Exercícios de compreender e descompreender

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.Exercícios de compreender e descompreender. Ailton Benedito de Sousa À memória de Zumbi e seus guerreiros, de cuja luta armada durante cem anos hoje podemos nos orgulhar Introito Nesse trabalho, avanço um pouco mais no caminho que, aos 73 anos, me propus seguir: dispensar certificação para meu texto, recuperando tardiamente uma das dimensões que jamais pode ser tirada do ser humano – liberdade de pensar. Como muitos, perdi a fé nos conteúdos básicos, inaugurais, das narrativas que explicam nosso tempo. Mais me confirmo no acerto da decisão tomada, à medida que venho a saber que a maioria dos certificadores professam as teorias da white supremacy, por exemplo Samuel Huntington, criador e legitimador do choque de civilizações, por acaso altamente festejado entre leitores brasileiros. Nada menos surpreendente, pois diante de um texto as pessoas deixaram não só de raciocinar, como de

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São reflexões sobre meu próprio trabalho e ato de trabalhar, daí chamá-las de exercícios. Não há saída para a humanidade se não forcejarmos na direção da ABERTURA DE TÚNEIS a partir do interior da caverna (o discurso) em que nos vemos prisioneiros. Em 8 de dez. de 2012 reeditei revisão, pois vi que na anterior havia repetição de parágrafos. Espero críticas do meu leitor.

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.Exercícios de compreender e descompreender.

Ailton Benedito de Sousa

À memória de Zumbi e seus guerreiros, de cuja luta armada durante cem anos hoje podemos nos orgulhar

Introito

Nesse trabalho, avanço um pouco mais no caminho que, aos 73 anos, me propus seguir: dispensar certificação para meu texto, recuperando tardiamente uma das dimensões que jamais pode ser tirada do ser humano – liberdade de pensar. Como muitos, perdi a fé nos conteúdos básicos, inaugurais, das narrativas que explicam nosso tempo. Mais me confirmo no acerto da decisão tomada, à medida que venho a saber que a maioria dos certificadores professam as teorias da white supremacy, por exemplo Samuel Huntington, criador e legitimador do choque de civilizações, por acaso altamente festejado entre leitores brasileiros.

Nada menos surpreendente, pois diante de um texto as pessoas deixaram não só de raciocinar, como de questioná-lo, justamente por isso: os indicadores de sua certificação acadêmica ou social saltam do papel ou tela e invadem o leitor, inibindo-lhe qualquer dúvida: “é tese a priori certificada por alguém mais inteligente que eu – o saber social internacional, as grandes academias, o dono do jornal, da televisão, da editora, qualquer um”. “Pra que ler?, dê-me o resumo, a orelha.. .” A leitura (ato ou consequência) é desnecessária (daí a xerox de resumos), além de não constituírem (leitura e argumentação) objeto de estudo em si. É a banalização de uma das atividades do intelecto a partir da sacralização, pelo discurso, do texto ainda não decodificado, portanto antes de qualquer análise. “ E os Best-sellers das grandes editoras brasileiras?” – pergunta-me o leitor. Bem, primeiro: a totalidade das compras é feita, no caso do Brasil, por órgãos estatais e grandes empresas do mesmo setor ou privadas; segundo, best-seller não é leitura a risco, é leitura confirmação (no caso da

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supremacia branca, religiosa, econômica, social, os tais Aneis, por exemplo).

Por outro lado, na quadra em que estamos não há vida cidadã, vida política como se dizia, não há discussão, participação nas células sociais, fato que forçaria a leitura. Intelectualmente, o Brasil é um gueto, uma favela (sem querer ofender esta) bem afastada dos centros culturais do mundo neste início de século 21. Não é de admirar que se leia tão pouco, principalmente se se trata de leitura a risco, como a do meu texto, que deve ser enfrentada sem a prioris. Vivemos um momento de retorno à oralidade, mas de griot eletrônico-digital, cuja voz é substituída por deslumbrantes cenários psicodélicos,em que todo o quadro enunciatório (cenários, época etc.) é projetado em tela pública e não construído intrassubjetivamente pelo ouvinte ou leitor. Em momento como este, fica difícil a distinção entre as elites e as massas. Ambos os segmentos cultuam o banal, ou seja, o imaginário prêt-à-porter. A lenda do canto das sereias volta a se confirmar na realidade, mas agora não há esforço para tampar os ouvidos. Quer-se ser idiota. Observe-se que com os Big Brothers também vai acontecer algo que tem a ver com essa rejeição e banalização do ler, do refletir, do pensar e pensar-se – o “corpo do modelo” sabe o que a plateia quer e a empanzina em demasia.

O artigo me foi exigido pela própria consciência em função de reflexões sobre nossa Educação, especificamente em torno de questões como: “por que se repele ou mal-preza-se a Educação pública e a particular, por que o sucesso indisputável da novela de TV, por que a profanação da escola pública, por que a competição e desencontro dos professores entre si e diante de seus alunos, por que se dão as costas os elos geracionais? Por que uma lei para obrigar o aluno a respeitar o professor em classe? Talvez o tema tenha sequência, vire uma série.

1. O olhar e o ver – cumpre descompreender para compreender ou vice-versa.

Se o discurso social fosse algo concreto, mesmo sabendo estarmos condenados a ficar dentro dele como peixe no fundo do mar, para estudá-lo teríamos que dele tentar um afastamento suficiente a que pudéssemos enquadrá-lo em perspectiva. Dado que deva ser entendido como redes ou

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tramas de miríades de significantes e significados em fluxo direto e partir de seres humanos (transmissores-receptores) e seus acervos, significantes-significados projetados como intenções intersubjetivas que pretendem representar, recriar e/ou modificar algo que, em oposição, diferencia-se como “a realidade”, nós, os agentes que projetam signos, por que, perguntamos, não podemos nos projetar em pensamento para além da projeção, com o fito de tentar ver o jogo dessas projeções? Ver os quadros enunciatórios que elas criam, ver os nexos no interior da infinita rede de significados e seu rebatimento nas realidades (pois o signo cria a sua) – negando-as, modificando-as? Mais ainda, saídos da rede, referenciados os objetos de estudo nessa mesma rede, achados os dados ou relações procurados, cumpre retornar a ela, à trama, à malha, ao mar, onde todos vivemos, mas com as boas-novas, com novos entes significativos ou novas quadrículas e elos, que antes de sairmos nem a malha nem nós tínhamos. Mais ainda, exceção do lastro que fique ilhado dentro do indivíduo já socializado (seu imaginário), tudo isso só tem sentido enquanto jogo de intersubjetividades, fora do que não há discurso, fora do que a nudez e mudez do “algo em si” exterior (o universo continente) ou a fantasia do imaginador. É ensinamento-tabu nas religiões afro-brasileiras que o possuído, ou melhor, o cavalo, não pode ter espelho por perto.

