exegese biblica

download exegese biblica

of 11

description

silabo ROMANOS STNBexegese biblica

Transcript of exegese biblica

  • Atualidade Teolgica Ano XVII n 43, janeiro a abril/2013 101

    ISSN 1676-3742

    Histria e Teologia. Reflexes na perspectiva da exegese bblica

    Maria de Lourdes Corra Lima

    Resumo

    A presente contribuio concentra-se sobre a relao entre Bblia e Histria. Partindo da distino entre fato e sua interpretao, apresenta e discute os princpios gerais que podem nortear a impostao do tema. Em primeiro lugar, analisa a perspectiva histrica na abordagem dos textos bblicos, a partir do chamado mtodo histrico-crtico. Em seguida, confronta, no que tange interpretao dos escritos bblicos, o interesse centrado na histria e o inte-resse centrado no texto e na comunidade que o produziu. Por fim, esboa alguns elementos que podem servir de parmetro quanto a esta questo.

    Palavras-chave: Hermenutica bblica; Mtodo exegtico; Mtodo hist-rico-crtico.

    Rsum

    Cette contribution se concentre sur la relation entre Bible et Histoire. Elle part de la distinction entre le fait et son interprtation, elle prsente et discute les principes gnraux qui peuvent orienter lexposition du thme. En premier lieu, elle analyse la perspective historique dans labordage des textes

  • Atualidade TeolgicaRevista do Dpto. de Teologia da PUC-Rio / Brasil102

    bibliques, partir de la mthode dite historico-critique. Ensuite elle confronte, dans ce qui touche linterprtation des crits bibliques, lintrt centr sur lhistoire et lintrt centr sur le texte et sur la communaut qui la produit. Enfin, elle bauche quelques lments qui peuvent servir de paramtre en ce qui regarde cette question.

    Mots-clefs: Hermneutique biblique; Mthode exgtique; Mthode histo-rico-critique.

    Introduo

    A relao entre Bblia e Histria uma questo hermenutica de grande relevncia e tem sido tematizada de modos variados, que se movem entre dois extremos, que vo desde a aceitao dos textos bblicos como critrio para avaliar a realidade histrica at a rejeio completa da possibilidade de a Bblia ser considerada uma fonte atendvel para o historiador. Uma distino de base apresenta-se como necessria para se enfrentar esta temtica: a percepo da distncia entre fato e relato (textos escritos). O fato como tal pertence ao passado e no pode mais ser atingido em si mesmo. A narrao do fato procura traz-lo para o presente, mas implica sempre uma interpretao. Isto significa que no se pode passar linearmente de uma para outra grandeza. Se a interpre-tao mediadora entre o fato e o sujeito que hoje sobre ele se debrua, duas perguntas se impem: se possvel conhecer o dado histrico tal como ocorreu no caso da Escritura, se a Bblia d acesso realidade histrica; e como devem ser abordados os textos da Escritura. Estes dois pontos sero aqui considerados em suas coordenadas mais gerais e de princpio. Primeiramente sero tecidas consideraes sobre o chamado mtodo histrico1 de anlise dos textos bblicos; em seguida, sobre o interesse histrico na leitura da Escritura. Estes dois pontos sero precedidos da apresentao de alguns pressupostos hermenuticos.

    1. Pressuposies

    A base da teologia judaica e crist reside na tradio oral, que se cris-talizou em textos escritos e que continua na comunidade de f, a qual, por

    1 Habitualmente conhecido como mtodo histrico-crtico. Referimo-nos a ele simplesmente como mtodo histrico, partindo do pressuposto que, uma vez que se trata de uma metodologia que pretende ser cientfica, o acrscimo crtico torna-se suprfluo.

  • Atualidade Teolgica Ano XVII n 43, janeiro a abril/2013 103

    sua vez, tendo dado origem aos escritos, os conserva como normativos. A comunidade crente vive esta f (culto, leis, moral), interpreta a Escritura e d a moldura para a atualizao dos textos.

    Como fundamento deste processo est a convico de que Deus no somente comunicou uma doutrina, mas se revelou a si mesmo (quem ele , que tenciona ao vir ao encontro do ser humano) e, com isto, mostrou ao homem quem ele e a que chamado. Para a f judaica e crist, isto no se deu de modo impessoal, mas atravs de uma experincia que passa pela histria. Na histria humana e atravs dela, juntamente com a palavra que ilumina o sentido dos acontecimentos e, por sua vez, por eles confirmada e explicada, Deus se comunicou aos seres humanos. Na perspectiva judaica e crist, a revelao de Deus que constitui a histria. Dito de outra maneira, a histria inerente revelao judaica e crist.

