

∆!  ( !!∆!  !   !) = ∆!

∆!  ( !!∆!  !   !) =

= !!!∆!  !   !

e

!!(x) = lim∆!→!!!!!

= lim∆!→!!

!!∆!  !   ! = !

! !

Ao descobrirem em conjunto e ao refletirem sobre o processo de descoberta, os estudantes aumentam as suas capacidades e potencialidades criadoras e ganham autoconfiança. Compreendem a natureza não-tautológica do conhecimento matemático (Para uma análise mais aprofundada, veja Gerdes 1983).

Observações finais

O método de problematizar a realidade como ponto de partida é já, em si só, uma atividade que cria confiança. Problematizar a realidade, quando é reforçado por estratégias culturais, sociais e individuais-colectivas de criação de confiança, levará a uma educação matemática emancipatória; capacitará cada um e cada povo a compreender, a desenvolver e a usar a matemática como um instrumento importante no processo de apreensão da realidade, quer da

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natureza quer da sociedade, como um instrumento importante para transformar a realidade, ao serviço de um mundo cada vez mais humano.

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Macome, Esselina (1983): Hipatia de Alexandria, Tlanu, Revista de Educação Matemática, Maputo, Nº 2, 28-33.

Mondlane, Eduardo (1969): The struggle for Mozambique, Zed Press, Londres.

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Capítulo 9

Sobre a origem histórica do conceito de número *

__________ * A palestra introdutória Sobre a origem histórica do conceito de

número foi proferida, no dia 23 de Outubro de 1979, na Faculdade de Matemática da Universidade Eduardo Mondlane. Publicada em: Ciência e Tecnologia, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Nº 1, 1980, 53-57.

__________

Origem histórica

O título deste ensaio Sobre a origem histórica do conceito de número já marca uma determinada tomada de posição, no sentido de esta origem ser histórica.

Leopold Kronecker (1823-1891) afirmou em 1886, falando, em Berlin, na Conferência de Cientistas de Natureza: “Os números inteiros são criados pelo Senhor Deus, tudo o resto é trabalho dos homens”. 1

Para o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) as afirmações matemáticas eram ‘a priori’, no sentido de que elas não dependem da experiência, mas são apenas produtos do pensamento puro. Segundo a escola dos Pitagóricos (6º e 5º séc. A.C.), as relações quantitativas constituem a essência das coisas. Para os Tsongas, do Sul de Moçambique, havia um tabu quanto à contagem dos homens: “Quê? Tu estás a contar-nos? Quem desejas tu ver desaparecer”. 2

1 Wussing, Hans & Arnold, Wolfgang (Coord.) (1975), Biographien bedeutender Mathematiker, Volk und Wissen, Berlin, p. 437.

2 Junod, Henrique (1974), Usos e costumes dos Bantos, Imprensa Nacional de Moçambique, Lourenço Marques, Vol. 2, p. 152.

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Assim estamos a ver que na história do pensamento humano, na história da filosofia, o conceito de ‘número’ deu motivo a especulações diversas e frequentes, onde a sua origem era suposta fora da história, numa imaginada força sobrenatural ou apenas nas potências inatas do Homem.

Na sequência da tomada de posição acima mencionada, para a qual apresentarei argumentos neste meu ensaio, queria afirmar que a origem destas especulações está na própria história tal como na conexão da escola Pitagórica com a aristocracia esclavagista nas condições de então do Sul da Europa. Historicidade

Agora pode-se pensar em “um”, “dois”, “três”, ... isto é tão fácil,

o Homem sempre soube contar! No entanto, no fim do século 19 descobriram-se – a que é que se chama “descobrir”? – no deserto de Kalahari algumas etnias que, na sua língua, apenas podiam exprimir ‘um’, ‘dois’ e ‘vários’. Faltavam-lhes palavras para ‘quatro’, ‘cinco’, etc. Como é possível?