Aliás, o mesmo para as línguas, vivas ou mortas. Fora do jogo da intersubjetividade, jamais existiu língua portuguesa, essa sobretela que ajuda a fazer a mediação entre este autor , o narrado e você leitor, tijolo e argamassa virtuais para a construção da “suprarrealidade” das narrativas, decalque de mundos vivos, no mar de significados por elas expresso. A propósito, os achados referentes aos nexos entre loucura, doenças, vínculos societários e o poder só têm sentido “num circuito” de leitores que tenha pelo menos Foucault ou Skinner como pontos iniciais.

Para ser estudado como um bloco externo, o discurso social, além do afastamento do observador, exigiria, também, uma outra língua ou código, que desse novo nome, primeiro, aos nomes (coisas e processos) que esse ou aquele discurso social já possui; segundo, que desse novo nome aos significados diretos e metafóricos daqueles nomes. Teríamos algo assim: risco x significando o signo mar + universo de significados do discurso social cujo termo, mar, referencia, + universo de classes de

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significados criados neste novo código a partir da nova visão, funções, relações do dado exterior, o conteúdo dos ¾ do planeta.

Aqui levanta-se a segunda grande limitação ao estudo do discurso social por parte daquele que pertença à sociedade que se explica por esse discurso estudado: saído do discurso enquanto ser surdo-mudo, o observador retorna a ele ao expressar-se através da língua que o integra e representa. Duas explicações: a) o raciocínio prescinde da linguagem verbal (a mais plausível); b) enfrenta-se essa contradição abertamente relativizando seus achados: qualquer coisa que haja para conhecer, está fora da caverna. E desde que o certificador seja white supremacista, desconfiemos dele. Talvez seja por isso que a antropologia etnocêntrica só estude o homem que ela chama de primitivo. O dito civilizado, a cujas células pertence o antropólogo, não pode ser estudado.

O trabalho com o discurso social vira uma tentativa de configuração do inconfigurável, algo tão abstrato como viajar através de conjuntos hierarquizados de narrativas cujas leitura e assimilação, interpretação e reelaboração terão sido feitas por parte de outros, aqui e ali assentadas em livros ou qualquer outra plataforma de imaginários, entes subjetivos e fugazes: “Isso é isso, a História é essa, porque Eu tenho fé (penduricalho da religião) na fé que meu autor/informante/interlocutor teve/tem, fé que é filha mais velha da fé de crentes venerados/veneráveis, que por sua vez é a fé de um crente feito para que todos nele tivessem fé...” e assim até onde diz-se haver registros, seu coletivo sendo a História, o cachorro por fim mordendo o rabo. Mas está sempre aberta a possibilidade de todos estarem tendo fé numa crença falaz – “fabricação”, manipulação, contrafação de fatos e de registros, destruição e substituição de acervos. Comentário: essa operação toda a Escola pede ao jovem, nos seus 13 ou 15 anos de vida nesse ninho de cobras que é nosso mundo, que “sem discutir ou entender”, assimile, reelabore segundo a orientação do professor que por sua vez não a elaborou, é um eterno aluno; mais ainda: passe a ser crente de aparência, é claro, bom moço, que não diz palavrão e jura amar a Deus sobre todas as coisas... Só se esse jovem branco ou negro, negro principalmente, não fosse filho de seres humanos. Daí a falência geral dessa atividade-pilar da sociedade, a escola.

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É perfeita a alegoria de um livro em caracteres cuneiformes, por exemplo, aberto a um leitor, sob os olhares curiosos dos que não sabem ler quer na língua, quer nos caracteres em que se escreve o livro, donde nem podem elucubrar sobre o narrado nem sobre o que vai pela mente do leitor. Sabe ler o leitor? E sobre o que vai ou foi na cabeça do autor, do escriba, ou do censor? E as obras natinéditas? E as Bibliotecas incendiadas ontem? Nesta página lida (para não falarmos nas páginas a jamais serem lidas), estariam as intermináveis narrativas sobre as peripécias de protagonistas anônimos, que por sua vez , num esforço de síntese, podem se resumir a um precipitado de decisões, ordens e ações de natureza econômica, política ou religiosa, e as justificativas de sua obediência e desobediência, aqui e ali o resultado prático de tudo na prática: a pirâmide, a catedral, ou o Terror na França em 1792? De modo que, diante da Pirâmide, não mais vemos/sentimos seu sentido, o mesmo para a catedral, mas talvez não tanto para o Terror.

Em função do seu rebatimento na realidade social (criação virtual, simbólica, paradoxalmente aceita como real) – esse jogo de cabo de guerra em que o lado que tem menos homens sempre vence o que tem mais, ao discurso entende-se também como instrumento certificador, em última instância, da origem de todos os imaginários, dos valores e da práxis de todos os indivíduos pertinentes à Biblioteca Nacional ou à “sociedade mantenedora” do Livro – a espada e o fiel da balança para a questão da verdade/falsidade, certo/errado, bem/mal, virtude/vício, saber, ignorância. E esse Livro quer ser, ou foi feito para ser obra aberta, mas às vezes parece que não é? Seríamos nós formigas ou abelhas?

1.1 Ciência social – nicho pré-certificador

Aliás, retornando à questão do método, o que agora, pelo discurso, virou moda chamar-se ciência (lato senso) seria o produto de uma viagem semelhante, ou seja, para fora das narrativas do Livro, por parte do agente social chamado cientista, agora tendo por alvo especificamente o dado inicialmente descrito como físico, incluído o que é formalmente essencial para enquadrá-lo – as matemáticas e o resto. Acho que a ciência traz o que está fora ou o que estava dentro (do discurso), mas não se via. Diz-se inicialmente, pois esse mundo antes chamado físico, hoje mergulha sem mediação do homem natural, no mundo macro/micro, que é trilhões de vezes mais rico em atributos do que pode significar o apelativo físico.

