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GeoPUC – Revista da Pós-Graduação em Geografia da PUC-Rio Rio de Janeiro, v. 7, n. 12, p. 6-139, jan.-jun. 2014
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EXPRESSÕES E IMPRESSÕES DO CORPO NO ESPAÇO URBANO estudo das práticas de artes de rua como rupturas dos ritmos do cotidiano da cidade
Michel Philippe Moreauxi Mestre em Geografia Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Dissertação apresentada como requisito parcial para ob-tenção do grau de mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio
Data de aprovação: 24 de junho de 2013 Orientação: Dr. Alvaro Ferreira (orientador; PUC-Rio); Dr. Luciano Ximenes Aragão (coorientador; PUC-Rio) Banca examinadora: Dr. João Rua (PUC-Rio); Dr.ª Ana Fani Alessandri Carlos (USP); Dr.ª Mônica Herz (PUC-Rio)
Resumo
Nossa inquietação se situa na linha dos estudos urbanos influenciados, em particular, pelas reflexões de Henri Le-febvre acerca da sua crítica da vida cotidiana e da produ-ção do espaço. Nós apropriamos da ritmanálise, apresen-tada com maior profundidade no livro póstumo desse autor, Éléments de rythmanalyse: introduction à la con-naissance es rythmes. Essa abordagem nos permite consi-derar práticas sociais específicas, as práticas de artes de rua, como impressão de ritmos singulares na polirritmia do espaço urbano. Levamos especialmente em conta a expressão dos corpos, que nos faz conceber como as inter-venções de artes de rua têm o potencial de instaurar mo-mentos de encontros e de “festa” que modificam o espaço relacional e o imaginário urbano. A ritmanálise nos permi-te, segundo nossos termos, apreender a respiração - de expectadores e artistas, às vezes de forma sincrônica - no tecido urbano e a ressonância dos ritmos. Consideramos que essas práticas constituem uma restituição momentâ-nea do urbano. Situam-se num teatro mais amplo de ações que buscam repensar a cidade e reinventar o político, agindo concretamente nas tramas do espaço social.
Palavras-chave: prática social; ritmo; espaço urbano; artes de rua.
EXPRESSIONS ET IMPRESSIONS DU CORPS DANS L’ESPACE URBAIN: ÉTUDE DES PRATI-QUES D’ARTS DE RUE COMME RUPTURES DES RYTHMES DU QUOTIDIEN DE LA VILLE
Résumé
i Endereço institucional: Rua Marquês de São Vicente, n. 225. Edifício da Amizade, ala Frings, sl. F411. Gávea. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 22451-900. Endereço eletrônico: [email protected]
ISSN 1983-3644
Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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Cette étude se situe dans la lignée des études urbaines influencées notamment par les réflexions d’Henri Lefebvre autour de sa critique de la vie quotidienne et de la production de l’espace. Nous nous approprions de la rythmanalyse, présentée plus en détail dans un ouvrage posthume de l’auteur. Cette approche nous permet de considérer des pratiques sociales spécifiques, celles reliées aux arts de rue, comme l’impression de rythmes singuliers dans la polyrythmie de l’espace urbain. Nous portons ainsi une attention spéciale à l’expression des corps, à même de concevoir comment les interventions d’arts de rue ont le potentiel d’instaurer des moments de rencontre qui modifient l’espace relationnel et l’imaginaire urbain. La rythmanalyse nous permet, selon nos termes, d’appréhender la respiration – des spectateurs et des artistes, parfois en synchronie – dans le tissu urbain ainsi que la résonnance des rythmes. Nous considérons que ces pratiques permettent la restitution momentanée de l’urbain. Elles se situent dans un théâtre plus ample d’actions qui cherchent à repenser la ville et réinventer le politique en agissant concrètement sur les trames de l’espace social.
Mots-clés: pratique sociale; rythme; espace urbain; arts de rue.
1. Introdução
Esse estudo surgiu através de perambulações pela cidade. Dobra-se a esquina
de uma rua e no centro de uma praça encontramos um agrupamento de pessoas.
Um dos reflexos mais naturais é de se aproximar para ver o que está acontecendo.
Surpresa! As pessoas estão reunidas em volta de um “mágico”, que conta histórias
incríveis, simultaneamente conta piadas e realiza pequenos truques de magia. Seu
domínio da narração é perceptível: ele sabe aproveitar-se dos tempos, colocar o
público na expectativa antes de finalizar seu “número” e passar o tradicional chapéu.
Encontro singular.
Essas cenas se repetem: às vezes o autor desse estudo é o próprio protagonis-
ta. Músico de rua ou palhaço-aprendiz, essa energia que se espalha e se comunica é
apreendida concretamente, aprende-se a integrar o imprevisto que faz parte dessas
intervenções de arte de rua a céu aberto, sem bilheteria, abertas a todos os que pas-
sam naquele momento. Não raramente se formam momentos de um conteúdo par-
ticular, onde se observa certa comunhão entre o público e os artistas de rua, às vezes
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transeuntes participam mais ou menos ativamente, o que não deixa de suscitar o
entusiasmo do público. Esses momentos constituem o encontro de algumas das di-
versas trajetórias que atravessam o espaço urbano e estabelecem no lugar um tempo
suspenso, que foge da rotina do cotidiano.
A articulação entre a prática e a teoria se esboça aos poucos. Através dos es-
critos do filosofo francês Henri Lefebvre, as práticas de artes de rua aparecem então
na sua virtualidade de estabelecer no espaço umas das promessas do urbano: o en-
contro, a festa. Os elementos de ritmanálise (LEFEBVRE, 1992) se impõem –como
proposta metodológica - gradativamente para materializá-las, distinguir melhor es-
sas práticas na polirritmia ensurdecedora do espaço urbano e estimar assim sua sin-
gularidade e essas possibilidades que lhes são associadas.
Concebemos assim essas intervenções de artes de rua como a impressão de
um ritmo singular, que se materializa momentaneamente através de presenças e
relaciona os corpos através dos afetos.
A expressão dos corpos é fundamental, pois relaciona as pessoas que pro-
põem a intervenção com aquelas que colaboram através das suas contribuições
(embora simbólicas) no “chapéu do artista”, param para assistir e/ ou participar des-
ta. Os corpos dos artistas de rua seguem uma preparação física e emocional que faci-
lita as trocas de afetos. Percebe-se, portanto, o encontro entre uma diversidade de
pessoas, reunidas acerca de uma mesma intervenção, que vai se elaborando através
da ação dos corpos, mesmo se essa união é real, mas permanece precária (nem sem-
pre as pessoas param, principalmente no caso dos artistas individuais; sobretudo,
cada um fica livre de sair da roda quando quiser, participar do chapéu ou não…).
Cabe justamente aos artistas de rua suscitar o interesse dos transeuntes, formando
ou não rodas ou cortejos, espalhar a energia e a habilidade necessárias para manter
esse interesse ou provocar até o entusiasmo da multidão.
O corpo aparece aos poucos como a base de nossa observação sensível dessas
praticas, mas também a base empírica que permite a materialização destas e sua
propagação. Isso é perceptível ao nível material (no momento em que estas práticas
sociais vão acontecendo), por exemplo, pela formação de uma roda ou por trocas de
afetos ou participação no chapéu, mas também ao nível simbólico, onde intervém a
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noção de imaginário urbano. Consideramos os afetos sob diversas dimensões: a res-
piração “compartilhada”, quando o público retém seu fôlego para um número “peri-
goso”, ou respira de maneira mimética junto com o acrobata, ou ainda dá gargalha-
das junto com as brincadeiras do palhaço; a emoção, o riso e a reflexão relacionadas
à dramaturgia exposta pelos grupos de teatro de rua, vista num sentido largo (visual,
auditivo, textual…), a dança e os aplausos que acompanham os músicos de rua.
Essas práticas podem, aparentemente, parecer banais e insignificantes no
complexo processo de metropolização do espaço. Aparentam ter um impacto relati-
vamente reduzido frente às estratégias e dinâmicas que participam da produção do
espaço, sob uma lógica formal, que visa a reprodução das relações sociais de produ-
ção. No entanto, se levamos em conta a dimensão cultural desse processo de metro-
polização1, a categoria do cotidiano se torna aos poucos central para fundamentar
nosso estudo. Esses momentos, oriundos das intervenções de artes de rua, aos quais
assistimos no início com indolência, parecem se integrar de fato aos debates sobre a
programação do cotidiano. A perspectiva é a de que estas se estabelecem potencial-
mente como rupturas dos ritmos do cotidiano.
O cotidiano programado – visto sob o prisma da repetição linear, de cadên-
cias rotineiras, trajetos predefinidos, e submetido às injunções da sociedade do con-
sumo – se vê momentaneamente interrompido por um evento relativamente impre-
visto, que suspende ou modifica (mesmo que seja por um instante) as trajetórias de
numerosos transeuntes. Reconfigura, portanto, o espaço e as relações que aí se tra-
mam. Deixa emergir o vivido, que é parte do cotidiano, mas cujas realizações ten-
dem a ser atrofiadas pela dominação do cotidiano por lógicas normatizadoras. Essas
práticas de artes de rua podem ser consideradas como residuais, mas são concretas e
ganham visibilidade no espaço urbano. Baseiam-se numa realidade conjuntural do
espaço urbano, afirmando-se como descontinuidades nos fluxos do cotidiano e dei-
xando aparecer possibilidades de um espaço relacional.
1 De acordo com Sandra Lencioni, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante a conferência de abertura “Metropolização do espaço: processos e dinâmicas”, no dia 5 nov. 2012.
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Relacionamos essas práticas com as práticas urbanas, tais como as descreve
Henri Lefebvre (1999), pois as percebemos como práticas criativas que relacionam
os corpos a diferentes escalas: corpo individual, corpo coletivo, corpo urbano. Essas
práticas remetem a poiesis, pois estabelecem outra maneira de experimentar o espa-
ço e instauram novas formas de relações sociais e espaciais (mesmo que momentâ-
neas), ao nível do vivido, da percepção, nos convidando também a vislumbrar novas
maneiras de conceber o espaço urbano. No entanto, longe de nós está a idéia de
descrever essas práticas sociais como novas: são seculares, tomaram diferentes for-
mas e colocaram em movimento diferentes conteúdos ao longo da historia da hu-
manidade. Desejamos abordá-las no contexto urbano atual, tanto como possibilida-
des de transformação do real, quanto como práticas ainda pouco estudadas nos es-
tudos geográficos.
Neste estudo, nós consideramos uma ampla diversidade de artistas de rua:
desde os malabaristas itinerantes, estátuas vivas, palhaços, poetas e músicos de rua,
até os grupos de teatro de rua. Assim, observa-se conjuntamente diversas situações,
que podem remeter a artistas autônomos que se situam mais dentro de lógicas de
sobrevivência e/ou de marginalidade, até grupos ou indivíduos mais ou menos insti-
tucionalizados, suscetíveis de receber verbas do poder público e articular mais poli-
ticamente o movimento de artes de rua. Nos parece que existem várias pontes entre
esses dois extremos, até porque a rua proporciona encontros, trocas de saberes e de
informações, cria afinidades (ou não) ligadas às práticas, parcerias ocasionais, hos-
pedagem solidário e convivências. Sobretudo, todos têm em comum uma prática
que tem como elemento essencial o corpo e sua capacidade de afetar e ser afetado.
Todas essas artes poderiam ser contempladas pela noção de artes cênicas2, pois os
artistas fazem concretamente uso do seu corpo para elaborar suas intervenções, tra-
balhando nele para constituir seu saber e colocando-o em movimento para realizar
suas intervenções, que supõem a troca de afetos. Portanto, não abordamos aqui as
2 O termo “spectacle vivant”, isto é, “espetáculo vivo”, que retrata esse tipo de práticas cênicas “em movimento”, foi um termo adotado na França para retratar práticas tais como o circo, teatro, artes de rua (mas não exclusivamente). Ele não está divulgada nem conhecida no Brasil, por vários motivos que não precisam ser aprofundados aqui. Portanto, não adotamos aqui esse termo, entretanto, este não deixa de explicitar de outra maneira a amplitude das práticas que pretendemos focar neste estu-do.
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artes plásticas e gráficas (grafiteiros, caricaturistas, pintores, artistas plásticos…),
mesmo que se organizem e tenham ações visíveis no espaço urbano.
Ao longo das perambulações e dos encontros com numerosos artistas de rua,
começamos a perceber que existe certo grau de consciência por parte desses atores
sociais, da maneira segundo a qual podem ser interrompidos os fluxos do cotidiano,
mas também através do teor dos seus discursos e as intencionalidades relacionadas
asuas práticas.
De certo modo, essas rupturas dos ritmos do cotidiano, que nosso estudo
busca explicitar e inscrever numa perspectiva geográfica, têm como resultado deixar
aflorar as virtualidades do urbano. Essas práticas propõem uma redefinição do ur-
bano, segundo os termos lefebvrianos, como lugar da simultaneidade e do encontro.
Consideramos, portanto, as intervenções de artes de rua como momentos, situações
e eventos que modificam as trajetórias, os fluxos e os ritmos do cotidiano e tendem
a ressignificar os lugares e os próprios sujeitos, isto é, a experiência urbana e o pró-
prio urbano.
Pensar a forma urbana revelou ser complexo. Com efeito, o advento do urba-
no é sujeito a múltiplas tensões. A racionalidade herdada da sociedade industrial,
ainda vigente na lógica dominante, preside à planificação e à organização do espaço
urbano. Precisa-se ter em mente a contradição fundamental entre o valor de uso e o
valor de troca. O valor de uso não deixa de ser presente em vários conteúdos da rea-
lidade contemporânea, enquanto a lógica formal que configura o espaço urbano
tende a negar numerosas dimensões do vivido, notadamente este valor de uso.
Pensar a articulação entre o concebido e o vivido se torna crucial, pois enten-
demos que é fácil denegrir o urbanismo dominante, ao nível da teoria, mas não po-
demos negar que a operação de planificar concretamente e materialmente o espaço
urbano é extremamente complexa. Sem dúvida, os urbanistas que agem diretamente
sobre o real não menosprezam inteiramente a dimensão do vivido. Mas cabe questi-
onar a própria lógica que orienta tais empreendimentos: é uma lógica que leva mais
(ou até unicamente) em conta o valor de troca que o valor de uso do espaço concre-
to. Assim, Jacques (2007, 2009) apropria-se em parte das reflexões dos situacionistas
acerca do urbanismo unitário e mostra até que ponto o campo da experiência, da
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vivência e da corporeidade é pouco considerada pelo urbanismo contemporâneo.
Mesmo se essas dimensões nos pareçam sempre mais presentes no discurso e nas
imagens que “vendem” os grandes projetos urbanísticos atuais3, acreditamos que
precisa-se desmitificar esses simulacros, pois ficam escondidas as verdadeiras estra-
tégias, intencionalidades e ações concretas que tendem em constituir um espaço
abstrato, que atrofia a riqueza do vivido, na fase de concepção e de realização de tais
projetos urbanísticos.
Portanto, estamos convencidos que ainda é oportuno elaborar uma crítica
acerca da lógica elaborada por Lefebvre. A nosso ver, as críticas de Lefebvre sobre o
urbanismo do seu tempo foram em grande parte levadas em conta, aparentemente,
na concepção e formalização de projetos urbanos mais recentes. Mas o que persiste,
é essa lógica formal que somente tem o valor de troca como último foco. Acaba im-
pondo formas que levam pouco em conta a riqueza da forma urbana. Poderíamos
até argumentar, seguindo as reflexões levantadas ao longo da crítica da vida cotidia-
na que formulou esse autor ao longo de quatro décadas (LEFEBVRE, 1961, 1981,
1992), que essa lógica se tornou ainda mais perversa, que está em curso mais que
nunca, pois tende a mercantilizar os menores aspectos do vivido, visto que as for-
mas de dominação do cotidiano se apresentam sempre mais elaboradas. Essa lógica
é real, ela se materializa constantemente e se reconfigura sem parar. Estabelece-se a
partir de estratégias que se apóiam notadamente sobre novas políticas dos afetos
(THRIFT, 2004). Isso apresenta necessariamente entraves à plena expressão do fe-
nômeno urbano, tal como estamos levados a pensar, perceber e vivê-lo concreta-
mente.
Considerar o urbano, tal como o concebe H. Lefebvre, consiste em acreditar
nessas possibilidades que ele enxerga, que são as do encontro. Isso não é especula-
ção, pois essas possibilidades estão presentes no real, e as experimentamos, isso faz
parte da nossa vivência da cidade. No entanto, vale ressaltar a importância da práxis,
como mediação entre o concebido e o vivido, que considera as capacidades de trans-
3 De acordo com Alvaro Ferreira, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante as discussões da mesa 1, “Metropolização e planejamento estratégico: o que fazer?”, no dia 5 nov. 2012.
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formação presentes no real. O pensador e o pesquisador se tornam atores, não po-
dem separar seu pensamento e sua teoria da concretude do real. Temos consciência
da seriedade de tais implicações numa abordagem científica, no seio da geogra-
fia. Necessário se faz sempre atualizar e colocar em prática esses pressupostos. Tra-
ta-se de evitar o uso de conceitos engastados, que se afastariam do movimento do
real, da modificação dos conteúdos em movimento. H. Lefebvre enfrentou o mar-
xismo “oficial” na França da sua época, pois este tendia a deter a fertilidade do mate-
rialismo histórico, tal como Marx o desenvolveu, enquanto método. Essa corrente
do marxismo, que entrou aos poucos em certo descrédito até hoje, não pode des-
prestigiar as virtudes da dialética, tal como inspira nosso estudo. É fato também que
Lefebvre refinou seu método, influenciado pelo contexto da sua época (HESS, 2009),
mas, sobretudo, porque refletia justamente sobre o movimento do real, as evoluções
do capitalismo, recuperando inclusive textos pouco citados de Marx, tendo em vista
o movimento perpétuo da totalidade.
Essa noção de totalidade foi fundamental para nossa apreensão do método
dialético, pois nos fez entender que o materialismo histórico consiste finalmente em
prestar uma atenção particular ao vivido. Através da noção de totalidade, podemos
considerar o vivido como atualização do conjunto das possibilidades existentes no
“viver” (BIHR, 2009a, 2009b). O método dialético articula conceitos que levam em
conta a realidade e seu movimento, ao passo que indicam a amplitude das suas pos-
sibilidades. Recusa o determinismo e permite ao sujeito histórico se sentir ator da
transformação. Promove o pensamento como um meio de incentivar essa transfor-
mação do real, desmitificando a dominação de uma lógica que valoriza unicamente
o valor de troca e tende à alienação completa dos indivíduos.
Na perspectiva da geografia, a visão que Lefebvre (1955) elabora sobre a noção
de totalidade nas ciências sociais está de acordo com a visão que Milton San-
tos (2009), desenvolve quando propõe levar em conta o movimento de totalização
como atualização da totalidade. As possibilidades reais que formam a totalidade
somente se realizam pela ação, que une o Universal ao Particular. Por isso nossa re-
flexão geográfica almeja valorizar as ações que deixam aparecer a diferença no seio
do real e permitem explorar novos modos de afirmação do urbano, como lugar de
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encontro e da simultaneidade. No entanto, temos em mente que as mudanças ope-
radas no seio do real não são homólogas, tem cada uma seu valor relativo. Além dis-
so, o papel do simbólico e da ideologia no movimento da totalidade se aplica especi-
ficamente ao âmbito desse estudo, pois consideramos notadamente o espaço públi-
co e a rua como objetos de luta, ao nível da sua apropriação concreta e material, mas
também ao nível do imaginário urbano (HIERNAUX, 2008).
A noção de ritmo se impôs aos poucos para explicitar certas possibilidades
inscritas no espaço mas, no entanto, pouco levadas em conta, tais como as práticas
de artes de rua. De um lado, esse conceito nos incentiva pensar com moldes novos o
espaço urbano, renovar o imaginário geográfico, ao passo que o processo de metro-
polização realiza uma verdadeira metamorfose do espaço e da maneira segundo a
qual deve ser pensada4. Lefebvre (1992, p. 30) descreve o ritmo como capaz de ope-
rar um “pensamento da metamorfose”, unindo notadamente o natural e o social e
permitindo tratar de vários objetos, se opondo justamente a certos conformismos da
filosofia. O ritmo é descrito como mera ferramenta de análise, que permite articular
o vivido e o concebido para que a análise crítica possa propor uma real possibilidade
de transformação do real.
Com efeito, a ritmanálise permite isolar um ritmo. Foca, em particular, o “ir-
redutível” presente no cotidiano, valoriza a presença frente ao simulacro do presen-
te. Relativiza também os ritmos dominantes para mostrar as possibilidades inscritas
no “campo cego” da racionalidade dominante (LEFEBVRE, 1999, p. 33-50). Portanto,
nos pareceu um ótimo método de análise para tratar de práticas sócio-espaciais que
se concretizam como apropriação da cidade e realização da vida (CARLOS, 2007, p.
11).
Na ótica do nosso estudo sobre práticas de artes de rua, a ritmanálise nos
permitiu focar sobre a realização de momentos que instauram outra temporalidade,
desafiando o aspecto linear das repetições inscritas no cotidiano do espaço urbano.
4 De acordo com Amélia Damiani, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante a conferência de abertura “Metropolização do espaço: processos e dinâmicas”, no dia 5 nov. 2012.
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É nesse sentido que valorizamos a idéia de impressão dos ritmos, que se opera atra-
vés de uma dissipação de energia e se inscreve nas tramas do espaço / tempo.
Pareceu-nos, então, que a ritmanálise permitia nitidamente a Henri Lefebvre
sintetizar muitas das suas reflexões sobre o cotidiano. Por isso, relacionamos delibe-
radamente essa noção à teoria dos momentos, que o autor elabora também ao longo
da sua obra (HESS, 2009). Não resta dúvida que isso nos permitiu definir melhor o
potencial que as intervenções de artes de rua têm para instaurar o encontro e a festa
através da ação dos corpos.
A noção de ritmo nos levou também a tecer um diálogo com outros autores
que têm bases teóricas um pouco distintas, porém, complementares para tratar do
nosso objeto de estudo. Quando Massey (2004, 2008) evoca uma multiplicidade de
trajetórias e declara que o espaço não é mera superfície, nos aproximamos da con-
cepção de polirritmia, um conjunto de ritmos distintos, que formam um todo, mas
não têm a mesma intensidade, a mesma medida, a mesma escala de ação, a mesma
intencionalidade e capacidade a ser percebida e ressentida no espaço urbano. Reco-
nhecer essa polirritmia vai ao encontro de conceber e experimentar o espaço como
sendo aberto, rico de multiplicidades.
O ritmo nos interessa também pela evocação que permite do impacto e da
“propagação” das práticas de artes de rua que abordamos. Esse conceito restitui do
melhor jeito o potencial dessas práticas sociais. De um lado, almejamos retratar es-
sas intervenções de artes de rua como momentos de “respiração” do tecido urbano.
A unidade da presença e da ausência, que podemos apreender durante certas situa-
ções ocorridas, inspiraram essa leitura da suspensão do tempo que essas práticas
podem instaurar, como rupturas dos ritmos do cotidiano. De outro lado, precisamos
conceber a “ressonância” desses momentos no espaço urbano, tanto em relação ao
corpo urbano, quanto em relação ao corpo dos diferentes atores sociais que tomam
parte, de longe ou de mais perto, em tais momentos.
Assim, a riqueza do conceito se reafirma ao longo do nosso estudo. Isso ex-
plica a atenção particular que prestamos ao livro Elementos de ritmanálise – Intro-
dução ao conhecimento dos ritmos (LEFEBVRE, 1992). Ademais, desejamos colocar a
noção de ritmo em perspectiva, para que se possa esclarecer também nossa escolha
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de dar importância a outras categorias tais como o cotidiano, o corpo, os momentos,
o urbano e o político.
A noção de ritmo orientou também nossa abordagem da pesquisa empírica, a
maneira como estudamos as práticas de artes de rua. Com efeito, H. Lefebvre (1992,
p. 42) insiste sobre o fato que, antes de se analisar, um ritmo deve ser “capturado”
pelos sentidos do ritmanalista. Isso nos levou a organizar uma intensa pesquisa ex-
ploratória.
Assim, desenvolvemos uma pesquisa empírica através de uma prática cons-
tante e variada, enquanto músico de rua e aprendiz-palhaço, sobretudo na cidade do
Rio de Janeiro e no Estado do Rio de Janeiro, mas também viajando por Santos, São
Paulo, Recife, Salvador e João Pessoa. Tudo isso nos permitiu encontrar diversos
artistas de rua, parceiros ou encontros casuais, e conseqüentemente trocar impres-
sões com eles ou junto com o público que assistia. Também nos permitiu experien-
ciar a essência de certos momentos, plenamente vividos ou compartilhados. Essa
experiência pessoal se desdobrou numa atenção redobrada vendo muitas outras in-
tervenções na rua, prestando atenção às reações do público, à receptividade e à par-
ticipação que acaba acontecendo, de múltiplas maneiras.
Por outro lado, tivemos a oportunidade de participar de dois encontros da
Rede Brasileira de Teatro de Rua – a RBTR5, em Teresópolis em 2011 e em Santos em
2012. Conhecemos uma rede muito interessante, pessoas envolvidas no movimento
de teatro de rua pelo Brasil. Com efeito, pode se articular em várias escalas e evoca-
mos regularmente a Rede ao nosso redor, ao passo que encontramos outros articu-
ladores com os quais era possível saber mais sobre as atividades concretas e a cons-
ciência que o movimento da rede proporciona e o interesse que suscita. Sentimos
que se exercia e se organizava um agir “político” por articulação, se nos referirmos às
considerações teóricas de Pogrebinschi (2007, p. 123). Também fomos levados a par-
5 A Rede Brasileira de Teatro de Rua, na sua Carta de Teresópolis (2011), resume o sentido da sua exis-tência e da sua atuação: “A Rede Brasileira de Teatro de Rua – RBTR, criada em março de 2007, em Salvador/Bahia, é um espaço físico e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. Todos os grupos de teatro, artistas-trabalhadores, pesquisadores e pensadores envolvidos com o fazer artístico da rua, pertencentes a RBTR podem e devem ser seus articuladores para, assim, ampliar e capilarizar, cada vez mais reflexões e pensamentos, com encontros, movimentos e ações em suas localidades […].”
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ticipar regularmente do Grupo de Trabalho “Arte Pública”, que acontece semanal-
mente na casa do grupo de teatro de rua “Tá Na Rua” - Rio de Janeiro, dirigido pelo
teatrólogo Amir Haddad. Encontramos membros do circo-teatro de rua do Rio de
Janeiro; sobretudo, seguimos e participamos do processo de luta desses atores soci-
ais, que tiveram, em particular, a conquista da Lei do Artista de Rua do município
do Rio de Janeiro, que libera as práticas de artes de rua no espaço público.
Ao longo desses encontros todos, tivemos acesso a uma documentação valio-
sa, elaborada por grupos e coletivos de teatro de rua de diversas cidades do Brasil.
As considerações dramatúrgicas e espaciais contidas nesses documentos – a maioria
em livre acesso na Internet – suscitaram nosso interesse. Descobrimos a pertinência
e a riqueza das discussões em curso, que dialogam diretamente com nossas perspec-
tivas geográficas. Por isso, decidimos valorizar esse material, colocando estes em
destaque em alguns momentos do nosso estudo. Nosso intuito é, assim, mostrar que
isso remete a praticar a inter-disciplinariedade, seguindo as recomendações de Le-
febvre (1992) e Hiernaux (2008), e também aproveitar esse material, que é fruto de
muitas reflexões conjuntas, de muitos debates e permite sintetizar vários elementos
que constituem a essência dessas práticas de artes de rua. Ademais, não achamos
útil citar falas de pessoas que encontramos em nosso caminho, ou ouvidas em reu-
niões. Seria tirar estas do contexto, sem restituir o momento em que foram pronun-
ciadas. Preferimos deliberadamente sintetizar, através da elaboração desse estudo, o
teor de todos esses encontros, assim como destacar tensões que não deixam de
transparecer dentro de um movimento tão diverso e de tal magnitude. Muitas vezes,
algumas falas dialogavam muito com nossas indagações, ou esclareciam alguns as-
pectos e fortaleciam nossa proposta.
A nosso ver, não deixa de existir uma tensão entre os grupos organizados –
numa certa medida, em via de institucionalização ou já institucionalizados – e os
artistas mais “autônomos” (viajantes, solitários ou mini-grupos). No entanto, exis-
tem, sobretudo, muitas passarelas. Nos diversos encontros do movimento de teatro
de rua, sempre houve a presença de membros autônomos. O dialogo é intenso. Al-
gumas pessoas pertencem as duas “vertentes”. Sobretudo, existe muitos pequenos
grupos autônomos através do Brasil, que podem ser levados a apropriar-se das refle-
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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xões elaboradas notadamente pela RBTR, receber também o apoio dessa rede para
fortalecer suas reivindicações ou articular-se a outros grupos para desenvolver suas
práticas. O limite entre profissionalismo e amadorismo nos parece até por vezes ir-
relevante, pois há muita porosidade nesse aspecto também. Isso remete a considera-
ções acerca da partilha do sensível (RANCIERE, 2005). Enxergamos, portanto, as
práticas de artes de rua com seu potencial de práticas políticas que afirmam a cida-
dania no espaço público.
Mostraremos até que ponto nossas considerações geográficas encontram um
eco nas analises teóricas do movimento de teatro de rua, mesmo se as bases teóricas
podem ser diferentes. Certamente a apreensão do real e o teor desses momentos
concretamente vividos permitiram criar essa afinidade nos pontos de vista expostos.
No capítulo 2 desse estudo, desejamos primeiro explicitar a relação entre a
programação do cotidiano e a produção do espaço. Isso remete a evocar a lógica
formal que orienta a reprodução das relações sociais de produção, tema crucial já
bastante tratado nos estudos urbanos. Cabe, para tratar da forma mais adequada das
práticas de artes de rua, evocar mais em detalhe a dimensão corporal dessa aliena-
ção e mostrar ao mesmo tempo como a escala corporal permite vislumbrar novas
formas de ação, capazes de desafiar a lógica dominante. Assim, prestamos uma
atenção especial às trocas de afetos e à dissipação de energia. Isso nos leva a assimi-
lar as intervenções de artes de rua como momentos, na linha das reflexões desenvol-
vidas por Henri Lefebvre. Destacamos certas noções que permitem entender melhor
a abrangência do momento, tais como a presença, a obra e a situação. Isso nos pare-
ce adequado para tratar teoricamente das práticas de artes de rua. Acabamos insis-
tindo sobre o potencial de ressignificação momentâneo do espaço dessas praticas,
tanto ao nível material, quanto ao nível do imaginário urbano.
Considerar, assim, o cotidiano como lugar da transformação através da ação
dos corpos nos permite, no capítulo 3, introduzir a noção de ritmo. Apresentamos
de maneira densa e sintética as possibilidades oferecidas pela ritmanálise, tal como
Henri Lefebvre a esboça. Em seguida, construímos um diálogo direto com nosso
objeto de estudo. Relacionamos, em particular, a noção de trajetórias e a polirritmia
do espaço. Desejamos mostrar que as práticas de artes de rua permitem tecer um
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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espaço relacional baseado sobre o encontro e que leva em conta as diferenças. Ten-
tamos, portanto, nos apropriar da noção de ritmo, notadamente através das idéias
de ressonância e de respiração, que nos parecem poder explicitar melhor as possibi-
lidades de impressão de ritmos, através dessas práticas.
Finalmente, desejamos tratar dessas práticas por um viés mais político, expli-
citando o projeto inscrito nesses ritmos que definimos. Por isso, mostramos que res-
significam a própria noção de espaço público, através de uma apropriação concreta
da cidade por práticas artísticas. Levantamos algumas considerações sobre as especi-
ficidades das práticas observadas, que colocam isso em movimento, tratando dos
aspectos dramatúrgicos, que permitem uma comunhão dos afetos e uma ressignifi-
cação momentânea dos lugares. Evocamos, então, a possibilidade de uma educação
política do espaço, que parece presente na idéia de Arte Pública, tal como está le-
vantada por certos coletivos de artes de rua. O trabalho dos artistas de rua questio-
na, sobretudo, a partilha do sensível no seio do espaço urbano, o que nos leva a tra-
tar da relação entre arte, espaço e política. Isso conclui nossa reflexão sobre o urba-
no e sobre a necessidade de unir o trabalho manual e intelectual, para estabelecer
uma democracia sempre mais direta e verdadeira, que gera concretamente um espa-
ço vivido, como Lefebvre o formulava (LEFEBVRE, 1986, p. 173).
2. O cotidiano é o lugar da transformação através do corpo
Todas as teorias, todos os poemas Duram mais que esta flor Mas isso é como o nevoeiro, que é desagradável e úmido, E mais que esta flor… O tamanho ou duração não tem importância nenhuma… São apenas tamanho e duração… O que importa é aquilo que dura e tem dimensão (Se verdadeira dimensão é a realidade)… Ser real é a cousa mais nobre do mundo.
Alberto Caeiro
O cotidiano muda constantemente, de acordo com sua época. Através de sua
obra, dividida em três volumes sobre a crítica à vida cotidiana, Lefebvre (1981) se
empenha em anotar as transformações que ele enxergou na área cultural e temporal
em que vive. Isso é de grande importância para nós, já que consiste em não deter-
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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minar características preconcebidas, a priori, do que pode ser o cotidiano. O cotidi-
ano é um conceito operacional, pois permite uma analise crítica do “real” (LEFEB-
VRE, 1981, p. 27). Nos permite, antes de tudo, enxergar o vivido e trazer à tona pos-
sibilidades de transformação inseridas nele: Este é o sentido da apropriação do coti-
diano no nosso pensamento teórico.
2.1. A programação do cotidiano
2.1.1. A alienação do cotidiano
O cotidiano é um objeto multidimensional, que modifica-se pelas ações do
conjunto dos atores sociais. Alguns têm mais poder de transformação que outros:
por exemplo, a ideologia do consumo está notadamente veiculada pelas mídias do-
minantes, que estendem sua teia à escala planetária, pelo viés da imagem que esva-
zia o presente da sua substância e remove dele a presença, instaurando o simulacro
(LEFEBVRE, 1992, p. 66). Essas mídias participam assim da dominação do cotidiano
numa lógica mercantil que remove particularmente a capacidade de diálogo. A lógi-
ca de produção do espaço como lugar de reprodução das relações sociais de produ-
ção condiciona diretamente essa programação do cotidiano:
Há dominação pela lógica. É o espaço formal que impera. O cotidiano e o vivido lhe escapam. Ou melhor, programa-se o cotidiano. Lugares neutrali-zados, higiênicos e funcionais, como as avenidas, voltadas para a circulação do automóvel. Toda a racionalidade econômica e política pesa sobre o co-tidiano, enquanto vivido. (DAMIANI, 1999, p. 52)
Uma perspectiva sobre a crítica da vida cotidiana permite, em geografia, tes-
temunhar as assimetrias de poder que têm como conseqüência aniquilar a liberdade
de ação efetiva de numerosos indivíduos. Lefebvre (1981, p. 31) chama isso de repeti-
ção linear que se impõe a eles e nos adverte também que é através de cada um de
nós que se renova, se transforma e se estabelece o cotidiano, que vê incontestáveis
satisfações acopladas à um profundo mal-estar. Soja (1996, p. 35) afirma que a gran-
de contribuição de Lefebvre ao pensamento marxista reside na reorientação da re-
flexão acerca do cotidiano como primeiro lugar de exploração, da dominação e da
luta. Lefebvre junta isso com reflexões sobre o poder, quando declara que o poder é
onipresente e se estende até o fundo da consciência de cada individuo.
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O Poder aparece de várias maneiras: à vezes pelo tédio, mas sempre em meio do tédio. Todavia, ele estendeu o seu domínio até o interior de cada indivíduo, até o fundo da sua consciência, até as “topias” escondidas nos recessos da sua subjetividade. (LEFEBVRE, 1977, p. 210)
Em paralelo deste cotidiano programado, nos tornamos cúmplices da perpe-
tuação das relações de poder estabelecidas. Parece ainda mais difícil lutar contra
essa perpetuação do Capital através dos atos cotidianos na medida em que os meno-
res aspectos do cotidiano tornam-se apropriados na lógica mercantil de acumulação.
Podemos citar, por exemplo, a incorporação do tempo de lazer ou também a religio-
sidade à lógica consumista. Se existem dinâmicas de homogeneização do espaço, é
na realidade graças à sua fragmentação que o espaço se transforma na sede do poder
(LEFEBVRE, 1977, p. 208).
O espaço de lazeres constitui um bom exemplo dos espaços especializados
que só contribuem para reforçar os poderes dominantes. Vaneigem alcança as mes-
mas conclusões quando afirma: “uma mesma energia arrancada do trabalhador du-
rante suas horas na fábrica ou nas horas de lazer faz rodar as turbinas do poder, que
os detentores da velha teoria lubrificam beatamente com a sua contestação formal”
(VANEIGEM, 2002, p. 31). Carlos (1999, p. 71) ressalta essa discussão, quando aponta
a contradição “espaço de consumo – consumo do espaço”: lugares são requalificados
como espaços de lazer / turismo, o espaço se tornando assim uma nova raridade.
Já foi muito comentado a maneira segundo a qual a sociedade do consumo
ergue-se como um sistema que aliena o indivíduo, mesmo que apresente um discur-
so de gozo e de libertação. Como os Situacionistas, Lefebvre elabora uma crítica
contra a ideologia do consumo e contra o processo de alienação. Essa crítica foca na
desilusão que acompanha o ato de consumir. Como afirma Lefebvre,
O ato de consumir é um ato imaginário (portanto, fictício) tanto quanto um ato real (sendo o próprio “real” dividido em pressões e apropriações). Ele adquire então um aspecto metafórico (a felicidade em cada bocado, em cada erosão do objeto) e metonímico (todo o consumo e toda a felicidade de consumir em cada objeto e em cada ato). Não seria grave se o consumo não se apresentasse a si mesmo como ato pleno, como atualidade, inteiro à parte, sem trapaça, sem ilusão. (LEFEBVRE, 1991, p. 100)
Vaneigem (2002, p. 94) formula também que os bens de consumo também
não são alienantes em si, é a ideologia que os cerca que implica a alienação do con-
sumidor, que se torna dependente e passivo. Baudrillard associa direitamente os
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lazeres a uma cotidianidade subserviente, que na realidade é um tempo obrigatório
que não deixa de participar da lógica da produção e do consumo.
“O tempo do consumo é o da produção. Revela-se como tal, na medida em que se reduz a simples parêntese ‘evasivo’ no ciclo da produção. Diga-se mais uma vez, esta complementaridade funcional (diversamente partilhada segundo as classes sociais) não constitui a sua determinação essencial. O lazer é forçado na medida em que, por detrás da aparente gratuidade, re-produz fielmente todos os constrangimentos mentais e práticos do tempo produtivo e da quotidianidade escravizada.” (BAUDRILLARD, 1995, p. 164)
Segundo esse autor, o mesmo processo de racionalização das forças produti-
vas que aconteceu no século XIX, isto é, na época de Marx, alcança hoje seu clímax
através da organização do consumo dirigido nas nossas sociedades. Portanto, a fun-
cionalização do espaço e sua fragmentação para poder controlar até os menores as-
pectos do cotidiano deixam aparecer, de maneira insistente, a contradição entre va-
lor de uso e valor de troca:
“Desse modo, mesmo no momento do lazer, o cotidiano programado pela sociedade de consumo se impõe com toda sua força. E, assim, lugares ga-nham uma centralidade saturada de objetos, logo, vazias de sentido. Neste contexto, aparece em conflito agudo uso/troca, pois quanto mais um espa-ço é funcionalizado e mais ele é dominado por agentes que o manipulam, menos ele se presta à apropriação para o uso, posto que se encontra fora do tempo vivido, mas confinado ao universo da troca” (CARLOS, 1999, p. 70)
Lefebvre (1981, p. 85-89) descreve como a programação do cotidiano se espa-
lha pelo espaço. O modo de produção capitalista, já descrito por Marx, se estende à
escala mundial e vê notadamente o advento da divisão planetária do trabalho e o
estabelecimento de uma cotidianidade. Essa lógica instaura-se através dos usos do
tempo. Lefebvre declina então a sua tríade hierarquização-fragmentação-
homogeneização aplicada ao tempo:
Tempo cotidiano homogêneo: a medida abstrata do tempo determina a prática social. Tempo cotidiano fragmentado: atomizado pelas desconti-nuidades brutais, resíduos dos ciclos e ritmos rompidos pela linearidade dos procedimentos da medida, atividades desconectadas, mesmo que submetidas à um ordenamento geral, decretado de cima. Tempo cotidiano hierarquizado: desigualdade das situações e dos instantes, certos passando como muito importantes e outros comoinsignificantes, segundo aprecia-ções mal justificadas, elas mesmas em crise. (LEFEBVRE, 1981, p. 85, tradução nossa)
2.1.2. Pensar a apropriação do espaço através do conceito de cotidiano
A abertura do conceito de cotidiano nos coloca ao mesmo tempo como atores
das transformações possíveis e a análise permite ressaltá-lo, observando as mesmas
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práticas do cotidiano, sujeitas à lógica de programação que acabamos de resumir.
