Experimento simples, explicação nem tanto! Reflexão e polarização ...

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Física na Escola, v. 13, n. 1, 2012 14 Reflexão e polarização em óculos 3D O enigma inicial A popularização do cinema tridimen- sional (abreviado 3D) na última década, além do surgimento de televisores que uti- lizam essa tecnologia, tornou o acesso a óculos com lentes polarizadoras mais co- mum. A Fig. 1 mostra um desses óculos (pouco estéticos, por sinal). Um questionamento sobre uma ati- vidade que pode ser feita com um desses óculos nos foi proposta por um estudante, e é descrita a seguir: usando um desses óculos, observe sua imagem refletida em um espelho plano. Você provavelmente conseguirá ver seus olhos parcialmente, como mostrado na Fig. 2, na qual utili- zamos uma alegre bola de borracha para representar a imagem do observador refle- tida no espelho. Jair Lúcio Prados Ribeiro Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil E-mail: [email protected] Maria de Fátima da Silva Verdeaux Instituto de Física, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil Um experimento simples pode ser conduzido com o uso de um óculos polarizador, usado em exibições de filmes 3D. Olhando-se no es- pelho enquanto usa esses óculos, o observador fecha um dos olhos. Nesse caso, a lente que recobre o olho oposto (aberto) parecerá negra, impedindo a visualização da imagem desse olho, enquanto a imagem refletida do olho fe- chado continuará sendo observada. Apesar de parecer trivial, a explicação do experimento en- volve o entendimento do conceito de polari- zação circular. Em seguida, feche um dos olhos, por exemplo o direito (o olho fechado é repre- sentado por um X na Fig. 3, na qual é representada a imagem do rosto do obser- vador refletido no espelho, visto pelo mes- mo). A lente que recobre o olho aberto (esquerdo) parecerá preta, não permitindo que você observe esse olho no reflexo, en- quanto a lente que recobre o olho fechado (direito) ficará clara, permitindo que você observe a imagem refletida desse olho (Fig. 3). Você só pode enxergar através da lente “negra”, pois o seu outro olho está fechado, não sendo capaz de captar a luz. 1 Por que isso acontece? A resposta não é trivial, e envolve o conhecimento de um importante fenômeno ondulatório: a polarização circular. O que é polarização? O fato de ser possível obter luz pola- rizada permitiu a construção de filtros polarizadores para máquinas fotográficas, lentes de qualidade para óculos escuros, monitores de cristal líquido (liquid crys- tal display, ou LCD) e projeções tridimen- sionais em cinemas. 2 Para entender a pola- rização, considere que existam dois tipos de ondas (Fig. 4): aquelas onde a vibração é perpendicular à propagação (transver- sais) e aquelas onde a vibração e a propa- Figura 1 – Óculos RealD 3D, usado em cinemas. Figura 2 – Representação da imagem obser- vada no espelho com os olhos abertos. Figura 3 - Representação da imagem obser- vada no espelho com um dos olhos fecha- dos.

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Física na Escola, v. 13, n. 1, 201214 Reflexão e polarização em óculos 3D

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O enigma inicial

A popularização do cinema tridimen-sional (abreviado 3D) na última década,além do surgimento de televisores que uti-lizam essa tecnologia, tornou o acesso aóculos com lentes polarizadoras mais co-mum. A Fig. 1 mostra um desses óculos(pouco estéticos, por sinal).

Um questionamento sobre uma ati-vidade que pode ser feita com um dessesóculos nos foi proposta por um estudante,e é descrita a seguir: usando um dessesóculos, observe sua imagem refletida emum espelho plano. Você provavelmenteconseguirá ver seus olhos parcialmente,como mostrado na Fig. 2, na qual utili-zamos uma alegre bola de borracha pararepresentar a imagem do observador refle-tida no espelho.

Jair Lúcio Prados RibeiroPrograma de Pós-Graduação emEnsino de Ciências, Universidade deBrasília, Brasília, DF, BrasilE-mail: [email protected]

Maria de Fátima da Silva VerdeauxInstituto de Física, Universidade deBrasília, Brasília, DF, Brasil

Um experimento simples pode ser conduzidocom o uso de um óculos polarizador, usadoem exibições de filmes 3D. Olhando-se no es-pelho enquanto usa esses óculos, o observadorfecha um dos olhos. Nesse caso, a lente querecobre o olho oposto (aberto) parecerá negra,impedindo a visualização da imagem desseolho, enquanto a imagem refletida do olho fe-chado continuará sendo observada. Apesar deparecer trivial, a explicação do experimento en-volve o entendimento do conceito de polari-zação circular.