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Aqui, nessa viagem à procura (e produção) disso que o discurso chama de ciência, o pesquisador, ao se afastar dos discursos sociais, teia tecida por seus iguais, vislumbraria num átimo de segundo, o Infinitamente Superior a ele e a todos os seus iguais, momento em que se iguala a seus iguais, pasmo diante do Universo-Mundo-Infinito. Frente a esse Dado, o pesquisador pode reconhecer-se reverente, se Prometeu; ou indiferente, arrogante e imbecil, se Fausto. Diante de si, do mundo ou diante da morte, o homem é eterno, isto é, não muda, não se classifica de superior ou inferior. Num ou noutro caso, também que não se julgue um doador, um desigual, um benfeitor privilegiado da humanidade, uma vez que não é ele, o dito cientista, que vai conduzir a aplicação e o uso do produto (a tecnologia), mas seu patrão, suas consequências sofrendo-as todos. Uma das contradições do trabalho do cientista é esta: ele, senão abomina, despreza aquilo que diz não ser ciência. Ok, tudo bem. Mas crê-se trabalhando para o bem da humanidade, para o seu bem, ou de alguém. Ocorre que o bem não está nem pode estar definido no campo da ciência!..E já se começou a produzir doenças cuja droga terapêutica fora descoberta antes. E isso é lindo, trabalhar pelo bem preemptivo da Humanidade.

Continuando, o que então seria ciência social? Por acaso seria o que se acha depois da saída, em busca de perspectiva, do interior de um hipotético segmento do discurso social chamado “acervo dos entes científicos” (postulados, proposições, axiomas) colhidos das realidades, significações e projeções de constantes concernentes ao homem e aos homens em conjunto? Por acaso, aquilo que se conta e se mede sobre os homens a partir do interior do discurso? (Obviamente visando ao bem de todos, não é?). Mas, para evitar o “particular”, contagem e medição a partir de que Discurso Social Universal, se tal pudesse existir? – questiona-se. A partir de que Discurso Social particular? (Note-se que por não ser ciência, o bem é necessariamente particular). Não me diga que Jeová, Senhor dos Exércitos, é o Bem supremo. Note-se ainda que, por enquanto, o que se teria como o discurso o mais inclusivo – este no Ocidente chamado de civilização greco-romana-judaico-cristã, nada mais é que a institucionalização do racismo, perdão, do white supremacismo. Aceito este último assim mesmo, pergunta-se ainda: Que homem, qual homem foi objeto da coleta? O branco Aino ou o do Afeganistão? (Claro que não, o segundo está sendo dizimado, vergonha dos anglo-saxões...) Que homem

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foi o pesquisador, o entrevistador? De que academia? De que contexto de constantes, colheram-se as amostras da experiência? Como repeti-la ou reproduzi-la? Quem legitimou como científicos os dados ditos reais e projetivos, relativos aos atributos, ações, desse homem abstrato tirado do discurso social da civilização greco-romana-judaico-cristã? A essa pergunta todos podem responder, consultando Samuel Huntington, inviabilizando a pretensão ao título de ciência aos produtos dessa experiência.

Quer-se dizer que para o autor ou para qualquer pessoa que experimente sair do discurso social dos povos ocidentais ditos civilizados, não há essa entidade-categoria-instância chamada ciências sociais como a veem os acadêmicos, sociólogos, economistas etc., até mesmo porque no “discurso-bola de cristal” onde se definem essas profissões, todos estão inseridos e justificados em seu poder e nível, salarial e hierárquico. Nas malhas e redes das narrativas que se desvelam como o produto da civilização greco-romana-judaico-cristã sempre estará presente, com excesso de brilho, a figura de um imposto tecelão (ou tecelão impostor) ou pretenso demiurgo: o homem-alfa particular às narrativas das antigas culturas grega, romana, judaica ou cristã, necessariamente, o brilho ostensivo desse homem implicando a escamoteação de homens de outras eras, culturas, religiões e etnias. Pois é ele que fez e faz as ciências sociais... Brincadeira...

1.2 Presenças ostensivas e correspondentes ausências

Embora, como todos, permanentemente mergulhado (e afogado) nesse oceano de narrativas, ou seja, muitas vezes sem meios de tê-las como objeto de crítica, num ou noutro momento, ouso ter a pretensão de tentar e conseguir me afastar dessas redes, hipótese em que então julgo poder captar, de modo mais confortável, a ‘presença’ das ausências discursivas, ou seja, melhor perceber os entes discursivos tornados ausentes nas infinitas redes de significados diante de nós estendidas para que tenhamos vida mental, e assim sejamos homens. (Dispenso o modismo de toda vez que usar o termo homem juntar o signo para arroba @ ou o termo mulher, porque o primeiro homem era mulher e a mulher é a mãe do homem, numa certa dimensão da rede não existe um e outra, é só um. A continuar, em breve falaremos essa pessoa e esse pessoa. Vale o chiste: o sexo das palavras é neutro. A moda, artifício de compensação, decorre do fato de que aquilo que seria o Movimento Feminista ou Feminino, assumido pelo

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sistema e elites, há quatro décadas não nos diz nada a não ser pedir votos e mandar que as mulheres corram atrás dos escassos empregos, mesmo que as pobres fiquem com os mais baixos salários, além de uma quarta jornada.

Hipótese básica na questão das ausências: no discurso social a ênfase sobre determinada presença, pressuporia uma infinidade de ausências, ou melhor, de “tornados ausentes” da textualidade e da intertextualidade da atual civilização greco-romana-judaico-cristã. Essas ausências geralmente apontando para os tabus dos ditos civilizados ou, o que é a mesma coisa, para “questões chaves” dos estratagemas de dominação da atual ou de qualquer sociedade de classe no tempo. Então, a cada presença ostensiva num segmento discursivo, cumpre procurar as ausências correspondentes. Eis o trabalho aqui: sair do discurso, tendo como objeto as presenças ostensivas, com o fito de determinar suas correspondentes ausências e voltar ao discurso com as boas-novas.

Por exemplo, a ausência de referências bibliográficas (ou de sua divulgação, se as houver) na obra de Shakespeare, de Newton e demais sábios renascentistas e iluministas, ou melhor a ausência absoluta, nos “relatos dos demiurgos” europeus , de qualquer “referência” às “suas” fontes, aponta para o que chamo de complexo de “demiurguismo” inerente ao homem europeu moderno, ou seja, aponta para a presença ostensiva do seu imposto protagonismo absoluto na invenção/criação/descoberta de um Novo Mundo, que vem se desvelando desde o albor do que ele chama de História da Humanidade, com inflexão no século XVI, diante dos olhos de uma chusma de parasitas, de sub-homens (os das demais etnias) mormente do final do século XX para cá. Para o período entre os primórdios da Antiguidade até o século XVI, eles dão como protagonistas seus ancestrais, judeus, gregos, romanos, nessa ordem, e aqui e ali odiados entre si. O pior é que hoje se questiona que assim como não há raça de cristãos, não pode ter havido e haver raça de judeus... A gente,que é goy, olha para as feições do homem dito judeu e vê que ele é alemão, do mesmo cadinho, branco-acinzentado ou louro. Mas quem vai dizer que não? O discurso afirma: há um povo judeu de 5 mil anos, daí saindo as consequências: tudo que se inventou de bom de lá pra cá, foram eles. E redesenhando uma geopolítica de 5 mil anos também, está prestes a dizer que o Planeta é deles, presente de Deus. É muito