Várias práticas, que De Certeau (1990, p. XLVI) chama de táticas, demonstram que
no dia a dia, os atores sociais conseguem se sobrepor à estratégia hegemônica dos
dominantes: praticar a arte do “desvio”, de aproveitar “ocasiões”, tratando-se de prá-
ticas tão diversas como as práticas religiosas, a linguagem popular, a arte de cozi-
nhar ou usar objetos diferentemente daquilo para que foram “concebidos”. Metodo-
logicamente, esse autor considera que essas práticas são pouco encaradas pelos mé-
todos estatísticos positivistas que fragmentam analiticamente o que eles se propõem
retratar e conseqüentemente somente encontram resultados homogêneos. O cotidi-
ano, por ser programado, não deixa de apresentar mais diversidades e possibilidades
de práticas do que se pensa. Percebemos todas as potencialidades inscritas no coti-
diano: mesmo que este possa ser considerado como um lugar central de alienação,
ele contém também condições de resistência. Estas têm lugar nas brechas e nos in-
terstícios do espaço dominado. Como salienta Lefebvre:
“Se o espaço se torna lugar da re-produção (das relações de produção), torna-se também lugar de uma vasta contestação não localizável, difusa, que cria o seu centro às vezes num sitio e logo noutro. Essa contestação não pode desaparecer, pois é o rumor e a sombra prenhe de desejo e de ex-pectativa que acompanham a ocupação do mundo pelo crescimento eco-nômico, pelo mercado e pelo Estado.(LEFEBVRE, 1977, p. 209)
No entanto, o mesmo autor mostra que essas táticas do cotidiano pesam, às
vezes, pouco frente à lógica dominante de reprodução das relações sociais de produ-
ção. Esses desvios, esses focos de resistência permanecem frágeis para afetar o fun-
cionamento da lógica capitalista. Para interferir nestes ritmos dominantes, é obvio
que o impacto de um único indivíduo permanece relativamente modesto. No entan-
to, neste estudo retrataremos as práticas individuais e coletivas dos artistas de rua,
mostrando que na verdade elas constituem práticas que tem o potencial de espacia-
lizar momentos de jogo e de encontro no espaço. Um artista individual consegue
isso, mas não está isolado do resto das outras práticas de artes de rua que constitu-
em tantos teatros de ação pelo espaço urbano.
Lefebvre (1981, p. 32) tinha destacado que a subversão, tal como foi formulada
por ele mesmo e os situacionistas nos anos 60, com seu lema “Mudar a vida!” tinha
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encontrado seus limites frente à complexidade das formas de dominação do capital6.
Não vamos menosprezar essas considerações. Ao contrário, tentamos sempre ter
estas em mente. Mas vários elementos nos levaram justamente a tentar valorizar o
olhar que as leituras de Lefebvre nos indagaram. Assim, teremos que voltar ulteri-
ormente sobre a distinção entre a apropriação do espaço, que consegue se inscrever
no espaço, e o desvio que somente tem um impacto restrito no processo de produ-
ção do espaço.
No desenrolar do pensamento de Lefebvre, é justamente as reflexões acerca
das práticas no espaço que permitem enxergar as possibilidades de transformação: é
pela produção de um espaço apropriado que a transformação do cotidiano se torna
possível.
Uma vez formuladas essa ressalvas acerca da possibilidade de transformar o
cotidiano, cabe efetuar uma escolha metodológica, e seguir as recomendações des-
ses dois últimos autores. Nos parece que estes, mesmo tendo cada um seu próprio
posicionamento metodológico, se juntam para nos incentivar a um repensar da es-
pacialidade, através das praticas cotidianas que se apresentam nas brechas e nos
interstícios do cotidiano programado. Assim, De Certeau (1990, p. 78-79)7 deseja
completar as análises desenvolvidas por Foucault sobre a sociedade do controle,
partindo de outro ângulo de análise: ele escolhe pensar o cotidiano a partir dessas
táticas - que ele distingue das estratégias da lógica dominante - que não deixam de
jogar com as organizações espaciais e modelar o espaço do seu jeito próprio. Ele
descreve a instauração de certo conceito da cidade através de um discurso utópico e
urbanístico da cidade (DE CERTEAU, 1990, p. 142-146)8. Ele critica-o ressaltando seu
6 O autor ilustra isso, por exemplo, pelo uso da calça jeans, símbolo de liberdade, de independência nos anos 60, e que não deixa de ser também um símbolo de exploração de outros trabalhadores (LE-FEBVRE, 1981, p. 32). 7 “a) Como explicar o desenvolvimento privilegiado da série particular que é constituida pelos disposi-tivos panópticos? b) Qual o estatuto de muitas outras séries que, prosseguindo em seus silenciosos itinerários, não deram lugar a uma configuração discursiva nem a uma sistematização tecnológica? Poderiam ser consideradas como imensa reserva constituindo os esboços ou os traços de desenvolvimentos diferen-tes.” (DE CERTEAU, 1990, p. 78-79, tradução nossa). 8 “‘A cidade’, à maneira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, soláveis e articuladas uma sobre a outra” (DE CERTEAU, 1990, p. 143, tradução nossa) e “Enfim, a organização funcionalista, privilegi-ando o progresso (o tempo), faz esquecer a sua condição de possibilidade, o próprio espaço, que pas-
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caráter hegemônico, denunciando estratégias científicas unívocas visando acabar
com as singularidades dos usuários e construindo o espaço a partir de um número
finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas, uma sobre a outra. Segundo
ele, esse discurso urbanístico da cidade se intensifica, mas a cidade deixa sempre
mais transparecer práticas, táticas cotidianas que se acomodam do poder pan-
óptico, o desviam e até o inquietam9. Essas práticas constituem de fato uma condi-
ção determinante do espaço social vivido pelos usuários. A análise de De Certeau
nos remete, numa linha de raciocínio similar a de Lefebvre, às brechas que os dife-
rentes atores sociais conseguem abrir no espaço abstrato hegemônico, se aproprian-
do de fato do espaço. O exemplo de “o falar dos passos perdidos tramam os lugares”
(DE CERTEAU, 1990, p. 147) é uma imagem concreta do seu posicionamento meto-
dológico.
Desejamos relacionar isso com o pensamento de Lefebvre que formula a ne-
cessidade de outro espaço para modificar realmente o cotidiano:
Necessidades de um outro espaço: pois não há sociedade totalmente outra sem uma morfologia espacial também outra. Daí o espaço ter, enquanto estrutura de uma cotidianidade administrada, papel fundamental na re-produção social. (DUARTE, 1999, p. 78)
Pode encarrar-se melhor a virtualidade da revolução urbana que prega Lefeb-
vre (1999) pelo vislumbramento de práticas urbanas radicais. Influenciados pelo
próprio Lefebvre, os situacionistas enfatizavam o caráter lúdico da cidade, por
exemplo, através da prática da deriva, como exploração da cidade através do jogo e,
consequentemente, a reinvenção do cotidiano (SIMAY, 2008)10. Isso fica também
exposto na proposta de Constant de cidade do futuro pós-revolucionária, que ele
chama de New Babylon:
sa a ser o não-pensado de uma tecnologia cientifica e político.” (DE CERTEAU, 1990, p. 144, tradução nossa). 9 “A linguagem do poder se ‘urbaniza’, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico. A Cidade se torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é mais um campo de operações programadas e controladas.” (DE CERTEAU, 1990, p. 144-145) 10 “A prática não tem nada de inédito. Pensamos imediatamente à ‘flânerie’ do Baudelaire e às errân-cias surrealistas, dois modos de experimentação que compartilham a mesma representação da cidade como reservatórios de virtualidades, com seus pólos de atração e suas brechas nos espaços balizados. Todavia, para Debord, a deriva não é somente um modo de comportamento experimental, mas pos-sui, antes de mais nada, uma virtude heurística. Nisso, ela não é somente um meio para fugir do coti-diano, mas um instrumento para reinventá-lo.” (SIMAY, 2008, p. 8-9, tradução nossa)
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A libertação do comportamento exige um espaço social, labiríntico, mas ao mesmo tempo, continuamente modificável. Não terá mais centro para atingir, mas um número infinito de centros que se movem. Não se tratará mais de errar no sentido de 'se perder', mas no sentido mais positivo de 'encontrar caminhos desconhecidos. (CONSTANT, 1997, p. 123 apud SI-MAY, 2008, p. 11, tradução nossa)
Entretanto, Debord deixou claro que, ao contrario de Constant, ele não pre-
tendia fundar um programa arquitetônico, mas antes, o “urbanismo unitário” con-
sistia em um instrumento de contestação para acabar com a organização dominante
da vida. Simay (2008, p. 13) lamenta essa ruptura do “urbanismo unitário” com uma
prática efetiva de arquitetura e de urbanismo proporcionando modalidades de rein-
ventar o cotidiano11 e ressalta que Lefebvre fez a mesma critica à Debord.
Idéias, representações e valores que não conseguem ser inscritos no espaço pela produção de uma morfologia apropriada se esgotam em sinais, são de-compostos em idéias abstratas e transformados em fantasmas. Morfologias persistentes (edifícios religiosos, monumentos políticos) preservam ideolo-gias antiquadas, enquanto idéias novas, não destituídas de poder (e.g., so-cialismo) não conseguem gerar seu espaço. Essas idéias, para se manter vi-vas, se nutrem de uma historicidade periférica, de um folclore ridículo. Sob essa luz, o 'mundo dos signos' resulta de um retraimento, tudo o que não é investido num espaço apropriado retrocede para signos e significações inú-teis. (LEFEBVRE, 1986, p. 478 apud GOTTDIENER, 1986, p. 155)
Mas é preciso sublinhar que Constant (1959) posiciona também claramente
seus projetos urbanísticos como futuristas e irrealizáveis para sua época. Ele aposta
nas invenções técnicas, assim como numa mudança social de peso, para levar a cabo
seus projetos, que considera como vanguardistas. Parece que vislumbra justamente
as virtualidades ligadas ao advento da sociedade urbana, prestando atenção aos no-
vos comportamentos sociais que irão permitir a realização dos projetos que ele pro-
põe. Se cabe não descartar as reservas que suscita e suscitou o urbanismo unitário,
isso não diminui em nada o alcance dos escritos situacionistas, que são ainda atuais
e relevantes.
É importante ressaltar que nosso estudo propõe pensar o real a partir de prá-
ticas espaciais concretas que buscam modificar o espaço urbano. Os escritos acerca
11 “Todavia, em relação às perspectivas do urbanismo unitário, não podemos deixar de pensar que, rompendo com toda prática efetiva de arquitetura e urbanismo, os situacionistas nunca tiveram co-mo experimentar as modalidades de uma reinvenção do cotidiano. É sempre possível admitir que eles foram construtores de situações, de ambientes transitórios. Mas como essas poderiam ter sub-vertido a ordem das formas urbanas dominantes, na medida em que, de um lado, nenhuma delas tinha um caráter durável, e de outro lado, elas foram elas também desacreditadas por uma teoria geral da revolução.” (SIMAY, 2008, p. 13, tradução nossa)
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do urbanismo incorporado, como desenvolve Jacques (2007), nos permitem esboçar
uma relação entre a possibilidade que o pesquisador tem de buscar o vivido no es-
paço urbano, através da prática da errância, que lhe permite abordar o real concre-
tamente. Essa metodologia é em parte inspirada pela prática da deriva, que desen-
volveram empiricamente e teoricamente os situacionistas, que consiste em adquirir
a capacidade de se perder “voluntariamente”, e escapar à rotina do cotidiano. Essa
faculdade de saber se perder está também associada aos “flâneurs”, em referência
particular o Baudelaire, prática retratada e analisada notadamente nos escritos de
Walter Benjamin. Trata-se de se deixar surpreender pela cidade, de se deixar guiar
pelos encontros, deixar os eventos nos “impressionar”. Jacques (2007, p. 98-99)
menciona também a lentidão como componente da arte da errância. Lentidão signi-
fica uma qualidade do movimento, na visão de Deleuze e Guattari12. Mesmo assim,
ela pode se contrapor ao ritmo veloz da cidade, que enaltecem os urbanistas neo-
modernistas que menciona o autor. Portanto, é possível estabelecer também uma
relação com o tempo dos homens lentos (SANTOS, Milton, 2009, p. 325). Essa lenti-
dão define e qualifica um outro movimento, que permite a observação e a participa-
ção ao real. À lentidão se adiciona a corporeidade, que consiste na relação do corpo
do pesquisador com o corpo urbano.
A Redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimento da experiência ur-bana pelo espetáculo, leva a uma perda da corporeidade, os espaços urba-nos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. Os no-vos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados pelos habitantes locais, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão (JACQUES, 2007, p. 94-95)
Nos parece que é ai que reside o que está em jogo com o “repensar da cida-
de”. A contribuição de Jacques é a de nos lembrar que é a partir do corpo, em toda
sua amplitude e toda sua sensibilidade, que começa a reflexão. Nosso caminho que
busca apropriar-se da ritmanálise de Lefebvre sai das mesmas premissas.
Assim, isso apresenta semelhanças com as considerações de Lefebvre sobre a
relação entre espaço e cotidiano: o cotidiano programado tem como conseqüência
12 “Para Deleuze e Guattari, a lentidão não seria, como pode-se acreditar, um grau de aceleração ou desaceleração do movimento, do rápido ao devagar, mas sim um outro tipo de movimento: 'Lento e rápido não são graus quantitativos do movimento, mas dois tipos de movimento qualificados, seja qual for a velocidade do primeiro, e o atraso do segundo.'” (JACQUES, 2007, p. 99)
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expropriar os corpos pelo lado de fora através do espetáculo, a imagem sem corpos,
impedindo a apropriação qualitativa dos corpos no espaço vivido (LEFEBVRE, 1981,
p. 31):
Produtos privilegiados, realmente úteis e agradáveis […] tem essa missão: expropriar o corpo e compensar essa expropriação, substituir o desejo pela necessidade fixada, substituir o gozo pela satisfação programada.O 'real'deslocado e acomodado de uma nova maneira no cotidiano acaba ga-nhando sobre toda “idealidade”. (LEFEBVRE, 1981, p. 31-32, tradução nossa)
Duarte (1999, p. 79) ressalta justamente que Lefebvre destacou que a mais ex-
traordinária contradição do espaço é o corpo. Com efeito, o corpo se constituiria
num elemento “irredutível e subversivo no seio do espaço e dos discursos dos Pode-
res, o corpo refuta a reprodução das relações… frontalmente… (ou)… pela calada”
(LEFEBVRE apud DUARTE, 1999, p. 79).
2.2. O corpo e a produção do espaço
2.2.1. O corpo, escala geográfica
Essas reflexões sobre o cotidiano nos levam, portanto, ao conceito de corpo,
uma outra escala de análise que se tornou importante na geografia contemporânea,
como destaca Smith:
mais recentemente, os escritos feministas têm explorado a escala do corpo. Fundada na apropriação tanto metafórica quanto material do espaço, e en-fatizando os processos sociais e culturais, essa obra técnica sobre o corpo liga-se de muitas formas diferentes ao foco mais geográfico de, por exem-plo, discussões sobre o Estado-nação. Uma política espacializada coerente terá de encontrar um modo de expor essas conexões. Como sustenta Lefe-bvre13, “hoje, qualquer projeto revolucionário, seja utópico ou realista, de-ve, se quiser evitar a banalidade, fazer da reapropriação do corpo, em asso-ciação com a reapropriação do espaço, uma parte não negociável de seu programa”. (SMITH, 2000, p. 143)
Na nossa perspectiva, não podemos nos propor a observar o cotidiano e suas
rupturas se não levarmos em conta a escala do corpo. As transformações espaciais
são possíveis somente se encarnam-se no cotidiano. Isso pode acontecer unicamente
se considerar que o corpo é o lugar da resistência, individual e coletiva, às imposi-
ções oriundas do exterior, relativas às lógicas de alienação. Deve-se ter em mente
13 Em referência a obra de 1970 (p. 167).
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que as lógicas de “adestramento”, que evoca Lefebvre (1992, p. 61)14 se baseiam na
repetição linear. Essa alienação do corpo provém notadamente do fato dele se tornar
um objeto de consumo15. Percebe-se, portanto, que o corpo se torna um elemento
central da lógica da acumulação do capital, o que já era presente nos escritos de
Marx, como lembra Harvey (2006, p. 150). O corpo permite fazer à ligação entre o
global e o indivíduo, encontra-se incluso na lógica de acumulação como parte do
capital variável, ainda mais quando se integra mais plenamente às esferas da produ-
ção e do consumo. A alienação é então mais sutil na medida em que as revoltas e os
desejos contrários à ordem estabelecida são sutilmente recuperados e introduzidos
na lógica da acumulação flexível do capital:
Potencialidades de reação e revolta contra o capital são definidas a partir de diferentes perspectivas da produção, da troca, do consumo ou da repro-dução. Não obstante, no agregado ainda podemos ver que as perniciosas regras capitalistas que regulam o processo de circulação do capital variável como um todo operam como uma força construtiva/destrutiva (tanto em termos materiais como representacionais) sobre os corpos laborantes nes-ses diferentes momentos. O capital se empenha continuamente em moldar os corpos de acordo com seus próprios requisitos, ao mesmo tempo em que internaliza em seu modus operandi efeitos de desejos corporais vonta-des, necessidades e relações sociais em mudança e interminavelmente ina-cabados (por vezes expressos abertamente como lutas coletivas fundadas na classe, na comunidade ou na identidade) da parte do trabalhador. (HARVEY, 2006, p. 157).
A lógica dominante tende a destituir o poder de ação do corpo no espaço so-
cial. Isso se deve ao fato de o espaço ser pensado como absoluto, sem que sejam tra-
tadas ao seu justo valor e proporção práticas e relações sociais que se tramam nele:
Segue-se um erro, ou uma ilusão: colocar o espaço social fora de alcance, escamoteia seu caráterprático para gerar uma espécie de absoluto à manei-ra dos filósofos. De modo que o “usuário” fazespontaneamente abstração de si, de sua presença, de seu “vivido” e de seu corpo, face a esta abstração tornada fetiche. O espaço abstrato fetichizado engendra, ao mesmo tempo, essa abstraçãoprática do “usuário” que não se percebe num tal espaço, e a abstração da reflexão, que não concebe a crítica. (LEFEBVRE, 2000, p. 112, tradução nossa)
A ideia-chave que sustenta Lefebvre quando se debruça sobre a relação entre
o corpo e a produção do espaço, é que o espaço rege o corpo, lhe confere numerosas
injunções, mas que tudo isso se opera numa relação contraditória de transparência e
de opacidade (LEFEBVRE, 2000, p. 111). O fato de o 'usuário' fazer “espontaneamente
14 Lefebvre fala de “dressage” (1992, p. 55-63) 15 Como já fala o Baudrillard (1970, p. 133), o corpo se torna o mais bonito objeto de consumo.
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abstração de si, da sua presença” nos parece totalmente atual, tanto o corpo é sub-
metido a múltiplas solicitações visuais, sonoras, interativas, pela emergência de no-
vas possibilidades de comunicação e a onipresença da imagem. Thrift (2004, p. 65)
destaca, em particular, as novas formas de coerção advindas com a tela. Lefebvre
(2000, p. 118) afirma que a lógica de alienação vinculada à imagem tende a apagar o
vivido no seio do corpo, apagando a chama do desejo e numerosas interações pre-
sentes no espaço concreto. Outro aspecto da abstração do espaço se situa ao nível
da reflexão: a segmentação das disciplinas cientificas e o reducionismo que pode
existir em certas abordagens cientificas tendem a ter repercussões no vivido e se
reverberam na limitação da ação dos corpos (LEFEBVRE, 2000, p. 127). Assim, a feti-
chização do espaço afeta em primeiro lugar o corpo e convém que a reflexão geográ-
fica aborde também essa alienação a partir da escala corporal.
Simonsen (2005, p. 1) pretende ressaltar a contribuição de Lefebvre ao pensar
o corpo em geografia e salienta que os geógrafos anglo-saxões não aprofundaram
muito esse aspecto da sua obra. A autora mostra que Lefebvre constrói uma interes-
sante articulação entre o corpo e o espaço, que dialoga tanto com os fenomenologis-
tas (Husserl, Merleau-Ponty), quanto Nietzsche, Heidegger, Marx e a psicanálise
(em particular, Lacan). Lefebvre recusa a hipótese do espaço absoluto, tão presente
na historia do pensamento filosófico, pois acredita que isso gera uma “lógica da se-
paração”, levando à fragmentação do pensamento (e do espaço):
A hipótese inversa, portanto, se impõe. O corpo, com suas capacidades de ação, suas energias, faria oespaço? Sem dúvida, mas não no sentido em que a ocupação “fabricaria” a espacialidade - no sentido de uma relação imedia-ta entre o corpo e seu espaço, entre o desenvolvimento no espaço e a ocu-paçãodo espaço. Antes de produzir (efeitos, na matéria, nos instrumentos e nos objetos), antes de seproduzir (se alimentando) e de se reproduzir (pela geração de um outro corpo) cada corpo vivo é um espaço e tem seu espaço: ele aí se produz e o produz. Relação notável: o corpo, com suas energias-disponíveis, o corpo vivo, cria ou produz seu espaço: inversamente, as leis do espaço, isto é, da discernibilidade no espaço, são aquelas do corpo vivo e do desenvolvimento de suas energias. (LEFEBVRE, 2000, p. 199, tradução nossa)
No capitulo III do livro “A produção do espaço”, que se intitula “Arquitetôni-
ca espacial”, o autor se debruça mais profundamente sobre a materialidade do cor-
po, sua organicidade e sua sensibilidade. Ele apela para uma visão carnal e criativa
do corpo:
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Sim, o corpo carnal (espaço-temporal) se revolta, e isso não é um recurso às origens, ao arcaico, umapelo ao antropológico; trata-se do atual, de “nosso” corpo. Desdenhado, absorvido, colocado em migalhas pela ima-gem. Mais que desdenhado: omitido. Isso não é nem uma rebelião política, substituta da revolução, nem uma revolta do pensamento, do indivíduo, da liberdade; é uma revolta elementar e mundial, que não busca seu funda-mento teórico, mas busca reencontrar pela teoria seu fundamento, procura reconhecê-lo. E que, sobretudo, exige que a teoria não mais obstrua a pas-sagem, que não mais oculte o fundamento. (LEFEBVRE, 2000, p. 232, tra-dução nossa)
Neste extrato, percebemos a articulação do método de Lefebvre e sua pesqui-
sa do universal concreto, busca que se encontra também no seu livro Éléments de
rythmanalyse. A meta-filosofia de Lefebvre deseja criar um vinculo direito entre a
prática social e o espaço: a teoria deve ser vivida antes de ser pensada e se justifica
somente se é para defender e apoiar o “viver”. A práxis é uma realidade concreta,
que fundamenta a teoria da produção do espaço. Lefebvre se demarca de numerosos
discursos na moda na sua época, e se distancia notadamente de certos pré-requisitos
que estavam presentes na lingüística e na antropologia, através notadamente da se-
miologia e do estruturalismo.
2.2.2. O corpo e a política dos afetos
Nessa perspectiva de transformação do cotidiano através de práticas sociais,
que colocam em movimento o corpo inventivo dos artistas de rua, desejamos nos
apropriar em particular do conceito de afeto. Este não é tratado nesses termos por
Lefebvre. Ele é mais presente nas visões de política relacional que esboçam certos
geógrafos anglo-saxões, que nos ajudam na compreensão das interações entre corpo
e espaço (SIMONSEN, 2005; MASSEY, 2008; THRIFT, 2004). Levamos em conta a
abordagem de Thrift, pois ela permite, a nosso ver, criar um vínculo entre uma visão
mais deleuziana, influenciada também por Foucault, e uma visão mais lefebvriana.
Nos parece que essas duas visões não são contrárias, apesar das suas diferenças. Es-
ses pensadores são contemporâneos e dialogam, numa certa medida, através dos
seus escritos. Ademais, todos se inspiram de uma leitura renovada de Marx, uma
redescoberta de Nietzsche e reinvindicam uma filosofia da imanência. Eles têm
também um conhecimento dos fenomenologistas e dos psicanalistas, cujas teorias
eles questionam.
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Essa visão da política dos afetos exposta por Thrift (2004) vai de encontro
com nossa reflexão sobre a produção do espaço, e isso participa do diálogo que ten-
tamos esboçar entre os pensamentos de Lefebvre e nossa reflexão geográfica sobre
as práticas sociais (e corporais) dos artistas de rua na era da metropolização do es-
paço. Nos parece interessante e construtivo, já que continuaremos esse dialogo mais
adiante nos próximos capítulos, notadamente entre a ritmanálise (LEFEBVRE, 1961,
1992, 2000) e a política relacional promovida por Massey (2004, 2008). Se Thrift
(2004, p. 57) lamenta o fato que o afeto foi durante muito tempo menosprezado na
história da filosofia, podemos encontrar ecos disso no próprio raciocínio de Lefebvre
(2000, p. 124-125), quando ele evoca a necessidade de estabelecer uma critica do es-
paço, que possa fornecer alternativas às estratégias dominantes que, concretamente,
intervêm na produção do espaço:
A crítica das ideologias filosóficas não poderia dispensar o exame das ideo-logias políticas enquanto elas se referem ao espaço. Ora, elas se preocupam dele prioritariamente: nele intervêm como estratégias. A eficácia das estra-tégias no espaço, e sobretudo um fato novo, a saber: que as estratégias mundiais tentam engendrar um espaço global, o seu, e erigi-lo em absolu-to, propicia uma razão, e não a menor, na renovação do conceito de espa-ço. (LEFEBVRE, 2000, p. 126, tradução nossa)
A nosso ver, Thrift (2004) tem igualmente um real cuidado em estabelecer
uma reflexão ampla e contemporânea acerca do afeto. Isso atualiza, num certa me-
dida, nossa compreensão da programação do cotidiano, pois a manipulação do afe-
to, com diversos objetivos, encontra sua realização na produção concreta do espaço
segundo a lógica formal de fragmentação. O autor explica, portanto, porque o afeto
deve ser mais levado em conta na reflexão sobre o espaço urbano:
Primeiro, o conhecimento sistemático da criação e da mobilização do afeto se tornou uma parte integral da reflexão sobre a paisagem urbana do coti-diano: o afeto se tornou parte de uma espiral reflexiva que permite inter-venções sempre mais sofisticadas em vários registros da vida urbana. Se-gundo, esses conhecimentos não estão sendo somente estabelecidos de propósito, mas eles estão sendo implantados também politicamente (prin-cipalmente pelos ricos e poderosos, mas não exclusivamente) por fins polí-ticos: o que tem sido retratado como estético é crescentemente instrumen-tal. Terceiro, os afetos se tornam parte de como as cidades são concebidas. Espera-se sempre mais que as cidades tenham 'agitação', que sejam 'criati-vas', que de forma geral trazem a tona os poderes de invenção e de intui-ção: isso tudo pode ser forjado como armas econômicas, de tal maneira que a engenharia ativa do registro afetivo das cidades pode ser ressaltado como o aproveitamento do talento de transformação. Cidades devem exibir intensa expressividade. (THRIFT, 2004, p. 58, tradução nossa)
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Esse uso do afeto nas estratégias de produção do espaço remete as lógicas que
presidem ao processo de metropolização. Com efeito, os planejadores contemporâ-
neos do espaço levam sempre mais em conta os afetos para defender e programar
em seguida seus projetos. Esse uso leva ao aperfeiçoamento das técnicas de controle
sobre o corpo e seus afetos, especialmente para ganhar a adesão das populações.
Isso é, por exemplo, visível nas políticas de grandes obras em curso no Rio de Janei-
ro16. Da mesma maneira que Lefebvre deseja fundar uma critica do espaço que possa
desembocar à sua transformação consciente, através da ação dos corpos, Thrift pen-
sa a emergência de novas práticas políticas visando a uma transformação da política
relacional do espaço, notadamente por uma pesquisa sobre a articulação entre a
produção do espaço e a arte (THRIFT, 2004). Isso nos interessa, pois esse estudo
tente igualmente integrar concepções do espaço e práticas espaciais que os artistas
de rua movimentam, participando da formação de novos espaços de representação.
Suas práticas atendem manifestamente ao cuidado de constituir micro-políticas que
o autor promove (THRIFT, 2004, p. 72), que se relaciona tanto à consciência corpo-
ral, quanto a uma certa ética do partilhar dos afetos, vislumbrando a elaboração de
novas formas espaciais.
2.2.3. O corpo relacional
Nos baseando nas visões do Thrift (2004), vamos sintetizar um pouco melhor
aquilo que consideramos como corpo, que vai bem além do envelope corporal, já
que toca à parte relacional do indivíduo, aos encontros e aos afetos, entendidos co-
mo ordenamento das relações entre os corpos, o que resulta em um aumento ou
uma diminuição do potencial de ação (THRIFT, 2004, p. 103-104). Na descrição que
esse autor elabora acerca do afeto, pretendemos distinguir em particular a apropria-
ção que ele efetua da visão espinoziana do corpo, retomada notadamente por De-
leuze (THRIFT, 2004, p. 61-62). Seguindo a visão de Spinoza e de Deleuze, Thrift
(2004, p. 70) mostra que isso permite alargar o número potencial de interações das
16 De acordo com Alvaro Ferreira, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante as discussões da mesa 1, “Metropolização e planejamento estratégico: o que fazer?”, no dia 5 nov. 2012.
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entidades, de expandir o lugar do “jogo”. Apresenta um interesse para nosso raciocí-
nio acerca das práticas de arte de rua, pois os artistas de rua trabalham diretamente
a partir do afeto, sobre as possibilidades de afetar, de imprimir esses afetos no espa-
ço e nas pessoas através das suas práticas, mas também de se deixar afetar pelos en-
contros e pelos lugares onde desenvolvem seus trabalhos. Eles preparam a capaci-
dade criativa e comunicativa da sua corporeidade, para poder compartilhar isso com
um numeroso público no espaço urbano.
Routledge (2010) desenvolve uma reflexão que leva em conta a criação do afe-
to entre diferentes atores sociais. Ele se baseia em práticas concretas, quando retrata
o “Clandestine Insurgent Rebel Clown Army” (CIRCA), o exército clandestino dos
palhaços rebeldes e insurgentes17, no quadro especifico de um encontro acerca do
G8 que aconteceu na Escócia em 2005. O autor destaca o potencial político dessas
práticas, que permitem impactar emocionalmente o público, criar o que ele chama
de ressonância emocional, assim como criar novas solidariedades que ele define co-
mo sensuais. No entanto, sublinha, como Thrift (2004, p. 65-66), que o presente
mediático utiliza igualmente a emoção, através do uso manipulador que pode se
fazer da imagem. O que nos interessa aqui, em particular, é que esses ativistas vão
subvertendo essa lógica do espetáculo, esboçando uma “lógica de palhaço rebelde”.
Através de tais espetáculos teatrais abertos, onde a participação do público era incentivada, o CIRCA tentou criar momentaneamente novos mundos e novas possibilidades. Eles tentavam intencionalmente subverter a função normativa do espaço, o que Uitermark18 nomeou 'ruptura carnavalesca'. A 'desprogramação do espaço' implica uma ruptura intencional e a desorientação (disorientation) da realidade consensual […]. (ROUTLED-GE, 2010, p. 439, tradução nossa)
Entendemos que a figura do palhaço é particularmente favorável para atingir
esses objetivos, pois o palhaço, afinal de contas, tem um alto poder e significado de
subversão e esse oficio segue uma historia muito antiga e complexa19. Routledge
17 “Nos meses anteriores aos protestos do G8, a colaboração entre artistas e ativistas, chamado Labo-ratório da imaginação ‘insurrecional’ – Laboratory of insurrectionary imagination (Labofii) – circulou por nove cidades britânicas, tendo como objetivo apresentar várias formas de ativismo cultural, in-cluindo essa proposta de Exercito clandestino dos palhaços rebeldes e insurgentes, que tinha sido fundada para responder à visita do George Bush em 2003 no Reino Unido.” (ROUTLEDGE, 2010, p. 429, tradução nossa) 18 Em citação a obra de 2004. 19 Não é o lugar aqui de evocar essa figura. No entanto, muito poderia ser dito: uma certa universali-dade, o grotesco que se relaciona à mais intima poesia. Ademais, é uma figura bastante presente nas
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(2010, p. 440-441) explica que o trabalho emocional do ativista da CIRCA é relacio-
nal: implica em um indispensável trabalho individual de auto-questionamento, so-
bre a sensibilidade, sobre o ridículo e a capacidade de aprofundar os afetos. O traba-
lho sobre o corpo e sobre as emoções, que o oficio do palhaço implica, se repercute,
do individuo ao coletivo, notadamente pelo riso. Trata-se de um trabalho longo e
árduo. No caso da CIRCA, esse trabalho se efetua em oficinas, através do diálogo e a
troca, acerca de exercícios lúdicos. Sobretudo, sai da esfera individual por sua capa-
cidade de criar uma ressonância emocional que se propaga entre os palhaços rebel-
des, e muito além desse círculo relacional (e isso é o objetivo), junto com os outros
ativistas, o público em geral e a polícia em particular, presentes durante esses gran-
des eventos políticos que esse exército do riso ocupa.
A análise crítica desse tipo de ação (ROUTLEDGE, 2010, p. 446-449) chamou
nossa atenção sobre dois pontos. Primeiro, o autor salienta que a polícia constituiu
ulteriormente uma unidade especial para enfrentar tal movimento em outras mani-
festações. Segundo, ele mostra como essa experiência foi repetida em outras ocasi-
ões, mas sem verdadeira preparação corporal individual ou coletiva e sem real in-
trodução dos participantes à linguagem do palhaço. Aconteceu que certos ativistas
se vestiram de palhaço, ao invés de ser palhaços - “being in clowns” (ROUTLEDGE,
2010, p. 448, grifo do autor)20. É interessante então constatar que isso resultou, se-
gundo o autor, numa perda significativa da qualidade do impacto afetivo que esse
tipo de ação pode provocar. Isso diminui o que o autor chama de ressonância emo-
cional, que é diretamente relacionada à qualidade do afeto emitido pelos corpos e
que é gerada por uma experiência coletiva compartilhada acerca do corpo e de suas
emoções:
As experiências corporais e emocionais compartilhadas - isto é, os fluxos de adrenalina ou de cansaço do corpo; sentimentos e excitação, medo ou alegria – estabelecem uma memória e uma estória compartilhadas (pelo grupo) sobre esses eventos de protesto, mas também repertórios de estra-tégias compartilhadas, que são ainda mais poderosas na medida em que
artes de rua, onde se pode brincar com a comicidade e colocar em cena o lúdico, mesmo se o trágico nunca está tão longe. Podemos simplesmente indicar a figura de Carlitos, imortalizada por Charlie Chaplin através dos seus filmes, que mostra bem essa potencialidade de juntar o lúdico e o trágico na mesma figura do palhaço: a nosso ver, é todo o segredo dessa figura lendária, e a origem do seu su-cesso. 20 Nos parece oportuno aqui deixar ao lado a formulação própria do inglês.
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elas foram ressentidas. Como Ana Gibbs argumenta, “corpos podem apa-nhar sentimentos tão facilmente quanto apanhar fogo”… eles ressonam “de um ao outro, traduzindo ternura, incitando à vergonha, acendendo a raiva, suscitando medo”. (ROUTLEDGE, 2010, p. 438, tradução nossa)
Esse trabalho corporal é fundamental para o artista de rua. Isso implica uma
disciplina do corpo, que é imprescindível para as artes circenses, mas também para
o teatro e o teatro-circo, o malabarismo, a dança e a música. De certa maneira, cer-
tos artistas de rua utilizam gestos quase rituais, em particular no malabarismo, na
acrobacia e no oficio de palhaço, disciplinas que têm sua origem moderna nas artes
do circo, que possui uma história e uma tradição complexa. As artes do circo inspi-
ram em parte as artes de rua que estudamos21. O teatro supõe igualmente um traba-
lho corporal assíduo, que se combina a um trabalho também da oralidade. Em todos
os casos, nos parece que a preparação corporal se constrói através de uma necessária
prática repetitiva. É com isso que a capacidade comunicativa do corpo e a ressonân-
cia emocional podem acontecer. O Grupo Buraco d'Oráculo conta seu trabalho cor-
poral no seu livro Caderno de trabalho, que retrata o processo de produção do espe-
táculo “Narrativas de trabalho”. Mostra a necessidade de desenvolver uma técnica
corporal capaz de formar um corpo crível, dilatado e comunicativo (ALVES, 2011a, p.
44).
Todavia, essa construção está diretamente ligada ao cotidiano, que também
entra no escopo da reflexão dos artistas de rua. Os gestos e as falas do cotidiano são
apropriados para lhes dar um alcance expressivo. Associado aos gestos, o objetivo
pode ser propor um trabalho que suscite a reflexão e desmistifique a alienação do
cotidiano, deixando ver outras ou novas possibilidades. Para construir um espetácu-
lo que trate das relações sociais e, em particular, das relações de trabalho e de explo-
ração, o grupo Buraco d'Oráculo (COELHO, 2011, p. 43) elabora todo um trabalho de
observação e de apropriação de gestos de trabalhadores, para que seus próprios ges-
tos e atitudes possam se aproximar dos gestos reais daqueles que se pretende retra-
tar e “representar”. Isso tem tudo a ver com nossa reflexão sobre os afetos. Evocando
essa preparação corporal, poderíamos também evocar o trabalho sobre a respiração,
21 Não vamos aprofundar aqui esse aspecto. Numa leitura que trata notadamente da historia dos circos e do palhaço no Brasil, ver, por exemplo, E. Silva (2008).
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que pode ser até compartilhada com o público, aspecto sobre o qual voltaremos
mais adiante.
Através do seu estudo sobre o corpo, Lefebvre (2000, p. 245-251) debruça-se
particularmente sobre a linguagem e, por extensão, sobre a gestual (mais ou menos
imposta), fazendo parte do repertório da programação do cotidiano, dos lugares
especializados, os da religião, da guerra, do trabalho, da justiça) e o gestual (que, no
seu sentido restritivo, segundo o autor, se aplicaria mais aos gestos da “vida civil”)22.
Ele trata dos códigos e dos símbolos que os gestos corporais podem conter, sua par-
ticipação na produção do espaço. Cita os gestos da troca espiritual, mas também os
gestos da troca material, a dos mercantes, que se relaciona, alias, bastante com as
raízes seculares da arte de rua23, quando pensamos, por exemplo, nos caravanserails
e nas feiras da Idade Média. O que nos interessa particularmente no curso do nosso
estudo, é que um espaço gestual possa “fixar no chão” um espaço mental (LEFEB-
VRE, 2000, p. 250).
Em todos os casos, a troca se realiza tanto no nível material quanto no sim-
bólico. Essas duas dimensões participam da produção do espaço pelos gestos do
corpo.
