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Dissertação sobre o conceito humeano de hábito

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Introduo

Este trabalho tentar levantar algumas questes que apontam reas de similaridade entre Pascal e Hume.Tarefa aparentemente sem fundamento ou bases na tradio: segue apenas uma espcie de espanto e nada mais. Uma frgil e sutil impresso que, se por um lado produz uma idia que fica dando asas imaginao, por outro no tem muito onde se apoiar. Estamos diante, portanto, de um risco cumulativo: o de estar errado e, graas ao incrvel trabalho da imaginao, aprofundarmo-nos no erro achando que estamos no mais correto dos caminhos.Cumpre dizer que a coisa mais notvel que percebi quando iniciei a escrever essa dissertao, foi que ao cruzarmos os dois nomes envolvidos os de Pascal e Hume no encontramos praticamente referncia de ttulo algum. Seja no sistema da prpria FFLCH (o notvel Dedalus1Banco de Dados Bibliogrficos da USP, Catlogo On-line Global disponvel em: http://dedalus.usp.br:4500/ALEPH/por/USP/USP/DEDALUS/START

, amigo de todas as horas) ou numa busca mais genrica, na Internet2O padro utilizado para a busca nas bibliotecas e na Internet foi simplesmente: Pascal and Hume com todas as suas variaes, combinados com nomes e ttulos de obras chave (Investigao e Tratado de Hume e Pensamentos de Pascal). Evidentemente que falo de coisas relevantes. E o que so relevantes? Adivinhai! Utilizamos as bases de dados do Yahoo e do Google.

. Nesta, os nomes so cruzados em listas de cursos sobre a modernidade, ou citados alhures como membros de uma espcie de histria do ceticismo, no mnimo um pouco forada para quem leu mais atentamento os dois filsofos. Naquele, os dois ttulos disponveis so sobre a linguagem de programao Pascal, e seus autores se chamam, cada qual com seus outros nomes, Hume. Note-se que as buscas citadas Dedalus e Internet consultam bases de dados que alm de ttulos (traduzidos e originais), pesquisam tambm resumos (abstracts), palavras-chave, comentrios e demais informaes editoriais e ficha tcnica.No deixa, tambm, de ser extremamente temerrio colocar lado a lado um cristo carola, que sem Jesus retira qualquer possibilidade de auto-conhecimento3Cf., p.e. Frag. *548 No s conhecemos Deus apenas por Jesus Cristo, mas ainda conhecemo-nos a ns mesmos apenas por Jesus Cristo. S conhecemos a vida e a morte por Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo no sabemos o que nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem ns mesmos. Pascal cita Jesus duzentas e oitenta vezes nos Pensamentos.

, e um quase ateu, que no engana nenhum cristo com sua religio natural4Foge, evidentemente, do nosso escopo. Mas remeto o leitor aos Dilogos sobre a religio natural [Hume. Dilogos sobre a religio natural. Traduo de Jos Oscar de Almeida Marques. Martins Fontes. So Paulo, 1992.] Destaque-se a seguinte afirmao na boca de Cleantes (um dos debatedores (o mais prximo da verdade [Pag. 187]): Locke parece ter sido o primeiro cristo que se aventurou abertamente a afirmar que a f no era nada mais que uma espcie de razo, que a religio era apenas um ramo da filosofia e que uma cadeia de argumentos, similar que servia para estabelecer qualquer verdade em moral, poltica ou fsica, era sempre empregada na descoberta de todos os princpios de teologia, natural e revelada. Obra Citada, Parte I, pag. 22. Ressalte-se que Jesus nem mesmo citado por Hume em toda a obra.

.Como poderiam estar alinhados dois autores, parecem nos dizer os resultados? Um deles o da obscuridade, da misria do homem5Seria interessante, por conta e risco do leitor ou leituras iluministas mais apressadas, conferir o que pensava Voltaire de Pascal nas suas Cartas Inglesas. Ver principalmente a Vigsima Segunda Carta, pp. 46-57. [VOLTAIRE. Cartas Inglesas (1734). In "Os Pensadores". Abril Cultural, So Paulo, 1978]

. O outro, prximo e amigo das luzes, para quem a mais ridcula superstio comandava a f e os atos de Pascal: um desprezo extremo desta vida, em comparao com a vida futura, era o princpio capital de sua conduta. [Cf.: Hume, Um Dilogo. Traduo Jaimir Conte.]6Edio virtual disponvel em: http://www.cfh.ufsc.br/~conte/txt-hume-dial.pdf (consultado em Janeiro de 2007)

Certo professor j havia dito sobre a mesma sensao de similaridade entre os pensadores citados e de como foi difcil convencer estudiosos desses autores de que haveria ali algo de til a ser investigado. To pascalianos ou humeanos eram que acabei dizia-me ele diante de um certo e surdo mal-estar.

No entanto, o espanto que nos move, j se disse7Cf. Metafsica, Aristteles

, em direo buscas muitas vezes raras, quando no inslitas. E se estamos nos lanando em um risco temerrio de dizer besteiras, no deixa de ser um risco calculado, pois justamente sob esse aspecto geral que tentaremos iniciar nossa aproximao: o da razo enganadora, que se pode contrapor ao sentido enganador. Alm de ser, digo o risco de falar besteiras, um direito universal e legtimo do ser humano, como se depreende de sua prpria histria intelectual.Em certo sentido, Pascal e Hume invertem a ordem de valores que se baseia na busca de fundamentos e verdades claras e distintas e, aos sentidos enganadores parece que desvendam uma razo enganadora, que auto instanciada e convencida de sua validade para alm de seu escopo, acaba sendo guiada pela imaginao (por soberba, vaidade ou ardil). Pascal em seu fragmento 83 nos afirma textualmente:Os sentidos, com suas falsas aparncias, enganam a razo; e essa mesma fraude que oferecem razo recebem- na dela, por sua vez.Hume, por sua vez, reconhece como a mais justa e plausvel crtica a uma parte considervel dos estudos metafsicos :[...] que eles no so propriamente uma cincia, mas provm ou dos esforos frustrados da vaidade humana, que desejaria penetrar em assuntos completamente inacessveis ao entendimento, ou da astcia das supersties populares [...]8Hume, ob. Cit. 11, pg. 26.

Mais justa e plausvel, ressalte-se, porque no os est criticando, como o senso comum, apenas pela obscuridade do discurso penoso e fatigante, mas antes, por serem fonte inevitvel de erro e incerteza.Essa inverso de valores citada acima parece nos apontar para um resgate do duvidoso (ou provvel) e para um tipo de mtodo que lida com esferas de validade nas operaes de certezas metdicas9Cf. Lebrun, pg. 109: Tal [a posio de que s a certeza parece digna de interesse] no , como se viu, a opinio de Port-Royal. Para quem vive no reino de Deus escondido, o provvel uma categoria fundamental. Valeria a pena, alis, examinar de que importncia foi essa reestimao do provvel para o nascimento de uma cincia centrada sobre a previso (a de Hume).

. Lembremos que, segundo Pascal nos afirma em seu tratado, existem trs tipos de hipteses:Algumas vezes se conclui manifesto absurdo da sua negao: neste caso a hiptese verdadeira e constante. Outras vezes, conclui-se um manifesto absurdo da sua afirmao: ento a hiptese considera-se como falsa. E quando se no pode extrair o absurdo nem da sua negao nem da sua afirmao, a hiptese permanece duvidosa.10Pascal, Opsculos. Pg. 29-30.

Tal mtodo, como veremos na segunda parte, se lida com questes que no pode (e nem pretende) demonstrar ou provar, pode mediar a prpria verdade com o pensamento contrrio, na medida em que este no implica contradio, ou seja, coloca-se no rol dos duvidosos. Nessa mediao, entretanto, no tem por fim revelar princpios, mas descobrir razes para os efeitos tomados em observao, ciente de que tais razes no so propriamente ltimas (como quer a tradio lgica), mas apenas as razes ltimas a que podemos chegar. O que nos leva a pensar que a fora persuasiva de tal mtodo diretamente proporcional conscincia de sua prpria limitao.Esperamos, portanto, que o foco principal de nosso assunto nos sirva de vacina contra uma imaginao sempre galopante e preveno de preconceitos, ambos companheiros de minha prpria natureza.I - Impotncia e limitao

Como percebemos, o primeiro forte indcio de similaridade que ambos denunciam os limites do conhecimento humano! Mas de um modo bastante peculiar, que tanto os aproxima quanto destaca de seus colegas filsofos: ao denunciar-lhe os limites, denunciam a v pretenso racional de tudo demonstrar e apenas considerar vlidas proposies desse tipo. Ao privar a razo demonstrativa a determinadas operaes de conhecimento, ampliam o leque do que se pode considerar como conhecimento, atravs da considerao de certezas de outras ordens [que no a demonstrativa], mas que no podem deixar de ser chamadas de verdades e contm, em certo sentido, a sua prpria razo.Tal crtica parece mais evidentemente sob dois aspectos, que abordaremos a seguir: (1) a crtica da busca de princpios ou fundamentos para alm da demonstrao geomtrica; (2) a extrapolao do mtodo geomtrica para reas que no lhe so convenientes onde a lgica, ao fazer mo irrestritamente das demonstraes, acaba tirando a prpria fora e veracidade do resultado do mtodo pretensamente demonstrativo. talvez dessa maneira dir Pascal11Pascal, ob. Cit., pag. 113.

, que a lgica se tem utilizado das regras da geometria sem lhes compreender a fora. Assim, pelo motivo de as incluir, ao acaso, entre as que de facto lhe so prprias, no se conclui da que tenham penetrado o esprito da geometria.1. Os princpiosPascal tenta nos dar a idia de um mtodo eminente e completo (pg. 83) de demonstraes infalveis constitudo em duas coisas principais:uma, no empregar nenhum termo de que no se tivesse anteriormente explicado, nitidamente, o sentido; outra, no adiantar nunca uma proposio que no tivesse sido demonstrada por meio de verdades j conhecidas.12Pascal, ob. Cit., pg. 83.

Sua primeira preocupao para situar a questo, aclarar o que ele considera como uma definio. Os gemetras, e outrossim os que agem metodicamente, s atribuem nomes s coisas para resumir o discurso e no para diminuir ou alterar a idia daquilo sobre o que discorrem.13Pascal. ob. Cit. 84.

Parece que, aqui, sua preocupao nos precaver de que as definies possam revelar mais do que a sua funo lgico discursiva. Vale dizer que pode-se muito bem definir diversos termos partes de um discurso, mas isso no significa conhecimento de algum tipo de essencialidade que extrapole seu mbito, ou conhecimento de sua natureza. Mostra-se preocupado com o fato de que tal conceito de definio possa dar-lhes um carter extremamente livre, pois nada mais lcito do que atribuir a uma coisa que se designou claramente, o nome que se queira e nos adverte que precisamos ter cautela no abuso da liberdade de atribuir nomes, dando o mesmo nome a duas coisas diferentes e confundindo as consequncias. E recomenda o que chama de remdio muito seguro e infalvel [contra os vcios do abuso nas definies]:substituir mentalmente o definido pela definio e ter esta sempre to presente [...] que logo que o discurso exprima uma, o esprito refira imediatamente a outra.14Pascal, ob. Cit. 84.