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protagonismo também. http://electronicintifada.net/content/israels-surprising-best-seller-contradicts-founding-ideology/7753

E note a contradição: à medida que se dispensa aos demiurgos da obrigação de referenciarem seus achados, os criadores dos demiurgos através de sua academia impõe-na, essa obrigação, a todos nós. Evidente faz-se a razão: se fossem dadas as referências bibliográficas , Newton seria mais um sábio, como tantos que o mundo já teve, não um demiurgo. Shakespeare, um produtor teatral e um editor, no sentido que tem essa palavra no mundo acadêmico dos Estados Unidos. Ainda com relação a fontes documentais, a antropologia, como o serviço de correios de fora para dentro são instituições trazidas pela guerra, pela caça ao butim. O antropólogo “só descobre” aquilo que o seu patrocinador white supremacista requer, ordena. O mundo hoje estaria pior se não fosse a existência de homens como Cheik Anta Diop.

Retomando o fio da meada, uma das ausências de peso, inferida pela presença ostensiva, esta do campo específico do que se ensina como história, ou seja, na área da historiografia, é a compreensão generalizada em setores supremacistas, principalmente em países como o Brasil, de que a escravidão negra “não foi” crime contra a humanidade e especificamente crime de genocídio e racismo, conforme prevê a lei francesa, graças a iniciativa coletiva e histórica, nos anos 90 patrocinada pela deputada francesa, de origem afro, Christiane Taubira, e aprovada como lei em maio de 2001, sem sequência, nos parece, nos demais países escravocratas.

Alega-se aqui no Brasil que a escravidão é milenar, principalmente na África; pura verdade, sem efeitos atenuantes, porém. Objeta-se que na caça ao escravo negro se especializaram não só europeus, como não europeus, os árabes, além de instituições dos poderes estatais africanos, os impérios negros de então exercendo o tráfico como política econômica de estado, o que é fato também, que agrava e jamais atenua o crime contra a humanidade. Aduza-se que aqui no Brasil a ação direta no tráfico a partir da captura do negro na África foi levada a cabo por muitos senhores de escravos baianos. Mesmo nessa Bahia muitos africanos enricaram, compraram alforria e magotes de escravos para uso próprio ou ganho. Nada disso muda o caráter do crime contra a Humanidade, porém. Como explicação, não defesa, da ação dos reinos africanos, lembre-se que antes da recidiva da escravidão na Europa, o preço do escravo não justificaria

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que seu escambo ou tráfico fosse transformado em política econômica por parte desses estados.

Agora, argumento indefensável é este: jamais foi montado no mundo um Sistema de Comércio em regime de guerra ou de paz, de abrangência transcontinental, com estrutura paramilitar para a caça e aprisionamento da vítima, com estrutura de transporte transcontinental, com entrepostos para a engorda, oferta e venda, com catálogos de preço em bolsa de valores, preço diferenciado para criança de colo ou de ventre, com meios de troca específicos, tudo isso articulado não para o “escravo” oriundo de qualquer tipo ou “raça” de seres humanos, mas para um só tipo (de mercadoria) tida como raça: aquela caracterizada pela epiderme negra, procedente em proporção majoritária de um continente específico. E o pior, por um só “tipo” de agente cuja cor da epiderme, necessariamente, contrastava com a da vítima. Presas, cujas culturas, línguas, religiões contrastavam com a do predador e, a partir desse contraste, foram e serão até o fim do mundo classificadas como inferiores, pré-humanas, animais, escravizáveis. E que não se diga que o povo europeu “não” conhecia o povo africano negro, pois foi a partir da África que este se civilizou, essa é a grande ironia.

Para o homem negro, incluídas todas as suas condições – mulher, criança, jovem e velho, não havia para onde fugir, já que sua pele, a cor da sua pele, seu cabelo e tudo foi visada e qualificada como “a sua jaula”, “a sua prisão inexpugnável”. Se tais eventos, associados aos da saga na Diáspora pela abolição e aos das práticas de vilania para a anulação dos efeitos positivos inerentes essa abolição – destaque para a cientificismo racista do século 19, e para a marginalização transecular do ex-escravo, se tais eventos, repitamos, não constituem, permanentemente: a) racismo; b) racismo institucional; c) genocídio e crime contra a Humanidade, então que me levem, a mim enquanto autor, às barras da Justiça: o racista sou eu, o genocida sou eu. E se puder escolher, quero ficar junto ao ex-presidente da Costa do Marfim Laurent Gbagbo.

Na descaracterização de racismo e de crime contra a humanidade, aceita a absurda hipótese de que, como vítima, ao Sistema do Tráfico Negreiro pudesse estar sujeito, em tese, qualquer indivíduo independente da sua cor (um absurdo, como sabemos) adverte-se que resta explicar a estigmatização do negro e de tudo que lhe é pertinente durante séculos (com parada demorada na época do cientificismo, século XIX) através de

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intenso trabalho intelectual de natureza laboratorial e acadêmica, em curso em nossos dias por meio do trabalho de “eminentes white supremacists”, entre os quais despontam nomes como os de Schopenhauer e de Samuel Huntington, esse novo Cruzado propagador do mito do choque de civilizações, aliás lido e aplaudido no Brasil, isto é, lido da maneira que esse povo tem lido,como best-seller americano, forçoso é concluir.

A argumentação imbecil de que não exista raça, cara a muitos acadêmicos negros brasileiros, pasmem, será de justificação impossível já que é nomenclatura relativa às coisas do mundo social. Aqui os conceitos valem pelo que fazem, não pelo que significam. Jamais houve raça vermelha, mas a bandeira do Comitê Olímpico, algo que começou para legitimar a supremacia branca (ou não?), continua a homenagear os “red skins” (de onde saíram os skin heads?). E pelo menos nos últimos dois mil anos, para não dizer nos últimos cinco mil, a ação dos homens no planeta é referida como ação, seja a de prego ou a de martelo, como ação de homens que pertencem a uma raça. Para a demonstração, recorra-se, entre outros, aos textos das chamadas “grandes narrativas religiosas”. Os negros da academia brasileira têm que mudar de postura...