Cada um age com seus múltiplos pertencimentos e sua dupla constituição inicial: os eixos e planos de simetria, que regem os movimentos dos braços, das pernas, das mãos, dos membros, — as rotações, giros, que regem toda sorte de movimentos do tronco, da cabeça, em círculo, em espiral, em “oi-to” etc. A partir desse material, os gestos implicam os pertencimentos, os grupos (família, tribo, vila, cidade etc.) e a atividade, e também certos ma-teriais: os objetos disponíveis para essas atividades, objetos “reais”, pois fei-tos de uma matéria, mas ao mesmo tempo simbólicos e carregados de afe-tividade. (LEFEBVRE, 2000, p. 245-246, tradução nossa)
O fato que tanto Lefebvre, na sua reflexão sobre o corpo, quanto os artistas
concebendo seu espetáculo, prestam tamanha atenção aos gestos, é porque eles
constituem uma linguagem: apresentam elementos simbólicos, que sejam relativos
às práticas cotidianas das mais banais, ou à construções mais ritualísticas, ou ainda
que se situam nos registros cômicos, circenses ou dramáticos. Os gestos afetam dire-
22 Aqui cabe explicar a diferenciação que Lefebvre realiza entre “le gestuel” e “la gestuelle”. Muda o gênero do substantivo, mas essas duas palavras existem na língua francesa, Lefebvre explica essas nuanças e as aplica na sua análise dos gestos. 23 Simples exemplo: As palavras “saltimbanco” e “banqueiro” teriam ambos origens nas feiras aconte-cendo nas ruas da Veneza gloriosa do século XVI.
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tamente a leitura de uma intervenção por parte do público, assim como sua recep-
ção imediata. Se constituem numa linguagem que pode ser até difícil de descrever,
mas que é diretamente sentido pela assistência e cria então vínculos, provoca afetos.
Mate (2011a, p. 34) se debruça mais especificamente sobre o gesto teatral, mas vale
também, a nosso ver, para outros gestos: o do clown, do malabarista e, numa certa
medida, o do músico.
Durante o espetáculo, ator e público promovem uma relação fundamenta-da em jogo de decifração de símbolos, tanto enigmáticos (mais difíceis de serem traduzidos) e de alegorias (símbolos facilmente traduzíveis). A troca entre ambos (atores e público) ocorre quando o texto que intermedia essa relação, na condição de um "tecido simbólico", se transforma em gesto. Na condição de uma fratura do cotidiano, o espetáculo, que acontece no tem-po e no espaço, compreende um grande arcabouço de gestualização estéti-co-social.O gestual passa pelo corpo do ator que, na condição de ser social, irradia complexa e múltipla gama simbológia. O poeta francês Charles Baudelaire afirma, em um de seus textos, que a arte é uma "floresta de símbolos", e que toda floresta é inexpugnável (na condição de organismo vivo e premida por mistérios ela não se dá a conhecer…). (MATE, 2011a, p. 34)
Vemos através dessa citação o quanto o corpo pode ser considerado com toda
sua complexidade expressiva. O corpo que estudamos é, portanto, considerado na
sua dimensão social. Os gestos que este articula se relacionam com o espaço ao re-
dor, se inspiram nesse contexto, dialogam com o espaço e suas relações. As artes de
rua permitem fazer emergir interações entre diferentes agentes sociais que com-
põem o espaço urbano, criando momentos onde vem à tona a presença, ou melhor
ainda, as presenças do conjunto artistas - público. Esses momentos podem se esta-
belecer como rupturas. De um lado, porque propõem uma restituição da corporei-
dade do corpo da sua capacidade de ação. Isso está, em particular, trabalhado pelos
artistas de rua. Sem isso, lhes seria difícil atrair o público. De outro lado, esses mo-
mentos permitem certa ressonância emocional. O cotidiano nunca está longe: inspi-
ra certos artistas na elaboração dos seus gestos ou das suas piadas; ademais, o coti-
diano programado tende a se opor às rupturas que eles desejam estabelecer através
das suas intervenções.
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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2.3. Intervenções de artes de rua como momentos de encontro no espaço
urbano
Necessário é então tratar, em particular, do momento da intervenção das ar-
tes que rua que estudamos. Tentamos enfocar este sob alguns aspectos, relacionan-
do nossa leitura desses eventos de artes de rua com a “teoria dos momentos” que
Lefebvre constrói ao longo da sua obra.
Primeiro, cabe ressaltar que não usaremos o termo “espetáculo” para falar do
momento da intervenção, pois esse tipo de intervenção não integra a priori o pro-
cesso de espetacularização que denuncia Debord no seu famoso livro A sociedade do
espetáculo. Isso não impede de ouvir o famoso adágio do palhaço: “Vai ter espetácu-
lo? Sim Senhor!”, ou ainda um grupo de teatro apresentar um “espetáculo”. Mas
frente à diversidade das intervenções que observamos, assim como por escolha léxi-
ca, escolhemos usar principalmente o termo de intervenção. O termo “acontecimen-
to” que define L. T. Silva (2007) no seu estudo suscitou também nosso interesse24. A
autora realiza uma leitura pessoal de Deleuze e Foucault para debruçar-se mais es-
pecificamente sobre diferentes formas de apropriação do espaço público, que não
estão levadas em conta da planificação urbana. Estuda, em particular, três lugares de
São Paulo (a Avenida Paulista, a Rua 25 de março e a Avenida Luis Carlos Berrini)
para retratar como se operam as apropriações efêmeras do espaço urbano por vários
atores sociais. Também poderíamos falar de “evento”. Alias, usaremos por vezes esse
termo. Milton Santos (2009, p. 95) usa este com o cuidado de ressaltar o processo
anterior ao evento propriamente dito, elemento que nos parece muito importante
em nosso estudo das práticas de artes de rua. Além disso, esse autor pensa que é
bom para a teoria geográfica assimilar a idéia de evento à idéia de ação. Em nosso
caso, nos parece interessante afiliar ainda as práticas de artes de rua aos eventos
“infinitos” que evoca o autor (SANTOS, Milton, 2009, p. 149).
24 “Acontecimento urbano, portanto, é quando o espaço urbano é apropriado de forma efêmera, fora dos moldes convencionais pré-estabelecidos pelo planejamento urbano. E essa apropriação acontece através do que chamo de Escape, ou seja, para acontecer é preciso encontrar uma fresta, uma fissura em meio às formas de controle da cidade, um meio de ultrapassar os limites de apropriação estabele-cidos.” (SILVA, L., 2007, p. 6)
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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Cabe explicar brevemente o que nos trouxe a usar a idéia lefebvriana de
“momento”. Nos apropriamos desta de maneira progressiva, mas notamos que isto
se impus subitamente através da unidade da presença e da ausência, o fôlego retido
frente à situação que conseguem por vezes constituir diversos artistas de rua, crian-
do um momento mágico, ou ainda lúdico ou poético, mas em todo caso fora do
tempo do relógio, mas no entanto fortemente ancorado momentaneamente no es-
paço geográfico. Passada nossa percepção imediata dos momentos vividos de artes
de rua, a riqueza do conceito de momento se revelou muito interessante para que
possamos relacioná-la com essas intervenções e práticas que estimulavam nosso
imaginário geográfico.
2.3.1. Momento e vivido
Definir de maneira concisa o momento não é fácil. Lefebvre (1961, p. 353)
considera que os momentos não estão em número ilimitado; além disso, considera
estes mortais, ancorados no cotidiano, isto é, estes podem desaparecer, ou pelo me-
nos mudar de forma. Sobretudo, surgem novos momentos ou novas formas que se
encarnam no vivido. Mas o momento não pode ser confundido com o instante, o hic
et nunc estudado pelos filósofos (LEFEBVRE, 1961, p. 340). O momento está relacio-
nado à realização da diferença, mas, no entanto, ele é sujeito à repetição, sem nunca
deixar de poder se repetir de maneira idêntica. Hessdistingue brevemente o instante
e o momento:
O momento é mais profundo. Dura. Ele está inserido no tempo. Cada mo-mento tem sua memória, seus reconhecimentos. Enquanto os instantes não se reproduzem, os momentos voltam a acontecer. Pulam daqui para lá através das diversidades. (HESS, 2009, p. 144, tradução nossa)
Pretendemos considerar aqui as intervenções de artes de rua como momen-
tos mas, no entanto, desejamos confessar que estas práticas não se afirmam sistema-
ticamente como tal. Às vezes, podem representar somente instantes, no conjunto
das trajetórias que formam as tramas do espaço urbano. Às vezes, lhes falta também
a presença e esse desejo de absoluto que caracterizam o momento. Porém, sob vá-
rios aspectos, tentamos mostrar porque parece fértil e propicio assimilar estas práti-
cas de artes de rua à criação de momentos.
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Esse desejo de absoluto contido nos momentos, que os define como “tentati-
va visando a realização total de uma possibilidade” (LEFEBVRE, 1961, p. 348), traduz
também a oscilação do momento entre a presença e a ausência. O momento cria
uma totalidade parcial, surge do cotidiano mas se distingue deste justamente por
esse desejo de absoluto que lhe permite a afirmação da sua liberdade, o estabeleci-
mento de uma presença que permite distinguir-lo e apreciar-lo como momento. É
fundamental ressaltar que Lefebvre considera que o momento se articula com o co-
tidiano, o que constitui uma das principais razões pela qual se relaciona bem com
nossa descrição das práticas de artes de rua. Como o sintetiza Rémy Hess:
Extraídos da melhor cotidianidade, os momentos permitem uma melhor comunicação, uma melhor informação. Eles permitem também definir no-vos modos de gozo da vida natural e social. A teoria dos momentos não se situa fora da cotidianidade, mas se articula unindo-se à sua critica para in-troduzir nela o que falta à sua riqueza. (HESS, 2009, p. 119, tradução nossa)
Assim, o momento se constitui como ruptura do cotidiano, de tal modo que
faz surgir o vivido no seio do cotidiano. O cotidiano abarca o vivido, e o vivido reve-
la toda “a mistura de coerção e de apropriação” com a qual a trama da vida cotidiana
se constitui (BIHR, 2009a, p. 15).
2.3.2. Momento e presença
Necessário se faz então sintetizar a maneira segundo a qual o momento se es-
tabelece. O momento permite instalar o vivido no seio do cotidiano através de uma
dispensa necessária de energia. Assim, a aparição do momento é inevitável, que ele
revista formas violentas ou cheias de graça (LEFEBVRE, 2000, p. 209). Essa dispensa
de energia está ancorada nas dinâmicas naturais e se declina também na análise dos
fatos sociais. Ela é intimamente relacionada ao movimento da vida, e é importante
salientar que é para melhor explicar a produção do espaço que Lefebvre explicita
essa dispensa de energia que anima o corpo, tomado em diferentes escalas:
Por essência, a energia se despende e isso produtivamente, mesmo se a “produção” não for senão a de um jogo, de uma violência gratuita. Ela sempre produz um efeito, um estrago ou uma realidade. Ela modifica o es-paço ou engendra um espaço. A energia viva (vital) só parece atuante se háexcesso, excedente disponível, supérfluo e despesa [dispêndio/gasto]. Então a energia se desperdiça [esbanja-se]. Esse desperdício explosivo não se distingue do emprego produtivo: o jogo, a luta, aguerra, o sexo cami-nham juntos, desde a vida animal. A produção, destruição, reprodução se entrecruzam. (LEFEBVRE, 2000, p. 206, tradução nossa)
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Essa citação nos remete inevitavelmente ao pensamento de economia geral
de Georges Bataille, exposta em seu livro “La part maudite”, que Lefebvre (2000, p.
209) cita. Assim, essa energia não pode ser desconsiderada, não podemos conceber
somente o principio de economia e analisar friamente o cotidiano, sem levar em
conta o surgimento do vivido e da espontaneidade no seio do cotidiano.
Assim, tem-se que a energia vital, o homem como espontaneidade, mesmo tendendo a recuar, não pode desaparecer, que ele não desaparece à pro-porção que cresce a artificialidade do mundo. […]. No entanto, é no vivido, como o nível da prática imediatamente dada, que a natureza aparece e transparece, como corpo, como uso. (SEABRA, 1996, p. 74-75)
Lefebvre (2000, p. 207) se coloca assim numa linha filosófica, que “sai de Spi-
noza, passa por Schiller e Goethe, por Marx […], culmina em Nietzsche”. A dispensa
de energia tem assim um papel significativo na produção do espaço. A energia vital
tem uma ligação intima com o vivido e a ação dos corpos.
A energia nos parece um elemento igualmente muito importante nas práticas
de artes de rua. Empiricamente, experiençamos que é indispensável chamar a aten-
ção do público e ganhar sua adesão e sua participação. Isso é possível graças à dis-
pensa de energia. Isso poderia ser ilustrado, por exemplo, através daquilo que certos
ensinamentos da arte do palhaço chamam o “corpo extra-cotidiano”. Consistiria em
outra qualidade de comunicação e de receptividade do corpo, pois o corpo tem que
ser comunicativo e emitir afetos que se propagam por “fora” do corpo.
O momento é descrito também por H. Lefebvre como “modalidade da pre-
sença” (Hess, 2009, p. 109). Lefebvre descreve a presença como um momento:
A presença, momento e não sustância ou forma pura, recompensa um ato que se arrisca. […]. A presença acontece através de um esforço, que precede a surpresa, a flor da vida (a Rosa sem por que). Para encontrar alguém ou alguma obra, precisa sair ao encontro, que se enche de espera. A presença se encontra somente durante uma cena que ela interrompe. Acontece nas representações e as supera. Mesmo no teatro! (LEFEBVRE, 1983, p. 256, tradução nossa)
Certos elementos apresentados apóiam nossa apropriação do momento lefe-
bvriano. Primeiro, o risco que implica a presença nos remete mais empiricamente às
práticas dos artistas de rua: estes se arriscam quando se apresentam no espaço pú-
blico, sem “redes”, muitas vezes sem bilheteria25, mas passando chapéu; sobretudo,
25 Por exemplo, observamos que certos grupos de São Paulo, apoiados pela Lei de Fomento Municipal ao teatro, não passam chapéu, mas apontam para a verba pública que recebem, enfatizando a neces-
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sem ter previamente avisado o publico, que se trata de convencer e encantar. Por
isso, o teatro de rua, por exemplo, deve elaborar uma dramaturgia especifica, tema
que aprofundaremos um pouco no capítulo 4. De certa maneira, remete a necessi-
dade de superar as representações no jogo teatral. Pode se atingir isso ou trabalhar
acima disso de diversas maneiras, notadamente por uma diversidade de linguagens,
de modos de leitura. Nos parece que os artistas de rua trabalham isso em diferentes
níveis, mas todos precisam refletir mais ou menos profundamente sobre o vivido e
sua relação com o cotidiano, pois faz justamente parte do cotidiano deles de sentir e
conceber essa articulação, mesmo se eles não se expressariam desse jeito. Ao longo
da sua reflexão sobre o vivido, Bihr precisa a maneira segundo a qual a teoria pode
apropriar-se do vivido:
A apropriação do vivido pela teoria está efetiva (bem sucedida) somente se esta permanece aberta sobre os outros momentos. Somente com essa con-dição ela pode constituir uma presença para si (ela enriquece o vivido, alargando o horizonte, lhe abrindo consequentemente novas possibilida-des, até favorecer a formação de novos momentos); da presença aos outros (ela enriquece a comunicação, aprofunde o consenso sobre o qual esta po-de chegar); da presença ao mundo: ela amplifica a capacidade de interven-ção do individuo na vida social, transforma este de espectador em ator do mundo, garante uma capacidade de resistência frente às potências aliena-das-alienadoras que dominam a vida social e as ilusões que elas sustentam. (BIHR, 2009b p. 15, tradução nossa)
Essas considerações participam da elaboração do nosso método e explicam
porque estudamos as práticas de artes de rua como exemplo de apropriação do es-
paço e de relacionamento entre os corpos. Isso participa de uma ambição mais am-
pla de valorizar novas relações entre a teoria e a prática, que possam participar tam-
bém da valorização de outras relações sociais no espaço urbano e no cotidiano.
Além disso, vislumbramos que existem também artistas militantes que parecem re-
fletir exatamente sobre essa articulação entre o vivido e a teoria, desejando, de ma-
neira humorística, poética ou ainda épica, desmistificar a alienação que impregna as
relações espaciais. Isso pode ser encontrado nos seus discursos, seus escritos e suas
lutas, mas também nas práticas concretas de artistas de rua. O fato de permanecer
muitas vezes à margem da cotidianidade programada favorece certamente essa to-
sidade de políticas públicas para as artes públicas. Isso pode também acontecer em festivais de teatro de rua, onde os grupos já são pagos para realizar suas intervenções. Isso suscite polêmica, pois o pas-sar do chapéu constitui uma tradição das artes de rua e define também sua independência em relação ao Poder Público.
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mada de consciência que pudemos descobrir através dos nossos encontros e discus-
sões. Isso pode ser devido também ao olhar dos transeuntes, que não é sistematica-
mente aprobativo, mas que pode proporcionar incentivos e conversas amigáveis que
surgem durante ou mais depois das intervenções.
A presença se reflete através da vontade de encontro por parte dos artistas de
rua: eles entram em contato com a cidade, as atividades programadas do cotidiano e
o andar dos transeuntes. É realmente toda uma arte de poder viver da rua (de ma-
neira geral) mas, neste caso, formar uma roda acerca de sua intervenção. A presença
define o risco associado à interrupção dos fluxos do cotidiano pelos artistas de rua.
Estabelece-se pela ação dos corpos, exige certa preparação física para se expressar
plenamente, e um trabalho sobre os afetos que pode se efetuar de diversas formas. A
nosso ver, a percepção da unidade da presença e da ausência surge a partir do mo-
mento que os artistas e o público somente formam um todo; compartilham, de certa
maneira, uma única respiração, participando da ação que ocorre no momento.
Mesmo se um elemento de “fora” entrasse nesse roteiro de ação, ele poderia ser in-
corporado na dramaturgia dos acontecimentos. Com efeito, a maioria dos artistas de
rua aprendem a lidar com o imprevisto. O palhaço deve até ser mestre nisso.
Por isso, tratamos as práticas de artes de rua como práticas urbanas, no sen-
tido que estas permitem ressignificar momentaneamente as relações sociais. Funda-
das num controle do espaço e do tempo, promovem a interação dos corpos via afe-
tos, assim como outra maneira de experimentar o fato urbano. Introduzem uma no-
va qualidade à experiência urbana cotidiana, geram o encontro e o jogo, que são tra-
tados como momentos pelo Lefebvre.
2.3.3. Momento e obra
Como acabamos de ressaltar, o momento nos permite considerar diferente-
mente a articulação entre o vivido e o cotidiano. Se instaura como totalidade parcial
e se constitui no negativo das relações do cotidiano, mesmo se leva estas em conta.
Através da sua reflexão sobre o cotidiano, Lefebvre relaciona o momento com a
obra, pois a arte permite a aparição de momentos a partir do cotidiano:
Todo o conteúdo dos momentos provém da vida cotidiana e, no entanto, cada momento surge da vida cotidiana na qual pega materiais ou o materi-
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al que ele precisa. A originalidade do momento provém em parte -somente em parte – do conteúdo circunstancial. Se insere no tecido do cotidiano, que ele não rasga, mas tende em transformar (parcialmente e 'momenta-neamente', da maneira da arte, como um desenho sobre esse teci-do). (LEFEBVRE, 1961, p. 346, tradução nossa)
As práticas de artes de rua se inspiram do cotidiano, emergem através da ins-
tauração de certa presença. Se constituem potencialmente em ações poiéticas, frente
à mimésis e a repetição linear do cotidiano. Isso segue a separação que realiza Lefe-
bvre (1961, p. 240-241) entre práxis repetitiva e práxis inventiva. De novo, cabe seguir
o raciocínio do autor: de nenhuma maneira isso significa discriminar a repetição,
pois essa gera diferença! Poderíamos ilustrar isso pelo fato que as intervenções pro-
postas pelos artistas de rua são o fruto de um trabalho repetitivo, de exercícios, en-
saios, processo de várias apresentações, e também o fruto de trajetórias que se tra-
duzem em experiências: tudo isso participa do surgimento dos momentos. O cotidi-
ano se torna assim o lugar de encontro entre o repetitivo e o criativo. Hess, nos
permite entender essa articulação quando explicita o pensamento do Lefebvre sobre
a relação entre o criador e as formas que cria:
O criador é sujeito. Mas não é sujeito já presente que se expressaria na obra. Não, é a produção da obra que produz o sujeito. O sujeito se consti-tui através da ação poiética, aquela que dá forma à obra. À diferença do simples produtor, o criador vive as contradições da criação que ele supera, assimilando o mais saber que possível. Saber e vivido interagem na produ-ção da obra. (HESS, 2009, p. 134, tradução nossa)
Isso se repercute na reflexão que os artistas de rua podem esboçar a partir das
suas práticas. Com efeito, isso remeteria aos diferentes graus de interação que po-
dem ocorrer através das suas intervenções, e que podem mudar o rumo de uma
apresentação, ou mudar a forma de um espetáculo, por exemplo, através de um im-
previsto que revelaria um “truque” que pode dar certo novamente. É claro que pen-
samos aqui a obra efêmera de uma diversidade de artistas de rua, e certamente mal
consegue chegar ao “estatuto” de obra, se consideramos a amplitude da reflexão que
levanta Lefebvre. Mas vemos novamente aparecer as possibilidades que surgem ao
estudar tais práticas:
Essa forma se impõe ao tempo e ao espaço. Ela cria um tempo e um espaço ao mesmo tempo objetivos (socialmente aceitos) e subjetivos (individuais e inter-individuais). Neste sentido, o momento não tem somente uma forma: ele “é” essa forma e essa ordem imposta ao “conteúdo”. (LEFEBVRE, 1961, p. 346, tradução nossa)
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Assim, a produção dessas intervenções tem um cuidado relativo à forma e ao
conteúdo, que leva em conta o contexto urbano contemporâneo no qual essas inter-
venções acontecem, assim como o público ao qual elas se destinam. Isso esta explici-
to na visão épica do teatro de rua, que tem como fonte de inspiração reflexões de
Bertold Brecht, que se adequam ao contexto no qual atua o teatro de rua. Mas isso
remete mais amplamente a todo tipo de intervenção de arte de rua no espaço urba-
no. Quando se trata de espaço aberto, tudo pode acontecer, e precisa encarar a rea-
lidade tal como ela é, sem deixar nunca de pensar sobre o conteúdo que se quer
transmitir:
Em tempos de globalização, com o capitalismo em constante mutação faz-se necessário atentarmos sempre ao conteúdo do que produzimos. Quanto ao espaço cênico que ocupamos, a rua, é épica por definição, no entanto, ela é também forma/conteúdo e está contida na cidade que é também for-ma/conteúdo. Como aliar nossos conteúdos numa forma adequada, sendo que a mesma entrará em contato com outras formas/conteúdos que, por sua vez, modificará forma e até mesmo nosso conteúdo? Pois se vamos abertos para a rua, visando uma troca de experiência, o contato com o pú-blico nesse espaço pode até mesmo criar outra obra. (ALVES, 2011b, sem paginação)
Essa atenção dada à forma e a ao conteúdo leva em conta o movimento que o
real apresenta. Percebemos novamente a necessidade que os artistas de rua tem de
pensar a cidade. Isso pode se constituir de diversas maneiras: pode ser através de
uma prática militante, ou só na prática concreta do oficio, pode ser através da troca
de idéias com outros atores da vida social ou outros artistas. Isso sugere trocas entre
os artistas de rua, que costumam acontecer através de certa solidariedade que a rua
proporciona. Sobretudo, essa precariedade da obra vem do fato que o artista de rua
tem que saber dar conta do imprevisto, mesmo se a obra pode revestir outra forma:
tudo isso constitui um risco e um saber que requerem uma grande destreza na hora
da atuação assim como uma reflexão continua sobre sua prática.
2.3.4. A obra como ponto de encontro entre o vivido e o concebido, ou como as
práticas de artes de rua participam de um “repensar da cidade”
Lefebvre enxerga a obra como ponto de encontro entre o vivido e o concebi-
do (HESS, 2009, p. 133). Mas esta permite também potencialmente a superação das
representações. Através da obra, Lefebvre podemos pensar concretamente a apro-
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priação do espaço e novas possibilidades de conceber o vivido sem perder de vista o
movimento da totalidade. Isso já se concretiza na prática cotidiana; mesmo se for
residual, constitui tantas formas de apropriação e encontra, a nosso ver, eco nas prá-
ticas de artes de rua. Pois estas permitem também repensar a maneira como a cida-
de deve ser vivida e ao mesmo tempo concebida.
Assim, relacionar essas reflexões oriundas de práticas concretas com reflexões
de geógrafos sobre o espaço urbano nos parece fértil. A ótica que buscamos esboçar
provém diretamente dessa reflexão sobre a produção do espaço: parece indispensá-
vel concretizar novas formas de se apropriar do espaço, mas isso somente pode ser
associado a uma maneira diferente de pensar o espaço, e vice e versa. Como o sugere
Soja sobre o imaginário geográfico:
A afirmação de uma visão alternativa da espacialidade desafia diretamente todos os modos convencionais do pensamento sobre o espaço. Não é so-mente 'outros espaços' que cabe acrescentar à Imaginação geográfica, sao também 'outras' as maneiras como deve ser pensada a espacialidade. Preci-sam se destacar, desconstruir, e não estar confortavelmente depositados em velhos conteúdos. (SOJA apud MARTIN, 2006, p. 9, tradução nossa)
Parece-nos que a reflexão de Hiernaux (2006) sobre o “repensar da cidade”
vai justamente neste sentido. Hiernaux tenta definir a cidade a partir de uma tríade
metafórica, para apreender a realidade fragmentada que ela apresenta na era do ur-
bano. Ele usa três categorias fundamentais: o labiríntico, o fugaz e o fortuito.
O labiríntico não remete à obrigação de que a cidade se trace como um perfeito labirinto […]. Tampouco o fugaz implica que tudo se devaneia ins-tantaneamente, mas sim que uma característica fundamental do urbano é a ausência de duração, a volatilidade das coisas, as pessoas, as ações e os pensamentos. Finalmente, o fortuito não implica a ausência de organiza-ção nem de instituições […]; melhor, se remete ao caráter caótico, espontâ-neo de muitos eventos urbanos (HIERNAUX, 2006, p. 199-200)
O labirinto implica o lado material da cidade, o traçado das ruas, os seus aca-
sos, assim como as tentativas de ordená-las ou de criar traçados racionais como nas
cidades novas. Mas ele remete também à organização do espaço mental (o labirínti-
co dos sonhos e dos imaginários). O fugaz retrata o movimento que anima a cidade,
a velocidade que costuma caracterizá-la, na era do urbano, através da fugacidade
dos intercâmbios monetários ou relacionais. A cidade impõe, portanto, um ritmo de
vida próprio que modifica o cotidiano das pessoas:
O fugaz não é somente uma imposição tecnológica como, por exemplo, no uso de aparelhos de telecomunicações. Tornou-se uma forma de viver, uma
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capacidade nova de exercer ações no tempo: é também uma demanda soci-al crescente (HIERNAUX, 2006, p. 202).
O fortuito é considerado pelo autor como uma riqueza inesgotável das cida-
des. Ele decorre das surpresas e das potencialidades que a cidade oferece. De fato, a
densidade da cidade permite juntar indivíduos com múltiplas trajetórias e experiên-
cias:
Neste sentido, a cidade é berço de inovações porque reúne uma multiplici-dade de experiências humanas que, situadas em um substrato labiríntico, marcado pela fugacidade do que ali ocorre, permite uma situação de com-binações no infinito de eventos (HIERNAUX, 2006, p. 202).
Pensamos que essa tríade “metafórica” que nos propõe Hiernaux é muito rica
para nossa reflexão. O autor ressalta que é uma reflexão ontológica sobre a cidade,
ele busca a essência do que é a cidade, o do que ela pode ser, ou da maneira como
ela pode ser pensada, em relação a uma observação concreta do que ela apresenta.
Com efeito, essa tríade abarca, sob esse aspecto, diversas dimensões freqüentemente
ignoradas pela reflexão sobre o espaço urbano. Leva diretamente em conta as no-
ções de encontro, de velocidade. Ela relaciona a dimensão material da cidade à di-
mensão mais subjetiva, assim como às representações. Assim, os três termos dessa
tríade se completam e se articulam simultaneamente.
Uma cidade, pelo menos no sentido que se atribuiu tradicionalmente ao conceito, tem que ter as três características mencionadas. Mas, além disso, ela tem que possuir essas características de forma simultânea e articulada. Não há possibilidade de que um labirinto sem o caráter fortuito e sem a fugacidade constitua uma cidade. Tampouco é possível que os eventos de caráter fortuito e/ou fugaz possam se constituir em uma representação da cidade, se não existisse o labiríntico que é seu substrato, não somente físi-co mas também mental. (HIERNAUX, 2006, p. 204).
As práticas de artes de rua nos parecem acontecer num contexto próximo da-
quele descrito aqui por Hiernaux, que estimula nosso imaginário geográfico. Com
efeito, elas acontecem sem discriminação, e devem então levar em conta os elemen-
tos contidos nessa tríade formada pelo autor. Essas práticas tem que conviver com a
fugacidade que atravessa a cidade, para parar o andar dos transeuntes; precisa en-
contrar o bom lugar neste aspecto labiríntico da cidade, no seu aspecto material,
prestando também atenção ao imaginário urbano, que se assimila mais ao labirinto
mental que evoca Hiernaux. Também deve apresentar um lado fortuito, que cria
todo o charme dessas intervenções e provoca a adesão do publico e/ou sua partici-
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pação espontânea com a proposta do jogo e de reflexão contida na intervenção dos
artistas de rua. É dessa maneira que eles podem propor efetivamente conteúdos di-
ferenciados (CARLOS, 1999, p. 65), que permitem vislumbrar a impressão de novos
usos no espaço urbano e participar também da reflexão sobre o urbano.
2.3.5. Momento e situação
Apontamos aqui a necessidade de explorar a relação e a distinção entre os
momentos e as situações. Lefebvre declara que os momentos criam situações:
O momento não coincide exatamente com a 'situação'. Resultando de uma decisão e de uma escolha – de uma tentativa – o momento cria situações. Como termo geral, resume estas e as condensa porque as relaciona efeti-vamente. […] A conjuntura é quase a situação, e o momento quase a estru-tura. Todavia, na conjuntura, há menos que uma situação, e no momento mais que uma estrutura. O ser consciente 'em situação' vive inserido numa conjuntura exterior na qual deve se inserir; se ele tenta um momento, há então na situação uma aventura desejada: uma série engajada desde o ini-cio das articulações necessárias entre o tempo e o espaço, uma ordem e uma forma impostas aos elementos colhidos na conjuntura. (LEFEBVRE, 1961, p. 351, tradução nossa)
O fato de querer distinguir momento e situação se explica também pela pro-
ximidade que o autor tinha nesta época com os situacionistas, antes de escrever esse
livro, proximidade que aparece também nos escritos de Debord no mesmo perío-
do26. Lefebvre se debruça sobre a análise das situações, que não são propriamente
falando momentos, mas que participam da constituição dos momentos e possuem
certa proximidade conceitual. Provém de uma mesma constatação sobre a miséria
da vida cotidiana e sua superação pelo estabelecimento de situações (ou de momen-
tos), que deixam aflorar o vivido:
Isto é, o conhecimento da riqueza profunda, da energia abandonada na vi-da quotidiana como miséria e como prisão; portanto, em um mesmo mo-vimento nos leva a negar o problema. (DEBORD, 1961, p. 23, tradução nos-sa)
Se a presença surge através da ação poiética e a via dionisiaca (LEFEBVRE,
1981, p. 257), é sobretudo muito ligada ao estabelecimento de situações:
Não tem presença por e dentro de uma situação: uma relação momentane-amente entre numerosos elementos, uns ordinários (cotidianos) e outros finos – em uma conjuntura onde o acaso tem lugar.
26 Para mais informações sobre a relação entre Guy Debord e Henri Lefebvre, ver, por exemplo: GO-ONEWARDENA (2008).
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Impossível inverter a proposta: 'Não ha situação sem presença’ Com efeito, a distância, a separação, a alienação, o silêncio, a ausência, definem tam-bém as situações. (LEFEBVRE, 1983, p. 263, tradução nossa)
O que nos interessa em nosso estudo, é o pensamento da situação, que pro-
voca a incorporação do público às intervenções, que lhe faz compartilhar potenci-
almente essa unidade da presença e da ausência que atravessa os momentos. A opo-
sição à sociedade do espetáculo consiste em denunciar a não-participação dos indi-
víduos. As situações não são concebidas numa oposição atores/público, mas numa
perspectiva de “vivenciadores”.
A construção de situações começa apos o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto esta ligado à alienação do ve-lho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrario, percebe-se como as melhores pesquisas revolucionários na cul-tura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o he-rói, a fim de estimular esse espectador a agir… A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do 'público', senão passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto o numero dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo, “vivencia-dores” (DEBORD apud JACQUES, 2003, p. 62)
Nas artes cênicas de rua, essa consideração do público e sua co-participação é
uma realidade e uma sabedoria. Na arte do palhaço (picadeiro), a triangulação, que
consiste em apoiar-se sobre as reações e as ações do público no desenvolver do ro-
teiro de ação, há muito tempo é levada em conta. Afinal, faz parte do seu ofício, ga-
rante o “chapéu”. Isso é certamente ligado à apropriação que eles fazem do espaço
público e à necessidade de ter boas relações de convivência.
Na encenação teatral, o teatro épico desenvolvido por Brecht procuram in-
corporar o público no desenrolar dramático, pelo menos ao nível dos afetos, despre-
zando a idéia da “quarta parede”. Pretende-se desmistificar o papel do ator de tea-
tro, destacando sua função política, seu poder de intervenção frente ao real27.
No entanto, nos parece que esse tema da interação entre o público e os atores
se apóia numa historia muito mais longa das artes cênicas. A nosso ver, essa dificul-
dade remete justamente a essa alienação que reprime o potencial de ação dos corpos
mas também questiona a própria definição da participação. Observamos um cuida-
do, por parte dos artistas de rua, autônomos ou organizados, em relação à participa-
27 Para aprofundar: ver a relação entre teatro de rua e o teatro épico brechtiano (MATE, 2011b). Sobre teatro épico: Brecht (2005)
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ção do público, dos moradores dos espaços onde eles se apresentam. Isso tudo vale
enriquecer a experiência urbana, através de uma troca de experiência:
Essa troca tende a eletrizar atores e espectadores, tornando-os sujeitos e parceiros de algo que acontece em um ‘irrepetível’ aqui-agora ao ar livre. Experiência que fratura um cotidiano, tantas vezes igual e descolorido (tantas vezes próximo ao mito de Sísifo da permanente repetição de tantas coisas), passível de descortinar novas brechas e rupturas, às descobertas: de si, do outro, dos dois, abrigando a comunidade em relação. De outra forma, pode-se afirmar também que o espetáculo de rua envolve e provoca o transeunte, do mesmo que este, a seu modo, pode interferir na obra. Ex-periência diferenciada de tantas outras mais ordinárias que potencializa perspectivas e modos de encarar, inserir-se e redimensionar (e redimensi-onar-se n)o próprio real. (MATE, 2009, p. 22)
Remete da mesma maneira ao caráter aberto dessas apresentações, que tem,
inegavelmente, a presença de um público flutuante e aleatório. Essa “fluidez” do
público está muito presente nas análises sobre o teatro de rua que considera a pró-
pria dinâmica das ruas da cidade:
O espetáculo na rua parece intensificar tendências da teatralidade que compõe as rotinas da rua. O sujeito se desloca pela cidade com o fim de chegar a algum espaço fechado, ou aquele sujeito que esta na rua – vivendo ou trabalhando momentaneamente – desempenham papeis no 'espetáculo' que é a rua. (CARREIRA, 2009, p. 3)
2.3.6 Momento e espacialização, ou como as práticas de rua participam da res-
significação dos lugares e de uma renovação do imaginário urbano
Ademais, a relação prolongada com um determinado público (de uma esqui-
na, de uma praça, de um bairro, de uma cidade…) acaba criando realmente um es-
paço de encontro, de diálogo, de festa. Isso pode ter inicialmente um caráter mo-
mentâneo, mas através de ações repetidas e/ou ancoragem do grupo/artista num
lugar determinado, acabam se criando vínculos. Isso provém em parte da aborda-
gem em relação às populações dos lugares onde se “tramam” as intervenções, que
pode ser realizada de maneira simples, levando em conta o lugar e as realidades do
seu público. Poderíamos intuir que as ações dos artistas de rua se expressam e aca-
bam se “imprimindo” nesses ambientes urbanos.
A manifestação teatral que se aproxima do seu público (sua comunidade), sem restrições de quarta parede e de fossos de orquestra; impedimentos econômicos como a cobrança de ingressos; sem subestimar ou superesti-mar o público; sem exigir e impor silêncio sepulcral e contrição absolutos com relação à obra e tantas outras o como exigências, efetivamente separa-tistas, podem repropor o espetáculo como festa e como encontro. (MATE, 2009, p. 30)
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Assim, esses fazedores de teatro de rua levam em conta de maneira profunda
o lugar onde estabelecem suas intervenções teatrais. Eles pensam sua arte e seu lu-
gar de trabalho, a rua e seus acasos:
A rua tem se caracterizado como um espaço importante, em relação ao acesso teatral. Entretanto, os artistas que escolhem esse local têm enfren-tado problemas ao longo da história, seja por suas proposições políticas, seja simplesmente porque a cidade precisa “ser controlada”. Daí a rua ser, ao mesmo tempo, um espaço democrático e de resistência. Democrática para o público (nada os prende, a não ser o interesse pela obra) e para os artistas, pois oferece inúmeras possibilidades quanto à criação artística; e de resistência às estruturas de poder e as artes hegemônicas. (ALVES, 2012a, sem paginação)
Precisa então enxergar melhor como o momento se espacializa num lugar e
participa potencialmente à sua ressignificaçáo. Essas considerações revestem uma
grande importância, pois explicam o projeto atrás da apropriação residual do espa-
ço. Isso permitirá entender melhor, à seguir, nossa apropriação da noção de ritmo
para tratar dessas práticas. As intervenções de artes de rua ocasionam o aparecimen-
to de uma forma que se estabelece como conteúdo diferenciado nas tramas do coti-
diano. Vemos então como Bihr sintetiza a espacialização do momento:
A emergência de um momento no seio do vivido supõe a intervenção or-denadora, estruturadora de uma forma: ela supõe se tornar forma, ou até a formalização do conteúdo do momento, conteúdo tirado no vivido que fornece então a matéria e o material dos momentos: instantes, objetos, atos e situações; imagens, símbolos e representações: estados subjetivos, atitudes e comportamentos, etc. A forma garante a unidade do momento: ela junta esses elementos esparsos no seio do vivido […].
Todo momento cria, portanto, uma espacialidade e uma temporalidade apropriadas, ao mesmo tempo subjetivas (pois povoadas por representa-ções – imagens, símbolos, objetos expressivos ou significativos – que tem sentido para e pelo individuo ou o grupo que as movimentam) e objetivas (pois determinadas ou surdeterminadas socialmente pelo intermediário precisamente dos elementos formais do momento). (BIHR, 2009a, p. 17, tradução nossa)
Essa análise é muito pertinente para estruturar nossa abordagem das práticas
de artes de rua: evoca justamente a aparição de uma forma numa forma urbana pre-
determinada, onde não podem deixar de aparecer novas potencialidades. Trata-se
de conceber tanto os elementos materiais e simbólicos presentes.
Toda a reflexão de Lefebvre (1961, 1983, 2000), quer seja na sua teoria dos
momentos, seu pensamento acerca da presença e da ausência ou sobre os espaços
de representação, almeja pensar sobre a superação das representações. Essa supera-
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ção tem como objetivo, na verdade, deixar emergir novas representações, que levam
em conta a articulação entre o vivido e o concebido, para que o espaço possa ser
produzido em plena consciência pelos diferentes atores que formam a sociedade e
vivem num determinado lugar.