Uma explicação tribalista podia ser: “Esta tribo é tão estúpida, mas...” Porém, uma tal explicação não tem consistência, uma vez confrontada com as línguas Bantu. Na maioria das línguas Bantu, os três primeiros numerais (um numeral é o nome dum número) são adjetivos, conjugados conforme a classe do substantivo correspondente, enquanto que os numerais seguintes são substantivos. Por exemplo, temos na língua Changana (Sul de Moçambique):

munhu munwe (‘pessoas uma’, uma pessoa)

sinha hunwe (uma árvore)

vanhu vambiri (duas pessoas) misinha mimbiri (duas árvores) vanhu vanharh (três pessoas) misinha minharh (três árvores) mas: mune wa vanhu (‘um quarteto de pessoas’, quatro pessoas)

mune wa misinha (quatro árvores)

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Esta diferença linguística sugere uma origem diferente. Por outras palavras, num passado remoto os antepassados dos atuais povos Bantu só tinham igualmente os números ‘um’, ‘dois’ e ‘três’.

Ainda se pode refugiar numa explicação racista, suspirando: “... mas o Homem civilizado sempre soube contar”. Que orgulho tinha o colonizador da sua pretendida civilização! No entanto, também esta explicação desaparece como neve perante o sol da linguística. No Português, as palavras ‘um’ e ‘dois’ conhecem também uma forma feminina, a saber ‘uma’ e ‘duas’, enquanto os outros numerais não a conhecem. E, ainda por cima, a palavra ‘três’ está relacionada com a palavra francesa ‘três’ ( = muito) e com a palavra latina ‘trans’ ( = para além), quer isto dizer, que, de igual modo, os antepassados dos povos europeus somente sabiam contar um pouco.

Com isto podemos considerar a historicidade do conceito de número como demonstrada.

Desenvolvimento da noção de número

Vejamos agora como se foi desenvolvendo a noção de número. Neste ensaio limitamo-nos às primeiras fases do desenvolvimento do conceito de número natural (1, 2, 3, 4, ...).

Para poder responder à nossa pergunta ‘como?’ apoiar-nos-emos em resultados da arqueologia, linguística e etnografia, ciências estas que ainda são relativamente muito jovens. Por exemplo, na África ao Sul do Sahara tiveram lugar muito poucas investigações arqueológicas. Por isso, apenas podemos indicar algumas linhas gerais de desenvolvimento do conceito de número.

As primeiras sociedades humanas foram as de caçadores e recolectores. Abrangem um período de 500.000 a um milhão de anos. Inicialmente o Homem ainda não dispunha duma noção explícita de número, mas já aprendia a tirar determinadas conclusões importantes para a reprodução da sua vida, conclusões às quais, atualmente, se chamam quantitativas.

Assim, por exemplo, os seres humanos foram aprendendo a estimar quantidades de comida: para hoje já capturámos bastantes animais ou não; para hoje já colhemos frutos suficientes ou não. Este processo de aprender a estimar foi possível na base de, por um lado, a constituição biológica do Homem, e, por outro lado, a experiência

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acumulada ao comparar os resultados do trabalho dum dia com os dos dias anteriores.

Dois caçadores vão em direções diferentes, à descoberta. Ambos encontram, por exemplo, alguns mamutes e voltam à tribo para buscar os outros. Mas como decidir em que direção é que se deve ir à caça. Comparando, um caçador exprime: “Vi tantos mamutes como um pássaro tem asas”, enquanto o outro diz: “Vi tantos mamutes como a minha mão tem dedos”.

Este exemplo hipotético ilustra o seguinte: em resposta a determinadas necessidades surgidas – tais como comunicar e tomar decisões, em particular, no que se refere à reprodução da vida – começou-se a comparar coleções de objetos, de tal modo que a quantidade de uma coleção se torna clara através da comparação com a quantidade de uma outra coleção: “tantos mamutes como uma ave tem asas”, “tantos cabritos como uma mão tem dedos”...

Ao comparar, deste modo, duas quantidades chama-se, na matemática atual, pôr os dois conjuntos em correspondência biunívoca: a cada elemento do primeiro conjunto faz-se corresponder, duma maneira biunívoca, um elemento do outro; a cada asa corresponde um mamute.

Desta fase de desenvolvimento encontramos ainda vestígios em muitas línguas atuais. Assim, para ‘cinco’, a raiz dos numerais ‘hlanu’, ‘nthlanu’ e ‘tano’ em Zulu, Changana e Swahili, respetivamente, significa originalmente ‘mão’ ou ‘punho’, como também acontece, por exemplo, no Grego ou no Russo. Na língua Banda da África Central, o numeral para vinte significa à letra ‘homem completo’, referindo-se ao total de vinte dedos duma pessoa. Um exemplo interessante verifica-se na língua Madingo falada no Mali. A palavra para nove, a saber ‘kononto’, significa ‘aquele lá na barriga’, dizendo respeito aos nove meses da duração duma gravidez. 3

Estes vestígios nas línguas atuais já indicam a transição de comparações individualmente inventadas, que possivelmente não são compreendidas por toda a gente, para comparações mais correntes,

3 Cf. Zaslavsky, Claudia (1970), Black African traditional mathematics, The Mathematics Teacher, Reston VA, 63(4), 345-356.