Voltando ao tal mtodo perfeito: seria belo, mas impossvel:pois evidente que os primeiros termos a definir, pressuporiam outros que servissem sua explicitao, e, bem assim as primeiras proposies que se quisessem provar pressuporiam outras que as teriam de preceder. Deste modo, se torna claro que nunca se chegaria aos primeiros termos.15Pascal, ob. Cit. 85.

E se pensar-se que muito arbitrrio esse definir como nomear afinal, pode-se definir qualquer coisa por qualquer nome Pascal nos adverte que existe um remdio bastante eficaz contra esse vcio: sempre substituir, mentalmente, o definido pela definio (pg. 84)

Ou seja, no se pode cumprir nem uma nem outra das coisas principais indicadas como constituintes desse mtodo completo. [...] Por isso os homens se encontram em um estado de impotncia natural e imutvel para tratar qualquer cincia em uma ordem absolutamente perfeita.16Do mtodo das demonstraes geomtricas. In: PASCAL, Blaise. Opsculos. Alberto Ferreira. Guimares Editores, Lisboa, 1960, pg. 85.

Essa impotncia natural vem do fato de que necessariamente chegaremos a palavras primitivas que no podemos definir, e a princpios que no existem outros mais claros para prov-los17Idem anterior.

. Hume, por seu lado, vai apontar, seno essa impotncia, os limites do entendimento humano:To estreitos, porm, so os limites do entendimento humano que pouca satisfao pode ser esperada nesse particular, tanto no tocante extenso quanto confiabilidade de suas aquisies.18Hume, ob. Cit., 6, pg. 23.

Comparando dois tipos de filosofia moral ou cincia da natureza humana vai identificar dois tipos de abordagem: a que toma o homem como principalmente nascido para a ao e a que v no homem um ser dotado, antes de razo do que um ser ativo (pgs. 19-20) . Critica os filsofos desse segundo tipo, como vimos, pelo que chamou de objeo mais justa e plausvel a uma parte dos estudos metafsicos: so muitas das vezes apenas resultado da vaidade do entendimento ou astcia da superstio.19Hume, ob. Cit. 11, pg. 26.

Vale notar que, tanto em um caso como no outro, trata-se no de uma crtica filosofia humana em si mesma, mas no abuso de seu uso. V-se que a mais justa e plausvel crtica aos metafsicos tem duas faces bem definidas: ou a vaidade ou a astcia, a primeira do entendimento a segunda das supersties. De qualquer forma, de uma razo que operasse por detrs desse pensamento abstruso, poderamos dizer que certamente incorrer em erros e incertezas, por mais que esteja atenta a sua prpria coerncia lgico discursiva: talvez no primeiro caso enganando-se a si mesma, plena de certezas e no segundo denotando um certo tom de engodo consciente... Mas so apenas suposies.Hume vai nos afirmar ainda que, justamente pelos equvocos que apontou que considera importante levar a guerra at os mais secretos redutos do inimigo (pg. 27). Considera que 0 nico mtodo de livrar o conhecimento (instruo) dessas questes abstrusas (conf. Pags. 23, 27, 149) fazer uma anlise dos poderes e capacidades do entendimento humano e mostrar que ele no est apto para tratar ou adentrar determinados assuntos que ultrapassem sua prpria esfera de conhecimento.Por um lado, parece ser lcito filosofia adentrar em determinados campos e aprofundar as pesquisas, revelando, pelo menos at certo ponto, os mveis e princpios ocultos que impulsionam a mente em suas funes. Afinal, durante sculos, afirma Hume, os fenmenos celestes foram deduzidos de fenmenos visveis, em seus movimentos e magnitude, e precisou surgir um filsofo que pudesse ter determinado tambm as leis e foras que governam e dirigem as revolues dos planetas atravs de um pensamento abstrato (pg. 30).Por outro lado, qual o limite que podem ter tais investigaes?Dentre os filsofos naturais razoveis, por exemplo, nenhum jamais pretendeu chegar s causas ltimas dos fenmenos. O que se busca reduzir as causas dos fenmenos naturais a uma maior simplicidade, subordinando os fenmenos individuais a causas mais gerais, que vm da observao, experincia e analogia.Quanto s causas dessas causas gerais, entretanto, ser em vo que procuraremos descobri-las; e nenhuma explicao particular delas ser jamais capaz de nos satisfazer. Esses mveis princpios fundamentais esto totalmente vedados curiosidade e investigao humanas.20Hume, Investigao, pg. 59.

A mesma coisa pode ser considerada em relao s causas e motes do prprio pensamento. provvel que uma dada operao ou princpio da mente dependa de um outro, o qual, por sua vez, possa reduzir-se a um princpio ainda mais geral e universal, e no fcil determinar exatamente, antes ou at mesmo depois de uma cuidadosa experimentao, at onde essas investigaes podem ser levadas. (Invest, pg 30)Parece que chegamos a uma limitao, anloga quela apresentada por Pascal (como impotncia), quando da exposio do mtodo demonstrativo completo: tambm neste caso chegaremos, necessariamente, a palavras primitivas que no podemos definir, e a princpios que no existem outros mais claros para prov-los.2. A extrapolao do mbitoNo entanto, mesmo que tenhamos penetrado na relao de tais autores atravs da crtica da razo, jamais poderamos admitir que so autores irracionais, ou que estejam simplesmente afirmando que a excluso do pensamento ou da racionalidade humanas sejam uma soluo adequada. Pelo contrrio, se camos no puro ceticismo e excluirmos o pensamento abstrato, corremos o risco de aniquilar o prprio conhecimento humano.Parece haver um meio termo, mediado pelo bom senso e reflexo, que pode nos resguardar tanto do dogmatismo quanto do ceticismo, ou seja, tanto da razo ditadora de regras apriorsticas, derivadas de pretensas demonstraes, quando a descrena completa na capacidade do entendimento por ter enxergado tais limitaes.O raciocnio exato e justo o nico remdio universal, apropriado pata todas as pessoas e todas as inclinaes, e s ele capaz de subverter a filosofia abstrusa e o jargo metafsico que, misturados superstio popular, tornam-na de certo modo inexpugnvel aos argidores negligentes, e empresta-lhe ares de cincia e sabedoria. (Investig, pg. 28)Tambm Pascal vai afirmar que, no obstante tenha descartado a existncia de um mtodo completo e perfeito, no se trata aqui de abandonar qualquer ordem. Pelo menos uma, a da geometria, tem alto grau de certeza [ainda que inferior no de convico]No define tudo nem prova tudo, e a que fraqueja. Porm, como supe to-somente coisas claras e constantes, graas luz natural, , por isso, perfeitamente verdadeira pois que a natureza a sustenta falta de discurso.21Pacal, ob. Cit. 85.

Note-se que mesmo essa, a mais perfeita entre os homens, a ordem da geometria, consiste no em definir tudo ou tudo demonstrar, ou nada definir nem demonstrar, mas manter-se no meio termo.Aqueles que pretendem tudo definir e tudo provar, e bem assim aqueles que negligenciam faz-lo relativamente s coisas que no so evidentes por si prprias, pecam, de igual modo, contra esta ordem.22Pascal, ob. Cit. 86.

A excelncia da ordem geomtrica justamente que define apenas Toda a nossa dignidade consiste no pensamento. [...] No no espao que devo buscar minha dignidade, mas na ordenao de meu pensamento. No terei mais, possuindo terras; pelo espao, o universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco. [frags. 347, 348]Hume inicia seu captulo sobre a Idia de Conexo Necessria (cap. 7) falando exatamente da grande vantagem das cincias matemticas sobre as cincias morais:as idias das primeiras, sendo facilmente apreensveis, so sempre claras e determinadas23HUME, David. Uma Investigao sobre o Entendimento Humano. trad. Jos Oscar de Almeida Marques. UNESP, So Paulo, 1999. 1, pg. 95.

E parece que uma das questes mais importantes dessa clareza, sejam justamente as definies, uma fora de clareza que nos recolocaria o remdio muito seguro e infalvel proposto por Pascal, na preveno do abuso em definir, justamente por estarmos dentro da mesma ordem de razes, a geomtrica:Quando se define um termo qualquer em geometria, a mente por si mesma substitui de imediato, em todas as ocasies, o termo definido por sua definio; ou mesmo se no se emprega nenhuma definio, o prprio objeto pode ser apresentado aos sentidos e, por esse meio, apreendido de maneira firme e clara.24Hume, op. Cit. Pg. 95.

Como certamente notar o atento professor, estamos comparando duas citaes que se, aplicssemos regras de matrizes, poderamos ser levados a relacionar conhecimento e entendimento. Tal questo, apesar de parecer um preciosismo, importante de ser realada j, pois pode levar a equvocos.Pascal no usa nenhuma vez o termo entendimento (nos Pensamentos). Evidentemente usa o verbo entender e podemos at mesmo relacion-lo com o substantivo, parte do ttulo do livro de Hume. Por exemplo, quando diz ser impossvel [...] conhecer o todo sem entender particularmente as partes [frag 72]. Mas efetivamente talvez exista um degrau entre esse entender e o entendimento, foco especfico de importantes autores25Por exemplo: Locke Ensaio sobre o entendimento humano; Berkley Tratado sobre os Princpios do Conhecimento Humano

da gerao de Hume ou pouco mais velhos. Isso porque para Hume, talvez conhecimento seja uma parte de algo maior, o entendimento (ou seria vice-versa?). Fica aqui uma questo a aprofundar. No presente trabalho, tentaremos no dar margem a que se possa ao menos contrapor ou criar contradies entre os termos, sem com isso querermos dizer que sejam a mesma coisa.

Conheamos, pois, nossas foras; somos algo e no tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princpios que nascem do nada; e o pouco que temos de ser impede-nos a viso do infinito. [frag 72]E estranho que tenham querido compreender os princpios das coisas, e assim chegar ao conhecimento do todo, atravs de uma presuno to infinita quanto o seu objetivo.[por chegar-se, necessariamente, a palavras primitivas que j se no podem definir, e princpios claros que no admitem provas]

Nossa razo sempre iludida pela inconstncia das aparncias e nada pode fixar o finito entre os dois infinitos que o cercam e dele se afastam. Desde que compreendamos isso, creio que nos manteremos tranqilos, cada um no estado em que natureza o colocou.Devemos dar-nos a esse trabalho agora para vivermos despreocupadamente no futuro, (invest, 12, pg.27)

Assim que cada um pode aprender a apreciar-se pelo que autenticamente , e a formar idias que valem mais que tudo o mais, incluindo a geometria. (opusc, pg. 101)A um mtodo que quer tudo provar e tudo demonstrar prope outro, que lida com dois tipos de certezas: uma que pode ser demonstrada, de forma que seu oposto caia em contradio (um quadrado no pode ser redondo); ou que, no demonstrvel, deve contar com o pensamento contrrio, e movimentar-se de seu prprio pr (o que afirma) e seu contra (o que poderia ser).Dessa forma, podemos estabelecer uma eterna balana de mtua influncia, entre os sentidos e a razo [stricto senso], mas no num sentido que indique uma soluo ou hegemonia de uma sobre outra, ou uma substancialidade, mas um eterno ir e vir entre eles, duas capacidades igualmente humanas e paradoxalmente fundantes (ou INfundantes, conforme o gosto, com excusas ironia da qual no me livro).tanto Pascal quanto Hume e colocam a prpria natureza humana e sua constituio como impondo um tipo de racionalidade que depende, intrinsecamente, de sua prpria condio.