Nos parece que Hiernaux (2008) nos permite dialogar novamente com os
pensamentos de Lefebvre, quando evoca o imaginário urbano como guia de análise
e de ação. Assim, Hiernaux pretende distinguir o imaginário da mera representação:
o imaginário traz um complemento de sentido às representações, as trans-forma simbolicamente para ser tanto guia de análise como guia de ação. […] Nisso nasce a força criativa do imaginário, que ultrapassa a mera repre-sentação: o imaginário produz imagens atuantes, imagens-guias que geram processos e não somente representam realidades materiais ou subjetivas. Em outro contexto, confirmamos isso também, expressando que o imagi-nário constitui, portanto, um processo dinâmico que dá sentido à mera re-presentação mental. (HIERNAUX, 2008, p. 20, tradução nossa)
Nos parece importante ter em mente essa noção de imaginário urbano no ca-
so dos artistas de rua. Como vimos, as ações que realizam são momentâneas, mesmo
se alguns grupos podem ter uma sede, animar oficinas, abrigar material, reunir pes-
soas. Desse modo, essas práticas de artes de rua têm pouca influência, num primeiro
momento, sobre a forma material da cidade. Parece importante nos apropriar da
noção de imaginário urbano que completa a visão que podemos ter destas.
os imaginários urbanos constituem uma perspectiva que dá necessaria-mente conta da relação entre o não-material, a subjetividade espacial e a cidade com suas formas materiais. As práticas sociais, ao se ancorarem e se espalharem, contribuem para a produção da cidade material, mas ao mes-mo tempo essas práticas adquirem certos rasgos a partir da materialidade da cidade. Essa relação entre formas materiais e praticas fica inconclusa se não consideramos estas com a ajuda dos imaginários urbanos. (LINDÓN, 2007, p. 12, tradução nossa)
Pelo viés do imaginário urbano, podemos conceber a ressonância de tais prá-
ticas sociais. Assim, consideramos o impacto dessas ações na forma material da ci-
dade, mas também os afetos que propagam, as relações que promovem. A nosso ver,
os artistas de rua mexem com o imaginário de duas maneiras. Primeiro, precisam
realizar um trabalho acerca dos elementos simbólicos que entrarão na dramaturgia
das suas intervenções. Quer seja no caso de um artista autônomo ou de um grupo de
teatro de rua, opera-se uma escolha da música, do figurino, dos elementos cênicos,
do texto ou do discurso. As artes implicam símbolos. No caso do artista popular,
precisa selecionar estes cuidadosamente (MATE, 2009, p. 31) para ter êxito na pro-
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posta de alcançar a compreensão e a emoção do máximo de pessoas que vão assistir
dessas intervenções imprevistas (sobretudo por parte do público). Precisa assim se-
lecionar alegorias que sejam apreensíveis pelas pessoas. A reflexão sobre a cidade e o
imaginário urbano nos parece assim presente. Do outro lado, através das interven-
ções que realizam, os artistas de rua mexem com o imaginário urbano. As práticas
de artes de rua mexem momentaneamente com a forma material da cidade, inter-
rompendo seus fluxos, subvertendo sua materialidade, apropriando-se concreta-
mente da sua forma material. O que resulta dessas práticas remete, a nosso ver, a
ideia do imaginário como guia de analise e de ação, pois as intervenções de artes de
rua propõem uma troca afetiva que resulta no enriquecimento da experiência urba-
na. Promovem novos usos e se repercutam na construção de novas imagens da cida-
de (CARREIRA, 2009, p. 5).
3. As rupturas dos ritmos do cotidiano: integração da noção de rit-
mo às analises do espaço urbano
Mas nunca se viu tal dança como a de Turíbio Cafubá celebrando sua filha, pois ele ficou transparente e logo muito preto e logo estava em toda parte, às vezes paran-do e vibrando como uma asa de cigarra, às vezes se dis-solvendo em tantas formas que as pessoas não sabiam em que acreditar, e então todos os ritmos que brotavam de sua figura eram ritmos de alguma coisa acontecendo dentro de cada um, sangue pulsando, dedos se abrindo, fôlegos tomados, tudo o que pode ocorrer no corpo, tudo a que o espírito se entrega.
João Ubaldo Ribeiro, em Viva o povo brasileiro
Com o objetivo de enriquecer nossa análise das práticas de artes de rua, que
constituem a ênfase de nossa pesquisa, desejamos nos apropriar mais detidamente
da noção de ritmo. Trata-se de mostrar como essas práticas permitem redefinir à sua
maneira o sentido do urbano, ressignificar os lugares através da ação dos corpos. Por
sua expressão, esses eventos de artes de rua28 imprimem aos corpos individuais e ao
próprio corpo urbano um conjunto de novas maneiras de perceber e vivenciar o es-
paço urbano.
28 Na perspectiva do nosso estudo, levamos especialmente em conta as artes cênicas, que induzem um uso singular do corpo: malabarismo, teatro, circo, musica, poesia…
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Essas práticas sociais imprimem, como queremos demonstrar, ritmos que
contribuem em propagar novas formas e novos conteúdos, susceptíveis de restituir o
urbano e vislumbrar momentos da unidade dialética presença/ausência.
A noção de ritmo, levando em conta a polirritmia presente no espaço, nos
permite valorizar diferentes elementos na nossa reflexão sobre o urbano. Nos permi-
te colocar essas práticas em perspectiva, sem separá-las do contexto social e natural
onde elas acontecem.
3.1. A ritmanálise e o urbano: aproximações iniciais
A nosso ver, a ritmanálise, apresentada mais detalhadamente pelo filósofo
francês Henri Lefebvre (1992), no livro “Éléments de rythmanalyse: introduction à la
connaissance des rythmes”, constitui, por assim dizer, um tipo particular de síntese
da obra desse autor, tanto em relação à teoria dos momentos quanto à critica da
vida cotidiana. Em diferentes trechos da sua obra, já evocava os ritmos29. Lefebvre
desejou se debruçar de formas mais detida sobre essa noção no final da sua vida.
Como escreve René Loureau, no prefácio do livro: “O projeto ritmanalítico foi o jar-
dim secreto de Henri Lefebvre até o fim”. A ritmanálise apresenta uma escolha me-
todológica que coloca o corpo do pesquisador como unidade de base da sua refle-
xão, como primeiro estímulo.
Na linha do raciocínio que orienta nosso estudo, isso adquire grande impor-
tância: primeiro, porque desejamos tratar de práticas corporais, que almejam criar
novas relações sociais e corporais no espaço vivido. Segundo, isso tende em simplifi-
car a separação entre objetividade e subjetividade. O ponto de partida é o concreto
(o corpo), segue em direção à dimensão do abstrato para logo se relacionar com a
dimensão do concreto, sempre tendo o maior cuidado na explicitação do real e seu
movimento.
Cabe, assim, estar alerta ao risco de especulação, para não deixar o subjetivo
adotar uma postura de objetividade simplificadora: exige-se a permanente escuta
dos fatos e do real. A abordagem da ritmanálise permanece neste sentido fiel ao mé-
29 Pensamos, em particular, aqui nos três volumes da “Critica à vida cotidiana” de Lefebvre e na teoria dos momentos que ele elabora (LEFEBVRE, 1956, 1961).
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todo de Lefebvre, tal como esta é explicitada ao longo da sua obra. É precisamente
essa importância dada ao corpo do pesquisador e ao domínio do sensível que nos
interessa particularmente: o ritmo nos permite retratar a espontaneidade das rela-
ções sociais que podem emergir durante os eventos de arte de rua que considera-
mos.
Ao mesmo tempo, não perdemos de vista a perspectiva marxista que fornece
os fundamentos do pensamento lefebvriano e nos permite não esquecer das nume-
rosas implicações colocadas em jogo pela redefinição do urbano e a transformação
do cotidiano pela prática social que lhe é inerente. Fundar uma ciência, a ritmanáli-
se: eis a abordagem metodológica ambiciosa de Lefebvre presente nesses elementos
de ritmanálise. O ritmo pode servir a setores elaborados do saber e da criação, mas
se situa na linha de reflexão do autor sobre a vida cotidiana. Essa noção permite vis-
lumbrar a criação do vivido e, portanto, se articula necessariamente a uma busca
conceitual que busca promover transformações no cotidiano. À seguir, procuramos
definir pouco à pouco o ritmo, respeitando o caminhar da reflexão de Lefebvre.
3.1.1. Redimensionar a noção de ritmo: breve consideração etimológica
Um interessante trabalho etimológico do termo ritmo foi realizado por Géra-
rdot (2007), ao considerar que para os gregos, foi durante muito tempo definido
como um movimento regular, periódico e cadenciado. A etimologia considera que
ritmo vem do grego rhuthmos (movimento regulado e mensurado), oriundo do ver-
bo rhein, significando escorrer. Assimila-se assim o ritmo ao vai e vem das ondas. O
retorno regular e periódico de um movimento vem à tona ao nosso imaginário, no
sentido comum. Mas Gérardot mostra que Benveniste, linguista bastante conhecido,
propõe outra interpretação desse termo:
Para Benveniste, o ritmo é uma forma improvisada, momentânea, modifi-cável; uma disposição sem fixidez nem necessidade natural e resultando de um arranjo sempre sujeito a mudar. Ele define assim o ritmo não como uma cadência regular, mas como um fenômeno dissimétrico. Em outros termos, “o que interessa o ritmo, não são as semelhanças, mas as diferen-ças”30. (GÉRARDOT, 2007, sem paginação, tradução nossa)
30 Em citação a Bureau (1992, p. 134).
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Benveniste considera que o ritmo se aplicava na língua grega ao curso e à cor-
renteza de um rio ou riachuelo, e não ao movimento de vai e vem das ondas. Com-
partilhamos esse ponto de vista apresentado por Gérardot (2007), na medida em que
adotar e valorizar esse sentido do ritmo é muito importante, pois deixa surgir o im-
previsto, a polirritmia. Permite abordar o mundo na sua complexidade, não buscan-
do falsas regularidades ou falsas leis de repetições. Lefebvre tende a considerar, cer-
tamente, esse fluir do ritmo, quando afirma que as repetições nunca deixam de gerar
diferenças.
3.1.2. Perspectiva da noção de ritmo de Lefebvre, a partir dos “Elementos de rit-
manálise”
Seguindo Gérardot (2007) e outros autores que nos ajudam a incorporar a
noção de ritmo ao léxico geográfico31, nos apoiamos sobretudo aqui sobre as análises
de Lefebvre (1992) que introduz plenamente o ritmo através da sua exposição da
ritmanálise. Como observa Elden (2007, p. xi) no seu prefácio à versão inglesa do
texto de Lefebvre, o ritmo é enxergado como ferramenta de analise. Seria o “univer-
sal concreto” que buscaram infatigavelmente certos filósofos (LEFEBVRE, 1992, p.
63). No momento em que observamos um debate muito sensível das concepções
lefebvrianas em torno da apreensão da ritmanálise, desejamos compartilhar nossa
leitura com outros leitores e pensadores no Brasil, pois a referida obra não apresen-
tou a mesma repercussão das demais obras, já bastante conhecidas, do filósofo fran-
cês.
A ritmanálise é fundada numa ótica de transformação; trata-se de elaborar
um pensamento da metamorfose:
A análise consiste, tentando isolar tal ou tal ritmo, em compreender o que lhe vem da natureza e o que é adquirido nele, convencional, ou sofisticado. Análise difícil que possivelmente tem um alcance ético, isto é, prático. Em outros termos: o saber do vivido modificaria o vivido sem saber, o meta-morfoseria. Aqui se encontra, abordada de uma outra maneira, o pensa-mento da metamorfose (LEFEBVRE, 1992, p. 30, tradução nossa)
Enxerga-se aqui a alusão à prática marxista da qual Lefebvre se apropriou ao
longo da sua obra. A ritmanálise busca integrar, através da noção de ritmo, tanto o
31 Destacamos, em particular, o artigo de Meyer (2008), que debruça-se integralmente sobre a ritma-nálise de Lefebvre, sintetizando muito bem certos aspectos e realizando destaques valiosos.
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que é social quanto o que é natural: propõe superar essa contradição, observando
que isso acaba por se mesclar nos mesmos ritmos. Restitui assim a unidade entre o
social e o natural.
O ritmo pode ser mensurado, e isso se deve à consideração da repetição.
Mesmo assim, cabe não reduzir a repetição a um movimento mecânico, idêntico.
Através da repetição, o autor evidencia duas primeiras dimensões centrais na com-
preensão do ritmo: o linear e o cíclico.
O linear resultaria mais da prática social, isto é, da atividade humana: mo-notonia das ações e dos gestos, quadros impostos. Os grandes ritmos cícli-cos têm um período e um novo início: a alvorada, sempre nova, muitas ve-zes esplêndida, inaugura o retorno do cotidiano. A unidade conflitual das relações entre o cíclico e o linear gera consensos, mas também perturba-ções (LEFEBVRE, 1992, p. 17, tradução nossa)
O linear e o cíclico remetem a diferentes usos dos tempos sociais, mas de ne-
nhuma maneira se opõem um ao outro. O pensamento dialético atravessa toda a
reflexão lefebvriana:
O tempo e o espaço, o cíclico e o linear têm essa ação recíproca; se medem um ao outro; cada um se torna medidor e medido; tudo é repetição cíclica através repetições lineares. Uma relação dialética (unidade na oposição) adquire assim sentido e extensão, isto é, generalidade. Atinge-se, por esse caminho como por outros, à profundeza da dialética. (LEFEBVRE, 1992, p. 17, tradução nossa)
Isso se relaciona com suas reflexões sobre a produção do espaço e a maneira
de conceber o espaço, promovendo o uso frente à troca:
A ciência do espaço seria então ciência do uso, enquanto as ciências espe-cializadas fazem parte da troca e se querem ciências da troca (da comuni-cação, do comunicável: economia, politica, sociologia, semiologia, informá-tica, etc.). Assim, a ciência do espaço se assimilaria à materialidade, à qua-lidade sensível, à naturalidade, mas destacando a natureza segunda: a ci-dade, o urbano, a energética social. […]. Essa tendência inverte a tendência dominante e dominadora, pois a apropriação recebe um privilégio teórico e prático. Como o uso contra a troca e a dominação. (LEFEBVRE, 2000, p. 425, tradução nossa)
Portanto, podemos separar durante a análise as repetições lineares e as repe-
tições cíclicas mas, na verdade, elas estão constantemente em interação. Às vezes, o
autor parece discriminar o linear, mas isso está ligado ao contexto histórico e social.
Lefebvre (1981, p. 130) explica que somente o repetitivo linear pode ser plenamente
quantificado e homogeneizado. A quantificação está associada ao tempo do relógio,
onde os dispositivos mecânicos tendem a submeter o cíclico. O linear está, portanto,
associado à programação do cotidiano, ao adestramento e ao acondicionamento dos
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corpos, à repressão da espontaneidade e do imprevisto. Mas o adestramento está
encarado como “uma seqüência linear de imperativos e de gestos que se repete cicli-
camente” (LEFEBVRE, 1992, p. 57).
O modelo do adestramento, provindo de uma prática milenar, tende a se es-
palhar ao conjunto dos tempos sociais e naturais, para limitar ao máximo a parte do
imprevisto. Tende a determinar a maioria dos ritmos. No entanto, mesmo desse
modo, não pode, absolutamente, impedir o imprevisto e a aparição da diferença.
O que nos parece uma constante preocupação na obra de Lefebvre, é a dife-
rença, a emergência de novas possibilidades, em particular as virtualidades contidas
na forma urbana. Levar em conta a diferença passa a ser considerado como uma exi-
gência em toda abordagem científica que pretenderia se relacionar com o real. A
ritmanálise apresenta essa mesma escolha metodológica. No caso, o autor se debru-
ça sobre a repetição como reveladora da diferença:
Ao contrario de excluir as diferenças, a repetição as gera: ela as produz. Ela encontra cedo ou mais tarde o evento que vem e advém em relação à se-quência ou série produzida repetitivamente. Em outros termos: a diferença. (LEFEBVRE, 1992, p. 16, tradução nossa, grifos do autor)
Assim, a ritmanálise adquire uma pertinência analítica a partir do momento
onde se considerada a polirritmia: é possível contemplar um numero considerável
de ritmos, de maneira interdisciplinar, quer seja uma vida individual, quer a vida de
um grupo, a batida de um coração ou a pulsação de uma cidade inteira. A polirrit-
mia esta associada à eu-ritmia, estado onde os ritmos “se juntam no estado da saú-
de, da cotidianidade normal, isto é, normatizada!” (LEFEBVRE, 1992, p. 26). A a-
ritmia significa um desfuncionamento, uma discordância dos ritmos, que pode levar
à uma desordem mortal. O importante aqui para nós, é que a polirritmia supõe que:
A polirritmia analisa-se. Prospectiva fundamental: A análise consegue em algum momento isolar tal ou tal movimento com seu ritmo no conjunto organizado. A operação analítica, acoplada frequentemente de modo empí-rico à especulações (cf os médicos na auscultação, etc.) descobre ao mesmo tempo a multiplicidade dos ritmos e a unicidade de tal ritmo (o coração, os rins, etc.). A ritmanálise aqui definida como método e teoria persegue esse trabalho milenar, de modo sistemático e teórico, reunindo práticas muito diversas e saberes muito diferentes; medicina, historia, climatologia, cos-mologia, poesia (poiética), etc. (LEFEBVRE, 1992, p. 27, tradução nossa, gri-fo do autor)
Nesse trecho vislumbramos a possibilidade que a ritmanálise possui de tratar
de uma grande diversidade de práticas sociais. Entra, portanto, a idéia de medida: os
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ritmos são ao mesmo tempo mensuráveis quantitativamente e qualitativamente.
Cada ritmo tem sua medida específica: pode distinguir-se a freqüência, a intensida-
de, a velocidade. Mas essa medida permanece relativa, no sentido em que cada rit-
mo é considerado lento ou veloz somente em relação com outros. Ademais, se o
ritmo é suscetível de ser quantificado, ele escapa finalmente à lógica:
Em resumo, os ritmos escapam à lógica e, no entanto, eles contêm uma ló-gica, um calculo possível, números e relações numéricas. (LEFEBVRE, 1992, p. 20, tradução nossa)
Os ritmos são considerados como sendo
o mesmo tempo naturais e racionais, e nem um nem o outro. O ritmo de uma valsa de Chopin é natural ou factício? Os ritmos das formulas de Ni-etzsche – as de Zaratustra, são naturais ou racionais? Eles têm às vezes o ritmo do andar dos corpos, do passo do pensador poeta. (LEFEBVRE, 1992, p. 18, tradução nossa)
Assim, mesmo se a ritmanálise consegue isolar um ritmo incluso num con-
junto de ritmos, mesmo se podemos desfazer o pacote de ritmos apresentando
componentes naturais e ritmos com função mais social ou mental, não perdemos
jamais de vista o movimento desse conjunto.
O que interessa particularmente Lefebvre é a idéia de ruptura. Ele já formu-
lou isso numa abordagem anterior à da ritmanálise: a programação do cotidiano tem
como corolário uma necessidade renovada de ritmos, de rupturas, que podem se
estabelecer, por exemplo, através da festa e pode também adotar formas anormais,
até mórbidas (LEFEBVRE, 1981, p. 135).
A nosso ver, a idéia das rupturas está fortemente associada à idéia de diferen-
ça. Trata-se de revelar pela análise os ritmos participando da transformação do coti-
diano pelo vivido, sem que isso resulte em uma a-ritmia, à lógicas mortíferas. Além
da transformação do cotidiano, é a transformação da sociedade no seu conjunto que
é o ponto de vista do autor, já que isso implica uma nova relação entre o espaço e o
tempo. Isso é possível e realizável somente pela prática e a inovação, sem se esque-
cer das repetições dos ritmos anteriores, das reaparições. A impressão de ritmos no-
vos, produtores de sentido, parecem revelar o potencial da ritmanálise, porque pro-
move a ação:
Os tempos sociais mostram possibilidades diversas, contraditórias: atrasos e avanços, reaparições (repetições) de um rico passado (aparentemente), e revoluções que introduzem bruscamente um conteúdo novo e, às vezes, mudam a forma da sociedade. Os tempos históricos desaceleram, avançam,
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ou regressam, vão em prospecção ou em retrospecção. Segundo qual crité-rio? Segundo as representações e as decisões políticas, mas também se-gundo a perspectiva adotada pelo historiador. Objetivamente, para que te-nha mudança, precisa que um grupo social, uma classe ou uma casta, in-tervenham imprimindo um ritmo numa época, seja pela força, seja de ma-neira mais insinuada. Ao longo de uma crise, numa situação crítica, precisa que um grupo se designe como inovador ou produtor de sentido. E que seus atos se inscrevam na realidade. A invenção não se comenda, nem militar-mente, nem ideologicamente. Às vezes, muito tempo após as ações, perce-be-se a emergência da novidade. Precisa para isso discernimento, atenção e sobretudo abertura. (LEFEBVRE, 1992, p. 25, tradução nossa, grifos do au-tor)
Essa idéia de impressão de um ritmo, associada à idéia de ruptura, constitui
um dos pontos de partida da nossa reflexão sobre práticas de arte de rua e a restitui-
ção do urbano. De fato, nos parece que, na sua escala, os artistas de rua tendem a
instaurar momentos que produzem sentido em relação ao uso do espaço como lugar
de encontro. Proporcionam uma pausa que foge da lógica que programa o cotidiano
da cidade, onde podem aparecer novas relações sociais, novas formas de tramar o
espaço-tempo de um lugar. Essas relações oriundas de tais momentos dão espessura
às tramas da cidade e dão novos sentidos ao urbano.
Nos parece útil sublinhar, ainda, que a impressão de um ritmo não deve ser
vista como um conjunto de práticas isoladas do contexto social mais amplo. Mesmo
se podemos vislumbrar que um único indivíduo, cuja trajetória seria abordada como
um ritmo, possa sozinho provocar um encadeamento de situações históricas que
influenciam o curso da Historia, desconsideramos na verdade tal abordagem. Como
Lefebvre sublinha, isso constitui uma perspectiva adotada pelo historiador: o culto
dos grandes homens deve chegar ao seu fim. Isso não significa que desprezamos o
gênio ou a singularidade de tais indivíduos, mas na realidade, não podemos perder
de vista a visão do conjunto, relações complexas que tramam esses destinos singula-
res.
Portanto, não consideramos neste estudo que esses atores sociais (os artistas
de rua) constituem uma vanguarda revolucionária para a mudança possível da soci-
edade: nossa observação empírica mostra que esses indivíduos são inseridos numa
trama complexa de relações que pretende, aliás, instaurar uma horizontalização das
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relações de poder32. A arte de rua é aqui considerada como uma prática secular; a
atenção particular que merece no contexto atual constitui somente uma reaparição
desse fenômeno que sempre existiu. Participa, sem dúvida, na impressão de ritmos
que tenderiam a uma redefinição do urbano como lugar do encontro e do imprevis-
to. Assim, as práticas consideradas constituem uma miríade de ritmos, tomadas
num conjunto polirrítmico mais amplo, que desafiam, à sua maneira, a programação
da vida cotidiana e permite vislumbrar outros tipos de relações sociais. Sobretudo,
essas práticas instauram outro uso do tempo social.
O que nos interessa particularmente é a associação que o autor realiza entre a
medida do tempo e a medida dos ritmos. Os ritmos, suas impressões e suas repeti-
ções, participam da formação dos tempos sociais: é isso que está em jogo na trans-
formação possível do cotidiano, pois “as diferenças, induzidas ou produzidas pelas
repetições, constituem a trama do tempo” (LEFEBVRE, 1992, p. 16).
Vemos que é importante salientar a maneira pela qual as práticas sociais po-
dem imprimir ritmos: isso se revela através da análise dos tempos sociais que se
tramam no espaço através de uma dissipação de energia. De fato, Lefebvre enxerga
ritmos em cada ponto onde ha interação entre um lugar, um tempo e uma dissipa-
ção de energia. Em nosso caso, essa impressão de ritmos realiza-se através da ex-
pressão do corpo, em diferentes níveis (movimentos, narrativas, sons, gestos…). So-
bretudo, essa impressão é feita de continuidades e descontinuidades nos tempos
sociais. Essa noção de continuidade e descontinuidade constitui igualmente um pa-
râmetro importante para a análise dos ritmos: colocam-se em jogo as noções de in-
tensidade e de presença. Podemos considerar um conjunto “dominante” de ritmos
que rege de maneira relativamente continua e coordenada a programação do cotidi-
ano, tanto manipulando o tempo (LEFEBVRE, 1992, p. 68), quanto instaurando uma
rotina de fatos e de gestos que constituem os fundamentos de um adestramento
determinando a maioria dos ritmos do cotidiano (LEFEBVRE, 1992, p. 58). Mas nun-
ca há uma continuidade real, apenas uma tentativa de instaurar ritmos dominantes
32 Vale dizer que tivemos, por exemplo, a oportunidade de estar em contato com vários membros da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), rede nacional de artistas e grupos de teatro-circo de rua. Isso enriqueceu muito nossa analise, além de nos fornecer uma documentação de suma importância. Abordamos isso no Capítulo 4 desse trabalho.
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que tenham um efeito durável e uma freqüência contínua nas tramas do espaço-
tempo onde são emitidos. Pensamos em particular nas mídias, que são como uma
fábrica de imagens que imprimem constantemente ritmos. No entanto, Lefebvre
exorta o futuro ritmanalista a não se deixar enganar pelas aparências: precisa consi-
derar os fluxos de imagens (TV, imprensa…) como ritmos entre outros, para “evitar a
armadilha do presente que se dá como presença e quer efeitos de presenças” (LEFE-
BVRE, 1992, p. 35, tradução nossa, grifos do autor).
Os ritmos são ferramentas de análise que permitem justamente relativizar es-
ses ritmos que se querem dominantes, sem deixar de perceber e considerá-los. Com
efeito, no conjunto polirrítmico, distinguimos outros ritmos que possuem uma ou-
tra qualidade, uma outra intensidade, induzindo um outro uso do tempos social,
que vai tecendo diferentemente o espaço, tanto ao nível da materialidade, quanto ao
nível das representações.
A dissipação de energia, no nosso caso, é corporal, palpável aos olhos do pú-
blico. Se instaura no espaço real e tece relações através dos afetos, produzindo dife-
renças no uso comum de um lugar. A noção de continuidade e descontinuidade é
um critério que precisamos destacar para determinar o impacto de tais momentos.
Esses momentos são considerados como rupturas dos ritmos do cotidiano, produ-
zem diferenças, que podem ser analisadas a partir do momento que levamos em
conta o sensível. A teoria dos momentos, portanto, nos parece dar conta dessas rup-
turas e entender melhor a ideia de presença se opondo ao simulacro da imagem.
A imagem, como o presente, carrega-se de ideologia: ela a contém e a es-conde. A presença está aqui (não em cima ou mais além). Com a presença, há diálogo, uso do tempo, palavras e atos. Com o presente, que está aí, so-mente há troca e aceitação da troca, do deslocamento (do eu e do outro) por um produto, por um simulacro. O presente é um fato e um efeito de negocio; enquanto a presença se situa na poética: valor, criação, situação no mundo e não somente nas relações de troca. (LEFEBVRE, 1992, p. 66, tradução nossa, grifos do autor)
Podemos relacionar essa idéia de presença com a formação dos momentos
que instauram a simultaneidade da presença e da ausência e permite momentanea-
mente reintroduzir o jogo e o encontro na trama do espaço-tempo. Assim, são os
ritmos que instauram uma verdadeira presença que interessam particularmente o
autor. Não podemos deixar de pensar que isso constitui uma escolha metodológica,
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mas ética também. A nosso ver, isso se deve à própria pertinência da ritmanálise,
que leva em conta o sensível, que o Lefebvre relaciona ao presente, o real:
O sensível, portanto, esse escândalo da filosofia apos Platão, retoma sua dignidade no pensamento, como na prática e no juízo comum. Nunca de-sapareceu, mas tampouco passou por essa transformação que lhe da um lugar de destaque no pensamento e restitui seu sentido e sua riqueza. O sensível? Nem é o aparente, nem o fenomenal, é o presente.”(LEFEBVRE, 1992, p. 33, tradução nossa, grifo do autor)
3.1.3. O corpo do ritmanalista como ponto de partida: importância metodológica
3.1.3.1. A respiração
Chegar ao concreto pela experiência, pensar com seu corpo, tudo isso consti-
tui um pré-requisito para o ritmanalista, que mobiliza todos seus sentidos para en-
xergar o entrelaçamento dos ritmos, mas ao mesmo tempo distinguir cada um na
sua existência distinta, nas suas aparições sucessivas. Isso explica a instância do rit-
mo como ponto de partida da ritmanálise: o ritmanalista deve ser capaz, num pri-
meiro tempo, de escutar seu corpo e afinar suas percepções. Escutar seu corpo signi-
fica também perceber que este está atravessado por numerosos ritmos que não uni-
camente próprios a este corpo. Os ritmos se entrelaçam: sobretudo, eles respiram. É
certamente no sentido da respiração que Lefebvre dá tanta atenção ao corpo: a res-
piração dos ritmos remeteria, portanto às suas continuidades e descontinuidades, ao
fato que os ritmos querem dizer que não há continuidade possível nos fluxos, no
movimento.
Assim, precisa pensar a totalidade como sucessão de totalizações, que se re-
nova sem parar, mas se estrutura a partir de ritmos que reapareçam com regularida-
de, com uma pulsação e frequências variáveis, intensidades diferentes, mas que po-
dem ao mesmo tempo ser mensuradas, apreendidas através da análise distinta de
um ritmo determinado. A escuta do corpo e da respiração, como do batimento do
coração, nos parece conter esse sentido metodológico que promove Lefebvre:
Para entender e analisar os ritmos, precisa sair deles, mas não completa-mente: seja pela doença, seja por uma técnica. Uma certa exterioridade permite ao intelecto funcionar. No entanto, para entender um ritmo, pre-cisa ser tomado por ele; tem que se entregar, se dar, se abandonar à sua duração. Como na música, na aprendizagem de uma língua (entendemos os sentidos e as conexões somente quando conseguimos reproduzi-los, isto é, produzir ritmos falados). (LEFEBVRE, 1992, p. 42, tradução nossa)
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Podemos imaginar a inspiração e a expiração como o vai e vem das ondas.
Entende-se assim melhor a unidade na oposição do linear e do cíclico, no sentido
em que a respiração constitui um processo linear e cíclico do vai e vem do ar para
oxigenar os pulmões. Sem essa complementaridade na diferença, há a-ritmia, isto é,
morte do corpo. O ritmanalista está primeiramente à escuta do seu corpo também
para oxigenar seu pensamento, metamorfoseá-lo. Toma consciência e reconhece a
validade do seu método através do contato com o real: é somente escutando seu
corpo que Lefebvre inicia sua abordagem de partir do abstrato indo para concreto.
Esse autor cria o conceito de ritmo como elemento de uma ciência que afirma como
nova, pois deseja estabelecer uma maneira de pensar o real que seja uma apreensão
sensível desse real. Neste sentido, a escuta do corpo é uma condição de sobrevivên-
cia para o pensamento. Frenteà todos esses barulhos, frente à cacofonia do espaço
urbano atual, cabe permanecer à escuta das diferenças e, sobretudo, dar conta da
sua pertinência e da sua ressonância. O ritmanalista possui uma ética que dá uma
atenção particular à unidade da presença e da ausência, desejando mostrar essa in-
tensidade particular que instila a presença sensível na trama do espaço-tempo.
Mas o ritmanalista não tem nada em comum com o profeta ou o bruxo. Nem com o metafísico ou o teólogo. Seu gesto, seu ato relacionam ele à ra-zão. Ele espera espalhar esta, conduzi-la sempre mais longe e mais alto, re-encontrando o sensível. Resumindo, ele não é um místico. Mas tampouco se quer positivista, ou aquele que constata: o empirista. Ele muda o que observa: coloca isso em movimento, reconhece seu poder. Neste sentido, parece próximo do poeta, ou do homem de teatro. A arte, a poesia, a músi-ca, o teatro sempre trouxeram alguma coisa (mas o quê?) ao cotidiano. Não o refletiram. O criador descia nas ruas da sua cidade: os habitantes mascarados moravam junto com os outros cidadãos Eles assumiam a vida citadina. (LEFEBVRE, 1992, p. 39, tradução nossa, grifo do autor)
Parece-nos que a noção de medida (entendida como projeto) é fundamental
para apreender os ritmos. Com efeito, permite atestar que a ritmanálise busca elabo-
rar-se de acordo com o real sensível. A presença e um ritmo determinado podem ser
abordados de diversas maneiras, mas tudo isso é quantificável, não são boas inten-
ções ou elucubrações, tampouco uma serie de números ou observações sem alma,
defasadas em relação ao burbulhar do real que permite uma apreensão sensível do
cotidiano. Com um método baseado na escuta do corpo, o ritmanalista “será capaz
de 'escutar' uma casa, uma rua, uma cidade, como o ouvinte escuta uma sinfonia”
(LEFEBVRE, 1992, p. 35). Isso se torna também possível, porque sua abordagem é
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transdisciplinar, não consiste em pontos de vista parcelares. Pretende realizar uma
síntese em relação com um ritmo distinto, inserido num conjunto determinado mas
em movimento, que se deixa perceber sob diversas dimensões, inclusive as interliga-
ções com numerosas outras totalidades, de maneira multiescalar. Lefebvre não dese-
ja que o ritmanalista seja trancado numa torre de marfim: ele compara-o ao poeta e
ao homem de teatro, ao criador que se envolve na vida da cidade. De novo, respira-
ção: através desses trechos, Lefebvre se reclama de todo um movimento do pensa-
mento, que possui uma respiração e uma ressonância na própria história do pensa-
mento, mas, sobretudo, do vivido. É através essa afirmação do corpo que Lefebvre
pode transmitir o que ele percebe e concebe como presença: a apreensão sensível do
real pelo ritmanalista, e ao mesmo tempo, as possibilidades concretas da restituição
do urbano ou da presença no seio desse real.
3.1.3.2. Ressonância e presença
Estar à escuta significa também prestar atenção à ressonância dos ritmos.
Através disso conseguimos perceber melhor a presença. Com efeito, nós enxergamos
o ritmo como tendo uma fonte emissora, repetida de maneira aleatória, mas não
desprovida de medida. Tal a mão que bate o coro de uma percussão e que tem cla-
ramente um projeto na mente. Eis ai como entendemos o sentido da medida, en-
tendida pelo Lefebvre como projeto:
Um paradoxo a mais: o ritmo parece natural, espontâneo, sem outra lei que seu desdobramento. Mas o ritmo, sempre particular (música, poesia, dan-ça, ginastica, caminhar, etc.) implica sempre uma medida. Cada vez que tem ritmo, há medida, isto é, obrigação calculada e prevista, projeto. (LE-FEBVRE, 1992, p. 17, tradução nossa)
Portanto, entendemos através da medida o potencial trans-disciplinar da rit-
manálise, a partir do momento onde o ritmo se reveste de uma certa intencionali-
dade, ou mais exatamente, de uma certa intensidade, de uma presença.
O gesto ritmanalítico transforma tudo em presenças, inclusive o presente, tomado e percebido como tal. O gesto não se aprisiona na ideologia da coi-sa. Percebe a coisa na proximidade do presente, no caso desse presente, a imagem sendo um outro caso. Assim, a coisa se faz presente, mas não pre-sença. No entanto, o gesto ritmanalítico integra essas coisas – essa parede, essa mesa, essas árvores – num porvir dramático, num conjunto cheio de sentido, transformando-as em presenças, ao invés de em diversas coisas.” (LEFEBVRE, 1992, p. 36, tradução nossa, grifos do autor)
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Neste sentido, entendemos o ritmo na linha de raciocínio que o Lefebvre de-
senvolve através da sua teoria dos momentos, que ele tinha intimamente ligado à
sua critica da vida cotidiana (LEFEBVRE, 1961). Se a teoria dos momentos está parti-
cularmente exposta neste segundo volume, é porque remete à uma apreensão da
totalidade. Na nossa compreensão do ritmo, isso significa que podemos isolar mo-
mentos, durante os quais é emitido um ritmo distinto, que constitui uma novidade
por sua presença singular, que tem uma ressonância particular, através da sua possí-
vel caracterização como obra, sendo fruto da criação. Falando de ressonância, fala-
mos também de freqüência. A nosso ver, a qualidade da emissão do ritmo incide
sobre sua freqüência, isto é, sua capacidade de ressonância. A presença é um critério
que compõe essa ressonância: não queremos descartar a parte de ausência relacio-
nada igualmente à intensidade de um momento. Cada momento tende em apresen-
tar um desejo de absoluto, podendo chegar a negar uma parte do real para cumprir
esse desejo. A presença remete ao sensível, ao que está presente aqui e agora, que
mobiliza os cinco sentidos e não busca estabelecer “a-prioris” para poder enxergar as
possibilidades do real. A ressonância permite então apreender a parte de absoluto
contidos nesses momentos, assim como a possibilidade de avaliar sua propagação
enquanto ritmo. Assim se anuncia a tarefa do ritmanalista, que leva em conta a pre-
sença nas suas reflexões sobre o real: de certo modo, descobre as diferenças e assi-
mila a criação a uma dissipação de energia que trama o espaço-tempo. Essa atenção
dada à obra já era um dos fundamentos da teoria dos momentos e permanece uma
das preocupações primordiais dos elementos de ritmanálise que Lefebvre esboça:
Desde a época chamada moderna, o conceito de obra se obscurece sem de-saparecer; ao contrário, ele se estende e se diferencia em sucedâneos: pro-duto e a coisa. O ritmanalista realizara a cabo obras, renovando o próprio conceito da obra. (LEFEBVRE, 1992, p. 39, tradução nossa, grifos do autor)
3.2. As práticas de artes de rua vistas como impressão de um ritmo na po-
lirritmia do espaço urbano
Nesta parte, desejamos indagar como podemos concretamente usar a noção
de ritmo numa perspectiva geográfica. Gérardot (2007) realiza uma integração da
ritmanálise de Lefebvre, que nos parece digna de interesse. Essa geógrafa francesa
dá como exemplo concreto a transformação de um lugar, o entorno da biblioteca
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François Mitterrand em Paris, inaugurada em 1996. Ela foca em particular sobre as
modificações rítmicas neste lugar através do surgimento do turismo que se desen-
volveu lá aos poucos. Portanto, é considerada a interação crescente da atividade tu-
rística, em relação com a polirritmia do lugar. De certa maneira, isso remete à abor-
dagem de Lefebvre (1992), quando se debruça sobre as cidades mediterrâneas: mos-
tra-nos que podemos distinguir semelhanças entre os ritmos próprios dessas cida-
des, que caracterizariam um pertencimento comum a toda costa do Mar Mediterrâ-
neo. Através desses dois estudos, que ambos se apóiam sobre a ritmanálise, percebe-
se que podemos realmente tratar de ritmos em diferentes escalas, assim como po-
demos considerar diversas dimensões. Neste estudo, dividimos concretamente essas
dimensões como, de um lado, a possibilidade dessas práticas se materializar mo-
menta e concretamente no espaço e, do outro lado, a parte simbólica que provoca
sua ressonância no imaginário urbano. A descrição da ritmanálise que realiza Meyer
(2008) é muito interessante. Coloca esta em perspectiva, aprofunda certos aspectos,
ficando ao nível teórico. Do seu lado, Simpson (2008) se apropria também da ritma-
nálise, mas para tratar mais especificamente de intervenções de artes de rua num
determinado lugar, em diferentes momentos (dia de forte calor, tarde chuvosa).
Nossa ótica se quer um pouco diferente: não analisamos um determinado lu-
gar, mesmo se certos lugares tiveram uma importância singular ao longo da nossa
pesquisa exploratória. Escolhemos propositadamente associar o ritmo a uma prática
social, no caso, as práticas de artes de rua, relacionadas com as artes cênicas (princi-
palmente o circo, o teatro e a musica). Consideramos, em especial, o momento du-
rante o qual essa prática acontece: isso remete a preparação da intervenção no lugar
até o momento quando os artistas e o público deixam o lugar da intervenção, permi-
tindo outras coisas acontecerem. Vislumbramos esse momento como uma possível
ruptura dos ritmos do cotidiano. A teoria dos momentos de Lefebvre inspira nossa
leitura dessas intervenções, mas consideramos, sobretudo, esses momentos como a
possibilidade de impressão de ritmos, através da expressão dos corpos. Poderíamos
definir essas práticas como “práticas materiais ativas” (MASSEY, 2008, p. 175), o que
de certo modo pode ser relacionado com as práticas urbanas, que Lefebvre promove
(1999).