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geralmente aceites (dentro de uma determinada cultura). Foram desenvolvendo numerais como abreviatura de comparações que eram claras para cada um. Estes primeiros numerais refletem uma propriedade dum conjunto de objetos e são, por isso, adjetivos, que podem ser conjugados, como nos mostram os seguintes exemplos: em Português “dois carros” mas “duas crianças”, conforme o género do substantivo envolvido. Na língua Changana “sinha hunwe” (uma árvore), “xiharhi xinwe” (um animal), “munhu munwe” (uma pessoa), correspondente à classe do substantivo. Aqui vemos uma raiz comum “-nwe” nos numerais para ‘um’. Uma raiz comum pode pertencer a uma fase posterior, como na língua Tsimshia, falada na Colômbia Britânica (Canadá), nos mostra provavelmente: ‘t’epqat’, ‘goupel’, ‘gaopskan’, ‘g’alpeeltk’ e ‘gulbel’ são numerais diferentes, correspondendo a ‘dois’ em Português, que se referem a classes diferentes de objetos, tais como objetos achatados, redondos, compridos, pessoas, canoas e medidas, respetivamente. 4

Vê-se um desenvolvimento na direção duma substantivação crescente dos numerais no sentido de que, cada vez mais, para mais classes de objetos são utilizados os mesmos numerais, como, por exemplo, no Português, um numeral pode ser usado para quaisquer objetos e não só para redondos ou achatados. 5 Em muitas sociedades constata-se um outro desenvolvimento paralelo a esta substantivação. É o desenvolvimento para comparar com determinadas coleções padrão, tais como dedos, cortes num pau, pedrinhas (no Latim a palavra pedrinhas é ‘calculi’, da qual deriva a palavra portuguesa ‘cálculo’), riscos em pedras, etc. Perto de Ishango, no atual Congo / Zaire, foram encontrados vestígios de tais riscos em ossos que datam de 20.000 anos a.C. 6

É possível que em outras sociedades estas formas de comparar precedessem e estimulassem essa substantivação dos numerais.

4 Wilder, Raymond (1968), Evolution of mathematical concepts, Wiley & Sons, New York.

5 Struik, Dirk-Jan (1949), A concise history of mathematics, Dover, New York, 1967.

6 Vide Zaslavsky (1970).

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Em resumo, podemos constatar que a noção de número (os números naturais menores) foi nascendo num processo de abstrair, cada vez mais, de determinadas propriedades das coleções e objetos que o Homem nas sociedades de caçadores e recolectores encontrava, como resposta criadora aos problemas que enfrentava, em particular, no seu trabalho. Esta noção reflete a experiência de “inumeráveis” gerações.

Um processo semelhante de abstração verifica-se na formação de vários outros conceitos, por exemplo, na noção de ‘cor’. Em esquema: 7

objeto considerado

como um todo

↓ comparar

| | |

⎯ ... tal como

um corvo |

⎯ tantos ... como

uma mão tem dedos

↓ ↓ ↓ adjetivo

(propriedade duma coleção

de objetos)

⎯ pedra negra

| |

⎯ cinco árvores

| |

↓ ↓ ↓ substantivo

(propriedade distinguida dos

objetos concretos)

⎯ negridão | | |

⎯ cinco | | |

↓ ↓ cor ⎯ número natural

7 Cf. Aleksandrov, Alexander D. (1977), A general view of mathematics, in: Mathematics, its contents, methods and meaning, MIT, Cambridge MA, Vol. 1, 1-64.

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A propriedade que é comum a todos os conjuntos cujos elementos podem ser postos numa correspondência biunívoca com as asas dum pássaro, é o número indicado pelo nome ‘dois’ (dizendo-se, muitas vezes, abreviadamente, o número dois). Assim um número natural é a propriedade comum a todos os conjuntos cujos elementos se podem fazer corresponder biunivocamente.