Todo o movimento que Descartes faz at o cogito penso logo existo acompanhado de uma excluso dos sentidos, considerados pelo autor enganadores26DESCARTES, Ren. Meditaes; Objees e respostas; Cartas. J. Guinsburg e Bento Prado Jnior. Nova Cultural, So Paulo, 4 Ed., 1987. Cf. Principalmente ...................................

, em sua ordem de razes. Na busca de sua verdade, necessrio um fundamento slido, uma verdade clara e distinta, fundada inteiramente na razo e uma vez estabelecido tal ponto, todo um arcabouo poderia ser construdo sobre ele, o fundamento, que, sendo claro e distinto, responderia por toda a veracidade do sistema. Pascal, no entanto, no procura exatamente uma ordem de razes ininterrupta, onde o fundamento racional, mesmo o claro e distinto, possa dar conta de chegar, desde que seguidos os passos metdicos, verdade das coisas. Reconhece, antes de mais nada, uma partio na natureza humana, que determina como que duas naturezas.Os sentidos, se tomados como fontes de erros e impreciso diante da razo, deve ser excludo dela para seu pleno funcionamento. Podemos resumir a aproximao que pretendemos entre os autores fazendo duas perguntas, com a vantagem de serem perguntas muito simples: Mas e os sentidos, excludos da razo, tm sobre ela alguma influncia?;

Tm os sentidos, por outro lado, uma racionalidade prpria, ou seja, tem razes e operam propores?

A primeira pergunta poderia nos levar a uma crtica completa da busca de princpios, fins ou fundamentos das coisas, pois regredir a partir de um ponto extrapolado dos sentidos, pode no passar de imaginao, imaginao essa que domina os homens e inunda a prpria razo: O prprio conceito de essncia crivados do valor substancial herdado da tradio filosofia para converter-se, em Hume, numa enganao da razo1.

No falo dos loucos, falo dos mais sbios, e entre eles que a imaginao tem o grande dom de persuadir os homens. Por mais que a razo grite, no pode valorizar as coisas.27Pensamentos, frag 82.

[...]Quem no sabe que a viso dos gatos, dos ratos, o esmagamento de um carvo, etc., pem a razo fora dos eixos? O tom de voz impressiona os mais sbios e modifica um discurso e um poema. A afeio ou o dio mudam a face da justia: e quanto um advogado, bem pago adiantadamente, acha mais justa a causa que defende ! Quanto o seu gesto ousado a faz parecer melhor aos juzes enganados por esta aparncia ! Razo divertida que um vento move em todos os sentidos!28Pensamentos, frag 82.

Isso significa que o que enganador fonte de erro sempre, mesmo quando tem certeza da verdade. Se fosse sempre verdadeiro ou falso no seria enganador, mas um padro de ajuizamento veraz (ainda que pela evitao do erro). No entanto, a razo no tem condies de julgar determinadas reas de suas prprias certezas:Por mais que a razo grite, no pode valorizar as coisas.29Pensamentos, frag. 82

A prpria fragilidade da condio humana torna-se seu instrumento de grandeza, na medida em que pode mediar o conhecimento que tem de si mesma, pela sua razo. O que especular a mediar a prpria razo pela natureza humana. A certeza no demonstrativa, mediada pelo duvidoso e pelo provvel, arma-se dessa forma contra o dogmatismo e simultaneamente contra o ceticismo.A [ordem] da geometria, que sendo, na verdade inferior no grau de convico no o no grau de certeza. [... ] A mais perfeita entre os homens, esta ordem consiste no em definir tudo ou tudo demonstrar, no em nada definir ou nada demonstrar, mas sim em manter-se no meio termo [...]Aqueles que pretendem tudo definir e tudo provar, e bem assim aqueles que negligenciam faz-lo relativamente s coisas que no so evidentes por si prprias, pecam de igual modo, contra essa ordem.30PASCAL, Blaise. Do mtodo das demonstraes geomtricas. In: Opsculos. Traduo de Alberto Ferreira. Guimares Editores, Lisboa, 1960.

Poderamos dizer que o mtodo geomtrico o mais perfeito, desde que saibamos que estamos lidando com dois infinitos31Sintomtica a afirmao de Pascal: creio ter sido obrigado a fazer esta longa considerao em favor dos que, no compreendendo inicialmente a cupla infinitude, so, no entanto, capazes de a este respeito se persuadirem. E os que sabem... Bem os coloca tambm: que o discurso necessrio a uns, no seja tambm inteiramente intil para outros. Pois comprazamo-nos do discuros ns, que sabemos dos dois intifitos e que qualquer medida entre eles ser arbitrria.

: sem princpio nem fim numerveis (mesmo que nmeros!), e que afirmemos uma arbitrariedade humana (definir e nomear, sem poder regressar a determinadas demonstraes) em cada passo do conhecimento. Sem tal conscincia da arbitrariedade corremos o risco de tomar efeitos por causas, e as definies (nomeaes, ou como quer Pascal, economia de linguagem) por essncia ou substncia, quando deveriam, como na geometria, serem apenas a nomeao das coisas em um encadeamento lgico discursivo.

Isso significa que existe um campo, e isso que seguiremos, de arbitrariedade que a prpria condio humana adota ao proceder a busca cientfica. Poderia isso parecer um limite, afinal pensa-se a cincia como no arbitrria. Mas quando reconhecido em sua natureza, torna-se imensamente positivo e libera o conhecimento para reas indeterminadas, e, num sentido construtivo, humilha a razo e reafina sua prtica com o prprio sentido humano, sentido sentido (pela sensao) e sentido a adotar (pelo juzo moral).

O pr ao contra

Evidentemente que no estamos afirmando levianamente que Pascal antecipou um conceito como o de crena habitual, formulado por Hume, tempos depois dele.32Conferir, por exemplo, Hume, 2004, 5, I, 8, pg 79: [...] toda crena relativa a fatos ou existncia efetiva de coisas deriva exclusivamente de algum objeto presente memria ou aos sentidos e de uma conjuno habitual entre esse objeto e algum outro.

Nem afirmando que este tenha lido o outro para concluir alguma coisa. Apenas colocaremos, lado a lado, algumas questes realmente notveis que os aproxima. Um professor j havia dito sobre a mesma sensao de proximidade, e de como foi difcil convencer seguidores dos autores citados de que haveria ali algo de til a ser investigado. To pascalianos ou humeanos eram que acabei, dizia-me ele, diante de um certo e surdo mal-estar.

Para tanto consideraremos trs pontos especficos:O movimento do pr ao contra: uma anlise metdica;

Sobre o hbito: questionamento dos fundamentos;

molas disparando molas

Um outro assunto, pela extenso deste pequeno trabalho, fica para um momento futuro: Facho de luz, feixe de sensaes: a impossibilidade lgica da unidade do ser;

As referncias sero sempre textuais, ou seja, a similaridade sempre partir da comparao de fragmentos dos autores. Trabalharemos como em uma composio, uma espcie de ladrilho que, olhando-se de perto ou de longe, tm-se mais ou menos nitidamente o formato do mosaico e, sejamos francos, a prpria coerncia do texto ora apresentado33No poderia julgar uma mesma coisa exatamente da mesma maneira. [...] . Preciso, como os pintores, afastar-me; mas no demais. Quanto? Adivinhai. [114]

.

A razo humana um amlgama confuso em que todas as opinies e todos os costumes, qualquer que seja a sua natureza, encontram igualmente lugar. Infinita em suas matrias, infinita na variedade de formas que assume [Montaigne, Ensaios, Cap. XXIII, pg 62].Molas"quando o corpo se abate ao peso dos anos, e as molas da mquina esto usadas, oblitera-se a inteligncia, obscurece-se o esprito, delira a lngua" (Lucrcio, N.doE). [Montaigne, Da idade, 159] .Estas emoes mais sutis do esprito so de natureza extremamente delicada e frgil, e precisam do concurso de grande nmero de circunstncias favorveis para faz-las funcionar de maneira fcil e exata, segundo seus princpios gerais e estabelecidos. O menor dano exterior causado a essas pequenas molas, ou a menor desordem interna, o bastante para perturbar seu movimento, e confundir a operao do mecanismo inteiro. [Hume, Do padro do gosto, 321]A natureza ps-nos de tal modo no meio que, se trocamos um lado da balana trocamos tambm o outro: Je fesons, za trkhei.34M. Ds Granges nos esclarece, em nota a esta passagem, Je fesons (eu fazemos). Nessa epresso popular o sujeito est no singular e o verbo no plural: em Ta za trkhei, encontra-se a aplicao de uma regra prpria da sintaxe grega: o sujeito no plural neutro com o verbo no singular. Pascal assinala essas duas construes como prova de uma lei de oscilao e de um jogo de contrapesos em nosso crebro. Pascal, ob. Cit., pg. 54, nota 19.

Isso me leva a crer que h molas em nossa cabea, dispostas de tal maneira que, se se toca uma, toca-se tambm a contrria. [Pascal, 70]16 A eloqncia a arte de dizer as coisas de maneira: 1. que aqueles a quem falamos possam entend-las sem dificuldade e com prazer; 2. que nelas se sintam interessados, a ponto de serem impelidos mais facilmente pelo amor-prprio a refletir sobre elas. Consiste, portanto, em uma correspondncia que procuramos estabelecer entre o esprito e o corao daqueles a quem falamos, por um lado, e, por outro, entre os pensamentos e as expresses de que nos servimos; o que pressupe termos estudado muito bem o mecanismo do corao do homem a fim de conhecer-lhe as molas e encontrar, em seguida, as propores certas do discurso que desejamos ajustar-lhe. Cumpre colocarmo-nos no lugar dos que devem ouvir-nos, e experimentar tambm em nosso prprio corao a forma dada ao discurso, para ver se um se adapta ao outro e se podemos ter a certeza de que o ouvinte ser forado a render-se. preciso, na medida do possvel, confinarmo-nos dentro da naturalidade mais singela; no fazermos grande o que pequeno, nem pequeno o que grande. No basta que uma coisa seja bela, necessrio que sej adequada ao assunto, que nada tenha de mais, nem que nada lhe falte. [Pascal, Pensamentos, frag 16]Fragmento do relgio: Os que julgam sem regras uma obra esto em relao aos outros como os que no tm relgios em relao aos demais. Um diz: "J passaram duas horas", o outro: "Passaram apenas trs quartos de hora". Olho o meu relgio, e digo a um: "Voc est se aborrecendo", e a outro: r "O tempo anda depressa para voc, pois passou hora e meia". E zombo dos que dizem que o tempo custa a passar para mim, e que julgo pela imaginao: no sabem que julgo pelo meu relgio35Brunschvicg aponta um hbito de Pascal que ajuda a compreender este pensamento: o nosso autor "usava sempre um relgio preso ao pulso esquerdo", o que lhe permitia ver as horas sem que os outros percebessem. (N.DoE.)