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3.2.1. Paralelo entre a polirritmia e a multiplicidade do espaço
As reflexões de Massey (2004, 2008) integram nesse momento nosso raciocí-
nio. Com efeito, queremos integrar suas recomendações sobre o espaço aberto e, em
particular, sobre a política relacional do espaço. A nosso ver, suas considerações so-
bre o espaço são compatíveis com a visão de Lefebvre sobre as virtualidades conti-
das no urbano, mesmo que mencione tudo isso em outros termos. Define noções
ricas, tais como a trajetória e a narrativa, que se integram a nossa leitura rítmica do
espaço urbano. Portanto, suas reflexões nos parecem dialogar diretamente com nos-
sa percepção desses momentos, que deixam aflorar as práticas de artes de rua que
estamos enfocando em nosso estudo. Desejamos assim estabelecer um paralelo en-
tre a noção de ritmo e a noção de trajetória. Ademais, nos parece que a integração
da noção de ritmo em geografia se situa na linha das reflexões de Massey (2008, p.
177), quando promove uma abertura da imaginação geográfica, no sentido de uma
multiplicidade de devires presentes no espaço. A noção de ritmo parece capaz de
enfrentar esse desafio, pois implica considerar a polirritmia presente em cada lugar,
como constitutiva do espaço.
A polirritmia é correlativa a noção de ritmo: indica a possibilidade de consi-
derar uma simultaneidade de ritmos, em diferentes escalas. Esses ritmos podem
formar uma eurritmia (estado onde eles estão todos numa mesma sintonia) ou uma
arritmia (estado onde os ritmos são demais desconectados, estado que leva, por
exemplo, o corpo à morte). Mas no cotidiano, o ritmanalista observe, sobretudo,
uma polirritmia, que não possui realmente características eurrítmicas ou arrítmicas.
No espaço urbano, o que se destaca é uma cacofonia de ritmos, uma polirrit-
mia, que depende do momento e da hora, do lugar onde se opera a observação. O
artista de rua aborda empiricamente esses fluxos: se instala geralmente num lugar
que possa permitir um mínimo de receptividade e de atenção dadas à atividade que
ele exerce, que o lugar seja calmo, na sombra, ou simplesmente um lugar de passa-
gem (sinal vermelho, saída do Metrô, esquna de uma rua movimentada, praça de
grande afluência ou central numa determinada localidade…). O grupo de teatro de
rua paulistano “Os Inventivos” relata num livro o seu processo de pesquisa acerca de
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um espetáculo. Tentou se organizar em “bando” e assaltar o espaço, inspirando-se
dos atores sociais que ocupam cotidianamente o espaço:
Na maneira como a rua esta pensada, tudo é circulação – de pessoas e de mercadorias. Nesse espaço, tende-se ao deslocamento de um lugar para outro, com destino previamente definido. Aqueles que subvertem essa ló-gica (artistas populares, vendedores ambulantes, meninos e moradores de rua, pregadores evangélicos) tendem a se destacar dessa paisagem: a sua ação transgride a lógica de ocupação da urbe, que os seus habitantes aprenderam a incorporar – não se deslocam pela rua, mas a ocupam. […]
Ações coletivas, alterações de ritmo e aproveitamento de linhas de tensão da arquitetura urbana, por exemplo, deram pistas para a atuação dos ato-res. (OKAMOTO, 2012, p. 49)
Como já vimos, a noção de ritmo se situa na linha de raciocínio que Lefebvre
elabora na sua critica da vida cotidiana ao longo da sua obra. Essa noção leva resolu-
tamente em conta a emergência da diferença, as possibilidades presentes no real,
que podem ou não se realizar, mas que a análise pode destacar. A ritmanálise permi-
te então pensar uma geografia que pensa o ritmo e que toma ao mesmo tempo em
consideração as recomendações de Massey (2004, 2008) acerca do espaço relacional.
A diversidade dos ritmos que é possível observar tem a ver com a diversidade das
trajetórias que Massey (2008) pensa poder abordar. Considerar a polirritmia permite
dar conta da multiplicidade das interações que acontecem num determinado lugar.
Atinge-se uma amplitude de fenômenos que é possível analisar, de maneira trans-
disciplinar. O espaço observado a partir do estudo dos ritmos apresenta assim uma
polirritmia, que podemos relacionar com a segunda recomendação de Massey (2004,
p. 8, 2008, p. 31), ao encarar o espaço e a multiplicidade como co-constitutivos.
O espaço é a esfera de existência da multiplicidade; é a esfera na quais dis-tintas trajetórias coexistem; é a esfera da existência de mais de uma voz. Sem espaço não há multiplicidade, sem multiplicidade não há espaço. Se o espaço é indiscutivelmente produto de inter-relações, então isso deve im-plicar na existência da pluralidade. Multiplicidade e espaço são co-constitutivos. (MASSEY, 2004, p. 8)
3.2.2. A espacialização dos ritmos e as tramas do cotidiano
A ritmanálise trabalha sobre a base de totalidades abertas e busca isolar um
ritmo para melhor distinguir sua diferença e seu potencial de ressonância no seio do
conjunto polirritmico. A noção de trajetória usada por Massey (2004, 2008) e a no-
ção de ritmo que Lefebvre expõe (1992) são ambos temporais na sua ênfase, mas na
verdade pressupõem uma necessária espacialização. Assim, eles levam em conta o
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movimento que atravessa o espaço geográfico, assim como as virtualidades contidas
nele.
os tempos concretos têm ritmos, ou melhor, são ritmos – e todo ritmo im-plica uma relação do tempo com um espaço, um tempo localizado ou, se quiser, um lugar temporalizado. O ritmo é sempre em tal lugar, em seu lu-gar […]. Isso não impede que seja um tempo, isto é, o aspecto de um mo-vimento e de um devir. (LEFEBVRE, 1992, p. 99, tradução nossa)
O que está no centro da argumentação de Massey, é que para considerar o fu-
turo como aberto, o espaço necessariamente deve também ser considerado como
tal:
Foram muitos os que consideraram os desafio e encantos da temporalida-de? Algumas vezes isso foi feito através das lentes daquela corrente do mi-serabilismo filosófico antropocêntrico, que se preocupa com a inevitabili-dade da morte. Sob outros disfarces, a temporalidade foi louvada como a dimensão vital da vida, da própria existência. O argumento aqui é que o espaço é igualmente vivo e igualmente desafiador, e que, longe de ser mor-to e fixo, a própria enormidade de seus desafios significa que as estratégias para dominá-lo tem sido muitas, variadas e persistentes. (MASSEY, 2008, p. 35)
A nosso ver, a preocupação assim colocada com as estratégias para dominar o
espaço vai ao encontro da preocupação que Lefebvre (2000) teve notadamente para
pensar a produção do espaço. Nesta visão lefebvriana, isso articula a programação
do cotidiano com a produção do espaço: levando em conta as práticas do cotidiano,
consideramos que estas se inscrevem no espaço através dos tempos sociais que as
definem. O lugar é uma categoria que serve a nossa análise, pois permite tornar
concreta a apreensão da produção do espaço:
O lugar, portanto, liga-se de modo inexorável à realização da vida como condição e produto do estabelecimento das relações indispensáveis a ela, mas a produção da vida e do lugar revela a necessidade de sua reprodução continuada. Deste modo a noção de produção (e conseqüentemente a de reprodução) é fundamental para o entendimento desse processo […]. Tra-ta-se da elucidação de um movimento que envolve a produção e suas rela-ções mais gerais, o que significa, neste contexto, que as relações sociais ocorrem fora dos limites estreitos da produção de mercadorias e do pro-cesso de trabalho (sem, todavia, negá-la) para enfocar a via em todas suas dimensões (aquela que se desenvolve ligando momentos e lugares como a casa, a rua, o bairro) criando uma trama de relações como trama dos luga-res onde se destaca uma rede articulada que liga as práticas socio-espaciais e é assim que a produção do espaço se realiza enquanto produção ininter-rupta da vida. (CARLOS, 2007, p. 41)
A constituição de tramas remete justamente a materialização das práticas so-
ciais no espaço: as trajetórias, tais como os ritmos, permitem tomar em considera-
ção a diversidade dessas práticas, lhes atribuindo apossibilidade de deixar aflorar o
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vivido no seio do cotidiano. Enxergamos os ritmos com suas próprias intensidades,
freqüências: o ritmo pode ser mensurado, pois está relacionado ao real. Mas adotar
essa noção significa destacar práticas sociais que aparentemente não são necessárias
para a produção do espaço, sobretudo na visão da reprodução das relações sociais
que está por trás das estratégias de dominação no espaço urbano.
Essa dominação do espaço não provém de uma única fonte emissora: se con-
sideramos a polirritmia de um lugar, podemos vislumbrar que ela se compõe de uma
multiplicidade de ritmos que têm conteúdos diversos e, sobretudo, não têm a mes-
ma intensidade. Concretamente, um lugar está organizado de certa maneira, reúne
um grande número de atores que participam da sua materialização, da sua organi-
zação. As estratégias de dominação presentes quando observamos um lugar teriam,
portanto, a ver como a ordem distante que define Lefebvre (CARLOS, 2007, p. 42),
enquanto a ordem próxima tem mais a ver com as tramas tecidas pelos atores con-
cretos do cotidiano. A crítica da vida cotidiana tem como corolário considerar que a
programação do cotidiano tende a gerar práticas rotineiras que, além disso, podem
perder de vista o valor de uso. Com efeito, as práticas se inscrevem no corpo daque-
les que as colocam em movimento, e de maneira mais geral, se inscrevem aos pou-
cos na materialidade do espaço.
Ainda segundo Lefebvre, o cotidiano se revela como encadeamento dos atos que formam um conjunto que não se reduz a soma dos atos isolados, e que se efetua em um espaço e tempo sociais ligados à produção. […] Deste modo, é a base a partir da qual o modo de produção se afirma quando en-gendra um espaço e tempo sociais, constituindo-se em sistema pela pro-gramação do mesmo cotidiano. Assim, o modo de produção se realiza no cotidiano e este é produto daquele. (CARLOS, 2007, p. 52)
Enxergar o espaço como lugar da transformação do cotidiano consiste, num
primeiro momento, em considerar que as práticas sociais contêm poder social.
todas aquelas relações são ativamente construídas (e algumas dela podem nunca ser construídas) e o fato de que elas são construídas (elas são inte-gramente práticas sociais), por sua vez implica que estão repletas de poder social. Assim, politicamente, o que devemos fazer é reconhecer também a forma dessas relações, seu inevitável conteúdo de poder social, as relações de dominância e subordinação que estas podem requerer ou (mais positi-vamente), o potencial de capacidades que elas podem produzir. (MASSEY, 2004, p. 21)
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A apropriação considerada como duração remete a temporalidade das práti-
cas sociais, com suas continuidades e descontinuidades. Cada ritmo possui uma du-
ração (Gérardot, 2007, sem paginação) e se inscreve desse modo no espaço.
A partir do momento que consideramos que a forma urbana tende a sofrer a
programação do cotidiano, trata-se de adotar um viés metodológico para abordar a
produção do espaço: isso remete a maneira como os próprios pesquisadores em geo-
grafia pensam o espaço e sua produção através das diferentes temporalizações que
se superpõem num lugar. Essa superposição de temporalidades é também levada em
conta por certas leituras inspiradas notadamente pelo desconstrucionismo. Massey
enxerga limites nessa abordagem geográfica:
A desconstrução, deste modo, parece prejudicada por seu foco primário no 'texto', por mais amplamente imaginado que ele seja.Ilustrar este argumen-to através da figura do palimpsesto é ficar dentro da imaginação de super-fícies - ele falha em dar vida às trajetórias que co-formam esse espaço. (MASSEY, 2008, p. 164)
André Carreira (2009), grande teórico do teatro de rua, nos parece estar ins-
pirado em parte por visões semióticas do espaço. Dialoga, em particular, com a Geo-
grafia Cultural. Achamos que essa afinidade que o teatro não deixa de ter com a lite-
ratura influencia talvez essa abordagem. Esse autor reflete intensamente sobre a
dramaturgia do teatro de rua e a necessidade de estabelecer rupturas nos fluxos do
cotidiano.
é interessante pensar que a idéia de ‘repertório de usos’ do espaço urbano poderia interferir na construção da nossa percepção de uma dramaturgia do espaço. Nesta dramaturgia interfeririam as linhas dos edifícios, as ten-sões dos usuários, o trânsito de veículos e pessoas e o controle social do lu-gar público. As regras da cidade funcionam como material dramatúrgico, na medida em que constituem um texto que pode ser tomado como pré-texto para a construção da cena. A cidade então seria uma fala que pode ser reinterpretada pelo discurso cênico que ao mesmo tempo toma as es-truturas físicas da cidade como suporte de sua construção espetacular. Ver a cidade desde este ponto de vista significa aceitar o desafio permanente de interpor o teatro ao ritmo corrosivo da própria cidade. (CARREIRA, [2008?], p. 7)
Abordaremos melhor essa lado dramatúrgico no capítulo 4. Todavia, enxer-
gamos que o autor leva muito em consideração as especificidades do local onde se
pretende interferir, tanto quanto a lógica maior que rege os fluxos da cidade.
Quando Doreen Massey (2008) se debruça sobre a cartografia da cidade, vista
como um texto, ou mais ainda, como palimpsesto, acaba finalmente criticando essas
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abordagens metodológicas. Segundo ela, lhes falta uma visão do movimento que
atravessa o espaço geográfico. Faltam espessura e profundeza nessas visões, que não
dão conta das possibilidades inscritas no real, “aqui e agora”. É neste sentido que ela
dirige sua crítica à visão do espaço que desenvolvem, em particular, De Certeau,
Bergson e Laclau.
Seria melhor reconhecer que 'sociedade' é tanto temporal quanto espacial e deixar completamente de lado essa definição de representação como espa-ço. O que está em questão, na produção de representações, não é a espa-cialização do tempo (compreendida como a tradução do tempo como es-paço), mas a representação do tempo-espaço. O que conceituamos (divida em órgãos, mas coloque-os como quiser) não é apenas tempo, mas espaço-tempo. Nos argumentos de Bergson e de De Certeau, também, a questão é formulada como se o mundo vivido que está ai para ser representado (con-ceituado / descrito) fosse apenas temporal. Ele é, certamente, temporal, mas é também espacial. E 'representação' é uma tentativa de apreender os dois aspectos desse mundo. (MASSEY, 2008, p. 53)
Esses autores inspiram em parte sua própria visão do espaço relacional, mas
Massey os culpa por continuar considerando o espaço como simples suporte das
temporalizações deixadas pelas práticas sociais. A nosso ver, o ritmo permite igual-
mente enriquecer a visão da inscrição dessas temporalizações no espaço, pois consi-
deramos a ressonância que têm essas práticas. Recusamos também a visão de pa-
limpsesto para enxergar melhor as possibilidades inscritas no espaço. Segundo Mas-
sey, o objetivo consiste, portanto, em abrir o conceito de espaço numa perspectiva
relacional, isto é, abordar a dimensão política presente no cotidiano das práticas
sociais, essa articulação do espaço e do tempo se concretizando no lugar.
Este livro é um ensaio sobre o desafio do espaço, os múltiplos artifícios através dos quais esse desafio tem sido tão persistentemente evitado, as implicações políticas de praticá-lo de maneira diferente. (MASSEY, 2008, p. 34)
Essa visão do espaço relacional vai ao encontro de nossa adoção do conceito
de ritmo. Com efeito, consideramos que os eventos de artes de rua vão muito além
de uma simples diversão ou de uma melhoria trazida ao cotidiano, já que constitu-
em rupturas dos ritmos desse cotidiano, que imprimam uma temporalidade de uma
qualidade diferente nas tramas do cotidiano. Trata-se de prestar atenção ao vivido, e
pensar ao mesmo tempo em praticar o espaço diferentemente para romper essa am-
nésia que tende a banir o uso.
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Isso implica também renovar com vigor a imaginação geográfica, para que ela
tenha a ver com o real. Pensamos o espaço como relacional e, sobretudo, em movi-
mento. Mesmo assim, não adotamos uma visão nomadista do espaço, pois as traje-
tórias deixam traços, balizam os caminhos através das relações de poder que per-
manecem um componente essencial da formação do espaço. Mas um esforço sobre a
maneira de imaginar o espaço permite desafiar a lógica de homogeneização-
fragmentação-hierarquização em curso na produção do espaço contemporâneo. Po-
demos, quem sabe, mostrar a fragilidade dessas estratégias de dominação frente ao
espaço vivido, sem subestimar suas forças e suas complexas articulações. O espaço
vivido se reinventa também sem parar e constrói o espaço tanto de maneira espon-
tânea quanto repetitivamente, a cada dia. Isso está, por exemplo, comprovado pela
luta histórica dos artistas de rua: mesmo que visíveis no conjunto do espaço urbano,
persistindo com suas práticas, estes têm que continuar lutando para ver reconhecida
a possibilidade de trabalhar sem entraves, além de ver reconhecido a utilidade pú-
blica dessas suas práticas pelo bem-estar comum.
Neste sentido, acreditamos que Simpson (2008) não percebeu toda a riqueza
da ritmanálise, o que resulta que ele toma muito pouco em consideração a forma e o
conteúdo das apresentações que nos descreve. Critica um pouco a linearidade dos
horários impostos aos artistas e levanta criticas a Lefebvre que são (Simpson, 2008,
p. 820), a nosso ver, infundadas. Isso é visto porque ele não se debruça sobre a pos-
sibilidade de impressão de ritmos. Na verdade, isso se deve talvez ao contexto dife-
rente no qual ele observa a arte de rua, num centro comercial em Londres: isso
constitui um aviso para nós, porque alerta sobre o fato que esse tipo de momentos
pode muito bem entrar na lógica de adestramento, ser normatizado e perder toda
espontaneidade, entrar na lógica de acumulação e do espetáculo.
3.2.3. A impressão dos ritmos como intervenção sobre um conjunto de trajetórias
É a partir da noção de momento, considerado numa visão lefebvriana, que
consideramos uma ruptura dos ritmos do cotidiano, assim como a impressão de um
ritmo particular, que no nosso caso é oriundo da intervenção de arte de rua. Vis-
lumbramos esse momento como uma ruptura, pois questiona a materialidade esta-
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belecida, assim como desloca a trajetória dos corpos que atravessam esse espaço.
Enfrenta desse modo a lógica de dominação do espaço através da programação do
cotidiano. Mas não pode mudar radicalmente essa materialidade: num primeiro
momento, indica outro modo de uso, a criação de novas formas e novos conteúdos
que se inscrevem no cotidiano e propõem uma metamorfose possível das relações
sócio-espaciais.
A noção de presença é igualmente fundamental, pois isso significa que, ape-
sar da fugacidade de tais momentos, estes podem adquirir certa ressonância, certa
importância na maneira pela qual as pessoas se relacionam num determinado lugar,
modificando o próprio imaginário relativo a esse lugar e, mais amplamente, o ima-
ginário urbano. Neste sentido, a impressão de um ritmo tem repercussões sobre um
conjunto de trajetórias.
Se levarmos em conta que cada ritmo é suscetível de ser mensurado - pois
contém em si um projeto-, entendemos que uma intervenção sobre um conjunto de
trajetórias, todas diversas e multi-escalares, se realiza a partir de um projeto defini-
do e mais ou menos determinável, a partir do discurso, do movimento e do som das
intervenções. Há uma intencionalidade contida nesses momentos: que seja consci-
ente ou não, esta se inscreve no espaço através da ação dos corpos e se propaga no-
tadamente através dos afetos que esses transmitem (cf. Capítulo 2).
O corpo é fundamental para tratar da impressão desses ritmos, mesmo se es-
ses novos conteúdos não se inscrevem imediatamente na materialidade do espaço
(nem é um objetivo em si), mas somente momentaneamente. A intervenção de tea-
tro de rua, em particular, apresenta a construção de formas culturais que podem se
tornar propositivas para uma outra política relacional, inscrita concretamente no
espaço.
Pensamos interessante esboçar um paralelo entre essa impressão de ritmos e
a arquitetura rebelde que evoca Harvey (2006), notadamente quando cita as refle-
xões de Unger:
Observe-se que o pensamento visionário não é inerentemente milenarista, perfeccionista nem utópico (no sentido vulgar do termo). Ele não precisa apresentar – e de modo geral não apresenta – a imagem de uma sociedade tornada perfeita. Mas de fato requer que tenhamos a consciência de rede-senhar o mapa das formas possíveis e desejáveis de associação humana e
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de projetar novos arranjos práticos para lhes dar corpo. (UNGER, 1987b, p. 359-360 apud HARVEY, 2006, p. 245)
Há certamente uma diferença no projeto que apresenta certo artista autôno-
mo que luta para sua sobrevivência – por exemplo, exercendo malabarismo no sinal
- e o projeto de determinado grupo de teatro de rua organizado e politizado, que
participa regularmente de seminários sobre a prática teatral e festivais de alcance
nacionais ou internacionais, e recebe ou não subsídios do poder público. No caso do
malabarista, o objetivo é principalmente de obter uma participação financeira para
seu trabalho. Enquanto o objetivo do grupo teatral é mais complexo e mais coletivo:
pode se tratar de levar uma proposta estética e política mais elaborada. No entanto,
nestes dois casos, há uma intervenção sobre um conjunto de trajetórias, e se trata
resolutamente de interromper estas momentaneamente. Assim, esse ritmo se im-
prime ao revés dos ritmos do cotidiano. Através da “dramaturgia” proposta, precisa
“dominar” o espaço momentaneamente, instaurando outra lógica aos fluxos previa-
mente presentes, que formam a rotina. Segundo o dramaturgo de teatro de rua Ca-
lixto de Inhamuns (2011, p. 2), isso é uma necessidade para qualquer artista de rua,
desde o “artista-camelô” até o grupo de teatro de rua. Vejamos como esse estudioso
encara essa dominação do espaço:
Nas ruas e praças, ao contrario [das encenações em palcos “convencio-nais”], a desorganização do espaço cênico é a tônica. O publico é volátil, deseducado, passante, o espaço é fragmentado e a encenação teatral é uma intervenção. Ao invés de desorganizar o espaço, o espetáculo terá que or-ganizá-lo, dominá-lo e fazer as pessoas se interessem pelo que nele vai acontecer. Depois de controlado, se for do gosto, é possível desfragmentá-lo e instalar uma desorganização organizada nesse espaço dominado (INHAMUNS, 2011, p. 2)
No caso do malabarista, poderíamos restringir a construção do mundo vivido
à sobrevivência cotidiana pela qual muitos passam. Mas se tomamos em considera-
ção as trajetórias urbanas (TELLES, 2005, p. 8), as historias de vida que essas pessoas
apresentam, poderíamos nos dar conta que essas trajetórias de vida, no seu conjun-
to, tecem relações sociais bem além das suas intervenções na rua. Apresentam um
modo de vida muitas vezes nômade, que se opõe bastante à programação do cotidi-
ano33. Eles tecem relações humanas baseadas sobre o uso, o encontro. Ademais, es-
33 Aqui não nos referimos aos malabaristas de rua “menores” de idade, cujas práticas, por exemplo, são estudadas por Campos (2010), em Belo Horizonte. Nos referimos, sobretudo, aos viajantes e itine-
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sas trajetórias de vida se baseiam muitas vezes sobre o imprevisto e o risco (as áleas
climáticas, os dias bons e ruins…). Longe de nós a idéia de romantizar a qualquer
custo essas pessoas. Muitas vezes, estas tendem a se posicionar em margem dos dis-
cursos dominantes, e mesmo dos discursos alternativos organizados, mas não dei-
xam de estar presente nas tramas do cotidiano das grandes cidades, que os atraem
pelas oportunidades de trabalho e a liberdade para exercer e aprofundar suas práti-
cas. Existem passarelas com estruturas mais institucionalizadas onde podem encon-
trar trabalhos.
Se levamos em conta os momentos das suas intervenções em toda profunde-
za que nos permite a análise do espaço relacional, vislumbramos que estes se consti-
tuem efetivamente em pontos de condensação do cotidiano. Não é porque o discur-
so dominante, ou mesmo as análises sócio-geográficas, não demonstrariam muito
interesse para este tipo de atores sociais, que deveríamos desconsiderar a contribui-
ção dessas pessoas para trançar as tramas do espaço relacional. É claro que estes
atores sociais podem ser considerados como poucos, voláteis, precários, tendo apa-
rentemente pouca influência sobre a construção das trajetórias cotidianas das gran-
des cidades, contexto onde os encontramos. Mas constituem na verdade uma pre-
sença recorrente, que povoa o imaginário das grandes ou menores aglomerações.
Eles são falados pelos poetas de rua: são portadores de histórias de vida eventual-
mente arranhadas, mas ricas do sentido que imprimem à sua existência. Essa ilus-
tração se afasta um pouco de outros exemplos que fundamentam também nossa
observação empírica da arte de rua: os grupos organizados, os artistas de rua estabe-
lecidos desde certo tempo num ponto fixo, sedentários.
Todo isso nos serve aqui para ilustrar a noção de trajetórias, que introduzi-
mos em nossa apropriação geográfica da noção de ritmo. Essa definição de trajetória
definida por Massey (2008, p. 33)34 é diferente daquela definida por Telles (2005, p.
rantes, muitos de origens de diversos países da América do Sul (argentinos, uruguaios, chilenos, pe-ruanos, mas também brasileiros), que não deixam de ter relações com esses malabaristas descritos por esse autor, tendo até influência no desenvolvimento dessas práticas (CAMPOS, 2010, p. 53) 34 “‘Trajetória’ e ‘estória’ significam, simplesmente, enfatizar o processo de mudança em um fenôme-no. Os termos são assim temporais na sua ênfase, apesar de que, eu defenderia, sua necessária espa-cialidade (seu posicionamento em relação à outras trajetórias ou histórias, por exemplo) é insepará-vel e intrínseca ao seu caráter.”(MASSEY, 2008, p. 33)
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3-4)35. No entanto, nos inspiramos dessas duas visões, que tem objetivos paralelos,
querendo enriquecer nossa percepção das tramas do cotidiano, enxergar o espaço
como um processo formado por experiências concretas e vividas. Portanto, ao invés
de considerar que os malabaristas itinerantes que evocamos não têm influência so-
bre a materialização do espaço, podemos na verdade enriquecer a percepção dessas
pessoas através da noção de “estórias-até-agora” que promove Massey (2008, p. 33),
isto é, o movimento concreto das trajetórias que suas estórias traçam e imprimem
no espaço.
Ressaltando que a ritmanálise permite uma leitura em diferentes escalas es-
paço-temporais, podemos afirmar que essas trajetórias individuais e coletivas con-
temporâneas se reclamam, sem dúvida, de trajetórias com mais ressonância históri-
ca: o imaginário dos artistas itinerantes está relacionado com aquele dos circos, dos
trovadores europeus… Mas bem além disso, isso se associa a numerosos itinerantes
de diversos povos que viviam e interagiam em longas distâncias, tendo muitas vezes
papeis de contadores de estórias, provindo das diferentes relações que eles teciam
através das suas peregrinações. Vemos que o imaginário associado a todas essas tra-
jetórias individuais e coletivas apresentam, na verdade, uma profundeza que a no-
ção de trajetória e a noção de ritmo podem retratar e restituir na perspectiva de um
espaço em movimento e em devir.
3.2.4. Co-ritmicidade e espaço relacional: capacidade de “ressonância” dos ritmos
Podemos pegar como ponto de partida o corpo do artista, a sua trajetória e as
histórias que esse corpo tem para contar. Todavia, a ritmanálise possui um interesse
geográfico, pois permite a passagem do individual ao coletivo, como o sugere Gérar-
dot:
35 “De nossa parte, optamos por um percurso exploratório. à distância de explicações gerais sobre a ‘cidade e sua crise’ e também de categorias prévias ou tipificações dos pobres urbanos excluídos do mercado de trabalho, tentamos ler essas mudanças a partir das trajetórias urbanas de indivíduos e suas famílias. […] No curso das suas vidas, indivíduos e suas famílias atravessam espaços sociais di-versos, transitam entre códigos diferentes, seus percursos passam através de diversas fronteiras e são esses traçados que podem nos informar sobre a tessitura do mundo urbano, seus bloqueios e seus pontos de tensão, mas também os campos de gravitação da experiência urbana nesse cenário tão modificado.” (TELLES, 2005, p. 3-4)
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O individuo está no centro do ritmo, pois ele cria o ritmo.A cada individuo corresponde uma equação temporal pessoal, um ritmo ou até mais de um […]. O individuo molda o ritmo, faz dele um ator.
O ritmo está no centro do individuo, pois ‘dá forma aos sujeitos individu-ais, configura as atividades e as compõem. O ritmo molda o indivíduo, que contribui por sua vez em moldar uma sociedade: estamos todos relaciona-dos um ao outro por um tecido de inúmeros ritmos36. […]
Mas é porque leva em conta o número que a ritmanálise permite pensar por acumulação e ver como grupos de indivíduos contribuem à transfor-mação dos lugares. (GÉRARDOT, 2007, sem paginação, tradução nossa)
Mesmo os artistas autônomos não são isolados, se encontram no próprio
campo das suas intervenções, trocam ou não boas dicas, formam parcerias temporá-
rias ou mais duráveis, trocam idéias sobre suas práticas, informações sobre outros
lugares. Para os grupos mais organizados, a articulação fica ainda mais nítida. Neste
estudo, nos apoiamos um pouco sobre a Rede Brasileira de Teatro de Rua. Debru-
çamo-nos mais em detalhe sobre essas possibilidades de articulação no capítulo 4. O
que se destaca dessas possibilidades de associações em diferentes escalas, é o poten-
cial de co-ritmicidade que essas práticas de arte de rua apresentam. Na ótica de Gé-
rardot, que adotamos, a co-ritmicidade constitui um critério chamado “englobante”,
apresentado pelo ritmo numa perspectiva geográfica:
Um sétimo e último critério, o número, é chamado ‘englobante’, pois trata ao mesmo tempo do temporal e do espacial. É diretamente relacionado ao ator que faz o ritmo. O número determina a intensidade de um ritmo: mais atores compartilhando o mesmo ritmo (o que chamamos a coritmicidade), mais forte esse ritmo é, mais este estrutura o lugar. Mas o número permite também analisar as relações entre os ritmos dominantes e os ritmos domi-nados: o que nos preocupa principalmente são as interações entre os rit-mos dos diferentes atores. (GÉRARDOT, 2007, sem paginação, tradução nossa)
Nosso olhar oriundo da ritmanálise permite então criar uma ligação com a
idéia de escala de ação desenvolvida por Harvey (2006, p. 306). Enxergamos a im-
pressão de um ritmo não somente através do momento singular da intervenção: a
idéia de co-ritmicidade nos permite associar a diversidade das intervenções a um
ritmo que dá forma a certo uso do espaço e do imaginário urbano, que expressa as
possibilidades futuras presentes nesse espaço. Essa co-ritmicidade, portanto, se situa
na ótica de uma construção consciente e articulada do espaço relacional que pro-
36 Em citação a Hall (1992, p. 25)
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move Massey (2008) e se associa igualmente a visão multiescalar que propõe Har-
vey, quando evoca o arquiteto rebelde em ação:
Se, portanto, separo uma dada escala espaço-temporal para consideração, a fim de entender seu papel na dinâmica geral da mudança política, tenho então de fazê-lo de uma forma que reconheça sua relação com processos só identificáveis em outras escalas. A metáfora a que recorro é um entre vá-rios diferentes 'teatros [de operações]' possíveis de pensamento e de açãoem alguma 'longa fronteira' de práticas políticas 'rebeldes'. Avanços num dado teatro acabam por estagnar ou mesmo regredir caso não sejam apoiados por avanços noutros teatros. (HARVEY, 2006, p. 306)
Portanto, podemos considerar a co-ritmicidade em diferentes escalas, levar
em conta diferentes conjuntos para a análise. A noção de co-ritmicidade permite
associar ritmos e permite conceber que, associados, esses ritmos tendem a deixar
uma marca coletiva, traçar trajetórias comuns dentro do espaço urbano. Isso remete
também em levantar um imaginário inscrito nas narrativas das apresentações e as
“estorias-até-agora” que expressam, partilham e carregam em si os artistas.
Dois componentes compõem toda intervenção de artes de rua: de um lado, a
preparação física e a ação concreta do corpo dos artistas; de outro lado, o imaginá-
rio, e mais ainda, um pensamento oriundo da prática e do vivido, que se alimenta de
trocas entre artistas e suas relações com os diversos públicos à frente dos quais eles
se apresentam.
O interesse dessas práticas de artes de rua é que permitem conceber concre-
tamente novas formas de relações sociais, que se inscrevem nas tramas do espaço-
tempo, tomando como base um lugar e um momento singular. Se situam na direta
linha da construção de uma política relacional do espaço. Ao mesmo tempo, apre-
sentam, em si mesmas, possibilidades de futuros e participam da criação de meta-
morfoses suscetíveis de mudar nossa maneira de viver e conceber o espaço. Promo-
vem, portanto, à sua maneira, o “viver-juntos”. Isso se deve notadamente ao fato de
que essas intervenções têm um caráter aberto, podem ser vistas por um público he-
terogêneo que, além disso, está convidado a participar fisicamente e/ou emocional-
mente do imaginário proposto pelos artistas.
É nessa ótica que associamos a noção de ressonância à noção de ritmo. Essa
idéia de ressonância corresponde bastante à idéia de co-ritmicidade e significa valo-
rizar o potencial de propagação dessas práticas.
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Pensamos interessante introduzir o questionamento do Llorença Barber,
compositor, cujo projeto mais famoso é a “composição de lugares”, isto é, compõe
musicas para cidades inteiras, envolvendo vários atores sociais da cidade. Ele já fez
ressoar vários lugares e formula indicações preciosas neste assunto. Aqui somente
vamos nos referir a uma pergunta que ele formula acerca da ressonância, que enri-
quece o sentido dessa palavra no sentido do nosso estudo.
Uma ressonância, sem falar do eco, é a coisa mais singular que seja; é uma réplica do modelo ou da fonte, mas alterada e alimentada por outra identi-dade, intangível, que substitui e invade outro corpo. Mas o que tem de di-ferente esse “re” da assonância, enquanto ele permanece o que ele sempre foi? (BARBER, 2000, p. 33, tradução nossa)
A nosso ver, essa citação nos permite refletir sobre o que une todas as inter-
venções que contemplamos, no sentido de enfatizar essa unidade da presença-
ausência que se destaca por vezes de tais momentos. Com efeito, indaga como a re-
petição, constituinte da propagação do som (a ressonância), nunca é a mesma, cada
corpo se apropria à sua maneira a essência desses momentos que, no entanto, o afe-
ta de alguma forma.
Pode se visualizar melhor a propagação desses ritmos a partir desse lugar
preciso onde acontece uma intervenção até o conjunto do imaginário urbano, pela
ação dos corpos. Esses ritmos possuem durações próprias que constituem o momen-
to propriamente dito da intervenção onde eles se imprimem no espaço através da
sua ressonância, que se propaga a partir de uma presença concreta dos artistas e do
publico misturados neste lugar temporalizado. Consideramos, para restabelecermos
uma nova ligação com a perspectiva de Massey (2008), uma simultaneidade de traje-
tórias “aqui e agora” que proporciona o encontro, o jogo entre os artistas e o público,
entre as pessoas aqui reunidas. A ressonância nos permite enxergar o entrelaçamen-
to dessas trajetórias e o enriquecimento das “estorias-até-agora” após esse momen-
to.
Não pretendemos que uma única intervenção possa radicalmente modificar o
curso de uma trajetória individual ou coletiva. No entanto, pretendemos sintetizar e
afinar a percepção dessa ressonância, que constitui um parâmetro da impressão des-
ses ritmos nas tramas do espaço-tempo. Primeiro, não consideramos, de jeito ne-
nhum, que tal momento deve ser consensual: acontecendo num espaço aberto, este
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não é concebido numa lógica espetacular que estabelece um consenso e deseja a
adesão de todo o público, na sua plena inserção no lugar onde a intervenção aconte-
ce. Isso é obvio no caso do itinerante malabarista, é também presente no caso de
espetáculos de caráter mais coletivo. Opera-se um trabalho estético a partir dos cor-
pos e sobre as narrativas, que não pretende especificamente ser consensual. No en-
tanto, é também verdade que o objetivo é de agradar ao público o mais amplo, susci-
tar seu entusiasmo, sua reflexão e/ou sua emoção, com o objetivo também de garan-
tir o chapéu e o aplaudímetro. É por tudo isso que enxergamos esses momentos co-
mo participando da construção relacional do espaço, considerado na sua dimensão
disruptiva.
Em segundo lugar, sobressai da nossa observação empírica e da nossa própria
sensibilidade que certos espetáculos – através de uma estética e de uma narrativa
trabalhadas e formadas ao longo da trajetória de um grupo, de um indivíduo, de um
espetáculo ou de um número – podem apresentar realmente uma intensidade parti-
cular, suscetível de afetar cada indivíduo que assiste e / ou participe, de modo dife-
rente, mas que essa intensidade é longe de ser insignificante. Por sinal, é a partir
dessa constatação que se fundamenta nossa proposta de adotar a ritmanálise para
abordar a construção relacional do espaço associada a tais momentos. De novo, ob-
servamos a idéia das rupturas do imaginário estabelecido por ritmos dominantes
que tentam configurar as tramas do cotidiano. Como ressalta a socióloga Ana Carlos
Ribeiro:
Sem duvida, a tarefa de construção de um imaginário transformador da urbanização convoca os cientistas sociais. Mas convoca, também, poetas, músicos, artistas plásticos e todos aqueles que possam colaborar no alcan-ce dos acúmulos de subjetividade indispensáveis ao desvendamento dos futuros que se ocultam nas formas físicas e sociais do presente. […] são concretamente necessários discursos e narrativas esclarecedores dos mo-vimentos estruturantes que atualizam as condições materiais e imateriais de disputa do presente→futuro(s). (RIBEIRO, 2006, p. 47)
Com diferentes qualidades de jogo e diferentes sucessos, nos parece que as
intervenções de artes cênicas de rua participam de uma abertura dos futuros possí-
veis, tanto em termos de ações individuais e coletivas, quanto sob a dimensão con-
creta de materialização do espaço. O imaginário urbano permite enxergar possibili-
dades de apropriação do espaço e um “viver-juntos”. A diversidade das linguagens
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artísticas dentro das artes cênicas, a diversidade dos indivíduos e coletivos que par-
ticipam do movimento de artes de rua em diferentes escalas, tudo isso proporciona
uma grande diversidade de abordagem e uma diversidade de imaginários propostos,
que podem tratar de múltiplas dimensões da vida social.
3.2.5. Impressão dos ritmos como “respiração” do tecido urbano
Essa insistência sobre a multiplicidade resulta da nossa percepção da polirri-
tmia do espaço urbano, essas coexistências de ritmos que se juntam numa simulta-
neidade que proporciona o encontro, a apropriação do espaço através das trocas de
afetos e de elementos simbólicos, tragicômicos e musicais. A nosso ver, a ritmanálise
se situa no mesmo horizonte de conceituação do espaço que define Massey na se-
gunda proposta que formula para conceituar o espaço. Isso deve corresponder ao
mesmo tempo à pluralidade das imaginações geográficas, mas sem perder de vista as
possibilidades de construção de um espaço relacional que podem ser provocadas ou
vislumbradas através das intervenções na rua. Num certo sentido, acredita-se que
pode se emancipar momentaneamente da lógica de controle, fugir da racionalidade
fria do Estado e das lógicas mesquinhas da esfera mercantilista.