Em que consistem as propriedades do número, representado pelo numeral quatro? Quatro é a soma de um e três; quatro é duas vezes dois... As propriedades de um número consistem nas suas relações com outros números, tal como, em geral, uma abstração tirada da sua base concreta, não tem significado em si próprio; ela existe apenas nas suas relações com outros conceitos. Isto coloca algumas questões: Como foram nascendo historicamente as relações entre os números? E quais foram as consequências para o desenvolvimento do conceito de número?

Relações entre os números

As operações sobre números (adicionar, multiplicar, subtrair e

dividir) foram-se desenvolvendo como reflexo das operações efetuadas com objetos concretos. Por exemplo, a adição corresponde à operação de juntar duas ou mais coleções (os frutos colhidos por um grupo, com os colhidos por outro grupo, etc.). A multiplicação desenvolve-se, em grande medida, a partir do hábito de contar ‘dois por dois’, ‘três por três’, etc., assim acelerando a contagem do número de animais num rebanho, por exemplo.

Estas primeiras operações contribuíram para a extensão do conceito de número: mais números naturais como nos mostram os seguintes exemplos.

Uma tribo, vivendo parto do rio Murray, na Austrália, usa como numerais: enea (1), petcheval (2), petcheval-enea (2+1, ou seja, 3), petcheval-petcheval (2+2, ou seja, 4), uma estrutura binária semelhante à dos pigmeus Bambuti e de tribos em Papua Guinea: 8 urapan (1), okosa (2), okosa-urapan (2+1, ou seja, 3), okosa-okosa (2+2, ou seja, 4), okosa-okosa-urapan (2+2+1, quer dizer, 5), okosa-

8 Dantzig, Tobias (1971), Number, the language of science, Macmillan, New York.

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okosa-okosa (2+2+2, ou seja, 6). Estes numerais partem sempre da base dois. No entanto, encontramos também outras bases. Por exemplo, para os Kamilaroi, na Austrália, 9 a base é três: guliba (3), guliba-guliba (3+3, quer dizer, 6). Na língua Swahili observam-se vestígios da base quatro: nane (4+4, ou seja, 8). Frequentemente, vê-se mais do que uma base. Com os Ekoi, nos Camarões, esaresa (3+3, ou seja, 6), eniresa (4+3; 7), enireni (4+4; 8), eloneni (5+4; 9), ou na língua Changana: nthlanu ni simbiri (5+2; 7) e tshume ni xinwe (10+1; 11).

Para a multiplicação podemos também encontrar muitos exemplos. Em Changana: mune wa matshume (quatro dezenas, 4x10, ou seja, 40). Na língua Banda, já mencionada, a palavra para quinze significa à letra ‘três mãos’ e o para quarenta ‘dois homens completos’. Estes novos numerais estendidos já pressupõem uma descoberta importante: não só hoje dois leões mais três leões dão cinco leões, mas isto acontecerá amanhã também; não só dois leões mais três leões dão sempre cinco leões, mas também dois antílopes mais três antílopes dão sempre cinco antílopes; não só dois animais mais três animais dão cinco animais, mas também duas plantas mais três plantas dão cinco plantas, etc. Através do trabalho de ‘inumeráveis’ gerações com coleções concretas foram-se descobrindo regularidades cada vez mais gerais, que desaguavam em regras, tais como na ‘nossa’ linguagem simbólica 2+3=5, ou – o que ainda precisa duma base de experiência muito maior e rica – o resultado da adição de dois números é independente da ordem em que se procede, ou então, na notação atual 2+3=3+2, e mesmo a+b=b+a, onde a e b representam números quaisquer.

Passaram entre 10 e 15 mil anos desde esta grande revolução que se verificara ter influência profunda no desenvolvimento do conceito de número e no desenvolvimento da matemática, em geral. Pela primeira vez na história humana, povos romperam com a dependência extrema do meio ambiente que implicava a sua vida de caçadores e recolectores; gradualmente aprendia-se a intervir na produção de comida: foram descobrindo a agricultura e a pastorícia.

Estas novas possibilidades de produção punham a humanidade perante numerosos problemas novos: “Que quantidade de sementes

9 Cf. Struik (1949), Dantzig (1971).

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podemos comer e que quantidade temos de semear para poder comer suficientemente no ano seguinte?”, “Escaparam-se animais do rebanho?”, “Quando temos de semear?”, etc. Estes problemas e possibilidades novas (viver em grupos maiores, estabelecer-se em aldeias, etc.) necessitavam duma extensão do conceito de número: tornava-se necessária a contagem de quantidades maiores.