[Pascal, Pensamentos, frag 5]O vulgo, que toma as coisas tal como lhe aparecem primeira vista, atribui a incerteza dos resultados a uma incerteza nas causas, que as priva ocasionalmente de sua influncia habitual embora no sofram impedimentos em sua operao. Mas os filsofos, observando que h na natureza, quase que em toda parte, uma grande diversidade de mveis e princpios que esto ocultos em razo de serem muito remotos ou diminutos, descobrem que pelo menos possvel que a disparidade dos resultados proceda no de alguma contingncia na causa, mas da operao secreta de causas contrrias. Observaes adicionais convertem essa possibilidade em certeza, quando notam que, aps um cuidadoso exame, uma disparidade nos resultados sempre revela uma disparidade nas causas e deriva de sua mtua oposio. Um campons no pode dar melhor explicao para a parada de um relgio seno dizendo que ele no costuma funcionar bem; mas um artfice facilmente percebe que a mesma fora na mola ou no pndulo sempre tem a mesma influncia sobre as engrenagens, embora possa perder seu efeito usual em razo, talvez, de um gro de poeira que interrompe todo o movimento. Da observao de diversos casos paralelos, os filsofos derivam a mxima de que a conexo entre todas as causas e efeitos uniformemente necessria, e que sua aparente incerteza em alguns casos deriva da oposio secreta de causas contrrias. [Hume, Investigao, Sec 8, 13, pg 125s.]36Cf. com: Hume, Tratado, Livro I, Sec XII, 5.

Com que finalidade pretenderia eu regular, aperfeioar ou revigorar qualquer daquelas molas ou princpios que a natureza implantou em mim? Ser este o caminho pelo qual posso alcanar a felicidade? [Hume, O Epicurista, 207]Comparveis a grande nmero de artistas subordinados, usados para formar as diversas rodas e molas de uma mquina, so todos aqueles que se distinguem em qualquer das vrias artes da vida. Ele o mestre-arteso que justa todas essas partes, as movimenta segundo uma justa barmonja e proporo, e consegue a verdadeira felicidade como resultado de sua ordenada conjugao. [Hume, O estico, 212]A arte copia apenas o exterior da natureza, esquecendo as molas e princpios interiores, os mais admirveis, por superarem seu poder de imitao, por ficarem muito alm de sua compreenso. A arte copia apenas as mais diminutas produes da natureza, desesperando de atingir aquela grandeza e magnificncia que tanto nos enchem de admirao nas obras magistrais de seu original. [Hume, O platnico, 215]Mesmo que se eliminem as diferenas de interesse, o favor ou inimizade pessoais podem fazer surgir caprichosas e incontveis faces. Mesmo na mais aperfeioada mquina poltica pode surgir ferrugem nas molas, perturbando seus movimentos. [Hume, Idia de uma repblica perfeita, 279]

Assim, a vontade do povo, e a vontade do prncipe, e a fora pblica do Estado, e a fora particular do governo, tudo enfim responde ao mesmo mbil; todas as molas da mquina esto na mesma mo, tudo caminha para o mesmo objetivo: no h movimentos adversos que se destruam mutuamente, e no se pode imaginar nenhuma espcie de constituio em que um esforo menor produza uma ao mais considervel. [Rousseau, Contrato Social, VI Da monarquia]E tambm coisa mui digna de nota que, embora existam muitos animais que demonstram mais indstria do que ns em algumas de suas aes, v-se, todavia, que no a demonstram nem um pouco em muitas outras: de modo que aquilo que fazem melhor do que ns no prova que tenham esprito; pois, por esse critrio, t-lo-iam mais do que qualquer de ns e procederiam melhor em tudo; mas, antes, que no o tm, e que a natureza que atua neles segundo a disposio de seus rgos: assim como um relgio, que composto apenas de rodas e molas, pode contar as horas e medir o tempo mais justamente do que ns, com toda a nossa prudncia. [Descartes, Disc Mtodo, V Parte]

14. Entretanto, eu no poderia espantar-me demasiado ao considerar o quanto meu esprito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detm-me todavia, e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; pois ns dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresentam, e no que julgamos que a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela viso dos olhos e no pela to-s inspeo do esprito, se por acaso no olhasse pela janela homens que passam pela rua, vista dos quais no deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, seno chapus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictcios que se movem apenas por molas? Mas julgo que so homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu esprito, aquilo que acreditava ver com meus olhos. [Descartes, Meditaes, Meditao II, 14, pg. 97]O que o eu? Um homem que se pe janela para ver os passantes, se eu estiver passando, posso dizer que se ps janela para ver-me? No, pois no pensa em mim em particular. [...] Com efeito, Amaramos a substncia da alma de uma pessoa abstratamente e algumas qualidades que nela existissem? Isso no possvel, e seria injusto. Portanto, no amamos nunca a pessoa, mas somente as qualidades. [Pascal, frag. 323]Para isto servi-me de muitos corpos formados artificialmente pelos homens; alis, no vejo, efectivamente, nenhuma diferena entre as mquinas feitas pelos artesos e os diversos corpos formados exclusivamente pela Natureza [a no ser que aqueles feitos pelas mquinas dependem apenas da disposio de certos tubos, molas ou outros instrumentos] e que so proporcionais s mos daqueles que os fabricam, e como so sempre to grandes as suas formas e movimentos podem ser facilmente percepcionados; ao passo que os tubos ou molas que causam os efeitos nos corpos naturais so normalmente demasiado pequenos para que os sentidos os possam percepcionar. verdade que todas as regras da Mecnica pertencem Fsica, de modo que todas as coisas artificiais so, por isso, naturais. Por exemplo, quando um relgio marca as horas por meio das rodas que o compem, isso no lhe menos natural do que uma rvore produzir frutos. Por conseguinte, quando um relojoeiro olha para um relgio que no fez, mediante a simples observao de uma nica parte normalmente consegue avaliar quais so as outras que no v. Por isso considerei os efeitos e as partes sensveis dos corpos naturais e procurei conhecer depois as partes insensveis. [Descartes, Princpios da Filosofia, 204, pg. 236s.]

Montaigne do pr ao contra37MONTAIGNE, Michel de. De como filosofar aprender a morrer. In: Ensaios. Srgio Milliet. Abril Cultural, So Paulo, 1972, 1 ed.

[1]O remdio do homem vulgar consiste em no pensar na morte. Mas quanta estupidez ser precisa para uma tal cegueira? Por que no coloca o freio no rabo do asno, desde que meteu na cabea andar de costas? No h como estranhar caia to amide na armadilha. As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvissem falar no diabo. E como ela mencionada nos testamentos, s resolvem fazer o seu quando os condenou o mdico. E Deus sabe em que estado de esprito se encontram ento, sob o impacto da dor e do pavor. [2] Para comear a despoj-la da vantagem maior de que dispe contra ns, tomemos por caminho inverso ao habitual. Tiremos dela o que tem de estranho; pratiquemo-la, habituemo-nos a ela, no pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas.[3] Vamos agir portanto e prolonguemos os trabalhos da existncia quanto pudermos, e que a morte nos encontre a plantar as nossas couves, mas indiferentes sua chegada e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas.[4] Morrer a prpria condio de vossa criao; a morte parte integrante de vs mesmos. A existncia de que gozais participa da vida e da morte a um tempo; desde o dia de vosso nascimento caminhais concomitantemente na vida e para a morte: "a primeira hora de vossa vida uma hora a menos que tereis para viver" "nascer comear a morrer; o ltimo instante de vida conseqncia do primeiro".[5] Amide indaguei de mim mesmo por que, na guerra, a perspectiva ou a presena da morte, nossa ou de outrem, nos impressiona muito menos do que em nossos lares. [...] Estranho igualmente que a morte em sendo a mesma para todos, a acolham com mais calma os camponeses e o povo mido que os outros.Razo dos efeitos: Creio, em verdade, que so essas fisionomias de circunstncia e esse aparato lgubre com que a cercam, que nos impressionam mais do que ela prpria. [...] Arranquemos as mscaras s coisas como s pessoas e por baixo veremos muito simplesmente a morte. A mesma com a qual partiu ontem sem maior pavor tal ou qual criado ou aia.E no outro nvel de Hume, verificar aqui............Feliz a morte que nos surpreende sem que haja tempo para semelhantes preparativos!Devemos pensar como o povo, mas ter um pensamento oculto! Esquecer a morte, mas no por esquec-la, mas por pensar na liberdade. Diante da Balana da liberdade de fazer, a morte no tem dimenso prpria, e depende de uma dimenso que extrapola seus meios. Ou a razo falha, ou procura nossa satisfao: livra-nos da morte. No por nos afastar dela, muito pelo contrrio, mas por nos permitir a vivncia recional que no negue a vida que existe. Pascal do pr ao contraExiste em Pascal um movimento que nos faz, constantemente, mudar as opinies que temos das coisas atravs de um movimento do pr (a favor) ao contra que pode ser operado em esferas de entendimento, umas contendo outras, num processo contnuo de afirmaes e negaes. Convm ressaltar que, nessa operao, no necessariamente uma questo ser negada em si mesma ou absolutamente mas dentro de um contexto mais amplo ser reinterpreta de forma que tenha sua interpretao iluminada por razes mais abrangentes, num movimento em que podemos, ao mesmo tempo, reconhecer a verdade inicial mas buscar por qual lado falsa sob novos argumentos38Cf. Frag. 9: precisamos observar de que ponto de vista encara o assunto, porquanto, em geral, verdadeiro para o observador, e ento reconhecer sua verdade, mas descobrir-lhe o lado pelo qual falso. Assim, satisfazemos pessoa enganada, porque v que no se equivocava mas deixava to-somente de encarar a coisa de todos os angulos possveis; ningum se aborrece por no ter visto tudo, porm ninguem quer estar equivocado; talvez isso provenha do fato de no poder o homem ver tudo e de, naturalmente, no poder se enganar dentro do angulo que escolheu (os grifos em Pascal so sempre meus. Em Hume convm sempre especificar, pois as edies apresentam por vezes itlicos em palavras chave)

. Observemos a famosa aplicao do mtodo39 sempre complicado falar de mtodo em Pascal, mas a clareza com que sempre expe o seu mecanismo do pr ao contra na busca da razo dos efeitos nos permite. O perigo est em confundirmos seus preceitos de mtodo com a elaborao de um sistema.

que Pascal faz:Graduao. [1] O povo honra as pessoas de grande nascimento. [2] os semi hbeis as desprezam, dizendo que o nascimento no uma vantagem da pessoa, mas do acaso. [3] Os hbeis as honram, no pelo pensamento do povo, mas pelo pensamento oculto. [4] Os devotos, que tm mais zelo do que cincia, as desprezam, malgrado essa considerao que as faz honrar pelos hbeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade lhes d. [5] Mas os cristos perfeitos as honram por outra luz superior. Assim, vo-se sucedendo as opinies do pr ao contra, segundo a luz que se tem. (337)40PASCAL, ob. Cit. Por tratar-se de fragmentos e aforismos mais facilmente localizveis por seu nmero do que pela pgina correspondente, deixaremos de citar a pgina e indicaremos, no final das citaes, entre parnteses o nmero respectivo do fragmento, segundo a numerao da edio dos Pensadores (Brawschvick).