Reafirmando: questionada a “originalidade” absoluta das proposições, postulados, axiomas e realizações inaugurais do “demiurgo”, vale dizer, questionado o discurso social manipulado pelo demiurgo em função mesmo da sua ostensiva presença, melhor se podem observar as ausências que esse discurso determinou e determina. Onde já se viu quem não tem lastro na História querer assumir a paternidade da História? A ostensiva presença chama a atenção geral como um artifício inventado para camuflar o que é fato: muita ocultação e prestidigitação de documentos e fatos. É o racismo, e apenas o racismo, que produz o racismo.

1.3 Mais ausências

Eis algumas das ausências que ainda cabe levantar: jamais este autor viu qualquer manifestação, por parte do clero católico, de que como membro dessa igreja por batismo e como seu contribuinte, cada fiel católico teria, por questão de fato, não de direito (já que este é feito pelo que se tornaria o devedor) uma quota-parte do imenso patrimônio da respectiva. Donde a conclusão de que em seu trabalho social ela (pessoa jurídica?) apenas devolve o que não lhe pode pertencer.E se não há o cotista, a quem

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pertence esse imenso e fabuloso tesouro – necessariamente produto de butins? À humanidade? Quaquaquá... Alias, essa omissão, essa ausência, é generalizada, além de inerente ao ato de enxergar-se determinadas instituições, malgrado essa ou aquela disposição legal – clubes de futebol (a reconsiderar a existência das figuras do sócio-proprietário e do “sócio” torcedor), e no que tange às classes dominadas, o Estado-nacional (este com o cidadão de primeira classe, que deve ficar no lugar do sócio-proprietário, e o de segunda e terceira classes no lugar do torcedor). Advirta-se, porém, que no caso dos entes políticos e dos clubes de futebol, os torcedores-membros, por via de artimanhas do discurso, sejam levados a realmente “pensar” que essa quota-parte exista e lhes pertença. É reforço da noção de pertinência. Sou pobre, mas meu país é rico.

O silêncio no campo do discurso, nessa relação de propriedade, temos que admitir, não tem por sentido senão esconder a identidade dos verdadeiros donos desses patrimônios, já que, segundo a sabedoria popular trazida pelos europeus, não há terra sem dono, não há poder sem ocupante, nem patrimônio sem proprietário. Bem, no caso do Estado-nacional brasileiro, antes que se argumente com os programas sociais postos em linha após seus 180 anos de existência, cumpre analisar: o federalismo pátrio apoia-se na firme defesa da integridade territorial por parte da União, mas através de exército mínimo, a qual, por sua vez ,faz uso da permanente injeção de “numerário” no município (entre suas elites-autoridades), já que não temos forças armadas proporcionais à extensão territorial do país, para defender seu território, em caso da falência da célula municipal. Nos EUA agora vemos admirados o fenômeno da extinção de cidades plenamente desenvolvidas, após se transformarem em cidades fantasmas, e ninguém vai lá ocupar esses lugares abandonados, como fariam aqui ou mesmo em certos países da Europa. É por que lá, a União ianque não precisa injetar dinheiro a fundo perdido nos condados, pois se estes forem à falência, ninguém, ninguém mesmo assumirá a posse da massa falida, a não ser o poder remanescente, os bancos. É por isso também que lá a posse de armas é livre. Aqui, não. Aqui desarma-se o povo (mas não o rico), não temos Guarda Nacional, e o Exército é posto para combater bandidos. Daí encontre-se explicação, também, para a imensa carga de impostos que nosso “Leão” lança sobre os que aqui pagam esse pedágio. Nos Estados Unidos não, nisso também eles se diferenciam. Então, forçoso é concluir, com o Bolsa Família apenas se remuneraria “o permanente segurança

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desqualificado de plantão” que há 20 gerações toma conta do território (uti possidetis) para que os sócios-proprietários desfrutem das riquezas do território, solo e subsolo. Ou não? Por favor, venham ao proscênio dizer-me em erro.

Ainda com relação à Igreja católica, tratam-na como Estado, dão aos seus dirigentes status de autoridade internacional – rei, embaixadores etc., a ela se deferindo soberania territorial (e quem sabe, extra), exército etc., mas desse Estado não se cobra respeito à democracia, transparência na contabilidade interna e demais procedimentos que visem até à proibição de lavagem de dinheiro, quando da aplicação financeira em Paraísos Fiscais (a expressão adquire aqui conotação acintosa). Jamais o acusarão, também, de fundamentalismo religioso, de práticas medievalizantes, uso de véus, batinas, celibatarismo, tráfico de riquezas ilícitas e de influência e interferência na legislação dos estados laicos. É isso que é o discurso – impede-nos de ver o que estava na cara. E estenda isso tudo a todas as igrejas. Onde vamos parar, não sei. Interessante é que no passado pouco ou nenhum respeito tinham os membros das dinastias europeias por seu “Estado papalino”, visto como “coisa de família” cujas roupas sujas se lavavam, por óbvio, em família, a toda hora. Nos séculos XVII e XVIII não houve instituição mais desmoralizada...Depois do Congresso de Viena, todo mundo virou neném, bom menino, mocinho. É o caso hoje da sociedade japonesa que derrotada, deu sumiço a seu eterno e latente discurso racista.

Como a situação dessa Igreja católica é paradigma para as demais, cumpre contar com a extensão das práticas. Há muita coisa errada no mundo, forçoso é concluir. Aviso aos ex-comunistas brasileiros que agora veem na democracia do Estado de classe neoliberal valor universal: No Vaticano ela não o é. Mais ainda: em países como o Brasil, ou mesmo na África, imagine-se o dia em que os “Bispos” evangélicos-caça-níqueis exigirem isonomia aos católicos? Imagino que à socapa já a exigiram, já desfrutando de várias prerrogativas sem que o povo saiba. Quem pode impedir que outros bispos Macedos se apossem de partes do Cerrado e criem seu Vaticano com catedrais e alianças com as nações wasp? Depois de 1989, tudo é possível.

Aliás, nossos “estudos sociais” jamais deixarão de ser o embróglio que sempre foram enquanto não nos enxergarmos sui generis em tudo, ou seja,

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que transplantamos as instituições europeias pelo seu valor de fachada – reino unido sem reino, sem união e sem reinóis, monarquia constitucional sem uma coisa nem outra, nobreza sem legitimação histórica (duques e viscondes de papel), estado territorial nacional sem nação, federação com política café com leite, ou sul-sudeste, republicanismo ditatorial, nenhuma instituição entre nós tem os elementos constitutivos que correspondam aos seus modelos na Europa e no mundo. Ou ao que dizem as palavras que a referenciam. Até pouco tempo tínhamos um “ministério da guerra”. Fazendo aqui um link (palavra da moda) com o estado da educação no Brasil, admita-se que diante deste quadro – o Brasil real – nenhuma classe julgando-se elite, aristocracia, vai proporcionar trabalho educativo que leve os educandos a concluírem quanto ao estado de precariedade dessa obra e do despreparo e desinteresse dessas elites como dela criadores.