Aqui vemos, mais uma vez, confirmada a teoria de Friedrich Engels segundo a qual o Homem se desenvolve através do seu trabalho. 10

As novas necessidades sociais e económicas exigiam uma extensão do conceito de número e das operações sobre os números.

Saber contar o número de animais num rebanho, o número de dias num ano, o número de produtos numa troca, etc., saber contar coleções cada vez maiores e saber comunicar a outras pessoas os resultados das contagens, provocaram inovações.

Como é possível compreender rapidamente um Ekoi se ele falasse de ‘enirenirenirenireni’ animais tratando-se de vinte animais? Como compreender rapidamente em Changana ‘nthlanu wa matshume ni matshume manharh ya bsiluva ni xinwe’ (5x10+10x3+1), onde se diz em Português, oitenta-e-uma flores? Como obter rapidamente uma impressão do número, quando num pau encontramos os seguintes riscos?

Ou mesmo, quando mais ordenados?

10 Engels, Friedrich (1975), Anteil der Arbeit an der Menschwerdung des Affen, in: Dialektik der Natur, MEW, Berlin, Vol. 20, 444-456.

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Ou, como aprendi em criança a anotar

E, assim, é quase imediatamente visível que se trata de vinte-e-seis objetos.

Tornavam-se socialmente necessárias inovações, tanto no aperfeiçoamento e na simplificação dos nomes dos números, como na introdução ou no melhoramento de símbolos para representar os números.

Em particular, foram alcançados avanços consideráveis nas civilizações agrícolas dos grandes rios, tais como, o Nilo, Eufrates, Tigre, Ganges, Huang Ho e mais tarde Yang-tse, e com os Maias. Aí, era necessário fazer cálculos na computação do calendário, na administração da colheita, na organização de obras públicas, na coleta de impostos, etc. Foi naquelas sociedades que se inventou a escrita a partir da contabilidade e do cálculo.

Às vezes, os primeiros símbolos eram o resultado de traçar rapidamente riscos numa vara ou incisões num pedaço de barro (sem levantar a “caneta”) como os símbolos utilizados hoje em dia sugerem: 11

11 À direita vem a notação ‘árabe oriental’ (por exemplo, Egito) e a notação ‘árabe ocidental’ (símbolos: 1, 2, 3, 4, 5, ...) que se espalhou a partir do Maghreb (Noroeste de África).

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Ou, horizontalmente

Aqui a base material ecoa nos símbolos para dois e três, libertando o caminho para a criação de outros símbolos. Baseados em muitas experiências, foram gradualmente introduzidos melhoramentos nas notações simbólicas, tais como a introdução do sistema de posição e do zero. Por sua vez, a introdução de símbolos para os números tinha um significado importante para o desenvolvimento da aritmética e mesmo, para o desenvolvimento geral da matemática. Eles dão uma incorporação simples do conceito de número, mesmo em tal medida que muitas pessoas identifiquem, embora isto seja incorreto, um número com o seu nome simbólico, como se o país Moçambique fosse idêntico ao conjunto (ordenado) das letras do seu nome! Eles facilitam fazer as contas; podemos calcular no papel (barro, solo, etc.) em vez de precisar de juntar dois rebanhos para saber quantas vacas há no total, etc. Eles estimularam a extensão do conceito de número até números tão grandes que nunca pudessem ser o resultado duma contagem direta: quantas vidas humanas seriam precisas para poder contar até 1010?

Considerações finais

A terminar, tiremos algumas conclusões a partir destas primeiras

fases de desenvolvimento do conceito de número. 12 A origem do conceito de número é histórica. Ele desenvolve-se conforme as mudanças nas necessidades sociais e económicas. O conceito de número e as operações sobre os números desenvolvem-se através de um processo de abstração, subindo a níveis cada vez mais altos,

12 Cf. Aleksandrov (1977).

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refletindo a acumulação duma quantidade imensa de experiência prática com coleções de objetos concretos. Por isso, os resultados da aritmética são tão convincentes, como 1+1=2 e são tão aplicáveis: eles refletem a experiência de milhares de gerações humanas.