Em seguida, feche um dos olhos, porexemplo o direito (o olho fechado é repre-sentado por um X na Fig. 3, na qual érepresentada a imagem do rosto do obser-vador refletido no espelho, visto pelo mes-mo). A lente que recobre o olho aberto(esquerdo) parecerá preta, não permitindoque você observe esse olho no reflexo, en-quanto a lente que recobre o olho fechado(direito) ficará clara, permitindo que vocêobserve a imagem refletida desse olho(Fig. 3). Você só pode enxergar através dalente “negra”, pois o seu outro olho estáfechado, não sendo capaz de captar a luz.1

Por que isso acontece? A resposta nãoé trivial, e envolve o conhecimento de umimportante fenômeno ondulatório: apolarização circular.

O que é polarização?

O fato de ser possível obter luz pola-rizada permitiu a construção de filtrospolarizadores para máquinas fotográficas,lentes de qualidade para óculos escuros,monitores de cristal líquido (liquid crys-tal display, ou LCD) e projeções tridimen-sionais em cinemas.2 Para entender a pola-rização, considere que existam dois tiposde ondas (Fig. 4): aquelas onde a vibraçãoé perpendicular à propagação (transver-sais) e aquelas onde a vibração e a propa-Figura 1 – Óculos RealD 3D, usado em

cinemas.

Figura 2 – Representação da imagem obser-vada no espelho com os olhos abertos.

Figura 3 - Representação da imagem obser-vada no espelho com um dos olhos fecha-dos.

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Figura 7 – Polarização circular anti-horária.

Reflexão e polarização em óculos 3D

gação são paralelas (longitudinais). Asondas eletromagnéticas, entre as quais aluz se inclui, são do primeiro tipo.

As ondas transversais apresentamuma importante propriedade: elas podemser polarizadas, ou seja, podem apresentarum único plano de vibração. A maioriadas ondas provocadas por uma únicafonte é polarizada [1], tais como as ondasem uma corda, ondas eletromagnéticasgeradas por uma única antena ou a luzemitida por um laser [2]. Se múltiplasfontes produzem a onda, ela usualmentenão é polarizada. Um típico exemplo é aluz emitida por lâmpadas comuns, resul-tado da atuação independente de milhõesde átomos [1]. O campo elétrico resultanteem cada ponto de propagação da luz acabapossuindo múltiplas direções, e esse raiode luz é dito não polarizado. A Fig. 5 apre-senta a representação de um raio de luznão polarizado, mostando a multiplici-dade dos planos de oscilação do campo elé-trico do raio de luz.

Há três tipos de polarização, que po-dem ser simulados com uma mola slink(Fig. 6). A polarização plana ou linear(Fig. 5) é produzida quando oscilamosuma das extremidades da corda apenas na

vertical (ou apenas na horizontal, ouainda em qualquer outro plano).

Entretanto, se oscilamos a corda comvelocidade constante ao longo de uma cir-cunferência, a polarização é dita circular.3

Nessa situação, pode haver dois tipos deondas resultantes, dependendo do sentidode rotação: anti-horário (Fig. 7) ou ho-rário (Fig. 8).

O método mais comum de obtençãode luz polarizada é a absorção por meiode um filtro de plástico especial (chamadopolarizador), composto de longas cadeiascarbônicas alinhadas entre si,as quais se tornam conduto-ras de eletricidade após imer-são em iodo [1]. Polarizadorespodem ser facilmente obtidosdesmontando-se um visor decristal líquido, como os exis-tentes em calculadoras (opolarizador é o plástico de cormarrom que recobre o vidro),conforme a sugestão oferecidapor Laburú e cols. [3]. Quandoluz não polarizada incide noplástico, as vibrações elétricasque sejam paralelas às cadeiascarbônicas são absorvidas,pois correntes elétricas são ge-radas nessas cadeias, restan-do apenas as vibrações no pla-no perpendicular às mesmas.Se as cadeias estiverem alinha-das horizontalmente, a luz

resultante será verticalmente polarizada,e vice-versa. É importante frisar que, em-bora as fibras carbônicas estejam alinha-das na horizontal no exemplo (Fig. 5), opolarizador seria usualmente represen-tado por linhas verticais (eixo de trans-missão vertical), para facilitar a compre-ensão de que a luz emerge polarizadaverticalmente após passar pelo plástico.