1.4 A postulação da História – campo de ostensivas presenças e ausências

Retornando ao âmbito da historiografia, ou melhor, do que se registra e ensina sob o nome de história, “as presenças”, invariavelmente continuam a escamotear “as ausências”. Hoje é dado do conhecimento geral, em pleno curso pelo menos na França, o fato de que postular a historicidade, fazer a história, é função primordial do poder, do império, da cidade-estado, do estado religioso ou laico, no caso das nossas formações sociais conhecidas. Do mesmo modo, o postular um calendário nas complexas sociedades da Antiguidade foi função de um órgão soberano. Na postulação da historicidade, o Estado tem-se valido de variados instrumentos e instituições, conforme o nível tecnológico da sociedade. Na África oral, ou mesmo após o advento da escrita, um desses instrumentos é o griot, que o nosso discurso histórico racista dos anos 50 dizia e ainda diz ser um palhaço, um bobo da corte entre régulos africanos (o diminutivo para os monarcas africanos cai lindo). O griot, hoje na França se sabe, é instrumento pelo qual o poder, a corte, o Estado, o império, a dinastia, o soberano, postula a história do grupo. Os griots formam castas situadas no patamar da nobreza, seus membros dominavam e ainda dominam vários idiomas e meios de expressão – a música, a dança e a literatura em destaque. Dominariam também por óbvio variado leque de técnicas mnemônicas, como Cícero as dominava quando advogava em Roma lá pelos anos 50 a.C. Aliás, fato de que ninguém fala, nas culturas orais

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complexas, é de se aceitar, o desenvolvimento da memória como habilidade individual necessariamente atinge níveis elevadíssimos. Para os aplicadores do direito até mesmo na Idade Média europeia, os códigos, as sentenças, as leis decorrentes, a jurisprudência enfim, tudo tinha que ser decorado. A propósito, daí, também, a profusão de imagens nas paredes das catedrais... serviam também como artifícios mnemônicos. Esta informação quer iluminar a questão: Que é cultura como cabedal de fatos que se deve saber de cor? Ela valeria como senhas, como dicas para explicações mais complexas. Daí fica definido o que é cultura inútil – a que a nossa escola ensina com a citação “O mar é a única sepultura digna de um almirante bátavo...bátavo?, não, batavo.”

Com relação a esse tema – postulação da história, cumpre atentar para o fato de que, a partir do século XVI as nações hegemônicas na Europa, dominando o acesso às fontes da cultura universal (África, Ásia, escravo, canhão,navios e ideologia cristã) a partir do domínio das rotas comerciais, começam a postular aquilo que se tem chamado “a horizontalização da História de toda a Espécie”, ou dito de outro modo, começam “a fabricar uma história para o outro”, ou seja, a postular uma coisa chamada História Universal, mas segundo suas próprias lendas inaugurais e preconceitos, seus quadros de valores e escala de tempo, em suma, seus interesses. Ao mesmo tempo que começam a DESTRUIR, DELETAR, as demais culturas. Mais ainda, começam a “roubar” os documentos e monumentos da história real de outros povos e civilizações, assumindo essa posse como legítima – o imenso acervo dos museus e bibliotecas europeus, inclusive da Igreja católica apostólica romana.

Se meu leitor aqui aceitou e compreendeu o significado dessa postulação da história do outro, e ainda tendo em vista seu conhecimento sobre o tráfico negreiro transcontinental durante quatro séculos (sistema de escravidão só para homens negros) então, meu leitor, você já pode explicar-se por que a África foi excluída dessa história, ou seja da “História Universal” dos brancos, ou melhor, dela participa como terra de seres inferiores, hominídeos negros. Pode entender melhor o que significa para a humanidade instituições como o Louvre, os Britsh Museums, os Deutsches Museums, os American Museums, considerada a origem do acervo e termos da aquisição das peças, considerado o que é aberto ao público e o que é secreto. Lembre-se de que a postulação da horizontalização do

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calendário, por questão de pertinência religiosa, tem início alguns séculos após a passagem pelo Oriente Médio e pela África (uma ironia) daquele que empresta seu nome a Era. Ou estou mentido? Seria Jesus europeu, anglo-saxão? Parece, não é?

Sempre usando o século XVI como referência relativa, diga-se que até então o fato normal era que cada formação social, na medida de sua soberania e potência, pudesse postular sua história vertical e seu calendário, também vertical, daí o chiste das calendas gregas. Caída uma dinastia, derrotado o império ou cidade-estado, essa história vertical virtualmente tinha seu fim. Dificilmente era continuada pelo poder subsequente, a não ser em aspectos relativos à pertinência do povo, a ser exaltada ou estigmatizada. Eventualmente, esse ou aquele griot , aventureiro ou comerciante pertencente a esse ou àquele reino ou cidade-estado, ia à região tal ou qual (Marco Polo, por exemplo ou Heródoto, o nosso pai da História, quaquaquá), e trazia crônicas, relatos desse ou daquele império ou povo, documentos sobre sua língua etc. Os relatos e dados trazidos eram apensados à história vertical do país do griot ou disseminados por entre uma comunidade de outros griots. Bem, leitor, esses fatos acima não podem ser refutados, certo? Pois é nesse quadro, é do interior desse quadro que os supremacistas, através de suas academias, ditam o “protocolo áureo” – “História só pode ser feita a partir de documento escrito”, pois a História nasce com a letra”. Antes é a pré-história, que coerentemente só pode ser contada por quem tem história, ou seja letra. Que fazer então com o griot ? Torná-lo palhaço.