Talvez nos aproximamos por esse viés de um dos sentidos de Zona Autônoma
Temporária (TAZ), da qual falava Hackim Bey ([1992?])37. Mas a diferença seria que
o artista de rua que descrevemos não deixa de fugir das estruturas de controle, da
lógica imposta que rege o espaço urbano, mas deseja poder agir livremente no espa-
ço da sua escolha, com rosto descoberto, no respeito das temporalidades de um lu-
gar, sem se esconder. Ele pode se permitir de relacionar uma infinidade de elemen-
tos diferentes do espaço através de um imaginário singular que ele expressa, criando
assim momentos de jogo onde podem se tecer outras relações sociais.
Em ambos os casos, que seja a visão do momento inspirada por Lefebvre, ou a
visão da TAZ, que constitui uma tática de “ataque e de fuga” (BEY, [1992?], p. 6), a
possibilidade de inserir rupturas na polirritmia dominada é um imperativo, por mo-
tivos que podem ou não confluir. O espaço é apropriado durante um momento: o
37 Nos apoiamos aqui sobre a versão em português, livre de direitos autorais, disponível na Internet (ver bibliografia).
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ritmo possui uma duração durante a qual não se imprime só no espaço material,
mas também no imaginário da sociedade com a qual entra em ressonância neste
momento. A intensidade que pode adotar esse momento decorre do absoluto que
todo momento tenta atingir na sua trajetória. O momento não é continuo, ele ins-
taura uma temporalidade suspensa, pertence ao vivido.
Hackim Bey ([1992?]) parece ser diretamente influenciado pelo imaginário si-
tuacionista, e pela possibilidade de instaurar uma pluralidade de situações dentro da
linearidade do cotidiano.
Acredito, que dando conseqüência ao que aprendemos com histórias sobre “ilhas na rede”, tanto do passado quanto do futuro, possamos coletar evi-dências suficientes para sugerir que certo tipo de 'enclave livre' não é ape-nas possível nos dias de hoje, mas é também real. (BEY, [1992?], p. 4)
Percebemos que sua visão de TAZ se espacializa imediatamente em “ilhas
numa rede”: numa polirritmia imprimem-se certos ritmos com temporalidades des-
continuas, mas que possuem um forte poder de ação sobre as relações espaciais e
sobre os imaginários que participam das tramas dessas relações. Baseamo-nos sobre
a ritmanálise de Lefebvre, pois nos permite justamente melhor dar conta da respon-
sabilidade social que os artistas de rua acabam sentindo, a vontade de metamorfose-
ar o espaço, que seja apenas um instante, através das dimensões do jogo e do encon-
tro que se instauram entre os corpos, que contém em si mesmos uma infinidade de
ritmos com pulsações diferentes.
Se retomarmos nossa descrição da ritmanálise que esboçamos na primeira
parte deste capítulo, podemos estabelecer um paralelo entre, de um lado, a respira-
ção intrínseca ao ritmo, que inclui as diferentes escalas de corpo que a ritmanálise
permite enxergar e, de outro lado, a ressignificação de um lugar determinado, assim
como o imaginário urbano numa escala maior. Formulamos então a proposta se-
guinte: as intervenções de artes de rua, que consideramos neste estudo, constituem
pontos de ruptura dos ritmos do cotidiano, pontos de condensação que constituem
momentos que permitem uma oxigenação do tecido social. Constituem-se como
uma respiração, pois permitem certa apropriação do espaço, que se opõe parcial-
mente à lógica de dominação. Vislumbramos essa respiração sob diversos aspectos.
De um lado, a respiração é um fator determinante tanto para os músicos de rua,
quanto os palhaços e os artistas acrobatas e os atores: é importante para cumprir sua
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habilidade, mas também para ganhar a conivência do público. Constitui um “tru-
que” fazer respirar o público junto a si, ao mesmo tempo em que se acaba um núme-
ro perigoso; é um saber estar à escuta da respiração do público para deixá-lo cair na
gargalhada ou ganhar sua adesão. Além disso, a respiração ajuda o artista a entrar
em sua personagem. De outro lado, precisamos novamente estabelecer essa passa-
gem do individual ao coletivo: além do fato que a respiração constitui um fator em-
pírico de comunicação, vislumbramos essa respiração em níveis mais simbólicos:
notadamente a respiração do imaginário urbano. Frente à adesão espontânea do
público a uma diversidade de espetáculos propostos, cabe ressaltar que as artes cê-
nicas de rua procuram estar em fase com as aspirações contidas nas diferentes traje-
tórias que tramam o espaço urbano. Mas através da sua pesquisa estética e textual,
os artistas de rua contemplados oxigenam o imaginário urbano, propondo novas
pistas de reflexão, surpreendendo se necessário o público, deixando-lo na expectati-
va e podendo modificar sua percepção de um lugar e as interações possíveis com
outros corpos. Como indica reflexão de um coletivo de artistas de rua:
O Teatro de Rua e outras artes quando são exercidas de forma generosa e constante em logradouros públicos caminha para fazê-lo deixar de ser um local para se tornar um lugar para as pessoas que pararem seu cotidiano para ver a ação cultural. O que se dirá aqui não é capaz de definir o que se-ja arte, mas ela permite uma 'suspensão da realidade'. Suspender não é fu-gir da realidade, mas tomar fôlego no imaginário para entender o positivo e negativo do nosso cotidiano. (DO DIREITO…, 2011, p. 37)
Vemos aqui a evocação do “fôlego” trazido ao imaginário urbano, em diferen-
tes escalas. Essa suspensão da realidade corresponde ao momento onde acontece a
intervenção, que esta seja fixa ou móvel. Reconfigura momentaneamente as relações
sociais que se tramam num determinado lugar, muda o curso das trajetórias, o an-
dar das pessoas que decidem se juntar para participar do momento da intervenção.
Além disso, enxergamos um dos elementos fundamentais da nossa reflexão, que
constitui um dos critérios essenciais do ritmo: a repetição. Com efeito, mesmo que
levantamos que uma única apresentação de qualidade podia muito bem mudar uma
trajetória individual, temos, sobretudo, que ressaltar que é a repetição de tais mo-
mentos que proporciona o potencial transformador de tais ações. Essa repetição po-
de acontecer através da presença contínua de artistas de rua, que sejam ou não
sempre os mesmos, num determinado lugar. A idéia do ponto fixo é interessante:
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pensamos, por exemplo, no Largo do Machado, na Zona Sul do Rio de Janeiro, que é
um lugar onde se encontram uma densidade singular de artistas de rua de diferentes
modalidades. Um lugar desses permite aos artistas recém-chegados de encontrar um
público já familiarizado com as artes de rua, ao mesmo tempo curioso e exigente,
generoso e contínuo (senão não teria tantos artistas de rua neste lugar). Mas dese-
jamos avisar que essa idéia de pontos fixos, que acolheriam os artistas de rua, não
pode se construir sem pensar nos numerosos lugares onde tais práticas poderiam
ser, ao contrario, proibidas ou ausentes. A continuidade / descontinuidade de tais
ações deve poder ser praticada livremente, para levar em conta a diversidade dos
lugares.
Relacionamos também a idéia de respiração com a idéia de contra-narrativas.
Com efeito, acreditamos que tais momentos artísticos permitem fazer respirar o
imaginário coletivo, e também provocar uma ressonância, que pode desencadear,
quem sabe, a emergência de outras formas sensíveis que modificam mais profunda-
mente ainda o espaço. Num certo sentido, essas narrativas, baseadas no imaginário
de tal artista ou coletivo, constituem contra-discursos.
Muitas formas de narrativas podem ser trabalhadas. Assim, certos espetácu-
los tratam diretamente de história. Assim, a Cia de Mistérios e Novidades – RJ ence-
nou o espetáculo “Chegança do Almirante Negro na Pequena África”, que ressalta a
história de João Candido e a revolta das chibatas em 1910. A Trupe “OIho da Rua”, de
Santos, apresenta um espetáculo que “conta a história de um degredado do início do
século XVI de Cananéia. […] o espetáculo estabelece um diálogo crítico com os valo-
res éticos que percorrem nossa pátria mãe desde seu descobrimento, até os dias de
hoje.” . Enquanto isso, a Cia paulista “Os Inventivos” se debruça sobre a obra de João
Ubaldo Ribeiro, elaborando um espetáculo inspirado pelo livro “Viva o povo brasi-
leiro”. Isso significa, sobretudo, um intenso processo de criação coletiva, relatado
num livro (MATE, 2012). A Companhia Estável apresenta assim o seu espetáculo
“Homem cavalo e sociedade anônima”:
Um cruzamento de situações sobre trabalho, moradia e consumo, costura-do pela fábula de um homem animalizado e explorado em seus esforços por sobrevivência, como metáfora das impossibilidades, ilusões e contradi-ções estampadas em nosso cotidiano. Homem cavalo e sociedade anônima é a criação da Cia Estável, resultado de uma pesquisa de mais de dois anos
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dentro de uma casa de acolhida para homens em situação de rua, micro-cosmo representativo da sociedade contemporânea.
A trajetória dessa Cia. de teatro de rua está também retratada num livro
(COSTA, 2011a). Os coletivos de teatro de rua trabalham as narrativas através do seu
trabalho dramatúrgico, mas consideram também importante registrar essa memória
para poder trocar em diferentes escalas espaço-temporais. Estão disponíveis vários
documentos para ler, pensar, trocar informações e relatar fatos e ações. Isso nos aju-
dou muito em nossa pesquisa e consideramos isso muito valioso.
Assim, os artistas de rua elaboram suas intervenções através de uma drama-
turgia (mesmo os músicos, pois encararmos a dramaturgia de diversos modos), mas
sobretudo através de experiências de vida mescladas.
Constitui-se um horizonte de trocas de experiência (MATE, 2009, p. 105) en-
tre os proponentes de atividades e o público do lugar. Por exemplo, um determina-
do grupo de teatro pode propor uma intervenção, mas sabe da riqueza das trajetó-
rias presentes no momento da intervenção, pois existe neste momento uma simul-
taneidade de “estórias-até-agora”. Quando Mate retrata o grupo paulista Buraco
d’Oráculo, deixa bem claro essa troca de experiências em múltiplas escalas tempo-
rais:
Desse modo, o Buraco d’Oráculo, ao se apropriar de tantas experiências su-as e alheias, próximas e passadas, não comemora dez anos: comemora o tempo de existência de todos os artistas de rua. Por meio da escrita, o Gru-po garante a permanência que apresenta sua trajetória (que se caracteriza em um acontecimento) no tempo. (MATE, 2009, p. 47)
Esse tema das narrativas é muito complexo38. Certos grupos se dedicam com
muita dedicação e empenho, no que toca a coletar histórias, valorizar todas as “estó-
rias-até-agora”, criar lugares onde é possível ensaiar, praticar, se encontrar, alcançar
lugares dos “sertões” onde trocar experiências. O Grupo Vivarte, estabelecido em
Rio Branco - Acre, conclui assim o relato das múltiplas atividades que surgiram ao
longo da sua trajetória como grupo:
38 Para nos apropriar melhor dessa discussão, caberia poder estar mais perto do processo de criação de determinados grupos e, sobretudo, aprofundar a própria noção de narrativa. Mate (2009, p.34) dá um direcionamento a partir da leitura de textos de Walter Benjamin, notadamente O narrador. Mas implica várias outras leituras, encontros e vivências. Portanto, não foi possível aqui explorar melhor esse horizonte das narrativas em relação com a impressão dos ritmos. Remete também a dramaturgia específica das artes de rua que evocamos um pouco mais adiante.
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O Vivarte e sua dramaturgia necessitarão muito da proteção dos deuses da floresta. E mais ainda da solidariedade efetiva dos grupos de teatro de ou-tras regiões do Brasil. Pensando melhor, acho que os brasileiros que ainda ignoram o desastre ambiental planejado para a Amazônia é que precisam muito da experiência do Vivarte para avaliar a beleza dos mistérios e en-cantos que estamos perdendo. (STABILE, 2011, p. 83)
Assim, poderíamos muito bem assimilar essas narrativas às traduções que
evoca Harvey (2006, p. 314): traduzem ao mesmo tempo problemas concretos, aspi-
rações e questionamentos profundos. Mas remetem também a simples vontade de
relaxar e de rir das bobeiras do palhaço. De fato, se enxergamos que certos grupos
orientam diretamente sua estética em direção de uma construção de contra-
narrativas aos discursos dominantes, isso não pode ser generalizado ao conjunto de
práticas que contemplamos. No entanto, podemos sim considerar que essas práti-
cas, num sentido amplo, tendem em atrapalhar a harmonia dos ritmos que estabele-
cem o cotidiano programado: “A raiva contra o teatro de rua é porque atrasa o tem-
po da acumulação, ainda que oferecida de forma pública, e mesmo que não provo-
que a ação civil” (DO DIREITO…, 2011, p. 37). A ação civil seria aquela que desperta
as consciências e leva ao debate sobre questões societárias. Isso nos permitira vis-
lumbrar a idéia de política relacional no capítulo 4.
4. Ocupação do espaço público pelos artistas de rua: para quê, para
quem e por quem?
Par conséquent, une mise en suspens de l’urbanité à travers la préparation minutieuse d’une explosion d’anarchisme et de transgression, une festivité inopinée qui devient, à l’image de rimbaud, un “déréglement systématique de tous les sens. Déréglement opiniâtre, persistant, minutieux, sans ellipse, sans temps mort ou rempli, et surtout vrai, donc contagieux, en effet, composer avec la ville est une complicité, une réinvention du plaisir en groupe, une revendication de la chose publique comme une valeur qui se partage et se défend avec civisme.
Llorença Barber, em Locus iste, ou à propos de la composition du lieu
Nos capítulos anteriores, desejamos construir, a partir da base conceitual da-
da pela ritmanálise do filósofo Henri Lefebvre, um método para tratar das práticas
sociais, considerando sua participação na transformação do real, no sentido materi-
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al, mas também no nível do imaginário urbano. Focamo-nos na polirritmia presente
no espaço urbano para nos debruçar mais detalhadamente sobre a impressão de cer-
tos ritmos, no caso os ligados às intervenções de artes cênicas de rua.
Numerosas análises geográficas usam conceitos e pré-requisitos que impedi-
riam, por exemplo, conceber as práticas de artes de rua como sendo práticas de um
interesse considerável para enxergar diferentemente as possibilidades presentes no
espaço urbano contemporâneo. Nesse estudo, concordamos com análises que iden-
tificam a crise do urbano. Tratamos mais especificamente dessa crise ao longo de
nossa Introdução e do capitulo 2, notadamente quando abordamos a programação
do cotidiano, que tende a tramar o espaço sob uma lógica de consumo do espaço.
Estamos, assim, de pleno acordo com essas conclusões: a lógica dominante presente
no processo de metropolização é forte e tende a negar o vivido, fragmentar a vida
citadina e relegar porções consideráveis da população à marginalidade no seio mes-
mo desse espaço. Nos baseamos sobre essas constatações para nos deter sobre essas
práticas que nos parecem promissoras, como nos incentivam certos geógrafos que
fundamentam nossa reflexão:
Nessa direção, a reflexão sobre a cidade é, fundamentalmente, uma refle-xão sobre a prática socio-espacial que diz respeito ao modo pelo qual se re-aliza a vida na cidade, enquanto formas e momentos de apropriação do es-paço como elemento constitutivo da realização da existência humana. (CARLOS, 2007, p. 11)
Neste capítulo, desejamos atentar para os debates em curso nos grupos de
circo-teatro que lutam por melhor visibilidade de suas práticas e visam assim defen-
der, ao mesmo tempo, certa visão do espaço público. Estamos conscientes de que
nos favorecemos, aqui, certos atores, lutando diante das próprias administrações
públicas para obter políticas públicas que consideram essas atividades. Isso equivale
reivindicar certa institucionalização dessas práticas, lhes dar maior visibilidade, e
isso inevitavelmente ocasiona novas tensões e novas contradições.
Todavia, o que esta em jogo vai bem além disso: as práticas de artes de rua
tendem a restituir certas dimensões do urbano que permitem tecer tramas no espa-
ço, criar novos laços entre os corpos individuais, coletivos e o corpo urbano. O mo-
mento da intervenção tem o potencial concreto de criar novas ligações entre os in-
divíduos que participam, de perto ou de longe, da ação; além disso, a intervenção
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participa de uma reformulação do imaginário urbano. Portanto, nos parece legitimo
considerar que o entusiasmo suscitado pelo movimento de teatro de rua no Brasil
apresenta claramente um interesse geral e amplo, indo bem além dos interesses par-
ticulares dos grupos ou determinados indivíduos que atuam. Interessa-no, em parti-
cular, a reflexão geográfica.
Com efeito, trata-se de inventar uma maneira diferente de apropriar-se do
espaço, realizar a co-presença, criar vínculos sociais: o atual processo de metropoli-
zação promove novas relações espaciais que criam a falta desses elementos do en-
contro, quer seja nas grandes cidades contemporâneas, quer seja nas cidades de me-
nor porte (RIBEIRO, 2006, p. 481), onde tendem a desaparecer o “viver-juntos” e
metamorfosear-se tradições culturais. No entanto, não pretendemos erguer como
absoluto o potencial das práticas que estudamos. Nosso ponto de vista permanece
parcial, parcelar, em relação à amplitude do debate que ocasiona. Assim, na linha do
nosso raciocínio, desejamos ver até que ponto o movimento de teatro de rua permi-
te considerar rupturas na programação do cotidiano, e ao mesmo tempo conceber
diferentemente o espaço urbano, promovendo outra maneira de viver o espaço, ou-
tra experiência urbana, que leva à tona o corpo e sua presença, assim como a espon-
taneidade e a partilha do sensível por todos.
O teatro de rua é uma prática secular que foi inicialmente ligada ao sagrado
(KADARÉ, 1988), mas também à cidadania. Fala-se usualmente que a prática teatral
nasceu, na sua vertente ocidental, na Grécia, com a tragédia e a comédia que tive-
ram uma importância destacada na vida da Cidade Grega. Não vamos realizar aqui
uma historia do teatro e das artes de rua, mas acreditamos que essa prática é indis-
pensável e constante na vida das sociedades, desde séculos. Permite ao mesmo tem-
po ameaçar a tranqüilidade e impunidade dos poderosos, zombando de seu poder,
mas representa também um desabafo para a frustração ou as esperanças do povo,
através do riso e da emoção que gera. Tentamos enxergar aqui a prática teatral e
circense de rua com suas características e potencialidades atuais.
Há evidências de que a análise dessas práticas se relaciona também ao uso do
que é chamado de espaço público. Nós desejamos aqui entrar na discussão dessa
noção de espaço público, tendo como pressuposto que essas práticas tensionam o
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uso do espaço urbano, pela impressão de novos ritmos que permitem enxergar no-
vas possibilidades de tecer o espaço relacional.
4.1. O espaço público: seu uso e sua ressignificação
O espaço público constitui uma noção ambígua, usada por numerosos atores
sociais com perspectivas e pressupostos distintos. Com efeito, o processo de metro-
polização apresenta também esse lado espetacular, cuja lógica resulta em transfor-
mar as cidades em produtos, em vitrines e sedes de eventos que tendem a eliminar
as diferenças que se opõem ao suposto consenso que tais operações de planificação
urbana exigem.
Como assinala Jacques (2009, p. 2), isso é largamente tratado na pesquisa
acadêmica; se relaciona ao processo de branding que busca posicionar as cidades
numa rede mundial de cidades turísticas, culturais e/ou de negócios. Portanto, a
noção de espaço público atravessa esse processo. Por isso, as leituras e análises tra-
dicionais que relacionam essa noção a de esfera pública, esfera de debates que pode
criar consenso, deve ser questionada e atualizada, pois não podemos acreditar em
falsos consensos, que na realidade seriam simulacros que esconderiam o empobre-
cimento da experiência urbana e a lógica de segregação e de alienação que atravessa
esse processo de metropolização.
Com efeito, é esse processo que, na escala global, carrega essas estratégias de
homogeneização-fragmentação-hierarquização, mas também de espectacularização
e de consenso, que tendem a empobrecer a experiência urbana ao nível corporal e
sensível. A imagem proposta pelos mega-projetos de urbanismo contemporâneos39
não pode nos iludir, apesar do seu poder de sedução e das boas intenções presentes
nos discursos associados. Por trás dessas aparências e dessas representações do es-
paço, que têm um poder real de ação e de concretização, é o vivido que está amea-
çado, porque o espaço público, como lugar de encontro, está sendo transformado
em cenário e em espaços desencarnados (JACQUES, 2009, p. 2), ou ainda, em espa-
39 De acordo com Alvaro Ferreira, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante as discussões da mesa 1, “Metropolização e planejamento estratégico: o que fazer?”, no dia 5 nov. 2012.
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ços amnésicos (CARLOS, 2007, p. 58). Carlos tenta então estabelecer como deve ser
pensado o espaço público, considerando as múltiplas contradições que o assediam
na era de metropolização do espaço:
o espaço público só tem um sentido público no uso real, na medida em que permite a relação social através da simultaneidade dos usos. Mas é preciso considerar que os espaços públicos contemplam contradições em si. Se o espaço público é um lugar do político, contraditoriamente, no mundo mo-derno, sob a égide do político, o espaço público se torna o lugar da norma, objeto de estratégia do Estado. Também, se o espaço público é o lugar da realização da vida urbana como possibilidade do encontro, é também o lu-gar da co-presença como negação do outro. Ainda outra contradição tem a ver com o fato de que o espaço público é o lugar do encontro, por excelên-cia, mas se encontra invadido pelo mundo da mercadoria, imerso nos pro-cessos de valorização do espaço, que tornam os espaços públicos ótimas oportunidades de lucro para o setor imobiliário (CARLOS, 2011, p. 134)
O trabalho de Valverde (2007) alimentou também nossa leitura do espaço
público, pois condensa pontos de vista geográficos diversos acerca dessa noção. O
autor se debruça sobre duas abordagens principais: a abordagem republicana e a
marxista. Levanta com razão que a noção de espaço público se tornou relativamente
confusa, na medida em que a utopia, notadamente arquitetural, que entronizou essa
noção, não realizou plenamente suas promessas. Tomando como exemplo o Largo
da Carioca, o autor conclui:
Dessa forma, esse estudo [sobre os espaços públicos] se justifica uma vez que a observação empírica dos espaços públicos confere visibilidade às su-as representações múltiplas e não-concordantes, que são usualmente in-terpretadas como os sinais mais evidentes de uma crise geral da sua teoria. Como vimos, colocam-se, de um lado, as manifestações da sociedade no espaço como iniciativas de segregação, que procuram instituir novas con-dições para a vida urbana. Por outro lado, exige-se maior presença do Es-tado para garantir o cumprimento dos termos que regem a publicidade, afirmando que, seja por omissão ou ação seletiva, este teria deixado de cumprir seu papel. Isso significa que a noção de espaço público se encontra dissociada em sua essência, impedindo que o modelo utópico se concreti-ze. (VALVERDE, 2007, p. 210)
O autor utiliza então o conceito de heterotopia, referido por Michel Foucault
e apropriada por Edward Soja nos seus estudos sobre a cidade de Los Angeles. Dese-
ja finalmente demonstrar que não se pode mais pensar o espaço público com os
pressupostos modernistas que moldaram essa noção. Criou-se uma defasagem entre
a teoria e a vida cotidiana.
Carlos (2011, p. 138) alerta que o terceiro termo da contradição privado / pú-
blico pode ser o “espaço institucionalizado”, isto é, a norma ordena a produção do
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espaço: se essa norma tende a instaurar um mero consumo do espaço, então obser-
vamos o advento de um espaço abstrato, onde as possibilidades de realização da
vida ficam residuais. Mas se levamos em conta o negativo desse movimento, pode-
mos vislumbrar que é pela ação e pela expressão dos corpos que o espaço público
reencontra seu sentido. Assim a autora defende que a contradição privado / público
pode ser ultrapassada por um terceiro termo, o de cidade, através da idéia de direito
à cidade:
Nessa direção, o espaço público permanece como resíduo: o acaso, a es-pontaneidade e a participação, sempre possível. Espaço-tempo de implosão da norma e de reafirmação do coletivo como possibilidade de autogestão, o espaço público aparece em sua negatividade, como momento constitutivo do direito à cidade. (CARLOS, 2011, p. 139)
O espaço público aparece assim como residual, mas são nessas brechas do co-
tidiano que os cidadãos têm a possibilidade de se realizar como “homens totais”,
através da ação e da sua prática sócio-espacial. A visão marxista de Mitchell (VAL-
VERDE, 2007, p. 154) promove essa reconquista do espaço público, para instaurar
uma democracia menos discursiva e mais real. Constitui um desafio para os geógra-
fos de pensar essa dinâmica do espaço social, que resulta da articulação e da movi-
mentação de vários atores sociais, que raramente estão considerados na sua justa
medida e seu potencial real na elaboração das políticas de planificação urbana.
Para dar conta de toda a importância de considerar o espaço público como
afirmação de práticas urbanas que tendem à realização da vida, podemos evocar a
mesma ambigüidade apresentada pela rua. Carlos (2007, p. 53) realiza uma enume-
ração do sentido que esse termo pode ter, para finalmente promover a rua como o
lugar do encontro, seguindo a reflexão de Lefebvre:
Para Henri Lefebvre, a rua “representa a cotidianidade na nossa vida social […]. Lugar de passagem, de interferências, de circulação e de comunicação, ela torna-se, por uma surpreendente transformação, o reflexo de coisas que ela liga, mais viva que as coisas. Ela torna-se o microscópio da vida moder-na. Aquilo que se esconde, ela arranca da obscuridade. Ela torna co” 40. (CARLOS, 2007, p. 54, grifo nosso)
Podemos esboçar um paralelo evocativo entre o artista de rua e essa capaci-
dade que a rua tem de tornar público: pensamos, em particular, nessa faculdade que
determinados palhaços tem para seguir as pessoas, retranscrever o seu ridículo, pro-
40 Em citação a Lefebvre (1961).
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vocar de leve - ou até de maneira mais direita - os transeuntes, reproduzindo os seus
passos, uma parte de sua personalidade aparente. Isso gera a alegria dos espectado-
res presentes no momento41, e a habilidade do palhaço é que nem a “vítima” se sente
agredida: geralmente ela ri de si mesmo. Esses artistas permitem romper o anonima-
to dos espectadores que formam aos poucos uma roda de curiosos, podendo se tor-
nar atores/vítimas voluntárias desse jogo, que revela a capacidade de mimetismo e
de interação que esses artistas trabalham. Vemos como os palhaços de rua têm esse
poder de evocar o cotidiano, seu ridículo e sua beleza, segundo relata o grupo de
circo-teatro Rosa dos Ventos:
O ridículo que localizamos é do ser humano globalmente. No banal de ca-da ser é que solicitamos a autocrítica do cotidiano. O confronto é no âmbi-to do poder comezinho das proximidades dos seres humanos. Nossa pro-ximidade é com a relação imediata com o desmanche de territórios minús-culos de poder que se agigantam nas bárbaras saias do urbano abandonado à própria sorte! Nos vamos lá! Rimos com eles e deles resgatamos uma jus-tiça sublime pelo direito de rir. (ROSA…, 2011, p. 21)
Essa contradição privado / público, que se encontra também na evocação da
rua, apresenta a mesma ambigüidade contida na noção de cotidiano (cf. Capitulo 2).
Tomamos em conta a superposição dos ritmos que coabitam num mesmo lugar. Os
ritmos que regem a norma, pacificam os corpos, como vimos anteriormente, ainda
são presentes, mesmo quando observamos sua aparente ausência. Todavia, toda a
magia da rua, sua força evocativa e secular, é que permite justamente a suspensão
dessa realidade normativa e faz aparecer as diferenças, mesmo que isso possa acon-
tecer somente em momentos fortuitos. Mas é justamente a partir dessa realidade
fortuita, desses resíduos do vivido que a rua consegue revelar, que podemos traba-
lhar a repensar a cidade, como o sugere Hiernaux:
O fortuito não implica que a cidade funcione caoticamente, em cujo caso tudo poderia ocorrer, mas sim que a concentração de indivíduos com expe-riências e trajetórias distintas implica que do encontro de tantas diferen-ças, sempre pode surgir algo novo, inesperado, fortuito. Neste sentido, a cidade é berço de inovações porque reúne uma multiplicidade de experiên-cias humanas, que, situadas em um substrato labiríntico, marcado pela fu-gacidade do que ali ocorre, permite uma situação de combinações no infi-nito de eventos. (HIERNAUX, 2006, p. 202)
41 Pensamos, em particular, no artista de rua chamado Gerusa, que atua há muito tempo no Centro do Rio de Janeiro, e cuja arte é disfarçar-se de mulher e atrair a multidão “zoando” os outros com sabedoria.
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Essa dimensão “incontrolável” do fortuito remete a idéia do Lefebvre, onde a
rua seria o lugar de um “teatro espontâneo” (LEFEBVRE apud CARLOS, 2007, p. 54),
quer seja historicamente o cenário dos grandes movimentos revolucionários, quer
seja o lugar onde nasceu a commediadell'arte ou, mais próximo de nós, as interven-
ções de rua que observamos. A rua provoca medo também, isso pode explicar a ten-
dência atual à “higienização”, para que o consumo possa acontecer sem nenhum
transtorno. Carlos (2007, p. 56) observa com razão que se as primeiras grandes lojas
do século XIX imitavam o ambiente das ruas haussmanianas de Paris ou vitorianas
de Londres; hoje em dia, a rua tende a se configurar da mesma maneira que os
shopping centers, excluindo os pedintes, os camelôs ou simplesmente as pessoas
que não participam do consumo, para proporcionar um quadro propício e tranqüili-
zador para o consumo dos fregueses. É naturalmente neste sentido que podemos
evocar uma privatização do espaço público, ainda mais porque os poderes públicos
são atores de primeiro plano nessas operações de revalorização / privatização do
espaço urbano. Mas nosso estudo nos leva, ao contrário, a enxergar a rua como lugar
de encontro e de festa, quer essa dinâmica seja fortuita, quer mais durável. Histori-
camente, a obra arquitetural permitiu promover o espaço público como pertencen-
do a todos (notadamente na utopia da modernidade), ou mais geralmente instau-
rando a ordem estabelecida. Pensamos que a arquitetura ou o paisagismo não dei-
xam de ter pertinência para participar da planificação urbana: pelo contrário, as re-
flexões neste domínio são certamente sempre mais prolíficas e sofisticadas. Todavia,
não queremos acreditar que o espaço público seja fruto de um consenso estabeleci-
do por especialistas ou técnicos. Portanto, aprofundamos nossa leitura, querendo
destacar práticas que valorizam o uso compartilhado dos espaços urbanos. Vislum-
bramos aqui a obra, notadamente destacada por H. Lefebvre, na sua condição fortui-
ta, espontânea ou não, relativamente imprevista, pelo menos pelos transeuntes que
acabam “perdendo o seu tempo” para assistir inesperadamente a uma apresentação
teatral, circense ou musical. Por isso, decidimos valorizar essa maneira segundo a
qual a rua e a praça podem se tornar públicos, ou seja, de uso comum. Os artistas de
rua concebem e encarnam eles mesmos uma maneira de estabelecer essa publicida-
de. Temos que observar então quais conseqüências essas ações podem desencadear
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em relação à materialidade do lugar (pela instauração eventual de políticas públi-
cas), ou também em relação à transformação do imaginário urbano (por promover
novas interações corporais, pelo fato de tecer novos pontos de encontro na cidade,
pelo imaginário movimentado pelas intervenções).
Assim, se a rua pode ser o teatro de eventos que convergem nela e permitem
deixar o imprevisto acontecer, é a noção de momento que permite condensar isso e
nos leva a considerar essas intervenções de rua como obras efêmeras e ritmos singu-
lares. Promovem os encontros, os debates e a festa, e isso está presente na reflexão
do Lefebvre acerca do vivido.
4.2. As ações de artes de rua / artes públicas como obras efêmeras capazes
de metamorfosear a cidade como lugar de encontro
Definimos essas intervenções de rua como obras efêmeras, que tendem a res-
tituir o vivido. Nós explicamos isso a partir da noção de momento, considerado co-
mo a impressão de um ritmo singular, que possui uma intencionalidade, isso permi-
tindo que este opere uma ruptura no aglomerado de ritmos que constituem o coti-
diano e a realidade do lugar. Focamos nessa idéia de obra efêmera, pois ela remete
ao surgimento do vivido no cotidiano através da obra. A obra se concretiza a partir
de uma prática criativa, que nós assimilamos a uma prática urbana, pois busca ins-
taurar o urbano, notadamente através do encontro e da restituição do uso. Chama-
mos essas práticas de criativas, pois necessitam uma preparação bastante consciente
e desenvolvida, por parte das pessoas que realizam a intervenção. Necessita uma
preparação mental e corporal, para instaurar certa qualidade de presença, que esta
seja mais ou menos afirmada. Isso é essencial para que o grupo ou o artista autôno-
mo possam chamar a atenção do publico e “segurar” o chapéu. Sem esquecer que
este público tem a possibilidade, espontaneamente ou não, de atuar e interagir com
a intervenção proposta. Estudando anteriormente o ritmo no Capitulo 3, vimos que
é a presença que dá ao ritmo certa ressonância, que lhe dá a qualidade necessária
para sua realização e para poder tomar lugar na polirritmia do lugar. Destacamos à
seguir algumas consequências espaciais dessa inserção da arte no tecido urbano,
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considerando sempre a interação entre os “intervencionistas” (os proponentes da
intervenção), o público e o espaço.
4.2.1. Comunhão dos afetos: arte de rua põe em relação os artistas e o público
Consideramos que os artistas de rua - sejam eles autônomos, precários, mais
ou menos organizados, façam parte de grupos ou coletivos reconhecidos pelo poder
público - são levados a pensar sua prática e as interações que esta provoca no públi-
co e nos lugares onde se apresentam. Já sublinhamos que quando o trabalho é con-
tínuo, o artista pode reparar uma mudança qualitativa na atenção e interação do
público. Foi o caso num lugar onde observamos bastante as práticas de arte de rua: o
Largo do Machado, no Rio de Janeiro. O Grupo de circo-teatro OFF-SINA tem suas
atividades enraizadas neste lugar e percebe, à medida que as atividades se intensifi-
cam, que a presença de artistas é bem vinda, até aguardada e que o gosto do público
e sua participação se tornam sempre mais surpreendentes. Mas uma das coisas mais
importantes que as intervenções de rua permitem, é a reunião de pessoas em toda
sua diversidade.
Ver um espetáculo do Grupo OFF-SINA, no Largo do Machado, nos dá a sensação de como deixar emergir a multidão que há ali, indefinida e em multiplicidade, é um trabalho necessário para o ator. As coisas não ocor-rem no espontâneo. Há uma teatralidade a ser construída e a ser defendi-da.
O movimento dos que ali transitam, os já ocupantes do lugar, os que priva-tizam esse aparente lugar público, os muitos territórios existenciais que vão fazendo os metros quadrados de um lugar urbano em Praça, tornando-a lugar de acontecimentos e encontros de diferentes, que se 'suportam' ou se alimentam. Isso tudo, não passa despercebido por artistas de rua que es-tão interessados em se abrir para o que irá acontecer naquele momento do encontro, que ali vai sendo operado pelo seu agir. Ele quer um público-plateia para si, mas ele quer que esse venha e preserve-se em multidão.
Há uma arte do saber fazer essa conexão, que apesar de mais disponível para acontecer ali no Largo do que no palco italiano42, que também pode falhar e a coisa não acontecer.
E, ai, sobra o dia seguinte para entrar de novo nesse território de produção de acontecimentos em aberto, constitutivo do seu próprio interesse em atuar como artista, para exercitar mais uma vez o fazer-se Praça.43
42 O palco italiano é o nome dado ao palco “tradicional”, presente na maioria dos teatros contempo-râneos. Na verdade, aparece na era moderna, na Itália do século XVI, por isso é chamado de palco italiano. Estabeleceu ao longo do tempo um distanciamento na relação artistas-plateia que criticam, em particular, os coletivos de teatro de rua atuais, que rompem com esse paradigma. 43 Em folheto do espetáculo “Tremelicando”, do grupo carioca de circo-teatro OFF-SINA, de 2012.
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Neste relato, que retrata o trabalho exercido no Largo do Machado pelo Gru-
po OFF-SINA, enxergamos que o artista de rua valoriza essa diversidade, que lhe
cabe preservar e conquistar aquilo, pois a adesão plena do público não é automática.
Isso é um leitmotiv bastante recorrente que encontramos através dos escritos e rela-
tos orais de artistas de rua de todos os tipos, que consiste a respeitar a diversidade
do público para integrar isto na construção da dramaturgia das suas intervenções de
rua. Isso remete a certa visão do espaço público, concebido para todos e aberto à
todos. Isso garante a construção de um lugar temporalizado assegurando os encon-
tros e a comunhão das pessoas, onde o sentimento de festa será ainda mais forte
quando junta uma diversidade de pessoas. Pelo menos, é neste sentido que promo-
vemos as práticas de artes de rua e nosso trabalho de campo nos confortou nessa
idéia.
A diferença entre público e platéia é significativa. O fato é que, na arte de rua,
o público é soberano: não é obrigado a assistir o que está acontecendo, pode ir em-
bora quando quiser. Ademais, a apresentação é gratuita, sua contribuição é bem
vinda, mas de nenhuma maneira é obrigatória. Por todo isso, sua presença é consi-
derada como ativa, e isso faz parte do potencial que identificamos nessas práticas.
Umas das especificidades que o teatro de rua apresenta com relação às ar-tes cênicas em geral é a ruptura radical com a barreira imaginária que de-marca o palco e a platéia, separando atores e espectadores. Ele convida à participação todos os passantes, propõe interação e diálogo, incita à inter-venção. Com o teatro de rua, o lugar cênico estilhaça-se, liberta-se, torna-se móvel, aventura-se num percurso traçado nas artérias da vida citadina. Ressurge o cortejo, a manifestação, a parada, a festa carnavalesca, o mane-quim, a mascara, a ‘commediadell’arte’. Uma vez eliminados os assentos fi-xos e a divisão rígida do espaço, novas relações entre o público e o espetá-culo começam a desenhar-se. Antes de mais nada, o teatro vai surpreender um público novo, com grandes probabilidades de atingir aquele que nunca vai ao teatro. Mas a mobilidade da área de representação implica a mobili-dade do público. A representação pode envolver os espectadores, ser rode-ada por eles, dilatar-se, contrair-se, parar ou avançar: desloca-se livremente através do espaço: a ação respira. (TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ, 2012, p. 36)
O fato de apresentar teatro na rua muda radicalmente a maneira de pensar as
relações entre o público e os atores. Como vemos aqui, abre-se um leque de possibi-
lidades para se movimentar no espaço urbano e se relacionar com o público. Mas
essa integração entre os artistas e o público se constitui sempre como um equilíbrio
precário. Na verdade, essa fluidez do público tem que ser levada em conta: mesmo
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se um dos objetivos é de manter no máximo a atenção das pessoas, cabe aceitar essa
fluidez. Isso constitui ao mesmo tempo novas possibilidades, como veremos mais
adiante. Além disso, o artista se confronta também aos ritmos naturais, isto é, prin-
cipalmente, às condições climáticas. Simpson (2008, p. 818-819) observa que é du-
rante uma intervenção onde começa a chover que a alquimia artista / público se
torna mágica: o público permanece, o número de acrobacia se torna mais perigoso, e
o público cerca carinhosamente a atuação dos artistas acrobatas até o desfecho do
número e a salva de aplausos final. Um exemplo desse é somente emblemático da
diversidade da relação entre artistas de rua / público que pode se instaurar. Ao lon-
go do nosso estudo, podemos observar que o milagre dessa união entre artistas e
público e essa diversidade de situações se desdobram realmente em vários momen-
tos únicos. Observamos isso em algumas apresentações no Rio de Janeiro: mesmo a
iminência da chuva não faz fugir as pessoas, a partir do momento em que os artistas
preparem tudo para se apresentar.
Constituem-se momentos de comunhão que podemos assimilar à festa. Mas
na verdade, existe tal diversidade de momentos (numero acrobático ou circense,
música, passagem dramática, chocante…), que podemos compará-los a uma emoção
compartilhada, uma troca de afetos.