    Qual a concepo central de histria em Israel e no Cristianismo? Para Israel, histria sobretudo histria da relao de Deus com seu povo. A histria universal (cf. Gn 111) antecede a histria de Israel e uma preparao que leva at ela. Mais tarde, a prpria histria de Israel abarcar em si tambm os outros povos, segundo um movimento que vai do universalismo ao centra-lismo em Israel e novamente universalismo (com Israel como ponto central). O Cristianismo assume esta viso, mas compreende a relao de Deus com seu povo como tendo seu ponto mximo (ponto mega) em Jesus Cristo, o Messias para Israel e para o mundo pago. Por conseguinte, em Jesus Cristo atingida a finalidade da histria, restando somente uma expectativa de pleni-ficao no final dos tempos. Da parte a perspectiva universalista da misso crist entre os gentios (cf. At 1,8).

    Esta coordenada histrica na revelao judaica e crist pode ser obser-vada particularmente em dois pontos. A f israelita sintetizada, nos escritos bblicos, no chamado credo histrico, que coloca a constituio do povo eleito a partir dos atos fundantes de Deus, que se centram no evento do xodo (cf. Dt 26,5b-9; 6,20-23; Js 24,1-13; Ne 9,7-25). De outro lado, tambm o elenco dos livros sagrados aponta na mesma direo. A maior parte do Cnon formada por livros que referem acontecimentos na histria. Assim a quase totalidade do Pentateuco, os profetas anteriores (de Josu a Reis) e a maioria dos profetas posteriores (de Isaas aos Doze Profetas) e muitos outros escritos, como o livro das Crnicas, Esdras-Neemias, alguns Salmos do Saltrio e mesmo Daniel, que, embora no tendo a pretenso de historicidade de todos os dados

  • Atualidade TeolgicaRevista do Dpto. de Teologia da PUC-Rio / Brasil104

    que apresenta, refere numerosos elementos histricos2. O mesmo marco hist-rico referncia em numerosos escritos do Novo Testamento.

    Auto-tematizando-se desta maneira, a revelao judaica e crist coloca imediatamente a pergunta acerca da histria e da historicidade dos pontos que ela tem como centrais em sua f. Surge da, com toda urgncia, a questo de em que sentido Deus se revelou na histria: na histria factual (realmente ocorrida, objetiva) ou na histria narrada, isto , interpretada nos textos sagrados (e que, por conseguinte, distancia-se menos ou mais dos fatos reais). Duas possibilidades se colocam: se unicamente atravs da histria narrada, levanta-se a pergunta se o princpio de que Deus teceu uma histria com o povo pura fantasia, inveno da mente humana; se unicamente atravs da histria factual, levanta-se a pergunta sobre como controlar que a histria narrada corresponda realidade, j que no temos mais o evento, mas somente sua memria interpretativa.

    Partindo da distino na Escritura de textos que no tm uma preocu-pao histrica e textos que referem dados histricos, coloca-se uma dupla questo: em que medida importante ou mesmo necessrio constatar a facti-cidade das narrativas bblicas?; em que medida possvel escavar o texto bblico de modo a chegar histria factual?

    Para encaminhar a resposta a estas questes, alguns pressupostos se fazem necessrios3. Em primeiro lugar, o ser humano por princpio sujeito da histria, mas s o realmente se a compreende. Em segundo lugar, esta compreenso une fato e relato. Se hoje se tem acesso somente interpretao dos fatos, no entanto, em virtude da auto-compreenso da revelao judaica e crist, pode-se partir da concepo, ao menos para os pontos fundantes desta mesma revelao, de que a interpretao (a compreenso do fato) tem origem numa experincia, ou seja, num evento realmente acontecido. Em terceiro lugar, esta compreenso tem tambm sua histria e se constitui num momento desta histria. Em outras palavras, a interpretao torna-se histria.

    Na teologia crist dos ltimos sculos, ganhou grande dimenso a perspectiva historicista, cujo eixo pode ser definido como a afirmao da proeminncia da

    2 Livros que no apelam estruturalmente histria so, por exemplo, os livros de Jonas, Cntico dos Cnticos, Provrbios, J, Qohlet, alm de alguns salmos do Saltrio; no Cnon aceito pelo Cristianismo primitivo, tambm Judite e Tobias, por exemplo. Desse modo, os livros que no se ancoram na histria para desenvolverem seu contedo so comparativamente poucos no Cnon.3 Aqui remetemos a DARLAP, A.; SPLETT, J., Historia y historicidad. In: K. Rahner (Ed.), Sacra-mentum Mundi, v. III. Barcelona: Herder, 1973, col. 429.