Atenção, porém: Se esse país recipiente do Marco Polo, dos sarcófagos, das esfinges, dos pergaminhos e demais tesouros, era a Potência (o Vaticano, herdeiro das bibliotecas de multiplicidade de povos antigos, a Inglaterra, a França, Portugal, Espanha, o Império Austro-Húngaro e os Estados Unidos em nossos dias), esses tesouros e relatos passam a ser segredo de Estado, a que ninguém mais pode ter acesso, para que jamais os terráqueos não-brancos saibam fatos verdadeiros de sua verdadeira História, por exemplo, que o Egito nos seus 5 mil anos de história, era uma civilização negra nigérrima, como, por ironia, dissera várias vezes Heródoto. Conclua-se, então, que se a prerrogativa de postular história e calendário é privativa do hegemônico, é com as reticências devidas à desconfortável presença desse hegemônico em nossas vidas que devemos aceitar não só o calendário,

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como também a História horizontalizada que nos impõem, justamente para justificar nossa inutilidade, parasitismo, pois seguramente, segundo seu discurso, não estávamos “historicamente” presentes como protagonistas nos momentos inaugurais dessa maldita História Universal deles. De protagonistas, passamos a figurantes. De figurantes, foi e é o papel que nos deram e nos impõem. A automação cria um quadro em que se dispensa a presença do figurante...E aí?

No caso de nosso pais, o grito do filho herdeiro “Independência ou Morte” estaria escamoteando a recorrência do seguinte quadro conclusivo: “abolida a monarquia em Portugal, Revolução do Porto, o patrimônio hoje nas mãos da ex-dinastia não pode ir às mãos de seus algozes, salvemo-lo pela independência, pois outra saída para nós significa morte”.

Nesse sentido, a exclusão da África como berço de civilizações, exclusão até hoje vigente em nossa (brasileira) historiografia, aponta para todo um quadro de ostensivas presenças na sociedade brasileira, entre as quais: a) insuficiência ou reticência na assimilação dos índio-afro-descendentes ao pleno gozo da cidadania, com a deturpação das instituições sociais inerentes a um quadro de plena cidadania – república, estado de direito, democracia; b) traumático processo de construção da identidade nacional, área de eterno conflito, logo convivência com práticas de racismo social, cultural e institucional e epistemológico; por fim e por enquanto, c) tabus que inviabilizam o desenvolvimento de uma autêntica cultura nacional – afinal de contas capoeira é arte marcial brasileira ou broma de negros desocupados e desqualificados, apanhada e desenvolvida pelos brancos? Candomblé, Umbanda e Encantados é religião afro-brasileira ou práticas animistas (de animais?) de povos primitivos, atrasados? (A Presidente Dilma neste novembro de 2012 sancionou lei que reconhece a Umbanda como religião brasileira, parabéns e meus respeitos e agradecimentos). Mas quanto à vasta produção cultural negra do Brasil, se lhes disserem que são lídimos exemplos de cultura afrobrasileira, procurem amparo na lei de propaganda enganosa e peçam a respectiva indenização, pois o Estado brasileiro não tem tratado esses entes e seus criadores e cultores negros como pertencentes ao guarda-chuva protetor da nacionalidade. Lembrem-se do Cabral do Rio de Janeiro: Festa para Iemanjá na orla da zona sul, sim,

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mas sem farofa, sem tambor e sem bebida. Sem que se esqueça a hora de voltar pra casa, seus cafajestes preguiçosos.

1.5 Algumas ausências no segmento religião

No campo da religião e num contexto colonial, sua classificação como religião superior (do europeu) ou primitiva (do resto) dependerá da oposição dominante x dominado, o mesmo para seus elementos constituintes, clero, instrumentos e práticas: hieráticos, sacralizados (nesse caso ostensivamente iluminados) ou “tabus abjetos” (nesse caso em retraimento ou ausência). No campo vocabular, temos sacerdote x pai de santo; hóstia, x bozó, feitiço, despacho, bruxaria; fé x crendice, animismo; in extremis, Deus x Diabo ou Cão.

A questão a ser levantada é: por que as práticas discriminadas, forçadas aos bastidores, insistem em voltar, ou melhor, em permanecer no proscênio e na ribalta? Por que remanescem há mais de 10 mil anos, se seguirmos a escala de tempo dada, as religiões que se baseiam na possessão, no sangue sacrifícial, antes na fé não certificada, e na experiência corporal do crente do que na letra e palavra do pastor? Por que, afinal, não morre nem fica velho, folclórico, entre os católicos, o tal Diabo cristão? É ou não é Diabo? Aliás, boa questão: por que nossos cientistas sociais ávidos por tomarem a paternidade e os frutos de práticas religiosas como o Jongo, o culto dos Babá Egun, das Yamin Oxorongá etc. não se voltam em massa, com projetos financiados pela Petrobrás e Vale, a estudar, a fim de folclorizar, o velho Diabo cristão? Boa e útil linha de pesquisa para a extensão universitária, não? Sem sombra de dúvida, o Diabo, com todas as narrativas que o têm como personagem (segundo o lastro semítico-cristão, pelo menos), tornou-se atualmente um tremendo e temido deus-tabu, cuja presença, maldição e ira fazem perder o sono aos bispos e pastores-caça-níqueis, seus recriadores – fato que devia ser entendido como uma piada, um chiste, pois esta personagem já devia ter-se tornado velharia no museu do folclore, tendo em vista que já se passaram 2 mil anos desde a Redenção da Humanidade. Que diabo de função teria o Diabo nesse mundo cristão de vinte séculos de existência, senão de sinalizar aos cristãos que há algo errado nas prédicas, na sua veiculação boca a boca? O mesmo para o medo da Morte, tendo em vista a vida eterna do crente.

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Antes que duvidar das proposições dessa ou daquela religião, quer-se é alertar seu crente para o brilho ostensivo de alguns destaques em seus ensinamentos, com a retração às sombras, de outros, logo lembrando-lhe que sua religião, filha ou apêndice do seu respectivo discurso social é, também, objeto de estudo, cumprindo dela sair para poder observá-la.

Conclusão

Ficamos por aqui nesses exercícios de compreender e descompreender, aqui e ali trazendo como exemplo as distorções estruturais de nossa escola, principalmente a pública, pois é na atividade educacional que maior impacto apresentam as ausências e presenças ostensivas de nosso discurso social:

a) Começando pela escola, toda ela foi criada e existe só para ensinar, quando já é mais do que passada a hora de deixar de ensinar e começar a aprender. Aprender que deve revisar e reavaliar o que a tem caracterizado nesses três ou quatro séculos de audiência à retórica do “assumido demiurgo”, pois vários dos conteúdos desse conhecimento indigesto simplesmente quando não provoca vômito, acorda o fastio entre os educandos: chega! O material didático desta escola sustenta imensa indústria brasileira de área em que, paradoxalmente, não temos mercado: a área editorial (que o leitor se inteire dos fatos = não há mercado leitor e temos uma baita indústria editorial...). Dos seus conteúdos, relembre-se apenas o ensino de uma história que não ousa dizer como se constituiu, ou melhor, que festeja um pai que, se perguntado, não teria pejo de dizer “não foi esse o objetivo do meu trabalho”. Heródoto teria no máximo escrito relatos para uma estória vertical de sua cidade-estado. Pai da História Racista, ou Racial, é presunção imbecil de imbecis.