Pascal, atravs desse movimento de vai e vem entre a afirmao e a contestao, procura o que ele denomina razo dos efeitos. Quanto mais voc se aprofunda nas questes, mais amplo se torna o entendimento das razes envolvidas. O povo pode honrar o homem de bom nascimento, igualmente os hbeis. No entanto, honram por motivos diferentes. Os hbeis encontram um pensamento oculto e podem compreender melhor no que reside essa honraria. A verdade est nas suas opinies [na do povo], mas no no ponto em que imagina. [Assim] certo que se deve honrar os fidalgos, mas no porque o bero seja uma vantagem efetiva, etc. (335)Talvez seja por isso que, talvez ironicamente, ainda sobre a razo dos efeitos e sobre o pensamento oculto Pascal possa nos afirmar:Razo dos efeitosEsta boa: no querem que eu honre um homem vestido de brocado e acompanhado de sete ou oito lacaios! Como! Se o no saudasse, mandava bater-me. (315)Se levarmos em conta que a fora capaz de impor esses costumes (me dariam bordoadas se no respeitasse a pessoa bem vestida), no se pode falar de sua justia ou no em termos absolutos; no entanto, no linguajar do povo, deve-se falar de sua justia:... o povo segue-o [os costumes] pela nica razo de julg-lo justo; do contrrio, no o seguiria mais, embora fosse costume, pois s queremos estar sujeitos razo ou justia. [...] Mas o povo no suscetvel dessa doutrina e, assim, como julga que a verdade se pode encontrar e que est nas leis e costumes, nelas acredita e toma a sua antigidade como uma prova de verdade (e no de simples autoridade sem verdade). Assim, obedece-lhes, mas est sujeito a se revoltar desde que lhe mostrem que no valem nada; o que se pode fazer com todas, observando-as de certo lado. (325)Hume do pr ao contraComparemos as passagens citadas com as seguintes, tiradas de Da Origem do Governo41In: HUME, David. Ensaios morais, polticos e literrios. Traduo de Joo Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora Doliveira. Abril Cultural, So Paulo, 2. ed., 1980. Pginas 229-230.

. Devo desculpar-me pelas longas citaes, mas a meu favor digo o seguinte: em primeiro lugar so textos que sempre nos agrada ler; em segundo lugar, estamos operando uma comparao entre ferramentas de exposio ou defesa de idias, ento cabe ressaltar no prprio texto dos autores as consideraes, para no cairmos na armadilha de ver chifre em cabea de cavalo. Em terceiro lugar, uma vez citadas, no precisaremos ficar picotando os trechinhos, e podemos argumentar mais fluentemente. Primeiro a colocao do caso geral e o foco do ponto a ser investigado:[I] Nascido em uma famlia, o homem obrigado a conservar a sociedade, por necessidade, por inclinao natural e por hbito. [...] [II] Todo homem tem conscincia da necessidade da justia para conservar a paz e a ordem, assim como todo homem tem conscincia da necessidade da paz e da ordem para a conservao da sociedade. [III] Mas, no obstante esta forte e evidente necessidade tal a fragilidade e perversidade de nossa natureza! , no possvel obrigar os homens a seguir de maneira fiel e constante a senda da justia. [...]Hume d como certo, portanto, a obrigao de conservar a sociedade. E aparentemente descarta uma fixao de sua gnese, que pode ser uma necessidade, inclinao natural ou hbito. Apenas, de incio, constata que existe essa obrigao de conservao para impor a justia aos homens.E por que impor? Porque tambm constata que a conscincia da justia no mantida por si mesma entre os homens, devido prpria natureza humana. Diante de uma necessidade, a de conservar a sociedade e a justia, o homem pode vacilar diante de interesses de sua prpria natureza.Convm analisar ento o remdio paliativo (cf. tem [1] abaixo) que o da instaurao de um governo e obedincia que deve o homem diante dele para a conservao da justia. Problema duplamente interessante: do ponto de vista filosfico e do ponto de vista humano, j que questiona a prpria organizao da sociedade, no sentido de aprimorar sua constituio.42Sobre a utilidade da filosofia, cf. Hume, 2004: 'Satisfaz a tua paixo pela cincia', diz ela [a natureza ao homem] 'mas cuida para que essa seja uma cincia humana, com direta relevncia para a prtica e a vida social. [...] S um filsofo, mas, em meio a toda tua filosofia, no deixes de ser um homem' (pg. 23). Convm notar que a passagem personifica a natureza que, literalmente, d conselhos ao prprio homem (Hume coloca as frases apresentadas com aspas simples entre aspas duplas, para gerar o efeito da personificao).

Acompanhemos o movimento da argumentao sobre a obedincia, comparando-o com o movimento de Pascal. As numeraes entre colchetes servem para orientar a comparao.[1] Os homens precisam, portanto, procurar um paliativo para o que no podem curar. Precisam criar certos cargos, [...] e obrigar os homens, mesmo contra sua vontade, a respeitar seus prprios interesses reais e permanentes. Em poucas palavras: a obedincia um novo dever, que precisa ser inventado para sustentar o da Justia, e os laos da eqidade devem ser reforados pelos da sujeio.[2] Mas poderia ainda pensar-se, considerando este problema de maneira abstrata, que nada se ganha com esta aliana, e que [a] o dever factcio da obedincia, em virtude de sua prpria natureza, tem to pouca influncia sobre o esprito humano como [b] o dever primitivo e natural da justia. Os interesses pessoais e as tentaes presentes tanto podem sobrepujar um como o outro; ambos esto igualmente sujeitos ao mesmo inconveniente. [...].[3] Todavia, a experincia mostra que h uma grande diferena entre os dois casos [a, b]. Verifica-se que na sociedade a ordem muito mais eficazmente preservada por meio do governo; e nosso dever para com o magistrado mais solidamente garantido pelos princpios da natureza humana que nosso dever para com os outros cidados. To forte a paixo do poder no corao do homem, que muitos no s aceitam mas at procuram todos os perigos, canseiras e cuidados do governo; e, uma vez chegados a essa situao, embora muitas vezes sejam desviados por paixes pessoais, em muitos casos os homens encontram um evidente interesse na administrao imparcial da justia. [...] [230] O hbito depressa vem reforar o que outros princpios da natureza humana deficientemente consolidaram; e, uma vez habituados obedincia, os homens jamais pensam em afastar-se desse caminho que ele e seus antepassados constantemente trilharam, e ao qual so levados por tantos e to imperiosos e evidentes motivos.[4] Mas, embora esta evoluo das coisas humanas possa parecer certa e inevitvel, e embora o apoio prestado justia pela sujeio assente em evidentes princpios da natureza humana, no se pode esperar que os homens sejam capazes de antecipadamente descobri-los ou prever seus efeitos. O governo tem inicio de maneira mais acidental e imperfeita. provvel que tenha sido durante um estado de guerra que pela primeira vez um homem tenha ganho ascendente sobre as multides; [...]. A longa permanncia desse estado, coisa vulgar entre as tribos selvagens, leva o povo submisso; e, se acaso o chefe for to equnime quanto prudente e corajoso, ele se torna, mesmo em tempo de paz, o rbitro de todas as disputas, e pode ir gradualmente consolidando sua autoridade, atravs de um misto de fora e de consentimento. [...] Depois dele, a submisso deixa de ser objeto de escolha por parte da massa da comunidade, passando a ser rigorosamente imposta pela autoridade do supremo magistrado.[5] Em todos os governos existe uma permanente luta intestina, aberta ou silenciosa, entre a Autoridade e a Liberdade, e neste conflito nem uma nem outra pode jamais prevalescer de maneira absoluta. Em todos os governos se tem necessariamente que fazer um grande sacrifcio da liberdade, e contudo tambm a autoridade, que limita a liberdade, jamais deve, em qualquer constituio, tornar-se completa e incontrolvel. [...] O governo que, na linguagem vulgar, recebe a designao de livre, aquele que permite uma diviso do poder entre vrios membros, cuja autoridade conjunta no superior de qualquer monarca; mas esses membros, no curso normal da administrao, devem agir de acordo com leis gerais e sempre idnticas, que so previamente conhecidas por todos os membros do governo e todos os sditos. Neste sentido, foroso reconhecer que a liberdade a perfeio da sociedade civil, sem que isso permita, contudo, negar que a autoridade essencial para sua prpria existncia; e por isso esta ltima pode merecer a preferncia, nessas disputas em que tantas vezes uma oposta outra. (Grifos meus) preciso haver a inveno da obedincia; no entanto, pode-se questionar que, se os homens no obedecem nem s suas prprias conscincias, porque obedeceriam a um governo? A esses podemos dizer que, na realidade, o que se constata que as coisas so bem diferentes, e o prprio compromisso social acaba por dar mais poder sobre os homens do que sua prpria conscincia, na manuteno da justia; no entanto, esse controle sobre os homens pode transformar-se em um poder imposto, extrapolando qualquer possibilidade de escolha e tornando-se total (rbitro de todas as disputas). A razo desses efeitos um movimento contnuo entre a necessidade dupla de, por um lado, haver uma autoridade sobre os homens e de outro a manuteno de sua liberdade. Mas a razo dos efeitos nos mostra mais: nos mostra que nem uma nem outra pode prevalecer completamente, pois justamente regulam-se ao coexistirem. Se uma ou outra prevalece absolutamente, a prpria condio inicial proposta qual seja, a justia, mantida pela paz e pela ordem que a organizao social possibilita se descaracteriza e acaba regulada pelo prprio movimento.Isso mostra que esse jogo que, genericamente, podemos apelidar de pr ao contra (pensemos nisso mais amplo do que os comentadores apelidaram o original de Pascal) tem uma dupla funo: pode ver razes, desde as mais aparentes at outras nem tanto; pode estabelecer um pensamento oculto, isto , pode induzir-se a reorganizar as esferas contidas no movimento do pr ao contra, segundo uma ordenao arbitrria mas nem tanto , como veremos.

O movimento contrrioErro comum;Prova por absurdo;A campo do provvel.Mas, por um defeito contrrio, os homens acreditam, s vezes, que podem fazer com justia tudo o que no sem exemplo. Eis por que o mais sbio dos legisladores dizia que, para o bem dos homens, preciso, muitas vezes, engan-los, e um outro, bom poltico: Cum veritatem qua liberetur ignoret, expedit quod fallatur43Como ignora a liberdade que liberta, -lhe til ser enganado (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, IV, 27) (N. do T.)