... tão aplicáveis. Porém nisto reside igualmente a sua limitação, porque a verdade não é abstrata, é sempre concreta. Pode acontecer que, em circunstâncias muito particulares, um mais um dê um (1+1=1 !?), por exemplo, quando um leão com fome está numa gaiola com um cordeiro, restará apenas um animal. Ou, no que diz respeito ao trabalho coletivo, quando um mais um trabalham em conjunto, eles poderão produzir mais do que os dois juntos individualmente (1+1>2). Ou quando se mistura 1 litro de água com 1 litro de álcool, fica apenas 1,9 litros de líquido (1+1=1,9).

Assim os números são, por um lado, importantíssimos na nossa vida, mas, por outro lado, não se deve considerá-los absolutos ou deificá-los. É neste contexto que o matemático soviético Rashevskii 13 formulou a hipótese de que a resolução de vários problemas nas ciências modernas da natureza, pudesse pressupor um rompimento com o ‘dogma dos números naturais’, duma maneira análoga ao quebrar o dogma da geometria euclidiana, no século 19, que constituiu uma das condições necessárias para a elaboração das teorias físicas revolucionárias da relatividade e da mecânica quântica no século 20.

Conceitos significativos refletem a realidade objetiva. A origem e o desenvolvimento do conceito de número (tal como o de conceitos geométricos) retiram qualquer base para uma visão idealista segunda a qual a matemática seja ‘a priori’, um produto do pensamento puro, ou duma intuição inata.

13 Rashevskii, P. K. (1973), On the dogma of the natural numbers, Russian Mathematical Surveys, 28(4), 143-148.

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Anexo

Teses de doutoramento concluídas por Moçambicanos em etnomatemática ou educação matemática

Paulus Pierre Joseph GERDES 1985 Zum erwachenden geometrischen Denken [Sobre o despertar

do pensamento geométrico] (Dr.phil.), Pädagogische Hochschule Karl Friedrich Wander, Dresden, Alemanha (Vide p. 25).

1989 Ethnomathematische Studien [Estudos Etnomatemáticos] (Dr.Sc. – doutoramento superior), Karl Marx Universität, Leipzig, Alemanha (Vide p. 45).

1995 Sona Geometrie – Reflektionen über eine Sandzeichen-Tradition im südlichen Zentralafrika [Geometria Sona – Reflexões sobre uma tradição de desenhos na areia na África central-austral] (Dr.rer.nat.habil. – doutoramento superior), Universität Wuppertal, Alemanha (Vide p. 45).

Abdulcarimo ISMAEL 2001 An ethnomathematical study of Tchadji – about a Mancala type

board game played in Mozambique and possibilities for its use in Mathematics Education, University of the Witwatersrand, Johannesburg, África do Sul.

Marcos CHERINDA 2002 The use of a cultural activity in the teaching and learning of

mathematics: The exploration of twill weaving in Mozambican classrooms, University of the Witwatersrand, Johannesburg, África do Sul.

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Sarifa Abdul MAGIDE FAGILDE 2002 Towards a characterisation of communication and gender

patterns in secondary mathematics classrooms in Mozambique, University of the Western Cape, Bellville, África do Sul.

Bhangy CASSY 2003 Effect of classroom interaction and gender on mathematics

performance and attitudes toward mathematics of secondary pupils in Mozambique, University of the Witwatersrand, Johannesburg, África do Sul.

John Manuel FRANCISCO 2004 Students’ reflections on mathematical learning: results from a

longitudinal study, Rutgers University, New Brunswick NJ, EUA.

Marcelino Caetano LUÍS 2004 Por um currículo de formação do professor de matemática na

perspectiva de construção do conhecimento, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.

Evaristo Domingos UAILA 2004 Geometria e autonomia: um estudo dos programas, dos

discursos dos professores e das práticas curriculares na Cidade da Beira, Moçambique, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.

Jan DRAISMA 2006 Teaching gesture and oral computation in Mozambique: four

case studies, Monash University, Clayton, Austrália. Daniel Dinis da COSTA 2008 An analysis of student teacher’s perceptions of 3D-descriptive

geometry education in Mozambique, University of Newcastle upon Tyne, Grã-Bretanha.

Daniel Bernardo SOARES 2010 The incorporation of geometry involved in the traditional

house building in mathematics education in Mozambique: The cases of the Zambézia and Sofala provinces, University of the Western Cape, África do Sul.