  • Atualidade Teolgica Ano XVII n 43, janeiro a abril/2013 105

    cincia histrica na compreenso do dado religioso4. Tal perspectiva, se de um lado tomou forma concreta no chamado mtodo histrico-crtico, de outro exacerbou a pergunta acerca da veracidade histrica dos dados bblicos.

    2. O mtodo histrico na exegese bblica

    Impulsionado pelo desenvolvimento dos mtodos histricos aplicados ao texto bblico, o historicismo significou terica e concretamente que a histria como cincia determinava o estudo e a interpretao da Escritura. Em parte, visava demonstrar a liberdade da interpretao frente s proposies dogm-ticas, abrindo, dessa forma, brechas que colocavam em questo seja a reve-lao divina seja a inspirao da Escritura Sagrada.

    Na cincia bblica, os mtodos histricos desenvolveram-se paulatina-mente, de modo particular a partir dos sculos XVII e XVIII, com os estudos de Richard Simon5 e Jean Astruc6 sobre o Pentateuco. A preocupao centrava-se na investigao da autoria do texto, suas fontes e sua composio7. O sculo XIX continuou este caminho, apresentando hipteses de diversas ndoles para explicar o processo de formao do Pentateuco (hipteses documentrias, fragmentrias, a hiptese dos complementos) 8.

    Procedimento anlogo foi aplicado aos evangelhos sinticos, com o recurso sobretudo a fontes que explicariam o surgimento dos textos, seus pontos comuns e suas divergncias entre si e, mais tarde, com o reconhecimento da importncia tambm do(s) redator(es) que utilizaram e retrabalharam as fontes9.

    4 Cf. MORGAN, R. Historicism. In R.J. Coggins J.L. Houlden (Ed.), A Dictionary of Biblical Interpretation. London: SCM Press, 1990, pp. 290-291.5 R. Simon viveu entre 1638 e 1712. Auvray afirma sobre seus trabalhos: o seu insucesso foi desastroso para a exegese catlica: AUVRAY, P. Simon, Richard. In: K. Rahner (Ed.), Lexikon fr Theologie und Kirche, v. 9. Freiburg: Herder, 19642, col. 773-774.6 J. Astruc viveu entre 1684 e 1776; distinguiu as fontes elosta e javista: cf. STROBEL, A. Astruc, Jean. In: K. Rahner (Ed.), Lexikon fr Theologie und Kirche, v. 1. Freiburg: Herder, 19642, 967.7 O que mais tarde ser denominado crtica literria, com as complementaes posteriores da crtica da redao ou da composio. A crtica literria visa discernir a unidade redacional de um texto, isto , se foi redigido de uma s vez (texto unitrio) ou no. Preocupa-se to somente com a identificao das possveis intervenes redacionais e com a cronologia relativa destas mesmas intervenes (qual veio antes e qual depois). A crtica da redao ou da composio procura explicar a origem e situar historicamente o texto e suas diversas camadas.8 Para uma sntese da histria da pesquisa, cf.: SKA, J. L. Introduo leitura do Pentateuco. So Paulo: Loyola, 2003, pp. 111-177; ZENGER, E. Die Bcher der Tora / des Pentateuch. In: E. Zenger et alii (Ed.). Einleitung in das Alte Testament. Stuttgart: Kohlhamer, 20045, pp. 60-135.9 Para este assunto, cf., dentre outras, a obra de AGUIRRE MONASTERIO, R. Histria da inter-

  • Atualidade TeolgicaRevista do Dpto. de Teologia da PUC-Rio / Brasil106

    Este procedimento se generalizou e foi aplicado ao estudo de todos os textos bblicos. Mais tarde foi complementado por outros procedimentos, como a crtica da(s) forma(s) e do gnero literrio, das tradies e da transmisso do texto. A preocupao de fundo era, porm, sempre de ndole histrica. Assim, por exemplo, a crtica das formas e do gnero literrio eram feitas em estreita conexo com a localizao histrica das percopes, sua gnese e transformaes (da o desenvolvimento da histria das formas Formgeschichte).