. No preciso que ele sinta a verdade da usurpao: esta foi introduzida, outrora, sem razo; tornou-se razovel; preciso faz-la observar como autntica, eterna, e ocultar o seu comeo, se se quiser que no se acabe logo.. [*294]Assim a corte e o campo, autnticos frutos do governo britnico, so uma espcie de partidos mistos, influenciados ao mesmo tempo por princpios e por interesses. Os chefes das faces so geralmente guiados sobretudo pelo ltimo desses motivos, e os membros inferiores pelo primeiro. [Hume, investigao, pg 285]A determinao da natureza desses partidos talvez um dos problemas mais difceis que se podem encontrar, e constitui uma prova de que pode haver na histria questes to incertas como as que se encontram nas mais abstratas cincias.[Hume, investigao, 287]vivendo num pas onde se goza da mais ampla liberdade, qualquer um pode declarar abertamente todos os seus sentimentos e opinies; e apesar de tudo isto no somos capazes de dizer qual a natureza, quais as pretenses e os princpios das diferentes faces.[Hume, investigao, 287]Conseqentemente, para diminuir ou aumentar o valor que uma pessoa atribui a um objeto, para excitar ou para moderar suas paixes, no existem argumentos ou razes diretas que possam ser usados com alguma fora ou influncia. Apanhar moscas, como Domiciano, se provocar mais prazer, preferivel caa de animais selvagens, como William Rufus, ou conquista de reinos, como Alexandre.[hume, inv,223]Podem-se dar duas razes naturais para tal regra. Primeira, se se supuser que uma balana tem uma inclinao, se bem que pequena, para um lado particular, tal inclinao, embora no transparea nas primeiras oscilaes e tentativas, acabar prevalecendo e far pender a balana inteiramente para aquele lado. Do mesmo modo, quando algumas causas propiciam uma inclinao particular ou determinada paixo, em determinado tempo e entre certo povo, embora saibamos que um grande nmero de pessoas lhe pode escapar e ser dominado por paixes pessoais, contudo, certo que a multido ser atingida pela afeo comum que a governar em todas as aes.[hume, inv, 297] Conf. Com QUANDO TODOS TENDEM AO DESREGRAMENTO, de Pascal. Podemos, portanto, concluir que no h assunto no qual se deva proceder com mais cautela que ao traar a histria das artes e das cincias; a fim de no assinalar causas que nunca existiram e reduzir aquilo que apenas contingente a princpios estveis e universais. [Hume, inv, 298]

Deus dentro de ns, diz Ovdio, que respira aquele divino fogo pelo qual somos alimentados'. Em todas as pocas os poetas atriburam este ttulo inspirao. Nada h, contudo, de sobrenatural no caso. O fogo dos poetas no aceso no cu. Percorre a terra, passa dum corao a outro e arde mais brilhantemente onde os materiais esto melhor preparados, e com mais felicidade arranjados. A questo, portanto, respeitante origem e progresso das artes e cincias no versa sobre o gosto, gnio e esprito de uns poucos, mas envolve todo um povo; e pode, portanto, ser analisada em alguma medida por princpios e causas gerais.[h, inv, 298]No que sejam de recomendar muitas divises num discurso pblico, a no ser que o assunto as imponha com toda a evidncia. Mas fcil, sem esta formalidade, obedecer a um mtodo, e tornar este mtodo evidente para os ouvintes, que ficaro infinitamente encantados ao verem os argumentos surgir naturalmente uns dos outros, e sero persuadidos de modo muito mais eficaz do que o seriam pelas mais fortes razes, se estas fossem alinhadas de maneira confusa. [h, inv, 312]403 Grandeza As razes dos efeitos marcam a grandeza do homem de ter tirado da concupiscncia to bela ordem.556b - [...] No preciso que ele no veja absolutamente nada; no preciso, tampouco, qe veja o suficiente para crer que o possui; mas, que veja o bastante para perceber que o perdeu: pois, para saber que se perdeu, preciso ver e no ver; e precisamente neste estado que se encontra a natureza. Qualquer partido que tome no o deixarei sossegado...*277 o corao tem suas razes, que a razo no conhece: percebe-se isso em mil coisas. Digo que o corao ama o ser universal naturalmente e a si mesmo naturalmente, conforme aquilo a que se aplique; e ele se endurece contra um ou outro, sua escolha. Rejeitastes um e conservastes o outro: ser devido razo que vos amais a vs prprios?556a- E, por isso, no procurarei provar aqui por meio de razes naturais, ou a existncia de Deus, ou a Trindade, ou a imortalidade da alma, nem qualquer coisa dessa natureza; no s porque no me sentiria bastante forte para encontrar na natureza com que convencer ateus empedernidos, mas ainda porque esse conhecimento, sem Jesus Cristo, intil e estril.Neste caso notvel a descoberta de que o jogo em si de um estado para outro estado X liberdade pode ser chamado de fundamento: na medida em que Hume declara a liberdade como a perfeio da sociedade civil, e que sacrificamos parte dessa liberdade em funo do controle necessrio, declara por conseguinte que a perfeio da sociedade civil orbita em outra esfera que a do poder do estado. Talvez por isso que seja to importante que nem uma nem a outra prevalea: a prevalecer a liberdade, prevalece a parte da natureza humana que pode no ter limites e, sendo volvel e baixa, tudo pode. Ao reconhecer-se nesse estado, entretanto, a prpria natureza humana que reage, e dessa forma o jogo se estabelece. No se trata, creio, de uma moderao da razo que estaria assim elevada de novo a ranha e rbitra. A razo tem suas razes, mas existem outras razes (no sentido de propores) que no necessariamente passam por ela.

Mas o mais impressionante da argumentao, no a metamorfose dos conceitos de ordem-autoridade ou obedincia-submisso, mas que a mudana dos conceitos se devem justamente natureza humana. A mesma natureza humana, capaz de tudo, inclusive de agir contra sua prpria conscincia de justia impondo vantagens ou ganhos pessoais, QUANDO SE RECONHECE nesse estado de fragilidade e perversidade pode buscar remdios que contornem essa sua fragilidade. Ao reconhecer-se capaz de tudo, reconhece tambm a necessidade de abrir parte desse ser capaz de tudo em funo de um bem maior, o que preservar o que sua prpria natureza individual no seria capaz de regular. realmente uma surpresa constatarmos nossa fragilidade e perversidade, e essa constatao construir algo positivo, no sentido referido pelo autor de sua relevncia para a vida do homem. No existe no pensamento alguma forma de censura moral natureza humana, e a fragilidade e perversidade apenas adquirem sentido se vista no convvio entre homens, j que a solido no nos coloca o problema da justia. Portanto em si mesmas essa fragilidade e perversidade no so falsas, j que em ltima instncia, podem ser consideradas como uma atitude da prpria natureza da vida em sua preservao.Uma vez entretanto que se estabelece o convvio entre homens, essa fragilidade e perversidade podem ser constatadas pela prpria observao efetiva dos fenmenos. Mas ao mesmo tempo que se expressa em fenmeno, j se expressa com a necessidade de sua regulao, pela necessidade de uma justia que deve ser imposta prpria natureza.Veja-se o que Pascal diria sobre a conscincia, por exemplo da concupiscncia, para sua prpria regulao:Grandeza do homem que, mesmo de sua concupiscncia, soube tirar um regulamento admirvel e fazer um quadro da caridade. (402)Voltemos para a gradao de Pascal: os homens do povo, os semi-hbeis, os hbeis, os devotos e os cristos perfeitos. A partir dos hbeis, as razes ocultas j estoUm homem e um cavaloRetomemos o fragmento citado acima, agora completo. No ponto em que paramos, Pascal dizia do receio de apanhar, caso no respeitasse o homem bem vestido. Continuemos o fragmento at o final:[...] Se o no saudasse, mandava bater-me. Esse hbito uma fora; no acontece o mesmo com um cavalo bem arreado em relao a outro? engraado que Montaigne no veja que diferena existe, admirando-se de que se ache alguma e perguntando a razo. Na verdade, diz ele, de onde vem, etc. (315)Daqui temos duas questes: primeiro que temos que introduzir, de alguma forma, Montaigne no preo, j que em se tratando de costume e hbito ser sempre referido por Pascal. Mas segundo, e o que me parece essencial: existe uma diferena na imposio, fora, e que diferencia homens de animais. No a fora, e apenas ela, capaz de fabricar costumes ou verdades. Na verdade, se analisarmos a fundo, ela impotente nesse aspecto.Se investigarmos atravs de que meios se consegue este prodgio [a facilidade com que os muitos so governados pelos poucos], verificaremos que, como a fora est sempre do lado dos governados, os governantes se apiam unicamente na opinio. O governo assenta portanto apenas na opinio; e esta mxima se aplica tanto aos governos mais despticos e militares como aos mais livres e populares. O sulto do Egito, ou o imperador de Roma, podiam conduzir seus sditos inermes, como animais, contra seus sentimentos e inclinaes; mas pelo menos precisavam comandar seus mamelucos, ou seus guardas pretorianos, como homens, atravs de sua opinio.44Hume, 1980, pg. 243, Dos primeiros princpios do governo.

Parece que, para Pascal, Montaigne teria deixado escapar o que essencial na avaliao dos costumes: [...] Montaigne no tem razo: o costume s deve ser seguido porque costume, e no porque seja razovel ou justo. (325)Como falta a busca de uma razo dos efeitos o efeito pode ser tomado por causa: a justia pode ser encarada, por uma luz superior, como um dos efeitos de uma razo maior a fora, por exemplo. Montaigne viu que nos ofendemos com um esprito claudicante e que o costume pode tudo; mas no viu a razo desse efeito (234).Considera ainda que o que Montaigne tem de bom s dificilmente se adquire Mas, por outro lado, o que tem de ruim, afora os costumes, ter-se-ia corrigido em um instante... (63). Mas o que teria afinal de bom e ruim Montaigne?!? Ou poderamos supor que, justamente por lidar com Pascal, que o que tem de bom o que tem de ruim: consegue estranhar o prprio homem diante de si mesmo. Consegue pintar o esprito de tal forma que, emoldurado das ligaes do dia a dia, nos distanciemos dessas prprias ligaes e as vejamos por luzes mais altas. No entanto se no final desse movimento no existe uma razo que nos reconcilie com os prprios costumes, no existe uma construtividade no discurso, mas apenas seu estranhamento.

Somos homens, temos que agir e temos que viver, ainda que ele tente nos mostrar o tempo todo que isso um fardo. Ento, nessa nossa ao quotidiana das vrias espcies de relacionamento, devo sempre agir compreendendo a prpria ao por outras luzes, guardando um pensamento oculto que me revela a verdadeira razo. Razo dos efeitos preciso ter um pensamento oculto e tudo julgar por ele, falando entretanto como o povo. (336)Ora, mas aonde est o ponto fixo. No o que Pascal reivindica, que no chegaramos a tanto (cf. Frag. .............) mas o do prprio ttulo da seo: Pndulo de Pascal.Sabe-se que o que caracteriza um pndulo uma oscilao, e a base dessa oscilao ter um ponto que a fixe. O ponto fixo do pndulo de Pascal nada mais do que a condio humana, que pode, ao fixar-se como homem, lidar com paradoxos, meias verdades e com a prpria infinitude das coisas, a mal grado da limitao do seu conhecimento. O ponto fixo nada mais do que reconhecer no apenas os limites, mas a arbitrariedade da posio fixada. 115 Diversidade A teologia uma cincia, mas, ao mesmo tempo, quantas cincias h? Um homem uma substncia; mas, se o anatomizarmos, ser ele a cabea, o corao, as veias, o estmago, cada veia, cada poro de veia, o sangue, cada humor do sangue? Uma cidade, um campo, de longe, so uma cidade e um campo; mas, medida que nos aproximamos, so casas, arvores, telhados, folhas, plantas, formigas, pernas de formigas, at o infinito. Tudo isso se inclui na palavra campo. [Pascal, Pensamentos, frag 115]contrrios suspenso do juzoCf. pag 91, sec 6, nota I: locke divide os argumentos de demonstrativos e provveis. Hume divide em : demonstraes, provas e probabilidades. A morte entra como um forte argumento!No final da sua Investigao, antes de recomendar que determinados livros sirvam fogueira45Cf. Hume, Investigao, pag. 222