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O Autor

O professor catedrático Paulus Gerdes tem leccionado nas Universidades Eduardo Mondlane e Pedagógica (Moçambique). Desempenhou os cargos de Director da Faculdade de Educação (1983-1987) e da Faculdade de Matemática (1987-1989) da Universidade Eduardo Mondlane e de Reitor da Universidade Pedagógica (1989-1996). Em 2006-2007, foi Presidente da Comissão Instaladora da Universidade Lúrio, a terceira universidade pública de Moçambique, com sede em Nampula.

Foi conselheiro do Ministro da Educação (2000-2005). Atualmente é conselheiro para Pesquisa e Qualidade no Instituto Superior de Tecnologias e de Gestão (ISTEG), Boane, Moçambique.

Entre as suas funções ao nível internacional constam as de Presidente da Comissão Internacional para a História da Matemática em África (desde 1986) e de Presidente da Associação Internacional para Ciência e Diversidade Cultural (2000-2004). Em 2000, sucedeu o brasileiro Ubiratan D’Ambrosio como Presidente do Grupo Internacional de Estudo da Etnomatemática.

É membro da Academia Internacional para a História da Ciência (sede em Paris). Desde 2005 é Vice-Presidente da Academia Africana de Ciências, responsável para a África Austral.

Escreveu diversos livros sobre geometria, cultura e história da matemática, tendo recebido vários prémios.

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Livros em Português do mesmo autor

* Tinhlèlo, Entrecruzando Arte e Matemática: Peneiras Coloridas do Sul de Moçambique, Alcance Editores, Maputo, 2012 (Prefácio: Aires Ali, Primeiro Ministro de Moçambique)

* Teses de doutoramento de Moçambicanos ou sobre Moçambique, Academia de Ciências de Moçambique, Maputo, 2011, 178 p. [Primeira edição: Ministério da Ciência e Tecnologia, Maputo, 2006]

* Mundial de Futebol e de Trançados, Lulu, Morrisville NC, 2011, 76 p.

* Geometria dos Trançados Bora na Amazônia Peruana, Livraria da Física, São Paulo, 2011, 190 p.

* Mulheres, Cultura e Geometria na África Austral, Centro Moçambicano de Pesquisa Etnomatemática, Maputo & Lulu, Morrisville NC, 2011, 200 p.

* Aventuras no Mundo das Matrizes, Lulu, Morrisville NC, 2011, 258 p.

* Pitágoras Africano: Um estudo em Cultura e Educação Matemática, Centro Moçambicano de Pesquisa Etnomatemática, Maputo & Lulu, Morrisville NC, 2011, 118 p. (edição a cores)

[Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo, 1992] * Da etnomatemática a arte-design e matrizes cíclicas, Editora

Autêntica, Belo Horizonte, 2010, 182 p. * Geometria Sona de Angola: Matemática duma tradição

africana, Lulu, Morrisville NC, 2008, 244 p. [Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo, 1993]

* (Org.) A numeração em Moçambique: Contribuição para uma reflexão sobre cultura, língua e educação matemática, Lulu, Morrisville NC, 2008, 186 p. [Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo, 1993]

* Os manuscritos filosófico-matemáticos de Karl Marx sobre o cálculo diferencial. Uma introdução, Lulu, Morrisville NC, 2008, 108 p. [Primeira edição: Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 1983]

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* Otthava: Fazer Cestos e Geometria na Cultura Makhuwa do Nordeste de Moçambique, Lulu, Morrisville NC, 2007, 292 p.

* Etnomatemática: Reflexões sobre Matemática e Diversidade Cultural, Edições Húmus, Ribeirão (Portugal), 2007, 281 p.

* Sipatsi: Cestaria e Geometria na Cultura Tonga de Inhambane, Moçambique Editora, Maputo, 2003, 176 p. (Capítulo 1: autoria de Gildo Bulafo)

* Lusona: Recreações Geométricas de África, Moçambique Editora, Maputo & Texto Editora, Lisboa 2002, 128 p. [Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo, 1991]

* Geometria Sona: Reflexões sobre uma tradição de desenho em povos da África ao Sul do Equador, Universidade Pedagógica, Maputo, 1993/1994, 3 volumes, 489 p.

* Sobre o despertar do pensamento geométrico, Universidade Federal de Paraná, Curitiba (Brasil), 1992, 105 p.; Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico, Universidade Pedagógica, Maputo, 1992, 146 p. [Edição original em Alemão, 1985]

* (Org.) Matemática? Claro!, Manual Experimental da 8ª Classe, Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educação (INDE), Maputo, 1990, 96 p.