No cinema 3D, os polarizadores usa-dos nos projetores e nos óculos sãopolarizadores circulares simplificados. Aprojeção envolve duas imagens, projetadascom feixes de luz que possuem polariza-ções opostas: por exemplo, a imagem quedeve ser vista pelo olho esquerdo é proje-tada com polarização horária, e a ima-gem vista pelo olho direito tem pola-rização anti-horária. Se observarmos a

Figura 4 – Tipos de ondas.

Figura 5 – Obtenção da polarização linear.

Figura 6 – Mola slink de metal.

Figura 8 – Polarização circular horária.

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tela sem os óculos, veremos as duas ima-gens sobrepostas.

Nos óculos usados pelo espectador, te-mos uma repetição do sistema usado peloprojetor. Um polarizador circular que sódeixa passar a polarização horária é colo-cado sobre o olho esquerdo, e o opostoocorre com o olho direito. Agora, as ima-gens são “filtradas”, e o olho esquerdoobserva apenas a imagem projetada àdireita da tela (mostrada em vermelho naFig. 9), enquanto o olho direito observasomente a outra, projetada à esquerda(mostrada em verde). A diferença de ân-gulo de visão entre as duas é levada emconta no processamento visual pelo cére-bro, o qual combina as duas informaçõesópticas e gera o efeito tridimensional.

Um fato adicional interessante é queo polarizador horário não deixa a luz pola-rizada no sentido anti-horário atravessá-lo, e vice-versa. Esse fenômeno é fácil deser percebido com o uso de dois óculosRealD 3D, colocando um de frente para ooutro (assim, os polarizadores anti-horá-rios estarão de frente para os horários). Ofato das lentes ficarem negras (Fig. 10)

mostra que a luz que passa por uma lentenão consegue atravessar a segunda, sendocompletamente absorvida.

A resposta do enigma

Em uma reflexão em um espelhoplano, a polarização circular é invertida.Ou seja, após refletir-se no espelho, a luzde polarização horária retorna com pola-rização anti-horária, e é esse fenômenoque explica o enigma apresentado nesseartigo. Quando você se olha no espelho,você está olhando para a luz que refleteno seu rosto, é refletida no espelho e entraem seu olho. Mas, quando há um filtropolarizador na frente do olho, a situaçãoé mais complexa. A luz que sai do olhoesquerdo (não polarizada) passa pelopolarizador horário e reflete-se no espelho,retornando com polarização anti-horária,só sendo capaz de atravessar o polarizadoroposto, localizado sobre o olho direito.Assim, cada olho enxerga a imagem doolho oposto.

Ao fechar um dos olhos, por exemploo esquerdo, a luz deixa de ser captada poresse olho. Resultado: a lente sobre o olhodireito (aberto) parecerá escura, pois vocênão está observando a luz que a atravessa!

Já o olho fechado, o qual continua refle-tindo luz, é observado normalmente peloolho aberto (parcialmente escurecido, de-vido à absorção de luz pelo polarizadorque cobre o olho fechado), pois nada sealterou para essa trajetória dos feixes deluz.

Esperamos ter demonstrado que ofato de um experimento ser simples nemsempre está correlacionado com uma res-posta imediata. Ao contrário, acreditamosque esse experimento oferece múltiplasabordagens didáticas, por permitir a in-clusão de um tema cotidiano (no caso, ocinema tridimensional) em um tópicoaparentemente tão formal e estéril quantoa polarização. Sem dúvida, as aparênciasenganam.

Notas1Não é possível obter uma foto real dofenômeno descrito, que só é visto pelopróprio observador que usa os óculos nafrente do espelho. Ou seja, para os obser-vadores externos (como a própria câme-ra), o efeito não é visível.2Também é possível a obtenção de fotostridimensionais sem o uso de polarizado-res, apenas com filtros coloridos. Aplica-tivos para celulares e câmeras digitais jáproduzem tais fotos automaticamente.Uma descrição detalhada de como se tirauma foto tridimensional com uma câmeracomum é fornecida por Lunazzi [4].3Uma oscilação em formato de elipse gerauma onda com polarização elíptica, a qualnão é discutida no presente trabalho.

Figura 9 – Projeção simultânea de duasimagens.

Figura 10 – Superposição de polarizadorescom orientação oposta.

Referências

[1] P. Tipler, P. Física (Guanabara Dois, Riode Janeiro, 1984), v. 2b, 2ª ed., p. 864-872.

[2] M. Cavalcante e C. Tavolaro, Física naEscola v. 77777:2, 73 (2006).

[3] C. Laburú, A. Simões e A. Urbano,Caderno Catarinense de Ensino deFísica v. 1515151515, 192 (1998).

[4] J. Lunazzi, Revista Brasileira de Ensinode Física v. 3333333333, 2304 (2011).