, Hume formula o que chama de ceticismo mitigado, que indica ser uma forma saudvel de duvidar:24 Existe, com efeito, um ceticismo mais mitigado, ou filosofia acadmica, que pode ser tanto til quanto duradouro, e que pode ser em parte o resultado desse pirronismo, ou ceticismo excessivo, quando suas dvidas indiscriminadas so em certa medida corrigidas pelo senso comum e a reflexo. [Huma, inv, 217]Tal citicismo mitigado tem por primeira caracterstica aceitar argumentos contrrios, tentando limitar a esfera de nossos raciocnios que, segundo o autor, tendem naturalmente ao dogmatismo:As pessoas tendem naturalmente, em sua maior parte, a ser afirmativas e dogmticas em suas opinies; e, ao contemplarem os objetos apenas unilateralmente, sem fazer idia de qualquer argumento que se possa contrapor, atiram-se precipitadamente em direo aos princpios para os quais sentem inclinao, e no demonstram nenhuma indulgncia para com aqueles que professam opinies contrrias. [h, inv, 216][...] Mas, se tais raciocinadores dogmticos pudessem tornar-se conscientes das estranhas [217] fraquezas do entendimento humano, mesmo em sua mais perfeita condio e ao deliberar da forma mais exata e cuidadosa, essa reflexo naturalmente iria inspirar-lhes mais modstia e reserva, diminuir a elevada opinio que tm de si mesmos e seu preconceito contra os antagonistas. [...] H, em geral, um grau de dvida, cautela e modstia que, em todos os tipos de exame e deciso, deve sempre acompanhar o verdadeiro raciocinador.Isso j havia afirmado sobre o ceticismo: Os acadmicos esto constantemente falando sobre dvida e suspenso do juzo, sobre o perigo das decises apressadas, sobre confinar as indagaes do entendimento a limites bem estreitos e renunciar a todas as especulaes que caem fora dos limites da vida e da prtica cotidianas. Conseqentemente, urna filosofia como essa o que h de mais contrrio indolncia acomodada da mente, sua arrogncia irrefletida, suas grandiosas pretenses e sua credulidade supersticiosa. [sec 5, I, 1]6 A evidncia derivada de testemunhas e de relatos humanos funda-se na experincia passada, e varia, portanto, com a experincia, sendo considerada ou uma prova, ou uma probabilidade, conforme a conjuno entre algum tipo particular de rela- 156to e um tipo qualquer de objeto tenha-se mostrado constante ou varivel. H numerosas circunstncias que devem ser leva-das em conta em todos os julgamentos dessa espcie, e o padro ltimo pelo qual resolvemos todas as possveis disputas que surgem em torno deles sempre derivado da experincia e observao. Quando essa experincia no inteiramente uniforme em relao a algum dos lados, ela vem acompanha-da de uma inevitvel contrariedade em nossos julgamentos, e da mesma oposio e mtua destruio de argumentos que ocorre com qualquer outro tipo de evidncia. Hesitamos freqentemente diante dos relatos de outras pessoas; contrapomos as circunstncias opostas que causam alguma d-vida ou incerteza, e, quando identificamos uma superioridade em algum dos lados, inclinamo-nos para ele, sempre, porm, com um decrscimo de confiana proporcional fora de seu antagonista. [Huma, inv, 156]Em outros casos, ele procede com maior cautela, sopesando os experimentos opostos, considerando qual lado se apia no maior nmero de experimentos, inclinando-se para esse lado com dvida e hesitao, e, ao formar finalmente um juzo, a evidncia no excede o que propriamente se denomina probabilidade. Toda probabilidade supe assim uma oposio entre experimentos e observaes, em que se verifica que um dos lados supera o outro e produz um grau de evidncia proporcional a essa superioridade. [h, inv, sec 10, I, 4, pag. 154 sobre os milagres]Alm de nosso prprio gosto, no h um nico argumento que possamos empregar em nosso favor, e para nosso antagonista seu prprio gosto sempre constituir um argumento mais convincente em sentido contrrio. [h, polticos lit, 219]2 Questes de fato, que so o segundo tipo de objetos da razo humana, no so apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidncia de sua verdade, por grande que seja, da mesma natureza que a precedente. O contrrio de toda questo de fato permanece sendo possvel, porque no pode jamais implicar contradio e a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustvel realidade. Que o sol no nascer amanh no uma proposio menos inteligvel nem implica mais contradio que a afirmao de que ele nascer; e seria vo, portanto, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradio e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente.[h, inv, 4, I, 2]Nisso consiste toda a natureza da crena; pois, como no h questo de fato na qual se acredite to firmemente a ponto de [57] no se poder conceber o contrrio, no haveria nenhuma diferena entre a concepo a que se d o assentimento e aquela que se rejeita, se no fosse por algum sentimento que as distingue uma da outra. Se vejo uma bola de bilhar movendo-se em direo a outra, sobre uma mesa lisa, posso facilmente conceber que ela se detenha no mo-mento do contato. Essa concepo no implica contradio, mas ainda assim provoca um sentimento muito diferente da concepo pela qual represento para mim o impulso e a comunicao de movimento de uma bola a outra. [u, inv, sec5, parte2, 11, pg 322]24 Existe, com efeito, um ceticismo mais mitigado, ou filosofia acadmica, que pode ser tanto til quanto duradouro, e que pode ser em parte o resultado desse pirronismo, ou ceticismo excessivo, quando suas dvidas indiscriminadas so em certa medida corrigidas pelo senso comum e a reflexo. As pessoas tendem naturalmente, em sua maior parte, a ser afirmativas e dogmticas em suas opinies; e, ao contemplarem os objetos apenas unilateralmente, sem fazer idia de qualquer argumento que se possa contrapor, atiram-se precipitadamente em direo aos princpios para os quais sentem inclinao, e no demonstram nenhuma indulgncia para com aqueles que professam opinies contrrias. Hesitar ou ponderar so atos que confundem seu entendimento, imobilizam suas paixes e suspendem suas aes. Sentem-se, portanto, impacientes para escapar de um estado que lhes to desconfortvel, e julgam que a violncia de suas afirmaes e a obstinao de suas crenas podem p-los a uma distncia segura dele. Mas, se tais raciocinadores dogmticos pudessem tornar-se conscientes das estra[217] nhas fraquezas do entendimento humano, mesmo em sua mais perfeita condio e ao deliberar da forma mais exata e cuidadosa, essa reflexo naturalmente iria inspirar-lhes mais modstia e reserva, diminuir a elevada opinio que tm de si mesmos e seu preconceito contra os antagonistas. Os iletrados podem refletir sobre a condio dos instruidos, os quais, mesmo com todas as vantagens do estudo e da reflexo, continuam sentindo pouca confiana em suas decises; e se al-guns dos instrudos inclinarem-se, por seu temperamento natural, altivez e obstinao, algumas poucas tinturas de pirronismo poderiam abater seu orgulho, mostrando-lhes que as poucas vantagens que podem ter alcanado sobre seus companheiros so insignificantes quando comparadas com a perplexidade e confuso universais que so inerentes natureza humana. H, em geral, um grau de dvida, cautela e modstia que, em todos os tipos de exame e deciso, deve sempre acompanhar o verdadeiro raciocinador. [Huma, inv, 217]

Eu por hbitoSituando a questoUma das coisas mais notveis, quando nos voltamos para ns mesmos o fato de que (a) a impossibilidade de demonstrao de determinadas verdades que temos (ou queremos ter) proporcional (b) certeza que temos delas. Seria por demais bvio e piegas dizer que um amor que sinta indemonstrvel, assim como no existe uma equao que tenha por atribuio ou igualdade a felicidade. E que o primeiro pode ser substancialmente verdadeiro, e a segunda, uma eterna equao que se tenta operar, reciclando uma incrvel f numa espcie de matemtica universal onde, em ltima instncia, acaba sobrando apenas ns mesmos, como o centro do universo. certo que um centro estranho: no pode ser fixado, apesar de parecer estar sempre presente, e muito menos, o que se esperaria de um ponto, pode dizer-se indivisvel. J que tem partes, partes das partes, e mesmo vida habitando esse outro infinito que tendo para o pequeno.Mas, se tomarmos apenas que rapidamente essa questo, notamos que estamos diante de coisas realmente notveis: no existem sistemas, falando em absoluto. Nem entre os planetas, nem entre os tomos, j que o centro de equilbrio, ou o centro energtico, pode ser fixado arbitrariamente, que seus referenciais, tambm infinitos, tenderiam todas as operaes a apenas um ponto onde estevisse ligado ou desligado.Parece estranho, mas no : o tal ponto, de que falamos, a definio que Pascal dar de Deus:Um ponto movendo-se a uma velocidade impressionante e que est em todo lugar, mas no pode ser fixado.Percebeu tambm, como se comprova pela histria de Pascal, que compreendeu rapidamente a lgica de computao, construindo uma calculadora mecnica, com raciocnio digital. Seu tringulo, que dependendo da linha que se trace, projeta algoritmos diversos fibonacci, quadrados, razes tambm nos fazem imaginar algum que j operasse muito bem isso que chamaramos de ponto flutuante na construo de algoritmos binrios, existentes por negao. A linguagem que daria conta disso, divulgada oficialmente em 1971, traz justamente o nome de Pascal, hoje substitudo pelo Delphi, o Pascal por Objeto.Por outro lado, Hume vai aprofundar e importncia vital do improvvel, tambm aqui tentando nos livrar dos palavres: o hbito uma espcie de sensibilidade a que a razo deve estar atenta, numa relao de construo do conhecimento. Dessa forma, poderemos traar um ciclo, que comea na expresso da razo para alm do hbito, em Montaigne, passando pela diferenciao, na construo do mtodo do pr ao contra. Aplicao do princpio do improvvel, de Hume, e aprofundamento do pr ao contra.

E se acreditamos poder abraar o centro, por ser apenas um ponto, nos enganamos, pois este ponto encontra-se em todo lugar, j que o que no tem extenso, a esfera, pode ter seu centro indistintamente em qualquer lugar.Acreditamos muito naturalmente sermos mais capazes de alcanar o centro das coisas que de abraar-lhes a circunferncia; a extenso visvel do mundo ultrapassa-nos manifestamente; porm, como ultrapassamos as coisas pequenas, acreditamo-nos mais capazes de possu-las; entretanto, no nos falta menos capacidade para chegar ao nada que para chegar ao todo; para um, como para outro, falta-nos uma capacidade infinita, e creio que quem tivesse compreendido os princpios ltimos das coisas chegaria tambm a conhecer o infinito. Uma coisa depende da outra, e uma conduz outra. Esses extremos se tocam e se unem, fora de se afastarem, e se reencontrarem em Deus e somente em Deus. (Pascal, 72)uma esfera infinita cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferncia no se acha em nenhuma. E o fato de nossa imaginao perder-se nesse pensamento constitui, em suma, a maior caracterstica sensvel da onipotncia de Deus. (Pascal, 72)Quero ento mostrar-vos uma coisa infinita e indivisvel. um ponto movendo-se por toda parte em velocidade infinita,pois est em todos os lugares e por inteiro em cada lugar. (Pascal, 231)Dizem, ousadamente, que as coisas tendem a cair, que aspiram ao centro, que fogem sua destruio, que temem o vcuo, que tm inclinaes, simpatias, antipatias, qualidades todas que somente ao esprito pertencem. E, referindo-se ao esprito, consideram-no como se estivesse em determinado espao, e lhe atribuem a capacidade de movimentar-se de um lugar a outro, coisas que pertencem apenas aos corpos. Em vez de recebermos a idia pura das coisas, tingimo-la com nossas qualidades e impregnamos de nosso ser composto todas as coisas simples que contemplamos. (Pascal, 72)Se examinarmos a ordem do mundo sob esse aspecto, veremos se todas as coisas no tendem ao estabelecimento dos dois princpios lecimento dos dois princpios dessa religio: Jesus Cristo o objeto de tudo e o centro para onde tudo converge. Quem o conhece, conhece a razo de todas as coisas. Os que se extraviam, s o fazem por deixarem de ver uma dessas duas coisas. Podemos, pois, conhecer bem Deus sem a prpria misria e a prpria misria sem Deus; mas no podemos conhecer Jesus Cristo sem conhecer, ao mesmo tempo, Deus e a prpria misria. (Pascal, 556)21 Os beneficios so agradveis enquanto pensamos poder devolv-los; mais alm, o reconhecimento se transforma em dio. (Tcito, Anais, IV 18, citado por Montaigne, Ensaios, III, 8.j)