* Teoremas famosos da Geometria (co-autor Marcos Cherinda), Universidade Pedagógica, Maputo, 1992, 120 p.

* Trigonometria, Manual da 11ª classe, Ministério da Educação e Cultura, Maputo, 1981, 105 p.

* Trigonometria, Manual da 12ª classe, Ministério da Educação e Cultura, Maputo, 1980, 188 p.

Livros sobre jogos e puzzles, publicados pela Editora Lulu, Morrisville NC, Estados Unidos da América (http://stores.lulu.com/pgerdes, www.lulu.com/spotlight/pgerdes) * Mais divertimento com puzzles de biLLies, 2010, 76 p. * Divertimento com puzzles de biLLies, 2010, 76 p. * Divirta-se com puzzles de biLLies, 2010, 250 p.

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* Puzzles e jogos de bitrapézios, 2008, 99 p. * Jogos e puzzles de meioquadrados, 2008, 92 p. * Jogo dos bisos. Puzzles e divertimentos, 2008, 68 p. * Jogo de bissemis. Mais de cem puzzles, 2008, 87 p. * Puzzles de tetrisos e outras aventuras no mundo dos poliisos,

2008, 188 p.

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Livros em outras línguas * History of Mathematics in Africa: AMUCHMA 25 Years (co-

autor: Ahmed Djebbar), AMUCHMA & Lulu, Morrisville NC, 2011, 2 volumes (Volume 1: 1986-1999; Volume 2: 2000-2011), 924 p.

* Tinhlèlò, Interweaving Art and Mathematics: Colourful Circular Basket Trays from the South of Mozambique, Mozambican Ethnomathematics Research Centre, Maputo & Lulu, Morrisville NC, 2010, 132 p.

* Otthava: Making Baskets and Doing Geometry in the Makhuwa Culture in the Northeast of Mozambique, Lulu, Morrisville NC, 2010, 290 p. & Otthava Images in Colour: A Supplement, 68 p.

* Sipatsi: Basketry and Geometry in the Tonga Culture of Inhambane (Mozambique, Africa), Lulu, Morrisville NC, 2009, 422 p. & Sipatsi Images in Colour: A Supplement, 56 p.

* Adventures in the World of Matrices, Nova Science Publishers (Series Contemporary Mathematical Studies), New York, 2008, 196 p.

* Mathematics in African History and Cultures. An annotated Bibliography (co-autor Ahmed Djebbar), União Matemática Africana & Lulu, Morrisville NC, 2007, 430 p.

* African Doctorates in Mathematics: A Catalogue, União Matemática Africana & Lulu, Morrisville NC, 2007, 383 p.

* Sona Geometry from Angola: Mathematics of an African Tradition, Polimetrica International Science Publishers, Monza (Itália), 2006, 232 p.

* Awakening of Geometrical Thought in Early Culture, MEP Press, Minneapolis MN, 2003, 200 p.

* Geometry from Africa: Mathematical and Educational Explorations, The Mathematical Association of America, Washington DC, 1999, 210 p. (‘Outstanding Academic Book 2000’, Choice Magazine)

* Ethnomathematics and Education in Africa, Universidade de Estocolmo (Suécia), 1995, 184 p.

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* L’EthnoMathématique en Afrique, Lulu, Morrisville NC, 2009, 148 p. [Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo, 1993]

* Les Mathématiques dans l’Histoire et les Cultures Africaines. Une Bibliographie Annotée (co-autor Ahmed Djebbar), Universidade de Lille (França), 2007, 332 p.

* Le cercle et le carré: Créativité géométrique, artistique, et symbolique de vannières et vanniers d’Afrique, d’Amérique, d’Asie et d’Océanie, L’Harmattan, Paris (França), 2000, 301 p.

* Ethnomathematik dargestellt am Beispiel der Sona Geometrie, Spektrum Verlag, Heidelberg (Alemanha), 1997, 436 p.

* Ethnogeometrie. Kulturanthropologische Beiträge zur Genese und Didaktik der Geometrie, Verlag Franzbecker, Bad Salzdetfurth (Alemanha), 1990, 360 p.

* Pitagora africano: Uno studio di cultura ed educazione matematica, Lampi di stampa, Milan (Itália), 2009, 115 p.

* Disegni Africani dall’Angola: Per vivere la matematica, Lulu, Morrisville NC, 2008, 73 p.

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