b) Reprova-se a ela render-se (enquanto instituição, e forçar a essa rendição seus alunos), ao poder social mediato e imediato, quaisquer que sejam estes, até se bandido, sob a desculpa de respeito à democracia... Racionalização que o corrupto e ladrão festejado nas urnas adora, respeita e premia. Essa escola traz para o contexto democrático todas as práticas de sobrevivência em ditadura, sintetizadas na expressão “abrir as pernas”. Ela ensina tudo que só se aprende no interior das quadrilhas. Vejam: no ambiente escolar, o

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diretor da escola é eleito a partir da seguinte relação: “o total de votos de todos os alunos é igual ao total de votos de todos os professores” ( Lei Minc, imitada em todos os Estados). A escola tem 2 mil alunos e 100 professores, logo 2000 A = 100 P, ou 20 A = 1P. O voto de 1 professor vale o de 20 alunos. Podendo ter tantos professores “fantasmas” quanto quiser, jamais o diretor perde as eleições, aprende o aluno. Daí as dinastias de desonestos, de incompetentes ou indiferentes. Bem, essa lei e o contingente de “orientadores ou aduladores” sem qualquer tipo de trabalho a fazer (a não ser desorientar) tornam putrefato o ambiente escolar – professores espiões a serviço do diretor, professores fantasmas que só aparecem para votar de dois em dois anos, alunos espiões a serviço do diretor, alunos espiões das coordenadoras e muito mais. Completa isso o fato de que a escola pública virou “aparelho” do partido que tenha assento hereditário na área de educação, eventualmente se dizendo de esquerda. Note o leitor leigo que nesse ambiente ninguém é ingênuo... O aluno vê, analisa e conclui sobre essa podridão generalizada. Estudar pra quê? Nesse ponto, a escola pública ensina mesmo. E nada se pergunte sobre o grêmio estudantil, a vida política interestudantil.

c) Dessa escola foge a comunidade, por razões históricas. De um modo geral está muito próxima a noção de educação como obra dos padres, da Igreja, auxiliada por preceptores, explicadores, professores particulares a soldo. Se é pública, não é boa, já foi. Daí o sucesso das apresentadoras louras de televisão para programas infantis... Só no Brasil existe tal excrescência. Grassa a moda de alguns professores e professoras virarem show men/women. Diante de eventos que demandam a presença da comunidade do entorno, pais e responsáveis, vem à frente sua substituta: – a claque trazida pelo partido do diretor. E tudo isso vê o aluno em seu processo de formação.

d) À medida que esconde seu lado podre, a escola dá azo a que muitos ingênuos professores vejam-se como “ungidos por Deus” na missão de ensinar (esquecendo-se de que o aluno aprende por si, muitas vezes (ou sempre) em revolta contra a escola), comportamento patético, esse de julgarem-se ungidos, que se torna evidente nas

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semanas anteriores ao dia do professor ou no decorrer das paralisações, impostas à opinião pública como greves legais.

e) Nessa escola de renúncia ao futuro, a vida gremial acabou. Acabou a célula matriz do agente social para a atividade política ética. Não há mais grêmio, não há sociabilidade entre alunos que ultrapasse os pactos para a prática do ilícito. Não há ensaios para a manifestação da dimensão política do homem adulto no futuro, uma das únicas prerrogativas de ser jovem. Que tipo de eleição faria esse grêmio, se existisse? A eleição na escola é momento de degradação de todos... Nem se fale na greve que essa escola e seus professores alinhados fazem? Não é greve, é a justificativa do roubo, já que é, do ponto de vista legal, paralisação, todos os fornecedores recebendo suas faturas como se as aulas estivessem acontecendo. A podridão fica escancarada, o diretor não perde jamais a eleição. Os professores fantasmas riem dos que estão em sala. Para o aluno, eis a questão: Repetir o que se aprende na escola? São esses alunos que nas reuniões em que vão tomar parte – sindicato, condomínios etc., quando adultos, gritarão: “questão de ordem”, como equivalendo a “quero falar, porra!”

f) Reprova-se a ela o receber um educando inconscientemente oriundo de várias etnias em diáspora, vivendo no centro de um drama épico de quinhentos anos...receber a esse aluno, repita-se, como se ele fosse um parasita, um pária, um canalha da humanidade, sabotando-lhes, aos pertencentes às etnias subjugadas, o seu passado cultural específico, compreendendo-os como filhos de chocadeira, quando não abertamente como seres derrotados pelo colonizador branco – caso generalizado em todas as formações pós-coloniais, haja vista os princípios e objetivos estruturantes da descoberta, conquista e colonização (observe-se que muitos educadores brasileiros, negros até, pasmem, bloqueiam qualquer tentativa de aplicação da Lei 10639, alegando que ela vai criar racismo – é a posição aberta, hostil, dos evangélicos negros, que calados ou satisfeitos com sua parte no butim, compactuam com toda esta podridão. Paradoxalmente, essa escola ensina filosofia grega, especificamente o desfile dos filósofos gregos... É ridícula!

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g) Reprove-se a ela o pretender formar o ente oriundo das mais pobres camadas sociais a partir de sua rendição/derrota como ser criativo, a partir da sua auto-assumpção como pobre, carente, parasita – de que se põe como exemplo saliente desde a ausência do fazer prático nos seus currículos, até a seriação (com hierarquização das disciplinas, dos profissionais e maior fatia no orçamento público): primário, secundário, superior/universitário, quando os equivalentes aos pré-primário, primário e secundário é que deveriam estar no topo da escala de valores da sociedade, até mesmo porque a maioria da população insere-se neles; indo-se ao incomum, ao modo de raciocinar desusado (segundo a visão preconceituosa atual), nada impede que um homem a partir do secundário se torne, como autodidata, produtor cultural de renome, coisa comum nos quadros pós-revolucionários do século XX, principalmente – URSS, China, Cuba; enquanto o contrário é aqui encontradiço: pessoas com mestrado e doutorado, mas improdutivas, dada a falta de emprego, pobreza, e de base intelectual.

h) Para ter visão mais nítida do caos, relacione os últimos parágrafos a um quadro de existência do tráfico de drogas (política criminosa de estado a que todos fecham os olhos) , quadro em que o Estado e todas as instituições permitidas no contexto fazem “política” com os traficantes, principalmente os evangélicos, isso tudo diante dos jovens, eis o que a Escola ensina. Fiquemos por aqui.