    Dois aspectos so teoricamente relevantes no mtodo histrico: os pressupostos que esto base da metodologia empregada; a questo de sua adequabilidade para o tratamento dos textos bblicos.

    a) A metodologia e suas pressuposies

    Ponto central desta metodologia a distino entre partes mais antigas e mais recentes do texto, com o estabelecimento do contexto histrico de cada uma. Tal nfase analtica fragmenta o texto e atribui maior valor ao que mais antigo ou original e menor valor ao que mais tardio, considerado como corrupo e decadncia. Por vezes chegou-se mesmo a eliminar do texto o que considerado posterior10. O foco a reconstruo do texto original e a expli-cao de sua paulatina composio, analisando as palavras a partir de estudos filolgicos e histricos.

    Sob o ponto de vista terico, h aqui grande aproximao com a arqueologia. O mtodo estratigrfico trabalha analisando os diferentes estratos de um determinado achado, at chegar ao mais primitivo. Em seguida, procura dat-los, sobretudo a partir da cermica e de outros objetos (moedas, utenslios de metal etc). A aproximao entre o mtodo histrico e o estratigrfico se demonstra j, por exemplo, na terminologia empregada, que se refere s diversas fases de composio de um texto como estratos ou camadas. Ora, um texto no um resqucio arqueolgico monumental. Neste, as camadas se sobrepem e uma no interfere na outra. Num texto, cada fase, cada camada, tem uma funo no todo, de modo que, se modificada ou retirada uma palavra, uma frase, o sentido do todo afetado. Qualquer interveno traz conseqncias para o conjunto11.

    pretao e questes abertas. In: R. Aguirre Monasterio; A. Rodrguez Carmona. Evangelhos Sinticos e Atos dos Apstolos. So Paulo: Ave Maria, 1996, pp. 55-87.10 Um exemplo (entre tantos!) deste tipo de procedimento o comentrio de Robinson aos doze profetas: cf. ROBINSON, T. H., Die zwlf kleinen Propheten. Tbingen: J. C. B. Mohr, 1964.11 Cf. NAY, R. Alcune riflessioni sullesegesi e sul mtodo storico. Anthropotes 14 (1998) 113-125, aqui 118.

  • Atualidade Teolgica Ano XVII n 43, janeiro a abril/2013 107

    b) O problema de Deus na exegese histrica12

    O mtodo histrico foi forjado dentro de uma mentalidade racionalista e historicista (iluminista). Como, segundo o racionalismo, s tem valor o que pode ser explicado pela razo, sob o ponto de vista histrico no tem valor o que no pode ser comprovado cientificamente (por testemunhos escritos ou resqucios monumentais). Como Deus no pode ser comprovado cientifica-mente, a pergunta sobre ele e a possibilidade de sua interveno na histria sai da esfera do mtodo: no lhe interessa. Com isto, no se elimina necessa-riamente Deus, mas ele nada tem a ver com a histria em concreto. como o grande relojoeiro que deu corda ao relgio que agora trabalha por si13.

    O problema desta viso consiste no fato que os textos bblicos so textos religiosos, onde Deus ocupa frequentemente o primeiro plano, interagindo ou entrando em dilogo com os homens. Uma resposta ao problema assim criado seria afirmar que este Deus, nos textos, no corresponde a uma realidade obje-tiva, mas pura projeo da mente humana. Um dos problemas desta abor-dagem que os textos bblicos no o apresentam assim.

    patente que o mtodo de investigao utilizado por uma cincia deve ser adequado ao seu objeto. Deixando de lado, no momento, a questo da realidade sobrenatural do evento, cuja resposta positiva pressupe a aceitao do sobrenatural e da possibilidade de sua relao com o mundo, de se considerar que, na exegese de um texto, tem a primazia sua especfica viso de mundo e no um pressuposto, de qualquer natureza, externo a ele. Isto significa que a primeira pergunta no se o texto reporta ou no elementos histricos ou cientficos atendveis (hoje! Talvez amanh estes j sejam diferentes!), mas a pergunta, neste mbito, sobre a lgica interna do texto e seu contexto ideolgico.

    Por outro lado, se os textos bblicos surgiram em comunidades de f, como expresso da f que se acreditava ser revelada, uma leitura que elimine a priori a possibilidade do sobrenatural (em si ou de sua manifestao) no se apresenta como adequada sua compreenso. A pressuposio da f, nesse caso, no falseia o conhecimento, mas condio de sua possibilidade. Resguardando-se a necessria distncia entre leitor e texto (no sentido de evitar ao mximo que sua compreenso se torne projeo do leitor), um texto

    12 Seguimos aqui, em parte, algumas sugestes de NAY, R. Alcune riflessioni, p. 119-121.13 Cf. KERN, W. Desmo. In: K. Rahner (Ed.), Sacramentum Mundi, v. II. Barcelona: Herder, 1971, col. 141-143.