Desejamos usar outro exemplo que mostra a precariedade de tais momentos:
sendo que a relação público / artistas é aberta, não é raro, notadamente nos núme-
ros de palhaço ou ainda musicais, que as pessoas intervêm em cena. Os artistas de
rua devem integrar qualquer um, sem discriminação, e podem ter uma relação privi-
legiada com os moradores de rua. Assistimos justamente a um espetáculo, onde atua
o palhaço Biribinha, artista reconhecido, engraçado e experiente. No inicio do espe-
táculo, ele se veste de mendigo e começa a interferir sempre mais ruidosamente na
cena dos outros palhaços, sem que as pessoas saibam que ele faz parte do espetácu-
lo. A reação do público é ambígua: certas pessoas riem das suas intervenções sempre
mais intempestivas, outras começam a ficar incomodadas. No dia que assistimos, o
Biribinha foi quase expulso da roda por um cidadão zeloso. Isso nos parece ilustrar
também esse equilíbrio precário dessa comunhão do público em toda sua diversida-
de. Existe assim uma tensão relacionada à programação do cotidiano. Tal ocorrido
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pode até condensar essa tensão. Além disso, não negligenciamos o fato que um de-
terminado lugar não junta realmente toda a diversidade que abriga uma cidade, te-
mos que levar em conta a segregação que fica associada invisivelmente aos próprios
lugares (EGLER, 2000, p. 218). Mas trataremos também mais adiante desse tema im-
portante.
Essas intervenções põem em relação as pessoas que assistem, ora fisicamente,
participando de uma mesma ação, ora emocionalmente, compartilhando juntos um
imaginário e afetos proporcionados por essa ação. Esses momentos podem se im-
primir no espaço através dessa união da presença e da ausência que se materializa
momentaneamente. Isso acontece através da expressão dos corpos e a troca de afe-
tos. Por isso relacionamos anteriormente a política relacional promovida por Massey
(2004, 2008) com a ruptura dos ritmos do cotidiano de Henri Lefebvre: a diversida-
de do público permite vislumbrar relacionamentos que tecem de outra maneira o
espaço, ocasionam certa ressonância naqueles que participam. Ademais, permite
instaurar, após o espetáculo, um espaço de encontro, onde pessoas de um mesmo
bairro, ou de um mesmo momento, podem ser levados a trocar idéias e debater de
outras coisas também. Esses relacionamentos se materializam primeiramente ao
nível corporal, já que junta em roda um certo número de pessoas, umas do lado das
outras. Mas essa reunião pode também ser deambulatória, pode convidar pessoas a
assistir desde sua janela, do seu lugar de trabalho: mesmo se essas pessoas somente
vêem um fragmento da intervenção, participam desta pelo menos por um instante.
Podemos colocar neste mesmo nível a visão fugaz dos motoristas frente aos malaba-
ristas que atuam no sinal, ou ainda os passantes em relação ao músico de rua posto
numa esquina. De certo modo, a parada, a duração passada frente à intervenção
constituem certamente um critério de qualidade na ruptura ocasionada, na impres-
são deixada ao espectador. Mas isso permanece relativo, pois esses momentos con-
têm intensidade e remetem também ao aspecto fortuito da cidade, que está presente
nessas intervenções mais modestas ou mais breves. Além disso, o envolvimento e a
receptividade de cada um dos participantes são variáveis, o que ele retém da apre-
sentação também.
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A nosso ver, precisa ter em mente a aleatoriedade da ressonância de tais prá-
ticas, em relação à diversidade dos participantes. Além disso, já destacamos que um
dos aspectos interessante dessas intervenções de artes de rua é sua repetição. O fato
que o público possa se acostumar a tais ações amplia a possibilidade que essas têm
de transformar os lugares em lugares de encontro, ressignificar à sua maneira o ur-
bano através da corporeidade e dar concretamente um outro sentido à vida.
4.2.2. (Re)tecendo a cidade através da arte pública / arte de rua
Durante nosso estudo, participamos de dois encontros da Rede Brasileira de
Teatro de Rua, cuja primeira, em Teresópolis, foi um dos elementos chaves que in-
fluenciou o rumo da nossa pesquisa sobre os ritmos no espaço urbano. Tivemos a
possibilidade de encontrar certos atores essenciais desse movimento, assistir aos
debates, quer seja de maneira presencial, quer virtual. Isso nos permitiu também ter
acesso a numerosos documentos escritos, relatos, análises acerca do teatro de rua no
Brasil. Desde maio de 2012, participamos regularmente das reuniões do Grupo de
Trabalho Arte Pública, que acontece semanalmente na Sede do grupo carioca "Tá Na
Rua". É por esse viés que entramos em contato com a noção de arte pública que o
teatrólogo Amir Haddad promove em todas suas alocuções, em várias palestras e
reuniões, através do Brasil inteiro. Essa noção está sendo trabalhada conceitualmen-
te e discutida, notadamente pela RBTR, mas também se espalha que nem uma “pes-
te”, pelas ruas do Brasil, como gosta de falar o teatrólogo Amir Haddad. “A peste” é o
título de um artigo que ele publicou para promover a Arte Pública. Essa promoção
da arte pública tem também como objetivo exigir políticas públicas para as artes
públicas, isto é, cobrar do poder público que ele subsidie também os artistas de rua,
ou pelo menos reconhece e permite sua atividade de acontecer livremente. No Rio
de Janeiro foi conquistada a Lei de Artista de Rua nº 5.429/2012. Essa lei permite
grande liberdade para se apresentar na rua, e já desencadeou leis de alcance seme-
lhante em outros municípios do Brasil, notadamente em Nova Friburgo44.
44 Além da lei ter repercussões pelo Brasil e é objeto de reivindicações ao nível local, podemos reparar nesse vídeo, produzido por um coletivo em Nova Friburgo, uma certa maturidade no discurso dos entrevistados, tanto dos artistas de rua, quanto também dos cidadãos que fazem parte do público. Outros modelos de leis estão sendo adotados, por exemplo em São Paulo.
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Os coletivos na origem dessa conquista propuseram em seguida um projeto
de "Sedes Públicas para as Artes Públicas”. Isso constituiria um projeto piloto, que
poderia se espalhar na integralidade do município. Com efeito, a idéia de Arte Pú-
blica é, sobretudo, uma ideia que deseja espalhar-se pela imensidade do Brasil, to-
mando em conta a diversidade da cultura popular e a possibilidade de realização dos
indivíduos através da arte. Citamos em seguida a declaração do Amir Haddad para o
primeiro Seminário de Arte Pública, ocorrido dia 27 de novembro 2012.
Há uma arte latente em toda a cidade que não se manifesta totalmente (em sua totalidade) por acharmos que a arte só pode se manifestar nos espaços para ela destinados. Assim há uma arte imanente e pulsante na vida e no convívio urbano que não se manifesta livremente por que tem de, necessa-riamente, ser encaminhada para o local a ela destinado, determinando muito de sua forma e, principalmente, de seu conteúdo. A essa possibilida-de e manifestação humana espontânea na vida das cidades queremos cha-mar de Arte Pública: Arte Pública é aquela que se manifesta em toda e qualquer parte da cidade, para todo e qualquer público, sem discriminação de nenhuma espécie e que não se compra e não se vende.
Sua vocação e natureza é deixar-se devorar pelo espectador com que dialo-ga, e obedece ao impulso da mais generosa capacidade de doação do ser humano. Arte, portanto, é, por natureza do ser humano, obra pública feita por particular. Só se privatiza nos últimos 400 anos, obedecendo à ética desenvolvida pelo pensamento mercantilista da burguesia capitalista pro-testante, mas não perde sua natureza pública, apenas a traveste em neces-sidade individualista, egótica, voltada para o mercado.
O homem caminha para sua possibilidade pública, abafada por alguns sé-culos, mas agora insuflada pela necessidade absoluta de organização mais que perfeita das relações que se estabelecem entre o público e o privado. Qual é o equilíbrio possível? Estaremos perto disto? Longe disso?
Levantar a questão da Arte Pública e tentar discuti-la também publica-mente, é começar a buscar em nós mesmos as ferramentas necessárias para a buscar novas possibilidades, ou pelo menos contribuir para isso. O futuro só acontece no presente.
Esta talvez seja a justificativa mais forte e determinante para a organização de um seminário para discutir estas questões e outras correlatas. Será ape-nas o inicio, mas poderá abrir espaços e perspectivas enormes para viver-mos urbanamente, em comunidade. (HADDAD, 2012, sem paginação)
O aspecto público da arte desenvolvida pelos artistas de rua está aqui ressal-
tada, e é sempre bom lembrar essas raízes seculares do teatro de rua. Essa arte pú-
blica mostra um desejo explicito de humanizar a cidade, juntar as pessoas que a
compõem, sem discriminação, reconstituir tecido social nos interstícios da cidade
fragmentada que almeja se construir.
Por isso, podemos declarar que a Arte Pública tem mesmo a ver também com
a saúde pública, a educação pública e a promoção de um espaço público para todos.
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Assim, durante discussões do grupo de trabalho Arte Pública, o relato de artistas de
rua evocava justamente esse aspecto de saúde pública. Por exemplo, certas pessoas
podem ser estressadas pelo ritmo de vida que seu cotidiano e as relações de trabalho
impõem nelas: o simples fato de parar para assistir uma apresentação de arte de rua
pode provocar uma ruptura que pode ser saudável, recolocando-as numa realidade
menos agressiva, lhes permitindo relativizar ou aliviar o seu estresse. A esse respei-
to, sabemos que a relação entre a arte e a saúde é sempre mais trabalhada e explora-
da, isso acontece em meio hospitalar, onde as colaborações de destaque se multipli-
cam. Podemos tecer também uma relação entre arte pública e educação pública, por
exemplo, pelo fato que os artistas de rua se inspiram bastante em aspectos da cultu-
ra popular que tendem a desaparecer em determinados lugares, sob a ação repetitiva
e formatada das grandes mídias, que moldam a cultura a seu bem-querer e com rit-
mos frenéticos.
Num debate sobre teatro de rua, Alves (2012b, p. 178) evoca o exemplo dos
Centros Populares de Cultura da UNE, durante o período 1961 a 1964: funcionaram
ativamente, sobretudo a parte teatral, que viu na rua um lugar onde apresentar suas
criações e estar em contato com o povo. Não queremos falar que a arte de rua tenha
que ter um alcance educativo que se impusesse nas pessoas: sublinhamos seu alcan-
ce cultural, a possibilidade de realizar oficinas a céu aberto, sensibilizar o corpo,
debater acerca de temas que interessam ao público. Isso se relaciona com a idéia de
educação pública do espaço que desenvolve Baggio (2012).
O espaço público entre nos debates em paralelo à formação de políticas pú-
blicas para as artes públicas. Com efeito, desde que o teatro de rua, sob sua forma
contemporânea, ressurgiu no Brasil nos anos 1970, nunca deixou de estar confronta-
do com as interdições relativas ao livre acesso aos espaços públicos onde atuavam.
Ainda recentemente, não era possível, mesmo que tolerado, atuar em vários lugares
no Rio de Janeiro. Esses exemplos de repressão, por vezes violentas, se multiplicam
pelo Brasil, que podem remeter a lugares centrais das cidades, a ocupações artísticas
de prédios vacantes por parte de coletivos de artistas.
A luta não para e explica-se que esse tema de um espaço público aberto a to-
da manifestação artística gratuita e espontânea faça parte das reivindicações desses
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coletivos, que agregam vários outros artistas autônomos. Estes precisam e conquis-
tam constantemente, numa luta diária, se for preciso, o direito de se apresentar na
rua, já que sua sobrevivência depende disso.
Cabe então aprofundar a relação entre o espaço urbano e essa arte pública. Se
seguimos a apresentação que realiza Turle (2012, p. 185), podemos notar que é um
termo que entrou no vocabulário através das artes plásticas, tratando da sua acessi-
bilidade e das modificações que opera na paisagem que o cerca, que a obra seja
temporária ou permanente. O autor sublinha também que se trata de vislumbrar a
arte pública de maneira interdisciplinar, para depois destacar as características da
arte pública em relação ao teatro de rua:
Diversos artistas sublinham o caráter engajado da arte pública, que visa a alterar a paisagem ordinária e, no caso das cidades, a interferir na fisiono-mia urbana, recuperando espaços degradados e promovendo o debate cívi-co.
As características da Arte Pública presente no teatro de rua são:
a) a localização da obra de arte em local de grande circulação
b) a conversão voluntaria do público em público de arte.
A primeira refere-se à acessibilidade física e econômica que o teatro de rua proporciona a ser realizado gratuitamente nos espaços públicos. A segunda é sobre a dinâmica de ruptura da ordem vigente no espaço público que o teatro de rua proporciona, ao criar um território lúdico em meio as fluxos cotidianos e às convenções da cidade. (TURLE, 2012, p. 185)
Dois elementos fazem parte dessa curta descrição da arte pública: a acessibi-
lidade ao mais amplo público possível e a ruptura em relação a certa ordem estabe-
lecida, o que descrevemos como a ruptura dos ritmos do cotidiano.
As artes de rua permitem assim estabelecer também uma descontinuidade
nos fluxos do cotidiano. Instauram uma co-ritmicidade suscetível de ressonância. É
difícil quantificar aquilo, mas isso remete ao que sobra em cada participante e no
imaginário urbano associado ao lugar, depois desse momento de “viver-juntos”, mas
também à repetição de novas intervenções neste lugar. De novo, desejamos destacar
os questionamentos oriundos desse duplo processo: de um lado, de que maneira
cada corpo individual fica afetado por tal intervenção de artes de rua, fica envolvido
pela co-ritmicidade e a ressonância que surge desses momentos, já que considera-
mos que a célula de base da percepção do ritmo é o próprio corpo. De outro lado, de
que maneira a significação de um lugar é potencialmente metamorfoseada, que seja
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momentaneamente mas, sobretudo, através da repetição de tais ações. Isso está re-
lacionado ao imaginário urbano e implicaria que o lugar pode ser transformado a
partir das relações sociais, e até materialmente, no melhor dos casos. Num certo
sentido, o que entra em ressonância é o próprio corpo urbano, tomado numa escala
variável, que vai do lugar à representação da cidade e do espaço urbano: a arte pú-
blica permite descobrir e instaurar novas facetas da cidade.
De novo, cabe relativizar o alcance de tais ações, para ressaltar melhor a sua
força, que não é isolada de um campo de lutas bem mais amplo: tais ações partici-
pam de um teatro de operações maior, que participam em revelar as potencialidades
do urbano.
4.2.3. Debatendo a Arte Pública: caso da Rede Brasileira de Teatro de Rua
Podemos valorizar essas ações como sendo bastante inovadoras: a organiza-
ção do movimento de teatro de rua demonstra em certa medida isso, pela vontade
de horizontalização das relações que a Rede Brasileira Teatro de Rua - RBTR promo-
ve. Destaca-se uma grande solidariedade entre numerosos grupos através do Brasil
inteiro: o que se manifesta, por exemplo, pelo apoio repetido aos grupos do Norte
Amazônico por parte dos outrosgrupos, em relação à suas reivindicações sobre o
“custo amazônico”: cabe nesse caso pressionar o Ministério da Cultura e a Funarte
para que levem em conta as distancias reais que implicam custos logísticos para o
deslocamento desses grupos nessas regiões.
Ademais, cada vez que um grupo, no seu local, enfrenta dificuldades para
exercer sua atividade, ele pode contar com o apoio formal da RBTR e dos outros
grupos para pressionar os poderes públicos locais. Isso aconteceu, por exemplo,
quando o prefeito do Rio de Janeiro vetou o projeto de Lei do Artista de Rua em ju-
nho de 2012. Mas têm vários outros exemplos e pedidos constantes na rede virtual
do movimento.
Outro aspecto é a troca de informação que esses grupos realizam através dos
festivais que se organizam através o Brasil. Há também a organização de seminários
que permitem trocar saberes práticos e teóricos, relativos a elaboração de reivindi-
cações comuns, a articulação em todos os níveis. Trocam-se experiências, ao nível
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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das lutas, mas também das formas de se organizar e de elaborar cada um sua estéti-
ca.
Neste contexto, esse movimento dá eco às reivindicações compartilhadas e is-
so fortalece as pressões sobre o poder público, em todas as escalas, para influenciar
o rumo das políticas culturais no pais, que não beneficiam em primeiro lugar esse
tipo de atores culturais. Além disso, os discursos e as ideias principais do movimen-
to se espalham, através dos seus articuladores - que é difícil até de quantificar! -,
junto de outros movimentos, grupos e artistas autônomos. O conceito de arte públi-
ca é um exemplo disso.
Como ilustra um breve histórico do movimento de teatro de rua, realizado
por um dos seus membros históricos (AMARAL, 2011), o movimento já enfrentou
cisões, grandes mudanças, quer seja em relação à progressiva institucionalização de
certos grupos, quer seja em relação às escolhas estéticas e dramatúrgicas. A diversi-
dade de situação dos grupos que compõem a RBTR vai de grupos perenes, estabele-
cidos financeiramente, até grupos que lutam ativamente no seu lugar, até somente
para poder ter o direito de se apresentar na praça pública. Como destaca Amaral
(2011, p. 102), enquanto os espetáculos dos pioneiros ocupavam modestamente o
plano horizontal, os espetáculos se diversificaram sempre mais, ocupando por vezes
os planos verticais. Certos grupos inovam na concepção cênica do espaço urbano,
até usar estruturas de produção relativamente dispendiosas ou complexas. Constata-
se, portanto, uma maior diversidade de abordagens e de linguagens, o que constitui
sem dúvida uma riqueza e uma marca de sucesso para o teatro de rua. Todavia, pode
ser levantado ao mesmo tempo as contradições que essa sofisticação apresenta fren-
te ao conceito de Arte Pública, que contém ao mesmo tempo a idéia de abertura em
relação ao público e a participação deste, a partir do momento que cada cidadão
possui em si essa arte latente da cidade. A “sofisticação” pode também significar um
afastamento gradual em relação ao público. Nisso reside o desafio da dramaturgia,
tema que abordamos a seguir.
O que nos parece complicado, para voltarmos mais especificamente ao con-
ceito de Arte Pública, é que remete bastante a noção de espaço público, cuja fragili-
dade conceitual já mostramos. Isso quer dizer que essa noção de Arte Pública preci-
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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sa ainda ser elaborada, ganhar contornos que atendem aos artistas de rua e ao pú-
blico / participantes. Nos parece que existem tensões relacionadas com esse concei-
to, pois parece suscetível de ser apropriada pelos poderes estabelecidos e pela indus-
tria cultural, enfraquecendo possivelmente a proposta dos atores históricos. O que
nos parece fundamental, neste âmbito de lutas e de conquistas, é a liberdade plena
de atuar, o que vem concretamente sendo conquistado. A nosso ver, a reflexão apre-
sentada na revista Rego do Gorila (DO DIREITO…, 2011) é bastante pertinente,
quando articula um distinção entre arte pública e arte civil:
Toda essa argumentação tenta aperfeiçoar a terminologia 'arte publica' trabalhada por Amir Haddad afirmando que ora ela é suficiente, ora não é. A arte publica diz pouco do seu propósito, pois ela deixa o direito de inter-vir ou não no direito à cidade no sentido amplo. Não é o Teatro de Rua or-ganizado que busca o direito de usar particularmente os logradouros pú-blicos, mas sim por ele ser um elemento que pressupõe sua ação, mesmo com defeitos e confusões, estimar que os espaços, em geral, devem servir civilmente à melhoria da democracia (DO DIREITO…, 2011, p. 36)
Achamos que essa noção de Arte Pública passa ainda por um processo de de-
finição e de implementação na prática, notadamente através do reconhecimento por
parte de políticas públicas e de discussão no seio da Rede Brasileira de Teatro de
Rua e entre artistas de rua em várias outras escalas (municipais, estaduais, regio-
nais…). Voltamos um pouco sobre o potencial político associado às práticas de artes
de rua no final desse capítulo.
4.2.4. Dramaturgia do teatro de rua e narrativas do espaço
Os espetáculos e intervenções de artes de rua apresentam escolhas dramatúr-
gicas interessantes e criativas. Existem numerosas discussões, baseadas sobre expe-
riências coletivas vividas, que mostram a riqueza desse debate45. Em certa medida, a
rua impõe uma linguagem, uma estética, que se desdobra numa diversidade de pos-
sibilidades dramatúrgicas disponíveis para criar uma intervenção que possa se im-
primir no espaço através dos afetos e que possa se relacionar com o corpo urbano.
Quando falamos de intervenção, falamos de um momento e também de um lugar
temporalizado, da impressão de um ritmo perceptível e a ressonância deste. As dis-
cussões que pudemos seguir ou ler levantam que, se é relativamente fácil chamar a
45 Pensamos em particular ao Seminário Nacional de Dramaturgia, organizado pelo Núcleo Pavanelli, que aconteceu já duas vezes em São Paulo, em 2011 e 2013.
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Expressões e impressões do corpo no espaço urbano Michel P. Moreaux
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atenção do público num lugar de grande circulação, já é bem mais difícil conservar
essa atenção e formar uma roda compacta, que por sua maioria ficaria até o final da
intervenção.
Achamos muito interessante a idéia de intervenções teatrais, cuja dramatur-
gia e narrativa permitiria às pessoas poder ver somente um fragmento, mas mesmo
assim poder reter uma grande parte do seu sentido geral, expresso por sua espaciali-
zação. Numerosos grupos trabalham a partir de óticas que, muitas vezes, se inspi-
ram nas idéias do teatro épico desenvolvido por Brecht na prática e teoricamente.
Por exemplo, é o que promove Alexandre Mate (ALVES, 2010), teatrólogo que se
interessa em particular ao teatro de rua e dialoga notadamente com grupos paulis-
tas. Trata-se, sobretudo, adaptar essa abordagem do teatro épico ao contexto da rua,
onde os signos teatrais disputam a atenção do público com a polirritmia do ambien-
te.
Numerosas escolhas dramatúrgicas estão ressaltadas, que se calcam sobre as
reflexões de Brecht e são consideradas como pré-requisitos da dimensão aberta do
espaço onde as intervenções se temporalizam. Interferências de todo tipo são possí-
veis, que seja as do público, as condições climáticas, ou qualquer interferência sono-
ra, visual, olfativa. A inspiração de Brecht significa também que essas dramaturgias
têm um compromisso estético e político em relação à transformação social: buscam
realmente conquistar o público, provocar nele sentimentos e reflexões. Como fala
Marcio Silveira dos Santos, num relato do primeiro Seminário Nacional de Drama-
turgia do Teatro de Rua:
Mas se pensarmos do ponto de vista do entendimento do público sobre a obra de arte constituída de uma dramaturgia cuja unidade de tempo seja ‘sem pé nem cabeça’, onde não há coerência com início, meio e fim, o ho-mem do nosso tempo compreenderá?
Não tenho a resposta, mas suponho que se a dramaturgia para o teatro de rua, por ter muita proximidade com o teatro épico, tiver em seu bojo estru-tural: o homem como objeto de pesquisa, a comunicação de conhecimen-to, reflexão sobre as transformações no mundo, que o ser social determina o pensamento de uma época e que promove no espectador uma energia que exige decisões diante dos fatos, ela encontrará no povo movediço das ruas quem a assimile. (SANTOS, Márcio, 2011)
Nos parece aqui que a intenção não é levar um discurso com um único senti-
do, mas elaborar uma linguagem e uma espacialização que possa afetar o público e
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propor uma nova maneira de viver e imaginar a cidade e a sociedade. A nosso ver,
não se trata de domesticar o público para uma revolução ou qualquer outro objeti-
vo, senão lhe fazer experimentar o espaço de outra maneira e tentar que essa lin-
guagem simbólica possa eventualmente se concretizar materialmente no espaço,
notadamente através novas formas das pessoas se relacionarem entre elas e com o
corpo urbano.
Ademais, a linguagem desenvolvida pela arte de rua, e em particular no tea-
tro, é multidimensional, a parte do texto não é central, já que se enquadra numa
espacialização mais ampla que forma um todo. São significativas as observações le-
vadas por Trindade a esse respeito:
A multidimensionalidade do teatro de rua coloca em questão a noção tea-tral de recepção enquanto processo estritamente visual, o que poderia ser sintetizado na idéia de escuta cênica como um modo de recepção próprio dessa modalidade, uma vez que na rua o espectador mantém com o espe-táculo uma relação mais complexa do que aquela que foi historicamente definida pelo palco renascentista. Em meio aos múltiplos e incontroláveis estímulos – especialmente visuais e sonoros – presentes no espaço urbano, o teatro de rua é potencialmente um centro para o qual tende a convergir a atenção de um público que, a principio, se encontra ali de passagem: e a musicalidade do espetáculo é um fator essencial neste processo, motivo pe-lo qual muitos teatristas de rua tornam-se, também, artistas-músicos. (TRINDADE, 2012, p. 4)
Como o visual, o sonoro pode ser o único meio para chamar a atenção do pú-
blico. Dessa forma, pode ser capaz por si mesmo de dialogar com os sentidos de es-
pectador. Não precisa de fato ser autônomo, mas pode apresentar elementos que
possam se relacionar diretamente com os afetos do público. Percebemos desse mo-
do a profundeza e as várias facetas da dramaturgia colocada em movimento por cer-
tos grupos de teatro de rua.
A multi-dimensionalidade do espaço cênico, tal como o percebem os artistas
de rua, faz eco à complexidade das “estórias-até-agora” que constituem as tramas do
espaço. Da mesma maneira que essa dramaturgia constrói suas narrativas sob diver-
sas dimensões (textual, visual, sonora…), podemos defender a visão de uma polirri-
tmia do espaço que se percebe por uma observação concreta e multidimensional do
espaço. Assim, as trajetórias que atravessam o espaço apresentam possibilidades
muito ricas, pela diversidade dos conteúdos que as compõem e das formas que elas
podem revestir. Ou seja, num lugar temporalizado pode se imprimir um ritmo cuja
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ressonância é complexa, pois contem vários incentivos que podem potencialmente
se materializar de maneiras diversas e surpreendentes. Podemos até ter vertigem se
abrimos demasiadamente o campo dos possíveis.
Mas o que estrutura nossa analise, é o “projeto” que, como vimos, é um com-
ponente do ritmo e permite unificar essa abertura dessas espacializações colocadas
em movimento durante essas intervenções de artes de rua. Isso é relativo à “magia”
criada a diferentes graus por tais intervenções, mas afinal somente perceptível atra-
vés dos afetos, sua emissão e sua recepção.
Se a dramaturgia é enxergada nessa multidimensionalidade, em ultima ins-
tância está produzida pelos corpos dos artistas e do público, e visa afetar outros cor-
pos diretamente, assim como o imaginário urbano. Busca instaurar essa unidade da
presença e da ausência, que preza Lefebvre, e que significa que pode se alcançar um
grau zero da representação, que faz que o material e o simbólico se unem por um
momento.
No entanto, é importante ressaltar que o projeto relacionado a determinado
ritmo é compreensível somente na medida que levamos em conta o conjunto das
trajetórias que permitem sua impressão no espaço social. Isso quer dizer que seria
importante destacar mais em detalhe o processo que leva à ressonância de determi-
nado ritmo num momento dado. A espontaneidade tem que ser constituinte do es-
paço, mas é importante ressaltar também que nada acontece ao acaso, e que esses
momentos surgem pelo trabalho ou as vivências de determinados indivíduos e suas
trajetórias de vida no espaço.
Um exemplo nos é dado pelo “Caderno de trabalho”, do grupo paulista Bura-
co d'Oraculo, que retrata o processo relativo a elaboração do espetáculo de teatro de
rua chamado “Narrativas de trabalho”, que pretende abordar a complexidade das
relações de trabalho na sociedade capitalista contemporânea. Trata-se de um longo
processo de coleta de relatos diversos de vários trabalhadores, a organização de de-
bates, vivências. Lendo esse caderno, enxergamos a complexidadedo processo mas,
sobretudo, pensamos à diversidade das trajetórias humanas que se integram na
composição de tal projeto, que agrega várias “estórias-até-agora”. A nosso ver, é nis-
so também que reside a força do projeto contida nesse espetáculo, que infelizmente
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não logramos de ver. Mais geralmente, são também essas relações tecidas que dão
força e fôlego a tais intervenções de arte de rua, que se preocupam realmente com o
público. Enxergamos, portanto, que a dramaturgia elabora-se de modo colaborativo,
que vê o entrelaçamento de inúmeras trajetórias.
4.3. Arte de rua, cidade e cidadania
A perspectiva adotada no nosso estudo busca mostrar que as intervenções de
artes de rua tendem a negar a cidade, aquela dominada pela lógica da normatização
das relações sociais e da fragmentação, para propor uma outra maneira de vivê-la,
baseada no encontro e na troca de afetos. Vimos, a partir dessa questão dramatúrgi-
ca, até que ponto as reflexões são ricas e abertas para permitir essa integração entre
o público e os atores, essa mediação feita entre o acontecer dramatúrgico e a cidade.
Essa reflexão dramatúrgica é uma reflexão sobre o espaço, mas a referência
freqüente a Bertold Brecht sublinha que é, muitas vezes, uma maneira de abordar
politicamente o espaço relacional, já que se instauram outro tipo de relações sociais,
o que almeja imaginar e dar forma a outra maneira de viver a cidade. Contra a soci-
edade do espetáculo, os artistas de rua propõem outros conteúdos e novas imagens
da cidade, que integram o imaginário urbano do lugar e das pessoas que participam
na intervenção.
Vislumbramos, portanto, essas intervenções como um movimento do negati-
vo face à lógica de programação do cotidiano. Essas rupturas dos ritmos do cotidia-
no instauram novos repertórios de usos dos espaços (CARREIRA, 2009, p. 3) onde as
intervenções ocorrem. Introduzem conscientemente novas tensões, revelam certas
contradições presentes no agenciamento do espaço urbano, promovem novas práti-
cas criativas. Estamos de acordo com as posições expostas por Jacques (2009, p. 4),
que se apóia, em particular, sobre reflexões de Mouffe e Chaoui: trata-se de recusar
a idéia de um espaço público que somente serve para engendrar falsos consensos,
enquanto isso disfarça as verdadeiras contradições e tensões inerentes ao violento
processo de metropolização, que se produz também em grande parte no nível sim-
bólico, ligado ao imaginário urbano.
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O espaço público deve ser valorizado como lugar de conflito, de debate. Não
se trata de encontrar uma única voz, mas valorizar a diversidade das vozes, vindo de
múltiplas trajetórias presentes no espaço e participando diferentemente da sua ri-
queza. Essas intervenções valorizam o imprevisto, a incerteza, e provocam uma dis-
sensão que é saudável para o exercício da democracia. Assim, os artistas de rua, to-
mados em sua diversidade, não aspiram falar de uma só voz, mas permitem, em
primeiro lugar, questionar o empobrecimento da experiência urbana. Suas interven-
ções se aproximam, em certa medida, da ideia de “micro-resistências urbanas”, apre-
sentada por Jacques (2009, p. 4).
Hissa e Wstane (2009, p. 86) mostram bem como a cidade, que historicamen-
te é um terreno fértil para a emergência de novas formas artísticas, sofreu também
um movimento contraditório, que a torna o lugar da perversão da arte:
Se a cidade é, sobretudo, a expressão da técnica e da razão, ela é, também, a expressão da perversão da arte. Porque a razão que assalta a cidade – e lhe rouba ou lhe esconde experiências, práticas e sabedorias – é a perversão da arte. A cidade moderna, portanto, não é mais apenas o lugar dos fazeres artísticos, mas, seletivamente, o lugar da apressada razão a roubar o tempo das artes de fazer para pensar e agir, a roubar o tempo de experimentar pa-ra viver. (HISSA; WSTANE, 2009, p. 86)
Percebemos que essa dialética entre a arte e a técnica se apóia, na reflexão do
autor, sobre um uso concreto do tempo. De certa forma, é o tempo linear do relógio,
da programação exacerbada do cotidiano, que se opõe ao tempo cíclico da festa.
Todavia, não consideramos que há uma oposição entre esses dois termos. A
tese do autor consiste em valorizar as interações possíveis entre a arte e a técnica,
inclusive na maneira de enxergar a abordagem cientifica. Apóia-se ele, portanto, na
obra “Escrita INKZ” de Boaventura dos Santos, que incorpora à sua prática cientifica
a poesia, a arte e a emoção (HISSA; WSTANE, 2009, p. 96). De certa maneira, Hissa
e Wstane apontam também para outra maneira de experimentar o espaço urbano,
contemplando a emergência de novas práticas criativas, que deveriam se desdobrar
em novas representações do espaço urbano. A nosso ver, isso pode consistir em res-
saltar a práxis na pesquisa acadêmica, como na construção teórica da ritmanálise do
Lefebvre (1992), que nos convida a participar da elaboração de uma geografia do
sensível (HIERNAUX, 2008, p. 35). Isso significa valorizar também a interdisciplina-
ridade, apostar no dialogo entre a arte e a ciência, diálogo que fundamentou nosso
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trabalho, a partir das ricas reflexões sobre o espaço que elaboram, em particular,
certos grupos de teatro de rua.
A cidade se tece cotidianamente pela interação dos atores que a compõem.
Instaurar rupturas desses ritmos do cotidiano remete à tramar novas formas de se
relacionar. Constituem respiração do tecido urbano que, pela constituição de luga-
res temporalizados, e pelo eco da ressonância desses momentos, propõem, por ne-
gação, outra visão da cidade e do urbano.
A constituição de lugares libertários depende do entretecer das diferentes ideias que formam o coletivo e que podem conduzir à elevação da condi-ção de vida de todos. O espaço da interação é como um tecido que se for-ma pela ação dos múltiplos agentes; cada um tece um fio, no sentido de re-alizar um conjunto de ideias condutoras da ação em benefício da apropria-ção coletiva dos múltiplos processos e espaços de vida, no cotidiano das ci-dades. Estes são desafios postos, inclusive, pela crise da cidade industrial. (EGLER, 2000, p. 219)
Como vimos através da ritmanálise, essa ruptura possível dos ritmos do coti-
diano programado se instaura através da presença. Essa restituição da união entre a
presença e a ausência, que certas intervenções de artes de rua conseguem realizar,
significa finalmente restabelecer a cidadania, o “viver-juntos” que tende a desapare-
cer, na medida que se estende o espaço amnésico.
remete à prevalência de relações superficiais, em que a cidadania é órfã de atitudes, os sujeitos não se sentem envolvidos, responsáveis, pertencentes, donos do espaço onde atuam e se relacionam. Essa cidade moderna, hiper-moderna, plena de marcas que não se cicatrizam, de desigualdades e exclu-sões, toma as delicadezas da vida e nos assalta a partir da imposição de sua velocidade – que impede o encontro, que nos faz apressados, sempre de passagem e em dívida com o tempo e o capital. (HISSA; WSTANE, 2009, p. 97)
Assim, consideramos que, através das intervenções de artes de rua, surgem
novas formas urbanas que sugerem novas funções, que se remetem tanto aos lugares
momentaneamente temporalizados por esse ritmo, quanto aos indivíduos que parti-
cipam desses momentos. Sendo que o espaço é o lugar da reprodução das relações
sociais de produção, o espaço concreto está sendo, conseqüentemente, ocupado
momentaneamente e emocionalmente, e pode se vislumbrar mudanças perceptíveis,
já que vividas.
Pensamos ser útil relacionar essa idéia ao direito à cidade, que constitui um
fio condutor para dar conta das diferentes aspirações dos atores sociais que obser-
vamos durante nosso estudo. O direito à cidade, tal como é formulado por Henri
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Lefebvre, valoriza a possibilidade que cada um possa ter acesso “à vida urbana, à
centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e em-
pregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc.”
(LEFEBVRE, 1991, p. 43). Isso constitui uma utopia, no sentido dinâmico do termo,
isto é, um horizonte para atingir na prática. Nos parece pertinente considerar as
intervenções de artes de rua como práticas urbanas, que participam da promoção
desse direito à cidade. Mas observamos também seus limites, dos quais gostaríamos
de destacar dois aspectos principais que, a nosso ver, são levados em conta nas re-
flexões e nas realizações dos artistas de rua e dos coletivos de teatro de rua.
Primeiro, a idéia de arte pública, incorporada, como vimos, nas discussões
dos grupos que participam da Rede Brasileira de Teatro de Rua, que consiste em
reivindicar políticas públicas para apoiar suas iniciativas, possui no seu propósito a
reconquista do espaço público, considerado no seu sentido genérico de espaço com-
partilhado, espaço de encontro onde é possível debater e estabelecer uma plena ci-
dadania.
Todavia, é necessário considerar então o espaço urbano em toda sua comple-
xidade, isto é, levando em conta suas múltiplas centralidades. A arte de rua não se
contenta da liberação ao uso dos espaços centrais das aglomerações, mesmo se são
os espaços de maior circulação. É necessário que os espetáculos e outras interven-
ções possam circular na maior diversidade possível de lugares, sempre à procura do
seu público e do imprevisto. Isso é emblemático da idéia de sertões, notadamente
exposta pelo estudioso de teatro de rua Adailtom Alves (2011a), também co-
fundador do grupo de teatro Buraco d’Oráculo, quando se refere ao escritor Guima-
rães Rosa, que fala que “o sertão está em toda parte”. O sertão não é somente o ser-
tão geográfico, são também as múltiplas periferias da metrópole, o que fica à mar-
gem do processo de metropolização.
A construção de uma política relacional que valoriza o direito à cidade, isto é,
a cidadania plena, pode passar pela arte, e o movimento de teatro de rua participa
dessa troca de expressões artísticas. Mais ainda: quando eles reivindicam, incenti-
vam e colaboram na ocupação de lugares ancorados nesses sertões, numerosos cole-
tivos participam da disseminação da arte pública e a ressignificação da cidade em
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suas múltiplas escalas. Por exemplo, o coletivo Pombas Urbanas, em São Paulo, con-
ta sua experiência no bairro Cidade Tiradentes, num livro que festeja os 20 anos des-
sa experiência.
Pombas Urbanas fazem teatro e transformam ruas, palcos, praças e galpões de toda cidade. Juntam-se, dialogam, sonham, e, sobretudo, agem em co-munidade. A prática desses 20 anos narrada neste livro revela um fazer que constrói conhecimento, diálogos para compreender e transformar, para que possamos com Teatro expressar, refletir e construir uma realidade mais humana.
[…]
Na periferia de São Paulo, jovens tiveram a sorte de encontrar o artista Li-no Rojas e transformar o previsível. Juntos constituíram um caminho de erros e acertos, baseado no amor pelo Teatro, no desejo de transformação, no diálogo e na busca da compreensão do outro. E o 'outro' como compa-nheiro de grupo, o jovem, a criança, a mulher, cidadãos e personagens. (SILVESTRE, 2009, p. 7)
Vemos neste exemplo que tudo isso ocasiona um diálogo entre diversos ato-
res de uma mesma cidade: ocorrem trocas entre grupos, quando estes se organizam
em rede, integram artistas itinerantes, ocupam lugares onde proporcionam oficinas
e formações. Isso estimula a emergência de novas linguagens que podem estar sem-
pre mais de acordo com a necessidade de expressões presente nos corpos individuais
e no próprio corpo urbano. Assim, nos parece que a reivindicação para políticas pú-
blicas massivas, que valorizassem a aproximação da arte no cotidiano, participa ati-
vamente da elaboração de uma possível educação política do espaço (BAGGIO,
2012). O Estado não deve ser considerado como ator que incentiva esse movimento,
mas como sublinha esse autor:
As possibilidades quanto à uma possível revalorização do espaço público não restringiriam, pelo nosso entendimento, à esfera do Estado, mas fun-damentalmente a determinadas práticas de (re)apropriação socioespacial inventivas e dotadas do uso social coletivo, para as quais o poder público, é bem verdade, pode empenhar esforços importantes, necessários e urgen-tes. É nesse sentido que determinadas formas urbanas poderão assumir ou-tras e novas funções que reflitam o interesse social e público, e não apenas interesses particulares específicos. (BAGGIO, 2012, p. 164)
Essa necessidade absoluta de uma proliferação da arte de rua em todos os in-
terstícios do espaço, sujeito ao processo de metropolização, é central na nossa leitu-
ra dessas intervenções de artes de rua. Em nosso estudo, focamos, sobretudo, o
momento, para mostrar a ruptura da programação do cotidiano, pois tratava-se de
mostrar que isso ocasionava na prática outro uso do tempo e do espaço. Mas dese-
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jamos ressaltar de novo que cabe pensar o espaço na sua complexidade, com sua
extensão e suas distâncias.