Na nossa vida cotidiana parece que no existe realmente um problema no relacionamento dessas certezas, as demonstrveis e as indemonstrveis. Quase que o tempo todo reconstitumos a certeza que temos de ns mesmos, quantificamos em operaes de perdas e ganhos o que temos no bolso, e ao mesmo tempo em que temos uma certeza indemonstrvel de que se esteja amando, ou odiante, ou algo assim, a conta que resulta em saldo acaba resvalando numa espcie de equao de felicidade, ou pelo menos de evitao da infelicidade imediata; opero muito bem com o troco e posso demonstrar a corretude das operaes que envolvem minha vida. Posso ainda fazer uma msica, escrever um poema. No entanto, essas operaes da mente (Hume, I, 13), que me fazem o tempo todo me lanar numa espcie de f na continuidade do tempo e viver to despreocupadamente quanto possa, mediado pelas causas:embora sejam as que se apresentam a ns de maneira mais ntima, parecem envolver-se em obscuridade sempre que se tornam objeto de reflexo (Hume, I, 13)Acredito que tal obscuridade deva-se a um fato preocupante: at onde as certezas que temos possuem mesmo um fundamento ou um princpio. Evidentemente que estamos diante de duas posies possveis: um mtodo, seja ele qualquer, (a)deve ter princpios e fundamentos slidos para operar, ou (b) pode operar em um mbito privado, circunscrevendo seus prprios fundamentos a uma esfera de validade fixada arbitrariamente.Aceitando-se que o mtodo restrito a um mbito, e questionado em validade universal de seus fundamentos ou princpios, como transpor agora essa mesma questo para a esfera humana? Acreditamos em determinados valores como a bondade, a beleza ou outras coisas indemonstrveis apenas por fora do hbito, ou podemos buscar algum fundamento nas questes morais?Mas, se h um aspecto em que se deve suspeitar constantemente desta enfermidade dos filsofos, em sua reflexo sobre a vida humana, e os mtodos para conquistar a felicidade. Neste caso no apenas pela estreiteza de seu entendimento que so arrastados, tambm pela estreiteza de suas paixes. (Hume. O ctico. In: Ensaios, pg. 217)Iniciemos nossa jornada pela tal fora do hbito e tentemos entender o tecido que construiremos. Devo dizer que, por fora de um dos argumentadores, qual seja: Pascal, teremos que introduzir mais um elemento neste nosso estudo de recorrncias. Trata-se de Montaigne, citado por Pascal, em diversas passagens, quando este fala justamente dos costumes.46Veja-se, por exemplo fragmentos 325 e 315, analisados frente.

Mas, comecemos com Hume, naveguemos por Montaigne e desemboquemos em Pascal, procedimento esse que, vero os mais atentos, ser seguido risca.Tal a influncia do hbito: quando ele mais forte, no apenas encobre nossa ignorncia, mas chega a ocultar a si prprio, e parece no estar presente simplesmente porque existe no mais alto grau. (Hume, 4, I, 8)47Para a referncia das citaes, utilizamos o critrio que nos parece ser o mais razovel e, felizmente, cada vez mais usual: cito, por ordem, o Livro, ou volume, captulo, parte, pargrafo (se houver numerao oficial). Isso facilita em muito a consulta a diversas edies, sem que se precise achar a pgina no dado volume. Utilizo H Investigao, de Hume; M Ensaios, Montaigne; P Pensamentos, Pascal.

O principal efeito da fora do hbito reside em que se apodera de ns a tal ponto que j quase no est em ns recuperarmo-nos e refletirmos sobre os atos a que nos impele. Em verdade, como ingerimos com o primeiro leite hbitos e costumes, e o mundo nos aparece sob certo aspecto quando o percebemos pela primeira vez, parece-nos no termos nascido seno com a condio de nos submetermos tambm aos costumes; e imaginamos que as idias aceitas em torno de ns, e infundidas em ns por nossos pais, so absolutas e ditadas pela natureza. (Montaigne, I, XXIII, pag. 61)Razo dos efeitosEsta boa: no querem que eu honre um homem vestido de brocado e acompanhado de sete ou oito lacaios! Como! Se o no saudasse, mandava bater-me. Esse hbito uma fora; no acontece o mesmo com um cavalo bem arreado em relao a outro? engraado que Montaigne no veja que diferena existe, admirando-se de que se ache alguma e perguntando a razo. Na verdade, diz ele, de onde vem, etc. (Pascal, 315)Comparemos esta ltima, que j reivindica um estatuto diferente no tratamento do hbito animal e humano a outra constatao de nova diferenciao, agora em Hume:Mas ser possvel admitir que esta questo seja resolvida de maneira inteiramente aventurosa? Deve cada um ouvir apenas suas prprias tendncias e temperamento, a fim de escolher o caminho de sua vida, sem usar a razo para inform-lo de qual a orientao mais desejvel, capaz de conduzir felicidade da maneira mais segura? No haver diferena alguma, nesse caso, entre a conduta de um homem e a de um outro?48Hume, O ctico. In: Ensaios. Pg 217.

Percebe-se que o problema da discusso do hbito que resvala em determinadas verdades mais profundas, no apenas em nossa vida prtica, mas em nossa vida em seu sentido mais amplo. E a crena que temos necessidade, por assim dizer, de ter, quanto mais se nos apresenta arbitrria e sem fundamentos que no os de minha prpria escolha, mais me parecem inslitos que eu possa ter tanta f nessas questes.Mas no fim, est tudo a: o teu quinho na aposta pela felicidade, dir um, ou o ecoar de uma universalidade natural, dir outro so apenas isso: sua vida.Portanto, por mais inslito que possa parecer primeira vista, alinharemos Pascal e Hume, recheado por um certo Montaigne, no que menos se esperaria que os ligasse: o discurso da felicidade.Entre um cavalo e um homem, v l, mais ou menos intuitivo quem tem a precedncia. Existe uma diferena, ainda que, segundo Pascal, Montaigne no tenha percebido em espcie essa diferena (teria descoberto em grau, cabe pesquisar). Ainda que essa precedncia, j nos mostrou o documentrio Ilha Das Flores, ganhador do Festival de Gramado. L, mostra o filme, os porcos tm prioridades aos seres humanos, que, invertendo portanto o preceito de anterioridade anterior, ficam com os restos dos porcos, dividindo-se em oito pessoas por vez, que tm o direito de ficar dez minutos pra dentro da cerca recolhendo coisas, as mais diversas, mas principalmente as que se come, como papel.Mas no disto que tratamos aqui. Aqui tratamos do seguinte: deve existir em mim uma certeza que me faa participante deste desagradvel incidente com os porcos, e que me oferea a possibilidade de ser diferente disso. Ou ento no.Meio termoPor isso, a natureza escolheu um meio-termo: no conferiu a toda idia de bem e mal o poder de ativar a vontade, mas tampouco retirou- lhes por completo essa influncia. [Hume, Tratado, Livro I, seo X, 3, pg. 149]No preciso que ele no veja absolutamente nada; no preciso, tampouco, qe veja o suficiente para crer que o possui; mas, que veja o bastante para perceber que o perdeu: pois, para saber que se perdeu, preciso ver e no ver; e precisamente neste estado que se encontra a natureza. [Pascal, frag 556]Para isso, basta que digam, de qualquer fenmeno que os embarace, que este deriva de uma faculdade ou de uma qualidade oculta, e acabam-se todas as disputas e investigaes sobre o assunto. [Hume, tratado, livro I, seo III, 10, pg 256]H aqui, portanto, duas coisas a examinar: as razes que nos determinam a fazer do passado um padro para o futuro, e a maneira como extramos um juzo nico de uma contrariedade de acontecimentos passados. [Hume, Tratado, Livro I, seo XII, 8]

As razes ctica e dogmtica so da mesma espcie, embora contrrias em suas operaes e tendncias. Desse modo, quando a ltima forte, encontra na primeira um inimigo com a mesma fora; e, como suas foras de incio eram iguais, elas continuam iguais, enquanto uma das duas subsiste. A fora que uma perde no combate subtrada igualmente da antagonista. Felizmente, a natureza quebra a fora de todos os argumentos cticos a tempo, impedindo-os de exercer qualquer influncia considervel sobre o entendimento. Se fssemos confiar inteiramente em sua autodestruio, teramos de esperar at terem antes minado toda convico e destrudo inteiramente a razo humana. [Hume, Tratado, parte IV, seo I, 12, pg. 220]Instinto. Razo Temos uma incapacidade de provar, que nenhum dogmatismo pode vencer. Temos .uma idia da verdade, que nenhum pirronismo pode suplantar. [Pascal, frag. 395]

Eis aqui uma espcie de ATRAO, cujos efeitos no mundo mental se revelaro to extraordinrios quanto os que produz no mundo natural, assumindo formas igualmente numerosas e variadas. Seus efeitos so manifestos em toda parte; quanto a suas causas, porm, estas so em sua maioria desconhecidas, devendo ser reduzidas a qualidades originais da natureza humana, as quais no tenho a pretenso de explicar. No h nada to necessrio, para um verdadeiro filsofo, como a moderao do desejo excessivo de procurar causas; ele deve sentir-se satisfeito ao fundamentar uma determinada doutrina em um nmero suficiente de experimentos, se perceber que um exame mais prolongado o levaria a especulaes obscuras e incertas. Nesse caso, sua investigao seria muito mais bem empregada no exame dos efeitos do que no das causas de seu princpio. [Hume, Tratado, Parte I, Seo IV, 6, pg 37]Essa impotncia deve, pois, servir apenas para humilhar a razo que quisesse julgar tudo; mas no para combater a nossa certeza, como se apenas a razo fosse capaz de nos instruir. Prouvesse a Deus que, ao contrrio, nunca tivssemos necessidade dela e conhecssemos todas as coisas por instinto e por sentimento! Mas a natureza recusou-nos esse bem e s nos deu, ao contrrio, muito poucos conhecimentos dessa espcie; todos os outros s podem ser adquiridos pelo raciocnio. [Pascal, frag 282]

Bibliografia

HUME, David. Investigao sobre o Entendimento Humano e Investigao sobre a Moral. Traduo Jos Oscar de Almeida Marques. EDUNESP, So Paulo, 1999.HUME, David. Dilogos. Traduo Jamir Conte. UNICAMP, Campinas, 1995.HUME, David. Ensaios morais, polticos e literrios. Traduo de Joo Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora Doliveira. Abril Cultural, So Paulo, 2 Ed., 1980.MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Traduo Srgio Milliet. Abril Cultural, So Paulo, 1 . Ed., 1972.PASCAL, Blaise. Pensamentos. Traduo Srgio Milliet. Abril Cultural, So Paulo, 1 Ed., 1973.

Molas de razes

molas so peas de diversos tipos de material, dotada de elasticidade, espiralada, helicoidal, ou em forma de lmina, e que reage quando vergada, distendida ou comprimida49HOAISS. Dicionrio Eletrnico da Lngua Portuguesa. Ve