  • Atualidade TeolgicaRevista do Dpto. de Teologia da PUC-Rio / Brasil108

    possivelmente tanto mais bem compreendido quanto maior for a afinidade entre o leitor e o escrito. guisa de exemplo, a carta de um soldado em campo de guerra para sua me possivelmente mais bem compreendida, em sua intencionalidade e mensagem, pela prpria me, que a l a partir de dentro (conhecendo e interpretando mais profundamente uma srie de elementos do escrito), do que por qualquer outro que a l a partir de um ponto de vista externo (digamos, objetivo).

    Esta perspectiva elimina a possibilidade de uma leitura histrica, obje-tivante? A resposta, embora matizada, parece dever ser negativa. Primeira-mente, porque no pode ser aplicada a todos os textos, mas somente queles que levantam dados histricos ou parecem ter (tambm) uma inteno hist-rica. Aqui ressalta-se a importncia da identificao do gnero literrio utili-zado num escrito, para que no seja tratado como relato histrico o que no pretende s-lo. No caso dos textos que referem dados histricos, a exegese, que se ocupa primeiramente do texto tal como ele se apresenta (forma final) em seu contexto literrio e na viso de mundo que espelha, pode ser comple-mentada pela crtica histrica em sentido moderno14.

    Em segundo lugar, a crtica histrica no pode ter como finalidade pr em xeque a exegese, pois so dois mbitos de saber distintos. Antes, se o texto como tal tem primazia, por ser o dado fundamental da anlise quando se trata da interpretao bblica, ela se torna aqui um aspecto da interpretao e no o seu centro.

    c) A Bblia e a investigao histrica

    Chega-se, assim, ao tema da utilidade da investigao histria (com o apoio de outras cincias, como a arqueologia) para alm do texto.

    A questo se coloca a partir da ndole histrica da f judaica e crist. Se esta fundante para estes sistemas religiosos, torna-se necessria a conside-rao da dimenso histrica na exegese, sem com isto torn-la absoluta. A partir do exposto acima, fica claro que a histria por si s no d conta do dado bblico e teolgico, embora tenha na anlise dos mesmos um lugar.

    No escopo da exegese buscar uma objetividade histrica, j que o dado sempre passa pela interpretao e por uma pr-compreenso, alm de carregar interesses prprios.

    14 Cf. o documento: PONTIFCIA COMISSO BBLICA. A Interpretao da Bblia na Igreja. Roma: Editrice Vaticana, 1993, I, A, 3, 4.

  • Atualidade Teolgica Ano XVII n 43, janeiro a abril/2013 109

    A pergunta sobre em que medida estes pressupostos falseiam o dado histrico coloca-se somente sob o ponto de vista do historiador. Sob a pers-pectiva bblico-teolgica, a pergunta em si no tem lugar, pois o que orienta a leitura a finalidade do texto. Em outras palavras, a questo de sua histo-ricidade pergunta ulterior. Tem seu interesse, mas no dita a verdade do texto (aquilo que ele quer comunicar), j que esta primordialmente de ndole teolgica.

    Entre o minimalismo e o maximalismo na considerao da relao entre os dados bblicos e a histria reconstruda pelo historiador, pode-se, a nosso ver, afirmar um ponto onde a histria tem seu lugar, embora complementar. Nessa linha, no se busca mais a objetividade do dado histrico como escopo principal da exegese.

    Permanece, contudo, o interesse pelo dado histrico como escopo de uma disciplina auxiliar exegese. Isto em dois sentidos. De um lado, no sentido de que o conhecimento da histria do antigo Israel ou do Cristianismo primitivo permite melhor entender as questes, a situao a que um texto responde, o alcance de muitas de suas afirmaes, o seu sentido na sua poca15. De outro, no sentido de que a maior clareza sobre o dado histrico permite melhor avaliar a dimenso religiosa dos textos, suas intenes, suas perspectivas, sua mensagem: em outras palavras, em que medida ele quer afirmar um elemento como histrico e em que medida a histria narrada utilizada como veculo para uma mensagem que j se desligou de fatos reais.