Nossa segunda observação é que a arte de rua se relaciona com o direito à ci-
dade, pois promove uma plena acessibilidade ao exercício da arte, sem discrimina-
ção. Também tende a promover e defender as possibilidades de emergência de no-
vas linguagens, para que isso possa ser feito por e em direção de qualquer um. Re-
formulando: não se trata unicamente do acesso à arte na rua, mas também das no-
vas produções suscetíveis de ser criadas nesse âmbito e nessa ótica. Não se trata de
poder assistir passivamente às intervenções artísticas na rua, mas também vislum-
brar a possibilidade de diversos atores sociais se afirmarem pela apropriação da arte
para poder mudar o cotidiano dos lugares onde vivem. Isso é importante, pois é nes-
te ponto que reside também a fraqueza conceitual da arte pública, que pode ser
simplesmente entendida como a liberdade de se expressar no espaço público por
artistas “legítimos”, ou ainda, “mapeados” pelo poder público. Por isso, a distinção
entre arte pública e arte civil (DO DIREITO…, 2011, p. 43) apresenta esse interesse
que já destacamos anteriormente. Deixamos em aberto essa problemática, pois o
debate no seio da RBTR, por exemplo, só esta começando. Trata-se, na verdade, de
se apropriar dessa noção de arte pública, ressaltar essas possibilidades que almejam
a apropriação concreta da cidade. Com efeito, o termo “Arte Publica”, adotado para
o teatro de rua e outras artes cênicas de rua, é relativamente novo no Brasil.
Assim, nos parece de suma importância abordar a noção de “partilha do sen-
sível”. Para isso, nos apoiamos sobre umas das reflexões desenvolvidas por Rancière:
Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que reve-la, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portan-to, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa re-partição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tem-pos e tipos de atividades que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (RANCIERE, 2005, p. 15)
Essas indagações questionam de fato tanto o alcance territorial das práticas
de artes de rua, a partir do momento que vislumbramos uma proliferação do movi-
mento de artes de rua, quanto a possibilidade destas se espalharem enquanto práti-
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cas concretas por parte de qualquer cidadão, permitindo a expressão da cidadania
além das próprias representações.
A reflexão de Rancière (2005, p. 65-66) consiste em identificar o advento do
regime estético das artes, que se opõe ao regime representativo das artes. Para re-
sumir, esse último regime tende a estabilizar a exceção artística, enquanto o primei-
ro questiona a própria repartição das ocupações e atividades humanas. Segundo
Rancière (2005, p. 67), os escritos do jovem Marx, que promove a integração da arte
como trabalho, inspiraram notadamente as reflexões e as práticas das vanguardas
artísticas dos anos 20, logo após a revolução russa, que viu no seu inicio a emergên-
cia de práticas inovadoras, que refletiam sobre essa partilha do sensível46.
Concebe-se assim que a arte não seja mais pensada como uma atividade sepa-
rada, privilégio de alguns. Sua apropriação concreta permite, em particular, mudar a
relação entre o cidadão e o fato urbano através da reapropriação do sentido da obra
(LEFEBVRE, 1986, p. 173). O artista de rua nos parece particularmente sensível a essa
partilha do sensível, pois sua prática consiste em se apresentar para um público he-
terogêneo, sem discriminação. Ademais, tenta se minimizar a fronteira que separa o
artista e o público, tornando esse mais ativo.
Parece oportuno dialogar com as reflexões que formula Pogrebinschi (2007),
quando nos convida a pensar “o político” como “proposta normativa de um devir da
política fundado na experiência humana, e não das instituições que vêm lhe confe-
rindo forma no âmbito do Estado moderno” (POGREBINSCHI, 2007, p. 109). Isso
significa valorizar as práticas não-institucionais, a autogestão dos indivíduos através
da instauração de uma comunidade real. É importante ressaltar que “o político”, que
se distingue nitidamente da “política”, constitui um horizonte, que justamente pode
advir somente pelo desenvolvimento de práticas que valorizam a formação de um
sujeito genérico e possam reconciliar a individualidade e sociabilidade. (POGRE-
BINSCHI, 2007, p. 128).
46 Realizamos aqui essa breve lembrança histórica, para ressaltar que logo após a Revolução Russa, o teatro russo atravessou um intenso processo de renovação, através da agitprop (“agitação” + “propa-ganda”) que inspirou em seguida vários outros movimentos pelo mundo. Nesse âmbito, tratava-se de fazer emergir novas linguagens artísticas para propagar as ideias da jovem revolução. As experiências do homem de teatro Piscator, que inspirou Bertold Brecht, tinham a mesma ambição. Ver, por exem-plo, Mate (2009) e Mate (2011b).
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Licko Turle, que pesquisa há muitos anos sobre o teatro de rua, realiza um re-
lato que nos dá conta das possibilidades contidas nas práticas de artes de rua para
participarem da construção desse sujeito político. A ação se desenvolve em Porto
Alegre em 2011, no parque Brique da Redenção, onde acontece a terceira edição do
Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre, além de outras atividades (feira, artistas
fora da programação…):
Naquele dia, quando os espetáculos de teatro de rua programados ou não pelo Festival começaram a se apresentar, o que antes era uma multidão ou uma aglomeração de indivíduos isolados aos poucos foi se transformando em público espectador com sentimento concreto de sua existência coletiva, se vendo e se reconhecendo como grupo que percebe suas próprias rea-ções, as emoções que o percorrem, o contágio do riso, da aflição, da expec-tativa. As rodas que se formaram uma após outra em torno dos artistas lembravam a arquitetura circular do teatro e revelava a afinidade de ori-gem entre o teatro e a democracia no sentido de assembléia que delibera, que decide a respeito de sua historia. São reuniões voluntárias de uma co-munidade para discutir suas questões por meio do teatro, como arte públi-ca. (TURLE, 2012, p. 183)
Tal descrição restitui o que está em jogo em relação com essas práticas, que
participam da produção de um espaço relacional. Freitas (2003, p. 42) nos faz pensar
nos desafios relacionados, quando ressalta a distinção que o filosofo francês Jean-
Jacques Rousseau operava entre o teatro de sua época e a festa, que seria um “ins-
trumento instituinte, veículo pelo qual se encarna a comunidade”. Nos parece que
isso está levado em conta em muitas reflexões dramatúrgicas acerca das artes de rua.
Todavia, do mesmo modo que “o político” na visão de Pogrebinschi, isso constitui
um horizonte que se realiza pela prática concreta. Podemos, por exemplo, mencio-
nar o uso da música, que está muito presente na dramaturgia das intervenções de
artes de rua que abordamos. Isso se apóia muitas vezes sobre uma pesquisa acerca
dos cantos e ritmos populares de todas as épocas, com o objetivo de criar uma co-
munhão dos afetos e/ou incentivar o público a ação.
Freitas sintetiza a visão que Rousseau desenvolve sobre a festa popular ao
longo da sua obra:
A festa contribui, assim, para esboçar o perfil de uma personalidade que se opõe àquela que emerge na vida cotidiana. Nela, o ideal propriamente polí-tico ganha uma figuração viva e concreta, na qual o prazer do convívio é elevado à sua máxima potência. Ela opera uma inversão na forma de se co-locar no mundo e nos lembra que há outros pontos de vista, que é possível projetar nossa existência a partir de outros lugares. Aqui a práxis coletiva adquire um novo sentido. (FREITAS, 2003, p. 45)
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Podemos relacionar essa descrição com a idéia de associação, que está no bo-
jo da afirmação progressiva do “político”:
Nesta dinamicidade proporcionada pela idéia de associação, as instituições devem ser substituídas pelas práticas e experiências humanas. São as práti-cas operadas pelo homem genérico, o sujeito político, que constituem a sua experiência – que, enquanto movimento também, só pode ser apreendida como ação e pensamento em ato. (POGREBINSCHI, 2007, p. 116)
Assim, na perspectiva do nosso estudo, considera-se que certos atores sociais,
que participam do movimento de artes de rua, nos parecem claramente ter em men-
te essas considerações sobre a necessidade de associação. Isso se realiza concreta-
mente pela ação e o relacionamento entre os corpos, através das trocas de afetos.
Remete a caracterizar um projeto, que se propaga através desses ritmos que esses
atores são capazes de imprimir no espaço urbano. Muitas possibilidades e inventivi-
dade são possíveis para essa restituição do urbano e isso permite formar novas tra-
mas, que concretizem o advento do político na ótica de Pogrebinschi (2007), ou ain-
da do urbano na visão de Henri Lefebvre (1986, 1999).
Cabe então valorizar a emancipação humana, que deve ser distinguida de
uma emancipação unicamente política, para ser concebida como conceito autôno-
mo (POGREBINSCHI, 2007, p. 129). Isso passa pela auto emancipação dos indiví-
duos, que pode acontecer estimulando a emergência de uma nova experiência urba-
na, que passa pelo uso do corpo. As práticas de artes de rua podem ser um dos veto-
res desse processo. A instauração de relações sociais diferentes, com outra qualidade
em relação à presença, vai assim ao encontro de inventar novos modos de ação:
Pode-se admitir, nesse sentido, que a convivência e a ocorrência de rela-ções mais diretas entre as pessoas no espaço urbano não só estimulariam um sentido mais humano à cidade, como também sentimentos de perten-cimento e afeto por ela, componentes fundamentais à civilidade e à cultura publica, o que solicita o (re) aprendizado da convivência e o exercício da tolerância, que só se realiza sob condições democráticas mais efetivas, ou ainda sob plenas condições de emancipação social. (BAGGIO, 2012, p. 160)
A educação política do espaço, que esse autor (BAGGIO, 2012) promove, se
desdobra, no caso das práticas de rua, na possibilidade dos artistas poderem exercer
livremente suas práticas, mas também, fundamentalmente, pela possibilidade de
compartilhar estas, participar e incentivar a multiplicação dessas apropriações do
espaço por práticas inventivas que proporcionam o encontro. Isso tende a instaurar
um diálogo com a própria forma do urbano, materializando momentaneamente esta
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forma, deixando aflorar novas possibilidades de produzir o espaço. Os momentos de
encontro que essas práticas proporcionam permitem instituir um corpo coletivo
relativamente solidário, no seio do qual a emancipação humana está valoriza. Sobre-
tudo, essa prática da arte está vislumbrada sem monopólio, quer seja pelo lugar on-
de se realiza, quer seja pelo fato que convida qualquer um a participar e se tornar de
repente proponente de novas intervenções.
Não podemos nos esquecer das tensões associadas a esse movimento real de
conquista dos espaços públicos pelas práticas artísticas. Ainda falta muito para que
as possibilidades associadas a essas momentos concretos, aos quais nos referimos,
possam se concretizar (através dessa impressão de ritmos) no espaço urbano. A res-
sonância que pode acontecer no imaginário nos parece fundamental, pois permite
vislumbrar reais desdobramentos em prol do estabelecimento de mecanismos mais
democráticos para uma apropriação concreta da cidade por seus moradores.
A relação entre os artistas de rua e o público nos parece crucial. A participa-
ção do “público” deve ser estimulada, é por esse viés que se criam vínculos e que se
materializa a criação dos momentos, essa impressão de ritmos suscetíveis de resso-
nância. Isso passa também pela elaboração de linguagens e de dramaturgias que
tendem a incluir esse público no imaginário proposto e/ou nas questões debatidas
para, quem sabe, atingir o estado de festa que Freitas (2003) valoriza, onde não se
distingue mais quem é realmente artista ou do público.
Essa relação entre o público e os artistas de rua pode ser elaborada através do
reconhecimento primeiramente pelo público da relevância e da legitimidade dessas
práticas no espaço público. Mas isso se opera a partir do sucesso das propostas e das
intenções que levam para rua os artistas. Isso pode gerar práticas sempre mais en-
volvidas com o estabelecimento de relações horizontais.
Paralelamente ao progressivo reconhecimento que pode vir a acontecer, rela-
cionado com possíveis processos de institucionalização que podem participar da
expansão desse tipo de práticas, cabe ressaltar que o que permanece fundamental é
a espontaneidade e o imprevisto, que garantem a abertura que essas práticas permi-
tem dar no cotidiano da cidade. Isso é relativo a abertura da dramaturgia, mas tam-
bém a necessidade de não institucionalizar a liberdade de atuar no espaço público, o
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que constitui uma ameaça, tanto pelas leis e decretos ainda vigentes em muitos mu-
nicípios brasileiros, quanto pelo exemplo do rumo das artes de rua em outros luga-
res do mundo47.
Sobretudo, é interessante pensar que as práticas de artes de rua devem ter
um compromisso com a impressão de ritmo que podem propor. Não cabe ter um
posicionamento político sem proporcionar reais momentos de encontro e de festa. A
ruptura dos fluxos do cotidiano e a instauração do vivido devem ser os primeiros
objetivos dessas práticas. Vejamos o que ressalta o dramaturgo André Carreira
(2009), em relação com sua formulação de um teatro de invasão, capaz de reformu-
lar o repertorio de usos da cidade:
Neste sentido, é preciso considerar a ideia de invasão teatral não apenas desde uma perspectiva definida pela ação política ou por um compromisso radical, mas sobretudo desde uma perspectiva que toma a cidade como um campo simbólico no qual o teatro se instala, inevitavelmente, como ele-mento de ruptura com os fluxos do cotidiano. A invasão cênica é um gesto que se politiza por que representa uma ocupação objetiva de um espaço definido por um repertório de usos cotidianos, no qual o teatro não per-tence naturalmente. (CARREIRA, 2009, p. 3)
As práticas de artes de rua permitem, portanto, vislumbrar a reafirmação do
valor de uso e, em particular, do sentido da obra. Isso passa pela impressão de rit-
mos que instauram outros tempos sociais, tempos lentos onde o encontro é possível.
Os lugares da cidade seguem para onde se apontam as aberturas anacrôni-cas, de tempos que não coincidem e de ritmos que se desafiam. É assim a cidade moderna, hiper-moderna, globalizada, incapaz, bipartida, de ho-mens mutilados vigiados, engavetados nas tipologias. Entretanto, as aber-turas existem e, para lá, segue a cidade dos homens de utopia. (HISSA; WSTANE, 2009, p. 94)
A raiz secular das artes de rua é, neste âmbito, fundamental ressaltar. Pois
constitui um elo de mobilização, propõe abertura tanto conceituais, quanto concre-
tas para desenvolver e promover essas práticas. Se estas podem instaurar uma “res-
piração” no tecido urbano, se apóiam também num fôlego poderoso, que ressalta as
origens da cidade, como lugar de encontro e lugar da arte. Reafirma a cidade como
obra humana, suscetível de ser apropriada e construída para o uso comum. Acaba-
47 O movimento de “Leis do Artista de Rua” se espalhando pelo Brasil é, sem dúvida, uma grande conquista. Porém, cabe ficar atento às formas de regulamentação ulteriores. Mencionamos aqui, por exemplo, o caso de Barcelona, onde floresceu as artes de rua a partir da década 1990. Hoje em dia, está tudo regulamentado, tanto o horário, quanto o lugar da apresentação dos diversos artistas.Isso está supostamente relacionado com o sucesso dos artistas de rua. A visão apresentada aqui neste artigo nos parece muito restrita em relação ao potencial das artes de rua.
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mos essas considerações pela conclusão do texto do coletivo teatral “Tribo de Atua-
dores Oi Nois Aqui Traveiz”, de Porto Alegre, que nos parece sintetizar as possibili-
dades de advento do urbano relacionadas com essas práticas:
No momento em que são cada vez mais raros os verdadeiros encontros en-tre os seres humanos, em que a criação de não-lugares – onde não se esta-belece contato, historicidade ou referência – é a tônica de nossa arquitetu-ra, organização e conseqüente relação, se faz urgente e necessário a criação e manutenção de lugares, para que aconteça a retomada do homem na sua essência. O teatro como arte artesanal e corpórea, é fundamental para esta construção. Ressignificar a existência do homem, constituir um espaço de possibilidades, talvez seja uma das características mais significativas do trabalho teatral, criar um campo fértil para semear as possibilidades do homem em todos os tempos. (TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ, 2012, p. 41)
5. Considerações finais
L'homme fuit l'asphyxie. L'homme dont l'appétit hors de l'imagination se calfeutre sans finir de s'approvisionner, se délivrera par les mains, rivières soudainement grossies. L'homme qui s'épointe dans la prémonition, qui déboise son silence intérieur et le répartit en théâtre, ce second c'est le faiseur de pain. Aux uns la prison et la mort. Aux autres la transhumance du Verbe. Déborder l'économie de la création, agrandir le sang des gestes, devoir de toute lumière.
René Char, Argument, em Seuls demeurent: fureur et mystère
O objetivo teórico principal desse estudo era apropriar-nos da noção de rit-
mo, com o intuito de integrá-la às análises e reflexões geográficas. Nos parece que
essa noção permite tratar de práticas sociais pouco consideradas, enquanto permi-
tem vislumbrar novos horizontes na restituição do urbano, na perspectiva traçada
pelo filósofo Henri Lefebvre.
A nosso ver, o livro “Elementos de ritmanálise”, obra-póstuma de Lefebvre,
constitui uma obra-testamento, que sintetiza vários aspectos do seu pensamento,
notadamente acerca do cotidiano e da presença-ausência. Assim, nos apropriamos
da ritmanálise para tratar da diferença e das rupturas dos ritmos do cotidiano.
Por todo lado, sugere-se que essas rupturas podem ser contempladas como
oxigenação do tecido social e permitem vislumbrar ressignificação dos lugares atra-
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vés da ação e das relações entre corpos, em diferentes escalas: corpo individual, cor-
po coletivo, corpo urbano. Definimos essa possibilidade através da consideração dos
afetos, visto as novas políticas dos afetos que participam sempre mais das lógicas
aferentes à produção do espaço.
Através desse estudo, tentamos também explicitar metaforicamente a im-
pressão de ritmos singulares que observamos, através das ideias de respiração e de
ressonância, que valorizam o potencial transformador das práticas que formaram
nosso objeto empírico de pesquisa.
De certo modo, a respiração indica essa inexorabilidade das rupturas dos rit-
mos do cotidiano, o vivido surgindo mesmo com a programação sempre mais inten-
sa do cotidiano. É justamente nos interstícios que aparecem espaços de representa-
ção que permitem contemplar a restituição do urbano; em nosso caso, através do
encontro e do imprevisto que apresentam as intervenções de arte de rua. A resso-
nância busca descrever as possibilidades ligadas a essas respirações do tecido urba-
no, as possíveis mudanças individuais e coletivas que podem tramar diferentemente
os lugares, criando novas relações entre os corpos, que deixa vislumbrar outra polí-
tica relacional do espaço.
O ritmo sempre existiu, está relacionado ao íntimo, ao sensível, à própria
corporeidade. Essa dimensão não pode fugir da análise do pesquisador, mas tam-
pouco deve se dar uma importância exagerada às percepções sensoriais, correndo o
risco de perder de vista à polirritmia na qual se baseia a análise de um ritmo deter-
minado. Precisa resolutamente considerar o espaço como totalidade aberta, levando
em consideração a lógica que tenta impor estratégias de dominação, enquanto isso
não dispensa de pensar as possibilidades concretas de metamorfose do espaço atra-
vés de determinadas práticas sociais. Vimos que o processo de metropolização exige
esse pensamento da metamorfose, que Henri Lefebvre promove nessa última obra.
Com efeito, a ritmanálise junta várias exigências oriundas do pensamento dialético
que fundamenta as reflexões de Lefebvre. Além de ter como o propósito de enxergar
as múltiplas contradições apresentadas no espaço, esse pensamento tem um com-
promisso como a transformação das relações sociais. Importante é ressaltar que não
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isolamos as práticas observadas dos diferentes teatros de operação aos quais devem
ser interligadas.
As práticas de artes de rua também sempre existiram, tem raízes seculares. A
ritmanálise nos permitiu observá-las no contexto atual, enfatizando o projeto que
carregam. Isso não pode ser desconectado das tradições que fundamentam tais prá-
ticas. O artista de rua carrega uma bagagem oriunda da tradição das artes populares.
Isso é muito forte no Brasil, basta ressaltar a força da cultura popular em vários can-
tos do país, onde cultura popular e artes de rua se misturam muitas vezes. Mais ain-
da, as práticas de artes de rua sempre impuseram ritmos que, apesar da falta de do-
cumentação sobre a diversidade das suas formas, povoam ainda mesmo assim o
imaginário urbano. Por exemplo, o palhaço é uma figura lendária, que teve varias
outras formas através da historia da humanidade. O teatro carrega uma longa histó-
ria, inclusive relacionada com as premisses da democracia grega. Os cortejos forma-
vam a base de numerosas festas religiosas e rituais. Não desenvolvemos muito aqui
esses aspectos. Todavia, achamos que isso se enquadra muito bem com o alcance
teórico da ritmanálise, pois permitiria ressaltar a repetição de ritmos oriundos das
práticas de artes de rua, com características semelhantes em relação à ordem social
de diferentes lugares e diferentes épocas.
Enxergamos neste estudo que as práticas de artes de rua permitem propor
formas temporárias, com novos conteúdos que questionam a organização do espaço
urbano. A impressão do ritmo significa uma troca afetiva que se traduz pela impres-
são de tempos sociais que instauram outros usos do espaço através desses momen-
tos de encontro, de jogo e de festa. Essas práticas (tomadas na sua diversidade, mas
vislumbradas com o potencial de contemplar uma unidade da presença e da ausên-
cia, decorrendo de seu caráter de obra fugaz, mas impactante) permitem enxergar
ao seu modo uma nova espacialidade, que poderia gerar por sua vez novas formas
espaciais. Por isso, é importante ter em mente a forma material da cidade, que as
intervenções de artes de rua desorganizam e se apropriam momentaneamente. To-
davia, é também fundamental enfatizar que essas práticas são portadoras de narrati-
vas e mexem diretamente com o imaginário urbano. Este sofre modificações através
de tais obras efêmeras, que trabalham muito sobre os símbolos, em relação com o
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imaginário coletivo. Portanto, a troca afetiva que proporcionam as intervenções de
artes de rua almeja enriquecer o imaginário urbano e se traduz pelo enriquecimento
da experiência urbana. Isso abre possibilidades sobre a forma segundo a qual podem
se tecer outras relações sociais e, portanto, como podem ser contempladas diferen-
temente as tramas do espaço. Por isso, essas práticas tendem a se constituir como
práticas urbanas no sentido desenvolvido por Lefebvre.
Poderíamos aprofundar essa articulação entre o tempo e o espaço, que nos
proporciona esse pensamento acerca da noção de ritmo. Com efeito, prestar atenção
aos diferentes ritmos que é possível observar no espaço urbano significa considerar,
de certa maneira, a velocidade das múltiplas trajetórias que atravessam o espaço,
apreender a complexidade da multiescalariedade dos processos em curso. Essa apre-
ensão do movimento do real pode ser sempre aprofundada, podem-se adotar diver-
sas abordagens. A noção de ritmo, como ferramenta de análise, se predispõe a defi-
nir critérios que pudessem defini-la, para isolar um fenômeno sem se esquecer do
contexto polirrítmico de onde este provém. Provavelmente, isso seria talvez passível
de ser sistematizado, realizando uma melhor retrospectiva desse conceito, analisan-
do, possivelmente, melhor a ideia de velocidade, que está presente na apresentação
desse conceito de ritmo pelo fisósofo e psicólogo Pinheiro dos Santos em 1931, tal
como a descreve Gaston Bachelard (2006). Henri Lefebvre se apropria dessa noção,
sinalizando esses dois precursores, ressaltando que o ritmo já foi abordado anteri-
ormente na tradição filosófica, por uma linha “moderna” indo de Spinoza à Nietzs-
che (LEFEBVRE, 1992, p. 21).
Gérardot (2007) tentou elaborar critérios para definir o ritmo no âmbito do
seu estudo do turismo. Achamos isso pertinente e operacional nesse quadro, pois
formava um todo coerente e relativamente complexo. Não desejamos seguir esses
critérios, pois nos pareceu mais oportuno nos apropriar dessa noção para explorar o
potencial que contém. Sobretudo, nossa ótica é certamente diferente, a partir do
momento que focamos práticas sociais determinadas, nos apoiando sobre a teoria
dos momentos do próprio Lefebvre. Isso é, num certo sentido, mais coerente para
dar à noção de ritmo sua dimensão espacial, relacionada aos usos dos tempos sociais
e, sobretudo, a crítica da vida cotidiana. Talvez evidenciamos melhor a noção de
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ruptura que explica em parte, a nosso ver, a apropriação da noção de ritmo por Hen-
ri Lefebvre, para realizar o pensamento da metamorfose que esse filósofo promove.
Nos esforçamos para desenvolver um estudo que possa fortificar nosso imaginário
geográfico e buscar aberturas que existem no seio do espaço urbano, enfatizando
novas relações possíveis entre o vivido e o concebido.
A falta de critérios objetivos para entender melhor o ritmo pode ser vista co-
mo lacuna, mas nos parece que a tarefa já foi árdua para justificar essa apropriação
que efetuamos do ritmo, para que possa apresentar interesse ulterior para outros
pesquisadores e outros estudos, com outras problemáticas e abordagens.
Relacionamos as práticas de artes de rua com a ideia de lentidão que evoca
Milton Santos (2009, p. 325), quando fala do tempo dos homens lentos. Com efeito,
nos parece inscrito nas raízes das artes de rua falar para o máximo numero de pes-
soas, parando concretamente o andar dos transeuntes, em numerosos lugares e di-
versos horários. A receptividade por parte do publico em relação aos artistas de rua -
comprovada na grande maioria das nossas observações no Rio ou alhures, assim
como através de numerosos relatos – nos parece atestar empiricamente que essas
práticas se relacionam com essa lentidão que promove Milton Santos e que retoma
Jacques (2007) na sua visão da experiência urbana através da errância. Mesmo se
evocamos brevemente tudo isso, poderia ser aprofundado no sentido de explorar
melhor a superposição de diferentes temporalidades num mesmo lugar. Isolar um
ritmo fugaz e intenso como as práticas de artes de rua valoriza ao mesmo tempo a
suspensão do tempo que tais momentos impõem. Isso se dirige, sobretudo, aos ho-
mens lentos, que podem ou sabem parar, e promove certa atitude que inicia outra
relação com o espaço, visto relacionalmente.
Nesta vontade de explicitar a riqueza de tais práticas sociais, tivemos certa-
mente tendência de dissolver umas contradições que, todavia, estão presentes po-
tencialmente, ainda mais com o desenvolvimento e o sucesso que essas práticas en-
contram. Com certeza, não vislumbramos todas as possibilidades que apresentam
para a construção das tramas do cotidiano. Os artistas de rua propõem unir a teoria
à emoção, pois concretizam desejos de um outro espaço, onde os corpos têm a pos-
sibilidade concreta de se expressar e se relacionarem.
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No entanto, percebemos numerosas possibilidades de recuperação de tais
práticas. Com efeito, frente à difusão e ao sucesso encontrado pelo movimento de
artes de rua pelo Brasil e, em particular, na cidade do Rio de Janeiro – cidade que
está “sendo preparada” para acolher esses mega-eventos de alcance mundial, como
as Jornadas Mundiais da Juventude 2013, a Copa do Mundo 2014 de futebol e os Jo-
gos Olímpicos 2016 -, podemos levantar as incertezas e as possibilidades de recupe-
ração e de seleção que pode acontecer, notadamente por parte do poder público e
da indústria cultural.
O debate entre a forma e conteúdo que levantam reflexões acerca dessas prá-
ticas almejava sinalizar esses riscos. Não se trata simplesmente de promover diver-
são e entretenimento no espaço, trata-se, sobretudo, de valorizar outra relação com
a sensibilidade do corpo e as relações entre os corpos no espaço urbano. O artista de
rua tem, segundo observamos, uma postura aberta e integradora, pois mobiliza a
capacidade de participação e de envolvimento do público, sabe instaurar um certo
clima de festa, no limite da subversão, encarna desejos de liberdade e de união.
Não podemos promover ou se deixar seduzir por um discurso que resultaria
unicamente em valorizar certas práticas de artes de rua em lugares determinados,
de maior circulação ou escolhidos estrategicamente, enquanto o resto do território
escaparia ao desenvolvimento desse fenômeno. O crescimento das práticas de artes
de rua tem como linha de fundo, em principio, e freqüentemente em atos (mesmo
se ainda isso pode parecer gotas de água num deserto), uma certa democratização
da cultura, a valorização das práticas amadoras, das tradições culturais, a formação
de propostas e de novas iniciativas e o intercâmbio entre diferentes grupos, diferen-
tes artistas, diferentes cidadãos. Não resta duvida que os argumentos que funda-
mentam as discussões acerca da arte pública pelo Brasil são realmente inovadoras e
instigadoras de um desenvolvimento de tais práticas para a maioria das pessoas, que
seja na rua, ou pelos rios da Amazônia, nos grandes centros urbanos ou em lugares
mais isolados. A dimensão geográfica dessa problemática da partilha do sensível,
que levantamos, parece fundamental e precisa ser levantada e aprofundada.
Consiste também em enfatizar a suspensão do cotidiano: portanto, podería-
mos explorar melhor a relação entre o cotidiano e a arte, se inspirando, por exem-
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plo, das reflexões suscitadas a partir da obra de Lukács, os situacionistas ou do pró-
prio Lefebvre, atualizando essas discussões através dos debates e iniciativas em cur-
so.
A profissionalização do movimento de teatro de rua e das artes de rua apre-
senta, do mesmo modo, grandes oportunidades. Pode permitir construir projetos
mais ambiciosos, para obter assim resultados multiplicadores em termos estéticos e
afetivos, assim como na difusão e a circulação de tais apropriações concretas do es-
paço. Mas isso pode, simultaneamente, resultar numa seletividade maior para en-
contrar seu lugar e sua legitimidade no espaço urbano, particularmente nos espaços
centrais das grandes aglomerações. Isso pode incentivar também as iniciativas
“oportunistas”, que não estejam realmente em sintonia com a dramaturgia que as
artes de rua necessitam.
Observa-se, portanto, uma tensão crescente entre a institucionalização de
tais práticas e o fato que, historicamente, podem ser definidas como práticas não-
institucionais, que tem como única legitimidade a interação que esboçam com a
concretude da rua ou do espaço aberto, assim como as relações afetivas com seu
povo. Neste âmbito, a passagem do “chapéu” (que o artista faz rodar no final de uma
intervenção) deveria, em todos os casos, se perpetuar, pois garante a continuidade
de tais práticas e promove o fato que estas não dependem do poder estabelecido e
estão ao serviço da população. O apoio do poder público não pode se tornar uma
dependência ou um entrave à livre-expressão dos corpos no espaço urbano. Os artis-
tas de rua, de qualquer modo, devem promover sua prática e a autonomia associada
a esta.
Neste âmbito, poderia ser interessante inserir o estudo de tais práticas numa
discussão acerca da formação de geografias autônomas. Isso está relacionado com o
alcance multi-escalar da noção de ritmo. A Rede Brasileira de Teatro de Rua - RBTR
mostra que é possível se articular em múltiplas escalas, trocando experiências e for-
talecendo um amplo movimento que, fundamentalmente, tem a rua como palco. As
trajetórias dos diversos artistas de rua, tomados individualmente ou coletivamente,
definem um certo ativismo associado à práticas corporais concretas, que se relacio-
nam com o vivido, mas também podem se basear sobre reflexões que podem ser
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criticas, com inspirações e aspirações profundas que têm como objetivo uma trans-
formação mais ampla das relações sociais. Sobretudo, mostraria como as práticas de
artes de rua formam uma ínfima parte dos múltiplos teatros de ações que, paralela-
mente ao processo de metropolização - homogeneizador, fragmentador e hierarqui-
zador – modificam nossa relação com o urbano. Lefebvre (1999) não procura erguer
o urbano como absoluto, tenta enxergar as possibilidades presentes no real que
apontam em transformações reais, que modificam as relações sociais. Os artistas de
rua, restituindo a rua como lugar de encontro e de festa, nos parecem participar efe-
tivamente dessa restituição do urbano no sentido que promove o Henri Lefebvre
através da sua obra.
Não podemos generalizar a definição de um projeto político que estaria rela-
cionado com essas práticas sociais, visto a diversidade dos atores sociais que atuam
na rua. Todavia, podemos valorizar o projeto inserido nesses ritmos, que tende em
promover as interações entre os corpos e instaurar a unidade da presença e da au-
sência. Por isso, seria judicioso aprofundar a ideia de festa. A reflexão de Jacira Frei-
tas (2003) acerca da festa popular como reconstituição da unidade perdida suscitou
nosso interesse. Essa autora debruça-se sobre a noção de festa, tal como é pensada
pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau. De fato, esse autor constitui um dos pilares do
pensamento político moderno. Poderíamos assim aprofundar essas reflexões acerca
da promoção do político frente à política, seguindo uma leitura de inspiração mar-
xista, tal como apontada, nesse estudo, por Pogrebinschi (2007) ou Lefebvre (1986).
Caberia, com efeito, desenvolver essa definição do político, aplicando-a a partir das
dinâmicas concretas e possíveis do espaço.
Portanto, seria possível vislumbrar melhor a instauração de momentos que
valorizam a constituição de um sujeito genérico, que se constrói através do entrela-
çamento das práticas individuais e coletivas, enfatizando a associação dos atores
sociais através da ação dos corpos. Sobretudo, nos permitira aprofundar o trabalho
elaborado através de certos artistas de rua, acerca da sua dramaturgia e as potencia-
lidades concretas e teóricas que isso detém. Assim, poderíamos prestar uma atenção
particular à elaboração e à circulação de certas intervenções, à escolha dos símbolos,
das músicas e alegorias que compõem tais intervenções. Isso remete a vislumbrar
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também o trabalho efetuado em relação à memória coletiva, sobre a cultura popular
e oral. Com efeito, os artistas de rua fundamentam ricas reflexões acerca da lingua-
gem, das representações e do imaginário coletivo. A restituição da unidade da pre-
sença e da ausência que identificamos, a partir das reflexões de Henri Lefebvre, co-
mo potencial e elemento-chave dessas práticas, tende ao grau zero da representa-
ção. Do mesmo modo, a abolição da representação – horizonte inalcançável? - era
visto por Rousseau como a única maneira de instaurar o estado de festa popular
(FREITAS, 2003, p. 89).
A nosso ver, essas reflexões acerca das representações remetem também as
indagações levantadas por Rancière (2005) sobre a partilha do sensível, assim como
aos debates travados por certos grupos de teatro de rua acerca da herança do dra-
maturgo Bertold Brecht na elaboração das suas propostas dramatúrgicas. Trata-se
de comunicar ao máximo de pessoas, sem discriminação, mas sem perder certas exi-
gências relacionadas à reflexão critica sobre a sociedade e o cotidiano, que a lógica
dominante tende em programar.
A vontade de debruçar-nos sobre a noção de festa provém do potencial que
estatem para promover os encontros e suspender as imposições da ordem dominan-
te e momentaneamente bem distante. No entanto, caberia mostrar a exigência teó-
rica e prática de fundamentar essa reflexão a partir dos autores precitados. Freitas
(2003, p. 47) ressalta com razão que a revolução francesa buscou instaurar festas que
possam formar um “corpo moral coletivo” para solidificar os vínculos sociais. Perce-
bemos assim uma nítida tensão entre a espontaneidade da festa e a institucionaliza-
ção, ou até mesmo instrumentalização, da qual esta pode ser objeto. Por exemplo,
os grandes regimes totalitários do século vinte promoveram grandes espetáculos,
que encarravam como grandes festas, tendo como objetivo modelar o sentimento e
a consciência das massas.
As práticas de artes de rua se exercem atualmente num contexto dominado
pelo espetáculo, que se situa no bojo das lógicas em curso de metropolização do es-
paço. O amontoado de imagens, veiculadas notadamente pelas grandes mídias, que
instauram o simulacro, parece hegemônico e se materializa no espaço, de maneira
monumental e física, mas também no cotidiano e nas relações sociais que tramam o
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espaço. Mas a critica da vida cotidiana, na perspectiva de Henri Lefebvre, tende jus-
tamente a desvendar essa programação de cotidiano e aponta no vivido para enfati-
zar que, apesar da força do movimento do hegemônico, a diferença tem lugar e pode
se impor, pois a lógica dominante é mortífera e sem verdadeiro rumo. Ou seja, a
ritmanálise contribui em fragilizar a lógica de abstração em curso e suas bases teóri-
cas que se erguem como únicas verdades do mundo contemporâneo.
Neste âmbito, o slogan oficial da FIFA para a Copa do Mundo de 2014 no Bra-
sil, é sintomático: “Juntos num só ritmo”! Isso rima com a repressão de toda voz dis-
cordante, a elaboração de narrativas que falsificam o real. É bom lembrar que esse
tipo de evento, sendo sempre mais global, sofre sempre mais criticas e faz sempre
menos a unanimidade, se impondo até de maneira forçada e autoritária nos lugares
onde acontece. Não poderia ser diferente no Brasil, apesar do falso consenso que
tenta ser imposto. Descobrimos com ironia esse slogan no final do nosso estudo,
enquanto a ritmanálise incentiva, ao contrario, a expressão e a riqueza das múltiplas
trajetórias que constituem o espaço. Em relação a esse mega-evento e também às
praticas de artes de rua, cabe ressaltar a ameaça que pesa sobre os outros trabalha-
dores informais da rua, como os camelôs, para “higienizar” e mercantilizar o espaço
público de maior circulação dos espaços centrais onde esse evento vai acontecer.
A aposta para incorporar o ritmo como ferramenta de analise no seio das re-
flexões geográficas nos parece assim responder à necessidade de identificar práticas
concretas que tenham um potencial de apropriação coletiva do espaço urbano e
possam apontar a afirmação da diferença, tendo em vista a multiplicidade do espa-
ço. Considera-se assim a expressão de vozes e narrativas que escapam de um con-
senso artificial, mas incorporem e participam igualmente do imaginário urbano. O
destaque sobre essas práticas criativas que tem como palco a rua nos parece ir ao
encontro de outras reflexões mais amplas presentes na geografia urbana, notada-
mente na obra recente de David Harvey (2006). Esse autor realiza, em particular, o
prefácio do seu último livro como dedicatória à obra de Henri Lefebvre para tratar
mais amplamente do direito à cidade e da revolução urbana. No caso das práticas de
artes de rua, a teatróloga militante Iná Camargo Costa (COSTA, 2011b, p. 22) declara
que as práticas artísticas contra-hegemônicas devêm ter como ambição alcançar, no
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mínimo, a audiência que alcançou a televisão de canal aberto. Isso poderia parecer
contraditório ou muito ambicioso, se não fosse levado em conta o potencial de co-
ritmicidade e de ressonância que têm, em nosso caso, as práticas de artes de rua,
que deixam enxergar a multiplicação da impressão de tais ritmos, através notada-
mente de uma redefinição da relação entre o trabalho e a arte. A expressão dos cor-
pos e a necessária conscientização corporal correlativa, que foge da fetichização do
corpo, permitem assim vislumbrar uma explosão de tais práticas criativas, mas com
criatividade compartilhada, que não enfatiza tanto a individualidade, mas promove
a troca efetiva de afetos, enriquecendo a experiência urbana. Isso nos parece partici-
par de uma redefinição das relações entre a materialidade da cidade e as práticas
sociais. Recoloca a obra, quer seja monumental, quer seja efêmera, no centro da vida
social para produzir um espaço mais relacional, integrador mas sem falso consenso,
que permita ao corpo social dominar suas dissensões, levando em conta os diferen-
tes ritmos que participam da sua vitalidade. Participa assim do repensar da cidade,
valorizando sua apropriação concreta, pela modificação dos ritmos que a compõem.
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