    Surge aqui, ainda a necessidade de se distinguir entre pontos histricos fundantes e integrantes ou acessrios a um sistema religioso. Assim, para o Cristianismo fundante a ressurreio de Jesus, mas no fundante se as bem-aventuranas foram proferidas sobre um monte (cf. Mt 5,1-12) ou numa plancie (cf. Lc 6,17.20-23). Joga grande importncia aqui a diferenciao entre o que o texto realmente quer comunicar (sua inteno maior) e os detalhes (de ambientao ou de composio da cena)16. Para o antigo Israel, fundante seria, por exemplo, a aliana de Deus com seu povo, mas no a queda dos muros de Jeric (cf. Js 6).

    15 Cf. CONROY, C. Reflections on the Present State of Old Testament Studies.Gregorianum73 (1992) 597-609.16 Cf. CONCLIO VATICANO II. Constituio Dogmtica Dei Verbum. Roma, Editrice Vati-cana, 1965, nn. 11.12.

  • Atualidade TeolgicaRevista do Dpto. de Teologia da PUC-Rio / Brasil110

    Concluso

    Se no se pode interpretar a Escritura a partir da perspectiva de busca de um concordismo entre texto e cincia histrica, tampouco exegese e cincia histrica se encontram necessariamente em contraste. A justa medida parece encontrar-se na delimitao do mtodo e da competncia de cada uma e da inte-grao entre as duas no respeito s suas peculiaridades. A finalidade da exegese exige que a cincia histrica lhe seja complementar e auxiliar e no prin-cpio hermenutico. A finalidade da cincia histrica caso ela se interesse pelo antigo Israel ou pelo Cristianismo primitivo exige que os textos bblicos, embora carregados de condicionamentos histricos, sejam considerados dentro da finalidade segundo a qual foram escritos (religiosa, no cientfica).

    Tal delimitao no cria necessariamente uma dicotomia, uma vez que no parte de uma contraposio, mas condio de possibilidade, ao mesmo tempo que demarcao de competncias, para o aprofundamento seja da exegese seja da cincia histrica no mbito das sociedades que esto por trs da Escritura.

    Referncias Bibliogrficas

    AGUIRRE MONASTERIO, R. Histria da interpretao e questes abertas. In: R. Aguirre Monasterio; A. Rodrguez Carmona. Evangelhos Sinticos e Atos dos Apstolos. So Paulo: Ave Maria, 1996, pp. 55-87.

    AUVRAY, P. Simon, Richard. In: K. Rahner (Ed.), Lexikon fr Theologie und Kirche, v. 9. Freiburg: Herder, 19642, col. 773-774.

    CONCLIO VATICANO II. Constituio Dogmtica Dei Verbum. Roma, Editrice Vaticana, 1965.

    CONROY, C. Reflections on the Present State of Old Testament Studies. Gregorianum 73 (1992) 597-609.

    DARLAP, A.; SPLETT, J., Historia y historicidad. In: K. Rahner (Ed.), Sacramentum Mundi, v. III. Barcelona: Herder, 1973, col. 429.

    KERN, W. Desmo. In: K. Rahner (Ed.), Sacramentum Mundi, v. II. Barcelona: Herder, 1971, col. 141-143.

    MORGAN, R. Historicism. In R.J. Coggins J.L. Houlden (Ed.), A Dictionary of Biblical Interpretation. London: SCM Press, 1990, pp. 290-291.

  • Atualidade Teolgica Ano XVII n 43, janeiro a abril/2013 111

    NAY, R. Alcune riflessioni sullesegesi e sul mtodo storico. Anthropotes 14 (1998) 113-125.

    PONTIFCIA COMISSO BBLICA. A Interpretao da Bblia na Igreja. Roma: Editrice Vaticana, 1993.

    ROBINSON, T. H., Die zwlf kleinen Propheten. Tbingen: J. C. B. Mohr, 1964.

    SKA, J. L. Introduo leitura do Pentateuco. So Paulo: Loyola, 2003.

    STROBEL, A. Astruc, Jean. In: K. Rahner (Ed.), Lexikon fr Theologie und Kirche, v. 1. Freiburg: Herder, 19642, 967.

    ZENGER, E. Die Bcher der Tora / des Pentateuch. In: E. Zenger et alii (Ed.). Einleitung in das Alte Testament. Stuttgart: Kohlhamer, 20045, pp. 60-135.

    Maria de Lourdes Corra LimaDoutora em Teologia (Bblica) pela

    Pontificia Universit Gregoriana, Roma.Docente de Sagrada Escritura na PUC-Rio e

    no Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro.E-mail: [email protected]

    Recebido em: 13/10/12Aprovado em: 13/12/12